30
Juliet Marillier A Voz shadowfell 3 Tradução Catarina F. Almeida a voz***_CS6.indd 5 02/06/14 17:36

Juliet Marillier A Voz - planeta.ptºcap.pdf · mulherzinha, olhando de relance para o saco que entalara no meio das pedras. – Não podia deixá-lo ali, à mercê das moscas e dos

Embed Size (px)

Citation preview

Juliet Marillier

A Vozshadowfell 3

TraduçãoCatarina F. Almeida

a voz***_CS6.indd 5 02/06/14 17:36

Reino de Alban

As Ilhas

Vigia do

Norte

Floresta de Corbie

Darkwater

Pentishead

ver destaque

Lágrimas de Donzela

Silverwater

Deep Water

Hiddenwater

Vigia do

Oeste

a voz***_CS6.indd 8 02/06/14 17:36

As Ilhas

Vigia do

NorteShadowfell

Fortaleza de Inverno

Punho do Gigante

Buraco de Odd

Lagoa Solitária

Rochedo dos RugidosAs Três Bruxas

Floresta de Corbie

Ponte do Brollachan

Ilha Longínqua

Ilha de Ronan Home Isle

O Berço

Penti

shead

Fortalezade Verão

Deep Water

Brightwater

Vigia do

Este

Vigia do Sul

a voz***_CS6.indd 9 02/06/14 17:36

a voz***_CS6.indd 10 02/06/14 17:36

Para a minha família, com amor

a voz***_CS6.indd 11 02/06/14 17:36

a voz***_CS6.indd 12 02/06/14 17:36

13

Prólogo

Fim. Ele tinha chegado ao fim. O fim das mentiras; o fim dos actos de violência cega; já não precisava de fingir que era o leal servidor de Keldec. A sua precária vida dupla como Subju-gador e espião rebelde tinha acabado. Ele virara-lhe as costas e ia regressar a casa.

Atravessando o país à luz do luar, ponderou as consequên-cias da sua decisão. Passaria o Inverno em Shadowfell, a base do exército rebelde. Voltaria a ver Neryn: preciosa dádiva, embora previsse escassos momentos de privacidade a dois naquela casa de estreita coabitação. A sua chegada seria um duplo golpe para os Rebeldes, pois levava consigo não apenas a notícia da morte do seu chefe como a desse alarmante rumor que lhe fora transmitido pelo próprio rei. Tinham encontrado uma outra Voz; Neryn não era a única. Caso se confirmasse, esta má nova lançava o caos no plano dos Rebeldes para destronar Keldec já no próximo Encon-tro do solstício de Verão. Uma Voz treinada devia ser capaz de unir as forças de combate da humanidade e as dos Boa Gente num só exército poderoso. Estremeceu só de pensar no que podia acontecer se duas Vozes entrassem em conflito. Tinha de levar a notícia a Shadowfell o mais depressa possível. A notícia e o seu outro fardo.

Não podia cavalgar a noite inteira. Percorrera uma distância considerável para se afastar o mais que pudesse das terras de Wed-derburn, e a égua já dava sinais de cansaço. Parou na orla de um

a voz***_CS6.indd 13 02/06/14 17:36

14

Juliet Marillier

pequeno bosque, desselou-a, pousou o saco que ela transportava, com todo o cuidado, no meio das pedras e sacou para fora a ração que lhe trouxera. Amanhã teria de fazer melhor. Não acendeu uma fogueira, limitando-se a embrulhar-se no seu cobertor, ao abrigo da lua. Permitiu-se pensar em Neryn; imaginou-a dei-tada nos seus braços e tentou sentir na pele o murmúrio suave dos seus cabelos de seda, cor de mel. Uma emoção inesperada tomou-lhe o coração de mansinho, levando-o a ousar sonhar com novos começos. Fora há menos de um dia que decidira abando-nar a sua vida dupla. Fora há menos de um dia que encontrara a cabeça de Regan espetada nos portões da fortaleza de Wedder-burn, indicando-lhe que já não podia continuar a ser um espião. E, no entanto, apesar do lamentável resto mortal do amigo, que jazia na albarda lá ao fundo, e apesar de ter a certeza de que a Rebelião perdera o melhor chefe que alguma vez poderia ter, sentia uma espécie de paz.

Dormiu, e acordou com algo a espicaçar-lhe o braço com urgência. A sua longa experiência pô-lo de pé e de arma em punho no espaço de duas respirações.

– Guarda o teu ferro, guerreiro! – vociferou a mulherzinha envolta no seu manto verde. – E não ergas a tua faca na minha direcção.

Era Salva, a velha companheira de Neryn e sua ajudante nos tempos de viagem: uma criatura encantada pouco mais alta do que o joelho dele, com orelhas pontiagudas, um novelo selvagem de caracóis cinzentos e esverdeados e um par de olhos luzidios e penetrantes. E estava a picá-lo com o seu cajado. Salva era um dos Boa Gente, os misteriosos habitantes de Alban cuja ajuda seria tão indispensável à Rebelião. O coração abrandou-lhe no peito. Tornou a enfiar o punhal na sua bainha e, depois, sentou-se de pernas cruzadas, para ficar mais próximo do nível dela.

– Podias ter comprado a tua morte – afirmou.

a voz***_CS6.indd 14 02/06/14 17:36

A Voz

15

– E tu também. Escuta-me. – Salva falou-lhe numa voz sussur-rada, como se ali mesmo, na noite dos bosques, pudessem estar cercados de ouvidos indiscretos. – Ouvi dizer que tinhas partido de Wedderburn cheio de pressa, sozinho, sem nenhum dos teus aparatos de Subjugador. E, antes que perguntes, a notícia chegou--me por via de um dos nossos. Um amigo-pássaro identificou-te. Não me parece que esse vosso rei te tenha enviado numa missão solitária nesta altura do ano. Portanto, estás a virar as costas ao papel que desempenhas na corte. Isso não é o que Regan teria desejado, ou Neryn, aliás.

Ele reprimiu um não é da tua conta. Agora que os Boa Gente faziam parte da Rebelião, tudo era da conta deles. E Salva era uma amiga; Neryn confiava nela.

– Regan está morto – afirmou.– Pois sim – replicou Salva. – Essa triste notícia já é do meu

conhecimento. E não precisas de levá-la até Shadowfell; há manei-ras mais rápidas de transmitir uma má nova do que um homem a cavalo. Por esta altura, eles já saberão do sucedido, Neryn e os outros.

Neryn falara-lhe de mensageiros alados; seres com a aparên-cia de pássaros, mas que não eram pássaros de verdade. Amigos--pássaros, chamara-lhes.

– Vou levá-lo para casa, para ser sepultado – disse ele à mulherzinha, olhando de relance para o saco que entalara no meio das pedras. – Não podia deixá-lo ali, à mercê das moscas e dos corvos. Não me arrependo de nada; apenas de não ter sabido onde jazia o resto do seu corpo.

– Ele não teria desejado isto – afirmou Salva. – Não teria dese-jado que abandonasses o teu posto. Como poderão os Rebeldes saber o que vai na mente do rei se estiveres longe da corte? Como vingará o desafio a Keldec sem esse conhecimento íntimo que só tu forneces? A menos que eu me tenha enganado e que este-

a voz***_CS6.indd 15 02/06/14 17:36

16

Juliet Marillier

jas, em boa verdade, a cumprir alguma missão para o rei nestas paragens.

– Não consigo – deu por si a dizer. Havia algo em Salva que inibia toda a mentira. – Não consigo continuar, não posso ser esse homem. Além disso, há mais notícias, algo que Neryn precisa de saber com urgência. Tenho de…

Um galho estalou algures no arvoredo atrás dele e, num ápice, Salva sumiu-se – não tinha propriamente desaparecido, mas, de alguma forma, voltara a confundir-se com o jogo de luz e sombra na orla da floresta. Com a mão assente no cabo do punhal, ele virou-se.

– Owen! Por tudo o que é sagrado, lançaste-nos numa longa perseguição.

Sentiu um nó no estômago quando dois cavaleiros emergiram das sombras. Um homem de cabelos louros com um rosto largo e amistoso: o seu segundo-comandante, Rohan Death-Blade. E um outro mais alto e moreno: também ele membro do Esqua-drão Veado, Tallis Pathfinder. Não se atreveu a imaginar o que isto podia significar. Aqueles eram os dois homens que cada vez mais ele suspeitava que pudessem saber algo a respeito da sua verdadeira identidade, ainda que nenhum deles tivesse alguma vez abordado de forma explícita esse tão perigoso tema. E, agora, ei-los ali e a escolha apresentava-se, nua e crua, à sua frente: travar com eles um combate até à morte, enfrentando os dois ao mesmo tempo, ou recuar de novo para a prisão da sua vida anterior.

– Rohan, Tallis. Não esperava ver-vos aqui. Empata-os. Não chames a atenção para o saco, pois, se o encontrarem, tudo estará perdido.

– Não vou perguntar o que fazes aqui – disse Rohan, des-montando do cavalo. Vinha com o seu traje negro de Subjuga-dor, tal como Tallis, mas nenhum deles pusera a máscara parcial que os homens do rei usavam para ocultar a sua identidade.

a voz***_CS6.indd 16 02/06/14 17:36

A Voz

17

Dois homens, três cavalos; o que vinha amarrado à corda guia era Relâmpago. Tratar-se-ia de uma missão oficial, uma comi-tiva enviada para o levar, sem cerimónias, de volta à corte, onde enfrentaria o castigo correspondente à sua insubordinação? Ou era uma outra coisa? – Assinalarei apenas que, segundo as nossas ordens, já devíamos estar a meio caminho da Fortaleza de Verão. E tu pareces ter seguido na direcção oposta.

Não era, portanto, oficial.– Se partirmos amanhã bem cedo, ainda podemos chegar

a tempo – acrescentou Tallis, num tom neutro.– E os outros que vieram connosco a Wedderburn? – Não via

sinais de mais ninguém.– Ordenei-lhes que fossem primeiro, por um outro cami-

nho – respondeu Rohan. – Expliquei-lhes que havia uma missão secreta envolvendo apenas nós os três. Há alguma razão para não acendermos uma fogueira? Não comemos nada desde que deixá-mos as terras de Wedderburn e está um frio capaz de transformar os testículos de um homem em pedra.

– Nenhuma razão. – Forçou-se a acalmar a respiração; tratou de relaxar o corpo tenso. Previu como seria, o regresso à corte, os olhares de esguelha dos seus companheiros Subjugadores, as perguntas difíceis, as demonstrações de lealdade que Keldec lhe exigiria, como sempre fazia de cada vez que um seu subordinado se desviava às ordens recebidas no mais ínfimo pormenor. Sentia--se como um pássaro que conseguira escapar da sua gaiola e que, mal começara a abrir as asas tímidas, se vira de novo enfiado à bruta lá dentro, e a porta fechada com violência. – Correram um risco, ao virem atrás de mim – disse-lhes.

Tallis estava a apanhar lenha. O luar reflectia-se no alfinete de prata em forma de veado que lhe apertava o manto, o emblema de um homem do rei. Rohan começou a desselar o seu cavalo; Flint foi tratar de Relâmpago, que deixara ficar para trás com alguma

a voz***_CS6.indd 17 02/06/14 17:36

18

Juliet Marillier

relutância. Quando um homem se propunha atravessar o país sem dar nas vistas, um puro-sangue, preto como a noite, dificil-mente serviria o seu propósito.

– Se regressarmos logo pela manhã à Fortaleza de Verão, o risco não terá sido assim tão grande – replicou Rohan, olhando--o de soslaio, como se procurasse asseverar o estado de espírito do seu comandante. – Em todo o caso, é apenas a minha ponde-rada opinião. Tu és o chefe de esquadrão; a decisão pertence-te.

Por um breve momento de loucura, julgou perceber que o seu segundo-comandante lhe sugeria que todos três desertassem e passassem para o lado inimigo. Depois, o senso comum prevale-ceu. Não havia nenhuma decisão a tomar. Na verdade, não havia escolha. Olhou de relance na direcção de Tallis, cujo ouvido não estava bem ao alcance do que era dito.

– Tens a certeza? – murmurou.– Nunca nada é certo – retorquiu Rohan.Uma afirmação como esta, feita na corte ou diante do resto

do Esquadrão Veado, seria suficiente para expor um homem a acusações de traição. O código de existência de um Subjugador exigia-lhe que acreditasse no seu rei de corpo, mente e espírito; que lhe dedicasse uma lealdade inabalável, fossem qual fossem as ordens que recebia. Portanto, uma coisa era certa para sempre: a autoridade do rei, que se exercia sobre todos. Questioná-la era convidar uma morte célere.

– Partiremos, então, de madrugada – disse, por fim. Na noite anterior, tinha sentido que um peso lhe saía de cima dos ombros. Julgara-se, enfim, livre; livre da perversa duplicidade da sua exis-tência enquanto espião de Regan na corte. Uma liberdade que já era; efémera como uma mosca de Março. É claro que, para um Subjugador, não seria em princípio um problema convidar dois companheiros para dormirem à volta da sua fogueira e, na escuri-dão da noite, esfaqueá-los para poder seguir tranquilo o seu cami-

a voz***_CS6.indd 18 02/06/14 17:36

A Voz

19

nho. Já fizera pior noutras alturas da vida. Mas não agora. Não depois de ter dado esses primeiros passos hesitantes como um homem de outra natureza. – Trouxeram alguns mantimentos?

Rohan e Tallis partilharam com ele a sua comida. Flint man-teve-se de vigia enquanto os outros dormiam; perguntou-se se não estariam a dar-lhe a hipótese de fugir, ou se era antes uma extraor-dinária demonstração de confiança. A certa altura, durante a noite, levantou-se para verificar o saco que tinha trazido de Wedderburn, com a sua carga preciosa e nauseabunda, e viu que esta tinha desa-parecido. Por um instante de fazer parar o coração, interrogou-se se não teria reparado em Rohan ou Tallis a abrirem o saco, a des-cobrirem o seu segredo e a guardarem-no noutro sítio para mais tarde o mostrarem ao rei. Só depois lhe ocorreu que fora Salva quem a levara. Isto não é o que Regan teria desejado.

E, neste ponto, a mulher encantada tinha razão. Porque, para Regan, a causa viera sempre em primeiro lugar; e ele esperara o mesmo grau de compromisso da parte de todos os Rebeldes. Se ainda estivesse vivo e fosse consultado, é claro que Regan dese-jaria que ele regressasse à corte, continuasse a ser um Subjuga-dor e fizesse o que tinha de ser feito para conservar a confiança do rei. Flint levara anos a conquistar a sua posição como chefe do Esquadrão Veado e confidente mais próximo de Keldec. Apesar das suas brechas de disciplina nos últimos tempos, tudo indicava que o rei ainda o via como um amigo fiável, ou nunca lhe teria falado na segunda Voz.

Quase conseguia ouvir as palavras de Regan. Por uma razão que desconheço, os teus companheiros estão a tentar livrar-te de sari-lhos. Ainda podes apresentar-te na corte no prazo de seis dias que Keldec te concedeu. Podes acompanhá-lo até à Fortaleza de Inverno e ver essa Voz com os teus próprios olhos. Avaliar a ameaça e fazer chegar uma mensagem a Shadowfell. A causa tem primazia sobre as tuas inclinações pessoais, Flint. E eu não devia ter de te relembrar isso.

a voz***_CS6.indd 19 02/06/14 17:36

20

Juliet Marillier

Mais tarde, Rohan acordou e assumiu o seu turno enquanto ele se entregava a um sono intermitente, com sonhos fragmen-tados e recheados de violência. De madrugada, os três homens reuniram os seus pertences e seguiram viagem, regressando à Fortaleza de Verão – e ao rei. Pelo caminho, quase não trocaram uma palavra.

a voz***_CS6.indd 20 02/06/14 17:36

21

Capítulo 1

Com o Inverno a cerrar os punhos em torno das mon-tanhas, o solo estava tão duro que nem o mais forte dos homens conseguiria enterrar nele a sua espada. Por isso, pousámos a cabeça de Regan sobre a pedra e, por meio da magia, fixámo-la ali.

A comunidade inteira de Rebeldes estava presente, bem como o clã de Boa Gente que vivia por debaixo de nós, em Shadowfell, no seu próprio labirinto de câmaras e túneis. A zona a que cha-mavam a Dobra era profundamente estranha, uma paisagem que mudava de forma de sua livre e espontânea vontade. E assim acon-teceu no dia em que nos despedimos do nosso adorado chefe.

Lúzula, a mulher sábia do povo do Norte, disse uma prece e teceu o seu sortilégio, e uma cavidade abriu-se na encosta da montanha, com o tamanho certo para acomodar a cabeça dentro da sua caixa selada de madeira de carvalho. Tali e o irmão, Fin-gal, colocaram a caixa; Milla segurou na lanterna. O crepúsculo pareceu-nos o momento certo para entregarmos o nosso chefe ao seu tão merecido descanso.

Tali disse algumas palavras de despedida e deu a sua bênção. O seu discurso foi breve; estava a fazer um esforço para não desabar.

A luz tremeluzente da lanterna concedia aos corvos tatuados no seu pescoço uma curiosa vividez, como se voassem de ver-dade, num rumo certo e justo. Por fim, Lúzula tornou a agitar as mãos sobre a pedra e a cavidade fechou-se como se nunca tivesse existido.

a voz***_CS6.indd 21 02/06/14 17:36

22

Juliet Marillier

Tiritávamos por debaixo dos nossos mantos espessos. A neve cobria os picos das montanhas e o vento assobiava a sua canção de Inverno. Feitas as despedidas, recolhemo-nos para dentro de portas, ao abrigo do calor do salão de Shadowfell. A casa inteira ficava por debaixo de terra, à excepção do recinto de treinos. Era ali que Andra praticava com os guerreiros de Shadowfell, enquanto Tali, agora chefe do movimento rebelde, preparava a sua estratégia para o desafio final ao jugo de Keldec.

Tínhamos menos de um ano para concretizá-lo. O apoio do poderoso chefe de clã do Norte, Lannan, Braço-Longo, estava dependente de conseguirmos erguer o desafio no próximo Encontro do solstício de Verão. Antes de essa data chegar, tería-mos de criar uma força de combate constituída por humanos e Boa Gente, uma força com poder e coesão suficientes para enfrentar o domínio do rei e os seus Subjugadores. Era uma tarefa quase impossível. Os Boa Gente não confiavam nos humanos. Nem sequer confiavam uns nos outros. Por que razão decidiriam correr esse risco, quando podiam retirar-se para os seus esconde-rijos e esperar que a tormenta passasse?

A resposta, por mais inusitada que possa parecer, era eu. Eu tinha levado muito tempo a aceitar que era, de facto, uma Voz, uma mulher com o raro dom de conseguir ver, ouvir e Chamar os Boa Gente, onde quer que eles estivessem; alguém que podia invocar seres do outro mundo e persuadi-los a trabalhar com a humanidade, em prol de um bem maior. Chamá-los às armas. A ideia dera aso a algum debate interior. Ainda dava. Levar outros a enfrentar danos pessoais, a própria morte, parecia-me profunda-mente errado. Aos olhos de Regan, a única coisa que importava era a causa. Para que a Rebelião vingasse, dissera ele, nós tínhamos de pôr de parte esses receios. Tínhamos de estar preparados para fazer o que fosse preciso para assegurar a queda do tirano. Era uma lição que todos os Rebeldes de Shadowfell levavam a peito.

a voz***_CS6.indd 22 02/06/14 17:36

A Voz

23

Quando fizera o meu caminho até ali, pouco mais de um ano antes, o meu talento era um diamante em bruto. Ainda não rece-bera qualquer treino, e o poder daquilo que era capaz de fazer assustava-me, pois tinha visto os estragos que podia causar se não fosse usado com sabedoria. Decidira, então, embarcar numa viagem em busca dos quatro Guardiães de Alban, as presenças mais antigas e sábias da terra, para lhes pedir que me ajudassem a aprender o uso correcto do meu Dom Iluminado.

Entre a Primavera e o Outono, tinha percorrido esse trajecto, primeiro até à Bruxa das Ilhas, que me ensinara como o Cha-mamento podia ser fortalecido pela magia da água, e depois até ao Lorde do Norte, que eu ajudara a acordar de um longo sono encantado. Em troca, ele tinha-me iniciado na magia da terra. Agora, eu estava de volta a Shadowfell, com o desgosto da perda de Regan ainda muito vivo no pensamento e as notícias de Flint povoando os meus sonhos com visões perturbadoras do homem que eu amava. Quando trouxera a cabeça de Regan para casa, Corvelo, o homem-pássaro do povo do Oeste, contara-nos uma história inquietante.

O clã de Boa Gente a que Salva pertencia vira uma comitiva de Subjugadores a entrar a cavalo na fortaleza do chefe de clã de Wedderburn, Keenan, o homem que ordenara a morte de Regan. Mais tarde, tinham visto Flint a sair de lá sozinho, a meio da noite; tinham-no observado a subir os portões da fortaleza para soltar a cabeça de Regan, que ali fora pregada numa pavorosa exibição de autoridade. Tinham-no visto sem o seu uniforme de Subjugador, vestido com roupas comuns e montado numa égua vulgar, a esgueirar-se para dentro da floresta e a afastar-se a toda a brida. Não na direcção da Fortaleza de Verão e dos seus deveres na corte do rei, mas pelo vale do Rio Bravo acima, rumo a Shadowfell. Numa albarda presa atrás da sela, levava a cabeça de Regan.

a voz***_CS6.indd 23 02/06/14 17:36

24

Juliet Marillier

Salva confrontara-o quando ele fizera uma pausa para des-cansar, e vira confirmados os seus piores receios: Flint ia desistir da sua arduamente conquistada posição de confiança na corte. Virara as costas ao rei e trazia Regan para casa. Ele mal começara a explicar-lhe o porquê da sua decisão quando dois Subjugado-res tinham aparecido. Salva vira-se obrigada a esconder-se. Isto contara-nos Corvelo; e que, na manhã seguinte, Flint partira em viagem, rumo à Fortaleza de Verão, com os seus companheiros.

Notícias perturbadoras, sem dúvida. Flint já era há muito tempo a poderosa arma secreta dos Rebeldes, os olhos de Regan na corte, uma fonte vital de informação privilegiada acerca dos planos estratégicos de Keldec. Já lá estava há vários anos, desde que concluíra o seu treino na arte ancestral de Tecer a Mente e partira a oferecer os seus serviços de perito a Keldec. Subira bem alto na hierarquia da corte; para tal, fora-lhe exigido que desse provas de uma lealdade irrepreensível ao rei. Eu sabia o quanto isso lhe tinha custado, uma vez que, sob o jugo de Keldec, um Tecedor da Mente tinha de actuar como Escravizador, usando os saberes do seu ofício para moldar súbditos rebeldes à vontade do rei. Quando eu vira Flint na Primavera anterior, nas ilhas, ele já tinha atingido o seu limite; odiava o que o obrigavam a fazer. Mas nunca esperei, nem por um breve instante, que ele desistisse da sua missão antes de a nossa batalha ser ganha.

Depois do funeral, sentámo-nos durante algum tempo diante do fogo do lar, a beber cerveja quente com açúcar e a gozar o calor. Tentámos recordar Regan como devíamos, com histórias da coragem e da visão do nosso chefe perdido, e memórias par-tilhadas dos bons momentos que passáramos juntos. Todavia, a sombra do gesto de Flint pesava sobre todos nós.

Eu sabia quão portentosa essa decisão devia ter sido para ele – nunca teria dado semelhante passo se não estivesse perto do ponto de ruptura. E, de forma egoísta, desejei que Flint tivesse,

a voz***_CS6.indd 24 02/06/14 17:36

A Voz

25

de facto, subido o vale, deixando essa velha vida para trás, pois ali, em Shadowfell, teria ficado em segurança, pelo menos por agora. E nós teríamos passado algum tempo juntos. Os outros debatiam o significado de tudo isto e se poderíamos ou não seguir com os nossos planos, sem alterações. O Inverno fechava-se, agora, sobre a terra e quaisquer movimentos fora da nossa base segura, nas montanhas, seriam limitados. A minha própria decisão difícil pairava no horizonte.

Tali estava irrequieta. A morte de Regan não só a promovera a nossa chefe como soltara nela uma urgência furiosa de resolver as coisas, de preferência o mais depressa possível. Deu-nos uma noite para descansar e fazer o luto. Depois, convocou-nos para um conselho.

Foi um pequeno núcleo que ali se reuniu: Tali, o irmão dela, Fingal, eu própria, Andra, Brasal, Gort e o Grande Don. Este era o contingente humano. Mas os conselhos tinham mudado em Shadowfell, desde que conquistáramos o apoio desconfiado do Povo de Baixo, o clã de seres encantados que vivia nas câmaras que existiam sob a nossa fortaleza na montanha. Por isso, junta-ram-se a nós os anciãos do clã, Lúzula e Dente-de-Leão, e o guer-reiro Uva-ursina, que parecia um cruzamento entre um homem de baixa estatura e um texugo. Em acréscimo, ainda veio Murmú-rio, o ser com a forma de uma coruja que nos tinha acompanhado, a Tali e a mim, quando regressáramos à pressa do Norte. Não fora a magia de Murmúrio e teríamos levado pelo menos todo um ciclo lunar a chegar a casa; ele trouxera-nos de volta numa única noite. Corvelo, o amigo-pássaro e mensageiro do clã de Salva, já voara entretanto para longe de Shadowfell, regressando às flores-tas do Oeste.

a voz***_CS6.indd 25 02/06/14 17:36

26

Juliet Marillier

Dada a presença dos Boa Gente no conselho, todas as armas e utensílios de ferro que existiam na nossa morada foram cober-tos e arrumados a um canto. Eu tivera a esperança de que o meu treino com os Guardiães me ensinasse formas de proteger os nossos aliados encantados da influência destrutiva do ferro frio, uma vez que este seria, de certeza, um grande obstáculo quando nos erguêssemos em conjunto na batalha. Contudo, nem a Bruxa das Ilhas nem o Lorde do Norte se encontravam na posse do segredo. Alguns Boa Gente conseguiam resis-tir ao ferro, outros não; isto fora tudo o que eu aprendera até aqui. Também me tinham dito que o segredo talvez esti-vesse na posse do mais duvidoso dos Guardiães, o Senhor das Sombras.

Reunimo-nos numa pequena câmara à porta fechada. Tali deu-nos as boas-vindas, com modos bruscos.

– Obrigada por terem vindo. Este tem sido um momento difícil para todos nós e lamento que haja necessidade de falar de estratégia tão depressa. Mas Regan teria querido que levás-semos as coisas em diante, e é isso que tenciono fazer. Como sabem, Neryn e eu assistimos ao último Encontro do solstício de Verão. Vimos as leis de Keldec em acção, vimo-las espelhadas em actos de perversa brutalidade, capazes de nausear o coração mais empedernido de toda a Alban. E, porém, uma multidão de gente comum cruzou os braços e permitiu que tudo aquilo acon-tecesse, sem uma única palavra de protesto, pois todos os que ali se encontravam sabiam que levantar a voz contra a autoridade do rei não é apenas uma sentença de morte para aquele que possui coragem suficiente para o fazer como levará o desastre a todos os membros da sua casa e família. Foi graças a Flint que conse-guimos escapar da Fortaleza de Verão; graças a ele e a um outro Subjugador. Não sabemos se esse homem é um aliado de Flint, ou se é apenas menos brutal do que a maior parte dos homens do

a voz***_CS6.indd 26 02/06/14 17:36

A Voz

27

rei. No geral, o Encontro foi uma experiência atroz. – Olhou de relance para mim.

– Foi nauseante – confirmei. Os cruéis acontecimentos do Encontro tinham-me sido gravados na memória com um ferrete; actos monstruosos como aqueles não deviam poder repetir-se. – Se nenhuma de nós falou muito acerca do assunto é porque não suportávamos fazê-lo. Todos vocês sabem aquilo de que Keldec é capaz. Isto foi uma exibição da sua autoridade no seu pior.

– E Flint, como sabem, foi a principal atracção do dia, desta-cado dos outros para uma atenção especial – disse Tali. – Todavia, não acredito que ele tenha sido exposto como um de nós. Se fosse esse o seu crime, teria enfrentado um castigo muito pior do que ser obrigado a executar uma Escravização pública. O facto de eu ter sido escolhida para ser a vítima dessa Escravização deve ter sido pura coincidência.

– Caso soubesse que Flint era um espião Rebelde, o rei ter-se--ia assegurado de que ele não passava desse dia. Nós vimos dois Subjugadores serem obrigados a lutar até à morte.

– Também tenho a certeza de que Flint não sabia que eu fora feita prisioneira até me arrastarem para o palco para ser Escravi-zada – observou Tali. – Ficou chocado. Embora, como seria de esperar, tivesse sabido disfarçar bem o seu espanto.

– Surpreende-me que tenhas sido feita prisioneira de todo – comentou Brasal. – Julgava-te capaz de dar conta de um esqua-drão inteiro de Subjugadores.

Tali fez uma careta.– Não seria louca ao ponto de tentar semelhante feito,

a menos que a alternativa fosse a morte certa.– Tali permitiu que os Subjugadores a capturassem porque,

ao ripostar, podia ter chamado as atenções para mim, a sua com-panheira de estrada – expliquei. – Foi uma feliz coincidência que Flint tivesse sido escolhido para levar a cabo a sua punição

a voz***_CS6.indd 27 02/06/14 17:36

28

Juliet Marillier

e que ambos tivessem tido presença de espírito para forjarem uma Escravização. – Um arrepio percorreu-me o corpo quando me lembrei desse momento, o fingimento de que a Escraviza-ção tivera um resultado desastroso e o comportamento de Tali, tão convincente que até mesmo eu a julguei transformada numa sombra disforme e acéfala do seu verdadeiro ser. Em seguida, a rainha exigira que ela fosse liquidada, e Flint e o seu compa-nheiro tinham-nos levado para a floresta, onde se limitaram a deixar-nos ir.

– Tivemos sorte – disse Tali, com um ar solene. – Infeliz-mente, fui vista por uma multidão em peso nesse dia. Pelo rei, pela rainha, pela corte inteira; por todos os esquadrões de Sub-jugadores; por um grande número de pessoas comuns que via-javam para a Fortaleza de Verão para assistirem aos pretensos jogos. E, como a minha aparência é um pouco fora do vulgar – olhou de relance para baixo, para as elaboradas tatuagens que lhe rodeavam os braços, com espirais e volutas e pássaros em voo, a condizer com os que lhe envolviam o pescoço –, essas pessoas seriam todas capazes de reconhecer-me se me vissem outra vez. Isso significa que não poderei sair de Shadowfell até chegar o momento do confronto final. – Olhou para Fingal. – E o mesmo se aplica a ti. – As marcas corporais do irmão eram quase idênticas às dela.

– E Neryn? – perguntou Andra. – Ela vai ter de viajar.– Eu estava no meio da multidão – respondi. – É certo que as

pessoas me viram, mas não com Tali, a não ser quando a arras-taram para fora da zona aberta e eu abri caminho à cotovelada atrás deles. Também convivemos com algumas pessoas durante a viagem para a Fortaleza de Verão, é claro. Mas eu não me destaco como Tali. Além disso, como tu própria referiste, eu tenho de ir; estou apenas a meio do meu treino. Ainda me falta visitar a Dama Branca e o Senhor das Sombras.

a voz***_CS6.indd 28 02/06/14 17:36

A Voz

29

– O sujeito que viaja com Flint, esse outro Subjugador – disse Fingal. – Ele deve ter olhado bem para ti.

– Olhou, sim. – Eu lembrava-me do guerreiro de rosto aberto e cabelos louros que me perguntara se eu tinha provisões para a viagem e que não fizera uma única pergunta difícil. Também o tinha visto nos meus sonhos, pois os sonhos em que Flint apare-cia eram especialmente vívidos, dado o seu talento como Tecedor da Mente. – Creio que é um amigo. Se não fosse, teria querido pôr um fim tanto à vida de Tali como à minha, nesse dia na floresta. Sei que era esse o destino que o rei e a rainha tinham em mente.

– Vamos esperar que tenhas razão, Neryn, porque, se não tiveres, Flint está metido num sarilho ainda maior do que julgá-vamos – observou Tali. – Para agravar tudo isto, há o relatório que Corvelo nos trouxe a respeito do seu encontro com Salva. Ainda me custa a aceitar o que ouvi. Quando nos encontrámos com Flint nas ilhas, ele não nos deu nenhuma razão para pensar-mos que tencionava retirar-se, de repente, da sua posição na corte, sobretudo numa altura em que os seus serviços são tão vitais para a causa.

– Custa-lhe os olhos da cara fazer o que faz – repliquei. – De todos nós, ele é quem tem o papel mais difícil.

– Segundo nos contaram, Flint regressou à corte com os Subjugadores que vieram buscá-lo – interveio o Grande Don. – O que não sabemos é se foi detido por eles e é, agora, um pri-sioneiro, ou se conseguiu dar-lhes alguma justificação plausível para ter partido sozinho daquela maneira. Flint é um mentiroso expedito; teve muito treino ao longo dos anos e, segundo o que ele próprio nos contou no passado, o rei tende muitas vezes a acreditar na sua palavra, apesar das reservas de terceiros. Talvez consiga salvar-se disto por meio da palavra.

– De qualquer modo, é perturbador. – O maxilar de Tali rete-sou-se, lúgubre. – Se houver a mais pequena hipótese de Flint ter

a voz***_CS6.indd 29 02/06/14 17:36

30

Juliet Marillier

perdido a confiança do rei, a nossa fonte de informação na corte desapareceu. Ele deixará de enviar notícias para fora, e nós deixa-remos de enviar os nossos mensageiros para dentro. Isto tornará muito mais difícil termos tudo a postos no solstício de Verão. – Tali tinha muitos elementos para coordenar: não apenas a força de combate de Shadowfell mas grupos de Rebeldes sediados em várias outras localidades, assim como os exércitos pessoais de três chefes de clã de Alban. E esta era apenas a parte humana da Rebe-lião. Desde que concluísse o meu treino a tempo, eu não tardaria a Chamar um número substancial de Boa Gente, para lutarem ao lado dos guerreiros humanos de Tali.

– Ofereceríamos os nossos irmãos para transportar tais men-sagens – disse Lúzula –, se não fosse o ferro frio que existe nesses lugares. O vosso homem viajará para a Fortaleza de Inverno, com o rei e a sua corte, para passar a estação fria, não é verdade?

– Correcto – replicou Tali. – E ficarão aí até chegarem os primeiros dias de Verão. É um longo caminho, mesmo para os amigos-pássaros. O vosso povo tem sido um trunfo para esta causa; não estaríamos onde estamos se não tivessem espalhado a palavra por toda a Alban, em nosso nome. Mas, como disseste e bem, ambas as residências do rei estarão cheias de Subjuga-dores armados com armas de ferro. Se Flint estiver, de alguma forma, em detenção, nós não poderemos ajudá-lo. Ele ficará por sua conta.

– Tenho esperança de que, antes do solstício de Verão, eu já tenha aprendido a proteger o vosso povo do ferro frio – afirmei, dirigindo-me a Lúzula e aos seus companheiros. – Foi-me dito que o Senhor das Sombras talvez soubesse o segredo. Far-lhe-ei uma visita depois de ter viajado para leste, em busca da Dama Branca.

– Não faz sentido. – Dente-de-Leão tinha estado invulgar-mente calado. Agora, o homem pequenino fixara os seus olhos

a voz***_CS6.indd 30 02/06/14 17:36

A Voz

31

em mim, numa severa interrogação. – Ausentastes-vos desde os primeiros rebentos até à queda das últimas folhas, para que pudésseis encontrar a Velha Bruxa e o Lorde do Norte e aprender aquilo que urgia aprender. Faltai-vos visitar mais dois Guardiães e tendes apenas até ao solstício de Verão para concluir a tarefa. E um deles é o Senhor das Sombras. Não ides conseg…

– Aqui, em Shadowfell, nós não dizemos não vais conseguir – interrompeu Tali, silenciando-o. – E não dizemos impossível. Neryn e eu fomos apanhadas no meio da multidão que se dirigia ao Encontro; isso atrasou-nos. E, antes, eu cometi um erro de jul-gamento que nos desviou do nosso caminho.

Fez-se silêncio, durante o qual me pareceu que toda a gente estava a pensar o mesmo: e isso pode acontecer outra vez, ou algo muito parecido.

– Mas é verdade – acrescentou Tali –, o tempo escasseia. Mesmo que parta daqui assim que os caminhos se abrirem, no fim do Inverno, Neryn mal terá tempo para fazer o que tem de ser feito.

Murmúrio agitou as suas penas cor de neve.– O Inverno aproxima-se – afirmou. – Mas ainda não chegou

em toda a sua força. Por que razão tens de esperar até à Primavera para viajares para Este? Vai agora e estarás longe das terras altas antes de a neve cobrir os caminhos.

– Neryn talvez consiga passar – disse Brasal. – Mas, nesta altura do ano, também é muito provável que seja apanhada numa tempestade de neve e morra de frio na encosta da montanha. Já vimos isso acontecer uma vez; não queremos que se repita.

Murmúrio continuava a olhar para mim, à espera que eu falasse.

– Mas tu conseguias pôr-me lá muito mais depressa – obser-vei, olhando-o nos olhos. – É isso que estás a sugerir? Numa só noite, como fizeste quando nos trouxeste, a mim e a Tali, para

a voz***_CS6.indd 31 02/06/14 17:36

32

Juliet Marillier

casa? – A ideia de voltar a abandonar tão cedo o calor e a segu-rança de Shadowfell dava-me vómitos.

– Talvez seja possível. – Havia um mas no tom de Murmúrio. – Nunca tentei viajar até à Vigia do Este. Não seria fácil. A Dama Branca é uma criatura reservada, tal como o povo da sua Vigia. Pelo menos, foi o que ouvi dizer. Levar-te até lá tão depressa seria uma considerável prova de força.

– Mas tu conseguirias fazê-lo – declarou Tali, com os olhos a brilhar de entusiasmo. É certo que isto nos daria uma grande vantagem. – Dentro de quanto tempo?

– Assim que Neryn estiver pronta – retorquiu Murmúrio, embora houvesse uma reserva na sua voz. – Não prometo con-seguir encontrar a Dama Branca, isto que fique bem claro. Mas posso levar Neryn ao lugar onde creio que é mais provável que ela se encontre e posso ficar a fazer-lhe companhia enquanto cumpre o seu treino.

– Não precisarias de ficar – disse Tali, pensando mais à frente. – Podias voltar para o Norte, até ser altura de Neryn seguir via-gem outra vez.

Murmúrio virou os seus olhos grandes, de coruja, para ela.– E deixarias a tua Voz sem qualquer guarda?– Nós forneceremos a guarda. Gort já se voluntariou para

fazer esse trabalho; quando viajarem por caminhos humanos, serão um casal convincente, de marido e mulher.

– Ah – replicou Murmúrio, com um suspiro. – Como já vos disse, esta é uma viagem mais difícil. Não tenho forças para levar mais do que um.

Fez-se um silêncio. Depois, Tali perguntou:– Não podias levar Gort primeiro e, depois, voltar para levares

Neryn?– Não se trata de transportar pessoas de um lado ao outro do

vau, ou de equilibrá-las numa ponte – explicou Murmúrio. – Isto

a voz***_CS6.indd 32 02/06/14 17:36

A Voz

33

suga-nos a nossa força. Só posso levar um. Neryn não precisa de outro guarda-costas. Eu consigo mantê-la em segurança.

Tali abriu a boca, e era evidente que se preparava para dizer--lhe que aquilo que ele estava a sugerir era contrário ao plano definido quando eu chegara pela primeira vez a Shadowfell. Um plano feito por Regan e por ela própria, com o assentimento de toda a comunidade rebelde. Isto é, toda a comunidade humana rebelde. Só mais tarde tínhamos conseguido o apoio dos Boa Gente. Havia um conjunto de prioridades, e uma das principais era a minha segurança. Regan não se sentira inclinado a deixar-me sair de Shadowfell sem o melhor guarda-costas que ele pudesse dar-me. Na minha última viagem, esse guarda-costas tinha sido Tali. Agora, Regan estava morto e Tali não podia vir comigo. Mas era notório na expressão do seu rosto que ela duvidava da capaci-dade de Murmúrio para me manter a salvo.

– Podes dizer-nos onde fica esse lugar? – O Grande Don falou antes que Tali pudesse pronunciar-se. – Se tivermos aliados na zona, um dos vossos amigos-pássaros podia levar-lhes uma men-sagem e eles tratariam de arranjar uma protecção suplementar para Neryn.

– Não quero mensagens a voar de um lado para o outro que possam revelar o paradeiro de Neryn – afirmou Tali. – Um amigo--pássaro pode cair nas mãos erradas. Idealmente, Neryn teria dois protectores humanos, um para ficar com ela, o outro para prepa-rar o caminho para quando precisar de seguir viagem. Nós temos aliados no Sul; eles podem ser-lhe úteis. Já se espalhou a palavra de que usaremos o cardo como nosso emblema. De forma dis-creta, claro.

Murmúrio e os outros Boa Gente tinham ficado muito silen-ciosos.

– Não se esqueçam do motivo por que viajo para Este – inter-vim, com receio de que pudéssemos estar a causar-lhes algum

a voz***_CS6.indd 33 02/06/14 17:36

34

Juliet Marillier

tipo de ofensa. – Aquela que procuro é uma Guardiã. Ancestral, poderosa, encantada. Uma entidade que, se os rumores forem verdadeiros, se retirou do mundo para aguardar o fim dos tempos negros do reinado de Keldec. A Dama Branca pode não estar dis-posta a falar comigo se eu estiver rodeada de protectores huma-nos, por muito bem-intencionados que eles sejam. Também pode estender a sua relutância a Murmúrio, uma vez que é um Norte-nho. Mas, pelo menos, ele é um ser da sua espécie.

– A pequena falou com sabedoria – observou Lúzula. – Reza a história que a Dama Branca nunca foi muito apreciadora de companhia, salvo a do seu pequeno círculo. Não creio que ela facilite a tarefa. – Fazendo uma pausa, acrescentou: – O seu lugar de refúgio… Ouvi dizer que é um sítio onde os homens estão proibidos de entrar.

– Mais uma coisa – acrescentei. – Quando encontrar a Dama Branca, vou precisar de ficar com ela para cumprir o meu treino. Isso pode demorar, e quem quer que me acompanhe pode ter de passar muito tempo apenas… à espera. Olhei de relance para Tali. Ela aborrecera-se com a espera nas ilhas, mas usara o seu tempo de forma proveitosa no Norte. Aqui, tornara-se amiga dos comandantes do Lorde do Norte e ajudara-os a reorganizar as suas forças de combate. Entre nós as duas, ela e eu tínhamos con-quistado o apoio daquele exército para a Rebelião. – Murmúrio podia aproveitar esse tempo para conversar com os Boa Gente do Este – sugeri. – Podia começar a tentar ganhar o apoio deles. Já temos a aliança do Oeste e do Norte, mas as outras Vigias… Parece que esses povos não são tão fáceis de abordar.

– Os de Este são uma gente estranha – comentou Dente--de-Leão, o homem pequenino que era um chefe do Povo de Baixo. – Fugidios. Rápidos. Sensíveis. Um ser não tem como agarrá-los.

– Fogos-fátuos – acrescentou Uva-ursina.

a voz***_CS6.indd 34 02/06/14 17:36

A Voz

35

– Luas saltitantes – disse Lúzula. – Um brilho, uma luz, um alvoroço, e já desapareceram.

– E o sul? – perguntou Fingal. – Será que vai revelar-se tam-bém difícil? Mesmo que Neryn parta agora, já não temos muito tempo.

– Não podemos falar-vos da Vigia do Sul – afirmou Dente-de--Leão. – A não ser para dizer que não iríamos de certeza a correr aventurar-nos lá dentro.

Olhei de relance para Murmúrio. Se ia levar-me para Este, fazia sentido que também fosse ele a levar-me para sul. Eu não conseguiria regressar a casa, a Shadowfell, no intervalo entre os dois, dada a urgência de concluir toda a missão muito antes do solstício de Verão. Quanto mais pensava nisso, mais me custava a acreditar que seria capaz de fazê-lo a tempo.

– Se não fosse essa questão do ferro frio – disse Murmúrio –, eu até sugeria que não te incomodasses com o Senhor das Som-bras. Não te parece que ele é tão capaz de te ensinar a coisa certa como a errada? Por ora, digo que temos de dar um passo de cada vez. Posso levar-te para Este. Pouparás uma estação inteira se via-jares comigo.

Tali cruzou os braços, as sobrancelhas unidas num cenho car-regado. Olhou para mim.

– Tu és a Voz, Neryn. No fim, esta decisão tem de ser tua.– Tu és a nossa chefe. Submeter-me-ei à tua decisão, para

onde quer que ela penda.Tali conseguiu esboçar um sorriso.– Não me sinto qualificada para avaliar a questão. A oferta de

Murmúrio parece permitir-te concluíres tudo antes do solstício de Verão, coisa que é essencial. Mas é arriscada. Se tens dúvidas, ou se não te sentes preparada para voltar a partir tão depressa, espera até chegar a Primavera e viaja nessa altura, levando Gort contigo, para além de Murmúrio. É vital que te mantenhas a salvo.

a voz***_CS6.indd 35 02/06/14 17:36

36

Juliet Marillier

Vamos precisar de ti no final; não conseguimos vencer esta luta sem ti.

Tali e eu regressáramos há pouco da nossa viagem, deparando--nos com a terrível notícia da morte de Regan. A ideia de voltar a partir tão depressa era um fardo de chumbo a pesar-me nos ombros. As crueldades a que assistira pelo caminho ainda assom-bravam os meus sonhos. Mas não havia como derrotar o mal se as pessoas não tivessem esperança. Não havia como fazer progressos se as pessoas não se agarrassem à sua fé de que o futuro podia ser luminoso, de que a chama da bondade ainda podia brilhar naquele reino de trevas e de desespero. E, embora fosse de longe mais fácil encolhermo-nos e procurar um esconderijo, como muitos Boa Gente tinham feito, nunca haveria mudança a menos que as pessoas estivessem preparadas para correr riscos, para dar um passo em frente e lutar por um mundo melhor. Eu sabia isto muito bem; já o sabia há muito tempo.

– Eu vou com Murmúrio – obriguei-me a dizer, e reparei no olhar de reconhecimento de Tali, na cumplicidade que viajava de uma guerreira para a outra: Estamos juntas nisto. – E fá-lo-emos da forma que ele sugeriu. A nossa primeira missão é encontrar a Dama Branca. Até ser concretizada, não vale muito a pena preo-cuparmo-nos com o Senhor das Sombras. Além disso, quando nos cruzámos, no passado, eu não o tinha procurado. Foi ele que veio ao meu encontro.

– Pois sim – comentou Dente-de-Leão, numa voz severa. – Assim nos contastes. E se isso não levantou as vossas suspeitas, talvez nada as levante. – Ao fim de algum tempo, acrescentou: – Mas desejo-vos boa sorte, pequena. Que os ventos vos levem, justa e verdadeira, a percorrer o vosso caminho.

a voz***_CS6.indd 36 02/06/14 17:36