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Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 9 | n. 18| Jul./Dez. 2007 69 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NOS EUA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NOS EUA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NOS EUA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NOS EUA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NOS EUA Gassen Zaki Gebara 1 Resumo: A partir de 1945 o sistema constitucional experimentou rupturas significativas em toda Europa, seja pela promulgação de novas constituições, seja especialmente no tocante ao local que a Constituição passou a ocupar no ordenamento jurídico: agora em seu núcleo, com necessária ingerência em todos os ramos do direito. Nessa quadra, foi fecunda a contribuição da jurisdição constitucional dos Estados Unidos, especialmente por acolher como sua essência a supremacia da Constituição. Por tais razões é que se propõe um exame, sem pretensão de esgotamento do tema, desse modelo norte- americano, arena inaugural do constitucionalismo escrito e do controle de constitucionalidade. A Constituição dos EUA ostentou desde seus primeiros passos, o caráter de documento jurídico, passível de aplicação direta e imediata pelo Judiciário. Nesse ponto, ver-se-á o papel da judicial review no sistema constitucional daquele país; o ponto de partida para a investigação será o célebre caso Marbury v. Madison. Em seguida, percorrer-se-á outros períodos destacados da jurisdição constitucional norte- americana, seja em face de grande ativismo judicial, seja em razão de uma nítida retração, até se chegar ao Tribunal Warren, talvez o de maior relevo de sua história constitucional. Palavras-chave: jurisdição constitucional – judicial review. CONSTITUTIONAL JURISDICTION OF THE UNITED STATES OF AMERICA Abstract: From 1945 the constitutional system tried significant ruptures in all Europe, either for the promulgation of new constitutions, either especially in regards to the place that the Constitution started to occupy in the legal system: now in its nucleus, with necessary mediation in all the branches of the right. In this it squares, was fruitful the contribution of the constitutional jurisdiction of the United States, especially for receiving as its essence the supremacy of the Constitution. For such reasons it is that an examination is considered, without pretension of exhaustion of the subject, of this North American model, inaugural enclosure for bullfighting of the written constitutionalism and the control of constitutionality. The Constitution of U.S.A. exhibited since its first steps, the legal, document character of direct and immediate application for the Judiciary one. In this point, the paper will be seen of judicial review in the constitutional system of that country; the starting point for the inquiry will be 1 Mestre em Direito Constitucional pela UnB/Unigran. Professor de Direito Constitucional nos Cursos de Direito da Unigran e da UFGD. E-mail: [email protected]

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NOS EUAJURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NOS EUAJURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NOS EUAJURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NOS EUAJURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NOS EUA

Gassen Zaki Gebara1

Resumo: A partir de 1945 o sistema constitucional experimentou rupturas significativas

em toda Europa, seja pela promulgação de novas constituições, seja especialmente no

tocante ao local que a Constituição passou a ocupar no ordenamento jurídico: agora em

seu núcleo, com necessária ingerência em todos os ramos do direito. Nessa quadra, foi

fecunda a contribuição da jurisdição constitucional dos Estados Unidos, especialmente

por acolher como sua essência a supremacia da Constituição. Por tais razões é que se

propõe um exame, sem pretensão de esgotamento do tema, desse modelo norte-

americano, arena inaugural do constitucionalismo escrito e do controle de

constitucionalidade. A Constituição dos EUA ostentou desde seus primeiros passos, o

caráter de documento jurídico, passível de aplicação direta e imediata pelo Judiciário.

Nesse ponto, ver-se-á o papel da judicial review no sistema constitucional daquele país; o

ponto de partida para a investigação será o célebre caso Marbury v. Madison. Em

seguida, percorrer-se-á outros períodos destacados da jurisdição constitucional norte-

americana, seja em face de grande ativismo judicial, seja em razão de uma nítida

retração, até se chegar ao Tribunal Warren, talvez o de maior relevo de sua história

constitucional.

Palavras-chave: jurisdição constitucional – judicial review.

CONSTITUTIONAL JURISDICTION OF THE UNITEDSTATES OF AMERICA

Abstract: From 1945 the constitutional system tried significant ruptures in all Europe,

either for the promulgation of new constitutions, either especially in regards to the

place that the Constitution started to occupy in the legal system: now in its nucleus,

with necessary mediation in all the branches of the right. In this it squares, was fruitful

the contribution of the constitutional jurisdiction of the United States, especially for

receiving as its essence the supremacy of the Constitution. For such reasons it is that

an examination is considered, without pretension of exhaustion of the subject, of this

North American model, inaugural enclosure for bullfighting of the written

constitutionalism and the control of constitutionality. The Constitution of U.S.A.

exhibited since its first steps, the legal, document character of direct and immediate

application for the Judiciary one. In this point, the paper will be seen of judicial review

in the constitutional system of that country; the starting point for the inquiry will be

1 Mestre em Direito Constitucional pela UnB/Unigran. Professor de Direito Constitucional nos Cursos de Direito daUnigran e da UFGD. E-mail: [email protected]

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celebrates it case Marbury v. Madison. After that, one will cover other periods detached

of the North American constitutional jurisdiction, either in face of great judicial

review either in reason of a clear retraction, until if arriving at the Court Warren,

perhaps of bigger relief of its constitutional history.

Keywords: Constitutional jurisdiction – judicial review.

1. IntroduçãoA expansão do judicial review é sintoma fundamental em qualquer sociedade

democrática. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o êxito do controle judicialnos Estados Unidos da América reveste-se de algumas peculiaridades exponenciais.Exatamente para esse horizonte é que se enceta a investigação: para dissipar, oquanto possível, a nebulosidade que ainda paira sobre a jurisdição constitucionalnorte-americana mediante exame de casos concretos.

De toda maneira, para se visualizar adequadamente a Jurisdição Constitucionalé importante não se perder de vista a pré-compreensão de que a sua estruturaçãotem como elemento final a construção de uma instância de controle, uma espéciede interdição fundamental ou de regulação, cujo objetivo final há de ser a fixaçãode um verdadeiro sentido de constituição. Tal elemento será essencial para legitimara atuação da Jurisdição Constitucional

Tem-se ainda que considerar que nos EUA a separação entre os podereshiperatrofiou-se em razão da posição que passou a ostentar o Presidente daRepública com a prerrogativa do veto absoluto. Não obstante, mesmo com apresença constitucional do veto absoluto é possível afirmar que o instituto nãofoi suficiente à estruturação de uma ordem política estável. Nesse sentido, o PoderJudiciário se impôs, independentemente do art. 3º, seção 2.1, da Constituição de1787, como instrumento para instituir o que veio a ser chamado de bloco dalegalidade2.

Superada essa etapa histórica inicial no contexto norte-americano, definida maisnitidamente com o caso Marbury vs. Madison, merece ser observado que taldiscussão não se encerrou, haja vista que o século XIX foi marcado por umaintensa disputa política quanto à supremacia da Suprema Corte sobre os demaispoderes instituídos. Definido esse quadro mais geral a respeito da trajetória histórica

2"A competência do Poder Judiciário se estenderá a todos os casos de aplicação da Lei e da Eqüidade ocorridos sob apresente Constituição, as leis dos Estados Unidos, e os tratados concluídos ou que se concluírem sob sua autoridade; atodos os casos que afetem os embaixadores, outros ministros e cônsules; a todas as questões do almirantado e de jurisdiçãomarítima; às controvérsias em que os Estados Unidos sejam parte; as controvérsias entre dois ou mais Estados, entre umEstado e cidadãos de outro Estado, entre cidadãos de diferentes Estados, entre cidadãos do mesmo Estado reivindicandoterras em virtude de concessões feitas por outros Estados, enfim, entre um Estado, ou os seus cidadãos, e potências, cidadãos,ou súditos estrangeiros”. Possível notar que esse artigo não outorga à Suprema Corte a prerrogativa de ser a guardiãda Constituição ou de controlar a constitucionalidade das leis.

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naquele país, cabe detalhar agora essa complexa dinâmica.Na realidade, a teoria política, no tocante ao Estado, desde o Renascimento

até o opúsculo do absolutismo na França, era inconcebível a limitação ao legislador.Não se podia pensar que o suserano autorizasse o exame, menos ainda a anulação,pelos juízes de suas leis. Esse reconhecimento soberano-legislador, bem como ainexistente análise do fenômeno da representação política impossibilitavamqualquer diagnóstico definindo uma hierarquia de leis que desse lugar a uma,suprema, fruto direta do soberano e, ainda, a exigência de garantir sua tutela eprimazia diante das leis aprovadas por seus representantes.

Por tais razões, diante da omissão do texto magno estabelecendo hierarquianormativa entre Constituição e leis ordinárias, plenamente compreensível o fatode a Constituição não ter sido precedida de uma doutrina que enaltecesse suasuperioridade. Em verdade, foi o desenvolvimento histórico da Corte Judicialnorte-americana que inspirou a construção de uma teoria sobre a posição centralda Constituição, garantida pelo fecundo instrumento da revisão judicial, quecolocou todas demais normas sob a sua égide.

Outro aspecto histórico que não pode deixar de ser considerado é que nascolônias inglesas não havia unanimidade quanto à aceitação do seu direitoconsuetudinário. É que os puritanos ingleses, temerosos de perseguições, buscaramabrigo nessas colônias com a assunção ao trono da Inglaterra de Carlos II, apósa morte de Oliver Cromwell, com o restabelecimento da monarquia. Esse temorjustificava-se plenamente pois participaram da Guerra Civil inglesa ocorrida naprimeira metade do século XVII e que vitimou Carlos I, em 1649, executado pordecisão do Parlamento. Esses grupos inegavelmente influenciaram politicamentea sociedade americana da época, pois trouxeram na bagagem a experiência darepública instalada por Cromwell em 1653, pelo Instrument of Government, quepropiciará a inauguração de um novo modelo político estruturado em umateocracia cristã3. É correto afirmar, nesse cenário, que as posições radicais dospuritanos ingleses foram determinantes para que houvesse uma substancialresistência ao common law, mesmo antes de 1776, quando declarada a Independênciapelo célebre documento lavrado por Thomas Jefferson4.

Para melhor compreensão desses aspectos, de se enfatizar o papel de EdwardCoke na primeira metade do século XVII, em relação ao common law. Sua atuaçãofoi no sentido de fortalecer a autoridade do juiz como árbitro entre o Rei e oParlamento. O Monarca via-se como autoridade dotada dos predicados necessários

3 Os precursores do Direito nos EUA, puritanos, encontravam nas Escrituras Sagradas e do direito comum a fonte dodireito. Essa opção afastava as regras de interpretação do common law, que só serviam para impor o pensamento dosjuízes.4 Filadélfia, 04 de julho de 1776.

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para o exercício da judicatura, com aptidão de substituir o judiciário e o próprioParlamento. Justamente para mitigar essa concentração de poder é que Cokedefendia a supremacia da common law sobre a autoridade do monarca, sob oargumento de que quem deveria controlar a supremacia da common law contra osarbítrios do Soberano e do Parlamento eram os juízes. Tal doutrina predominouna Inglaterra até a Revolução Gloriosa de 1688, quando deu lugar à corrente dasupremacia do Parlamento5.

A superação da supremacia das leis pela da Constituição, bem como oreconhecimento do novo papel dos juízes encarregados da defesa de sua formaimperativa permearam a reviravolta jurídica representada tão significativamentepelo Direito Constitucional norte-americano. Ao passo que a Constituição Políticatem como paradigma as Declarações de três das treze Colônias: a do Bom Povode Virgínia a de Nova York e a da Pensilvânia, que consubstanciaram uma espéciede Constituição com força normativa, com imperatividade e que exige a criaçãode um órgão para garantir essa posição hierárquica: a superioridade dessa leifundamental sobre as leis elaboradas pelo Congresso.6

A concepção e o desenvolvimento de um processo de revisão judicial nãoestão vinculados a uma expressa e inequívoca previsão no texto constitucionalprimitivo, eis que fruto de uma substancial evolução social e política. A Constituiçãoescrita garantiu, logo em seu pórtico, exclusivamente a criação de uma CorteSuprema de Justiça, com hegemonia da União sobre a legislação e jurisprudênciados Estados-membros, mas não um sistema de jurisdição constitucional amplo,ou seja, um Tribunal Supremo com poder para anular leis do Congresso.

Esse poder consolidou-se como obra fecunda de sua experiência histórica enão de sua simples aparição formal na Constituição Federal de 1787. Nesse exatosentido a ênfase de Alexander Hamilton, ao justificar a primazia da Constituição,sintetizada em seu artigo VI, combinado com os III e IV, que se harmonizoucomo a mais emblemática decisão da Suprema Corte durante a presidência deJohn Marshall, em 1803.

Não obstante, ao revés do que se sustenta de modo corrente, nem a doutrinade Hamilton, tampouco a sufragada pelo Chief Justice John Marshall, afastaram-sedo empirismo da common law. Em relação ao primeiro, está manifesto no Federalista,precisamente em seu artigo 75, que buscou mais observar a lógica ao textoconstitucional. O segundo reforça o papel que é dado aos juízes para revisar asleis, e tal ocorre não necessariamente com arrimo nos artigos III e VI, mas comoalgo proveniência do common law.

5 Apud Mauro Capelletti, in O Controle Judicial de Constitucionalidade das leis no Direito Comparado. Trad. de AroldoPlínio Gonçalves. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1984, p. 59.6 Os constituintes de Filadélfia, contudo, não se deixaram influenciar por essa experiência, eis que não sufragaram o

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A reconhecida evolução experimentada a partir da Décima-Quarta Emenda,promulgada em 1868, e de sua interpretação, é uma demonstração da atuação daSuprema Corte no curso do século XIX, sempre influenciada por fatos eacontecimentos históricos. É nesse cenário que se desenvolve o direitoconstitucional nos Estados Unidos, mudando de curso apenas no início do séculopassado, quando passou a ser notória a existência de um processo de interpretaçãoque cada vez mais promovia a recriação de seu objeto e o afastamento daliteralidade formalística do texto do referido amandment7.

Outro aspecto que merece ser debatido no que se refere às influências nodireito constitucional norte-americano, baliza-se no pensamento dos originalistas,que ostentavam que o exercício do judicial review é legítimo exclusivamente quandoa interpretação da Constituição emanar do pensamento ou da compreensão originaldos pais constituintes. Os originalistas consideram antidemocrático que juízes,que não detém qualquer legitimação representativa pois não eleitos, digam aosrepresentantes da maioria, esses sim legitimados pelo voto, e os símbolosrepublicanos do passado, o que eles podem ou não fazer. Essa corrente surgecomo uma reação à atuação judicial muito ostensiva nos períodos dos TribunaisWarren e Burger.

A posição que sustentam está ligada a posições políticas e morais consideradasconservadoras, características do partido republicano, e tem como mais destacadosnomes Robert Bork8, Raoul Berger e, mais recentemente, Willian Renhquist eAntonin Scalia, reconhecidamente um dos mais combativos juízes integrantesdessa ala da Suprema Corte.

Robert Bork não só assumiu como buscou atualizar a doutrina dos chamadosprincípios neutros, inspirada em posição proposta por Herbert Wechsler, nosentido de que o juiz deve manter-se vinculado não só ao texto mas especialmenteà história da Constituição, sem legitimação para erigir direitos novos, nãoautorizados nos mandamentos constitucionais9.

Sustenta que, se os constituintes de Filadélfia realmente quisessem delegar aosjuízes essa função criativa, tal como na prática efetivamente se fez pelo trabalhoda Suprema Corte, na trilha de John Marshall, teriam conferido à Nona Emendaredação autorizativa, que expressasse que a Suprema Corte poderá acrescentardireitos ao texto constitucional, considerando a filosofia, a ética e a moral ou,ainda, as idéias dominantes do governo republicano10. Como isso não foi feito,

judicial review no texto da Constituição.7 TRIBE, Laurence H.; DORF, Michael C. On reading the constitution. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2004.8 Foi indicado pelo Presidente Ronald para a Suprema Corte, mas não passou pela sabatina dos senadores.9 BORK, Robert H. Neutral principles and some first amendment problems (Princípios neutros e alguns problemas daprimeira emenda). Indiana Law Journal, v. 47, n. 1, 1971, p. 8.10 Op. Cit., p. 697.

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nos casos em que a intenção original da Constituição não contém uma eleiçãomoral ou ética, o juiz não pode utilizar seus próprios princípios ideológicos pararechaçar a decisão da coletividade expressa na lei.

O judicial review não pode alicerçar-se sobre esses fundamentos. Os tribunaisdevem aceitar qualquer escolha de valores do legislador, a não ser que ela sejainequivocamente contrária à escolha feita quando da redação da Constituição11.No limite, se tal concepção originalista não se revelar adequada, a única soluçãolegítima que remanescerá é abandonar o judicial review e deixar que as maioriasdemocráticas governem livremente, pois não existe qualquer direito superior aoseu.

Levando ao extremo o uso político da sua formulação teórica, ecompreensivelmente incisivo contra aqueles que militaram na exitosa campanhacontra a sua indicação para integrar a Suprema Corte, Bork justifica alegando quea ortodoxia dos originalistas e a neutralidade política que a jurisdição impõeconfiguram uma manifesta execração à cultura liberal que, por mais de meioséculo, obteve uma sucessão de vitórias políticas nos tribunais e que almejou poroutras tantas em um futuro próximo12.

A ortodoxia americana seria objeto de aversão dos representantes da culturaliberal em razão de que eles têm uma agenda moral e política própria que nãopode ser apoiada na Constituição nem por qualquer legislatura cujos membrosdesejem ser reeleitos. Por isso que esses doutrinadores almejam juízes queconquistarão as suas vitórias deformando a Constituição13.

A metamorfose judicial do Direito Constitucional dos EUA cristalizou a partirda segunda metade do século XX, uma crescente substituição de sua base formalpor outra, jurisprudencial, material e aberta. A transformação em cotejo podeser vista como um processo de perecimento da Constituição e como a gestaçãode um Direito Constitucional sem Constituição14. A Europa continental tambémexperimentou uma significativa transformação em seu Direito Constitucional,produzida pelas novas complexidades da sociedade.

Todo esse processo admitida a seguinte síntese: a existência da Constituiçãocomo lei suprema implica em sua transformação eis que a jurisdição, invocada adefendê-la, necessariamente a transmuda. Nesse sentido, o Direito Constitucionalprovindo da Suprema Corte apresenta-se como uma transformação jurídica detranscendência semelhante à que teve, outrora, o surgimento do direito escrito,

11 Op. Cit., pp. 10-11.12 Op. Cit p. 7.13 Idem, p. 9.14 GRAGLIA, Lino. A Country I Do Not Recognize: The Legal Assault on American Values (Um país que não reconheço:O assalto legal em valores americanos). Robert Bork, editor, publicado pela Instituição Hoover.

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formal, positivo e do próprio direito constitucional.Em um cenário mais amplo, pode-se dizer que a resposta para as novas

demandas, sejam metodológicas, sejam teóricas, será sempre a mesma, porquantoresultante da exigência permanente do Direito Constitucional e daconstitucionalização do Direito, para cuja satisfação das jurisdições supranacionaisprojetam-se e conectam-se com as jurisdições constitucionais nacionais em planosde complementaridade. Convertidos os direitos fundamentais, reconhecidamentepor conta conscientização dos horrores causados à humanidade pela SegundaGuerra Mundial, quando pulsante o Estado de Direito e o Direito Constitucional,eles justificam o processo de crescente primazia, da jurisdição constitucional dosdireitos, ou núcleo de sua função garantista e o cada vez maior caráter instrumentalde suas funções de controle de constitucionalidade.

Após uma árdua evolução sobre a nova posição da Constituição, esse fenômenoinfluenciou sobremaneira os Estados constitucionais contemporâneos, em que odebate em torno da jurisdição constitucional, difusa ou concentrada, passou aocupar um lugar central. Nos EUA, a discussão sobre a revisão judicial realizou-se a partir de dois pontos de vista distintos, o do interpretativismo e o do não-interpretativismo. O primeiro traz um enfoque técnico-jurídico que se ocupa dosmétodos da interpretação da Constituição; o outro erige-se em torno deabordagem ideológica-política à função judicial, que estabelece uma disputa entreos partidos do ativismo judicial e os da auto-restrição. Em outros termos, enquantoque para os interpretativistas a Constituição e os direitos fundamentais ostentariamum conteúdo unívoco que os juízes poderiam obter sem recorrer a fontesextranormativas, para os não-interpretativistas, junto a determinados preceitosconstitucionais precisos ou claros, existem outros – que compreendem os direitosfundamentais – perante os quais os juízes têm mais de uma possibilidade deinterpretação.

Uma abordagem inicial permite encontrar críticas ao ativismo judicial tanto nolado dos interpretativistas como no dos não-interpretativistas15: os interpretativistasestritos ou originalistas, em termos gerais, sustentam que a Constituição teria umsentido unívoco, coincidente com a vontade dos pais fundadores. Emconseqüência, ali onde aquela intenção original dos constituintes não oferecesseuma resposta clara, o juiz deveria conter-se e deixar que essa questão fossedeliberada democraticamente, pela vontade da maioria parlamentar: é dizer, se ooriginalismo não é adequado, a solução resta é repudiar a revisão judicial e deixar

15 O debate após o caso Roe vs. Wade, que traçou as balizas jurídico-constitucionais para a prática do aborto nos EUA,envolveu de modo amplo o embate constitucional em duas vertentes, de um lado os interpretativistas, que defendiam apreservação da idéia original do texto constitucional e, de outro, e os não-interpretativistas, que se posicionamento emprol de um exame mais compatível com a realidade histórica de então.

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que governem as maiorias democráticas, pois não há um direito superior ao seu.Um recorrente ponto de partida no debate norte-americano acerca da

legitimidade da revisão judicial foi alvo de um estudo sistemático feito porAlexander Bickel, que buscou conciliar as duas posições acima, esforçando-separa ao mesmo tempo justificar e limitar o judicial review16. Partindo de umaformulação que se tornaria um lema, Bickel considera que o problema central dojudicial review é que ele se conforma como uma força contramajoritária no sistemaconstitucional norte-americano:

Quando a Suprema Corte declara inconstitucional um ato legislativo,

(...) ela frustra a vontade dos representantes do povo real (...); ela exerce

controle não em nome da maioria prevalecente mas contra essa

maioria”. Portanto, mesmo assumindo que o processo político de

representação é freqüentemente imperfeito e que os juízes não são,

como tradicionalmente se alega, politicamente insensíveis, nada “pode

alterar a realidade essencial de que o judicial review é uma instituição

anômala na democracia americana.17

Bickel admite serem incompatíveis as correntes mencionadas, o que admitiauma terceira corrente, capaz de promove uma acomodação razoável entre ambas,notadamente n abrandamento do pensamento de que a revisão judicial traduziauma práxis antidemocrática. Essa acomodação somente seria possível se oprocesso de interpretação e aplicação de normas constitucionais recepcionasse avontade popular real, no sentido de que uma sociedade justa não ambicionaráapenas atender as necessidades da maioria como também atuará para a manutençãodos valores gerais duradouros.18

Exatamente nesse ponto incide a argumentação de Bickel para justificar a revisãojudicial sem prejuízo das exigências de uma democracia representativa:comparados aos legisladores e agentes executivos, as cortes judiciais, notadamentea Suprema, têm mais plena aptidão para tratar com esses valores duradouros,com as questões de princípios. Os agentes políticos, aqueles responsáveis peranteo eleitorado, não raras vezes proferem decisões que mesmo involuntariamenteatingem os valores que se sustenta ser de interesse mais amplo e duradouro.Nesses casos, quando a pressão por resultados imediatos é aguda e de alto teoremocional, esses agentes normalmente optaram por atuar de acordo com osseus próprios interesses e não em harmonia com um espectro mais amplo eabrangente. Exatamente por essas razões é que os legisladores são evidentementedespreparados para assumir os encargos que os representados deles esperam:

16 BICKEL, Alexander M. The least dangerous branch (A via menos perigosa). New Haven: Yale University, 1986.17 BICKEL, cit. pp. 17/19.18 Op. cit, p. 25.

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em não apenas respeitar a prevalência de princípios já estabelecidos como tambémem atingir o estabelecimento e a renovação criativa de um conjunto coerente deregras orientadas por princípios.

Bickel sustenta que, ao contrário dos legisladores, os juízes ostentam umacapacidade capital para reconhecer esses valores duradouros da sociedade, poisnutridos por um treinamento e um distanciamento que os capacitam a persecuçãodos fins públicos, pelo que eles podem apelar ao melhor da natureza dos homens,às suas aspirações que podem ter sido esquecidas nestes momentos mais difíceis.19

Apesar de sua aparência democrática, essa posição corresponde a um anti-ativismo conservador e se remonta à crítica do ativismo progressista dodenominado Tribunal Warren, mais adiante estudado, a exemplo da Corte Burger.Seus defensores constituem o que Bernard Schwartz denomina nova direitaconstitucional e formam parte de uma corrente que ganhou força com a nomeação,durante o governo de Ronald Reagan, de 368 juízes – mais da metade dos queintegram a justiça federal – extraídos das fileiras do conservador partidorepublicano20.

Seus expoentes, em geral, acreditam que a Constituição não teria um sentidoúnico, apenas que comportaria uma combinação de normas claras e normasabertas. Diante dessas últimas, os juízes deveriam deixar a resposta final aolegislador. Essa corrente constitui a base de uma objeção contramajoritária aosjuízes constitucionais, segundo a qual estes carecem de legitimidade para dar aúltima palavra em matérias relevantes de política constitucional, já que não sãoeleitos pelo povo nem têm responsabilidade diante do eleitorado.

Do ponto de vista histórico-político, estar-se-ía diante de um progressivismoanti-ativista. Não obstante, essa situação admite alguns desdobramentos, citam-se sucintamente os mais interessantes ao presente: o primeiro pela corrente não-interpretativista, que reage contra o chamado tribunal do laissez-faire e que se estendedesde o início do controle judicial de constitucionalidade, de 1803 a 1937.

Essa etapa foi conhecida também como Era ou Tribunal Lochner em que aSuprema Corte valeu-se da cláusula do devido processo legal das Emendas V eXIV para proteger a propriedade privada e impedir qualquer tipo de legislaçãode índole social que pretendesse modificar o sistema do livre mercado. Pode-sedizer que houve nesse período um ativismo judicial às avessas, pois ao contráriode fortalecer os direitos constitucionais, deu primazia ao liberalismo capitalista.Sobre essa política da Suprema Corte alguns casos concretos serão citados maisadiante.

19 BICKEL, 1986, pp. 25/26).20 SCHWARTZ, Bernard. O Federalismo Norte-americano Atual. Tradução por Elcio Cerqueira. Rio de Janeiro:Forense,1984.

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Uma outra corrente vem a resgatar o não-interpretativismo moderado. Seuprincipal defensor é John Hart Ely. Em nome, mais uma vez, da objeçãocontramajoritária, Ely dirige suas críticas ao ativismo e à utilização, pelos juízesconstitucionais, de suas pessoais ideologias e valores no momento de decidir ocaso concreto. Em termos gerais, Ely intenta oferecer uma versão restrita docontrole judicial, que repila os excessos de ativismo, sem ameaçar critériosprogressistas em matéria de interpretação.

Como contraponto aos hermeneutas, Ely propugna uma teoria de índoleprocessual, em que o Juiz apresenta-se como um árbitro designado para fiscalizarpermanentemente a abertura de mecanismos procedimentais democráticos aptosa blindar as minorias. Nesse modelo, os juízes não teriam por função manifestarem-se sobre o conteúdo que as políticas constitucionais fundamentais deveriam ter,senão garantir a maximização de mecanismos democráticos que permitam aparticipação de todos na sua definição. Desse modo, o não-interpretativismomoderado mostra-se como uma postura progressista partidária da auto-contenção.

2. O ativismo judicial do T2. O ativismo judicial do T2. O ativismo judicial do T2. O ativismo judicial do T2. O ativismo judicial do Tribunal Marshallribunal Marshallribunal Marshallribunal Marshallribunal Marshall

Como antes averbado, em 1803, a Suprema Corte norte-americana, presididapelo Chief Justice John Marshall, decidiu o célebre caso Marbury vs. Madison, emque foi declarada inconstitucional uma lei que outorgava competência àquela Cortepara julgar atos do Secretário de Estado. A notoriedade desse caso concretojustifica-se por vários fatores.

O primeiro foi ter provocado uma nítida e inédita intervenção do Judiciárioem assuntos que seria de competência exclusiva do Legislativo e do Executivo.Essa intervenção consubstanciou-se no fato de a Suprema Corte ter declaradoinconstitucional uma lei federal por contrariar a Constituição Federal, fato nuncaantes experimentado ou ousado no constitucionalismo moderno.

Esse caso célebre deu início ao modelo de controle de constitucionalidadeconsubstancializado em uma percepção que nos dá conta de que são nulas as leisque afrontam os textos constitucionais, isto é “a lei que contrasta com a Constituição é

nula”, nos dizeres de Marshall. A decisão proferida nesse caso foi, seguramente, amaior contribuição norte-americana ao Direito Constitucional. Revelou o papelmais sublime do Poder Judiciário que é o de garantir a supremacia da constituiçãosobre todas as demais normas. Indicou o judicial review ou controle pelo judiciárioda constitucionalidade das leis.

A decisão foi política. Marshall contornou confronto direto com o entãoPresidente norte-americano, Thomas Jefferson, um dos pais fundadores dos

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Estados Unidos da América. Não deixou, porém, de criticá-lo, mascarando recuoinevitável, como ato de afirmação contra o partido no poder. A história jurídicatradicional apega-se nesta última concepção, esquecendo-se daquela primeira, realistae pragmática. Em 1801, no final do mandato de John Adams, William Marburyfoi por ele legalmente nomeado para ocupar o cargo vitalício de Juiz de Paz noDistrito de Columbia, assim como nomeados foram vários outros partidáriosdo Presidente ainda em exercício. Todos foram devidamente empossados duranteo mandato de Adams, com exceção a Marbury. Thomas Jefferson toma possebuscou garantir acesso a cargos públicos de maior relevo político para pessoasde sua confiança, apropriando-se dos melhores e mais importantes postos.Ordena que James Madison, seu Secretário de Governo, não empossasseMarbury21.

Lesado em seu direito à posse eis que a nomeação fora legítima, Marburyingressa com um writ22, diretamente na Suprema Corte. O impetrado não sedefendeu, e nem mesmo respondeu à ordem judicial para se manifestar. Jeffersoninsinuou ameaça à Corte com impeachment, caso o pedido de Marbury fossedeferido, o que geraria um grave distúrbio institucional cujos efeitos poderiamser desastrosos para o próprio regime democrático americano.

Marshall sopesou o caso por uma vertente sem precedente e fez questão deestabelecer dois raciocínios jurídicos vigorosos e coerentes: o primeiro, em que aCorte reconhece que o impetrado atuou ilegalmente ao não dar posse a Marbury,cuja nomeação é irreparável no aspecto jurídico, num claro indicativo de que seposicionava em favor do grupo político de John Adams. Até aqui a decisão seria,no aspecto jurídico, perfeita para os padrões da época. Ocorre que essacongruência jurídica ao mesmo tempo de resolver a demanda judicial traria umaconseqüência política ameaçadora à harmonia entre os poderes orgânicos,ameaçando a legitimidade do Poder Judiciário, porquanto o writ não seriacumprido. Daí a imperiosidade em Marshall erigir um segundo raciocínio, voltadogarantia a harmonia ameaçada sem destoar de comandos normativos. Marshallcumpre esse mister de modo magistral e inovador: pela primeira vez comparauma lei com a constituição e ao notar contrariedade entre ambas afirma: ou valea lei ou vale a Constituição.

Nessa segunda fase da decisão, pois, Marshall demonstra que a Suprema Corteestava de mãos atadas, pois não tinha competência para conduzir o Marbury aocargo porque a impetração foi dirigida diretamente à Suprema Corte, com

21 HARTMAN, Gary R. et al. Landmark Supreme Court Cases: The Most Influential Decisions of the Supreme Court of theUnited States (Tradução livre do título: Casos Marcantes da Suprema Corte: As Decisões mais Relevantes da Suprema Cortedos Estados Unidos). Nova York: Facts on File, 2004.22 Espécie de mandado de segurança, garantia constitucional exclusiva no direito brasileiro.

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permissivo no artigo 3º de uma lei judiciária de 1769. Essa competência,argumentou Marshall, por ser matéria referente às competências da SupremaCorte, deveria ser prevista exclusivamente na Constituição, de sorte que ascompetências do Tribunal que não estão inscritos na Carta não existemjuridicamente e não podem ser manejadas23.

Apenas para ilustrar, a argumentação de Marshall tem uma coerência irrefutávelsem deixar de ser simples, pois a Constituição americana, confessadamente rígida,estabelece em seu artigo V os requisitos, formais e temporais, para ser emendada:

Sempre que dois terços dos membros de ambas as Câmaras julgarem

necessário, o Congresso proporá emendar a esta Constituição, ou, se

as legislaturas de dois terços dos Estados o pedirem, convocará uma

convenção para propor emendas, que, em um e outro caso, serão

válidas para todos os efeitos como parte desta Constituição, se forem

ratificadas pelas legislaturas de três quartos dos Estados ou por

convenções reunidas para este fim em três quartos deles, propondo

uma ou outra dessas maneiras de ratificação. Nenhuma emenda poderá,

antes do ano 1808, afetar de qualquer forma as cláusulas primeira e

quarta da Seção 9, do Artigo I, e nenhum Estado poderá ser privado,

sem seu consentimento, de sua igualdade de sufrágio no Senado.

Com esse raciocínio, alternativa outra não lhe restava senão declarar comoinconstitucional e nulo o art. 13 dessa norma, que atribuía à Corte Supremacompetência originária para expedir writ nos termos deduzidos por WilliamMarbury. De toda sorte, o que realça é que Marshall repreendeu Thomas Jefferson,censurou Madison, e reconheceu o direito a Marbury, porém teve que reconhecera impossibilidade na concessão da ordem para a sua posse com base em uma leiinconstitucional. Tornou-se, assim, pioneiro no controle de constitucionalidadede leis por parte do poder judiciário, passou à história como criador de talmecanismo e manteve-se a frente da Suprema Corte, contornando as ameaçasdo poder executivo.

Em outro recurso que chegou à Suprema Corte e decidido em 1819 -McCulloch vs. Maryland, 17 US 31624 - Marshall reconheceu, com duras críticasdos Estados federados, que a Constituição assegurada ao Governo Central a

23 Para compreendermos melhor, seria o mesmo que uma lei ordinária acrescentasse uma nova atribuição ao nosso STF,alterando o que dispõe o art. 102. Vale ressalta, ainda, que a Constituição americana é rígida, podendo ser alteradapelo quorum qualificado de 2/3 (mais rigoroso que nosso modelo).24Apenas para ilustração, nesse processo, cujo recuso chegou à Suprema Corte, o Estado de Maryland tributou em US$15.000 os Bancos que funcionavam no Estado sem o respectivo alvará de funcionamento, a ser expedido pelo próprioEstado. Era o caso do Banco dos Estados Unidos que, sem o recolhimento de tais valores, funcionava naquele Estado.James McCulloch, como gerente da agência de Baltimore, recusou-se a pagar o tributo. Como a Suprema Corte deMaryland confirmou a decisão de primeiro grau, McCulloch resolveu apelar para a Suprema Corte. Esse e outros casosconcretos citados no curso do artigo são pesquisados no sítio Http://laws.findlaw.com/us/, com tradução livre de seuconteúdo.

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prerrogativa não só para criar Banco Nacional com também implantar filiais nasunidades federativas. Nessa decisão, daí as censuras dos Estados, afirmou que osentes federados não têm qualquer poder, seja pela tributação ou por qualqueroutro modo, para retardar, impedir, ameaçar ou controlar de qualquer modo aexecução de leis conformes à Constituição aprovadas pelo Congresso.

As razões de Marshall têm sustentação em alguns fatores constituições que atéentão não eram admitidos. É que em sua primeira versão, de 1787, a Constituiçãoamericana não definia qual a competência legislativa dos Estados-membros. Poroutro lado, essa omissão obedecia a uma lógica já formulada por James Madisonno Capítulo XLV de O Federalista, no sentido de que “Os poderes atribuídos aogoverno federal pela Constituição proposta são poucos e expressos. Aqueles quedeverão remanescer com os Estados-membros são numerosos e indefinidos”25.Logo, todas as competências legislativas ou administrativas não arroladasexpressamente (de modo positivo ou negativo) na Constituição como decompetência da União Federal estariam implícita ou residualmente atribuídas aosEstados-membros26. Essa a teoria dos poderes implícitos.

Essa teoria, como se nota, é criação da Suprema Corte e que permite entãoreconhecer como de competência da União matérias que originariamente nãoforam a ela atribuídas de modo expresso pelo Constituinte, mas que, em vista daevolução histórica, estariam “razoavelmente sugeridas pela Constituição” em favorda União, desde que “necessárias e apropriadas” para a consecução dascompetências federais27.

Nessa sentença é possível notar que a base argumentativa de John Marshallconflita com a de que se valeu em Marbury vs. Madison, no sentido de que eraa Constituição que estava sendo interpretada, o que exigia do juiz consideração aessa sua natureza excepcional. No voto que proferiu, merece destaque o fato deter reconhecido que uma Constituição, se apresentasse em detalhes todas asimplicações dos grandes poderes que ela admite, e de todos os meios pelos quaiseles poderiam ser postos em execução, se afeiçoaria a prolixidade de um códigojurídico e dificilmente poderia ser apreendida pela mente humana.

Dessa conclusão é possível notar que Marshall admitiu que a própria naturezada Constituição reclamaria que apenas os seus grandes contornos sejam marcados,

25 MADISON, James, Hamilton, Alexander, Jay, John. O Federalista, traduzido por Ricardo Rodrigues Gama, Ed.Russel, Campinas : São Paulo, 2005, p. 101 e seguintes.26 Somente a partir de 1791, com a Emenda Constitucional nº 10 esse princípio da competência residual dos Estados-membros passou a ser previsto de modo expresso: “Os poderes não delegados aos Estados Unidos pela Constituição, nempor ela negados aos Estados-membros, são reservados aos Estados-membros ou ao povo”.27 Essa teoria deriva, notoriamente, da interpretação do item 18 da Seção 8 do Artigo 1° da Constituição, que diz: “Seráda competência do Congresso Federal: (...) elaborar todas as leis necessárias e apropriadas ao exercício dos poderesacima especificados e dos demais que a presente Constituição confere ao Governo dos Estados Unidos, ou aos seusDepartamentos e funcionários”.

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apenas os seus importantes objetivos descritos, e os elementos menores quecompõem esses objetivos devem ser deduzidos da natureza dos próprios objetivos.Que essa concepção foi recepcionada pelos redatores da Constituição americananão é inferido apenas da natureza do instrumento mas também da sua linguagem.

Com base nessa linha de pensamento, Marshall conduz concretamente a algumasconclusões, a começar pelo reconhecimento, averbado em seu voto, da doutrinados poderes implícitos:

[...] pode-se com razão sustentar que um governo, ao qual se cometeram

tão amplos poderes, para cuja execução a felicidade e a prosperidade

da nação dependem de modo tão vital, deve dispor de largos meios

para sua execução. Jamais poderá ser de seu interesse, nem tampouco

se presume haja sido sua intenção, paralisar e dificultar-lhe a execução,

negando para tanto os mais adequados meios.

Outra conclusão que o voto de Marshall autoriza é a de que ao recusar atributação instituída pelo Congresso, a Suprema Corte admitia que o Legislativoestadual vulnerava pessoas que não eram nele representadas, o que transgredia apressuposição constitucional de que o direito do povo em eleger os seusrepresentantes é uma salvaguarda contra o abuso do poder por parte dos agentespúblicos eleitos.

Essa nova posição sufragada por Marshall, como aconteceu com as implicaçõesdela promanadas, resultou não só na (re)afirmação do pensamento fundamentalnos sentido de que, considerando que os instrumentos jurídico-políticos daConstituição são vocacionados a viger no tempo, elas hão de ser interpretadasem harmonia com as construções erigidas historicamente, sempre com osimperativos dos novos e imprevisíveis problemas que surgem. Também, naantecipação de uma questão que tem figurado no núcleo do debate constitucionalnorte-americano, nascida com a doutrina exposta por John Hart Ely28. Essa posiçãode Marshall dará ensejo à idéia de uma nova concepção segundo a qual a funçãoprincipal do revisão judicial é a de suprimir as imperfeições no funcionamento deum governo representativo.

Será a partir desse raciocínio que a Suprema Corte admitirá comoinconstitucional Lei do Estado de Maryland que taxava um Banco Federal, o quesagrou a doutrina dos poderes implícitos ou dos poderes resultantes já mencionada.Garantiram-se ao Congresso, sem exceções, os poderes imprescindíveis para acondução dos negócios governamentais. É com inspiração nessa decisão quesurgiu a tese, lembrada em várias decisões de nosso Supremo Tribunal Federal,

28 ELY, John Hart. Democracy and distrust – A theory of judicial review (Tradução livre o titulo: Democracia e desconfiança:uma teoria da revisão judicial), Cambrige:Harvard University Press, 1995.

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no sentido de que o poder de tributar implica no poder de destruir29. O caso concretoMcCulloch vs. Maryland definiu a limitação implícita na autoridade estadual, éque esses entes não têm competência para taxar bancos federais.

Merece, ainda, menção outro caso notório decidido pela Suprema Corte aindasob a regência de Marshall - Gibbons vs. Ogden, 22 U.S., julgado em 182430-cuja decisão consolidou o conceito norte-americano indicativo de supremacia delei federal. A sentença reconheceu a supremacia de lei federal em face de leiestadual, garantindo a Gibbons o direito de operar com seus barcos, na linhaNova Iorque/Elisabethtown. Na ótica de Marshall, estava nítido no textoconstitucional que o Congresso tem poderes tão somente para regular o comérciocom nações estrangeiras, entre os Estados e com as tribos indígenas31. Aos Estadoseram reservados poderes para legislar em tema de comércio interno. Com oitinerário de navegação não estava adstrito a apenas um Estado, a competênciana espécie era de norma federal. É o que passou a ser reconhecido como cláusulade comércio, decorrente de atribuição do Congresso norte-americano e que tevegrande repercussão no direito constitucional naquele país, pois precedenteconstantemente invocado perante a Corte Suprema.

3. Tribunal Taney e a Quinta Emenda

Roger Taney presidiu a Suprema Corte no século XIX, em um período emque era ainda muito crítica a questão racional no país, mesmo porque ainda nãohavia ocorrido a abolição. O caso concreto que revela com precisão o cenário deentão pode ser retratado em Dred Scott vs. Sandford, 60 U.S. (10 How.) 393,julgado em 1857.

Trata-se certamente de um dos mais odiosos julgamentos do direitoconstitucional norte-americano. Por sua importância, necessário que se tenha umavisão mais elucidativa dos fatos que ocorreram. Dred Scott era escravo de JohnEmerson, médico do exército e morou por um tempo no Estado de Illinois, quenão aceitava a escravidão, nos termos do compromisso do Missouri, acordoentre os Estados que limitava as áreas nas quais a escravidão seria permitida. Poressa razão, Scott considerou-se livre, sob a premissa de que uma vez livre, livre

29 PETIÇÃO N. 3.433-3, RELATOR: MIN. GILMAR MENDES, Julgamento 29/06/2005, Publicação DJ 01/08/2005 PP-00125; Pet 2780/ES, Relator Min. GILMAR MENDES, Julgamento 31/08/2004, Publicação DJ 20/09/2004 P – 00017.30 A contenda judicial colocava em choque uma lei estadual, que concedia exclusividade em direito de navegação, e leifederal que não a admitia. Com na lei do Estado de Nova York, Ogden tentou impedir seu ex-sócio Thomas Gibbons emexplorar uma outra linha com o mesmo itinerário, com arrimo em lei Federal o que lhe violaria de exploração comercial,conforme assegurado em leis do Estado de Nova Iorque.31 Textual: artigo 1º, Seção 8, 1. Será da competência do Congresso: Lançar e arrecadar taxas, direitos, impostos etributos, pagar dívidas e prover a defesa comum e o bem-estar geral dos Estados Unidos; mas todos os direitos,impostos e tributos serão uniformes em todos os Estados Unidos; 2. Levantar empréstimos sobre o crédito dos EstadosUnidos; 3. Regular o comércio com as nações estrangeiras, entre os diversos estados, e com as tribos indígenas.

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para sempre. John Emerson, proprietário de Scott, faleceu em 1850 o que levou-o a promover uma ação objetivando o reconhecimento judicial de suaemancipação32. Em primeiro grau, o juiz Robert Wells enfatizou que Dred Scottsó poderia figurar como parte em um processo judicial se fosse livre, caso contrário,seu direito seria discutível. No mérito, acompanhou a decisão do Tribunal deMissouri, decretando que Dred Scott era escravo. Dred Scott apelou para aSuprema Corte.

A Suprema Corte concluiu que qualquer lei, federal ou estadual, que pretendesseconferir cidadania aos negros, contrastava com o direito de propriedadeassegurado pela Constituição. Em sua fundamentação, o Chief Justice Taney nãoenvidou esforços para defender a escravidão e o devido processo legal, entãoconsubstanciado na Quinta Emenda, no sentido de que “...ninguém será privadode seus BENS (o negro era “propriedade”) sem processo legal...nem apropriedade privada poderá ser expropriada para uso público sem justaindenização”.

Nesse posicionamento não há como não deixar de reconhecer fortes traçosde intolerância racista, marca da atuação da Corte norte-americana, notadamentepelo fato de enjeitar a condição dos negros como sujeitos de direitos. Essaconstatação é possível da leitura do voto proferido por Taney, em que, semqualquer constrangimento, afirma solenemente que os negros eram coisas, objetosde propriedade, comprados e vendidos, antes e depois da independência, antes edepois da constituição.

Como já alinhado, não cessa aí a agressão, eis que a Corte põe em relevo quenão poderia desprezar o direito de propriedade de escravos, que estaria garantidopelo texto constitucional. Esse direito, de acordo com a sentença de Taney, sóseria legitimamente suprimido mediante a garantia do due process of law. Concluiu,outrossim, que o Parlamento não tem competência constitucional pararegulamentar a escravidão nos Estados, porque o direito à propriedade erairrestrito. Com base nesse fundamento constitucional, Scott viu ser recurso serimprovido. A decisão transcendeu a esfera desse caso concreto pois, afinal dissipoutodas as controvérsias sobre escravidão nos Estados, status de negros, a par deenfrentar o partido republicano. Mais, exasperar o ódio, a discriminação e, porisso mesmo, foi determinante para a eclosão da segunda guerra civil dos EUA,com início em 186033.

32 A viúva de Emerson, que recebeu Dred Scott como herança casou-se com o cunhado, John Sandford, que figurou nopólo passivo da referida ação, ajuizada em Nova Iorque, Estado no qual residia seu novo proprietário. Em sua defesa,Sandford sustentou que, pelo fato de ser negro, Dred Scott não era cidadão, não era titular de qualquer direito. Mais,por não ser cidadão não tem legitimidade para buscar a tutela jurisdicional do Estado.33 Após o fim da Guerra Civil, duas emendas foram introduzidas à Constituição Americana; a XIII, ratificada em 06 dedezembro de 1865, aboliu definitivamente a escravidão. Um dos mais importantes documentos desta época foi o Civil

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Em 1896, a Suprema Corte americana decidiu no caso Plessy vs. Fergunson,163 US 537, que a segregação racial em escolas e transportes públicos não erainconstitucional, pois estes serviços, ainda que prestados separadamente, não eramdesigualmente oferecidos, advindo, daí a expressão “separados, mas iguais”34.

O caso erigiu-se em torno de Homer Plessy, negro, que foi preso e processadoporque se sentou no setor reservado aos brancos, em um trem no Estado daLouisiana. Inconformado com a decisão das Cortes ordinárias, impetrou umwrit perante a Suprema Corte, em face do Juiz Ferguson, que determinou oarquivo da ação em sede ordinária. A Suprema Corte avaliou a constitucionalidadede uma lei da Louisiana, de 1890, que dividia os espaços dos trens entre raças,que não poderiam se misturar, implementando a então dominante doutrina doequal but separate. Entendia-se que era obrigação do Estado providenciar vagõespara brancos e negros35.

A Suprema Corte reconheceu que a doutrina do equal but separate não violava aConstituição desde que brancos e negros tivessem o mesmo tratamento e asmesmas instalações, que poderiam ser utilizadas separadamente. Interessante porem realce o voto divergente, da lavra do Juiz John Marshall Harlan, ao anotar quea constituição era cega para questões de cor, desconhecendo e não tolerandoclasses distintas entre seus cidadãos. A questão permanecerá em debate até adécada de 1960, quando os direitos civis tiveram mais ampla aplicação e discussãonos EUA.

4. O New Deal e o moderado ativismo da SupremaCorteFranklin Delano Roosevelt, eleito em 1932, encontra o país refém de uma

crise sem precedentes, cujo ápice ocorreu em 1929 com a quebra da bolsa devalores de Nova York. Com a promessa de reconduzir a nação à normalidade

Rights Act de 1866, que declarava que todas as pessoas dentro da jurisdição dos Estados Unidos tinham os mesmosdireitos, para contratar, expressar suas contrariedades, ir a eventos sociais, estar em evidência e usufruir plena eigualmente de todas as leis e procedimentos de segurança de pessoas e propriedade, direitos estes que os cidadãosbrancos desfrutavam. Mais tarde, com o advento da XIV Emenda à Constituição, por influência do Civil Rights Act,aplicou-se a “Declaração de Direitos” às ações de Estado e governo local, conferindo a todas as pessoas nascidas nosEstados Unidos igual proteção legal e garantindo-lhes o devido processo legal, antes que lhes fossem retiradas a vida,a liberdade, ou propriedade. A XV Emenda garantiu a todos os cidadãos, inclusive os outrora escravos, o direito aovoto. Essa Emenda foi ratificada em 1870.34 Importante registrar que após a Guerra Civil e das emendas mencionadas, as relações raciais nos EUA, persistiammuito tensas. A segregação dos negros foi oficializada pela legislação Jim Crow, cujo escopo era o de vedar ou restringira freqüência ou acesso de negros a locais públicos, como escolas, transportes urbanos, restaurantes, clubes, hotéis,cinema e teatros. Essa política levou vários Estados a editar leis proibindo, dentre outras coisas, o casamento entrepessoas de raças distintas. Formatou-se com esses artefatos odiosos, a doutrina do equal but separate (separados masiguais), que legitimou a segregação, sempre com o pretexto de que se houvesse o fornecimento de serviços, acomodaçõese condições iguais, para brancos e segregados não haveria violação à Constituição.35 Um precedente de 1849 (Roberts vs. Boston City), garantiu o funcionamento de escolas separadas, admitindo asegregação.

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econômica, deflagrou o New Deal, programa caracterizado por um forteintervencionismo do Estado no domínio econômico e pela edição de vigorosalegislação social. Com base na doutrina desenvolvida na era Lochner, a SupremaCorte passou a declarar inconstitucionais tais leis, gerando um confronto com oExecutivo. Roosevelt chegou a enviar um projeto de lei ao Congresso, ampliandoa composição da Corte – Courtpacking plan –, que não foi aprovado.

Imprescindível que se comente que apesar de a Constituição norte-americanadispor, em sua seção VIII, que compete ao Congresso regulamentar o comérciocom as nações estrangeiras, os vários estados e as tribos indígenas, não se verificouverdadeiramente, no período, um poder de interferência estatal sobre o domínioeconômico, mas tão-só norma a delimitar a competência legislativa da União. Opoder-dever de regulação da economia fora admitido através da invocação dodevido processo legal, prevista nas Emendas V e XIV. A chancela da possibilidadeda intervenção legislativa sobre a economia se deu com o julgado Nebbia vs.

New York, 291 U.S. 502, decidido em 1934, no qual se debateu a legitimidadeem uma Lei Estadual que tabelava os preços do leite, em que a Corte Supremaadmitiu o controle de preços pelo Estado, acentuando que, quando entrem emchoque direitos públicos e privados, estes devem ceder perante aqueles.

Consistiu na argüição de constitucionalidade de uma lei do Estado de NewYork que criava a Milk Control Board, órgão com competência para fixar ospreços, máximo e mínimo, do leite e seus derivados. Esse órgão, que exercia umaatividade regulatória do setor lácteo, fixou o preço do quarto de leite em 9 (nove)centavos de dólar. Nebbia, proprietário de uma mercearia, vendia o leite por umpreço bem inferior ao estipulado, o que denotou em violação da norma jurídicaestabelecida pelo órgão estatal. Resolveu promover uma ação em que contestoua constitucionalidade do tabelamento de preços pelo Poder Público, por ofensaà cláusula do due process of law e da igualdade.

A Suprema Corte avaliando a questão por seus variados contornos, desde asubstancial redução do preço dos laticínios em 1931/32, passando pela posiçãode inferioridade dos produtores frente os grandes empresas distribuidoras, até aimportância do leite como fonte alimentar, por ser produto perecível, o que nãoadmitia a manutenção de estoque regulador, concluiu que havia a necessidade deequacionar a oferta e a demanda ao longo do ano, cuja atribuição era do PoderPúblico, dadas suas peculiaridades e imperfeições, com o objetivo de atingir obem da coletividade. Nesse cenário complexo, em que cada detalhe foicuidadosamente analisado, decidiu a Corte que não houve na hipótese do recursoofensa à liberdade de empresa pelo não cumprimento do devido processo legalsubstantivo36.

36 A posição adotada pela Suprema Corte foi significativa pois a Constituição daquele país não consagra em seu textoos princípios régios da ordem econômica. Vale, por ilustração, dizer que aquela decisão, certa maneira, está balizadaem nossa Constituição, tanto no artigo 170, ao acentuar que “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho

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Esse precedente estabeleceu a normalidade da intensa regulação do mercadoleiteiro, uma vez que esta objetivava o interesse público e era coerente, mesmoque aplicando, aparentemente, uma regra irracional como o controle de preçosem uma economia regida pela livre iniciativa. Nesse sentido, a Suprema Corteconsiderou constitucional a lei estadual que instituía o órgão regulador do mercadoleiteiro local e o controle de preços por ele estabelecido, estando o Estado livrepara fazer uso das prerrogativas, através do Poder Legislativo no caso em análise,trazidas por seu poder de polícia em relação às matérias econômicas, desde quede maneira razoável, não discriminatória e não arbitrária.

O posicionamento da Suprema Corte no período permite que se afirme quemesmo no que se refere ao requisito do devido processo, e à falta de outrarestrição constitucional, um Estado é livre de adotar a política econômica queconsidere razoável em favor do bem-estar público, e de fazer cumprir esta políticapela legislação adaptada a esta finalidade. O controle de preços, como qualqueroutra forma de legislação, é inconstitucional somente se é arbitrário, discriminatório,ou demonstravelmente irrelevante quanto à política que a legislatura pode adotarlivremente.

Essa doutrina cedeu espaço em raras decisões da Suprema Corte, merecendorealce a de 1936, proferida no caso Morehead vs. New York, 298 U.S. 587, emque declarou nula lei do Estado de Nova York, que fixava salário mínimo para astrabalhadoras, até então rigorosamente discriminadas. No entanto, a partir doprocesso West Coast Hotel vs. Parrish, 300 U. S. 397, concluído em 1937, aSuprema Corte passou a repelir a tese do devido processo econômico,confirmando a possibilidade de o Estado intrometer-se na liberdade de contratardesde que resguardado o bem-estar público.

5. O Devido Processo Legal Substantivo no TribunalWarren e BurgerEarl Warren presidiu a Suprema Corte entre 1953 e 1969, período caracterizado

por grande ativismo na defesa dos direitos civis e das minorias37. Sua posturacausou surpresa, pois antes de ser nomeado para a Suprema Corte, Warren foigovernador da Califórnia, eleito pelo Partido Republicano. A decepção do

humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” como,de modo ainda mais explícito, no artigo 174: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estadoexercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor públicoe indicativo para o setor privado”.37 Acrescente-se que o Tribunal Warren é hoje reconhecido como exemplo de grandeza não por pautar sua ação aosvalores substantivos, mas por prestigiar dois temas: o zelo em não excluir da apreciação judicial qualquer ponto devisto que tenha sido levado em consideração no processo de elaboração das leis e, mais especialmente, em que o direitodas minorias sofresse uma análise estrita do porquê estava sendo cerceado. Reforça a importância de uma atuação

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presidente Eisenhower, do Partido Republicano, que o nomeara para o cargo,foi tamanha que ele chegou a afirmar que a escolha de Warren para Chief Justice

fora o maior equívoco de toda a sua carreira política38.Durante seu mandato, fortaleceu-se a proteção às liberdades fundamentais no

direito norte-americano. Nesse sentido, de importância ímpar foi oreconhecimento da existência de um direito à privacidade, que embora não estivesseexpresso no texto constitucional americano, podia ser inferido por meio de umainterpretação sistemática das liberdades constitucionais. Esse direito protegeriadecisões individuais sobre questões como uso de anticoncepcionais, vida familiar,realização de aborto, escolha de escola para os filhos, entre outras.

Embora a questão concernente à existência de um direito à privacidade jáviesse sendo discutida em sede doutrinária desde 1890, quando foi publicado umcélebre artigo dos então advogados Samuel Warren e Louis Brandeis, intituladoThe Right of Privacy, esse direito só foi judicialmente reconhecido pela SupremaCorte no julgamento do caso comentado nesse trabalho Griswold vs. Connecticut,

no ano de 1965, no qual se afirmou a inconstitucionalidade de lei estadual quecriminalizava o uso de métodos anticoncepcionais artificiais mesmo entre casaiscasados39. Já em Boddie vs. Connecticut, 401. U.S. 317, julgado em 1971, aSuprema Corte reconheceu o caráter fundamental do direito ao divórcio,afirmando que as restrições diretas ou indiretas a ele deveriam ser submetidas aocontrole judicial sob o rígido regime do escrutíneo rigoroso.

Discutia-se, aí, a constitucionalidade de norma que condicionava o ingresso deação de divórcio ao pagamento de custas judiciais, mesmo para pessoas pobres.Para a Suprema Corte, em questões que não envolvam direitos fundamentais,não existe o direito à isenção de custas judiciais para pessoas carentes. Ela sóderrubou a lei, no caso, diante da sua conclusão de que o direito ao divórcioconstitui uma liberdade fundamental, protegida sob o abrigo do direito àprivacidade ou da autonomia da vontade.

Combatendo a segregação racial, em Brown vs. Board of Education, 347US 483, de 1954, em que foi reputada inconstitucional a segregação racialpredominante nas escolas públicas no Sul dos Estados Unidos, talvez seja a maisimportante decisão da Corte de Warren. Ilustra ainda o papel essencial da liderança

mais que privilegie o processo e que afaste qualquer concepção paternalista na atuação do juiz constitucional. Dáênfase àquilo que o Habermas acentua em sua doutrina: “se o parlamento não é suficientemente democrático, então o quedevemos fazer é reforçar a democracia do Parlamento e não colocar os juízes acima deles por considerá-los mais capazes deinterpretar o sentimento popular”. Daí ser sua teoria ser adjetivada de democracia reforçada. A leitura que faz do textoconstitucional americano reconhece-a como dotada, em seu aspecto essencial, de uma série de mecanismos que autorizama participação igualitária de todos os interessados na tomada de decisões que lhes afetem.38 ENTERRÍA, Eduardo Garcia de. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid: Editorial Civitas,1985, p. 185).39 A decisão referia-se apenas à restrição no uso de anticoncepcionais para casais casados. Em Eisenstadt vs. Baird,julgado sete anos depois, a Suprema Corte estendeu o reconhecimento do direito para qualquer casal, casado ou não.

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de Warren. O caso foi teve início na Suprema Corte sob a liderança do Chief

Justice Fred Vinson que defendia a manutenção do regime segregado. Segundomemorando confidencial do Juiz William Douglas, a Corte, por cinco votosfavoráveis e quatro contrários, pendeu em prol da segregação. A decisão foi,entretanto, adiada para o ano seguinte.

Nesse intervalo, o Juiz Vinson faleceu, sendo substituído por Warren, que logrouobter a unanimidade entre os juízes para a condenação da segregação, reputando-a incompatível com o princípio da igualdade. Saliente-se que o princípio daigualdade, equal protection of the law, havia sido inserido na Constituição norte-americana pela Décima Quarta Emenda, de 1868, e que os componentes doCongresso de então, que também editava leis para o Distrito de Columbia, noqual ficava a sede do Governo Federal, havia, na mesma legislatura, adotadoregime de escolas segregadas no referido distrito. Portanto, a segregação não erainconstitucional de acordo com a concepção dos autores da emenda.

A Corte ainda teve que enfrentar o precedente Plessy vs. Ferguson, de 1896,na qual reputou compatível com o princípio da igualdade a segregação nostransportes ferroviários, fazendo-o nos seguintes termos do voto de Warren:

Na abordagem deste problema, nós não podemos voltar nossos relógios

para 1868 quando a Emenda foi adotada, ou, ainda, para 1896 quando

Plessy foi decidido. Nós devemos considerar a educação pública à luz

de seu completo desenvolvimento e seu lugar presente no modo de

vida americano por toda a Nação. Só por este caminho pode ser

determinado se a segregação nas escolas públicas priva os reclamantes

da igual proteção da lei.

Warren, servindo-se de estudos psicológicos modernos, todos citados na notade nº 11 do julgado, defendeu que a doutrina “separados, mas iguais” estabelecidaem Plessy não tinha lugar em matéria educacional, pois a simples segregaçãocomprometia o desenvolvimento educacional do grupo segregado:

Separá-las (as crianças negras) de outras de idade e qualificações similares

só em virtude da raça negra gera um sentimento de inferioridade de

seu status na comunidade que deve afetar seus corações e mentes de

um modo que provavelmente não possa ser desfeito. (...) Qualquer

que fosse a extensão dos conhecimentos psicológicos na época de

Plessy, essa observação é amplamente amparada pelas autoridades

modernas.

Concluiu então que a segregação na educação era nitidamente desigual. Ointeressante é que a Suprema Corte não só reconheceu expressamente o direitoconstitucional dos recorrentes a ingressarem em escolas antes reservadas a brancos,

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como também o direito a serem matriculados em escolas em regimes integrados,o que se traduziu em uma amplo política que rechaçou a segregação. Adessegregação, segundo a Corte, deveria ser implementada com toda celeridade.Tão interessante quanto Brown foi a implementação do resultado do julgado, oque provocou inúmeras controvérsias e intervenções nos distritos escolares pelasinstâncias inferiores e pela própria. A partir de Brown, a segregação racial existenteem boa parte dos Estados Unidos perdeu espaço, contribuindo para o movimentodos direitos civis norte-americano. Aliás, decisões da própria Corte culminarampor concluir pela inconstitucionalidade da segregação em estabelecimentos públicosou abertos ao público e de leis estaduais racistas como a que proibia o casamentointerracial.

A política de desmonte da segregação racial nas escolas norte-americanas foium dos maiores desafios que o direito daquele país viveu na década de 1950.Ressurge contemporaneamente informando políticas de ações afirmativas, queobjetivam correções de injustiças historicamente realizadas. A despeito dosimbolismo que esse provesse representa no ativismo judicial provido pela CorteWarren, não se pode deixar de dizer que a postura então adotada foi tímida. Éque em razão da gravidade social da decisão, somente após um ano, ou seja, em31-5-1955, a Corte determinou às autoridades escolares que concretizassem, comtoda deliberada pressa, o fim da discriminação racial nas escolas, delegando aosjuízes federais a fiscalização e efetividade de sua decisão.

Note-se que a concretização de alteração social tão profunda, na prática,mostrou-se de dificuldade ímpar. Somente dez anos depois a Corte Suprema,ainda sob o comando de Warren, determinou o fim do prazo para que asautoridades educacionais agissem com toda deliberada pressa e declarouinconstitucional a transformação de escolas públicas em privadas, com a únicafinalidade de mantença da segregação racial. Essa decisão foi proferida em Griffin

vs. County Board of Price Edwars County, 377 U.S. 218, em 1964. Em 1969,a Suprema Corte ordenou que os distritos escolares, finalmente encerrassemimediatamente o sistema de discriminação racial em todas as escolas públicas,decretando o início do sistema educacional unitário, agora no processo Alexander

vs. Holmes County Board of Education, 396 U.S. 19.No caso Trop vs. Dulles, 356 U.S. 86, decidido em 1958, Warren entendeu

que a idéia fundamental da Oitava Emenda é a preservação da dignidade humana.Em Mapp vs. Ohio, 367 U.S. 643, de 1961, considerou-se ilegítima a busca eapreensão feita sem mandado, como exigido pela Quarta Emenda40; já em

40 Outras decisões da Suprema Corte anularam sentenças baseadas em provas ilícitas ou contra a ilegítima produçãoou a ilegal colheita de prova incriminadora: em Garrity vs. New Jersey, 385 U.S. 493, 1967 e em Wong Sun vs. UnitedStates, 371 U.S. 471, 1962.

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Griswold vs. Connecticut, 381 U. S. 479, concluída em 1965, foi invalidada leiestadual que incriminava o uso de pílula anticoncepcional, reconhecendo um direitoimplícito à privacidade; e Roe vs. Wade, 410 U.S. 113, de 1973, que considerouinconstitucional lei estadual que criminalizava o aborto, mesmo que antes do terceiromês de gestação.

Comentando sobre a Quarta Emenda, Corwin advertiu que refletia acondenação da época contra os mandados gerais, que desde os colonos haviammais ou menos sofrido. Sua principal importância deriva da primeira doutrinaadotada pela Suprema Corte em 1886, no caso Boyd vs. US, 116 U.S. 616, nosentido de que essa emenda deve ser aplicada conjugadamente com a cláusula deauto-incriminação, contida na Quinta Emenda, de modo que quando qualquerapreensão de papéis ou coisas for desarrazoada, esses papéis ou objetos nãopoderão ser aceitos como prova por qualquer tribunal federal contra a pessoa dequem foram apreendidos41.

Interessante anotar que a jurisprudência da Corte Suprema sobre a Quarta eQuinta emendas, ganhou muita evidência à época da “Lei Seca” nos EUA,notadamente pelo fato de ter oferecido obstáculo aos esforços das autoridadespoliciais e judiciárias para atuarem sem mandado, o que era considerado comoviolação constitucional, notadamente quanto às diligências para apreensão decorrespondência no domicílio de suspeito, durante sua ausência42; a remoção debebidas alcoólicas em circunstâncias semelhantes de ambiente ou local semelhantea uma loja comercial43; a apreensão de narcóticos em domicílio de diversoscúmplices, seguindo-se a prisão dos mesmos em local diverso44.

Na visão da Suprema Corte, nesse ambiente da primeira década do séculoXX, era admissível ao agente público realizar a busca sem mandado em umveículo em que havia causa provável de nele estarem escondidas coisas ilegais45;não se compreendo como domicílio, ao campo aberto46. Não havia violação àQuarta Emenda, em igual sentido, a escuta telefônica feita por agentes federais depessoas suspeitas de crime ou usarem aparelho para gravar conversa entre supostoscriminosos, visto de conversas não eram consideradas posses ou coisas47.

Importante observar que nem todas as prisões ou apreensões necessitavam demandado para serem legitimamente cumpridos, eis que qualquer pessoa poderia

41 Outras decisões da Suprema Corte anularam sentenças baseadas em provas ilícitas ou contra a ilegítima produçãoou a ilegal colheita de prova incriminadora: em Garrity vs. New Jersey, 385 U.S. 493, 1967 e em Wong Sun vs. UnitedStates, 371 U.S. 471, 1962.41 CORWIN, Adward S. – A Constituição Norte-Americana e seu significado atual, Jorge Zahar Editora:RJ, 1978, p. 250.43 Weeks vs US, 383, de 1914.44 Amos vs US, 255, U.S. 313, de 1921 e Taylor vs US, 286, U.S., de 1932.45 Agnello vs US, 267, 20, de 1925.46 Carroll vs US, 267, 132, de 1925; US vs Di Re, 332, 581, de 1948; e, ainda, Brinagar vs US, 338, 160, de 1949.47 Hester vs US, 265, 57, de 1924.

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prender outra em flagrante ou perturbando a ordem pública com meios violentos.

De igual, um agente policial poderia prender alguém se tiver motivos razoáveis

para suspeitar que a mesma cometeu um crime48. De acordo com a posição

daquele período da Suprema Corte, até mesmo um domicílio podia ser invadido

mediante suspeita de que ali se encontrava pessoa suspeita de traição, crime grave,

perturbação da ordem ou contrabando49. Ilustre-se que a nossa Constituição

vigente admite a violação do domicílio, sem ordem judicial, apenas em caso de

flagrante delito, desastre, ou para prestar socorro, como se infere da dicção do

art. 5º, XI.

Em Griswold vs. Connecticut, a Suprema Corte invalidou lei estadual que

proibia a comercialização ou utilização de anticoncepcionais, reconhecendo a

existência de um direito de privacidade não previsto expressamente da Carta de

Direitos. O Juiz William Douglas argumentou que várias normas constitucionais,

como, por exemplo, a que proíbe invasão de domicílio sem ordem judicial ou a

que garante o direito a não auto-incriminação, criariam “zonas de privacidade”

imunes às intervenções do poder público, que deveriam ser estendidas para

proteger as decisões tomadas no seio da relação matrimonial, inclusive as relativas

à utilização ou não de métodos anticoncepcionais.

A Corte foi severamente criticada por esta decisão. Mesmo o liberal Hugo

Black dela dissentiu, unindo-se ainda ao voto dissidente do Juiz Stewart que

expressamente declarou que não podia “encontrar nenhum direito geral à

privacidade na Carta de Direitos, em qualquer outra parte da Constituição ou em

qualquer caso anteriormente decidido pela Corte”.

Hugo Black foi um dos mais árduos defensores de interpretação gramatical,

do exacerbado apego à literalidade do texto constitucional. Esse radicalismo

conferiu-lhe a posição de principal patrono da liberdade de expressão, em vista

dos termos empregados pela Primeira Emenda da Constituição norte-americana.

Defendia uma rigorosa interpretação desse dispositivo, argumentando que a

liberdade não poderia sofrer qualquer espécie de restrição, mesmo frente a outras

normas constitucionais ou princípios, como o da razoabilidade. O constituinte,

segundo Black, já teria realizado toda a ponderação entre os interesses em jogo.

A interpretação desse Juiz a respeito da Primeira Emenda, a despeito de não ter

sido recepcionada em sua íntegra pela Suprema Corte, foi um dos fatores que

colaborou para que a liberdade de expressão fosse guindada a uma posição

privilegiada. Esse posicionamento, contudo, era obstáculo para se unir à Corte

no reconhecimento de direitos não enumerados. Interessante notar que o método

de interpretação defendido por Black e que lhe servia em suas posições

48Bad Elk vs US, 117, 529, de 1900.

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majoritariamente liberais é atualmente defendido pelas correntes conservadoras

da Suprema Corte que defendem um apego estrito ao texto constitucional.

O fato é que não é viável a interpretação da Constituição sem o recurso a

elementos fora do texto, o que autoriza atividade mais criativa por parte do juiz

constitucional. Com efeito, normas de elevada abstração, como a que garante a

liberdade de expressão ou o princípio da igualdade, presentes tanto na

Constituição norte-americana como na brasileira, não podem ser interpretadas

sem o recurso à doutrina política subjacente ao texto constitucional. Para atribuição

de sentido determinado a esses dispositivos é inevitável o recurso a alguma espécie

de argumentação moral, como é reconhecido por boa parte da doutrina e

jurisprudência norte-americana. Dworkin, entre outros, defende a leitura moral

de tais dispositivos50.

Obviamente, tal entendimento tem implicações sérias no que se refere ao

postulado positivista de separação estrita entre moral e direito. Oferece, também,

questionamentos à legitimidade da atividade judicial que, pretensamente, deve ser

neutra em relação a valores. Tais questões intrincadas que tocam fundo a teoria

do Direito e da natureza da atividade judicial não podem ser aqui tratadas,

merecendo reflexões à parte.

Importante lembrar que no caso Loving vs. Virginia51, 388 U.S. 1, de 1967,

a Corte reputou ilegítimos os fins pretendidos pelo estado da Virgínia, dizendo

que estava fora de qualquer propósito concebível para um estado promover a

integridade racial, a pureza do sangue e a manutenção do orgulho racial, e, em

função disso, declarou inconstitucional a lei deste estado que vedava casamentos

interraciais52.

Considerações Finais

Do presente estudo alguns pontos merecem ser destacados, principalmente o

de que no sistema norte-americano de controle de constitucionalidade, a jurisdição

constitucional é confiada ao conjunto do aparelho jurisdicional e não se distingue

da justiça ordinária, na medida em que os litígios, de qualquer natureza, são julgados

pelos mesmos tribunais e nas mesmas condições. Em termos mais exatos, está

ao dispor de qualquer indivíduo que se sinta lesado em face de lei que contraste

com a constituição: é o chamado controle difuso ou subjetivo, o único exercido

49 COOLEY, Thomas M. Princípios Gerais de Direito Constitucional nos Estados Unidos da América. Tradução e anotações

Ricardo Rodrigues Gama. Ed. Russell, Campinas, 2002, pp. 230/231.50 DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985; e em Freedom’s Law: the

moral reading of the american Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1996.51 Comentários sobre o caso mais adiante.

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naquele país e que foi por nós recepcionado desde a primeira constituição

republicana de 1891.

Foi exatamente esse aspecto que motivou o trabalho com esse tema que, além

de introduzir no direito constitucional o controle das leis e dos atos normativos,

sempre com parâmetro na Constituição, permite que um dos poderes orgânicos,

o judiciário, exerça sobre os demais, legislativo e executivo, a fiscalização sobre a

atuação de ambos e o faz com um único propósito: o de garantir a primazia da

Constituição sobre todos os demais atos ordinários.

Viu-se no decorrer dos comentários e dos casos concretos que foram trazidos

a exame, vários que ilustram com precisão o posicionamento histórico da Suprema

Corte estadunidense, que a dimensão constitucional naquele país está presente em

todos os litígios e não necessita de tratamento especial, é dizer: não há propriamente

contencioso constitucional, assim como não existe contencioso administrativo ou

judicial, não há, pois, nenhuma razão para distinguir as questões levadas perante o

mesmo juiz.

Outro ponto nuclear do modelo norte-americano é o exercício da revisão

judicial, sempre em casos reais, em decorrência de relações intersubjetivas, cujo

marco inicial ocorreu no caso Marbury vs. Madison, de 1803, que eternizou a

sentença então proferida pelo Chief Justice John Marshall, notadamente no que diz

respeito à vinculatividade dessas decisões. Nesse país, então, apesar de não haver

controle concentrado, em que a discussão é objetiva e que cuja decisão tem eficácia

erga omnes e vinculante, a decisão do juiz constitucional obriga os demais juízes

pois cria precedentes que integram materialmente o corpo da Constituição.

Exemplo disso é a sentença prolatada em Roe vs. Wade, de 1973, que tratou

do direito à privacidade ou autonomia da vontade privada e que ainda hoje serve

de parâmetro para a elaboração de leis estaduais que versem sobre a matéria,

bem como de baliza para decisões judiciais. Essa estampa da vinculatividade é

mostra do respeito que a sociedade tem nas decisões judiciais, o que conduz a

uma realidade absolutamente distinta da brasileira, em que mesmo uma decisão

proferida em caso concreto, submetida ao plenário do Supremo Tribunal Federal

via recurso extraordinário, que declare inconstitucional uma lei federal por

unanimidade de votos53, não obriga dos demais juízes. Talvez com a experiência

da súmula vinculante, introduzida apenas em 2004 pela Emenda Constitucional

2004 e já regulamentada, esse cenário sofra os avanços e transformações já tardias.

52 Em Loving vs. Virginia, 388. U. S. 1, de 1967, a Corte reputou incompatível com o princípio da igualdade leis dedezesseis estados que proibiam o casamento inter-racial sob o pretexto de preservar a integridade racial de seuscidadãos. Nela, faz-se referência na decisão à doutrina esboçada em Carolene: “...o princípio da igualdade exige queclassificações raciais, especialmente suspeitas em leis criminais, sejam submetidas ao mais rígido escrutínio e, se alguma veztiverem que ser mantidas, deve ser demonstrado que são necessárias para o cumprimento de um objetivo estatal legítimo,independente da discriminação racial que a Décima Quarta Emenda teve por objetivo eliminar”.53 Reserva do plenário, art. 97, CF.

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