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Justiça e [o Paradigma da]

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Justiça e [o Paradigma da] Eficiência: celeridade processual e

efetividade dos direitos

Coleção Justiça, Empresa e Sustentabilidadev. 3

Vladmir OliVeira da SilVeira

OrideS mezzarOba

mônica bOnetti cOutO

Samyra Haydêe del Farra naSpOnili SancHeS

2013 Curitiba

Coordenadores

Justiça e [o Paradigma da] Eficiência: celeridade processual e

efetividade dos direitos

Editora Responsável: Verônica GottgtroyProdução Editorial: Editora ClássicaCapa: Editora Clássica

Equipe Editorial

EDITORA CLÁSSICA

Nossos Contatos São Paulo Rua José Bonifácio, n. 209, cj. 603, Centro, São Paulo – SP CEP: 01.003-001 Acesse: www. editoraclassica.com.brRedes Sociais Facebook: http://www.facebook.com/EditoraClassica Twittter: https://twitter.com/EditoraClassica

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Conselho Editorial

Justiça e [o Paradigma da] Eficiência: celeridade processual e efetividade dos direitos [recurso eletrônico]. Vladmir Oliveira da Silveira, Orides Mezzaroba, Mônica Bonetti Couto Samyra Haydêe Del Farra Nasponili Sanches [coord.] – Curitiba: Clássica, 2013.

Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-99651-59-9

1. Direito Público. 2. Livros Eletrônicos

CDU: 340

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

Apresentação

A presente obra reúne o resultado das discussões do Grupo de Pesquisa/CNPQ Reforma e Inovação do Poder Judiciário, vinculado ao Programa de Mes-trado em Direito da Universidade Nove de Julho - UNINOVE. Reflete, igualmente, os debates dos docentes das disciplinas e dos trabalhos resultantes dessas reflexões, debaixo da Linha de Pesquisa intitulada “Justiça e o Paradigma da Eficiência” do mesmo Programa, além de estudos de docentes e discentes dos programas de pós--graduação de Instituições parceiras (UFES, UNOESC, PUC/Minas, UFMG, UNI-CURITIBA), em torno dessa mesma problemática.

A temática desta coletânea – Justiça e [o Paradigma da] Eficiência: cele-ridade processual e efetividade de direitos – procura enfrentar o problema da ‘inefi-ciência’ da Justiça, comumente apontada como um dos grandes males que, ao menos mais agudamente na última década, acomete a sociedade brasileira. O grande acú-mulo de processos que se arrastam anos a fio e a ausência de recursos infra-estrutu-rais e humanos são algumas das causas indicadas como determinantes para a falência do sistema judicial brasileiro. Causas que, sem solução em prazo razoável, redundam em processos intermináveis geram na sociedade a sensação de ineficiência, impu-nidade, gerando descrédito do Poder Judiciário, comprometendo sensivelmente o regime democrático de direito. Por isso afirma-se que o Poder Judiciário vive uma crise não apenas numérica, mas genuinamente institucional.

Neste ambiente de acentuada crise, Reforma Constitucional do Judiciário, inaugurada pela Emenda Constitucional 45, sem dúvida, teve importante papel. Tal movimento provocou a necessidade de enfrentamento de uma das mais delicadas problemáticas: atender com celeridade à demanda pela realização dos direitos já consagrados e ainda por se consagrar, sem obstar o progresso social, mas de forma sustentável, com vistas ao futuro, e tornar possível a realização efetiva da justiça em um contexto sócio-econômico de grande plasticidade.

Assim, as novidades da EC 45, a Administração da Justiça, as reformas in-fraconstitucionais daí derivadas, a repercussão geral e a súmula vinculante, o projeto do Novo Código de Processo Civil, foram alguns dos temas centrais em torno dos quais o Volume 1 desta Coletânea se debruçou (Volume 1, ano 2011, Editora Revista dos Tribunais).

É chegada a hora de seguir em frente e refletir, neste novo volume da Cole-tânea, sobre as propostas e críticas construídas pelos docentes vinculados ao Grupo de Pesquisa/CNPQ/UNINOVE “Reforma e Inovação do Poder Judiciário”, e de ou-tros docentes de programas de pós-graduação de instituições parceiras, que contribu-íram significativamente para engrandecer o debate de um problema que é universal.

Os textos aqui publicados são fruto de um importante amadurecimen-to e aprofundamento daquilo que, nestes últimos anos, foi publicado sobre este importante debate. Agora, somos levados a questionar se (efetivamente) a Re-forma Constitucional do Judiciário iniciada com a EC 45 e todas alterações le-

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gislativas, já implementadas e as planejadas – notadamente com enfoque em reformas processuais –, serão verdadeiramente suficientes ao combate da crise Justiça.

Portanto, o ponto de partida deste novo volume da Coletânea – e em torno dos quais se reúnem os textos e as reflexões de seus autores - é o de que, ao que tudo indica, uma reforma legislativa tem muito valor, mas é deveras ingênuo imaginar-se ser este o único caminho.

Certos de que o fortalecimento da cidadania depende, em grande me-dida, de uma justiça eficiente, mas que ao mesmo tempo observe as garantias fundamentais dos cidadãos, deve-se apartar, de vez, a confusão recorrentemente feita entre Justiça e Judiciário e, ainda, a ideia sempre presente de resumir o acesso à Justiça ao acesso ao Judiciário. Essa lamentável confusão tem colabo-rado para o fortalecimento da cultura do litígio em nosso país.

A presente Coletânea está dividida em duas seções. Na Seção I, in-titulada “Reforma do Judiciário, celeridade e efetividade: mitos e realidades” estão reunidos os trabalhos em torno da Reforma do Judiciário e dos problemas derivados de dois valores aparentemente antagônicos: o da celeridade e o da se-gurança. Na Seção II, por sua vez, reúnem os trabalhos que propõem reflexões “para além” do (mero) acesso ao Judiciário, com análises e enfoques diferencia-dos e propostas de soluções para um verdadeiro e mais amplo acesso à Justiça.

Assim, a Seção I é inaugurada com trabalho de autoria do professor Bruno Silveira de Oliveira, da UFES, em que examina os contrastes existentes na jurisprudência dos Tribunais de Superposição, demonstrando as dificuldades ainda relevadas pela prática forense quanto à tão falada e preconizada, sobretu-do nos meios acadêmicos, instrumentalidade do processo.

Cláudio Fraga e o professor Eduardo Milléo Baract (UNICURITIBA) analisam em que medida a gravação clandestina de conversa telefônica pode ofender o princípio da intimidade e a sua possível aceitação num processo judi-cial como meio de prova.

A professora Flaviane de Magalhães Barros, da PUC de Minas, de sua parte, contribui significativamente para o debate aqui proposto ao analisar o direito ao processo em tempo devido sob a ótica do modelo constitucional do processo civil.

A organização dos Tribunais, mediante sua gestão e a gestão do tempo na tomada de decisões é objeto de ricas reflexões pelo professor Gláucio Maciel Gonçalves (UFMG), cabendo a Jader Ferreira Guimarães e Vitor Soares Silva-res abordar o problema da iniciativa probatória do juiz à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Dois artigos aqui publicados convergem para uma preocupação, mais recente, em torno das metas para o alcance da eficiência em grau máximo ou, a qualquer preço. Nas palavras de Barbosa Moreira, se a justiça lenta demais não é sinônimo de justiça, disso não se deduz, necessariamente, que a justiça

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muito célere seja necessariamente boa. Neste sentido, são as reflexões das professoras permanentes do Programa de Mestrado da UNINOVE, Mônica Bo-netti Couto e Samantha Ribeiro Meyer-Pflug (também líderes do Grupo de Pes-quisa/CNPQ Reforma e Inovação do Poder Judiciário), em torno da crise do Judiciário e das soluções propostas e empreendidas, para o alcance da almejada do Judiciário. De outro lado, Leonardo Augusto Marinho Marques, da UFMG, tece expõe importantes considerações (e preocupações) em torno da eficiência e da celeridade do processo penal.

O processo eletrônico – havido como importante ferramenta de efeti-vidade do processo – é, em primoroso estudo de Mateus Eduardo Siqueira Nu-nes Bertoncini e Felippe Abu-Jamra Corrêa, da UNICURITIBA, reconhecido, acertadamente, como instrumento de cidadania.

Outros trabalhos, de igual peso, versam temas com implicações dire-tas na efetividade do processo e dos direitos: o professor Vicente de Paula Ma-ciel Jr (UFMG) estudou a possibilidade de aplicação da antecipação de tutela no processo de execução, cabendo a Pedro S. Virgolino e Vitor Soares Silvares, discente e docente da UFES, respectivamente, examinarem o art. 285-A, do CPC (e a efetividade do processo), a partir do procedimentalismo habermasiano e do contraditório participativo.

Na Seção II, reuniram-se os ensaios em torno de questões que pro-põem uma visão para além do acesso ao Judiciário. Assim, nesta empreitada, a professora Adriana Silva Maillart, do Programa de Mestrado da UNINOVE, aborda a Heterocomposição de Litígios pela Arbitragem e seus Ideários de Justi-ça. Integrante do mesmo Programa, o professor Álvaro Gonçalves Antunes An-dreucci escreve rico artigo em que propõe uma leitura da obra de Paul Ricouer (O Justo), para o fim de correlacionar algumas das reflexões ali contidas com a ideia de sustentabilidade, eixo central do Programa de Mestrado em Direito.

Riquíssima contribuição é prestada pela professora Fabiana de Mene-zes Soares, da UFMG, com o seu texto “Acesso ao Direito Vigente: problemas, riscos e propostas para uma elaboração legislativa à luz dos valores republica-nos e da Lei de Acesso à Informação”.

Os professores Francisco Cardoso Oliveira e Viviane Coêlho de Séllos Knoerr, da UNICURITIBA, brindam-nos com o trabalho intitulado “Perspec-tivas de Construção da Cidadania e da Socialidade: um estudo a partir da ética da magistratura”.

Os parâmetros ético-jurídicos das experimentações científicas envol-vendo seres humanos são estudados por Janaína Reckziegel e Matheus Felipe de Castro, professores da UNOESC, e a questão do genoma humano, sob a ótica da necessidade (e importância) de um acordo internacional para compartilhar os benefícios da pesquisa, objeto de reflexões e estudo pelas professoras Maria Cristina Cereser Pezzella e Riva Sobrado de Freitas (UNOESC).

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Os procedimentos extrajudiciais como alternativas viáveis e legítimas de acesso à Justiça – sem necessidade de se adentrar no Poder Judiciário – são estudados por Pasqualino Lamorte e José Edimilson de Souza Lima, discente e docente, respectivamente, da UNICURITIBA.

Por fim, a análise da prevenção do retrocesso do Direito fundamental à Educação é objeto do primoroso trabalho dos professores da UNOESC, Ro-gério Gesta Leal e Daniela Menengoti Ribeiro.

Esperamos com isto contribuir, ainda que minimamente, para o de-bate em torno das causas e possíveis soluções em busca do fortalecimento do Judiciário, e, assim, da própria sociedade.

Gostaríamos de agradecer ao Magnífico Reitor da UNINOVE, pro-fessor Eduardo Storópoli, à Pró-Reitora Acadêmica, na pessoa da professora Maria Cristina Barbosa Storópoli, aos Pró-Reitores de Campus, ao Direito de Pesquisa, Prof. João Ferrari e ao Professor Sérgio Braga, Diretor do Curso de Direito da IES. Por fim, consignamos os nossos mais sinceros agradecimentos aos Programas parceiros, que com esta obra contribuíram, e à equipe da Editora Clássica, pelo apoio e parceira neste projeto.

São Paulo, junho de 2013.

Vladmir OliVeira da SilVeira

OrideS mezzabOra

mônica bOnetti cOutO

Samyra Haydêe dal Farra naSpOnili SancHeS

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1. A REMOÇÃO DE ÓBICES ECONÔMICOS E DE ÓBICES TÉCNICOS À TUTELA JURISDICIONAL: CONTRASTES NA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS DE SUPERPOSIÇÃOBruno Silveira de Oliveira ........................................................................... 15

2. CIDADANIA, PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E PRODUÇÃO DE PROVA JUDICIALCláudio de Fraga e Eduardo Milléo Baracat ........................................ 32

3. O DIREITO AO PROCESSO EM TEMPO DEVIDO E O MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSOFlaviane de Magalhães Barros ................................................................... 47

4. A ORGANIZAÇÃO DOS TRIBUNAIS E A GESTÃO DO TEMPOGláucio Maciel Gonçalves ........................................................................... 65

5. PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DO COLENDO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇAJader Ferreira Guimarães e Vitor Soares Silvares ............................... 84

6. A REFORMA ATORDOADA: INEFICIÊNCIA, VERTICALIZAÇÃO DO ATO DECISÓRIO E DESPREZO AO DIREITO DE SER PARTE NOS NOVOS PROCEDIMENTOS PENAISLeonardo Augusto Marinho Marques ...................................................... 101

Sumário

APRESENTAÇÃO .................................................................................................. 06

SEÇÃO I – REFORMA DO JUDICIÁRIO, CELERIDADE E EFETIVIDADE: MITOS E REALIDADES

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7. PROCESSO ELETRÔNICO COMO INSTRUMENTO DA CIDADANIAMateus Eduardo Siqueira Nunes Bertoncini e Felippe Abu-JamraCorrêa .................................................................................................................. 115

8. PODER JUDICIÁRIO, JUSTIÇA E EFICIÊNCIA: CAMINHOS E DESCAMINHOS RUMO À JUSTIÇA EFETIVA?Mônica Bonetti Couto e Samantha Ribeiro Meyer-Pflug ................ 133

9. EFETIVIDADE DO PROCESSO: UMA ANÁLISE DO art. 285 do CPC À LUZ DO PROCEDIMENTALISMO HABERMASIANO E DO CONTRADITÓRIO PARTICIPATIVOPedro Sobrino Virgolino e Vitor Soares Silvares ................................. 148

10. A APLICAÇÃO DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA NO PROCESSO DE EXECUÇÃOVicente de Paula Maciel Junior .................................................................. 178

SEÇÃO II – PARA ALÉM DO PODER JUDICIÁRIO: JUSTIÇA E EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

1. A HETEROCOMPOSIÇÃO DE LITÍGIOS PELA ARBITRAGEM E SEUS IDEÁRIOS DE JUSTIÇAAdriana Silva Maillart .................................................................................. 213

2. UMA REVALORIZAÇÃO DO DIREITO A PARTIR DE PAUL RICOEUR: O JUSTO, A RESPONSABILIDADE E A SUSTENTABILIDADEÁlvaro Gonçalves Antunes Andreucci .................................................... 233

3. ACESSO AO DIREITO VIGENTE: PROBLEMAS, RISCOS E PROPOSTAS PARA UMA ELABORAÇÃO LEGISLATIVA À LUZ DOS VALORES REPUBLICANOS E DA LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃOFabiana de Menezes Soares ............................................................................ 245

4. PERSPECTIVAS DE CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA E DA SOCIALIDADE: UM ESTUDO A PARTIR DA ÉTICA DA MAGISTRATURA Francisco Cardoso Oliveira e Viviane Coêlho de Séllos Knoerr ..... 279

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COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

5. PARÂMETROS ÉTICO-JURÍDICOS DAS EXPERIMENTAÇÕES CIENTÍFICAS ENVOLVENDO SERES HUMANOS: O ESCOPO PROTETIVO DA AUTONOMIA E DIGNIDADE DO HOMEMJanaína Reckziegel e Matheus Felipe de Castro ................................... 298

6. GENOMA HUMANO: A IMPORTÂNCIA DE UM ACORDO INTERNACIONAL PARA COMPARTILHAR OS BENEFÍCIOS DA PESQUISAMaria Cristina Cereser Pezzella e Riva Sobrado de Freitas............ 319

7. REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA: PROCEDIMENTOS EXTRAJUDICIAIS E ATIVIDADE EMPRESARIALPasqualino Lamorte e José Edimilson de Souza Lima ........................... 337

8. JUSTIÇA E PARADIGMA DA EFICIÊNCIA: A PREVENÇÃO DO RETROCESSO DO DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃORogério Gesta Leal e Daniela Menengoti Ribeiro ............................... 351

Seção I

RefoRma do JudIcIáRIo, celeRIdade e efetIvIdade: mItoS e RealIdadeS

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1a Remoção de óbIceS econômIcoS e de óbIceS técnIcoS à tutela JuRISdIcIonal: contRaSteS na JuRISpRudêncIa doS

tRIbunaIS de SupeRpoSIção

brunO SilVeira de OliVeira

Professor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito de Vitória – FDV e da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Di-reito de Vitória – FDV. Doutor em Direito Processual Civil pela Fa-culdade de Direito da USP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Advogado.

SumáRIo: 1. A instrumentalidade do processo: uma premissa irrenunciável. 2. A instru-mentalidade do processo e o sistema recursal. 2.1 O começo do fim da “jurisprudência defensiva”? 2.2 STF “vs.” STJ? 3. Óbices econômico-financeiros. 3.1 O “preparo” e a assistência judiciária gratuita. 4. Óbices técnicos. 4.1 A correta dimensão da legalidade das formas. 4.2 A chamada intempestividade por “prematuridade” (ofensa ao art. 183 do CPC). 4.3 A comprovação posterior da tempestividade de recursos excepcionais em razão de feriado local. 4.4 Recurso sem assinatura do advogado subscritor. Conclusões. Referências.

1. a InStRumentalIdade do pRoceSSo: uma pRemISSa IRRenuncIável

O processo judicial é nada além de uma ferramenta: um método de trabalho1 concebido para ordenar a atividade jurisdicional do Estado, voltada ao cumprimento de seu dever de prestar tutela aos direitos materiais violados ou ameaçados de violação.

A vocação instrumental do processo, sua indeclinável missão de pre-parar e de possibilitar a entrega da tutela jurisdicional (restaurando com isso –

1 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 72.

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na feliz expressão do professor Kazuo Watanabe – a “ordem jurídica justa”2), é premissa a que nenhum discurso sério sobre direito processual pode se furtar3.

Não obstante a ampla aceitação (ou, pelo menos, a difusa declaração de aceitação) da premissa acima pelos chamados “operadores do direito”, o co-tidiano forense revela significativa distância entre as palavras e as ações.

O discurso – tão inquestionável quanto reverberado por todos – não se traduz como deveria em uma ansiada mudança de comportamento dos ato-res processuais, estando ainda longe de receber, por parte destes, o devido alcance prático.

Quantas vezes, afinal, não escutamos no meio acadêmico a velha tro-ça de que “na prática a teoria é outra!”? Pior que isso: muitos já a escutamos com inabalável resignação. Nada poderia ser mais sintomático dessa nefanda discrepância – há tanto instalada e sob diversos aspectos crescente – entre o ser e o dever-ser do processo.

2. a InStRumentalIdade do pRoceSSo e o SIStema RecuRSal

A redução da técnica processual a simples instrumento é ideia que deve perpassar todo o procedimento, sem preponderar neste ou naquele mo-mento ou grau de jurisdição4. É notório, entretanto, o aumento da resistência ao princípio da instrumentalidade à medida que o processo avança por suas derradeiras fases recursais.

Essa postura – absolutamente injustificável – descreve uma praxe tan-to mais formalista quanto mais nos aproximamos das últimas e verdadeiramen-te decisórias instâncias. Uma viva contradição.

Nossos tribunais de superposição, com alguma frequência, aplicam soluções instrumentalistas para problemas formais ocorridos em primeiro e se-gundo graus de jurisdição e, no entanto, não se valem dos mesmos critérios quando – instados a resolver idênticos problemas – julgam feitos de sua própria

2 WATANABE, Kazuo. Assistência judiciária e o Juizado Especial de Pequenas Causas. In Watanabe, Kazuo. (coord.). Juizado de pequenas causas. São Paulo: RT, 1985. p. 161 et seq.3 Sobre a visão instrumentalista do processo, cf. Dinamarco, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. 413 p.; Bedaque, José Roberto dos Santos. Efetividade... Op. cit., 601 p.; Brasil Jr., Samuel Meira. Justiça, direito e processo: a argumentação e o direito processual de resultados justos. São Paulo: Atlas, 2007. p. 173; Silveira de Oliveira, Bruno. “Os princípios constitucionais, a instrumentalidade do processo e a técnica processual”. In: RePro. n. 146. São Paulo: RT, 2007.4 Cf. SILVEIRA DE OLIVEIRA, Bruno. “O formalismo do sistema recursal à luz da instrumentalidade do processo”. In: RePro. n. 160. São Paulo: RT, 2008. pp. 32-60.

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COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

competência. Não faz sentido.É preciso manter a coerência do discurso e colocar em prática seus

postulados com relação a todo tipo de demanda ou de recurso5. No que tange a estes, aliás, pouco importa que se trate dos ordinários (em regra, de competên-cia dos órgãos de segundo grau) ou dos excepcionais (tocantes aos tribunais de superposição).

2.1. o começo do fIm da “JuRISpRudêncIa defenSIva”?

É o que, recentemente, o Supremo Tribunal Federal parece vir fa-zendo. Com alvissareiras demonstrações de uma maior abertura aos valores do instrumentalismo processual, o Pretório Excelso aparenta ensaiar os primeiros passos de uma (ainda muito distante e talvez utópica) débâcle à assim chamada “jurisprudência defensiva”6.

Se tal abertura consiste em verdadeira tendência naquela corte ou se não passa de lampejos momentâneos de sua jurisprudência é algo que só o tempo dirá.

2.2. Stf “vS.” StJ?

Por ora, convém expor sistematicamente tais manifestações do Supre-mo, contrastando-as com jurisprudência anosa e reiterada do Superior Tribunal de Justiça sobre os mesmos temas.

Com isso pretendemos examinar uma dissonância que talvez se vá intensificando entre os posicionamentos de cada uma daqueles cortes. Trata--se, possivelmente, de diferenças de orientação ou de abordagem em relação ao direito processual, radicadas em modos distintos de se encararem e de se utilizarem as normas que regem o processo.

Analisaremos as maneiras por que aqueles tribunais lidam com idên-ticas questões formais à admissão de postulações e, apenas para efeito didático, distinguiremos tais questões em dois grandes gêneros: de um lado, óbices eco-nômico-financeiros às pretensões das partes; do outro, óbices de índole técnica.

5 Cf. SILVEIRA DE OLIVEIRA, Bruno. O juízo de identificação de demandas e de recursos no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2011, passim.6 A pergunta é: defensiva de quem ou do quê? Talvez a expressão siga a lógica do dito popular segundo o qual a melhor defesa é o ataque...

COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

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3. óbIceS econômIco-fInanceIRoS

Chamamos de óbices econômico-financeiros aqueles ligados ao custo financeiro do processo. Nessa categoria incluímos as despesas processuais e os honorários advocatícios7.

Dentre as várias espécies de despesas processuais destacamos, para os fins deste estudo, a figura das taxas judiciárias. Do conjunto das taxas judiciá-rias – sendo mais específicos ainda – decotaremos aquelas voltadas ao custeio dos trâmites recursais, conhecidas como o “preparo” dos recursos (para nos valermos da terminologia adotada pelo Código de Processo Civil8).

3.1. o “pRepaRo” e a aSSIStêncIa JudIcIáRIa gRatuIta

Como é notório, aqueles que não podem pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família, fazem jus ao benefício da assistência judiciária gratuita (lei n. 1.060/1950)9. Em o obtendo, estão por lei dispensados do pagamento de todas as taxas judiciárias (incluídos os preparos)10.

Para as pessoas naturais, a lei condiciona a obtenção do benefício a simples declaração de insuficiência de recursos financeiros. Prestada tal decla-

7 Adotamos a classificação proposta pelo professor Cândido Rangel Dinamarco: “Custo do processo é a designação generalizada de todos os itens entre os quais se distribuem os recursos financeiros a serem despendidos no processo. Engloba despesas processuais e honorários advocatícios. Despesas processuais não é uma locução de amplitude total, no sistema do Código de Processo Civil. Abrange todos os itens do custo do processo que de algum modo e em algum momento serão devidos aos agentes estatais (Poder Judiciário, auxiliares da Justiça), mas não abrange os honorários advocatícios. São despesas processuais, na linguagem do Código de Processo Civil, (a) a taxa judiciária, ou custas devidas ao Estado pelo exercício da jurisdição; (b) os emolumentos devidos a eventuais cartórios não-oficializados, (c) o custo de certos atos e diligências, como intimações ou citações, (d) a remuneração de auxiliares eventuais, não integrantes dos quadros do Poder Judiciário.”. Dinamarco, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. vol. II. São Paulo: Malheiros, 2001. pp. 630-631.8 CPC, art. 511 – “No ato de interposição do recurso, o recorrente comprovará, quando exigido pela legislação pertinente, o respectivo preparo, inclusive porte de remessa e retorno, sob pena de deserção.”. 9 Lei 1.060/1950, art. 2º - “Gozarão dos benefícios desta Lei os nacionais e os estrangeiros residentes no País, que necessitarem recorrer à justiça penal, civil, militar ou do trabalho. Parágrafo único: considera-se necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família”. 10 Lei 1.060/1950, art. 3º - “A assistência judiciária gratuita compreende as seguintes isenções: I – das taxas judiciárias e dos selos [...]”.

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COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

ração, presumem-se – até prova em contrário (iuris tantum) – a autenticidade material e a veracidade ideológica do documento, devendo o juiz conceder a assistência gratuita ao requerente11.

A questão que ora se coloca é bastante simples: se a parte – colhida no curso do processo por um revés em suas finanças – deseja interpor um recurso mas não pode, a essa altura, arcar com o respectivo preparo, em que momento deve prestar a declaração de necessidade do benefício (antes da interposição do recurso ou no bojo da própria peça recursal)?

Uma exegese literal do art. 511, caput, do CPC12 pode levar à extre-mada conclusão de que, interposto sem o recolhimento e a comprovação do res-pectivo preparo (pouco importando as razões desse não recolhimento), queda o recurso deserto.

Esse, precisamente, é o entendimento dominante na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como fazem ver os seguintes julgados:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DESERÇÃO. AU-SÊNCIA DE PREPARO. PEDIDO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA NO CURSO DO PROCESSO. PETIÇÃO AVULSA. NECESSIDADE. PRECLUSÃO. IMPOSSIBILIDADE DE INTI-MAÇÃO PARA REALIZAÇÃO INTEGRAL DO PREPARO. 1. Cuida-se de Agravo Regimental interposto contra decisão que não conheceu do Agravo em Recurso Especial, em razão da ausência de preparo e do descumprimento do disposto no art. 6° da Lei 1.060/1950 quanto ao pedido de assistência judiciária gratuita no curso do processo.2. O art. 6° da Lei 1.060/1950 exige que o benefício em questão, quando pleiteado no curso do processo, seja formalizado por petição avulsa que será autuada em apenso aos autos principais. Precedentes do STJ.3. No presente caso, além de não efetuar o preparo, o agravante for-mulou o pedido de gratuidade da justiça em preliminar na petição de Recurso Especial, o que não é admitido pela jurisprudência do STJ (cf. AgRg no Ag 1397200/PR, Rel. Ministro Mauro Campbell Mar-

11 Lei 1.060/1950, art. 4º - “A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família. §1º - Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta Lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais”. 12 Uma vez mais: CPC, art. 511 – “No ato de interposição do recurso, o recorrente comprovará, quando exigido pela legislação pertinente, o respectivo preparo, inclusive porte de remessa e de retorno, sob pena de deserção”.

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ques, Segunda Turma, julgado em 23/8/2011; AgRg no Ag 1306182/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 5/8/2010; AgRg no Ag 1369606/SP, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 2/6/2011).4. A comprovação do preparo deve ser feita no ato da interposição do recurso. O art. 511, § 1°, do CPC só admite a intimação da parte para complementar valor insuficiente, inexistindo previsão no sentido de superar a preclusão e possibilitar o suprimento integral do montante não recolhido tempestivamente. Precedentes do STJ.5. Agravo Regimental não provido.(AgRg no AREsp 42.922/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/12/2011, DJe 24/02/2012)

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPE-CIAL. PEDIDO DE GRATUIDADE DE JUSTIÇA. DESERÇÃO. DECISÃO MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS.1. O recorrente não está exonerado do recolhimento das custas pro-cessuais até que seja apreciado o pedido de justiça gratuita, conside-rando-se deserto o recurso cujo preparo não tenha sido recolhido.2. Agravo regimental não provido.(AgRg no AREsp 9.456/RS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/06/2012, DJe 28/06/2012)

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. PEDIDO FORMULADO NO PRÓPRIO RECURSO ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 187/STJ. RECURSO DESER-TO. EVENTUAL DEFERIMENTO POSTERIOR DO BENEFÍCIO. EFEITOS RETROATIVOS. INEXISTÊNCIA.1. A ausência de comprovação do recolhimento das custas, no ato da interposição do recurso especial, implica sua deserção. Aplicável a Sú-mula n. 187/STJ.2. No caso concreto, embora conste da petição do recurso especial pedi-do de assistência judiciária, não houve manifestação do Juízo de origem a respeito nem comprovação do preparo.3. Agravo regimental desprovido.(AgRg no AREsp 53.314/SP, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FER-REIRA, QUARTA TURMA, julgado em 14/08/2012, DJe 24/08/2012)Parece-nos, porém, mais razoável (e em tudo afinado com o princípio

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do amplo acesso à justiça e com a natureza instrumental do processo) o trata-mento dado à questão pelo Supremo Tribunal Federal.

No julgamento do AI 652139-AgR/MG13, a 1ª Turma do Pretório Ex-celso entendeu “[...] cabível deferir-se a gratuidade antes da interposição ou como pleito embutido na petição de recurso extraordinário, salvo se houvesse fraude, como, por exemplo, quando a parte não efetuasse o preparo e, depois, requeresse que se relevasse a deserção. Afirmou-se plausível alguém que, até então, pudesse custear as despesas processuais não possuir mais condições de providenciar preparo, o que teria força declaratória a retroagir ao período pró-prio da interposição do recurso no qual pleiteada a assistência judiciária”14.

Ademais, nos termos do art. 6º da lei 1.060/195015, o pedido de obten-ção do benefício formulado no curso do processo não suspende o fluxo deste, de modo que a exigência de petição, apreciação e deferimento prévios à inter-posição do recurso pode consumir (e amiúde consumirá) mais tempo do que aquele de que dispõe a parte para – dentro do prazo previsto em lei – interpor tempestivamente sua impugnação.

De resto, se o art. 519 do CPC16 permite ao juiz relevar a pena de de-serção àqueles que, tendo condições financeiras para recolher o preparo, não o efetuam no ato da interposição do recurso por “justo impedimento”, com maior razão se há de relevar aquela pena a quem, não possuindo finanças bastantes para a realização da despesa sem prejuízo da própria subsistência, deixa de efetuá-la para manter-se condignamente. Afinal, não há impedimento maior ou mais justo que este para o não recolhimento do preparo: estar-se compelido a racionar os recursos financeiros disponíveis, para assim conservar um padrão de vida digno para si e para seus familiares.

4. óbIceS técnIcoS

Consistem em óbices técnicos à boa prestação da tutela jurisdicional todas as manifestações de formalismo exacerbado, toda e qualquer exageração do valor das formalidades processuais em prejuízo da resolução mais justa possí-

13 AI 652139-AgR/MG, rel. orig. Min. Dias Toffoli, red. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio, 22.05.2012.14 Idem.15 Lei 1.060/1950, art. 6º - “O pedido, quando formulado no curso da ação, não a suspenderá, podendo o juiz, em face das provas, conceder ou denegar de plano o benefício da assistência. A petição, neste caso, será autuada em separado, apensando-se os respectivos autos aos da causa principal, depois de resolvido o incidente”. 16 CPC, art. 519 – “Provando o apelante justo impedimento, o juiz relevará a pena de deserção, fixando-lhe prazo razoável para efetuar o preparo. Parágrafo único – A decisão referida neste artigo será irrecorrível, cabendo ao tribunal apreciar-lhe a legitimidade”.

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vel do litígio segundo a “verdade dos autos” (a chamada “verdade processual”).Obstáculos desse feitio ora provêm de infelizes escolhas legislativas

(resultando a grande maioria delas na exigência de formalidades incompatíveis com o modelo constitucional do processo civil brasileiro17)18 ora decorrem de práticas conservadoras, perpetuadas injustificavelmente por juízos e tribunais (a estranhamente denominada “jurisprudência defensiva”)19.

Neste estudo, ocupar-nos-emos apenas da segunda matriz. Analisare-mos algumas das mais conhecidas e recorrentes práticas conservadoras estabe-lecidas na jurisprudência brasileira.

Antes, porém, convém que façamos este lembrete/apelo – breve e prosaico que seja – sobre os limites impostos a todo julgador em sua lida diária com as leis e com os demais atos normativos: o texto fala!

4.1. a coRReta dImenSão da legalIdade daS foRmaS

O intérprete/aplicador do direito está vinculado aos limites semânti-cos dos textos (enunciados normativos) com que opera. Mesmo que determi-nado texto possa significar muitas coisas, nenhum texto é capaz de significar qualquer coisa (tudo).

Por vaga ou ambígua que seja determinada expressão contida na lei, há sempre algum núcleo20 (maior ou menor, a depender do caso) de certeza quanto ao que aquela expressão possa e também quanto ao que ela não possa21 significar.

17 Sobre o modelo constitucional do processo civil brasileiro, cf. BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil. vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 92 et. seq. 18 Nas palavras do Professor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira: “Pode acontecer, contudo, e esse é o âmago do problema, que o poder organizador e disciplinador do formalismo, em vez de concorrer para a realização do direito, aniquile o próprio direito ou determine um retardamento irrazoável da solução do litígio. Neste caso o formalismo se transforma no seu contrário: em vez de colaborar para a realização da justiça material, passa a ser o seu algoz, em vez de propiciar uma solução rápida e eficaz do processo, contribui para a extinção deste sem julgamento do mérito, obstando a que o instrumento atinja a sua finalidade essencial.”. Oliveira, Carlos Alberto Alvaro de. “O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo”. In: RePro. n. 137. São Paulo: RT, 2006. p. 19.19 Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. “Universalizar a tutela jurisdicional”. In: Fundamentos do processo civil moderno. 6. ed. t. I. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 411. 20 Para nos valermos da alegoria proposta por Philipp Heck e tão proficuamente ilustrada por Karl Engisch. Cf. Engisch, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p 209. 21 Vale transcrever, aqui, a rica metáfora da Vênus de Milo, utilizada pelo Professor Eros Roberto Grau para explicar a vinculação do intérprete ao texto normativo. Suas palavras: “Suponha-se a entrega, a três escultores, de três blocos de mármore iguais entre si, encomendando-se, a

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Interessam-nos, por ora, tais limites negativos: aquilo que está fora da “moldura”22 tracejada pelo texto legal, significados que o intérprete/aplicador jamais está autorizado a inferir do enunciado por ele invocado. Com relação a determinadas palavras, tais limites não são difíceis de precisar.

Ilustrativamente, ensina Humberto Ávila, “expressões como ‘provi-sória’ ou ‘ampla’, ainda que possuam significações indeterminadas, possuem núcleos de sentidos que permitem, ao menos, indicar quais as situações em que certamente não se aplicam: provisória não será aquela medida que produz efeitos ininterruptos no tempo; ampla não será aquela defesa que não dispõe de todos os instrumentos indispensáveis à sua mínima realização. E assim por diante”23.

Nessa linha, a expressão “decorrido o prazo” pode significar tudo me-nos “sequer iniciada a fluência do prazo”.

4.2. a chamada IntempeStIvIdade poR “pRematuRIdade” (ofenSa ao aRt. 183 do cpc)

O dispositivo legal que comina preclusão temporal aos atos das par-tes, no Código de Processo Civil, é o art. 183, de cujos termos se lê: “decorrido o prazo, extingue-se, independentemente de declaração judicial, o direito de praticar o ato, ficando salvo, porém, à parte, provar que o não realizou por justa causa” [destacamos].

Notemos que a condição para a ocorrência daquela preclusão é o iní-cio e a completa fluência do prazo de que dispõe a parte para praticar determi-

eles, três Vênus de Milo. Ao final do trabalho desses três escultores teremos três Vênus de Milo perfeitamente identificáveis como tais, embora distintas entre si: em uma a curva do ombro aparece mais acentuada; noutra as maçãs do rosto despontam; na terceira os seios estão túrgidos e os mamilos enrijecidos. Não obstante, são, definidamente, três Vênus de Milo. Esses três escultores ‘produziram’ três Vênus de Milo. Não gozaram de liberdade para, cada um ao seu gosto e estilo, esculpir as figuras ou símbolos a que a inspiração de cada qual aspirava – o princípio de existência dessas três Vênus de Milo não está neles. Tratando-se de três escultores experimentados – o que de fato ocorre na metáfora de que lanço mão –, dirão que, em verdade, não criaram as três Vênus de Milo. Porque lhes fora determinada a produção de três Vênus de Milo (e não de três Vitórias de Samotrácia, ou outra imagem qualquer) e, na verdade, cada uma dessas três Vênus de Milo já se encontrava em cada um dos blocos de mármore, eles – dirão – apenas desbastaram o mármore, para que elas brotassem, tal como se encontravam, ocultas, no seu cerne.”. Grau, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 29.22 Outra alegoria clássica e de grande valia didática. Cf. Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. pp. 390-391. 23 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 33.

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nado ato processual (“decorrido o prazo, extingue-se...”).Assim, o suposto vício de “intempestividade por prematuridade” –

que se impinge com frequência a recursos interpostos antes de intimadas as partes acerca da decisão recorrida – simplesmente não encontra guarida no or-denamento jurídico brasileiro.

Rechaçar sua aplicação por nossas cortes de justiça, portanto, não de-pende de encamparmos uma visão instrumentalista sobre o direito processual; trata-se, antes, de mera questão de legalidade. A chamada intempestividade por prematuridade é – verdade seja dita – uma sanção simplesmente ilegal24.

Em boa hora, no julgamento do HC 101132 ED/MA, redator para o acórdão (ainda pendente de publicação), Min. Luiz Fux, o Supremo Tribunal Federal reviu sua jurisprudência e deixou de aplicar a maljeitosa figura.

O voto vencedor destacou, entre outros argumentos, que “as preclu-sões se destinam a permitir o regular e célere desenvolvimento do feito, por isso que não é possível penalizar a parte que age de boa-fé e contribui para o progresso da marcha processual [interpondo seu recurso antes mesmo de inti-mada da decisão] com o não conhecimento do recurso, arriscando conferir o

24 Mais do que ilegal, tal postura é também abertamente contraditória com estratificada jurisprudência de nossas cortes de superposição, no sentido de que a ciência inequívoca da decisão (por exemplo, em razão de vista dos autos em cartório ou pela retirada destes) dispensa a intimação da parte e deflagra o termo inicial de fluência do prazo para o respectivo recurso. Vejamos, a propósito, a lição do Professor Cândido Rangel Dinamarco: “No trato específico dos recursos os próprios tribunais proclamam insistentemente que o prazo para interpô-los tem início em seguida a qualquer ato de ciência inequívoca, isto é, à prática de qualquer conduta mediante a qual a parte tome ou demonstre haver tomado conhecimento do ato judicial recorrível. A retirada dos autos do cartório ou secretaria do tribunal antes de feita a publicação [da decisão] pela imprensa é um desses atos – e, com razão, a jurisprudência diz que, havendo o conhecimento da decisão, sentença ou acórdão em razão de um acontecimento como esse, a publicação pela imprensa se torna indiferente, de modo que o prazo começa, flui e termina independentemente de quando ela tiver sido feita ou mesmo que jamais se venha a fazer. Essa orientação é reiteradamente reafirmada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Diante dessa tão forte, correta e invariável linha jurisprudencial, chega-se agora a um reclamo pela coerência das decisões dos tribunais, porque não é coerente (a) negar conhecimento a um recurso porque a parte teve ciência antes da publicação da sentença mas contou o prazo a partir desta (b) e ao mesmo tempo, contraditoriamente, negar-lhe também conhecimento nos casos em que a parte se antecipa à publicação, demonstrando conhecimento do ato e efetivamente recorrendo sem que tenha sido feita a intimação pela imprensa. Se a falta dessa intimação deixasse o julgamento à margem do direito, como naqueles acórdãos se disse (com a consequente intempestividade por prematuridade), não haveria como dizer, depois de decorrido o prazo contado da ciência inequívoca, que o recurso seja intempestivo por ter sido interposto tardiamente. Ou a ciência inequívoca dispensa a intimação e abre o prazo para recorrer, ou não; ou ela fixa o dies a quo dos prazos recursais, ou na o fixa.”. DINAMARCO, Cândido Rangel. “Tempestividade dos recursos”. In Fundamentos do processo civil moderno. 6. ed., t. II.. São Paulo: Malheiros, 2010. pp. 1104-1105.

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direito à parte que não faz jus em razão de um purismo formal injustificado”25. Forte nessa premissa, o Pretório Excelso conheceu de embargos de declaração opostos antes da publicação do acórdão embargado (e contributivos, por isso, para a celeridade do feito).

Lamentavelmente, porém, o Superior Tribunal de Justiça segue apli-cando a pecha de “intempestividade por prematuridade”. Em razão dela, nega conhecimento a centenas de recursos que podem representar (e não raro repre-sentam) a tábua de salvação da parte na esperança de receber a tutela jurisdicio-nal de seu direito.

4.3. a compRovação poSteRIoR da tempeStIvIdade de RecuRSoS excepcIonaIS em Razão de feRIado local

O processamento dos recursos excepcionais (extraordinário e especial)26 inicia-se – como é notório – nos tribunais estaduais e regionais em que interpostos27. Ali se faz o primeiro juízo de admissibilidade desses recursos e, caso positivo o resultado, digitalizam-se os autos e em seguida os “enviam” em meio eletrônico para Brasília (isto é: para o Supremo Tribunal Federal, na hipótese de interposição de recursos extraordinários e, no caso de recursos es-peciais, para o Superior Tribunal de Justiça).

25 Veja-se este excerto, colhido do voto do Min. Luiz Fux, em que – valendo-se dos escólios dos professores Cândido Rangel Dinamarco e José Roberto dos Santos Bedaque – expõe com a habitual desenvoltura as premissas centrais de sua decisão: “A finalidade da publicação do acórdão de julgamento é dar ciência à parte do teor da decisão, de modo que a interposição anterior do recurso denota que o referido propósito foi atingido por outros meios. Penalizar a parte diligente, que contribuiu para a celeridade do processo, é contrariar a própria razão de ser dos prazos processuais e das preclusões: evitar que o processo se transforme em um retrocesso, sujeito a delongas desnecessárias. Neste sentido, a lição de José Roberto dos Santos Bedaque, in verbis: ‘se for possível verificar que o reconhecimento da preclusão em determinado caso concreto, além de não favorecer a celeridade do processo, irá proporcionar tutela jurisdicional a quem não tem direito a ela, deverá o juiz afastá-la’. (Efetividade do Processo e Técnica Processual. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 130). O formalismo desmesurado ignora, ainda, a boa-fé processual que se exige de todos os sujeitos do processo, inclusive, e com maior razão, do Estado-Juiz. Nas palavras de Dinamarco, ‘a supervalorização do procedimento, à moda tradicional e sem destaques para a relação jurídica processual e para o contraditório, constitui postura metodológica favorável a essa cegueira ética que não condiz com as fecundas descobertas da ciência processual nas últimas décadas’. (DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 267)”.26 Adotamos aqui a terminologia de Fredie Didier Jr. e Leonardo José Carneiro da Cunha. Cf. DIDIER JR., Fredie; Cunha, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. 8. ed. vol. 3. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 253 et. seq. 27 Tirantes os casos de recursos extraordinários interpostos contra acórdãos de turmas recursais dos juizados especiais e contra acórdãos de tribunais superiores.

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Ocorre com alguma frequência, porém, de o tribunal de origem – ao receber o recurso – considerá-lo tempestivo em razão de feriado local que im-plique adiamento do termo inicial (dies a quo) ou extensão do termo final (dies ad quem) do prazo para interposição. Nesses casos, o tribunal de destino (STF ou STJ) não dispõe, na grande maioria das vezes, de informação sobre a ocor-rência daquela dilação excepcional (justamente pelo caráter local do feriado). Assim, não constando da peça de interposição do recurso ou mesmo dos autos eletrônicos como um todo advertência e prova da existência do feriado local, acaba-se – em Brasília – por inadmitir o extraordinário ou o especial, supondo--se intempestivo o seu manejo.

Até bem recentemente, predominava no Supremo Tribunal Federal o entendimento de ser ônus do recorrente a prova – no ato da interposição do extraordinário – da existência de feriado do local, sob pena de se reputar extem-porâneo seu recurso28.

Porém, aos 22.03.2012, no julgamento do RE 626358-AgR (Relator Min. Cezar Peluso [Presidente]) o Pleno do STF – corroborando sua tendência de censurar várias daquelas “práticas conservadoras” eufemisticamente apeli-dadas de “jurisprudência defensiva” – reviu seu entendimento e passou a permi-tir a comprovação posterior da tempestividade do extraordinário29.

Na espécie, a parte teve seu recurso extraordinário inadmitido por aquela corte e contra tal decisão interpôs agravo regimental, demonstrando en-tão ao Pretório Excelso que o recurso originário, na realidade, era desde sempre tempestivo (mercê da ocorrência de feriado local).

Prevaleceu o argumento – irretorquível, diga-se – de não se poder imputar preclusão temporal a um recurso que em verdade é (desde sempre!) tempestivo, pouco importando o momento em que se faça a prova de tal tempes-tividade à Corte Suprema: a priori, isto é, na própria petição de interposição do extraordinário, ou a posteriori, em agravo regimental interposto contra decisão do ministro relator que haja inadmitido aquele.

28 Nesse sentido: RE 491698 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 21/11/2006, DJ 02-02-2007 PP-00148 EMENT VOL-02262-13 PP-02603; RE 274534 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 13/06/2006, DJ 08-09-2006 PP-00054 EMENT VOL-02246-03 PP-00443 LEXSTF v. 28, n. 334, 2006, p. 279-282.29 Ementa: RECURSO. Extraordinário. Prazo. Cômputo. Intercorrência de causa legal de prorrogação. Termo final diferido. Suspensão legal do expediente forense no juízo de origem. Interposição do recurso no termo prorrogado. Prova da causa de prorrogação só juntada em agravo regimental. Admissibilidade. Presunção de boa-fé do recorrente. Tempestividade reconhecida. Mudança de entendimento do Plenário da Corte. Agravo regimental provido. Voto vencido. Pode a parte fazer eficazmente, perante o Supremo, em agravo regimental, prova de causa local de prorrogação do prazo de interposição e da consequente tempestividade de recurso extraordinário. (RE 626358 AgR, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 22/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-166 DIVULG 22-08-2012 PUBLIC 23-08-2012).

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O Min. Luiz Fux acrescentou que o art. 337 do CPC30 se aplica per-feitamente à hipótese: se a parte alegar direito costumeiro, municipal ou um direito local, e o juiz não souber, basta que a intime para comprovar a existência da norma extensiva do prazo.

De nenhum modo, porém, pode o Judiciário – seja qual for o órgão ou a instância em que o processo tramite – dar-se a esta intrincada operação alquí-mica que é “transformar” um recurso tempestivo em intempestivo.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, todavia, ainda prevalece a inadmissão (data maxima venia sem fundamento) de comprovação posterior da tempestividade dos recursos especiais.

Recentemente, porém, noticiou-se a afetação do julgamento do AResp 137141 (rel. Min. Antonio Carlos Ferreira) à Corte Especial daquele tribunal, para que se decida se seus órgãos julgadores se alinharão ao novo entendimento do Supremo Tribunal Federal (passando a admitir a comprovação posterior de feriado local que altere a contagem do prazo para interposição de recurso) ou se manterão a linha “defensiva” do entendimento predominante naquela casa31.

4.4. RecuRSo Sem aSSInatuRa do advogado SubScRItoR

Por derradeiro, anotemos mais esta diferença no modo como o Su-premo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça vêm lidando com a forma dos atos processuais. Trata-se do problema de recursos excepcionais não assinados.

É amplamente conhecido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, “nas instâncias ordinárias, a falta de assinatura do subscritor da petição constitui irregularidade sanável, devendo ser fixado prazo para que se supra o defeito, conforme dispõe o art. 13 do CPC”32,33.

Essa mesma corte, no entanto, confina o direito de saneamento do vício (franqueado pelos arts. 13 e 515, § 4º, do CPC) aos recursos interpostos perante as “instâncias ordinárias” (primeiro e segundo graus de jurisdição). Não destina, porém, a mesma solução – instrumentalista, favorecedora do julgamen-

30 CPC, art. 337 – “A parte que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o determinar o juiz”. [destacamos]31 A notícia foi divulgada em 10.09.2012, no sítio do Superior Tribunal de Justiça na rede mundial de computadores. Disponível em: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=106904. Acessado em: 14.09.2012.32 CPC, art. 13 – “Verificando a incapacidade processual ou a irregularidade de representação das partes, o juiz, suspendendo o processo, marcará prazo razoável para ser sanado o defeito.”. 33 AgRg no REsp 833.415/RS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 19/06/2012, DJe 29/06/2012.

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to de mérito da postulação – aos recursos de sua competência, dentre os quais se destaca o especial.

Reiterada e categoricamente, considera inexistente o recurso dirigido a seus órgãos julgadores sem a assinatura do advogado, reputando incabível, na “instância excepcional”, a diligência prevista no artigo 13 do CPC34 (isto é, a oportunidade de saneamento da irregularidade, por assinatura posterior do subscritor).

Mal se compreende, no entanto, por que razão de ordem sistemática ou técnica um direito consentido às partes sem restrição alguma na lei haveria de ser interpretado restritivamente pelo Judiciário.

A diferença de tratamento em razão da instância em que se cometa aquela omissão recebe da doutrina críticas irrefutáveis. O Professor José Car-los Barbosa Moreira anota que “não encontra amparo na lei a distinção entre instâncias, que se costuma fazer, para sustentar que o suprimento é viável até o segundo grau de jurisdição, mas deixa de o ser no recurso especial ou no ex-traordinário. Nenhum texto legal consagra, em termos explícitos ou implícitos, a diferença de tratamento.”35. Igualmente contundente, a censura do Professor Cândido Rangel Dinamarco tacha de “arbitrária a postura dos que, proclamando o repúdio ao formalismo irracional em relação a outros atos do processo e che-gando mesmo a admitir sua regularização mediante a assinatura inicialmente faltante, quando tratam do recurso extraordinário ou do especial vêm assumir atitude diferente. Por que esses atos mereceriam ser tratados assim, a partir de um metro formalista e discrepante das premissas tão bem aceitas em outras situações?”36. O silêncio eloquente é a única resposta que essa pergunta pode ter. Nenhum argumento é válido na tentativa de justificar tamanha discrepância no trato da mesmíssima questão. Nada é capaz de explicar que um mesmo vício de forma seja, nas instâncias ordinárias, considerado mera irregularidade e, pela singela circunstância de vir a ocorrer em um recurso excepcional, transmude--se ontologicamente em fatal e insanável vício de “inexistência”. A mutação da qualidade do vício beira o surrealismo.

Felizmente, decisões recentes do Supremo Tribunal Federal têm redi-mensionado o peso daquela omissão e recolocado a formalidade da assinatura em seu devido lugar. O entendimento que ora prevalece no Pretório Excelso é o de que a falta de assinatura do recurso não o prejudica ou impede sua admissão

34 Nesse sentido, entre diversos arestos: AgRg no AREsp 60.861/RS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe 29/06/2012.35 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Restrições ilegítimas ao conhecimento de recursos”. In Temas de direito processual (nona série). São Paulo: Saraiva, 2007. p. 278.36 DINAMARCO, Cândido Rangel. “Recurso extraordinário não assinado”. In Fundamentos... Op. cit. p. 1052. t. II.

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quando inexistir dúvida quanto à identificação do advogado subscritor37. Assim, se a conjugação de dados como a rubrica das laudas em que

grafadas as razões recursais, o estilo redacional peculiar (com padrão idênti-co ao de peças anteriores, todas assinadas) e o timbre do escritório de advo-cacia no papel que corporifica o recurso38 fornecer elementos de convicção suficientes para identificar-se a autoria da peça, a falta de assinatura não tra-rá prejuízo algum. Havendo nos autos procuração outorgada a esse advogado (subscritor do recurso não assinado), a ausência de sua firma na última lauda da petição assumirá contornos de mera irregularidade, pormenor que sequer carece de retificação.

concluSão

Ninguém ignora a sobrecarga de trabalho que aflige o Judiciário bra-sileiro em todos os seus níveis (máxime nos tribunais de superposição), mas – em que pese a gravidade dessa crônica e corrosiva mazela – nada justifica que, em nome da necessidade de reduzirem o número de feitos que inundam seus escaninhos, nossas cortes de justiça consolidem práticas sem arrimo no modelo constitucional de processo brasileiro e sem suporte normativo no Código de Processo Civil ou na legislação extravagante.

Em tempos de valorização e de atribuições cada vez mais intensas de força normativa aos precedentes das cortes superiores, é de se esperar que: (i) o Pretório Excelso reafirme a tendência instrumentalista inaugurada por vários de seus mais recentes julgados e (ii) o Colendo Superior Tribunal de Justiça reveja seus entendimentos sobre essas temas, para alinhar-se às novas diretrizes oriundas do Supremo Tribunal Federal.

37 Nesse sentido: AI 639938 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 04/12/2007, DJe-018 DIVULG 31-01-2008 PUBLIC 01-02-2008 EMENT VOL-02305-19 PP-04045; RE 363946 AgR, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, julgado em 28/11/2006, DJ 20-04-2007 PP-00093 EMENT VOL-02272-02 PP-00408; AI 519125 AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 12/04/2005, DJ 05-08-2005 PP-00094 EMENT VOL-02199-22 PP-04390 RB v. 17, n. 505, 2005, p. 45. 38 Nesse sentido, vejamos: “No caso dos autos, as páginas da peça recursal se encontram rubricadas pelo procurador da recorrente. Demais disso, a falta de assinatura do recurso extraordinário ocorreu por evidente erro material. É que a peça foi escrita em papel timbrado do escritório do profissional da advocacia que, desde o início, oficiou no processo. Noutros termos, inexiste dúvida quanto à identificação do advogado que vinha atuando no feito, até mesmo pelo seu particularizado estilo redacional. Precedentes: AI 496.967-AgR, Relator Ministro Marco Aurélio; AI 519.125-AgR, Relator para o acórdão Ministro Gilmar Mendes. Agravo regimental desprovido.”. (RE 363946 AgR, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, julgado em 28/11/2006, DJ 20-04-2007 PP-00093 EMENT VOL-02272-02 PP-00408).

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Uma reformulação constitucional da admissibilidade dos recursos especiais (instituindo-se, para eles, algo como uma exigência de repercussão geral) também pode ajudar a diminuir e a racionalizar o volume de trabalho do Colendo Superior Tribunal de Justiça.

O que não se pode tolerar é a perpetuação de uma linha jurispruden-cial em franco descompasso com a natureza instrumental do processo e, muita vez, sem amparo no ordenamento jurídico brasileiro.

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2cIdadanIa, pRIncípIo da pRopoRcIonalIdade e pRodução

de pRova JudIcIal

cláudiO de Fraga

Mestrando em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA--PR. Especialista em Direito do Trabalho. Pesquisador Científico e Membro do Grupo de Pesquisa Cidadania Empresarial, certificado no CNPq e mantido pelo Programa de Mestrado em Direito Empresa-rial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Advogado orientador – Núcleo de Prática Jurídica do UNICURITIBA.

eduardO milléO baracat

Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Juiz do Tra-balho do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região. Professor do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNI-CURITIBA.

SumáRIo: Introdução. 1. A produção da prova judiciária e a Constituição Federal. 2. O di-reito à intimidade e a prova judiciária. 3. A gravação clandestina de conversa telefônica e o seu valor probatório. Conclusão. Referências.

IntRodução

Para regular a vida em sociedade e com a finalidade de estabelecer as bases políticas e sociais do Brasil e também visando tutelar os direitos básicos dos cidadãos, de uma maneira geral, a Constituição Federal tratou de enumerar uma série de disposições que visam resguardar os direitos primeiros, direitos estes que estão intrinsecamente relacionados com o bem-estar social da pessoa, sem se afastar de estabelecer os pilares que embasam o Estado brasileiro. São previsões que consubstanciam princípios, diretrizes que devem ser seguidos

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pelo ordenamento. Segundo Walter Claudius Rothenburg39:Os princípios constitucionais não são outros que os princípios gerais de

Direito: preceitos que consagram os valores mais importantes (ou cuja chancela jurídica é reputada mais conveniente) num determinado contexto histórico, e que só podem fazê-lo adequadamente por meio de enunciados vagos e ajustáveis.

Dentre tais previsões, a Constituição Federal inseriu no ordenamento jurídico a proibição de utilização das provas obtidas por meios ilícitos, fazendo constar expressamente no rol dos direitos e garantias individuais, como se ve-rifica do inciso LVI40 do seu artigo 5º, que estabelece que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.

Houve a preocupação do legislador em estabelecer limites na produ-ção da prova judiciária, justamente para que fossem observados e respeitados outros tantos direitos que poderiam ser lesados caso se ultrapasse determinados parâmetros. São lesões que podem abranger inclusive direitos personalíssimos também tutelados pela carta magna, como por exemplo, a dignidade da pessoa humana e sua própria intimidade.

A leitura do dispositivo acima citado pode ser feita de maneira con-junta com o previsto no inciso XII41 do mesmo artigo 5º da Constituição Federal, o qual prevê que é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial. Há uma preocupação do legislador em tutelar especifica-mente a produção da prova judiciária para evitar eventuais abusos.

Contudo, uma das tarefas do direito é desenvolver técnicas eficientes e adequadas para conhecer os fatos alegados que envolvem os pedidos e trazer ao processo elementos suficientes ao julgamento da causa, para verificação da verdade das alegações das partes, visando propiciar condições ao juízo para decidir a causa.

Disso resulta que a prova tem importância fundamental para que o obje-to perseguido pela parte seja reconhecido. Segundo Juliana de Abreu Cassemiro42:

No processo probatório, o juiz atua, segundo a conotação exposta acima, no interesse da coletividade, que almeja decisões proferidas

39 ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Porto Alegre: Editor Sergio Antonio Fabris, 1999. P. 81.40 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.41 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.42 CASSEMIRO, Juliana de Abreu. Os conflitos de interesses juridicamente tuteláveis na produção probatória. In GUNTHER, Luiz Eduardo (Coord.). Jurisdição: crise, efetividade e plenitude institucional. Curitiba: Juruá, 2008. p. 374.

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com justiça. Adiante, será observado que o interesse público no pro-cesso probatório está localizado principalmente na busca da verdade dos fatos. Ao recorrerem ao Poder Judiciário, as partes pretendem ter suas pretensões satisfeitas e o fazem demonstrando a veracidade de suas alegações. Por meio das provas, o juiz consegue enxergar a rea-lidade das alegações e convencer-se da melhor decisão a ser tomada.

Ocorre que a parte, para efetivação do seu desiderato, por vezes reali-za indiscriminada utilização dos meios de prova, dentre os quais alguns sofrem as vedações acima mencionadas. Em outras palavras, a pessoa apenas consegui-ria comprovar o direito deduzido em juízo através da utilização de uma prova obtida através de meio ilícito.

Neste contexto, a utilização de prova obtida através de gravação te-lefônica toma relevo, diante da dificuldade da parte conseguir demonstrar em juízo os fatos alegados por outros meios de prova. Contudo, na produção da prova, a pessoa que foi ouvida clandestinamente, pode ser vítima de violação de sua intimidade, direito fundamental também resguardado pela Constituição Federal. Tal quadro demonstra um confronto de possíveis violações a direitos fundamentais. Ao mesmo tempo que a prova servirá de meio para que a pessoa demonstre o seu direito deduzido em juízo, a sua produção e uso poderá estar violando o direito à intimidade de outra pessoa.

Assim, o presente artigo pretende analisar em que medida a gravação clandestina de conversa telefônica pode ofender o princípio da intimidade e a sua possível aceitação num processo judicial como meio de prova. Visa-se tra-çar uma relação entre tais direitos de modo a trazer subsídios que demonstrem a existência ou não de violação à intimidade da pessoa e se será apta a servir de prova judicial.

O tema será abordado através da análise da doutrina, legislação e também da pesquisa de jurisprudência existente acerca da matéria, ressaltando que envolve questões que estão relacionadas com o cotidiano dos cidadãos e refere-se às bases da existência do Estado Democrático do Direito.

1. a pRodução da pRova JudIcIáRIa e a conStItuIção fedeRal

A parte no processo judicial tem o direito amplo de se manifestar e pleitear ao juiz-Estado a produção de todos aqueles meios de prova que entenda necessários para a demonstração de suas alegações. É um direito fundamental previsto na Constituição Federal, que deve ser seguido pelas partes e pelo ma-gistrado no trâmite processual.

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Neste aspecto, resulta que a prova mostra-se essencial para o integral conhecimento da causa, influindo diretamente no convencimento do julgador (destinatário da prova), para que tenha condições de analisar o caso com justiça. Os fatos e fundamentos, os direitos subjetivos alegados pelas partes hão de ser demonstrados através da produção de provas.

Assegurar o direito de produzir a prova no plano Constitucional, é garantir o acesso ao devido processo legal, e entre os princípios inerentes ao processo, destacam-se o contraditório e a ampla defesa para propiciar as partes à possibilidade ampla na formação do convencimento do juiz. Um dos pilares do sistema jurídico brasileiro, sem dúvida, está alicerçado na possibilidade das partes externarem os seus posicionamentos em face das alegações existentes no processo.

Dentro deste contexto, a possibilidade da produção probatória vem elencada no texto constituicional, dentro do rol dos direitos fundamentais, como se verifica do inciso LV, do artigo 5º da Constituição Federal. No entanto, não obstante a liberdade estabelecida pelo legislador que confere liberdade para a produção das provas, há que se observar os limites traçados pela própria Cons-tituição Federal, no inciso LVI43, do artigo 5º, que prevê que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.

O exercício de uma pretensão em juízo pode ser lícito, porém, o meio que parte irá utilizar para demonstrar os fatos que a embasam eventualmente poderá advir de forma ilícita e afrontar os direitos da personalidade de outra pessoa.

Segundo Adriana Martins Silva44:

De qualquer modo, afastar por completo a possibilidade de o juiz de-terminar a produção de uma prova ilícita significa aceitar um provi-mento jurisdicional que pode não corresponder à realidade substancial.Se a solução encontrada pelo juiz, em virtude dessa desconsideração, não corresponder àquilo que realmente ocorreu no mundo dos fatos, teremos duas violações da ordem legal: aquela, praticada pela parte, que se utilizou de um meio ilegal para conseguir demonstrar esse fato; e a outra, cometida pela parte contrária, cujo comportamento, também ilegal, restará aprovado pelo próprio órgão jurisdicional.

43 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.44 SILVA, Adriana Martins. O princípio da proibição da prova ilícita à luz do princípio da proporcionalidade e a mudança de paradigma segundo Friedrich Muller. In GUNTHER, Luiz Eduardo (Coord.). Jurisdição: crise, efetividade e plenitude institucional. Curitiba: Juruá, 2008, p. 484.

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A legislação em vigor não estabelece um rol taxativo de quais provas são admitidas em juízo. A parte pode optar pela produção de qualquer meio de prova que lhe pareça mais oportuno, desde que o modo escolhido seja legítimo e não seja contrário ao ordenamento jurídico e atenda a disposição constitucio-nal. O inciso LVI, do artigo 5º, da Constituição Federal vedou de forma expres-sa a utilização de provas obtidas por meio ilícito no processo.

A leitura de tal dispositivo legal submete à leitura do contido no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, que prevê que o sigilo das comunica-ções telefônicas, salvo autorização judicial, é inviolável. Ou seja, os parâmetros utilizados pela carta magna impedem expressamente o uso de tal meio de prova para que a parte demonstre a sua pretensão em juiz.

Disso resulta que eventual produção de prova materializada numa gravação clandestina de conversa telefônica, sem o consentimento da parte contrária, terá como consequência a sua inadmissibilidade no processo. Em consequência, o juiz não poderá levar em consideração o teor dos elementos probatórios, o conteúdo da conversa que tenha sido carreado aos autos nesta circunstância, não podendo apreciá-las para efeito de fundamento da decisão.

O fundamento da não aceitação de provas produzidas ilicitamente está intrinsecamente relacionado ao fato de que a obtenção das provas não po-dem causar ofensa aos direitos e garantias fundamentais da pessoa, como o direito à intimidade.

Na medida em que a Constituição Federal veda a utilização de provas ilícitas ela não pretende inviabilizar o exercício do direito à prova, mas apenas limitá-lo para que não venha a sobrepor-se a outros direitos ou a outros valores que poderiam ser considerados mais relevantes pelo ordenamento jurídico e pelo juiz.

No entanto, há que se analisar a extensão e os efeitos da inadmissi-bilidade de provas ilícitas e se tal princípio alcança toda e qualquer espécie de situação, e se efetivamente deve ser tido como regra absoluta, particularmente quando viola o direito à intimidade de outra pessoa.

Deste modo, obedecidos a tais limites, o entendimento mais extre-mado, no sentido de as provas originadas de ato ilícito serem sempre excluídas do processo, tem sido abrandado nas situações em que os prejuízos que expe-rimenta quem se veja impedido de fazer uso de prova assim obtida superem os prejuízos da pessoa que teve sua intimidade invadida por alguns momentos.

Segundo Adalberto Guedes Xavier de Andrade45, na análise proces-

45 ANDRADE, Adalberto Guedes Xavier de. A aplicabilidade do princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito no processo civil, in Revista de Processo, nº 126, p. 230.

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sual outros valores devem ser sopesados quando a prova obtida pelas partes no processo possa ofender algum direito fundamental, e através da harmonização das normas constitucionais que estariam em conflito possa se admitir, dentro de certos limites, a ingerência na vida alheia.

Partindo de tais aspectos, e tratando de assunto intrigante e controver-so em doutrina e jurisprudência, a utilização de gravação de conversa telefônica obtida por meio clandestino vem sendo admitida como meio de prova em al-guns julgados. No entanto, necessária a análise se tal utilização, apesar de per-mitir a comprovação dos fatos alegados pela parte, fere o direito da intimidade da outra pessoa, o que se passa a analisar.

2. o dIReIto à IntImIdade e a pRova JudIcIáRIa

O direito à intimidade é reconhecido pela Constituição Federal como direito fundamental, como um instrumento de defesa da dignidade da pessoa humana, assegurando a tutela da intimidade em diversos dispositivos, como nos incisos X, XI, XII, do artigo 5º. A necessidade de se proteger os direitos da personalidade nasce da própria condição da vida em sociedade e das constantes mutações a que estamos sujeitos hodiernamente.

Ensina-nos Viviane Coêlho de Séllos Knoerr46:

Nestes termos, verificando o elo e interdependência entre a dignida-de humana para com questões de caráter social fundamental, como a cidadania, a democracia, os valores éticos, o construtivismo, a susten-tabilidade, a adoção de posturas afirmativas por parte do setor empre-sarial em parceria público-privado, objetivamos favorecer e propor-cionar a concretização da Constituição Federal.

Decorre disso que a observância à inviolabilidade da intimidade das pessoas deve ser respeitada por todos, é o respeito aos direitos subjetivos do indivíduo, que permeia valores que representam os sentimentos mais internos. Quando se fala acerca da efetividade dos direitos e garantias constitucionais sob o aspecto da produção probatória, mister a questão da tutela dos direitos de personalidade particularmente diante da necessidade de discutir os instrumen-tos garantidores da eficácia constitucional. E aí surge a necessária proteção à intimidade que deve ser preservada ainda que estejam em discussão direitos que

46 SÉLLOS, Viviane. O Problema da Dignidade Humana e os Projetos para Erradicação da Exploração do Trabalho Infantil. In Anais do CONPEDI. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/recife/trabalho_justica_viviane_gondim.pdf. Florianópolis: Boiteux, 2006.

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num primeiro momento possam externar eventual superioridade.Ainda que se parta do pressuposto que os direitos da personalidade

situam-se como “direitos primeiros”, segundo Elimar Szaniawski47, não se olvi-da que certos direitos entrem em conflito e surja polêmica acerca de qual destes direitos conflitantes deve preponderar sobre o outro. A previsão constitucional que veda a utilização de provas obtidas por meio ilícito carrega consigo a pro-teção da intimidade da pessoa, para que não tenha violado direito fundamental.

Pois bem, partindo-se de tal premissa, como permitir uma ampla pro-dução probatória, assegurando-se o contraditório e a ampla defesa, com a ve-dação de utilização de provas ilícitas, e ao mesmo tempo observar o respeito à intimidade, enfim, a questões basilares que envolvem a dignidade da pessoa humana?

Diante de tal quadro, apresentam-se dois valores diametralmente opostos, ou seja, o direito à ampla produção probatória, e o direito da parte ter resguardada a sua intimidade como pessoa humana, sem que seja exposta a exageros que a ocasionem lesão a seus direitos básicos.

Há que se observar que os direitos e garantias fundamentais possuem característica primordial, mas não podem servir de proteção para a impunidade de condutas ilícitas. Para Bedaque48 o ponto está em encontrar o equilíbrio entre dois valores contrapostos, quais sejam, a tutela da norma violada com a obten-ção da prova ilícita e a utilização dos meios necessários ao alcance do escopo da atividade jurisdicional.

Isto conduz ao entendimento de que a conciliação entre os direitos fundamentais com o bem comum não implica na exclusão de direitos (segun-do Maria Cecília Pontes Carnaúba49). De fato, os direitos a inviolabilidade da intimidade e das comunicações telefônicas são garantidos pela Constituição Fe-deral, no entanto existem outros direitos igualmente tutelados pelo texto cons-titucional, como a produção probatória, também de grande importância, o que, segundo Nelson Nery Junior50, não pode sugerir uma incompatibilidade entre preceitos constitucionais, mas, ao contrário, é preciso que os direitos consti-tucionais aparentemente em conflito sejam harmonizados e compatibilizados entre si pelo intérprete e aplicador da norma.

A captação da prova deve ser realizada com observância aos direitos da personalidade, não sendo permitida a violação dos princípios fundamentais

47 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 19.48 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Garantias Constitucionais do Processo Civil. 1999, pp. 185-186.49 CARNAÚBA, Maria Cecília Pontes. Prova ilícita. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 49.50 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal: Processo civil, penal e administrativo. 9. ed.. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 278.

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contidos na Constituição Federal. Para Celso Ribeiro Bastos51 o direito não pode ser compartimentado e dividido em blocos estanques, e assim de um lado have-ria a geração da prova, arcando o seu responsável com todas as penas resultan-tes do ilícito praticado, e do outro estaria o interesse processual em descobrir a verdade.

Surge então a necessidade de se compatibilizar os direitos eventual-mente em conflito, para que sejam harmonizados e considerados os aspectos que rodeiam a questão. Na doutrina, que não é unânime quanto ao tema, deve haver ponderação para analisar os interesses que estão em conflito no caso con-creto, escolhendo quais os direitos que necessitam de maior tutela.

Uma solução apresentada pela doutrina e jurisprudência é que a ques-tão da admissibilidade de um meio de prova vai depender da discricionária valoração ou da devida ponderação a ser dada pelo juiz aos bens jurídicos em conflito.

Neste sentido, tem-se a aplicação do princípio da proporcionalidade que serve como um mecanismo de abertura do sistema jurídico, sensível às interpretações teleológicas capazes de viabilizar a obtenção de resultados mais justos. Para Eduardo Cambi52 a previsão contida no art. 5º, inc. LVI, da Cons-tituição Federal, não pode ser interpretado como uma regra rígida que impeça toda e qualquer prova ilícita, mas uma regra aberta às circunstâncias que pos-sam aparecer nos casos concretos, confiando aos juízes a possibilidade de pon-derar acerca dos valores constitucionais em conflito e evitar que a interpretação literal dessa regra jurídica impossibilite a construção de uma sociedade justa e democrática.

Segundo Adriana Martins Silva53:

A admissibilidade no processo de provas produzidas por meios não permitidos pelo sistema legal é uma situação nova, porque quebra os limites de interpretação incondicional do texto legal sobe as ativida-des persecutória e investigatória do Estado, e cria modernos freios às arbitrariedades estatais através da adoção de limites objetivos impos-tos pela razão, com base no princípio da proporcionalidade.

Na aplicação do princípio da proporcionalidade, o juiz deve atentar para alguns pressupostos, dentre eles: a clara determinação dos valores em dis-

51 BASTOS, Celso Ribeito. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, v. 2. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 273.52 CAMBI, Eduardo. A prova Civil: admissibilidade e relevância. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 49.53 SILVA, Adriana Martins, obra citada, p. 486.

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cussão; a prioridade dos elementos normativos a serem utilizados; a proporção entre o meio empregado e os fins pretendidos.

Neste passo, toma relevo a análise da produção de prova obtida atra-vés de gravação clandestina e a sua possível utilização e aceitação num proces-so judicial.

3. a gRavação clandeStIna de conveRSa telefônIca e o Seu valoR pRobatóRIo

Ao que se verifica, a liberdade para a produção de provas fica limitada na medida em que a própria Constituição Federal veda a utilização de alguns meios de prova. Como visto acima, a jurisprudência vem abrandando tal enten-dimento, com base no princípio da proporcionalidade e na análise de cada caso concreto.

Até porque existem situações extremas nas quais a única forma de se demonstrar aquele fato seria através da utilização de uma prova ilícita. Vicente Greco Filho54, em situações como esta, entende que a prova teria de ser conside-rada porque a condenação de um inocente é a mais abominável das violências e não pode ser admitida ainda que se sacrifique algum preceito legal.

Num primeiro momento, a gravação clandestina de conversa tele-fônica resulta em grave violação ao direito à intimidade da pessoa. Contudo, o sigilo constitucional das comunicações não pode ser considerado absoluto, sujeitando-se, assim, ao princípio da proporcionalidade, até para que se evite que a sua tutela sirva de pretexto para causar danos aos direitos de outra pessoa.

Assim, a eventual invasão de privacidade seria justificada se analisa-da a situação concreta, a fim de se observar os direitos colocados em confronto, a partir da concepção de que a captação da conversa telefônica não resulte de meios ardilosos e não represente uma injustificável restrição da esfera dos di-reitos da personalidade55.

Segundo análise jurisprudencial, a inadmissibilidade da utilização das provas ilícitas é entendimento que vem sendo abrandado, sendo o princípio da proporcionalidade o instrumento a ser utilizado como forma de aproximar os extremos da situação analisada.

No caso das gravações clandestinas de conversa telefônica, a jurispru-dência vem caminhando para o entendimento de que a gravação de uma conver-sa por um dos interlocutores, sem o consentimento do outro, não se enquadra no conceito de interceptação telefônica, e de consequência, não é considerada meio ilícito de obtenção de prova.

54 GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 112.55 CAMBI, Eduardo, obra citada, p. 108.

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Em recente decisão56, o Tribunal Superior do Trabalho condenou uma empresa a efetuar o pagamento de indenização para uma ex-empregada por ter denegrido a imagem dela ao dar informações a possível novo empregador.

A ex-empregada ingressou na Justiça do Trabalho com reclamação trabalhista afirmando, em síntese que o dono da empresa onde trabalhava a prejudicou na obtenção de novo emprego e manchou sua imagem junto ao novo empregador, que pediu informações a seu respeito. A conversa telefônica foi gravada pela reclamante e serviu como prova na ação trabalhista. A sentença e o acórdão proferidos foram mantidos pelo Tribunal Superior do Trabalho.

Ao analisar o recurso da empresa, a 1ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho considerou legal a prova apresentada pela empregada, entendendo, em síntese, que embora a inviolabilidade das comunicações telefônicas seja assegurada pela Constituição Federal, deve também ser preservado o direito de defesa da empregada, que reputou de maior relevância diante da gravidade do dano, pois, sem aquela prova, seria impossível de ser exercido o direito da ex-empregada, havendo um excesso por parte do dono da empresa ao prestar informações a respeito da reclamante, adentrando na sua intimidade, o que a prejudicou na obtenção de um novo emprego. As declarações do dono da em-presa foram suficientes para demonstrar que foi originado à ex-empregada uma violação à sua honra, e que naquele caso concreto, apenas poderia ter sido do-cumentado por um terceiro, que foi quem recebeu as informações depreciativas a seu respeito.

O relator ainda ressaltou que o sigilo telefônico é uma garantia de inviolabilidade da linha de comunicação telefônica, durante o uso, para evitar a típica atividade de interceptação e, não, um direito ao sigilo do conteúdo da conversação. E ainda, embora a prova obtida por um dos interlocutores tenha sido aproveitada por terceiro, foi considerado lícito o procedimento, diante da dificuldade que a parte teria em comprovar a situação vivida, evitando impedir a reclamante de exercer o seu direito de ação.

56 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista 21500-05.2008.5.15.0001, Relator: José Pedro de camargo Rodrigues de Souza. Ementa: Recurso de Revista - Preliminar de nulidade por uso de prova obtida por meio ilícito. A gravação de conversa, realizada por um dos interlocutores, não se enquadra no conceito de interceptação telefônica, razão pela qual não se pode considerá-la meio ilícito de obtenção de prova. O uso desse meio em processo judicial é plenamente válido, mesmo que o ofendido seja um terceiro, que não participou do diálogo, mas foi citado na conversa e obteve a prova por intermédio do interlocutor. Se a obtenção é lícita, o produto, ou seja, a prova, também o é. Na hipótese a reclamante viu sua honra ser maculada por declarações da ex-empregadora, no intuito de frustrar sua admissão em um novo emprego, o que, obviamente, só poderia ter sido documentado por um terceiro, que foi quem recebeu as informações depreciativas a respeito da trabalhadora. Intacto o art. 5º, LVI, da Constituição Federal. Precedentes do STF e desta Corte. Recurso de revista não conhecido.

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Entendimento semelhante, quanto a admissibilidade do uso de grava-ção de conversa telefônica como meio de prova já foi adotado por outros Tribu-nais. O Supremo Tribunal Federal57 acatou como válida a gravação de conversa telefônica que foi feita por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro, quando inexistente causa legal de sigilo ou de reserva de conversação.

Vale acrescentar, contudo, que o entendimento não é unânime entre os Tribunais. Como exemplo, o caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça58, ocasião em que foram anuladas as provas produzidas nos autos por entenderem os julgadores que foram violadas a honra, a imagem, a intimidade e a dignidade da pessoa humana dos envolvidos, decidindo que a obtenção da prova fora ilí-cita, colhidas em desconformidade com o preceito legal, não havendo a neces-sária razoabilidade para o ato, entendendo pela infração a diversos dispositivos legais e pela contrariedade do ato aos princípios da legalidade, da imparcialida-de e do devido processo legal.

Como se pode observar, a questão ainda é controversa nos Tribunais, havendo situações em que se reconhece a ilegalidade das provas produzidas no processo afastando os seus efeitos, e em outros, ainda que transpareça o meio ilegítimo de sua produção, considera e valora a prova surtindo consequências no convencimento do julgador. Neste caso, apenas após realizar uma análise ponderada acerca dos valores e direitos que estão sendo discutidos sob o enfo-que da prova produzida.

A análise ponderada de todos os elementos do caso concreto é que levará o julgador a tomar uma decisão que, espera-se, seja justa. Em outro jul-gamento59, o Superior Tribunal de Justiça entendeu pela validade das provas obtidas através gravação clandestina de conversa telefônica por entender que o direito à intimidade não pode ser utilizado como um escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, e nem para a diminuição da responsabilidade civil ou pe-nal por atos criminosos, o que viria afrontar o Estado de Direito. O Relator bem se manifestou ao afirmar que Dessa forma, aqueles que, ao praticarem atos ilícitos, inobservarem as liberdades públicas de terceiras pessoas e da própria sociedade, desrespeitando a própria dignidade da pessoa humana, não pode-rão invocar, posteriormente, a ilicitude de determinadas provas para afastar suas responsabilidades civil e criminal perante o Estado.

Há que atentar para o fato de que estão em discussão direitos e ga-

57 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AI 578858 AgR / RS, Rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, DJe nº 162 de de 28/8/2009.58 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº HC 149250/SP, Relator Ministro Adilson Vieira Macabu.59 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário nº 12266/SP, Relator Ministro Hamilton Carvalhido.

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rantias fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal, e disso resulta a grande responsabilidade que deve despender o julgador na análise do caso concreto, para que, através dos elementos trazidos ao seu conhecimento, possa, com o discernimento necessário, aplicar o princípio da proporcionalidade e de-cidir visando alcançar a justiça.

concluSão

A Constituição Federal prevê a possibilidade da produção probatória, assegura o acesso amplo aos meios de prova existentes, vedando o uso de pro-vas obtidas por meio ilícito no processo judicial.

No entanto, a fim de demonstrar o seu direito em juízo, em algumas situações a parte terá de utilizar um meio de prova que, em análise preliminar, não é admitido, é considerado ilícito, o que poderá acarretar uma violação ao direito à intimidade da outra pessoa.

Não há uma resposta na doutrina e jurisprudência unânime quanto a possibilidade do uso de gravação clandestina de conversa telefônica como meio de prova judicial. Não se pode negar que numa primeira análise, o seu uso violaria o direito à intimidade da pessoa. O que se pode constatar é que a regra prevista na Constituição Federal comporta exceções, apontando que cada caso concreto deve ser analisado com as cautelas necessárias, apresentando como solução a utilização do princípio da proporcionalidade.

Os excessos, os abusos, devem ser afastados, atitudes desproporcio-nais e ilegais em nada contribuirão com o regular andamento do processo, ao contrário, apenas acobertarão ilicitudes do seu criador.

Há a necessidade de se compatibilizar os direitos eventualmente em conflito, para que sejam harmonizados e considerados os aspectos que rodeiam a questão, havendo ponderação do julgador para analisar os interesses que estão em conflito no caso concreto, escolhendo quais os direitos que necessitam de maior tutela.

Desta feita, há que se atender aos limites traçados na Constituição Federal, sem extrapolar a previsão legal, pois só assim é que se atingirá a sua finalidade maior, estabelendo igualdade de condições entre as partes, e princi-palmente, respeitando-se a intimidade dos envolvidos.

A condição de direito e garantia fundamental estabelecida pela Cons-tituição, conferindo a possibilidade da parte produzir suas provas, não afasta a necessidade de respeitar a intimidade da pessoa.

Não há que se falar em sobreposição de direitos ou de garantias fun-damentais, mas uma apreciação do caso concreto, com ponderação, para que apenas após uma detalhada análise se possa constatar eventual preponderância

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de algum direito.Como visto acima, em algumas oportunidades a parte não possui ou-

tra possibilidade de demonstrar o seu direito senão através do uso de uma prova obtida por uma gravação telefônica realizada clandestinamente.

Portanto, há situações em que o uso de uma gravação telefônica obtida clandestinamente não ofenderia o princípio da intimidade, sendo apta a servir como prova judicial. É imprescindível que o julgador analise cada caso, um a um, observando as minúcias que envolvem a situação, para a partir deste exame detalhado o Estado-juiz aplique o princípio da proporcionalidade, observando principalmente a clara determinação dos valores em discussão; a prioridade dos elementos normativos a serem utilizados; a proporção entre o meio empregado e os fins pretendidos, e a partir da apreciação conjunta de tais fatores possa en-fim formar o seu convencimento e proferir o seu julgamento.

Em suma, dentro deste quadro, a solução que se mostra plausível é a análise de cada caso concreto, e aplicando-se o princípio da proporcionalida-de (e por certo, atendidas as demais determinações legais a respeito), possa o julgador após a análise de tudo o que foi discutido no caso formar o seu con-vencimento e alcançar uma decisão justa e equilibrada, mas sempre respeitando os princípios e fundamentos constitucionais, pois são estas as garantias e os direitos maiores que devem ser respeitados.

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3o dIReIto ao pRoceSSo em tempo devIdo e o modelo

conStItucIonal de pRoceSSo

FlaViane de magalHãeS barrOS

Doutora e mestre em direito processual (PUC-Minas). Pós-Doutora (CAPES) junto a Università degli studi di Roma TRE. Professora adjunta da PUC-Minas. Professora da UFOP. Membro do Conselho Científico do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ). Advogada.

SumáRIo: Introdução. 1. Sobre o processo como garantia e o modelo constitucional de processo. 2. O tempo do processo e o tempo no processo 3. A duração irrazoável do tempo no processo e o desrespeito ao modelo constitucional de processo. Conclusão. Referências.

IntRodução

O presente trabalho constitui-se de uma síntese de uma reflexão que se faz no Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas, na linha de pesquisa. “Processo para a Construção do Estado Democrático de Direito”, que apresenta-se para a Coletânea “Justiça e o (paradigma) da eficiência”, organiza-da a partir de uma interlocução com docentes e discentes da Uninove.

O enfretamento das questões relacionadas ao Sistema de Justiça bra-sileiro que encontra no discurso das reformas processuais justificações em ter-mos de eficiência e celeridade são aqui analisados tendo como base teórica a compreensão do processo no Estado Democrático de Direito, reconhecido no projeto constitucional e que se adéqua a atual sociedade plural, intercultural e multifacetada. Assim, busca-se construir as bases de uma dogmática crítica para o direito processual, que se reconhece em termos teórico que o processo é uma garantia de direitos fundamentais.

A Linha de Pesquisa que se insere o presente trabalho avançou a partir de um traço distintivo da visão instrumentalista do processo, capitaneada em Minas Gerais pela obra de Aroldo Plínio Gonçalves (1992), que tem suas bases na critica de Fazzalari (1992) à teoria da relação jurídica processual. Nesse sen-

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tido, reconhece-se a possibilidade de uma teoria do processo que pode englobar o processo legislativo, administrativo, jurisdicional, arbitral, dentre outros, pois se sustenta a partir da compreensão de que o procedimento é um gênero e tem no processo a espécie que se qualifica pelo contraditório. Sendo que a partir da consolidação do projeto constitucional brasileiro de 1988, buscou-se reconhe-cer não só o contraditório como base para o processo, mas sim a existência de uma base principiológica sustentada constitucionalmente, apropriando-se assim da terminologia inicialmente proposta com Andolina e Vignera (1997) de mo-delo constitucional de processo.

Por essa razão, o primeiro item do presente trabalho visa esclarecer esses marcos iniciais da compreensão de processo como garantia dos direitos fundamentais, base das reflexões sobre os temas da celeridade, do direito ao processo em duração razoável, dos estudos críticos e do monitoramento das reformas processuais empreendidas no processo penal brasileiro nos últimos quatro anos, bem como a proposta da macroreforma estrutural do CPP, que se encontra tramitando no Congresso Nacional.

Logo, se em um primeiro momento percebe-se que os marcos teóricos iniciais entre as pesquisas mineiras podem se diferenciar, certo é que a dis-cussão sobre as reformas e os problemas da eficácia do processo jurisdicional brasileiro ganham corpo em um discurso convergente, no sentido de que tais questões não podem se afastar do respeito aos direitos fundamentais e do reco-nhecimento dos direitos humanos.

Assim, na segunda parte do trabalho busca-se discutir o direito ao processo no tempo devido seja a partir de seu marco constitucional seja a partir da construção da Corte Interamericana de direitos humanos, com a consolida-ção da teoria do não prazo. Sendo que ao final pretende-se demonstrar que o problema do processo que se prolonga para além de um prazo razoável, além de estar justificado por questões típicas de gestão de processos, é também uma consequência do desrespeito aos princípios bases do modelo constitucional de processo. A grave violação de direitos humanos consubstanciada na privação da liberdade do acusado durante o processo penal de conhecimento por um prazo desarrazoado é consequência reflexa do desrespeito a outras garantias processu-ais definidas na declaração universal de direitos dos homens, em especial, pelo desrespeito ao contraditório, a ampla defesa como ampla argumentação, a au-sência de fundamentação ou a quebra da imparcialidade. Pretende-se, portanto, demonstrar que celeridade e direito ao processo penal em prazo razoável não se contrapõe as demais garantias do processo, como se justifica em termos de uma dogmática acrítica, mas se reconhece ao contrário a partir de sua codependência.

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1. SobRe o pRoceSSo como gaRantIa e o modelo conStItucIonal de pRoceSSo

Assim, é preciso reconstruir, em poucas linhas, as teorias do proces-so, para discutir sua adequação ao marco do Estado Democrático de Direito, demonstrando que o marco procedimentalista (HABERMAS, 1997) dedica ao processo um importante papel de garantia dos direitos fundamentais.

Ao revisitar a teoria do processo é possível, a partir da noção de pro-cesso como garantia, defender a proposta de uma teoria geral do proces-so, compreendida por meio da definição de um modelo constitucional de processo, isto é, da possibilidade de se definir uma base principiológica uníssona para compreensão do processo, seja ele jurisdicional, administrativo, legis-lativo, arbitral, ou, em outras palavras, para o processo constitucional.

A proposta teórica de esclarecimento dos paradigmas jurídicos realizada por Habermas (1997) auxilia a compreensão do processo, na medida em que cada paradigma apresenta uma perspectiva distinta para o instituto.

No paradigma liberal, o processo tem uma feição de benefício entre as partes (sache der partein), como um instrumento privado, e sua base é a igualdade formal e o princípio dispositivo. (NUNES, 2008)

Já no Estado Social, a compreensão de processo passa por uma maior sofisticação teórica. No Brasil, os instrumentalistas, em especial, Cândido Rangel Dinamarco (1998), pretendem difundir, sob o marco do Estado Social, uma teoria do processo que tem como objetivo garantir a “pacificação social”, realizável por intermédio do cumprimento dos escopos metajurídicos do processo, que auxiliam o juiz a efetivar e balizar a justiça social, por meio do instrumento processual jurisdi-cional (DINAMARCO, 1998, p. 159-167).

A linha teórica da instrumentalidade, que pretende que o juiz em sua deci-são proceda à correção prática dos erros perpetrados por outras esferas estatais, a fim de garantir justiça social, é de fácil adaptação à teoria da relação jurídica processual.

E é desde Bülow (1868) que se compreende o processo como uma relação jurídica entre o juiz e as partes, entendida esta como o vínculo sub-jetivo que faz com que aquele que tem direitos (sujeito ativo) possa exigir daquele que tem dever (sujeito passivo) o cumprimento de uma determinada conduta.

Como ressalta Nunes (2008), o próprio Bülow sustentava a aplica-ção livre e, de certa forma, subjetiva do direito pelos juízes.

Logo, a relação jurídica de direito processual coloca o juiz como “super-parte”, de atuação preponderante no processo jurisdicional. Tanto é fato que fez surgir duas posições subjetivas, recorrentemente, apresentadas nos manuais de processo de matiz instrumentalista, a posição de poder-dever

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do juiz e a de sujeição das partes.A primeira questão colocada por Gonçalves (1992), na crítica ao

instrumentalismo, foi justamente a impossibilidade de se agregar uma ideia de contraditório, como posição de simétrica paridade entre os afetados, com a base teórica da relação jurídica, que nitidamente estabelece o vínculo entre os sujeitos do processo como uma posição hierarquizada de um sujeito que tem poder e outro que deve sujeição.

Assim, a apropriação feita por Gonçalves da obra fazzalariana permi-tiu a revisão da teoria da relação jurídica processual. Fazzalari (1992), a partir de apropriações de teorias dos direitos público e processual60, revisitou o conceito de processo e procedimento, para estabelecer, por meio de um critério lógico de inclusão, que o processo é uma espécie de procedimento, que se especifica em virtude da posição dos afetados em relação à construção do provimento final, que, assim, se realizaria em contraditório, isto é, com a garantia de participação em simétrica paridade dos afetados na construção do provimento.

Desse modo, tomando como marco o paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, visto pela teoria do discurso de Habermas (1997) na perspectiva do sujeito de direito que se coloca como sujeito e desti-natário da norma jurídica, é possível estabelecer uma crítica à teoria do proces-so como relação jurídica, justamente em razão do lugar do juiz como “super--parte”, e ao instrumentalismo, em virtude do solipsismo do juiz e dos escopos metajurídicos do processo jurisdicional.

Ao mesmo tempo, pode-se pretender a apropriação da teoria do pro-cesso como procedimento em contraditório, como adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito, principalmente em razão da compreensão do processo para além da jurisdição, já que o processo, no paradigma procedi-mentalista, deve ser entendido como constitutivo de direitos fundamentais. Ademais, a noção de contraditório pretendida pela referida teoria do processo consolida a proposta de garantia de participação em simétrica paridade dos afe-tados pelo provimento, no sentido de uma garantia de construção participada da decisão, que estarão compreendidos no processo tanto como autores, quanto como destinatários da norma jurídica.

O processo para além da jurisdição faz com que a noção de teoria geral do processo, sustentada nos institutos da jurisdição, ação e processo (DI-NAMARCO, 1998), se mostre inadequada principalmente se tomarmos como base a noção do processo como garantia constitutiva de direitos fundamentais. Assim, para consolidar a noção de processo como garantia, apropria-se dos

60 Fortemente influenciado por teorias do direito publico, por administrativista e também por processualista como Goldschmidt (1936).

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conceitos de processo e procedimento de Fazzalari, bem como de uma releitura da teoria geral do processo a partir da apropriação do modelo constitucional de processo.

A noção de processo como garantia tem sua base na Constituição, sendo codepende dos direitos fundamentais. Assim, o que sustenta a noção de processo como garantia são os princípios constitucionais do processo definidos no texto constitucional.

Dessa maneira, pode-se apropriar da noção de modelo constitucional de processo, que teve uma proposição inicial feita para o processo civil italiano por Andolina e Vignera (1997), mas aqui apropriada para um modelo de proces-so, visando à construção de outra noção de teoria geral do processo, constituída justamente por uma base constitucional fundada nos princípios do processo.

A noção de modelo constitucional de processo permite suprimir a di-cotomia entre direito processual constitucional e direito constitucional do pro-cesso, visto que tal modelo é constituído de uma base principiológica uníssona aplicável a todo e qualquer processo, já que todo processo é constitucional, seja em razão de sua fundamentação ou estrutura (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002, p. 124), pois é garantia constitutiva dos direitos fundamentais dos sujeitos de direitos. (BARROS, 2006)

Retomando a compreensão de Andolina e Vignera, o modelo consti-tucional de processo é “um esquema geral de processo” (1997, p. 9) que possui três importantes características: a expansividade, que garante a idoneidade para que a norma processual possa ser expandida para microssistemas, desde que mantenha sua conformidade com o esquema geral de processo; a variabilidade, como a possibilidade de a norma processual especializar-se e assumir forma di-versa em função de característica específica de um determinado microssistema, desde que em conformidade com a base constitucional; e, por fim, a perfectibi-lidade, como a capacidade de o modelo constitucional aperfeiçoar-se e definir novos institutos por meio do processo legislativo, mas sempre de acordo com o esquema geral (ANDOLINA; VIGNERA, 1997, pp. 9-10).

Logo, da noção de um modelo constitucional de processo que se fun-da em um esquema geral ou em uma base principiológica uníssona, abarca-se como pontos iniciais de referência para compreensão das garantias do processo o princípio do contraditório, o da ampla argumentação, o da fundamentação das decisões e o da participação de um terceiro imparcial (BARROS, 2006; 2009).

Como ressalta Andolina e Vignera (1997), a compreensão do modelo constitucional de processo, “de um modelo único e de tipologia plúrima” (AN-DOLINA; VIGNERA, 1997, p. 11), se adéqua à noção de que na Constituição se encontra a base uníssona de princípios que define o processo como garantia, mas que, para além de um modelo único, ele se expande, aperfeiçoa e especia-

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liza, exigindo do intérprete compreendê-lo tanto a partir dos princípios bases como, também, de acordo com as características próprias daquele processo.

Não se trata, apenas, da diferença entre procedimentos, no sentido de uma sucessão de atos e fases processuais, como especificado acima por Andolina e Vignera (1997, p. 11). Mais do que isso, é preciso perceber que, por mais que todo processo tenha como base os princípios constitucionais – do contraditório, da ampla argumentação, da fundamentação das decisões e da existência de terceiro imparcial –, há diferenças entre os processos, seja em razão do provimento pre-tendido ou dos direitos fundamentais a serem garantidos.

Logo, o microssistema do processo penal tem especificidades diante dos direitos fundamentais a que visa garantir. Desse modo, a base principiológica uníssona, consolidada pelo contraditório, ampla argumentação, fundamentação da decisão e o terceiro imparcial, precisa ser interpretada sem desconsiderar o princípio constitucional da presunção de inocência e a garantia das liberdades individuais dos sujeitos, justamente em virtude das características do próprio mo-delo, que são a expansividade, a variabilidade e a perfectibilidade.

Assim, somando todas as garantias relacionadas à liberdade do cida-dão nos casos de prisão (como, por exemplo, o art. 5º, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI, LXVIII, da CR/88) ao princípio da presunção de inocência ou não--culpabilidade (art. 5º, LVII, CR/88), pode-se perceber que há especificidades para o processo penal, em razão do próprio direito fundamental que se pretende amparar: o direito de liberdade. Liberdade do indivíduo vista aqui não só no con-texto de liberdade de ir, vir ou permanecer, mas no sentido da sua intimidade e privacidade, verificadas nas diversas cláusulas de inviolabilidade (art. 5º, X, XI, XII, CR/88) ou na liberdade de convicção ou crença e na proibição de qualquer tipo de discriminação (art. 5º, XLI, CR/88).

Vê-se que a própria Constituição trata o processo penal como um mi-crossistema. Entretanto, suas garantias específicas, por si só, não excluem ou restringem a base principiológica uníssona do processo, visto como garantia constitucional.. Por isso, vale a pena revisitar os referidos princípios visando a consolidação da proposição da base principiológica uníssona do modelo cons-titucional de processo, sem se desconsiderar a especificidade do processo penal.

Uma interpretação constitucionalmente adequada passa pela noção de que o modelo constitucional do processo é uma base principiológica uníssona, na qual os princípios que o integram são visto de maneira codependente. Ou seja, ao desrespeitar um dos princípios se afeta também, de forma reflexa, os outros princípios fundantes. Contudo, todos os princípios têm o seu conteúdo específico e diferenciador.

Iniciar com o esclarecimento sobre contraditório é mais fácil em razão da apropriação que já foi feita na exposição da teoria do processo como proce-

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dimento em contraditório de Fazzalari (1992), com o apoio da releitura feita por Gonçalves (1992).

A noção de contraditório proposta por Fazzalari sustenta-o como posi-ção de simétrica paridade entre os afetados pelo provimento final ou, em outras palavras, é a construção participada da decisão.

Para a compreensão de contraditório exposta, não se admite compreen-dê-lo de forma limitada como ação e reação das partes, como mera necessidade de se dizer ou contradizer o direito em razão do conflito. Assim, tomando como base a noção de processo como garantia, o contraditório deve ter seu concei-to ampliado, de modo a ser compreendido como o espaço procedimentalizado para garantia da participação dos afetados na construção do provimento. Assim, o contraditório tem como característica o princípio da influência, no sentido de que as partes têm direito de influir argumentativamente nas decisões do processo, ou seja, influir no desenvolvimento e no resultado do processo (NUNES, 2007). A influência gera a garantia de não-surpresa, ou seja, de não ser afetado por uma decisão sem participar da sua construção. Nesse sentido, a não-surpresa somente pode ser retirada em casos excepcionais, mas o contraditório não é suprimido e sim postergado.

Desta feita, é fácil compreender a codependência do contraditório com a necessidade da fundamentação das decisões e suas implicações para a proposta de compreensão de uma teoria geral do processo, vista a partir de um modelo constitucional de processo. Pois, ao se exigir que a construção da decisão respeite o contraditório e a fundamentação, não mais se permite que o provimento seja um ato isolado de inteligência do terceiro imparcial, o juiz na perspectiva do processo jurisdicional.

A relação entre esses princípios é vista, ao contrário, em sentido de se garantir argumentativamente a aplicação das normas jurídicas para que a decisão seja produto de um esforço reconstrutivo do caso concreto pelas partes afetadas. Desse modo, a fundamentação da decisão é indissociável do contraditório, visto que a participação dos afetados na construção do provimento, base da compreen-são do contraditório, só será plenamente garantida se a referida decisão apresen-tar em sua fundamentação a argumentação dos respectivos afetados, que podem, justamente pela fundamentação, fiscalizar o respeito ao contraditório e garantir a aceitabilidade racional da decisão.

A codependência entre fundamentação das decisões e contraditório se conjuga, também, com a necessidade de se garantir a ampla argumentação, vista aqui como uma proposta de releitura do princípio da ampla defesa. Para tan-to, deve-se evitar as limitações fundadas nas heranças pandectistas da actio, que veem a ação como mero direito de formular uma demanda e têm como titular apenas o autor. Se a ação é do autor, a defesa é do réu ou acusado, como em um

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paralelismo entre ação e defesa, próprio do instrumentalismo.A ampla argumentação como garantia das partes, e não como um direi-

to subjetivo de “uma” parte, compreende a necessidade de se garantir o tempo do processo para que o esforço reconstrutivo dos argumentos do discurso dialético das partes possa ser apropriado, de modo que todas as possibilidades de argu-mentação sejam perquiridas. Como salienta Günther, na defesa de uma teoria da argumentação jurídica, deve-se pretender a reconstrução da situação por meio da sua descrição de forma completa para que se garanta a argumentação e aplicação das diversas normas prima facie aplicáveis. (GÜNTHER, 1995, p. 301)

Na perspectiva do processo jurisdicional, da ampla argumentação de-corre o direito à prova, à assistência de um advogado, à necessidade de se garantir que as parte possam ter o tempo processual para reconstruir o caso concreto e discutir quais normas jurídicas prima facie aplicáveis são mais adequadas ao caso concreto.

Pela interpretação que se pretende dar ao modelo constitucional de processo, fica fácil aqui redefinir a própria compreensão do papel do terceiro imparcial. Esta não se discute em termos de neutralidade ou mesmo das impli-cações de suas escolhas pessoais de vida na formação do seu convencimento ou na dicção do direito, pois, pela perspectiva proposta, o terceiro não é o único e valoroso intérprete do direito. No caso, a imparcialidade se garante pela exi-gência do esforço argumentativo das partes, que será a base para se construir a decisão presente na fundamentação. Por isso que quando uma decisão judicial permite uma abertura para a discricionariedade e para o subjetivismo do juiz se afeta não só o contraditório, a fundamentação da decisão, mas a imparcialidade do juiz.

E justamente em razão dessa base principiológica que se pode verifi-car que o tempo é inerente ao processo e o direito ao processo no tempo devido deflui, não da eficiência do processo, mas dos princípios processuais que visam a garantia dos direitos fundamentais.

2. o tempo do pRoceSSo e o tempo no pRoceSSo

Certo é que o processo exige tempo. Em verdade, pretende-se esclare-cer duas vertentes do tempo processual: o tempo do processo, em que pretende analisar como o tempo se insere na construção teórica-principiologica sobre o processo e o tempo no processo, como o tempo naturalizado que se despende para solução de um caso específico de processo.

O processo tem uma perspectiva temporal inserida em sua própria es-trutura procedimental, pois se trata de um conjunto de atos e posições subjetivas dirigidas a um provimento final, segundo Fazzalari (1992). Logo, não se pode

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desconhecer que processo exige o seu tempo. Tempo esse que se demonstra em uma cronologia de atos processuais, atos que se encadeiam em um vínculo de consequencialidade, em que o antecedente é pressuposto lógico e necessário do consequente (GONÇALVES, 1992). Pode-se aqui identificar essa como uma primeira característica do tempo do processo, em seu caráter cronológico.

Mais ainda, o tempo do processo deve se enquadrar no tempo do con-traditório, da argumentação e da decisão. Logo, além da sequência de atos na estrutura procedimental que segue um critério cronológico, não se pode olvidar da necessidade de reconhecimento do tempo kairológico do processo, e conhe-cido como o tempo devido (MARRAMAO, 2005).

É preciso rever os conceitos de tempo meramente cronológicos e para tanto se exige retomar em especial o paradoxo da dupla implicação que o tempo possui, que se verifica desde os gregos pela diferença entre Chronos e Aión, e que retorna na modernidade através de um golpe de cena do tempo kairológico, entendido como o tempo devido (MARRAMAO, 2005).

Nesse sentido, o tempo do processo deve se ater as exigências de tem-po para garantir a participação das partes, do tempo para a produção da prova e do tempo da argumentação das partes. A tentativa de redução de complexidade do processo por meio de um discurso de efetividade neoliberal (MARTINS, 2010, p.70) desconhece justamente que ao se concentrar todo um processo em um ato único e complexo como a audiência de instrução e julgamento, im-portada do processo civil para o processo penal, se está reduzindo ou mesmo retirando o tempo devido da argumentação (BARROS, 2009). Passa-se a exigir das partes e do juiz uma rapidez e fluidez dos atos que segue a flecha do tempo em um sentido único, desconsiderando a relatividade do tempo de reflexão, ne-cessário para que se volte ao passado que se discute e se reconstrói no processo.

Não são apenas as partes que são contaminadas pelo discurso de efi-ciência, celeridade, de uma sequencia temporal que não leva em conta o tempo devido, mas também a decisão precisa se pautar por um tempo kairológico. Logo, não se pode pensar na decisão penal sem reconhecer que ela precisa de tempo, pois aqui se discute o direito de liberdade, coloca-se em cheque a pre-sunção de inocência, a partir de estrutura dialógica que se constrói em contradi-tório, com o debate das partes, e que se resemantiza na decisão, pela construção participada de terceiro imparcial. Essa então seria uma segunda característica do tempo do processo, em seu aspecto kairológico.

Mas estudar o tempo não é algo fácil, simples, seja para os físicos, para os filósofos ou para os juristas. Em especial, é importante perceber, a partir da analise de Resta (2008), que o processo jurisdicional e a decisão se voltam a dois tempos diferentes: o da legislação e o da jurisprudência. Ou seja, o caso concreto que se discute e se reconstrói no processo, o caso penal em processo

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penal, para homenagear Coutinho (1989) , se submete a duas temporalidades que são paradoxais. A primeira que é o tempo da legislação, que se pretende estático, pois pensado como o tempo monologante, que se voltar para o futuro para estabelecer novas previsões de comportamento social, em um futuro pode ser visto como passado. Ou nas palavras de Eligio Resta: “O direito regula o tempo sendo por ele regulado” (RESTA, 2008, p.178). Logo, no processo legislativo pode-se estar olhando para o passado para regular uma questão de experiência ou se voltar para o futuro para tentar regular uma questão de expec-tativa. Mas certo que o que é futuro para uma geração, e portanto, expectativas, será passado para outra, ou seja, experiência, como propõe Resta (2008, p. 190), ao interpretar Koselleck. Paradoxalmente, o tempo do legislador se conjuga e contamina com o tempo da jurisprudência. Jurisprudência que se pretende atual, mas não vive exclusivamente do presente, se volta para o passado e para o tempo do legislador, olvidando-se de seu caráter hermenêutico de revisitação do direito a partir de uma comunidade de princípios.

A característica não monologante do tempo e suas várias facetas esta posta também na sentença, que desliza entre um ex nunc e um ex tunc, nas palavras de Resta (2008, p. 196). A sentença penal tenta se equilibrar entre estabelece uma consequência para o futuro do acusado, mas em razão de um caso penal do passado. Esta sempre gravitando na temporalidade entre passado, presente e futuro.

Tal paradoxo da decisão penal é apresentado por Lopes Junior e Ba-daró quando realçam que o juiz julgando no presente (hoje), um homem e seu fato ocorrido num passado distante (anteontem), com base na prova colhida no passado próximo (ontem), projetando seus efeitos por meio da pena para o futuro (amanhã) (LOPES JUNIOR, BADARO, 2009, p.14 e 15).

Compreender a incomesurabilidade do tempo (MARRAMAO, 2005) e as diversas facetas que o tempo do processo possui é necessário para verificar o tempo no processo. Pois o direito ao processo em prazo razoável, ou o tempo no processo, não pode ser analisando isoladamente, é preciso da perspectiva do tempo do processo, seja o cronológico ou kairológico ou mesmo a compreensão do seu caráter paradoxal.

Nesse sentido a duração do processo, e do processo penal em especial, não se deve pautar, exclusivamente, no cumprimento restrito e cronológico de um número de dias específico, de um prazo próprio, como os 60 dias entre o recebimento da denúncia e a designação da Audiência de Instrução e Julgamen-to. Pois, se o critério tão somente cronológico for o único aferido, pode-se em casos complexos impedir o exercício do contraditório e da ampla defesa, ou mesmo, afetar a fundamentação da decisão, pela falta de tempo. Mas a exceção não pode justificar a desnaturação do tempo kairológico do processo, como o

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tempo devido, como é o caso do “tempo morto” do processo, reconhecido como o tempo inútil do processo em que se fica a esperar que os operadores do direito ou “gestores da administração da justiça” tenham “tempo para o processo”. Nesse sentido, é clara a resolução 66/2008 do CNJ, que estabelece parâmetro cronológico máximo de três meses como o tempo de se pode admitir, no pro-cesso penal, que o “processo fique parado”.

Em outras palavras, a definição de um tempo cronológico, com prazo fixo para o processo penal, não pode significar a síndrome da pressa que afetam as garantias processuais em nome de uma celeridade, mas não pode também ser justificadora da demora inútil no processo que viola direitos fundamentais do acusado.

Lado outro dos parâmetros cronológicos do tempo no processo que possuem métricas estáticas, esta a “teoria do não prazo”, endossada pela Corte Europeia de Direito Humanos e pela Corte Americana de Direitos Humanos a respeito do direito ao processo no prazo razoável. Pela “teoria do não prazo” perquire-se o tempo kairológico no processo (tempo devido), a partir da defini-ção de critérios abertos para aferir da duração do processo, tenta-se de alguma forma reconhecer as especificidades do caso e do tempo devido ao referido pro-cesso. Esclarece Bretas de Carvalho Dias (2010, p.162,165) três situações de comprometimento da razoável duração do processo: complexidade das questões discutidas no processo, atuação das partes e atuação dos órgãos jurisdicionais. Para o processo penal, busca-se verificar a partir da analise da complexidade do caso, da atividade processual do interessado (parte acusada no processo penal) e pela condutas das autoridades judiciárias.

Crê-se que para se aferir o tempo no processo não se pode estabelecer um critério exclusivamente cronológico, pela contagem dos dias por meio de um prazo, mas também não se pode deixar fixar o parâmetro do prazo razoável a partir exclusivamente da construção da “teoria do não prazo” para se definir o tempo devido no processo. Em especial, quando se analise o tempo no processo penal e o ainda mais perverso, tempo das medidas cautelares pessoais, ou seja, tempo na prisão preventiva, não se pode admitir parâmetros únicos. Nesse caso, discute-se o tempo de duração do processo, de forma reflexa, pois o que esta em jogo diretamente é o tempo da privação da liberdade sem decisão.

3. a duRação IRRazoável do tempo no pRoceSSo e o deSReSpeIto ao modelo conStItucIonal de pRoceSSo

A duração razoável do processo esta garantida na Constituição de 1988, no art. 5°, LXXVIII, bem como no Pacto de San José da Costa Rica nos seus artigos 7º, 5, e art. 8º, 1. No que concerne à questão da duração do processo

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penal, há a possibilidade de definição do tempo do processo por critério métrico como a definição do prazo para a conclusão do processo penal ou ainda a defini-ção de um prazo máximo para a prisão processual, como medida cautelar. O cri-tério do prazo é usado no processo penal brasileiro a partir da construção juris-prudencial que apresenta um prazo para conclusão extraído da soma dos prazos para cada ato do processo. Nesse sentido, no Brasil após a reforma de 2008, que alterou o procedimento penal, o prazo seria de 96 dias, se sem pedido de absol-vição sumária, e de 106 dias, com pedido de absolvição sumária, nos processo penais de competência de justiça estadual (BARROS, MACHADO, 2011).

Porém, a prática jurídica revelou (e revela diariamente) que tal argu-mento é mera falácia, eis que tal prazo não é observado61 e não gera nenhuma sanção àquele que lhe deu causa. A única parte que recebe sanção em decor-rência da provocação de uma dilação temporal indevida é a defesa, conforme se verifica na dicção da Súmula n. 64 do STJ que afirma: “não constitui constran-gimento ilegal o excesso de prazo na instrução, provocado pela defesa”.

Já os órgãos de persecução e o próprio Poder Judiciário possuem uma grande margem para se eximir de tal responsabilidade sob o argumento do acú-mulo de processos, do excessivo número de réus ou da complexidade da causa, etc. Outra súmula do STJ, agora a de n. 52, apresenta o entendimento de que “encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento por excesso de prazo”. Assim, mesmo com a demora processual verificada pelo excesso de prazo, seja o processo, seja a prisão, elas não estariam gerando lesão aos direitos fundamentais do acusado, em especial, sua liberdade, e não confi-gurariam constrangimento ilegal.

Contudo, o próprio STJ vem revendo tal posição, sob a justificativa de que a Constituição assegura a “razoável duração do processo” e não a “ra-zoável duração da instrução” (LOPES JR., BADARÓ, 2009). Nesse sentido, há decisões recentes que se inspiram na Constituição e nas decisões da Corte Americana de Direitos Humanos.62

A discussão da necessidade de se estabelecer de forma clara na legis-lação brasileira um prazo máximo para a prisão processual, e não para o pro-cesso, cresceu e acabou influenciando o Projeto de Novo Código de Processo Penal63, que tramita no Congresso, apresentando similaridade com as disposi-

61 Nesse sentido: HC 172.611/PE, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, julg. em 02/09/2010.62 Nesse sentido: RHC 20.566/BA, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 12/06/2007. 63 No projeto, há uma seção específica que trata do período máximo de duração da prisão preventiva (art. 558 do PL n. 8.045/2010) para cada fase do processo, como, por exemplo, o prazo de 180 dias de duração da prisão decretada no inquérito até sentença, ou ainda, um prazo global, somando todos os períodos mesmo descontínuos, de no máximo 4 anos.

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ções do atual Código de Processo Penal Português64. Por isso, a Resolução 68 do CNJ estabelece um indicativo a mais e de grande relevância para a discussão da duração do processo que é a do “tempo morto” do processo, que se refere ao período em que não se realiza nenhum ato processual. Na resolução, esse prazo não pode ser superior a três meses.

Por outro lado, as decisões das cortes de direitos humanos, inicial-mente na Corte Europeia de Direitos Humanos e posteriormente da Corte Ame-ricana de Direitos Humanos a analise do prazo irrazoável não se faz por um marco métrico especifico, como 2 anos, 5 anos, mas sim por critérios definidos com conceitos abertos que precisam ser testificados para cada caso concreto.

A aplicação da Convenção Europeia em seus art. 5°, 3 e 6°, 1, ante a ausência à época nas legislações nacionais europeias de um prazo máximo de-finido para medidas cautelares, exigiu da Corte uma interpretação do que seria o prazo razoável. Os critérios foram estabelecidos pela primeira vez no caso Neumeister vs Áustria65, de 1968. Nas decisões mais recentes da Corte, como no caso Mcfarlane vs Irlanda, decidido em 2010, confirmou-se o entendimento, já consolidado desde a década de 1980, que pauta o prazo razoável pelos seguintes critérios: complexidade do caso, comportamento do acusado, comportamento das autoridades que diligenciam para tutelar os direitos em jogo no processo66.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos também analisa a te-mática em razão da disposição do art. 7º, 5, e art. 8º, 1, ambos da Convenção Americana de Direitos Humanos. Nesse sentido, a decisão da Corte, no Caso Chaparro Álvarez y Lapo Íñiguez vs Equador, proferida em 21 de novembro de 2008, apresenta esta noção de duração da medida cautelar pessoal:

145. Esta Corte ha señalado que el principio de presunción de inocen-cia constituye un fundamento de las garantías judiciales. De lo dis-puesto en el artículo 8.2 de la Convención deriva la obligación estatal de no restringir la libertad del detenido más allá de los límites estric-

64 A legislação portuguesa prevê no art. 215 do CPP diversos prazos para a prisão preventiva.65 São eles: a duração da prisão cautelar; a duração de prisão cautelar em ralação a natureza de delito, a pena fixada e a provável pena a ser aplicada em caso de condenação; os efeitos pessoais que o imputado sofreu, tanto de ordem material como moral ou outros; a influencia da conduta do imputado em relação à demora do processo; as dificuldades para a investigação do caso ( complexidade dos fatos, quantidade de testemunhas e réus, dificuldades probatórias); a maneira como a investigação foi conduzida; a conduta das autoridades judiciais. (PASTOR, 2009).66 La Cour rappelle sa jurisprudence constante selon laquelle le caractère raisonnable de la durée d’une procédure doit s’apprécier suivant les circonstances de la cause et eu égard aux critères suivants : la complexité de l’affaire, le comportement du requérant et des autorités compétentes ainsi que l’enjeu du litige pour l’intéressé (voir, par exemple, Sürmeli c. Allemagne [GC], n. 75529/01, § 128, CEDH 2006-VII).

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tamente necesarios para asegurar que aquél no impedirá el desarrollo del procedimiento ni eludirá la acción de la justicia. En este sentido, la prisión preventiva es una medida cautelar, no punitiva.146. La Corte ha señalado que se incurriría en una violación a la Con-vención al privar de libertad, por un plazo desproporcionado, a per-sonas cuya responsabilidad criminal no ha sido establecida, puesto que equivaldría a anticipar la pena, lo cual contraviene los principios generales del derecho universalmente reconocidos. (CORTE INTE-RAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2007). (Grifou-se)

As decisões das Cortes internacionais são no sentido de se estabelecer critérios para o que seja o prazo razoável. Tais decisões sempre exigem uma subjetividade na análise do estabelecimento de um prazo máximo legal para o processo. Não se trata de um prazo fixo estabelecidos nas convenções de direi-tos humanos, mas a jurisprudência dos tribunais de direitos humanos67. Estabe-lecem parâmetros concretos para garantia do direito da liberdade, efetivação da presunção de inocência, impedindo o abuso e a duração indevida das medidas cautelares pessoais.

A partir da analise apresentada vê-se que há critérios cronológicos com prazos fixos e a tentativa de definir o tempo devido do processo (em termos kairológicos) por critérios que guardam certa subjetividade, principalmente, quando ao analisar a complexidade do caso, se discute temas como a gravidade do crime, caindo assim na argumentação do emergencialismo penal (JAKOBS, CANCIO MELIA, 2007), ou mesmo assumindo a hiper racionalidade inquisi-tório do procedimento penal brasileiro (MARQUES, 2011, p.478-483). Mes-mo argumento como um número excessivo de acusados no processo, não pode ser admitido com justificativa para a demora, vez que em existindo acusados presos, tais processos devem ter prioridade para solução de tais processos. Ou ainda, a atuação da parte, que passaria, por exemplo, por absurdas justificati-vas como uso de manobras processuais como o uso do Habeas Corpus para tentar relaxar prisão ilegal. Argumentos como esse parecem absurdos, pois não se pode sancionar a parte pelo exercício legítimo de seus direitos processuais

67 A estos efectos, la Comisión ha adoptado un test mediante el cual debe determinarse, en primer lugar, si la privación de libertad sin condena está justificada a la luz de criterios pertinentes y suficientes determinados de manera objetiva y razonable por la legislación preexistente; y en segundo lugar, si las autoridades han procedido con especial diligencia en la instrucción del proceso judicial. En caso de comprobarse que la detención y la duración del proceso no están justificadas, debe procederse a restituir la libertad al acusado, al menos en forma provisoria, para lo cual pueden adoptarse las medidas que garanticen su comparecencia al proceso. (Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Informe n°64/99, Caso11.778, Ruth del Rosário Garcés Valladares, Ecuador).

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como razão para o “atraso” do processo. Por fim, a atuação jurisdicional não pode justificar a demora do processo em razão de leis inconstitucionais, ainda não submetidas a controle direto de constitucionalidade, ou mesmo em razão de um número excessivos de processos.

Logo, os critérios estabelecidos podem sim serem usados de forma inadequada, diversa das decisões das Cortes de Direitos Humanos, não repre-sentando assim a proposição de coibir violações de direitos humanos, objetivo precípuo das referidas cortes. Logo, isoladamente tais critérios não se prestam para aferição do tempo devido, na perspectiva do tempo kairológico. Pela aná-lise dos casos submetidos à Corte e à Comissão Americana de Direitos Hu-manos68, pode-se aferir que casos em que se decide sobre duração razoável do processo tem em suas bases situações que antes de tudo afetam o contraditório, a ampla defesa, a fundamentação da decisão e a imparcialidade do juiz, e es-pecificamente no processo penal, não respeitam o princípio da presunção de inocência.

Com base nessa análise dos julgados, que aqui não será possível re-construir em razão dos limites do trabalho, pode-se concluir que o processo em tempo irrazoável é uma consequência do desrespeito dos princípios constitucio-nais penais e do direito fundamental à liberdade e à vida dos sujeitos do proces-so penal, em especial acusado e vítima . O direito ao processo no tempo devido para que se objetive em um tempo devido não pode se pautar pela síndrome da presa que em nome de uma celeridade desconsidera as garantias processuais e, por outro lado, não deve se prolongar de forma a afetar os direitos fundamentais do acusado da liberdade ou das vítimas da conduta. Portanto, o direito ao pro-cesso não pode ficar vinculado estritamente a um prazo cronologicamente me-trificado, mas para se definir o tempo devido é preciso que se adeque ao modelo constitucional de processo, pois a questão do tempo no processo é consequência do desrespeito à comunidade de princípios do processo penal.

concluSão

À guisa de conclusão provisória da discussão do direito ao processo em tempo devido pretende-se demonstrar que sua analise não deve estar atrelada a uma analise de eficiência e celeridade nos termos neoliberais, mas

68 Ver :Gimenez vs. Argentina (1996 – Comissão Interamericana de Direitos Humanos); Suarez Rosero vs Ecuador (1997- Corte Interamericana de Direitos Humanos); Maria da Penha Maia Fernandes vs Brasil (2001- Comissão Interamericana de Direitos Humanos); Hilaire, Constantine y Benjamin y outros vs. Trinidad y Tobago ( 2002 – Corte Interamericana de Direitos Humanos); Ruth del Rosário Garcés Valladares vs. Ecuador (1998 – Comissão Interamericana de Direitos Humanos).

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sim conjugado e dependente ao respeito ao modelo constitucional de processo, como garantia dos direitos fundamentais, em específico o direito fundamental da liberdade do acusado.

Nesse sentido, pretendeu-se ao retomar o paradoxo da dupla implica-ção que o tempo possui em sua perspectiva cronológica e kairológica, reconhe-cendo a diferença entre o tempo do processo e o tempo no processo. O tempo do processo, significando o tempo inerente ao processo, seja por sua perspectiva cronológica de estrutura procedimental de atos, seja por sua perspectiva kairoló-gica de o tempo devido para concretização dos princípios da base principiológica uníssona e pelo respeito da presunção de inocência. Reconhecendo a advertência do caráter paradoxal do tempo que sempre labora entre um futuro passado.

Já o tempo no processo se identifica com o real tempo despendido para a conclusão de um processo. Assim, a noção de duração do processo em prazo razoável, com definição de critérios métricos para aferição da demora, trata-se de uma perspectiva cronológica para o tempo no processo. O tempo no processo, para se dar uma perspectiva kairológica do tempo devido, não pode se pautar exclusivamente pelo prazo.

Conclui-se, temporariamente, que os critérios formados por conceitos abertos definidos nas cortes internacionais de direito humanos pode ser utili-zados argumentativamente em sentido contrario a pretensão de tais cortes que visam punir as violações de direito humanos pelos Estados Membros. Ademais, percebe-se que a demora em tempo irrazoável no processo penal é uma conse-quência do desrespeito aos princípios do modelo constitucional do processo e ao princípio basilar do processo penal, a presunção de inocência. Logo, o tempo devido deve se pautar pelo respeito aos princípios do contraditório, ampla argu-mentação, fundamentação da decisão, imparcialidade e presunção de inocência.

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4a oRganIzação doS tRIbunaIS e a geStão do tempo

gláuciO maciel gOnçalVeS

Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Ge-rais (UFMG). Professor Adjunto de Processo Civil da UFMG. Juiz Fe-deral em Belo Horizonte

SumáRIo: Introdução. 1. A posição dos Tribunais no sistema jurídico. 2. Os Tribunais como organização do sistema jurídico e político. 3. A gestão dos Tribunais. 4. A gestão do tempo na tomada de decisões. Referências.

IntRodução

A complexidade da sociedade é uma realidade da vida moderna, es-tando em constante evolução, o que gerou a necessidade de se promover uma divisão de funções, a partir de um processo de especificação e de diferenciação, formando os subsistemas sociais,69 na definição de Luhmann. Tais funções são produzidas pela sociedade moderna e nascem de seleções, que são o resultado evolutivo do aumento da diferenciação social70.

É a diferenciação social a base sociológica para a teoria luhmanniana, que desloca o foco da análise sociológica do indivíduo para os sistemas funcionalmente diferenciados. A sociedade pré-moderna era estratificada, e a dife-renciação se dava pela qualidade dos indivíduos. Melhorou com o tempo, ao ponto de ampliar a comunicação, antes restrita a determinadas classes sociais, e enxergar também a desigualdade, não uma desigualdade baseada nas classes, mas sim nas funções, que são específicas.

A sociedade estratificada tinha como característica a assimetria, a desigual-dade, estando o indivíduo vinculado à sua classe social. A comunicação era, portanto, restrita, o que não se constata na sociedade diferenciada funcionalmente, na qual a

69 PEDRON, Flávio Quinaud. A função dos tribunais constitucionais para a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, n. 29, pp. 101-110. abr./jun. 2005, p. 102.70 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 152.

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comunicação é bem maior, porque independe de um posto hierarquicamente superior dentro da sociedade, não sendo, por conseguinte, restrita a membros de uma deter-minada classe.

Todos podem se comunicar sobre tudo, já que na sociedade funcional-mente diferenciada o regime de inclusões e exclusões tem outra conotação. Em princípio, todos estão incluídos em todos os subsistemas, formando a inclusão generalizada.

Campilongo71, a propósito da função, sistematiza a teoria luhmanniana, dizendo:

Nas sociedades diferenciadas funcionalmente, ou seja, marcadas pela presença de subsistemas que operam a partir de códigos de comuni-cação específicos, a ‘função’ é a relação do subsistema com o todo. No caso do subsistema político, sua função para o sistema social mais amplo é a de tomar decisões coletivamente vinculantes. No caso do sistema jurídico, sua função é garantir expectativas normativas. Num e noutro caso, a atuação dos subsistemas – como sistemas operativa-mente fechados – se identifica com a reprodução do próprio subsiste-ma a partir de seus elementos internos.

1. a poSIção doS tRIbunaIS no SIStema JuRídIco72

Percebe-se, dessa forma, que a compreensão de qual seja a função dos Tribunais na teoria dos sistemas passa pelo entendimento de que o sistema do direito é fechado, tendo os demais subsistemas, tal como o sistema político, como seu ambiente. É nesse sentido que o direito assimila como jurídicas as decisões tomadas no sistema político, uma vez que só conhece o código direito/não-direito.

Embora próximos, o sistema jurídico e o sistema político não se co-municam. O político, ambiente do sistema jurídico, trabalha irritando este, im-pondo a interpretação do elemento comunicativo externo pelo código direito/não-direito. A irritação nada mais é do que a capacidade de reação a eventos causados por fatores externos73.

71 CAMPILONGO, Política ...Op. Cit, 2002, p. 155.72 A expressão tribunais é aqui utilizada em sentido diverso do Processo Civil (que só considera como tais os órgãos de instância recursal), de forma a abranger todos os órgãos jurisdicionais, incluídos os juízos de instância inicial. A opção pela utilização do termo, apesar de seu sentido heterodoxo, deve-se à ausência de palavra que descreva com clareza todos os responsáveis por decisões na outorga da tutela jurisdicional.73 CORSI, Giancarlo. Sociologia da Constituição. Trad. Juliana Neuenschwander Magalhães. In

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O código próprio do sistema jurídico é, então, o do direito/não-direito e desempenha excepcional função para superar o paradoxo de um sistema auto--referencial, no dizer de Campilongo74, com qual direito decidir e se algo é ou não conforme o direito?

A função dos Tribunais reside justamente na aplicação do código es-pecífico do sistema jurídico e sua posição está determinada pela distinção entre legislação e jurisdição. Dita distinção é importante, porque impede que as ques-tões jurídicas sejam resolvidas a partir de um ponto, não precisamente afeto aos Tribunais.

Diz Luhmann que somente no século XVIII a diferenciação do sis-tema jurídico em função legislativa e função jurisdicional se impôs75. Não obstante essa distinção, desde tempos imemoriais já se tem notícia da solução de conflitos76. Na Antiguidade, a sociedade depositava no misticismo religioso significativa parcela da praxe judiciária, ainda sem qualquer sistematização. À época da formação da civitas romana77, aos pontífices coube dar forma ao pro-cedimento, por meio de simbolismos e rituais, nascendo, por isso, a jurisdição, que era exercida pelos sacerdotes com o objetivo de disciplinar a autotutela dos litigantes78.

Também se vislumbra o embrião da jurisdição no julgamento feito pelas tribos, que solucionavam os conflitos após reunião de seus membros em assembleia, prática comum entre os povos germanos, no dizer de Tácito, e entre os gregos dos tempos homéricos, conforme relatado na Odisséia.79

Já no Egito, o julgamento das questões menos e mais graves era feito de forma diferenciada. As primeiras estavam afetas aos juízes singulares, dis-persos pelas cidades. As segundas eram resolvidas por um Tribunal composto de trinta sacerdotes, chamados de soutnou en os kat en mã80 (auditores das quei-xas do Tribunal de Justiça), os quais se reuniam secretamente para a decisão,

Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 35, jan./jun. 2001, p. 173.74 CAMPILONGO, Política ...Op. Cit., 2002, p. 160.75 LUHMANN, Niklas. A posição dos tribunais no sistema jurídico. In Revista AJURIS, Porto Alegre, n. 49, jul. 1990, p. 150.76 MACIEL GONÇALVES, Modificações de Competência no Processo Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, pp. 8-10.77 O processo civil romano pode ser delimitado em três períodos: o das legis actiones, que vai da fundação de Roma (754 a. C.) até o fim da República; o per formulas, que formou com o antecedente o ordo iudiciorum privatorum (149 a. C. a 305 d. C.); e o último, da cognitio extra ordinem, que nasceu com o Principado (27 a. C.) e findou com o Império Romano do Ocidente.78 TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos de. Lições de história do Processo Civil romano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 41.79 GUIMARÃES, Mario. O juiz e a função jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p. 20.80 LENORMANT, Histoire antique des peuples de l’orient, p. 343, apud GUIMARÃES, O juiz ...Op. Cit., 1958, p. 20.

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que era proclamada pelo presidente, após se dirigir à parte vencedora, exibindo a efígie de Mâ, a deusa da Verdade.

Embora o direito romano possuísse dois institutos ordinários de de-fesa de direitos – a actio e os interdicta –, somente o primeiro possuía natureza jurisdicional81. A jurisdição era concebida como simples declaração de direitos, como, aliás, se depreende de sua significação morfológica (dicção do direito), o que a afastou dos interditos, cuja característica básica – a ordem que deles emana – nada mais era que um ato de vontade do pretor, não de inteligência, que pudesse corresponder a uma declaração de existência do direito82.

Essa concepção de jurisdição do direito romano perpetuou-se até nos-sos tempos, no sentido de que ela só estaria presente no processo de conhe-cimento, em razão do efeito declaratório do provimento. Todavia, de forma equivocada. A jurisdição também está presente nas tutelas cautelar e executiva. O juiz, além de dizer o direito aplicável, igualmente exerce jurisdição ao fazer atuar a norma jurídica concreta definida na sentença (tutela jurisdicional ime-diata), bem como ao assegurar eficácia prática a providências cognitivas ou executivas (tutela jurisdicional mediata)83.

Conquanto a noção de composição de conflito seja contemporânea à formação dos grupos sociais, transformados em Estados na Idade Média, não se tinha, como afirma Luhmann, uma divisão básica entre o órgão legiferante e o órgão aplicador da lei. A divisão funcional do poder, que é uno, teve origem na evolução do constitucionalismo inglês, notadamente com a Revolução Glo-riosa, que culminou por delegar ao Parlamento algumas funções reservadas ao monarca, até então detentor de autoridade absoluta84. Embora já visualizada por Aristóteles, que repartia as funções do Estado em deliberante (tomada de de-cisões fundamentais), executiva (aplicação pelos magistrados dessas decisões) e judiciária (fazer justiça)85, e esboçada na China pela dinastia Tang (século VII)86, bem como delineada por Locke no Segundo Tratado do Governo Civil, a doutrina teve como embaixador Montesquieu, que a sistematizou e a divulgou na obra L’Esprit des Lois (1748), tornando-a uma das mais notáveis doutrinas filosófico-políticas de todos os tempos87.

81 Os extraordinários – stipulationes praetoriae e restitutio in integrum – juntamente com os interdicta nada mais eram que providências de natureza administrativa, exercidas pelo pretor.82 BAPTISTA DA SILVA. Ovídio Araújo. Jurisdição e execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, pp. 26-27.83 MACIEL GONÇALVES, Modificações ...Op. Cit., 2002, p. 10.84 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1983. p. 125.85 FERREIRA FILHO, Curso ...Op. Cit., 1983, p. 125.86 CUNHA, Fernando Whitaker da. Teoria geral do Estado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1990. p. 447.87 Repercutiu, inclusive, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de

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Segundo Luhmann, a diferenciação de um sistema jurídico autocons-tituinte encontra respaldo organizacional na diferenciação de legislação e juris-dição88, que no início não foi mais profunda, porque poria abaixo o Estado, que estava se formando.

Os Tribunais, encarregados da aplicação do código direito/não-direi-to, constituem o centro do sistema jurídico. Tudo o mais, inclusive a legislação, representa, para a teoria dos sistemas, a periferia89. Os Tribunais são coagidos, pelo próprio sistema, a resolver o conflito, de forma que a não-decisão não é permitida. A proibição da recusa da Justiça é interna ao próprio sistema e faz com que o juiz se transforme até mesmo em criador do Direito90.

2. oS tRIbunaIS como oRganIzação do SIStema JuRídIco e polítIco

Os Tribunais constituem uma organização, no sentido de que são sis-temas voltados para decisão. Enquanto tal, apresentam as características das organizações: pessoal, carreira e hierarquia. É uma organização a um só tempo política e jurídica, o que significa que na sua atividade podem ser observados os acoplamentos de direito e política, ou seja, também suas diferenças.

As diferenças entre direito e política no interior dos Tribunais podem ser observadas, por exemplo, nos aspectos relativos à sua gestão. Se a decisão jurídica é, regra geral, exclusiva e juridicamente orientada, o acesso à prestação jurisdicional é produto de decisões políticas (sem menosprezar os condiciona-mentos econômicos), que não se exaurem no momento legislativo, ou seja, no momento da produção das normas que regulam o acesso aos Tribunais, mas também – e isso é largamente ignorado pela doutrina – pelos critérios internos de gestão dos Tribunais.

Em que medida os Tribunais, notadamente os Federais, enquanto or-ganização político-jurídica, estão equipados para operar sua gestão em prol da inclusão social e do acesso à Justiça ou, mesmo, interessados nisso?

A Justiça Federal brasileira foi dividida, pela Constituição de 1988, em cinco Tribunais Federais91. Anteriormente unificada no Tribunal Federal de Recursos, que foi extinto, a organização da Justiça Federal passou a ser des-centralizada, com a criação dos Tribunais Regionais Federais da 1ª, 2ª, 3ª, 4ª

1789, que a converteu em dogma constitucional. O artigo 16 preconizava: “Toute société dans laquelle la garantie des droits n’est pas assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée, n’a point de constitution.”88 LUHMANN, A posição dos tribunais no sistema jurídico. Revista AJURIS, Porto Alegre, n. 49, jul. 1990, p. 151.89 LUHMANN, A posição ...Op. Cit., 1990, p. 150.90 LUHMANN, A posição ...Op. Cit., 1990, p. 163.91 Artigo 27, § 6º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias de 1988.

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e 5ª Regiões, com sedes, respectivamente, na Capital federal e nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Recife92. Por força do artigo 96 da Constituição, cabe a cada Tribunal organizar seus órgãos diretivos, sendo que a administração é dirigida pelo respectivo presidente, auxiliado pelo Conselho de Administração. Embora a formulação e a implantação da política administrati-va seja ato do Conselho de Administração de cada Tribunal, fica ele dependente da iniciativa do presidente, de forma que, em regra, o Tribunal atua de acordo com a vontade e a visão do seu gerente máximo.

No início de funcionamento dos Tribunais Regionais Federais, era razoável que a preocupação estivesse relacionada com a dotação mínima de recursos humanos e materiais para a instalação dos juízes e servidores, e para o cumprimento da missão constitucional de ser a segunda instância da Justiça Federal, merecendo ressaltar que inúmeros feitos que aguardavam julgamento pelo Tribunal Federal de Recursos foram, com a instalação, redistribuídos aos Tribunais Regionais Federais. Contudo, passados mais de 23 anos da instalação dos Tribunais93, poucas têm sido as iniciativas de não só julgar as demandas, ou seja, aquelas voltadas para o acesso à Justiça e para a inclusão social.

A 1ª Região desenvolveu, em 2006, um plano típico de inclusão so-cial, a partir da constatação, em Cáceres/MT, que diversos condenados por trá-fico internacional de drogas eram aliciados como pequenos transportadores de drogas, popularmente conhecidos como “mulas”, que não têm no tráfico sua atividade habitual. A localização geográfica da cidade, na divisa do Brasil com a Bolívia, e a pobreza da população, que quase sempre ingressava nesse mercado ilícito para suprir as necessidades básicas da família, serviram de chamariz para os verdadeiros traficantes. Não adiantava apenas processar e condenar essas pessoas. Era preciso atuar, não na esfera jurisdicional, mas na política, uma vez que se constatou a falta até mesmo de esclarecimento a essas pessoas. Dessa forma, a Subseção Judiciária de Cáceres criou uma campanha de combate ao tráfico internacional de drogas, intitulada “Justiça em ação no combate ao trá-fico internacional de drogas em Cáceres e região”94, com duas fases distintas: a primeira, de cunho meramente educativo, consistia na impressão de 12 mil fol-ders e 2.400 cartazes, em português e em espanhol, para distribuição às pessoas que transitam na região de fronteira, esclarecendo que a conduta de transporte de drogas é criminosa, a pena que pode ser cominada, além de outros malefí-cios, e incentivando a conduta reta. A segunda fase, de natureza preventiva e

92 Determinação da Lei 7.727/89.93 Embora criados em 5 de outubro de 1988, com a promulgação da Constituição, os cinco Tribunais Regionais Federais foram instalados em março e abril de 1989.94 Disponível em: http://www.jf.gov.br/portal/publicacao/engine.wsp?tmp.estilo=3&tmp.area=83&tmp.texto=8949.

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repressiva, teve por objetivo impedir o aliciamento da população e realizar o combate ao crime.

Outra atuação de grande mérito da 1ª Região foi a formulação de con-vênios com o Tribunal de Justiça do Amapá e com o Governo do Estado do Amazonas, o que se verá mais à frente, para a utilização dos respectivos bar-cos para levar o Juizado Especial Federal Itinerante a diversas comunidades do norte do País, que têm inúmeras dificuldades de se deslocarem dentro da região amazônica e que, sem o Estado batendo à sua porta, nunca teriam acesso à Justiça.

No âmbito da 2ª Região, registra-se a reforma do antigo prédio que abrigou o Supremo Tribunal Federal, no centro do Rio de Janeiro, que, inau-gurado em 2001, serve como um grande centro de apresentação de recitais de música, de exibição de filmes e peças teatrais e de exposições diversas. O se-tor arte-educação do Centro Cultural da Justiça Federal desempenha também o interessante papel de levar aos estudantes do ensino fundamental e médio da capital fluminense um pouco da história do Judiciário brasileiro e da antiga Ca-pital federal, bem como de promover uma reflexão sobre patrimônio histórico, cultura, justiça e sociedade95.

A 3ª Região publicou, em 2003, a segunda edição do Manual de Di-reito para Jornalistas.96 O jornalista que acompanha diuturnamente o noticiário do Judiciário não tem conhecimento técnico-jurídico escorreito para divulgar uma informação precisa à sociedade, por intermédio de jornais, revistas, rádio ou televisão. Embora incluído socialmente, vê-se excluído do sistema jurídico, por causa dos vários tipos de ruído de comunicação, de forma que é salutar a iniciativa do Tribunal de traduzir a linguagem carregada, própria do sistema jurídico, para uma mais compreensível, uma vez que é por intermédio do jorna-lista que muitos terão acesso ao que os Tribunais decidem.

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região tem um excelente progra-ma de gestão ambiental, dividido em sete grandes tópicos, quais sejam: a) Des-carte e coleta seletiva de materiais; b) Descarte de lâmpadas fluorescentes; c) Descarte de resíduos ambulatoriais; d) Descarte de óleos; e) Descarte dos filtros de ar-condicionado; f) Educação ambiental; e g) Fortalecimento da imagem institucional97. Destaca-se entre eles a questão da educação ambiental, iniciada em 2004. São confeccionadas cartilhas, distribuídas aos servidores, aos juízes, ao público que frequenta as dependências do Tribunal e à comunidade em ge-ral, com o propósito de ensinar os melhores métodos de preservação do meio ambiente, seja no tocante ao melhor aproveitamento do lixo, seja quanto ao

95 Disponível em: http://www.ccjf.trf2.gov.br/instit/art_edu.htm.96 Disponível em: http://www.trf3.gov.br/manualacom/index.htm.97 Disponível em: http://www.trf4.gov.br/trf4/upload/Internet_v4.pps.

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adequado consumo da água pela população localizada no entorno de determi-nadas bacias hidrográficas, o que, sem dúvida, contribui para a inclusão social de todos aqueles desprovidos de acesso às várias formas de viver em equilíbrio com o meio ambiente.

A 5ª Região tem se preocupado bastante com a qualidade dos seus serviços98, o que diretamente influencia a busca de satisfação do público que procura o Judiciário federal. Criou um plano estratégico, que tem por objeti-vos implementar a justiça de resultados, promover a articulação institucional, desenvolver a gestão avançada de pessoas, desenvolver a excelência da gestão, desenvolver a gestão de processos e melhorar a infra-estrutura.

O Conselho da Justiça Federal, órgão que supervisiona administrati-vamente e em questões orçamentárias a Justiça Federal, engajou toda a Justiça comum Federal no projeto Soldado Cidadão, desenvolvido pelo Executivo fe-deral em 2004 e estendido a 2005, para dar formação profissionalizante a 28.398 recrutas em todo o País. Por meio de deliberação do Conselho, juízes federais voluntários lecionaram para soldados, em todos os estados brasileiros, noções básicas de direito constitucional, cidadania e organização do Estado democráti-co, com o objetivo de levar mais conhecimento àqueles que cumprem o serviço militar obrigatório e que, no ano seguinte, desligados das Armas Nacionais, estarão iniciando-se ou de volta ao mercado de trabalho99. Agregar mais conhe-cimentos leva ao exercício de uma cidadania mais crítica, proporcionando aos soldados melhores condições de acesso ao mercado de trabalho, por meio da promoção de cursos profissionalizantes e de melhor qualificação social.

Isso significa que, para além do modelo burocrata de gestão das or-ganizações, os Tribunais podem avizinhar-se de uma forma de gestão politi-camente orientada para a efetivação dos direitos fundamentais. Refere-se ao paradigma da gestão pública, qual seja, a gestão que não se incumbe apenas de administrar os Tribunais ou de solucionar os conflitos, mas também de inves-tigar a vontade do jurisdicionado para melhor atuar como o Estado em si. Daí José Eduardo Faria100 afirmar que o maior desafio da Justiça no País neste século XXI é, sem dúvida, tornar efetiva a sua relação com os excluídos, atuando para a pacificação social.

98 Disponível em: http://www.trf5.gov.br/escritorio_qualidade/Plano_estrategico/PGS.pdf.99 Disponível em: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=75402&tmp.area_anterior=44&tmp.argumento_pesquisa=soldado%20cidadão.100 FARIA, José Eduardo. Direito e justiça no século XXI: a crise da justiça no Brasil. Disponível em: http://www.ces.uc.pt/direitoXXI/comunic/JoseEduarFaria.pdf.

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3. a geStão doS tRIbunaIS

Desde o final da década de 1980, os Tribunais europeus têm adquirido crescente visibilidade social, ao propiciar o debate de uma necessária modifica-ção de atitude por parte do Judiciário. A sociedade não se contenta mais com o simples papel que lhe é atribuído de resolver os conflitos, já que a solução das pendengas é demorada, e não se justifica isolar os Tribunais do dever institucio-nal de se formar um Estado Democrático de Direito. Os Tribunais, como ope-radores da função estatal judiciária, passam a ter a obrigação de colaborar com o restante do Estado na formulação de políticas para a sociedade. Lógico que o grande formulador de políticas públicas continua sendo o Executivo, concebido como o grande administrador, inclusive com recursos orçamentários destinados a essas políticas, o que, no entanto, não exclui a participação dos Tribunais, que têm se preocupado crescentemente com as novas formas de inclusão social.

No Brasil, a virada quanto às atribuições do Judiciário iniciou-se no final do século XX. Os Tribunais precisavam de tempo para adequar-se às no-vas modificações trazidas no bojo da promulgação da Constituição de 1988, que sucedeu mais de vinte anos de regime de exceção no País. Já cientes de suas obrigações constitucionais, passaram a ouvir e a considerar os reclamos da sociedade. De nada adiantavam os meros julgamentos das demandas, pois a litigiosidade continuava a existir, tanto pela ampliação do acesso à Justiça quanto pelo aumento da população, com a melhora da situação econômica da população.

Por outro lado, a criação de mais e mais órgãos jurisdicionais, sejam varas sejam Tribunais, e a constante reformulação legislativa101, embora neces-sárias num primeiro momento, não podem se eternizar. Entram em cena, então, as novas tendências de reforma da administração e gestão da Justiça.

A reforma pressupõe descontentamento. E esse descontentamento é antigo. Dinamarco lembra que a mais grandiosa tentativa de levantar dados para diagnosticar as causas do mau funcionamento da Justiça ocorreu nos anos de 1970102. Consistiu no Projeto Florença, idealizado por Mauro Cappelletti, com pesquisas mundo afora, em diversos ramos do saber, com o propósito se res-ponder à indagação sobre o motivo pelo qual a Justiça não satisfaz os anseios de quem precisa dela. Os resultados foram colhidos, problemas foram constatados e soluções foram propostas, mas pouco mudou depois de trinta anos. De toda

101 Interessante a observação de BARBOSA MOREIRA (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual. 9. série. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 373) de que é enganosa a ideia de que uma solução satisfatória para todos os males do processo e, sobretudo, para a lentidão da justiça, venha sempre pela via legislativa.102 DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 14.

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forma, chegou-se à conclusão, na mesma linha que escrevera Carnelutti, de que toda a celeuma para a solução da ineficiência passa pela melhora de três pontos: “a lei processual, as estruturas judiciárias e, acima de tudo isso, o homem que opera o processo”103.

Em 2001, estudo do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, órgão criado em 1996, ligado à Universidade de Coimbra, em convênio com o Ministério da Justiça de Portugal, coordenado cientificamente pelo renomado professor Boaventura de Sousa Santos, identificou diversas causas da ineficiên-cia da Justiça104. Destacou a pesquisa:

[...] a insuficiência de infra-estruturas judiciárias e de recursos huma-nos; o aumento considerável de litígios em resultado de alterações de ordem legislativa, social, econômica ou outra; a crescente com-plexidade dos casos, quer no âmbito da justiça cível, quer no âmbito da justiça criminal; a escassez de recursos financeiros; a ausência ou limitação de recurso aos meios alternativos de resolução de conflitos; a excessiva burocratização dos procedimentos judiciais; a ausência de mecanismos de comunicação e interacção expeditos no interior do sistema judicial e nas relações deste com outras instituições; uma le-gislação social pouco flexível; os elevados níveis de desperdícios e disfuncionalidades, decorrentes de uma estrutura burocrática; a opa-cidade do sistema judicial; e sua a distância social.

Os Tribunais desenvolviam, até o final do século XX, um modelo de gestão do início do século. A centralização da tomada de posições na pessoa do presidente, a alternância de todo o quadro diretivo a cada mudança da presidên-cia (o que se dá em regra a cada dois anos), o apego a formas já previstas e o medo do novo conspiravam contra a guinada da moderna gestão. Contudo, os novos tempos chegavam, e a sociedade pedia mudanças, como demonstra pes-quisa feita pelo IBGE, em 2004, e lembrada por Polyana Washington de Paiva, segundo a qual o povo atribuiu ao Judiciário o antepenúltimo lugar em imagem positiva das instituições brasileiras105.

A gestão tradicional deu lugar ao novo modelo de gestão pública, cha-

103 DINAMARCO, Nova era ..Op. Cit.., 2004, p. 15.104 OBSERVATÓRIO Permanente da Justiça Portuguesa. A administração e gestão da justiça: Análise comparada das tendências de reforma. Portugal, comparada das tendências de reforma, pp. 13-14. Disponível em: http://opj.ces.uc.pt/pdf/5.pdf.105 PAIVA, Polyana Washington de. Para uma justiça federal melhor: uma melhor comunicação com os jurisdicionados e a sociedade. Inédito. [s.l.n.], [199-], pp. 8-9.

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mado pelos portugueses de “modelo gestionário”106, que sucedeu o burocrático, com base nos seguintes princípios organizacionais: da liderança, da motivação dos servidores, do desenvolvimento de uma cultura organizacional, da comu-nicação e da introdução de novas tecnologias. A liderança, para organizar o serviço, dividir as tarefas, coordenar os que lhe estão afetos, visando a um de-senvolvimento racional da organização. A motivação dos servidores, essencial para desenvolver um trabalho em grupo concatenado. O desenvolvimento de uma cultura organizacional, para expressar a relevância do trabalho individual e, ao mesmo tempo, a importância dentro do grupo, bem como para verificar se os resultados alcançados estão dentro daqueles planejados. A comunicação, como uma ferramenta indispensável para falar entre os atores do órgão, com o público-alvo ou com setores externos à organização. E a introdução de novas tecnologias, como fator indispensável para obter melhor desempenho das ativi-dades, que só vêm aumentando com o passar do tempo.

A eficácia do Judiciário passa, dessa forma, a depender do abandono do modelo burocrático de gestão e do desenvolvimento de um modelo novo, que tem por mote a apresentação de diferentes sistemas de gestão e de adminis-tração. Tais sistemas já são uma realidade na Justiça Federal da 1ª Região, a) ao aprovar plano de metas da administração; b) ao fomentar a continuidade de estudo por parte de juízes, inclusive com o afastamento de suas funções (estudo em local diferente da atuação) ou a redução de trabalho (estudo na mesma cida-de de trabalho)107 e de seus servidores, autorizando para estes, sempre que pos-sível, a licença-capacitação e distribuindo a eles bolsas de estudo para cursos de especialização;108 c) ao instituir exame de saúde anual gratuito aos servidores e juízes;109 e d) ao adquirir modernos equipamentos de informática, modernizando o acervo das varas e substituindo os monitores por LCD, destinando laptops para os juízes e adquirindo scanners para a digitalização de autos.

4. a geStão do tempo na tomada de decISõeS

Conquanto o novo modelo de gestão seja, em menor ou maior grau, uma realidade na Justiça brasileira, algumas dificuldades têm sido constatadas pe-los administradores, representando empecilho no cumprimento da atividade básica do Judiciário, qual seja, a de compor os conflitos. O maior problema está, sem dúvi-da, no tempo, que nunca é suficiente para a resolução das questões administrativas

106 OBSERVATÓRIO Permanente ...Op. Cit., p. 18. Disponível em: http://opj.ces.uc.pt/pdf/5.pdf.107 Resolução TRF 1 21, de 19-12-97, alterada pela Resolução TRF1 1, de 17-1-03. 108 Resolução TRF 1 600-9, de 21-8-07.109 Resolução TRF 1 600-6, de 11-7-07.

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e jurisdicionais. Surge, então, a necessidade de gerir o tempo.O tempo também é passível de gestão por parte dos Tribunais. A decisão

jurídica não apenas se dá no tempo, como também produz tempo. A gestão do tem-po, certamente, foi fator determinante para a elaboração da proposta de criação dos Juizados Especiais Federais. Desde a unificação processual de 1939, o procedimen-to mais utilizado para se chegar ao termo final da demanda pouco mudou. O rito ordinário do procedimento comum, utilizado nos casos em que não há outro rito ou procedimento diferenciado previsto e, por isso mesmo, responsável por conduzir ao provimento a maioria das demandas, não foi suficiente para dar uma resposta adequada àquele que procura o Estado-juiz para resolver um conflito que entende existir. Até 1984, quando veio ao mundo a primeira lei que procurava facilitar a so-lução de controvérsias, ainda que extrajudicialmente, muitos ataques haviam sido perpetrados contra o rito ordinário, os quais prosseguiram, pelo menos até 1995, quando surgiu, efetivamente, uma forma diferente de resolver os conflitos jurisdi-cionais. Percebe-se, com isso, a primeira preocupação com a gestão do tempo, que partia da consideração de que o arcabouço existente não era hábil a fornecer um resultado satisfatório.

Conquanto não seja o objetivo deste estudo, vale registrar que a Justiça especializada do Trabalho, com praticamente a mesma legislação, conseguiu, em algumas Regiões, adotar procedimentos internos que serviram para melhor gerir o tempo, no âmbito de sua atuação. Embora trabalhe com direitos disponíveis, tenha mais unidades na Capital e no interior do estado-membro, seja descentralizada, uma vez que há Tribunais do Trabalho em quase todos os estados da Federação e cultue a conciliação, o que a diferencia da Justiça comum Federal, é de se reconhe-cer que tanto os administradores dos Tribunais quanto os administradores das varas do Trabalho tiveram, e têm, consciência de que é preciso utilizar bem o tempo. A prolação da sentença em até dez dias depois de realizada a audiência e o cumpri-mento de prazos de julgamento de recursos são alguns dos aspectos que destacam a 3ª Região da Justiça do Trabalho e que podem servir de exemplo para a congênere, a Justiça comum Federal.

A gestão do tempo pelos Tribunais é tarefa difícil. Partindo do pressu-posto de que eles não podem criar cargos de servidor ou de juiz independente-mente de lei e não gozam de autonomia orçamentária irrestrita para modernizar todas as suas estruturas ou para instalar varas criadas sem observar cronograma anual, bem como de que contingenciamentos têm sido impostos tanto pelo Exe-cutivo Federal quanto pelos órgãos que cuidam da supervisão orçamentária do Judiciário, como o Conselho da Justiça Federal, devem, então, utilizar o manan-cial de recursos humanos e de recursos tecnológicos de que já dispõem para que possam promover melhor aproveitamento do tempo.

A distribuição de servidores entre os diversos órgãos judiciários, de

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acordo com sua formação básica e seu interesse e o aproveitamento de talentos em determinadas linhas de conhecimento, que poderiam desenvolver projetos para a melhora da prestação jurisdicional, são algumas das facetas da gestão do tempo nos Tribunais. Servidores mais satisfeitos e que sabem desempenhar a atividade para a qual foram designados representam, sem dúvida, melhoras no serviço, encurtando o tempo no cumprimento de obrigações relacionadas às atividades do trabalho.

A política de pessoal é deveras importante quando se discute escassez de tempo. Todavia, de maior relevância é a utilização de mecanismos inovado-res, só agora surgidos, para atingir o mesmo objetivo que se atingia antigamente por outros meios. A tecnologia vem ocupar esse espaço. Dos atos procedimen-tais à mão passou-se aos atos datilografados. Da máquina de escrever passou-se à máquina elétrica, que chegou ao computador. Em menos de vinte anos ocor-reu substancial alteração do modo de se praticar o ato do procedimento, com inimaginável ganho de tempo.

Um problema ainda permanece: autos físicos. Mas só por enquanto. A intenção da Justiça Federal é eliminar gradualmente o papel, transformando tudo que entra em mídia eletrônica, até que não existam mais autos físicos nas prateleiras das secretarias de varas e de Tribunais.

Dois projetos-piloto se iniciaram na Justiça comum Federal: um rela-tivo à execução fiscal e outro, ao Juizado Especial Federal. Em algumas varas, as execuções fiscais promovidas pela União são recebidas, distribuídas e pro-cessadas por meio eletrônico, com alguns percalços, como sói acontecer, em virtude da complexidade de se realizar alguns atos da execução, como penhora, adjudicação e arrematação exclusivamente em meio eletrônico. A solução en-contrada, até que todos os operadores possam falar a mesma língua – qual seja, a eletrônica – é efetivar o ato fisicamente e, depois, digitalizá-lo, passando-o ao meio eletrônico. O maior projeto é o do Juizado Especial Federal, que nasceu quase juntamente com o próprio Juizado. Ou seja, partiu-se de nova mentalida-de, e por isso está mais avançado, funciona bem e tem alcance muito maior do que o da execução fiscal.

Deve-se ressaltar que a criação do Juizado Especial Federal eletrô-nico ou virtual somente foi possível a partir da disposição dos órgãos públicos – União, autarquias, fundações e empresas públicas federais – de aderirem ao novo sistema. A comunicação entre todos era essencial, haja vista as dificulda-des surgidas inicialmente, que todos os atores do processo desejavam superar.

Na 2ª, 3ª, 4ª e 5ª Regiões da Justiça Federal existem hoje varas de Jui-zado exclusivamente eletrônico, sem autos físicos. Na 1ª Região, em razão de sua amplitude geográfica e da necessidade de instalar varas independentemente da existência de recursos orçamentários para o desenvolvimento do projeto do

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Juizado eletrônico para todas as unidades da Federação, decidiu-se pela instala-ção gradativa do Juizado eletrônico, de forma que o acervo das varas nas capi-tais dos estados e no Distrito Federal é composto de autos físicos, os antigos, e de autos eletrônicos, os novos.

A tramitação de um feito no Juizado eletrônico não representa, como podem pensar alguns, empecilho ao acesso à Justiça. A pessoa natural é sempre autora e, mesmo que não tenha acesso a equipamentos de informática, terá sua petição inicial autuada eletronicamente, mediante a digitalização do requeri-mento e de eventuais documentos em scanners de última geração, às expensas do órgão jurisdicional.

A utilização da tecnologia na gestão do tempo pelos Tribunais foi tão debatida que a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) criou comis-são de juízes para elaborar texto de anteprojeto de lei sobre processo eletrônico. Como primeira proposta popular dirigida à Câmara dos Deputados, o texto foi enviado à Comissão de Legislação Participativa, que o aceitou, o discutiu e, juntamente com o Senado Federal, o aprovou. Foi promulgada, então, a Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006, que dispõe sobre o processo eletrônico e que dita a sentença de morte dos autos físicos, a ser executada num futuro próximo.

A inovadora Lei 11.419/06, que admite o meio eletrônico na tramita-ção de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão das peças proces-suais, aplica-se aos Juizados Especiais e aos processos civil, penal e trabalhista, em qualquer grau de jurisdição. As assinaturas das partes e do juiz passam a ser feitas eletronicamente, bem como as intimações e algumas citações. Acaba o Diário da Justiça físico, que se transforma em eletrônico, outorgando validade aos atos publicados no sítio do Tribunal.

Com base na nova norma, que chancelou os atos processuais reali-zados anteriormente à sua vigência, desde que não tenha causado prejuízo às partes, os Tribunais já estão atuando. O Tribunal Regional Federal da 1ª Re-gião e o Tribunal de Justiça de Sergipe começaram a enviar eletronicamente ao Supremo Tribunal Federal os recursos extraordinários admitidos, isso em 2007110. Hoje, por determinação do próprio Supremo Tribunal, todos os recur-sos extraordinários devem chegar lá de forma eletrônica. Os Juizados Federais eletrônicos estão andando a todo vapor, e o Supremo Tribunal Federal passou a disponibilizar o Diário da Justiça de forma eletrônica no dia 23 de abril de 2007, ainda que concomitante ao diário físico, sendo que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região e o Tribu-nal de Justiça do Rio Grande do Sul já aboliram a publicação de atos no jornal

110 Disponível em: http://noticias.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas/ler.asp?CODIGO=236198&tip=UN&param=eletrônico.

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oficial em papel111. A assinatura eletrônica foi utilizada pela então Presidente do Supremo Tribunal Federal em 19 de abril de 2007, para decidir pedido de sus-pensão de segurança112, e em 22 de junho de 2007 houve a primeira decisão em recurso extraordinário encaminhado eletronicamente ao Supremo e processado dessa forma113.

De todos os atos praticados pelos Tribunais procurando gerir melhor o tempo, o de maior importância foi, sem dúvida, o tomado pelo Sr. Ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal, enquanto relator do Inquérito 2.245. Referido inquérito apurava, como noticiado pela imprensa, atos pratica-dos por ex-ministros de Estado, atuais e ex-deputados federais e ex-prestadores de serviços do Governo Federal, envolvendo 40 acusados, que teriam participa-do de diversos crimes: peculato, corrupção ativa e passiva, quadrilha, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Considerando a necessidade de o acusado ter acesso às provas indiciárias constantes da denúncia, seria indispensável que os autos, compostos de 29 volumes e 86 apensos, totalizando cerca de 14 mil páginas, fossem disponibilizados a cada um deles. Isso, sem dúvida, atrasaria sobremaneira a apreciação da denúncia, que deveria se dar por todos os juízes daquela Corte. O Supremo Tribunal decidiu, então, digitalizar todos os autos do inquérito e disponibilizá-los aos acusados e aos seus advogados por mídia eletrônica, acessível a qualquer momento114. A apreciação da denúncia, que foi feita após cinco sessões seguidas do órgão plenário do Supremo Tribunal Fede-ral, pôde ser concluída em tempo razoável, considerando o número de acusados e a complexidade do caso.

O fim do modelo burocrático de gestão e a adoção do modelo ges-tionário favorecem a criatividade. Os Tribunais, ainda que tenham se atrasado na aplicação na nova forma de administração, estão atuando, seja para melhor gerir, seja para gerir com alto desempenho, otimizando o tempo, que lhe é caro.

111 Disponível em: http://noticias.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas/ler.asp?CODIGO=228073&tip=UN&param=eletrônico. 112 Disponível em: http://noticias.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas/ler.asp?CODIGO=229547&tip=UN&param=eletrônico. 113 Disponível em: http://noticias.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas/ler.asp?CODIGO=236425&tip=UN&param=eletrônico.114 Disponível em: http://noticias.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas/ler.asp?CODIGO=192386&tip=UN&param=mensalão%20digitalização.

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5podeReS InStRutóRIoS do JuIz à luz da JuRISpRudêncIa do

colendo SupeRIoR tRIbunal de JuStIça

Jader Ferreira guimarãeS

Professor do Mestrado em Direito Processual Civil na UFES e da graduação na UVV. Doutor pela PUC/SP.

VitOr SOareS SilVareS

Aluno do mestrado em Direito Processual Civil pela UFES. Subpro-curador Geral do Município de Vitória. Pós-graduado lato sensu em Direito processual Civil pela Faculdade de Direito de Vitória/ES.

SumáRIo: Introdução. 1. Conceito de “prova”. 1.1 Direito constitucional à prova. 1.2 Meios de prova e meios de obtenção da prova: distinção. 1.3 Provas típicas e atípicas. 2. A inicia-tiva da prova pelo juiz à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Conclusão. Referências.

IntRodução

O presente estudo tem por escopo examinar qual o alcance da inicia-tiva probatória do juiz no que concerne a produção de provas à luz da jurispru-dência do Colendo Superior Tribunal de Justiça.

Prefacialmente, tecer-se-á breves considerações acerca do conceito de prova, seus meios, tipos, se trata de instituto cujo berço é constitucional, ou não, dentre outros pontos acerca do instituto em questão. Em seguida, faz-se-á pesquisa no site/sítio do “Tribunal da Cidadania” objetivando, enfim, consig-nar a exegese sufragada pela citada Corte Superior sobre o tema objeto desta pesquisa.

Desta forma, e no que pese a importância doutrinária para o presente estudo, sobretudo no que tange as premissas que serão fincadas nos primeiros tópicos, impõe-se registrar que, para fins deste trabalho, o site/sítio do Superior

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Tribunal de Justiça será o instrumento mais importante de nossa pesquisa.A base teórica será arrimada em autores como Franscesco Carnelutti,

Francisco Augusto das Neves e Castro, Michelli, o Dicionário de Filosofia Ni-cola Abbagnano além, é claro, de outros doutrinadores de escol.

Enfim, além de realizar a pesquisa que nos propusemos levar a efeito, arrostar-se-á, tangencialmente, pontos controvertidos sobre os institutos objeto do presente estudo. E, por fim, consignaremos nossa visão acerca do ponto central desta pesquisa.

1. conceIto de “pRova”

Prefacialmente, devemos advertir que o vocábulo em questão, seja para o processo, seja para outras Ciências, pode assumir diferentes conotações.

De acordo com o Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano, prova é “procedimento apto a estabelecer um saber, isto é, um conhecimento válido. Constitui prova todo procedimento desse gênero, qualquer que seja sua nature-za: mostrar uma coisa ou um fato, exibir um documento, dar um testemunho, efetuar uma indução são provas tanto quanto as demonstrações de matemática e lógica. Portanto, esse termo é mais extenso que demonstração: as demonstra-ções são provas, mas nem todas as provas são demonstrações”115.

O conceito de prova foi concebido por Aristóteles em sentido restrito, ao salientar que “dizem que prova é o que produz saber”, oportunidade em que acabou por fazer distinção entre prova e indício, que propicia tão-somente co-nhecimento provável116.

No século XVII, Locke via a “prova” como ideias intermediárias que serviam para demonstrar a concordância ou não entre duas ideias. Via, pois, prova e demonstração como mesmo sentido. Foi dele uma importante guinada na história do conceito de prova, ao admitir, pela primeira vez,

115 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia; tradução da 1. ed. brasileira coordenada e revista por Alfredo Bossi; revisão da tradução e tradução de novos textos Ivone Castilho Benedetti. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 947. Demonstração: pode ser compreendida como silogismo - discurso em que, fixadas algumas premissas, se segue necessariamente outras, tal como a dedução, isto é, premissas, maior e menor, é igual a conclusão – que deduz uma conclusão de princípios primeiros e verdadeiros ou de outras proposições deduzidas silogisticamente de princípios primeiros e evidentes. Na lógica contemporânea, o termo em geral designa uma sequência de enunciados tais que cada um deles é um enunciado primitivo ou então é diretamente derivável de um ou mais enunciados que o procedem na sequência.116 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia; tradução da 1. ed. brasileira coordenada e revista por Alfredo Bossi; revisão da tradução e tradução de novos textos Ivone Castilho Benedetti. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 947.

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as provas prováveis117. Wolff, de outra banda, mesmo identificando a prova como silogismo,

distingue-a da demonstração, pois ela seria um silogismo que “utiliza apenas premissas que são definições, experiências indubitáveis e axiomas (dignidade ou valor)”118.

Hume e Kant foram que trouxeram distinções fundamentais no âmbi-to da prova. Hume propôs distinguir demonstrações, provas e probabilidades119.

Entendida por “prova” como os “argumentos extraídos da experiên-cia, que não admitem dúvidas e objeções”; demonstrações se limitavam ao do-mínio das puras conexões de ideias; probabilidade, aquilo que em certo grau ou medida possui a possibilidade de ser verdadeiro120.

Kant via 4 (quatro) espécies de provas: i) prova lógica rigorosa, que vai do geral ao particular e é a demonstração propriamente dita; ii) o raciocínio por analogia; iii) a opinião verossímil; e, iv) a hipótese, que é o recurso a um princípio explicativo simplesmente possível.121.

Afirmou, ainda, Kant que as ditas “provas demonstrativas ou apo-díticas” se achavam apenas no campo da matemática, na medida em que esta procede mediante a construção de conceitos, e que os princípios de provas não podem produzir nenhuma prova apodítica (parte da lógica que tem por objeto a demonstração)122.

Passemos, na sequência, a examinar o conceito “jurídico” de prova, ou melhor, à luz da doutrina:

Francesco Carnelutti, em linhas gerais, provar não é mais demonstrar a verdade dos fatos debatidos, mas sim fixar formalmente os fatos através de procedimentos determinados123.

Francisco Augusto das Neves e Castro leciona que prova em sentido lato é o “meio pelo qual a inteligência chega à descoberta da verdade. No senti-do jurídico, porém, define-as a nossa lei civil – a demonstração da verdade dos

117 Idem. p. 947.118 Idem. p. 947.119 Idem. p. 947.Probabilidade, segundo Locke, não passa de aparência da concordância ou discordância entre duas ideias mediante a intervenção de prova, cuja ligação não é constante nem imutável, ou, pelo menos, na é percebido como tal, mas é ou parece ser na maioria das vezes, sendo suficiente para induzir o espírito a julgar que a proposição é verdadeira ou falsa, e não o contrário.120 Idem. p. 947.121 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia; tradução da 1. ed. brasileira coordenada e revista por Alfredo Bossi; revisão da tradução e tradução de novos textos Ivone Castilho Benedetti. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 947.122 Idem, p. 947.123 CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Campinas: Bookseller, 2001. p. 72.

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fatos alegados em juízo”124. Abrindo-se, neste pormenor, um breve parêntese, pergunta-se: O que

é verdade?Ao nosso sentir, e valendo-se das lições de Tarek Moyses Moussal-

lem, na aula realizada na data de 14.08.2011, no programa de pós-graduação lato senso da Universidade Federal do Espírito Santo, “verdade” pode ser com-preendida como uma “condição de aceitação” por certo grupo, isto é, premissas tidas como escorreitas. Daí nos parece seguro salientar que a “verdade” se en-contra inexoravelmente atrelada a um dado sistema.

Em virtude do vocábulo “verdade” ter gerado, cientificamente, grande controvérsia entre os estudiosos, exsurgiram algumas teorias, as quais, e com base na citada aula do professor Tarek Moussallem são125:

Tem-se a dita “verdade por correspondência”, segundo a qual o enun-ciado somente era verdadeiro se corresponder a um fato (relação palavra-reali-dade. Ex: está escuro, eu olho para o céu e confiro tal fato).

A “verdade por coerência” seria o nexo entre preposições postas lo-gicamente dentre de um discurso (relação entre enunciados). O conceito de verdade, assim, sai da relação palavra-realidade, passando para relação entre linguagens. Fala-se em pré-compreensão, na medida em que o homem, inserido em dada comunidade com interpretações já estabelecidas (linguagem), parte de um discurso anterior que poderá ser ultrapassado caso haja uma fala mais convincente, isto é, coerente (ou não contraditória) dentro de um dado sistema.

Por sua vez, a “verdade por autoridade”, que parte da premissa da relação entre enunciados, pode-se falar que a verdade é criada pelo homem no interior de certo sistema, “fincada” em pessoa que goza de certo grau de auto-ridade no tema.

Por último, a “verdade por consentimento” representa a crença de dada comunidade científica em determinada certa proposição. Em suma, enun-ciado verdadeiro é aquele com que possui mais coerência e maior número de aderentes. Esta verdade é responsável pelo paradigma (aquilo que é comparti-lhado com homens de uma dada sociedade). Ex: Deus existe.

De acordo com Manoel Alves Rabelo e Katharine Maia dos Santos, no geral, o conceito de prova está relacionado com a ideia de reconstrução de um fato (que, logicamente, ocorreu no passado), que é demonstrado ao juiz126.

124 NEVES E CASTRO, Francisco Augusto das. Teoria das provas e suas aplicações aos Atos Civis. Campinas: Servanda, 2000. p. 32.125 MOUSSALLEM, Tarek Moyses. Aula realizada no programa de pós-gradução strictu senso da UFES do dia 14.08.2011.126 RABELO, Manoel Alves; SANTOS, Katharine Maia dos. Teoria geral da prova na jurisdição cível: breves considerações. In: ZAGANELLI, Margareth Vetis (coor). Processo, verdade e justiça: estudos sobre a prova judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. pp. 99-116.

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No entanto, segundo Manoel Rabelo e Katharine Maia, citando Ma-rinone e Sérgio Cruz, tal conceito encontra-se superado, eis que é impossível o restabelecimento de fatos pretéritos, na medida em que não é possível se recu-perar o que já passou. Lançam, assim, tais juristas uma definição sobre “prova”, que pode ser sintetizada como todo meio regulado em lei e dirigido ao juiz – observado parâmetros fixados no Direito e racionais -, objetivando convencer o Estado-juiz da validade/veracidade das proposições127.

Por último, Eduardo Cambi128 traz uma concepção tripartite de prova, entendendo-a como: i) atividade; ii) meio; iii) resultado.

Como “atividade”, a prova é instrução/conjunto de atos, realizados pelas partes e juiz, a fim de reconstruir os fatos suporte das pretensões e da própria decisão. O conjunto de atos – em sua ampla maioria previstos em lei – denomina-se procedimento probatório.

Como “meio”, a prova é vista como instrumento em que as infor-mações acerca dos fatos são introduzidas. Visam, desta forma, a formação do convencimento do juiz sobre a existência ou não dos fatos deduzidos ou objeto de investigação.

E, por fim, como “resultado”, prova equivale a êxito ou valoração, consubstanciado na convicção do juiz. Vê-se, portanto, que a noção de prova engloba elementos objetivos (atividade e meio) e subjetivos (buscar a verdade ou certa dos fatos deduzidos em juízo).

Com espeque nas lições de Eduardo Cambi, Manoel Rabelo e Ka-tharine Maia afiançam que examinando a prova como “meio”, tem-se que o “objeto da prova é a afirmação do fato, e não o fato em si”. Noutras palavras, prova-se que a afirmação de que o direito existe é verdadeira, declarando-se a existe deste (direito).

Perfilhamo-nos as lições de Eduardo Cambi, por entender que o refe-rido autor traz uma visão ampla do instituto, reproduzindo-o em sua realidade.

1.1. dIReIto conStItucIonal à pRova

O direito a provas é uma faculdade quem as partes possuem para indi-car e requererem ao magistrado os meios de prova que entenderem pertinentes a esclarecer os fatos narrados. Aliás, se assim não fosse o direito de ação e de defesa ficariam “vazios”, na medida em que as partes não poderiam demonstrar

127 RABELO, Manoel Alves; SANTOS, Katharine Maia dos. Teoria geral da prova na jurisdição cível: breves considerações. In: ZAGANELLI, Margareth Vetis (coor). Processo, verdade e justiça: estudos sobre a prova judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. pp. 99-116. 128 CAMBI, Eduardo. Direito Constitucional à prova no processo civil. vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 48.

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dos fatos deduzidos.Sem maiores delongas, o certo é que, após análise detida da Consti-

tuição da República de 1988, não localizamos dispositivo expresso que garanta o direito de prova.

Todavia, segundo grande parte da doutrina, como por exemplo Edu-ardo Cambi, tal fato não é capaz de infirmar que o direito de prova deflui da Constituição. Aliás, seria ele decorrente do devido processo legal, na medi-da em que este princípio estatuído no texto constitucional assegura os direitos processuais dos litigantes, dentre eles o direito de ação, da ampla defesa e do contraditório129.

Em linhas gerais, o direito à prova, segundo a doutrina de Michele Taruffo, seria o modo essencial de garantir o direito de ação e de defesa, de sorte a salvaguardar, ainda, uma ordem jurídica justa130.

1.2. meIoS de pRova e meIoS de obtenção da pRova: dIStInção

Em linhas gerais, e segundo Manoel Alves Rabelo e Katharine Maia dos Santos, os meios de provas são compreendidos como todas as fontes pro-bantes em que permita ao magistrado extrair delas a verdade dos fatos, podendo ser classificados em meios de provas típicos e atípicos, os quais trataremos no próximo tópico131.

De outra banda, e valendo-se do Acórdão nº 1680/03-2 de Tribunal da Relação de Guimarães, 29 de Março de 2004. Veja-se:

“Os meios de prova são os elementos de que o julgador se pode servir para formar a sua convicção acerca de um facto, conf. Antunes Vare-la, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora - Manual de Processo Civil, pág.452. II - Os meios de obtenção de prova são os instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e recolher meios de prova, conf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal II, pág. 209 a 210, que distingue os meios de prova dos meios da sua obtenção: “É claro que através meios de obtenção de prova se podem obter meios de prova de diferentes espécies, v.g. documentos, coisas, indicação de testemunhas, mas o que releva de modo particu-

129 CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 111.130 TARUFFO, Michele. Il diritto alla prova nel processo civile. Rivista di Diritto Processuale, Padova, CEDAM, a. 39 (II série), n. 4, pp. 74-120, out./dez. 1998. pp. 77-78.131 RABELO, Manoel Alves; SANTOS, Katharine Maia dos. Teoria geral da prova na jurisdição cível: breves considerações. In: ZAGANELLI, Margareth Vetis (coor). Processo, verdade e justiça: estudos sobre a prova judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 99-101.

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lar é que, nalguns casos, o próprio meio de obtenção da prova acaba por ser também um meio de prova. Assim, por exemplo, enquanto a escuta telefônica é um meio de obtenção de prova, as gravações são já um meio de prova” podendo, no entanto, “ suceder que a distinção re-sulte penas da lei ter dado particular atenção ao modo de obtenção da prova, como nos parece acontecer, v.g., com as escutas telefônicas”132.

1.3. pRovaS típIcaS e atípIcaS

Consoante se verifica do artigo 332 do Códex Buzaid, os meios de provas típicas e atípicas estão previstos neste dispositivo legal. Veja-se a sua redação:

“Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa”133.

Manoel Alves Rabelo e Katharine Maia, comentando a dicção do pre-sente artigo, ensinam que ele fala de meios não especificados na Lei Instrumen-tal Civil, ou seja, meios de provas previstos em outras espécies normativas, além de meios de provas não previstos em qualquer lei, desde que moralmente legítimos, isto é, em conformidade com o direito.134

Vê-se, ainda, que o Código de Processo Civil não traz rol taxativo quanto aos meios de produção de provas, possibilitando, assim, aos jurisdicio-nados que busquem meios adequados para influenciar a convicção do juiz, bem como que o processo civil mantenha-se atualizado com os avanços científicos e tecnológicos, tudo em prol de se prestar a tutela jurisdicional da forma mais segura/justa.

Como meios de provas típicas, pode-se citar aqueles previstos nos artigos 342 a 443 do Códex Buzaidiano, quais sejam: i) depoimento pessoal; ii) prova testemunhal; iii) confissão. iv) exibição de documentos ou coisas; v) perícia; e, vi) presunção (art. 212 do Código Civil de 2002).

No que concerne aos meios atípicos, como dito alhures, rol é exempli-ficado, tendo as partes considerável liberdade para eleger o meio mais adequado para provar sua alegança.

132 Disponível em: BRASIL, http://www.trg.pt. Acessado em 20.10.2011.133 Disponível em: BRASIL, http://www.planalto.gov.br. Acessdo em: 20.10.2011.134 RABELO, Manoel Alves; SANTOS, Katharine Maia dos. Teoria geral da prova na jurisdição cível: breves considerações. In: ZAGANELLI, Margareth Vetis (coor). Processo, verdade e justiça: estudos sobre a prova judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. pp. 113-114.

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Questão de interessante reflexão refere-se a como as provas atípicas podem ser colhidas e utilizadas.

Pensamos que os limites para a utilização das provas atípicas são as provas arrimadas em ilicitude, ilegitimidade e inconstitucionalidade do método de sua obtenção, devendo, ainda, se evitar provas que afrontem outros direitos constitucionais tutelados.

Do contrário, caberá ao julgador valer-se dos princípios da proporcio-nalidade e razoabilidade, fazendo-se a devida ponderação de valores. Exemplo disto é o entendimento do STF em admitir, em determinados casos e utilizando--se da técnica da ponderação de valores, provas ilícitas, como, por exemplo, na Ação Penal n. 3037-DF135.

2. a InIcIatIva da pRova pelo JuIz à luz da JuRISpRudêncIa do SupeRIoR tRIbunal de JuStIça

A iniciativa para propor a prova, em regra, é um direito da parte, o qual, aliás, é inerente a própria provocação da atividade jurisdicional. O juiz não possui direito à prova. Todavia, isso não quer dizer que não possa participar da atividade probatória.

No ordenamento jurídico brasileiro, destaca-se a redação do artigo 130 da Lei Adjetiva Civil que preceitua: “Caberá ao juiz, de ofício ou a reque-rimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias136.

Segundo Arruda Alvim, tal norma, que encontra-se no âmbito inquisi-tivo, não chegando, entrementes, a configurar exceção ao princípio dispositivo (inércia; art. 2º do CPC), deve ser vista sob a ótica publicista, e não privatista. E justifica, em linhas gerais, objetivando que se possa dar aquilo e na exata proporção de quem, de fato, possui o direito; noutra palavras, isso ocorre para evitar que haja perda do direito e se conceda o bem jurídico indevidamente a quem não o merece137.

Cappelletti afirma que processo deixou de ser “coisa das partes” e aboliu-se o poder monopolístico das partes no campo probatório138.

José Roberto dos Santos Bedaque, com base em Cappelletti, afian-ça que dentre as regras que não asseguram a real igualdade entre os litigantes encontram-se a da plena liberdade das provas, reflexo de um superado liberal-

135 Disponível em: BRASIL, http://www.stf.jus.br. Acessado em 04.12.2011. 136 Disponível em: BRASIL, http://www.planato.gov.br. Acessado em 27.10.2011.137 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Manual de Direito Processual. 13. ed, vol. 1. São Paulo, 2010. p. 603.138 CAPPELLETTI, Mauro. La Oralidad y Las Pruebas em el Proceso Civel. 1972. pp. 122-123.

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-individualismo, que não mais satisfaz as necessidades da sociedade moderna, pois pode levar as partes a uma situação de desequilíbrio substancial. Muitas vezes sua omissão na instrução do feito se deve a fatores econômicos ou cultu-rais, e não à intenção de dispor do direito139.

Nessa esteira, destaca-se aresto do Colendo Superior Tribunal de Jus-tiça. Veja-se:

PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. ILICITUDE DA PROVA. FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL NÃO ATACADO POR RE-CURSO EXTRAORDINÁRIO. SÚMULA 126/STJ. PRODUÇÃO DE PROVAS. INICIATIVA DO JUIZ. POSSIBILIDADE. PRECE-DENTES. SIGILO PROFISSIONAL. ADVOGADO E CLIENTE. DEFICIÊNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. FUNDAMENTO DO ACÓRDÃO NÃO ATACADO. SÚMULA 283/STF. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. DEVI-DO ENFRENTAMENTO DAS QUESTÕES RECURSAIS. INCON-FORMISMO COM A TESE ADOTADA. (...) 2. A Corte a qual infir-ma a alegação de violação dos arts. 130 e 131 do Código de Processo Civil, ao fundamento de que “tampouco se vislumbra, na decisão do magistrado a quo determinando a juntada de tais elementos probató-rios aos autos, qualquer desdordamento (sic) de seus poderes ou atua-ção ex officio indevida. Com efeito, a moderna processualística já em por ultrapassada a concepção primeva segundo a quo o magistrado figura como sujeito inerte, de atuação meramente passiva, no campo instrutório. Compete-lhe, hodiernamente, determinar a produção de provas necessárias à formação de seu livre convencimento, em busca da verdade material”.3. O entendimento firmado encontra respaldo na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça pois, “sendo o juiz o destinatário da prova, cabe a ele, com base em seu livre convencimento, avaliar a necessidade desta, podendo determinar a sua produção até mesmo de ofício, conforme prevê o art. 130 do Código de Processo Civil” (AgRg no Ag 1.114.441/SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 16.12.2010, DJe 4.2.2011). Outros precedentes: AgRg na AR .746/SP, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, Primeira Se-ção, julgado em 9.6.2010, DJe 18.6.2010; AgRg no REsp 294.609/RJ, Rel. Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ/RS), Terceira Turma, julgado em 8.6.2010, DJe 24.6.2010. (...) Recurso

139 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. pp. 13-14.

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especial conhecido em parte e improvido. (REsp 1264313/RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/10/2011, DJe 14/10/2011). Grifei e negritei.

Colhe-se, no que é pertinente ao tema, o seguinte trecho do voto do ínclito Ministro Relator Humberto Martins:

DA PRODUÇÃO DE PROVAQuanto à alegação do recorrente de que houve violação dos arts. 130 e 131 do Código de Processo Civil, porquanto seria vedado ao juiz produzir “toda a prova” contra ele, melhor sorte não lhe assiste.Quanto ao tema, o Tribunal de origem assentou que “tampouco se vislumbra, na decisão do magistrado a quo determinando a juntada de tais elementos probatórios aos autos, qualquer desdordamento de seus poderes ou atuação ex officio indevida. Com efeito, a moderna processualística já em por ultrapassada a concepção primeva segun-do a qual o magistrado figura como sujeito inerte, de atuação mera-mente passiva, no campo instrutório.Compete-lhe, hodiernamente, determinar a produção de provas ne-cessárias à formação de seu livre convencimento, em busca da verda-de material.” (e-STJ fls. 128).O referido entendimento harmoniza-se com a jurisprudência do Supe-rior Tribunal de Justiça, no sentido de que “sendo o juiz o destinatário da prova, cabe a ele, com base em seu livre convencimento, avaliar a necessidade desta, podendo determinar a sua produção até mesmo de ofício, conforme prevê o art. 130 do Código de Processo Civil” (AgRg no Ag 1114441/SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 16.12.2010, DJe 4.2.2011).No mesmo sentido:“AGRAVO REGIMENTAL EM AÇÃO RESCISÓRIA. PROVA PERI-CIAL. EXPEDIÇÃO DE NOVA CARTA DE ORDEM. INDEFERI-MENTO. QUESITOS COMPLEMENTARES. DESNECESSIDADE.1. A produção de provas está vinculada à livre convicção do magis-trado, nos termos do artigo 130 do Código de Processo Civil, se-gundo o qual ‘Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indefe-rindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.’, e constitui meio auxiliar do juízo e, não, das partes, impondo-se o indeferimento do pedido de complementação da prova pericial quando a ação res-cisória já se encontra instruída com farta documentação, suficiente

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ao exame da ação. 2. Agravo regimental improvido.” (AgRg na AR .746/SP, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, Primeira Seção, julgado em 9.6.2010, DJe 18.6.2010)“AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PRO-CESSO CIVIL. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. PRODU-ÇÃO DE PROVAS. INICIATIVA DO JUIZ. POSSIBILIDADE. INE-XISTÊNCIA DE AFRONTA AOS PRINCÍPIOS CONTIDOS NO ECA (LEI 8.069/90). (...)3. Esta Corte Superior, ao interpretar o art. 130 do CPC,consagrou o entendimento de que ‘a iniciativa probatória do juiz, em busca da verdade real, com realização de provas de ofício, é amplís-sima, porque é feita no interesse público de efetividade da Justiça ‘ (REsp 1.012.306/PR, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, DJe 07.05.2009).4. Agravo regimental não provido.”(AgRg no REsp 294.609/RJ, Rel. Vasco Della Giustina (Desembarga-dor convocado do TJ/RS), Terceira Turma, julgado em 8.6.2010, DJe 24.6.2010).

Contudo, o tema não é tão singelo como parece inclusive no próprio “Tribunal da Cidadania” que também possui entendimento no seguinte sentido:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. PREVIDENCIÁ-RIO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE PRODUÇÃO DE PROVA TESTEMUNHAL EM PRIMEIRA INSTÂNCIA. DETERMINAÇÃO DE OFÍCIO PELO TRIBUNAL. IMPOSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO ART. 125, I, DO CPC. EQUILÍBRIO PROCESSUAL DESRESPEITADO. RE-CURSO PROVIDO. (...)3- O processo civil moderno tende a investir o juiz do poder-dever de tomar iniciativa probatória, consubstanciando-se, pois, em um equilí-brio entre o modelo dispositivo e o inquisitivo. Contudo, a atividade probatória exercida pelo magistrado deve se opera em conjunto com os litigantes e não em substituição a eles.4- No caso concreto, o Tribunal a quo, embora ausente pedido espe-cífico das partes, de ofício, anulou a sentença e determinou o retorno dos autos ao juízo singular para que este reabrisse a fase instrutória e oportunizasse, a ambas as partes, a inquirição de testemunhas, para fins de comprovação da atividade rural.

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5- In casu, não tendo a parte autora, tanto na fase instrutória, quanto nas razões de apelação, postulado pela produção de prova testemu-nhal, caso restasse prevalente o entendimento do tribunal a quo, o equilíbrio na relação processual estaria prejudicado e, consequente-mente, desrespeitado o princípio isonômico, face a violação ao art. 125, I, do CPC. 6- Recurso especial provido. Retorno dos autos ao Tribunal de origem, para que esse prossiga no julgamento do recurso de apelação.(REsp 894.443/SC, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 17/06/2010, DJe 16/08/2010). Grifo e negrito nosso.

Enfim, o que se pretende demonstrar é que o tema demanda conside-rável controvérsia notadamente quanto aos limites dos poderes do juiz quanto a iniciativa probatória.

Indaga-se, assim: Qual o limite dos poderes instrutórios dos juiz? Ou melhor, como fazer para evitar abusos?

Longe de querer aprofundar essa difícil questão, nos parece que o princípio do contraditório é a mais poderosa arma contra eventuais abusos, sen-do ele o limite natural dos poderes instrutórios do juiz. Além deste, vislumbra-mos ainda como limites as: i) provas lícitas; ii) limites do código; iii) pedidos (e causa de pedir); e, iv) fundamentação, na medida em que se deve declinar a razão pela qual se está determinando a produção de dada prova.

Outra questão interessante é saber se a regra estatuída no artigo 130 da Lei Adjetiva Civil colide, ou não, com o artigo 333, incisos, do mesmo Di-ploma, na medida em que este último, em resumo, impõe às partes o ônus da prova (i: ao autor o fato constitutivo de seu direito; ii) ao réu: o fato extintivo, modificativo ou impeditivo do direito do autor).

Em nossa visão, em tese, se pode até admitir um conflito entre os dispositivos. Isso porque, poder-se-ia alegar violação ao princípio da igualdade, na medida em que as partes não pediram a produção de prova, e o juiz a deter-minou de ofício, ainda que subsidiariamente.

Bedaque, por exemplo, dissente de tal entendimento. Para ele, as nor-mas processuais devem ser interpretadas em conformidade com a finalidade do processo, qual seja, possibilitar a efetivação do direito material140.

No entanto, deve-se resolver a questão pelo “caráter publicista” (pre-ocupação com os fins sociais do processo; exigência de um juiz comprometido com a efetivação do direito material) do processo, a fim de que o juiz evite

140 BEDAQUE, José Roberto do Santos. Poderes instrutórios do juiz. 3. ed; São Paulo: RT, 2001. p. 80.

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chancelar flagrante injustiça, vencendo quem efetivamente tem razão.Em tese, pode uma das partes se beneficiar? A iniciativa do juiz de

ofício não viola o princípio da imparcialidade?Respeitando entendimentos em contrário, entendemos que sim, haja

que se, por exemplo, não houver prova nenhuma produzida, a pretensão/pedi-dos deduzidos serão, a princípio, julgados improcedentes, levando-se em conta a regra de distribuição da prova. Isto é, “se o autor não provou o que alegou, não possui direito”. Todavia, isso se justifica pela busca da verdade, posto que ela é que efetivamente atende os anseios da jurisdição (dar/entregar o bem da vida, em sua exata extensão/quantidade, a quem de fato o deve o receber). Igualmen-te entendemos que tal conduta do juiz não ofende o princípio da imparcialidade, com fulcro no aqui exposto.

Elival da Silva Ramos diz que o “ativismo judicial” importa avaliação do modo de exercício da função jurisdicional; o fenômeno será percebido dife-rentemente de acordo com o papel institucional que se atribua em cada sistema do Poder Judiciário. No civil law, por exemplo, a jurisprudência move-se dentro de quadros estabelecidos pelo legislador141.

Uma última indagação se impõe: Há preclusão para o magistrado em matérias de provas?

Sem maiores delongas, entendemos que não. Isso porque, mais uma vez, a resposta se justifica pelo caráter publicista (interesse público) de tal ques-tão, tal como dito alhures.

O Colendo Superior Tribunal de Justiça, examinando tal questão, fir-mou exegese no seguinte sentido:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMIS-SÃO EXISTENTE. SANEAMENTO. INEXISTÊNCIA DE PRE-CLUSÃO EM MATÉRIA DE PROVA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 473 DO CPC. (...) 3. A jurisprudência desta Corte é pací-fica ao reconhecer que não há preclusão em matéria de provas, pois a iniciativa probatória do magistrado, em busca da veracidade dos fatos alegados, com realização de provas, não se sujeita à preclusão temporal, porque é feita no interesse público de efetividade da Justiça. Precedentes. Embargos de declaração acolhidos, com efeitos modifi-cativos, para afastar a preclusão decretada, e consequentemente, ne-gar provimento ao Recurso Especial da Fazenda Nacional. (EDcl no REsp 1189458/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUN-

141 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. pp. 104-105.

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DA TURMA, julgado em 26/08/2010, DJe 08/09/2010)142.

No que concerne ao ponto em exame, colhe-se a seguinte passagem do voto do eminente Ministro Relator Humberto Martins:

Quanto à alegação de que matéria referente a instrução probatória constitui matéria de ordem pública e, portanto, não preclui, assiste razão ao embargante, pois omisso o acórdão embargado quanto a esse ponto. A jurisprudência desta Corte é pacífica ao reconhecer que não há pre-clusão em matéria de provas, pois a iniciativa probatória do magis-trado, em busca da veracidade dos fatos alegados, com realização de provas, não se sujeita à preclusão temporal, porque é feita no interesse público de efetividade da Justiça. Nesse sentido, as ementas dos se-guintes julgados: “PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. IMPOSTO DE RENDA. CONVERSÃO EM DILIGÊNCIA PELO TRIBUNAL A QUO PARA O JUÍZO MO-NOCRÁTICO REALIZAR PROVA PERICIAL. ART. 560 DO CPC. POSSIBILIDADE. PRECLUSÃO QUE NÃO SE APLICA, NA HIPÓ-TESE. MULTA DO ART. 538 DO CPC. AFASTAMENTO. 1. Caso em que o Tribunal a quo entendendo pela necessidade da produção de prova pericial para o efetivo esclarecimento do estado de saúde da autora, determinou, em preliminar, a conversão do julgamento em di-ligencia para que os autos retornassem à origem exclusivamente para a realização da prova. 2. Os juízos de primeiro e segundo graus de jurisdição, sem violação ao princípio da demanda, podem determinar as provas que lhes aprouverem, a fim de firmar seu juízo de livre con-vicção motivado, diante do que expõe o art. 130 do CPC.3. A iniciativa probatória do magistrado, em busca da veracidade dos fatos alegados, com realização de provas de ofício, não se sujeita à preclusão temporal, porque é feita no interesse público de efetividade da Justiça.4. Afasta-se a multa prevista no art. 538 do CPC quando presente o intuito de prequestionar a matéria objeto do litígio e ausente o cará-

142 BRASIL. Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesadso em 04.12.2011.Nesse sentido: “(...) IV- Ademais, “a iniciativa probatória do magistrado, em busca da veracidade dos fatos alegados, com realização de provas de ofício, não se sujeita à preclusão temporal, porque é feita no interesse público de efetividade da Justiça” (AgRg no REsp 1157796/DF, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, DJe 28/05/2010). V - Agravo Regimental improvido”. (AgRg no Ag 1125592/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/12/2010, DJe 03/02/2011).

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ter protelatório do recurso. Incidência da Súmula 98/STJ.5. Agravo regimental parcialmente provido, somente para afastar a multa imposta.” (AgRg no REsp 1.157.796/DF, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 18.5.2010, DJe 28.5.2010.)“PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL – VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC – PRECLUSÃO EM MATÉRIA DE PROVA. 1. O juízo não está obrigado a manifestar-se acerca de todas as questões levantadas pelas partes, ou a respondê--las uma a uma. A decisão que julgou os embargos de declaração foi a que deu ensejo ao agravo de instrumento, conforme ficou demons-trada na decisão do Tribunal.2. Não existe preclusão para o juiz quando se trata de matéria pro-batória em razão da busca pela verdade real. A jurisprudência vem decidindo nesse sentido e, ao decidir que não há necessidade de jun-tada de mais documentos, o Tribunal decide acerca de provas, razão pela qual não há que se falar em preclusão. Agravo regimental im-provido.” (AgRg no REsp 946.874/PR, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 25.8.2009, DJe 16.9.2009.)“PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RE-CURSO ESPECIAL. PRECLUSÃO. MATÉRIA DE PROVA. INEXIS-TÊNCIA. 1. Não há preclusão em matéria de prova. Precedente: REsp 418.971/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves , DJ 07/11/2005. 2. Ina-plicabilidade, em matéria probatória, do art. 473 do CPC. 3. Embar-gos de declaração conhecidos e providos parcialmente para comple-mentar o acórdão, sem atribuição de efeitos modificativos.”(EDcl no REsp 953.213/PR, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, julgado em 22.4.2008, DJe 21.5.2008.).

Enfim, e segundo Elival Ramos, quadra registrar que esse ativismo judicial é elogiado por proporcionar a adaptação do direito diante de novas exigências sócias e novas pautas axiológicas (valores)143.

concluSão

Em face do exposto, pode-se concluir que:i) na jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça é ampla-

mente majoritário – quase que pacífico - o entendimento de que a iniciativa do

143 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 110.

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juiz, em busca da verdade, com a realização de provas de ofício, é amplíssima, o que se justifica na medida em que é feita no interesse público de efetividade da Justiça, havendo, no entanto, arestos isolados no sentido de que a atividade do juiz, no que tange ao tema, não pode substituir a iniciativa das partes;

ii) o princípio do contraditório é a mais poderosa arma contra eventu-ais abusos, sendo ele o limite natural dos poderes instrutórios do juiz. Ademais, vislumbramos ainda como limites as: i) provas lícitas; ii) limites do código; iii) pedidos (e causa de pedir); e, iv) fundamentação, na medida em que se deve declinar a razão pela qual se está determinando a produção de dada prova;

iii) a iniciativa probatória de oficio pelo juiz pode sim beneficiar uma das partes. Isso porque, por exemplo, se não houver prova nenhuma produzida e/ou petitório nesse sentido, a pretensão/pedidos deduzidos serão, a princípio, julgados improcedentes, levando-se em conta a regra de distribuição da prova. Isto é, “se o autor não provou o que alegou, não possui direito”.

Todavia, isso se justifica pela busca da verdade, posto que ela é que efetivamente atende os anseios da jurisdição (dar/entregar o bem da vida, em sua exata extensão/quantidade, a quem de fato o deve o receber). Igualmente entendemos que tal conduta do juiz não ofende o princípio da imparcialidade, com fulcro no aqui exposto, sobretudo porque o processo deve ser visto sob a ótica publicista (preocupação com os fins sociais do processo), objetivando evitar que o juiz chancele injustiça.

Além do mais, quando o juiz determina a produção de alguma prova, ele – ao menos em regra – não sabe o seu resultado; e, IV) a jurisprudência do “Tribunal da Cidadania” firmou exegese no sentido de que a iniciativa probató-ria do magistrado, em busca da veracidade dos fatos alegados, com realização de provas de ofício, não se sujeita à preclusão temporal, porque é feita no inte-resse público de efetividade da Justiça.

RefeRêncIaS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia; tradução da 1. ed. brasileira coordenada e revista por Alfredo Bossi; revisão da tradução e tradução de novos textos Ivone Castilho Benedetti. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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6a RefoRma atoRdoada: InefIcIêncIa, veRtIcalIzação do

ato decISóRIo e deSpRezo ao dIReIto de SeR paRte noS novoS pRocedImentoS penaIS

leOnardO auguStO marinHO marqueS

Doutor em Ciências Penais pela UFMG. Professor do PPGD da PUC-Minas.

SumáRIo: Introdução. 1. Eficiência e celeridade no horizonte do processo constitu-cionalizado: o limite intransponível da processualidade democrática. 2. O panorama da reforma procedimental de 2008: decidir monocrático e estrutura bifásica, heranças de um passado “hiper-eficiente” e descompromissado com os direitos fundamentais. Conclusão. Referências.

IntRodução

Esse artigo analisa a minireforma do Código de Processo Penal de 2008, que modificou a estrutura dos procedimentos ordinário, sumário e do tribunal do júri, com o objetivo de conferir maior celeridade ao processo penal.

A abordagem traz como problema central a necessidade de se compa-tibilizar a garantia constitucional de julgamento do processo no prazo razoável com a estrutura constitucional e a essência democrática do processo penal.

Terá especial atenção a crítica de teóricos brasileiros de que o discur-so de eficiência-celeridade tem desprezado o processo constitucionalizado, mi-nimizando a importância das garantias e a exigência democrática de construção compartilhada da decisão.

Essa crítica será contextualizada na realidade histórica brasileira. É preciso entender que a ideologia da eficiência ganha traços bem específicos no Código de 1941, dada a sua capacidade de unir a tradição inquisitorial do processo pátrio com a mentalidade fascista–policalesca do Estado Novo. Pos-teriormente, será analisado o renascimento do discurso de eficiência na Europa, com a consequente proposta de desformalização do processo.

Acreditando na possibilidade de se alcançar o julgamento no prazo ra-zoável dentro de uma estrutura procedimental constitucionalizada, garantidora dos direitos fundamentais e do ideal de construção compartilhada da decisão,

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sugere-se um novo foco de abordagem para o conceito de eficiência.Por fim, demonstra-se que os novos procedimentos ordinário, sumá-

rio e do tribunal do júri não agregaram eficiência, não se desprenderam da es-trutura bifásica do Código Napoleônico, nem do modelo autárquico-estatal de decidir que caracteriza o Poder Judiciário brasileiro.

1. efIcIêncIa e celeRIdade no hoRIzonte do pRoceSSo conStItucIonalIzado: o lImIte IntRanSponível da pRoceSSualIdade democRátIca

No processo penal, o binômio eficiência-celeridade tem despertado a preocupação de expressivos autores brasileiros. Eles temem que o ganho em agilidade gere perda de efetividade das garantias constitucionais e a desforma-lização do devido processo. O receio é de que o projeto de construção de uma decisão democrática, caracterizada pela participação influente dos interessados (GONÇALVES, 2012 e NUNES, 2009), dê lugar a uma visão puramente utili-tarista, segundo a qual o coeficiente de eficiência se concentre na capacidade da jurisdição de prover, com brevidade, a sanção penal.

Lopes Junior (2010:27) alerta que a visão eficientista tem reduzido o processo a mero instrumento de defesa social, delineando um quadro no qual a segurança pública predomina erroneamente sobre os direitos fundamentais. E explica que o processo penal precisa estar “a serviço da realização do projeto democrático”.

O desconforto dos teóricos brasileiros com o binômio eficiência-cele-ridade não é injustificável do ponto de vista histórico, não é desprovido de sen-tido na realidade pátria e não surge em meio ao nada. Consultando a exposição de motivos do Código de Processo Penal de 1941, percebe-se de que maneira eficiência e celeridade se inseriram na nossa cultura processual e, nela, perma-neceram ao longo das décadas subsequentes, contrapondo-se ao movimento de constitucionalização do processo, iniciado após a segunda grande guerra.

Na década de 40 do período republicano, a reforma da legislação pro-cessual do Império se orientou pela necessidade de se conferir “maior eficiência e energia na ação repressiva do Estado”. Absurdamente, a exposição de motivos classificou os direitos fundamentais como “catálogo de favores”, “pseudodirei-tos”, “franquias” e “imunidades”. Disse, expressamente, que eles retardam e deformam a repressão penal, e que eles contribuem para o aumento da crimina-lidade. Inspirando-se na legislação fascista de Rocco, o Código de 1941 adotou a ideologia da máxima segurança, legitimando a visão puramente utilitarista de processo.

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O processo penal brasileiro, contaminado pela ideologia policiales-ca-fascista do Estado Novo, a sua tradição inquisitorial (predominante des-de as Ordenações) e o permanente déficit de constitucionalidade nas práticas penais explicariam a inquietação dos teóricos canarinhos com o binômio eficiência-celeridade.

No Brasil, eficiência se confunde com repressão enérgica, símbolo de uma política que prega o combate à criminalidade por vias estranhas ao Direito. Esse conceito encerra uma proposta de intervenção penal desmesurada, que não dialoga com os direitos fundamentais, e que por esse exato motivo, não encon-tra sustentação em uma democracia constitucionalizada.

A inquietação da teoria do processo penal é bastante significativa. Diante de uma Constituição reconhecidamente nominativa (FERNANDES, 2012:53), todo processo penal de viés autoritário tende a desenvolver uma téc-nica interpretativa e argumentativa autônoma. Essa hermenêutica pragmática encontra fôlego na legislação infraconstitucional e sabe como ostentar força. È uma tecnologia que não se envergonha por manter viva uma tradição auto-ritária, que o texto constitucional e o processo democrático pretendiam abolir (CARVALHO NETTO, 2004, p. 25).

Não obstante a forma como eficiência e celeridade ingressaram na nossa cultura processual, seria importante incrementar o desassossego brasilei-ro com alguns ingredientes estrangeiros. Nas últimas duas décadas, a Europa presenciou o renascimento do discurso de eficiência, e viu florescer uma nova cultura processual, centrada na “simplificação procedimental”, na “atenuação do pleno garantismo” e na incorporação de “soluções transacionais e consen-suais do direito anglo-saxônico” (FERNANDES, 2005:180-191).

O novo marco cultural europeu de flexibilização da estrutura procedi-mental e de suas garantais não precisou de novos pretextos. As mesmas razões de sempre serviram para justificar a reorganização das fases dos procedimen-tos, mediante supressão ou concentração de fases, e a importação das soluções transacionais e consensuais. São elas: aumento da criminalidade, aumento do número de processos, necessidade de descongestionar a máquina judiciária, lentidão no julgamento e o custo elevado do sistema judiciário (FERNANDES, 2005:193).

A obsessão da justiça penal em oferecer respostas rápidas aos pro-blemas que se apresentam fortaleceu a ideia de que não é mais possível aplicar um procedimento garantista a todos os casos. Nos novos tempos, seria válido mantê-lo apenas para três categorias: os crimes graves, os crimes de difícil apu-ração (maior complexidade), o crime organizado.

Para os crimes de média potencialidade ofensiva e para os crimes considerados mais simples a proposta passou a ser diversidade e flexibilização

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do procedimento ordinário, com minimização das garantias. Não interessa mais ao processo penal dito eficiente reduzir os prazos do procedimento ordinário ou criar procedimentos sumários. Seu objetivo é criar procedimentos dinâmicos, práticos, quase instantâneos, que sirvam de alternativa ao procedimento ordiná-rio (FERNANDES, 2005:54-62).

No novo marco processual da eficiência, ter-se-ia que eliminar ou concentrar as fases do procedimento ordinário. Estruturas procedimentais sim-plificadas precisam absorver a grande massa de crimes de média lesividade, que antes, logicamente, ficavam sob a sua competência. Somente assim, haveria celeridade no julgamento.

Tal e qual na Exposição de Motivos do Código de 1941, prevaleceu a equivocada tese de que as garantias retardam e deformam a intervenção pe-nal, contribuindo para o aumento de criminalidade, e de que a desformaliza-ção do processo não coloca em perigo o projeto constitucional do processo democrático.

Ocorre que para implementar a celeridade processual, houve a neces-sidade de se estabelecer parâmetros para o procedimento garantista, também chamado de modelo. Demarcando-se as fases e garantias constitucionais do procedimento padrão, haveria condição para: (a) pensar em alternativas; (b) flexibilizar procedimentos e atenuar de direitos; (c) alcançar o pretendido equi-líbrio entre eficiência e garantismo; (d) viabilizar o julgamento célere da grande maioria dos crimes de média ofensividade (FERNANDES, 2005:50-54). Essa era a aposta de quem acreditava nas alternativas procedimentais.

Eis, então, que a reflexão em torno das fases do procedimento modelo e da preservação das cláusulas processo constitucional trouxe uma importante inovação no âmbito do processo penal, embora não justifique a deformação dos procedimentos alternativos ao procedimento ordinário. O procedimento tipo rompeu com a estrutura procedimental bifásica do Código Napoleônico e adotou uma nova estrutura, no formato quadripartite: - investigação - fase intermediária -instrução - julgamento:

De acordo com Fernandes (2005:74):

As quatro fases, além de permitirem uma eficiente persecução penal, representam importantes garantias, conquistadas historicamente. Sem uma prévia investigação do fato e da autoria, há o risco de acusações infundadas e apressadas. Após ser formulada a acusação e antes dela ser admitida, deve-se proporcionar ao acusado um momento inicial de reagir à imputação e convencer o juiz de que o processo não deve ter seguimento. Se aceita a acusação, para um julgamento justo, importa haver uma etapa essencial para as partes demonstrarem a veracidade

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de suas afirmações, e com base nessas, exporem os argumentos favo-ráveis às suas teses. Todas essas etapas convergem para a etapa final, destinado ao julgamento da causa.

Configurado o formato quadripartite para o procedimento modelo, inúmeras foram as alternativas pensadas, nos países europeus, para flexibilizar o antigo procedimento ordinário. Registre-se novamente: elas não estão sendo endossadas nesse trabalho. Aliás, o artigo não irá analisar as variadas formas de simplificação, nem avaliar a introdução de soluções transacionais e consensuais em prol da celeridade. Quanto mais defendê-las, que fique bem claro!

Todas as informações sobre a flexibilização dos procedimentos, ocor-ridas no continente europeu, sob as mais variadas modalidades, constam no livro de Fernandes (2005). Quem tiver interesse em obter uma visão completa e formar opinião própria sobre o tema, encontrará um trabalho rico. Sua reconhe-cida qualidade dispensa nova exposição.

Por delimitação metodológica, limito-me a denunciar a retomada do discurso de eficiência na Europa, com o objetivo específico de incrementar a apreensão brasileira com a ideologia da eficiência. No mais, é alertar: estamos correndo sério risco de desnaturar o processo penal, de elidir o direito de defesa, de sumarizar o julgamento e de, no final, impor penas sem processo.

Contrapondo-se, conscientemente, à tese europeia de “flexibilização do processo, mediante informalização e eficiência”, acompanho o pensamen-to de Rosa (2010:69). O Professor da Universidade Federal de Santa Catari-na adverte que o critério do custo-benefício, proposto pela teoria da Análise Econômica do Direito, não é válido para qualificar o processo como eficiente. Toda razão lhe assiste. No Estado Democrático de Direito, as garantias consti-tucionais não podem ser inseridas em uma equação simples de redução de cus-tos, que visa a alcançar “resultados economicamente mais vantajosos” (ROSA, 2010:73).

A celeridade, compreendida, equivocadamente, como reação instan-tânea ao delito, tem criado condições propícias para o “processo penal do espe-táculo”, fruto de uma exótica mistura da “ideologia punitiva da esquerda” com a velha “moral da direita”, aparentemente preocupada com a defesa dos valores da sociedade (ROSA, 2010:75).

Pois bem, após antecipar e me contrapor à possibilidade de casamen-to da ideologia repressiva e eficiente do Estado Novo, que marca a tradição brasileira, com o novo padrão procedimental europeu de desformalização do processo, procurarei analisar a garantia constitucional de julgamento no prazo razoável, sem dúvida, direito fundamental de todo jurisdicionado.

Sob o ângulo do processo constitucional e atento aos limites impos-

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tos pela processualidade democrática, acredito que seja possível percorrer um novo caminho, no qual o julgamento no prazo razoável se reconcilie com a construção participada da decisão. Um caminho que se afaste da cultura jurí-dica do decidir unilateralmente, e que aposte no debate entre as partes. Onde o contraditório e a ampla argumentação apareçam como placas que sinalizam a direção correta.

Passo, então, a identificar os problemas que circundam o tema: (a) seria possível conciliar o processo constitucionalizado com o julgamento no prazo razoável? (b) Eficiência e celeridade são conceitos necessariamente anti--garantistas? (c) Haveria ponto de equilíbrio entre o garantismo e o processo sem dilação indevida? (d) Como adquirir celeridade sem informalizar o pro-cesso?

Binder (2003:25-26) no direciona para uma nova dimensão. Ele ex-plica que, durante todo o seu desenvolvimento histórico, o processo penal con-viveu com duas tendências: consolidar um sistema de garantias e conseguir a maior eficiência possível na aplicação do poder penal. Para ele, a síntese resul-tante da relação dialética entre garantia e eficiência molda cada um dos modelos processuais que conhecemos hoje. E conclui que a política criminal que inspira cada modelo tende a se incompatibilizar com a tendência que não lhe é inerente.

Ambos (2008:57) caminha em idêntico sentido, acrescentando que o modelo inquisitorial sempre se orientou pela eficiência, propondo medidas urgentes e céleres para combater a criminalidade crescente em cada período da História. Lembre-se de que, na inquisitoriedade, a política de defesa social im-pera sobre a tutela dos direitos fundamentais. O importante é punir com urgên-cia e reprovar o ato indesejado. De se notar que a reconciliação entre processo constitucionalizado e julgamento no prazo razoável passa necessariamente pela revisão da tradição inquisitorial.

No modelo acusatório a intervenção penal se legitima no horizonte dos direitos fundamentais. Ele não alimenta aquele conflito entre segurança e liberdade, que contribui para o reducionismo utilitário do processo penal. O nú-cleo do constitucionalismo democrático é composto pelos direitos fundamen-tais. Portanto, não se pode restringir a incidência de direitos fundamentais, no processo penal, ao conflito entre segurança e liberdade. Não se pode desconhe-cer, com tamanha facilidade, tantos outros direitos que nele se fazem igualmen-te presentes, como por exemplo, intimidade, integridade física, inviolabilidade de domicílio, contraditório e ampla defesa.

Definitivamente, não é possível desconsiderar a marcante presença de direitos fundamentais no processo penal democrático, para pinçar em uma imaginária relação de oposição, qual direito deve prevalecer e qual deve ser

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afastado no embate entre segurança e liberdade. No modelo acusatório, a tensão entre direitos fundamentais se resolve

no campo hermenêutico com ampla liberdade para a argumentação jurídica. E, mesmo, assim, sem promover a anulação de nenhum direito fundamental. Portanto, não há que se falar em proeminência do interesse público sobre o in-teresse privado, nem do interesse privado sobre o público. Pelo mesmo motivo, não haverá hierarquia entre seus corolários segurança e liberdade.

O esclarecimento de Binder é extremamente importante, porque nos permite compreender que a relação dialética entre garantia e eficiência sempre se caracterizou em dois polos opostos, em dois pontos extremos, que nunca se comunicaram. E é também importante na medida em que nos permite sonhar com a possível superação desse conflito histórico que se desenhou entre as duas tendências.

Não queremos mais a síntese excludente de uma relação dialética, que só serviu para conformar um modelo processual de época. Queremos um novo formato, no qual as tendências convivam, senão harmonicamente, pelo menos configurando uma nova relação, marcada pela reciprocidade e complementari-dade, e onde o diálogo seja constante.

A superação da relação de oposição entre eficiência e garantia se jus-tifica por diversas razões. Lopes Junior (2005:147) lembra que Cesare Becca-ria já expunha, no clássico livro Dos delitos e das penas, a importância de se combater a morosidade do processo. Bem sabemos que a lentidão do processo permanece, nos dias atuais, na pauta de todas as reformas do Poder Judiciário. Não por acaso, a emenda constitucional 45 reforçou a orientação constitucional, prevalecente desde 1988, de julgamento do processo no prazo razoável144.

Nesse quadro, não seria de todo descabível traçar um novo paradigma para eficiência, associando-a: (a) ao julgamento sem dilação indevida; (b) à po-lítica de combate aos prazos mortos do processo, compreendidos como aqueles que geram perda desnecessária de tempo e que não contribuem para o debate em contraditório; (c) à imposição de limite de tempo para a conclusão de inves-tigação; (d) à imposição de limite de tempo para a duração das medidas caute-lares; (e) à imposição de limite de tempo para a publicação da decisão, para o julgamento dos recursos e para a análise urgente dos pedidos de habeas corpus; (f) à valorização da audiência, como instância apropriada para a colocação do argumento e sua imediata valoração com base na prova.

Perceba como o novo conceito de eficiência pode se tornar um impor-tante regulador do poder de intervenção penal, contribuindo para o julgamento

144 Para entender porque não houve inovação, ver abordagem de LOPES JUNIOR (2010:153-157) sobre o tema, referendada pela Convenção Americana de Direitos Humanos, artigos 7º e 8º, e pela Constituição da República de 1988, artigo 5º, os incisos XXXV, LIV e LV.

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no prazo razoável, sem afetar a participação do acusado, sem comprometer o tempo indispensável à sustentação da defesa e à validação dos seus argumentos pela prova. Enfim, sem flexibilizar nenhuma garantia do processo democrático.

Bastaria mudar o foco. Em vez de uma política de estado, caracteri-zada pela sumariedade do julgamento, melhor seria ter uma política de direito, realizadora dos direitos fundamentais. Enfim, um conceito de eficiência que possibilite construir uma decisão de qualidade, mas sem urgência, e que seja prolatada no tempo razoável, pela via democrática da participação influente dos interessados.

2. o panoRama da RefoRma pRocedImental de 2008: decIdIR monocRátIco e eStRutuRa bIfáSIca, heRançaS de um paSSado “hIpeR-efIcIente” e deScompRomISSado com oS dIReItoS fundamentaIS

“[...] meu bem, será que você não vê não houve nada.Só o passado rondando, minha porta, feito alma penada...”

(lulu SantOS)

Vimos que, nas últimas décadas, a Europa optou por abandonar o ri-gor procedimental. O velho continente passou a defender a variedade de proce-dimentos, a flexibilização das garantias do processo constitucional e a adoção de medidas consensuais e transacionais.

Por enquanto, no Brasil, essa nova cultura chegou de forma mitigada e pouco alterou a nossa legislação145. Mas, certamente, ela ameaça aportar por aqui, com a intenção de ficar definitivamente. O Projeto de reforma do Código Penal contempla uma política rigorosíssima em que o aumento de penas é com-pensado pelas soluções transacionais.

Na reforma penal que está em curso, as penas máximas de ontem pretendem se tornar penas mínimas de amanhã, dentro de uma lógica de falsa bondade, no qual o Estado não aumenta pena sem aumentar os benefícios. Veja bem, o que antes era alcançado somente por meio de uma decisão judicial, em uma análise totalmente desfavorável das circunstâncias que orientam a dosi-metria, agora pode ser facilmente imposto, sem processo. Óbvio, basta que o acusado se submeta à transação para evitar uma pena maior. Celeridade sem

145 O procedimento sumaríssimo, da Lei 9.099/95, instituiu a conciliação entre as partes, seja com a intenção de obter a composição civil dos danos entre a vítima e o autor do fato, seja por meio da transação penal, que não respeita o contraditório e o direito de defesa, configurando-se mais como imposição verticalizada de pena sem processo.

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processualidade.Seria exagero concluir que ainda convivemos com a ideologia repres-

siva do Estado Novo e com a visão utilitária do processo penal? Creio que não, a Constituição de 1988 não mostrou força para alterar a realidade social e elidir uma tradição repressiva, notoriamente incompatível com o constitucionalismo democrático que ela instituiu. O passado, de fato, ronda a nossa porta feito alma penada.

Precisamos ter a consciência de que o Estado brasileiro preserva aquela “conotação hegeliana” de ente superior, que se considera absolutamente “autosuficiente na criação do direito”. E que ele se apresenta como “verdadeiro controlador soberano da sociedade política” (LEAL, 2004: 48). Essa a realidade em que vivemos.

Temos que aprender a enxergar a estrutura hierarquizada do nosso Poder Judiciário. Do contrário, não perceberemos a sua opção, clara e cons-ciente, por realizar justiça no plano “autárquico-estatal” (LEAL, 2004: 49), sem abertura para a exigência democrática de participação nas esferas decisórias.

Depurando o pensamento de Mirjan Damaska, CLEMENTEL (2011:14-15) retrata o quadro atual com perfeição:

[...] conclui-se que o Brasil possui um modelo de autoridade judiciária hierárquico, com o Estado atuando ativamente na sociedade, buscan-do, por meio do processo judicial, implementar políticas públicas de melhoria material e moral dos seus cidadãos. Quanto ao modelo de processo judicial criminal, pode-se concluir que no Brasil modelo no adversary (ou de investigação oficial – oficialidade).

Nesse contexto, pode-se afirmar que a reforma procedimental de qua-tro anos atrás não rompeu com o passado. Lembre-se de que o artigo não traz uma visão global de toda a alteração legislativa. Ela mereceu análise cuidadosa de importantes autores146, que foram muito além da fronteira demarcada nesse artigo, e devem ser consultados. Todavia, em seus comentários, GIACOMOLLI (2008:59-69) denunciou a “evidente deformação da ritualística do processo pe-nal” e a preservação do que aqui se denominou verticalização do ato decisório.

Preso à lógica bullowiana, a reforma deixou claro que o ato de rece-bimento da denúncia é um ato de soberania do Estado, dotado de pleno poder, sem fresta para manifestação da defesa (artigo 396 do Código). Por conseguin-te, pecou, consideravelmente, em não adotar o formato quadripartite do proce-dimento modelo e por não se adequar à exigência democrática de participação

146 Por todos BARROS (2009) e GIACOMOLLI (2008).

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nos mecanismos decisórios.Poderíamos ter avançado bastante se tivéssemos instituindo nos pro-

cedimentos ordinário, comum e sumário a fase intermediária, destinada à for-malização da denúncia, à abertura para resposta da defesa e à realização do juízo de admissibilidade, recepcionando o contraditório e a ampla defesa.

O modelo verticalizado de decidir confere uma falsa imagem de efi-ciência à jurisdição penal. Contudo, trata-se de um modelo que não é imune á crítica. A pretensa celeridade na abertura do processo penal obstruiu a partici-pação do acusado, deslocando argumentos relevantes de defesa para as alega-ções finais. Afinal de contas, que concepção de eficiência é essa que dispensa a capacidade do processo de gerir soluções conjuntas?

E mais, seria possível sustentar celeridade diante da fragmentação do ato de recebimento da denúncia? O ato que, na estrutura de 1941, consolidava--se em único momento, desde o ano de 2008 se reparte em dois tempos distin-tos. Primeiro, o juiz recebe147 a acusação, afastando solitariamente as hipóteses de inépcia, de falta de pressuposto processual, de falta de condição da ação e falta de justa causa (artigo 396 do Código de Processo Penal).

Depois de formalmente recebida a acusação, é que o juiz abre a opor-tunidade para a manifestação da defesa. Somente quando o processo já está instaurado, é que se permite ao acusado arguir atipicidade, existência de causa excludente da ilicitude ou de culpabilidade (salvo inimputabilidade). Mesmo assim, sua argumentação se concentra no mérito, com vistas à absolvição su-mária (hipótese criada pelo reforma - artigo 397 do Código de Processo Penal). Então, havendo alegação nesse sentido, o juiz retoma a conferência de regula-ridade da acusação para, se for o caso, absolver antes da produção de prova. Não para rejeitar a denúncia. Até porque, o momento para a rejeição já passou.

A fragmentação é clara, mas injustificável. O ideal seria que o juiz ouvisse o acusado antes de receber a denúncia e, em uma única oportunidade, verificasse se existem elementos para abertura do processo penal, seguindo a orientação do formato quadripartite do procedimento modelo.

Infelizmente, prevaleceu, na reforma parcial do Código, a tese de Büllow sobre a estatização do nascimento do processo, que explica muito bem a nossa tradição de verticalização da decisão no momento de recebimento da acusação. Observa-se, precisamente, na reforma, a tendência de uma “proces-sualística centrada na pessoa do juiz, que o coloca na missão não só de julgar o caso concreto, mas de solucionar os problemas de (in)justiça social” (BAR-ROS, 2009:07). É a vitória de uma instrumentalidade vazia sobre a processua-lidade democrática.

Ocorre que a pretensão de se separar argumentos processuais de ar-

147 O grifo se justifica para demarcar o momento do recebimento.

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gumentos de mérito e de fragmentar o juízo de admissibilidade não se sustenta juridicamente. Primeiro, porque denúncia sobre fato atípico não deveria ser ja-mais recebida. Assim como não deveria haver recebimento, quando a exclu-dente de ilicitude e de culpabilidade restam incontroversas. Qual o sentido de abrir o processo penal nessas condições? Somente para absolver formalmente o acusado? E a preocupação com a celeridade?

Essa separação também é insustentável porque retira do acusado a oportunidade de se manifestar sobre as questões processuais antes do juízo de admissibilidade. Se ele perceber a inépcia denúncia ou a falta de condição da ação, por exemplo, não lhe será permitido argumentar nada em tempo hábil. O processo já estará aberto e ele terá que sustentar seus argumentos em alegações finais.

Pense bem, a acusação já está recebida e estes argumentos não consti-tuem hipóteses de absolvição, segundo o artigo 397 do Código. Estando aberto o processo, esses argumentos serão confundidos com o mérito e serão apre-ciados somente na sentença. Poderá, então, ocorrer o absurdo de, na decisão final, o juiz reconhecer que a denúncia era inepta, porquanto não discriminou a responsabilidade do acusado devidamente.

Ora, essa inépcia poderia ter sido arguida e analisada antes, dispen-sando as fases de instrução e de julgamento. Na realidade implementada pela reforma de 2008 não há celeridade, há desperdício de tempo e prejuízo ao con-traditório e ao direito de defesa. O processo terá que chegar à sentença para que o juiz se manifeste sobre circunstâncias que deveriam ter sido apreciadas no juízo de admissibilidade. Mas, são elementos que não foram ali verificados, simplesmente porque fugiram à percepção do juiz e não puderam ser arguidas pela defesa antes do recebimento da acusação.

O contratempo poderia ter sido resolvido se tivesse sido instituída a fase intermediária, verdadeiro filtro sobre a coerência da acusação. Com ela, evitar-se-ia o prolongamento desnecessário do processo, com a realização obri-gatória das duas últimas fases. Seguramente, pode-se concluir que a fragmen-tação do ato de recebimento da denúncia constitui hipótese inquestionável de péssimo gerenciamento do tempo do processo e de anulação do contraditório e do direito de defesa.

Se os novos procedimentos tivessem adotado a fase intermediária, vários prazos mortos poderiam ser eliminados. Em audiência, haveria a apre-sentação da denúncia. Então, o acusado poderia: (a) tomar conhecimento e se limitar a discriminar provas; (b) impugná-la imediatamente, se se sentisse em condição de fazê-lo; (c) requerer prazo para estruturação da defesa preliminar, designando-se nova data para o juízo de admissibilidade. Com certeza, haveria economia com expedientes cartoriais e com cumprimento de mandados, e não

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haveria equação milagrosa para diminuir o tempo indispensável à sustentação da defesa.

De se lamentar, portanto, que a reforma procedimental de 2008 tenha preservado a estrutura bifásica do Código Napoleônico de 1808, mantendo o inquérito como filtro unilateral contras as acusações injustas, levianas e teme-rárias. Esse instrumento arcaico foi concebido para um Estado policialesco. Inteligentemente, trata-se de um mecanismo que permite ao Estado controlar o sistema penal em sua origem, gerindo, unilateralmente, a investigação e a instauração do processo.

Da investigação à abertura oficial do processo prevalece a gestão esta-tal dos problemas penais. O imputado que se manifeste na condição de acusado, no exercício de sua defesa, tardiamente. Seus argumentos, quando muito, terão espaço no encerramento do processo, podendo ou não ser acolhidos na sentença.

E o que reputo mais grave: a manutenção da estrutura bifásica nos mantém presos em um passado sombrio. Nosso inquérito resgata a técnica in-quisitória de formação antecipada de culpa na primeira fase do procedimento. Desenvolvendo cognição plena, em nome da segurança pública, a investigação antecipa a produção de prova, excluindo o acusado do momento de sua produ-ção. Formada a culpa, inicia-se o processo, permitindo-se o direito de defesa. Mas se defender de que se já existe prova da responsabilidade penal?

A estrutura bifásica possui uma fórmula perversa que preserva a ges-tão da prova nas mãos do Estado, enfraquecendo o contraditório e o direito de defesa. O Estado não apenas investiga, produz prova. Esse o problema, porque prova do inquérito serve para condenar de acordo com a tradição jurispruden-cial brasileira. Ora, se já existe prova para condenar, qual o sentido em abrir o processo penal? O sentido está em aplicar a pena? Voltamos àquela visão utili-tarista que define o processo como mero instrumento de defesa social e que não guarda compromisso com a processualidade democrática.

Nesse contexto, o processo perde o sentido de existir. A hipótese pré--concebida dificilmente será verificada, em juízo, sob o pálio do contraditório. A tendência é de que ela seja ratificada e que o direito de defesa seja mera formalidade que precede a aplicação da pena. Com efeito, a possibilidade de alterar a hipótese do inquérito, pela manifestação tardia da defesa, no processo, é mínima.

Chegou a hora de entender a astúcia da fórmula napoleônica. As ga-rantias processuais, que incidem na fase judicial, não atenuarão o problema da prova pré-produzida. Há sempre um prenúncio de culpa no ar, advindo do inquérito, que não desaparecerá com a instauração do processo penal. Nessa perspectiva, a exigência democrática de construção participada da decisão aca-ba sendo sufocada pela energia repressiva e eficiente da Justiça Penal. No en-

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tanto, com notória influência do inquérito e admirável brevidade, a jurisdição conseguirá prover a sanção penal.

concluSão

No Brasil, eficiência e repressão enérgica são expressões sinônimas, que estão vinculadas à política de defesa social e, geralmente, são empregadas para reduzir garantias do processo constitucionalizado.

No Estado Democrático de Direito, as garantias não retardam a inter-venção penal e não contribuem para o aumento de criminalidade. Consequen-temente, não podem ser sacrificadas para se alcançar o sonhado processo sem dilação indevida.

A celeridade, compreendida, equivocadamente, como reação ins-tantânea ao delito, tem obstruído o papel democrático do processo penal, de viabilizar a participação influente e igualitária das partes, na elaboração da decisão penal.

No horizonte do processo constitucional, é possível conceber um novo conceito de eficiência, compatível com os limites impostos pela proces-sualidade democrática. Basta reconciliar o julgamento no prazo razoável com a exigência democrática de construção participada da decisão.

Para tanto, é preciso abandonar a estrutura hierarquizada do nosso Po-der Judiciário. É necessário combater a cultura brasileira de decisão verticalizada.

O conceito democrático de eficiência permitirá construir uma decisão de qualidade, no tempo razoável, pela via democrática da participação influente dos interessados.

Justamente por acreditar nessa possibilidade, é que reprovo a oportunidade perdida em 2008. Presa no passado, a reforma manteve a tra-dição de verticalização do ato decisório no ato de recebimento da acusação e a estrutura bifásica do Código Napoleônico. De se lamentar, porque pode-ria ter revertido essa realidade autoritária, adotando o formato quadripartite do procedimento modelo.

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7pRoceSSo eletRônIco como InStRumento da cIdadanIa

mateuS eduardO Siqueira nuneS bertOncini

Doutor e Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Professor do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITI-BA. Professor da Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná – FEMPAR. Líder do grupo de pesquisa “Ética, direitos fundamen-tais e responsabilidade social”. Procurador de Justiça no Estado do Paraná.

Felippe abu-Jamra cOrrêa

Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA. Membro do grupo de pesquisa “Ética, direitos fundamentais e responsabilidade so-cial”. Advogado e sócio do escritório Reis, Corrêa & Lippmann Advogados Associados.

SumáRIo: Introdução. 1. O problema da lentidão da justiça no Brasil. 2. O processo ele-trônico: breve histórico de sua implementação no Brasil. 3. A Lei 11419/2006. 4. Redução de custos, celeridade processual e razoável duração: alguns dos principais potenciais do processo eletrônico. Conclusão. Referências.

IntRodução

Atualmente, a tecnologia acompanha o ser humano em muitos de seus atos cotidianos.

Quando do surgimento décadas atrás das primeiras ferramentas tec-nológicas da eletrônica e da cibernética, o homem não só olhava para elas com certa reserva, como colocava em dúvida até onde elas chegariam e seriam úteis no seu dia a dia.

Assim, passo após passo, elas foram se revelando de extrema valia, não só poupando tempo, como também otimizando a realização de muitas tarefas.

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E no Direito o panorama não era outro: durante muito tempo, advo-gados, magistrados e promotores se utilizaram da máquina de escrever para redigir suas petições e decisões. Essa era a tecnologia disponível. Também eram comuns despachos e decisões manuscritas lançadas nos processos de papel. Além disso, a pesquisa de jurisprudência se dava manualmente nos repositórios jurisprudenciais, que exigiam um enorme espaço físico para o seu apropriado acondicionamento. O controle de processos nos cartórios era realizado por meio de fichas e livros anotados manualmente.

Com o passar dos anos e a invenção dos computadores, esses pas-saram a fazer parte também do ambiente jurídico. E a partir de então a evolu-ção foi notável. De início os computadores substituíram as velhas máquinas de escrever. Depois, vieram os scanners, as impressoras de alta velocidade, sem se falar na conexão à internet, que permitiu a consulta de jurisprudência e dos andamentos processuais sem a necessidade de se sair do escritório ou dos gabinetes. Os registros cartoriais também se tornaram digitais. Por fim, o velho processo de papel sofreu transformação. Vivemos a era do processo eletrônico ou do processo judicial realizado por meio eletrônico.

Evidentemente, como ocorre em toda quebra de paradigma, esse novo cenário não é perfeito, e tampouco se apresenta perto de uma otimização completa.

Introduzido de forma tímida, ainda como piloto em algumas Varas específicas, atualmente é uma realidade em diversos tribunais, dentre eles o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no qual todos os novos feitos, desde 2010, tramitam de maneira exclusivamente digital.

Acompanhando essa admirável mudança, também foram promul-gadas leis que regulamentam o tema, sendo uma das mais importantes a Lei 11.419/2006148.

A implementação do processo eletrônico traz consigo algumas vanta-gens e também problemas a serem corrigidos. No entanto, parece que o modelo vem superando as deficiências próprias dos sistemas eletrônicos, bem como assim precisões legislativas ainda existentes.

Objetiva-se com o presente artigo refletir sobre o processo eletrônico no Brasil,analisando o problema da morosidade judicial, do histórico do regra-mento legislativo a respeito do tema e avaliando de que maneira o modelo pode resultar em uma prestação jurisdicional mais efetiva e célere.

A questão central da pesquisa é a seguinte: o processo eletrônico é meio apto para se garantir a cidadania?

Para a construção da resposta a essa indagação será empregado o mé-

148 BRASIL. Lei nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006. Dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 19 dez. 2006.

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todo dedutivo, centrado na análise da legislação, doutrina e dados disponíveis a respeito do funcionamento da justiça e do processo eletrônico.

Inicia-se o trabalho tratando-se brevemente dos reflexos advindos da lentidão da justiça.

1. o pRoblema da lentIdão da JuStIça no bRaSIl

Não parece necessária muita reflexão para se reconhecer que o ho-mem pós-moderno tem pressa no que tange à concretização dos seus interesses, velocidade essa proporcionada e estimulada pelo mundo digital, onde a infor-mação circula mundialmente em segundos pela internet, num toque de teclado de computador ou mediante algum comando em aparelho de telefonia, algo ainda muito recente na história humana.

Da mesma forma, essa rapidez ganha relevância quando esse cidadão “além do moderno”149 busca resposta a um de seus direitos fundamentais, seja ele de acesso à saúde, à segurança, à justiça etc.

Se por um lado o acesso à justiça é garantido pelo Estado brasileiro, em especial após a promulgação da Constituição Federal de 1.988150 e da legis-lação que veio regulamentá-la, como p.ex., a Lei 9.099/95,151 que instituiu os Juizados Especiais152, de outro lado o Estado não consegue solucionar o crônico problema da morosidade da justiça, criando perplexidade na sociedade e no cidadão que se vê frustrado na efetivação de seus direitos, toda vez que precisa demandar a sua defesa em face do Poder Judiciário.

Desnecessário dizer que uma das formas de injustiça está na prestação jurisdicional que se arrasta ao longo dos anos, sem efetivamente resolver a con-trovérsia levada pelo jurisdicionado ao Poder Judiciário. Ou, como diz Agapito

149 A expressão é utilizada por Paolo Grossi. (GROSSI, Paolo. Primeira Lição sobre Direito. Tradução de Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 102).150 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 05 out. 1988. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acessado em: 21.09.2012.151 BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 26 set. 1995.152 Prova disso é a afirmação de Patrícia Lopes, ao dizer que “É inquestionável que após a Constituição de 1988 houve um crescente aumento de demandas judiciais. De acordo com a pesquisa realizada pelo Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, o número de feitos ajuizados no ano de 2000 foi superior em 135% ao total ajuizado em 1990.” LOPES, Patrícia Helena Daher.Tecnologia e Poder Judiciário: Modernização da prestação jurisdicional. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 40, fev. 2011. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao040/patricia_lopes.html. Acesso em: 21.09.2012. p. 02.

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Machado, “Justiça rápida sempre foi e será o ideal de todos, mormente em um País que se diz democrático”.153Em outros termos, essa lentidão atenta contra o Estado de Direito e a própria democracia.

Também relevante mencionar que segundo artigo publicado no portal do Conselho Nacional de Justiça por Sergio Tejada, com base em informações disponibilizadas pelo IPEA, constatou-se que “a ineficiência na justiça é res-ponsável pela redução em 25% da taxa de crescimento de longo prazo do País”. Demais disso, “com uma justiça eficiente o Brasil poderia crescer mais 0,8% ao ano e aumentar a produção nacional em até 14%. A taxa de desemprego cairia quase 9,5% e os investimentos aumentariam em 10,4%”154.

Em sentido semelhante, o website “doingbusiness.com”, projeto pri-vado ligado ao Banco Mundial e destinado a fornecer medidas objetivas de re-gulamentação de negócios em 183 economias ao redor do mundo, apontando as vantagens e desvantagens para a instalação de empresas nos países sob estudo, chegou à conclusão que a demora na tramitação dos processos judiciais no país é muito grande, interferindo negativamente no ambiente de negócios.

Por um de seus indicadores, representado pelo tempo, custo e núme-ro de procedimentos envolvidos desde o momento em que determinado autor entra com uma ação judicial até o efetivo pagamento do valor em disputa, o Brasil aparece apenas na 118ª posição (entre 183 países) nessa avaliação, com a duração processual média de 731 dias, atrás de nossos vizinhos Peru, Para-guai e Uruguai, e, ainda, de países como Haiti, Guiné Equatorial, El Salvador e Butão155.

Em outros termos, o Brasil possui um sistema judicial ineficaz, dis-função que interfere no crescimento econômico e no desenvolvimento nacio-nal, questão não solvida que ultrapassa a esfera individual do jurisdicionado, tornando-se um problema de natureza coletiva, difusa, de grande dimensão, a desafiar solução.

Em virtude disso, algumas alterações vêm sendo observadas em nos-so ordenamento jurídico ao longo dos últimos anos.

153 MACHADO, Agapito. Juizados Federais Virtuais. Revista do Conselho da Justiça Federal. Brasília, n. 31,out./dez. 2005. p. 76.154 GARCIA, Sergio Renato Tejada. Processo Virtual: uma solução revolucionária para a morosidade. Artigos do Conselho Nacional de Justiça. Disponível em http://www.cnj.jus.br/imprensa/artigos/13304-processo-virtual-uma-solu-revoluciona-para-a-morosidade. Acessado em: 29.10. 2011.155 Disponível em: http://chttp://www.doingbusiness.org/Rankings. Acessado em: 23.09. 2012.

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2. o pRoceSSo eletRônIco: bReve hIStóRIco de Sua Implementação no bRaSIl

Diversas foram as iniciativas e leis aprovadas nos últimos anos– in-clusive uma emenda constitucional – destinadas a enfrentar o problema da mo-rosidade na prestação jurisdicional.

No ano de 1.999 houve uma primeira sinalização de que a tecnologia então disponível poderia ser utilizada no âmbito do Poder Judiciário. A Lei 9.800156 daquele ano previa a “utilização de sistema de transmissão de dados e imagens tipo fac-símile ou outro similar, para a prática de atos processuais que dependam de petição escrita”.

Em 2.001 foi promulgada a Medida Provisória 2.002-2157, de 24 de agosto de 2.001, a qual instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasilei-ra - ICP-Brasil, visando a “garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras”.

Essa Medida Provisória veio justamente regulamentar um setor que apresentava grande expansão e importância já naquele momento, pois com a onda de utilização de computadores, somada ao fato do grande avanço da in-ternet, muitos documentos eletrônicos e em volume crescente passaram a ser produzidos, impondo-se a necessidade de garantia e autenticidade deles.

A Lei 11.232/2005158, ao subdividir o artigo 475 do Código de Pro-cesso Civil, especialmente o art. 475 – I e seguintes, que trata do processo sincrético,objetivou justamente a supressão do então conhecido “novo” proces-so de execução.

Em meados daquela década foi promulgada a Emenda Constitucional nº 45 de 2004,159que incluiu o inciso LXXVIII no artigo 5º da Constituição Fe-

156 BRASIL. Lei nº 9.800, de 26 de maio de 1.999. Permite às partes a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 27 mai. 1.999.157 BRASIL. Medida Provisória 2.200-2, de 24 de agosto de 2.001. Institui a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, transforma o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação em autarquia, e dá outras providências.. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 24 ago. 2.001.158 BRASIL. Lei nº 8.899, de 22 de dezembro de 2005. Altera a Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, para estabelecer a fase de cumprimento das sentenças no processo de conhecimento e revogar dispositivos relativos à execução fundada em título judicial, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 22 dez. 2005.159 BRASIL. Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004. Altera dispositivos dos

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deral, assegurando a todos os brasileiros “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.160 Ou seja, a preocupação coma morosidade judicial se refletiu na própria Constituição, tornando-se a du-ração razoável do processo um direito fundamental.

Todavia, antes mesmo das alterações acima mencionadas, já havia uma grande mudança em curso representativa de uma quebra de paradigma. E essa mudança atende pelo nome de informatização do processo, ou então, sim-plesmente, de processo eletrônico.

No início dos anos 2000, alguns sistemas digitais de processamento de feitos já davam seus primeiros passos no país, sendo curioso notar que se-quer havia naquele momento um regramento específico sobre como se proces-saria ou o que era efetivamente o processo eletrônico.

Um exemplo disso foi a implementação pelo Tribunal Regional Fede-ral da 4ª Região do sistema denominado “e-proc”. Após alguns testes em Varas eletrônicas piloto, o sistema foi então instituído por meio da Resolução nº 13, publicada em 15 de março de 2004, no Diário da Justiça.

A partir de então, todos os processos cuja competência fosse dos Juizados Especiais Federais, deveriam ser distribuídos por meio totalmente eletrônico.

Ainda que louvável a implementação do processo eletrônico pelo TRF4, o fato é que essa iniciativa não foi uniforme em todo o país, como aler-tou a magistrada federal Patrícia Lopes:

Verifica-se que o Poder Judiciário, em termos nacionais, não é uni-forme. Em alguns tribunais, por exemplo, já se adota o processo ele-trônico, enquanto, em outros, ainda se aplicam rotinas atrasadas de administração de secretaria ou cartório. Ainda, em alguns tribunais, a atividade-meio de administração de servidores e juízes é realizada toda eletronicamente, enquanto, em outros, impera a velha e desne-cessária burocracia de ofícios161.

arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-A, 103B, 111-A e 130-A, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 30 dez. 2004.160 A razoável duração do processo no sistema jurídico brasileiro não surgiu com o mencionado inciso. Ela já era assegurada desde o Decreto 678, de 06.11.1992, que ratificou o Pacto de São José da Costa Rica, que em seu art. 8º instituiu norma no mesmo sentido. (NITSCHKE JÚNIOR, Ademar; PAVELSKI, Ana Paula. Razoável duração do processo e responsabilidade do Estado. In: Jurisdição: crise, efetividade e plenitude institucional. Luiz Eduardo Gunther (coord.). Curitiba: Juruá, 2008. pp. 11-31).161 LOPES, Patrícia Helena Daher. Op. Cit. p. 03.

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Some-se a isso o fato de que como não havia um regramento expresso sobre o assunto, cada tribunal passou a regulamentar o seu próprio sistema, criando regras próprias de utilização e portais de acesso completamente dife-rentes entre si.

Essa diversidade de sistemas e procedimentos nos tribunais, para além das indesejáveis incompatibilidades próprias de modelos eletrônicos dife-rentes, guarda relação de desconformidade com o disposto no artigo 22, inciso I, da Constituição, que atribui exclusivamente à União legislar sobre processo, o que parece aplicável ao processo eletrônico.

Independentemente da discussão relativa à autonomia dos tribunais na escolha dos sistemas de informática destinados à viabilização do processo digital, o bom senso e a experiência indicam que a padronização é recomendá-vel, em nome de uma maior eficiência e efetividade do modelo.

Tal lacuna indicou a urgente necessidade de regulamentação da maté-ria, padronizando-se o processo eletrônico no âmbito nacional, o que veio a ser relativamente superado pela Lei 11.419/2006.

3. a leI 11.419/2006

No ano de 2006 – época na qual diversos sistemas de processo ele-trônico já haviam sido instituídos no país – foi promulgada a Lei 11.419162, a qual dispôs sobre a informatização do processo judicial, e autorizou de maneira definitiva “o uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comu-nicação de atos e transmissão de peças processuais”.

Com efeito, o que a Lei regulamentou foi o processo judicial reali-zado por meio eletrônico, modelo a ser empregado como uma opção ao tradi-cional processo físico, ao velho processo de papel, tudo indicando que aquele paulatinamente substituirá a esse, sem excluí-lo, entretanto. A Lei 11.419/2006 veio suprir uma importante lacuna regulamentando o processo digital, que na-turalmente não é igual ao processo físico, exigindo um regramento próprio para a prática de seus atos.

Sobre o processo eletrônico, José Carlos de Araújo Almeida Filho afirma:

A Lei 11.419/2006 institui, então, o Processo Eletrônico no Brasil de forma pouco convencional. [...] Em verdade, da leitura do art. 1º de referida Lei, o que teremos serão atos processuais praticados por meios eletrônicos, e, desta forma, justificamos a nossa ideia de não

162 BRASIL. Lei nº 11.419/2006, já citada.

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estarmos frente ao processo eletrônico, mas de verdadeiro procedi-mento eletrônico. E justificamos que a redação do parágrafo único do art. 154 do CPC resolveria a questão, ao menos no CPC. [...] Avanço houve sem dúvida, porque ampliam-se os conceitos para os Processo Penal e do Trabalho. Mas é preciso analisarmos a lei e procurarmos identificar as falhas, para um futuro aprimoramento do que resolveu se denominar processo eletrônico163.

De qualquer maneira, a Lei vige há mais de seis anos, sendo ingente a necessidade de reflexão sobre ela, para que se possa aprimorar o sistema e criar um processo eletrônico confiável e unificado.

Nesse sentido, um importante passo parece ter sido dado pelo Con-selho Nacional de Justiça, o qual em 21 de junho de 2.011 lançou o chamado Processo Judicial Eletrônico, ou PJe. Esse sistema vem sendo desenvolvido pelo CNJ em parceria com diversos tribunais do país, para que num futuro próximo possa ser utilizado como o padrão de processo judicial eletrônico no Brasil. Sua implementação é atualmente observada de maneira mais incisiva no âmbito da Justiça do Trabalho, a qual ainda no ano de 2.010 firmou com o CNJ o Termo de Acordo de Cooperação Técnica nº 51/2010, pelo qual aquela aderiu oficialmente ao PJe visando a elaboração de um sistema único para tramitação dos feitos digitais164. Esse mesmo Conselho, ainda no ano de 2.009, editou den-tre suas “metas” para aquele ano a de nº “10”, que previa “Implantar o processo eletrônico em parcela de suas unidades judiciárias”165.

Paradoxalmente, até o presente momento ainda não foram promulga-das leis específicas que tratem sobre o marco civil da internet no Brasil e tam-pouco que especifique de maneira definitiva quais são os crimes informáticos. Em outras palavras, é possível se falar em processo eletrônico há mais de uma década em nosso meio, sem que haja o necessário regramento sobre como deve ser tratada a internet para esse fim e quais são os delitos a serem sancionados. Tudo isso parece necessário, para que sejam prevenidos ataques aos sistemas de processo eletrônico, para que se evite a destruição ou alteração proposital de seu conteúdo etc., ou, então, para que se reprimam comportamentos dessa ordem, prejudiciais à coletividade.

De toda sorte, e visando a suplantar tal carência legislativa, tramitam no Congresso Nacional dois projetos de lei com tal mister. O primeiro é o de nº

163 ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo. Processo Eletrônico e Teoria Geral do Processo Eletrônico. A informatização judicial no Brasil. 3 ed., Forense: Rio de Janeiro, 2010. p. 150.164 Disponível em: http://www.csjt.jus.br/historico. Acessado em: 23.09. 2012.165 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/gestao-e-planejamento/metas/metas-de-nivelamento-2009. Acessado em: 15.09.2012.

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2.126/2011, que objetiva estabelecer “princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil e determina as diretrizes para atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação à matéria”. Tam-bém datado do ano de 2.011 é o projeto legislativo de nº 2.793, que “dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos e dá outras providências”. Por enquanto, nada ainda está definido.

Não obstante o processo digital seja alvo de críticas e ainda careça de reflexões, o fato é que na prática já se observam algumas mudanças positivas trazidas pelo novel sistema virtual. Dentre elas, a inegável celeridade e razoável duração processual.

4. Redução de cuStoS, celeRIdade pRoceSSual e Razoável duRação: algunS doS pRIncIpaIS potencIaIS do pRoceSSo eletRônIco

Evidentemente, o processo eletrônico por si só não tem o mágico con-dão de resolver todos os problemas do Poder Judiciário brasileiro, e, em espe-cial, de conferir sozinho maior celeridade aos feitos que nele tramitam.

Todavia, pode ser um instrumento valioso quando utilizado de manei-ra adequada pelos operadores do Direito.

Mais do que simplesmente garantir o acesso à justiça “é preciso ga-rantir o acesso de uma forma ampla, o qual, obviamente, inclui dar ao jurisdi-cionado, em tempo adequado, uma resposta ao seu questionamento e, em lhe assistindo razão, assegurar-lhe o mais rápido possível o bem da vida perseguido judicialmente”166.

Quanto ao processo eletrônico seria possível se falar de diversos as-pectos positivos já percebidos na prática cotidiana, como por exemplo a econo-mia de recursos167 ou ainda a economia de pessoal168, proporcionando a redução

166 GAZDA, Emmerson. Reflexões sobre o processo eletrônico. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 33, dezembro. 2009. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao033/emmerson_gazda.html. Acessado em: 14.03.2011. p. 01.167 Conforme, por exemplo, informação dada pelo Ministro do STJ, Cesar Asfor Rocha em outubro de 2.011 ao portal do TRF da 4ª Região, dando conta de que após a implementação do processo eletrônico naquele Tribunal “apenas com transporte físico dos processos dos Tribunais de Justiça dos estados para o Distrito Federal, o STJ economiza cerca de R$ 20 milhões ao ano”. Disponível em: http://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=7689. Acessado em: 20.09. 2012.168 Segundo Sérgio Renato Tejada, “Para fazer a distribuição de 250.000 processos na primeira instância (não levando em conta a distribuição de recursos contra medida cautelar e recursos em geral, que são feitos para as Turmas Recursais), demandaria o trabalho de 90 servidores em regime de tempo integral durante um ano, serviço esse que simplesmente desaparece com o processo eletrônico. Claro está que esses servidores podem ser redirecionados para outras

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de custos do sistema judicial brasileiro, em proveito do contribuinte.O processo digital também vem permitindo a redução do tempo de

tramitação das ações judiciais, até a obtenção da efetiva prestação jurisdicional. Ou seja, tem proporcionado uma maior celeridade processual, de modo a imple-mentar pragmaticamente o direito fundamental à razoável duração do processo.

E nesse sentido, tomando novamente como exemplo o estudo de caso da implementação do processo eletrônico nos Juizados Especiais Federais da 4ª Região, Sérgio Renato Tejada Garcia afirma que já no ano de 2.005 constatou--se o seguinte:

Foi feito um levantamento na Seção Judiciária de Porto Alegre em que se contaram todas as sentenças proferidas de primeiro de janeiro a 31 de julho de 2005, tendo sido verificado o número médio de dias desde a data da distribuição até o dia da decisão, chegando-se aos seguintes números: justiça comum: 789,51 dias; juizados especiais federais com processos de papel e processos virtuais: papel: 525,60 dias, virtuais: 239,23 dias; juizados cíveis totalmente virtuais: 37,83 dias169.

Observou-se portanto, uma significativa redução do tempo de trami-tação do processo quando empregado o modelo digital170.

Note-se que diversos fatores podem influenciar tanto positiva quanto negativamente no tempo de duração do processo. Já no ano de 2.003, Pedro Madalena e Álvaro Borges de Oliveira, na obra “Organização e Informática no Poder Judiciário”, alertavam que:

atividades, qualificando ainda mais o atendimento da Justiça Federal”. GARCIA, Sérgio Renato Tejada. Informatização e prestação jurisdicional: desafios e perspectivas. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 11, maio 2006. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao011/sergio_garcia.htm. Acessado em: 21.09.2012. p. 09.169 Idem. p. 09.170 Experiência semelhante foi relatada por Cláudo Simão de Lucena Neto, Adriana Secundo Gonçalves de Oliveira e Viviany Christine Rodrigues da Silva em relação à Justiça do Trabalho no Estado da Paraíba, em estudo que comparou o desempenho da Justiça trabalhista, que adota o processo eletrônico, e a Justiça comum estadual da Paraíba, que ainda emprega o processo físico. (LUCENA NETO, Cláudio Simão de; OLIVEIRA, Adriana Secundo Gonçalves de; SILVA, Viviany Christine Rodrigues da. Automatización procesal y sus reflejos em la justicia laboral ante la justicia del fuero común del Estado de Paraíba – administración de Justicia y manejo de tecnologias avanzadas. In: La administración electrónica como herramienta de inclusión digital. Pilar Lasala Calleja (coord.). Zaragoza: Prensas Universitarias de Zaragoza, 2001. pp.137-154).

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Certas tarefas cartorárias, muitas vezes, concorrem para a morosidade do serviço. Quanta perda de tempo, por exemplo, quando o Escrivão compõe o rol de intimações dos patronos das partes, para fins de pu-blicação da relação na imprensa oficial! Um sistema informatizado, inteligente, estaria predisposto, por exemplo, para, ao fim de cada decêndio, gerar, automaticamente, a relação de todos os casos que dependam de intimação das partes, de forma que somente restaria ao serventuário, encaminhá-la ao destinatário171.

Com a promulgação da Lei 11.419 esse problema específico foi solucionado,uma vez queosseus artigos 4º e 5º definiram que a comunicação dos atos processuais poderia ser feita por diário da justiça eletrônico ou então por meio de portal próprio de cada tribunal,172 dispensando-se inclusive, nesse

171 MADALENA, Pedro; OLIVEIRA, Álvaro Borges de. Organização e Informática no Poder Judiciário. Curitiba: Juruá, 2003. p. 27.172 Art. 4º. Os tribunais poderão criar Diário da Justiça eletrônico, disponibilizado em sítio da rede mundial de computadores, para publicação de atos judiciais e administrativos próprios e dos órgãos a eles subordinados, bem como comunicações em geral.§ 1º O sítio e o conteúdo das publicações de que trata este artigo deverão ser assinados digitalmente com base em certificado emitido por Autoridade Certificadora credenciada na forma da lei específica.§ 2º A publicação eletrônica na forma deste artigo substitui qualquer outro meio e publicação oficial, para quaisquer efeitos legais, à exceção dos casos que, por lei, exigem intimação ou vista pessoal.§ 3º Considera-se como data da publicação o primeiro dia útil seguinte ao da disponibilização da informação no Diário da Justiça eletrônico.§ 4º Os prazos processuais terão início no primeiro dia útil que seguir ao considerado como data da publicação.§ 5º A criação do Diário da Justiça eletrônico deverá ser acompanhada de ampla divulgação, e o ato administrativo correspondente será publicado durante 30 (trinta) dias no diário oficial em uso.Art. 5º. As intimações serão feitas por meio eletrônico em portal próprio aos que se cadastrarem na forma do art. 2º desta Lei, dispensando-se a publicação no órgão oficial, inclusive eletrônico.§ 1º Considerar-se-á realizada a intimação no dia em que o intimando efetivar a consulta eletrônica ao teor da intimação, certificando-se nos autos a sua realização.§ 2º Na hipótese do § 1o deste artigo, nos casos em que a consulta se dê em dia não útil, a intimação será considerada como realizada no primeiro dia útil seguinte.§ 3º A consulta referida nos §§ 1o e 2o deste artigo deverá ser feita em até 10 (dez) dias corridos contados da data do envio da intimação, sob pena de considerar-se a intimação automaticamente realizada na data do término desse prazo.§ 4º Em caráter informativo, poderá ser efetivada remessa de correspondência eletrônica, comunicando o envio da intimação e a abertura automática do prazo processual nos termos do § 3o deste artigo, aos que manifestarem interesse por esse serviço.§ 5º Nos casos urgentes em que a intimação feita na forma deste artigo possa causar prejuízo a

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segundo caso, a publicação por meio do já citado diário virtual. Ademais, é possível se perceber na prática as razões que levam o feito

digital a tramitar de maneira mais célere.A partir do momento em que se admite o ajuizamento eletrônico, o ad-

vogado pode distribuir as ações não apenas durante o período de funcionamento dos fóruns, mas sim durante os sete dias da semana, ao longo das vinte e quatro horas do dia (artigo 10, §1º da Lei 11.419/2006)173.

Além disso, não mais existe a necessidade de autuação do feito, com as infindáveis rotinas administrativas de confecção de capa ao caderno proces-sual, organização e furação de todas as páginas para encadernação, encaminha-mento pelo Cartório Distribuidor à Serventia do Juízo competente via malote, conclusão dos autos físicos ao juiz, vista às partes etc.

Com pouco tempo após o ajuizamento o feito, o processo digital já recebe número de autuação e é encaminhado eletronicamente (ou, por meio de um clique no teclado do computador) ao juízo designado. Com isso, é possível que seja proferido o decisório desde logo, como, por exemplo, o ocorrido no Agravo de Instrumento de nº 5015161-93.2012.404.0000,que tramitou perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o qual foi distribuído eletronicamen-te ao Desembargador Relator em 08/09/2012, às 10:29 horas, sendo que já no dia 13/09/2012, às 19:05, foi proferida decisão dando provimento monocrático ao recurso174.

Dito de outro modo, em apenas quatro dias úteis a prestação jurisdi-cional pretendida foi alcançada, situação pouco comum em se tratando de um feito similar que tramitasse em papel, afinal, nesse mesmo tempo provavelmen-te o processo físico seria produzido, ou seja, autuado e confeccionado o caderno processual, ultrapassando-se com folga o tempo que foi necessário para que a

quaisquer das partes ou nos casos em que for evidenciada qualquer tentativa de burla ao sistema, o ato processual deverá ser realizado por outro meio que atinja a sua finalidade, conforme determinado pelo juiz.§ 6º As intimações feitas na forma deste artigo, inclusive da Fazenda Pública, serão consideradas pessoais para todos os efeitos legais.173 Art. 10. A distribuição da petição inicial e a juntada da contestação, dos recursos e das petições em geral, todos em formato digital, nos autos de processo eletrônico, podem ser feitas diretamente pelos advogados públicos e privados, sem necessidade da intervenção do cartório ou secretaria judicial, situação em que a autuação deverá se dar de forma automática, fornecendo-se recibo eletrônico de protocolo.§ 1º Quando o ato processual tiver que ser praticado em determinado prazo, por meio de petição eletrônica, serão considerados tempestivos os efetivados até as 24 (vinte e quatro) horas do último dia.174 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AGI 5015161-93.2012.404.0000, do Paraná. Caixa Econômica Federal versus O. B. d. S. Relator: Desembargador Fernando Quadros da Silva. Decisão Monocrática de 13 de setembro de 2012.

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decisão fosse proferida no processo eletrônico175. Confirma-se, assim, a constatação de José Carlos de Araújo Almeida

Filho, no sentido de que:

Com a adoção do processo eletrônico no Brasil, o princípio da eco-nomia processual será alargado, porque haverá menor desperdício na produção dos atos processuais. As economias – processual e financeira – que o processo eletrônico produz devem ser pensadas sob todos os ângulos. O direito processual não se mede pelo valor da causa, porque todas têm a mesma importância, já que a lide deve ser solucionada176.

Ainda, em abono a tese, foi disponibilizada pelo setor de estatística do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, um levantamento comparando o tem-po médio de duração processual, desde o momento da distribuição de recursos e ações originárias daquele Tribunal até o instante da lavratura do respectivo acórdão177. O levantamento foi iniciado no mês de maio de 2.010 e realizado até o mês de agosto de 2.012, período no qual foram julgados 267.043 processos, sendo 150.806 físicos (ou de papel) e 116.237 via processo eletrônico. Consta-tou-se, ao final, que nos processos de “papel” o tempo de tramitação médio foi de 463 dias, enquanto que nos eletrônicos essa média caiu para 214 dias.

Diante dos argumentos trazidos e dos exemplos colacionados (que, aliás, são poucos diante de muitos que têm sido observados na prática cotidiana do processo eletrônico178), resta evidenciado que de certo modo a tão almejada celeridade e razoável duração processual encontraram no processo eletrônico

175 Experiência semelhante foi relatada por Cláudo Simão de Lucena Neto, Adriana Secundo Gonçalves de Oliveira e Viviany Christine Rodrigues da Silva em relação à Justiça do Trabalho no Estado da Paraíba, em estudo que comparou o desempenho da Justiça trabalhista, que adota o processo eletrônico, e a Justiça comum estadual da Paraíba, que ainda emprega o processo físico. (LUCENA NETO, Cláudio Simão de; OLIVEIRA, Adriana Secundo Gonçalves de; SILVA, Viviany Christine Rodrigues da. Automatización procesal y sus reflejos em la justicia laboral ante la justicia del fuero común del Estado de Paraíba – administración de Justicia y manejo de tecnologias avanzadas. In: La administración electrónica como herramienta de inclusión digital. Pilar Lasala Calleja (coord.). Zaragoza: Prensas Universitarias de Zaragoza, 2001. pp.137-154).176 ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo. Op. cit. p. 95.177 Referido levantamento foi disponibilizado gentilmente pelo setor de estatística do Tribunal Regional Federal da 4ª Região durante a elaboração do presente estudo. Todavia, não há previsão de sua publicação no site do Tribunal.178 Vide como exemplo o feito eletrônico de número 2011.70.50.0090701, no qual do ajuizamento ao trânsito em julgado foram necessários menos de oito meses de trâmite processual. Disponível em: http://www3.jfpr.jus.br/consulta/acompanhamento/resultado_ pesquisa_popup.php?txtValor=201170500090701&selOrigem=PR&chkMostrarBaixados=&todasfases=S&selForma=NU&todaspartes=&hdnRefId=&txtPalavraGerada=. Acessado em: 24.09.2012.

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um forte aliado.Evidente que o sistema ainda apresenta falhas, sendo talvez a falta de

uniformização nacional a maior delas. De qualquer maneira, os eventuais pro-blemas podem e devem ser corrigidos de maneira ágil, afinal,a rápida evolução é uma das características marcantes da ciência da computação.

Como arremata Sérgio Tejada:

[...] a história do processo eletrônico não está concluída. Ao contrário, mal começou. Ainda há muito que ser feito, não só no que diz respeito às melhorias do Sistema, mas especialmente com a descoberta de no-vos usos e a criação de formas alternativas de processar e julgar causas judiciais. De qualquer modo, já comprovou ser uma ferramenta efi-ciente para, junto com outras soluções legislativas e administrativas, aproximar a justiça do povo, dar transparência ao Judiciário,melhorar o acesso à Justiça, diminuir o custo da prestação jurisdicional e, muito especialmente, afastar definitivamente a morosidade da Justiça179.

Com efeito, o processo eletrônico não pode ser transformado em pa-naceia para todos os problemas da justiça brasileira, pois sem investimento e estruturação do Poder Judiciário, sem a simplificação do sistema recursal, sem a desburocratização do processo e sem a formação e o empenho dos operadores do Direito na efetivação de um modelo de justiça eficiente, a adoção do proces-so eletrônico por si só terá dificuldades em gerar melhores e maiores frutos aos jurisdicionados. Uma justiça eficaz exige muito mais, como observa Patrícia Lopes:

A duração razoável do processo pode ser obtida por meio de reformas processuais e aumento do número de servidores e juízes, mas, tam-bém, com a criação de rotinas que diminuem o tempo de tramitação dos feitos. O uso da informática é uma das formas. Através de siste-mas de armazenamento de dados, comunicações eletrônicas, publi-cações em Diários da Justiça etc, a burocracia diminui e, no mesmo tempo, juízes e servidores podem realizar outras atividades180.

A efetivação do direito fundamental à razoável duração do processo tem no processo digital um de seus elementos de concretização, não o único.

Com observa Eduardo Cambi, “a Constituição e as leis não resolvem,

179 GARCIA, Sérgio Renato Tejada. Op. cit. p. 15.180 LOPES, Patrícia Helena Daher. Op. cit. p. 07.

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imediatamente, os problemas da sociedade”; “a dimensão textual é necessária, mas deve ser associada com a efetivação das condições sociais e institucionais inerentes ao respeito às leis e à Constituição”181.

O processo eletrônico é uma realidade que não mais pode ser negada. Mesmo que se reconheça a necessidade de um aprimoramento constante dos sistemas de informática, da necessidade de reflexão acadêmica sobre o tema, de alterações legislativas, de formação de uma nova cultura de justiça, menos burocrática e mais próxima da população, é fato inegável que o processo virtual já vem demonstrando ser um importante meio de concretização de cidadania, afinal, a seu modo, vem proporcionando o incremento da celeridade processual e do princípio constitucional da razoável duração do processo.

concluSão

Diante do exposto, nota-se que no Brasil não é mais possível se falar no processo eletrônico como uma mera hipótese, fruto de divagação. Pelo con-trário, já vivemos a era dos processos virtuais, sendo que iniciativas e exemplos não faltam para abonar tal afirmação.

Foi promulgada há mais de seis anos a Lei 11.419/2006, que regula-mentou a tramitação dos feitos digitais, Lei que veio após a adoção do modelo em alguns tribunais.

O processo eletrônico não resolverá todos os problemas da justiça brasileira, em especial o da morosidade. Reformas legislativas nas leis pro-cessuais, maiores investimentos, novos meios de solução de conflitos etc., são também necessários para a redução do tempo de duração do processo, de forma a torná-lo razoável.

Tão importante quanto se trabalhar no aperfeiçoamento e unificação dos sistemas, é fundamental que se estruturem os fóruns e se ofereça treinamen-to aos servidores do Poder Judiciário para que estejam aptos a compreender e operar com os novos sistemas, próprios do processo eletrônico.

É preciso que haja boa vontade dos operadores do Direito e dos tribunais no entendimento de que o processo eletrônico ainda não é obra acabada, e justamente por essa razão merece uma implementação gradual e serena, afinal, o processo virtual será construído por todos nós, tudo indicando ser ele o substituto do processo físico dos nossos dias.

De toda sorte, e mesmo que sejam necessários aperfeiçoamentos, o fato é que na prática cotidiana já se percebem algumas vantagens que são pro-

181 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. , 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 499.

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porcionadas pelo processo virtual, sendo uma delas – e conforme demonstrado pelos dados e fatos trazidos ao longo do presente estudo – a celeridade pro-cessual que pode ser conferida aos feitos, sem esquecermos da economia de recursos e de pessoal.

Assim, mesmo que outras vantagens não existissem, a simples cons-tatação de que o processo virtual pode efetivamente auxiliar no deslinde mais célere das demandas, parece já ser o bastante para legitimar a sua existência, uma vez que além de interesse de todos os jurisdicionados, a razoável duração do processo é um direito fundamental previsto em nossa Carta Maior, que me-rece materialização em proveito da cidadania.

Enfim, respondendo ao questionamento formulado na introdução, o processo eletrônico é certamente um instrumento da cidadania.

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8podeR JudIcIáRIo, JuStIça e efIcIêncIa: camInhoS e

deScamInhoS Rumo à JuStIça efetIva?

“Se uma justiça lenta demais é decerto uma justiça má, daí não se segue que uma justiça muito rápida seja necessariamente uma justiça boa. O que todos devemos querer é que a prestação jurisdicional venha a ser melhor do que é. Se para torná-la melhor é preciso acelerá-la, muito bem: não, contudo, a qualquer preço.” (Barbosa Moreira)

mônica bOnetti cOutO

Doutora e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Professora Permanente do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho.

SamantHa ribeirO meyer-pFlug

Doutora e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Professora Permanente do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho. Coordenadora e Professora do Curso de Direito da mesma IES.

SumáRIo: Introdução. 1. Morosidade, reformas processuais e duração razoável do processo. 2. A febre do eficienticismo e a outra face da moeda: a duração (ir)razoável do processo e os processos instantâneos? Conclusão. Referências.

IntRodução

Abordar-se-á, neste breve ensaio, a problemática da crise do Judiciá-rio e as tentativas de superação do excesso de processos empreendidas debaixo da bandeira da eficiência do Poder Judiciário.

O tema, não há dúvidas, é alçado na atualidade, dentre os mais rele-vantes e estudados no Brasil, especialmente na última década. Em tempos em que a celeridade parece sobrepor-se ao valor da segurança jurídica, convém refletir em torno do significado e extensão da duração razoável do processo.

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De fato, não é nada razoável que um processo leve anos a fio para ser sentenciado em primeiro grau, nem tampouco a espera – que pode chegar a mais de uma década – até que o credor possa, ao fim, depois de avaliação por quatro instâncias, receber o bem da vida mediante uma longa e cara execução.

Os méritos das reformas processuais empreendidas ao longo dessas duas últimas décadas ao Código de Processo Civil são evidentes. Significativos avanços em termos de efetividade dos direitos e do processo foram sentidos, notadamente os derivados da previsão da tutela antecipada (genérica e, mais tarde, específica) e da reforma da execução, por obra das Leis n. 11.232/2005 (“Cumprimento de Sentença”) e n. 11.382 (“Processo de Execução”).

Neste mesmo ambiente, a Emenda Constitucional 45/2004 teve, igualmente, espaço importante na tentativa de superação da crise instalada no Judiciário – crise essa que não cansamos de repetir: não é apenas numérica, mas institucional e de legitimidade. Muitas outras soluções foram pensadas para além do processo – e neste sentido registramos os avanços na implementação dos meios alternativos de solução de conflitos. Todas essas ideias e sugestões simbolizam um caminhar rumo à efetividade do processo e do Judiciário.

Preocupa-nos, porém, algum exagero que temos presenciado no em-prego (único ou predominante) de critérios quantitativos para a avaliação do desempenho da Justiça.

Trata-se de reflexão que vem amadurecendo com as discussões leva-das a efeito nas reuniões do Grupo de Pesquisa/CNPQ “Reforma e Inovação do Poder Judiciário”, vinculado ao Programa de Mestrado da Universidade Nove de Julho.

O presente ensaio adota o método dedutivo de abordagem, procuran-do partir de premissas gerais para chegar a uma conclusão específica sobre os temas aqui enfrentados. Serve-se, ademais, do método dialético, com o objetivo de buscar possíveis sínteses para as divergências levantadas. Quanto ao proce-dimento, utiliza os métodos histórico, comparativo e sociológico, fazendo uso da interpretação sistemática. O tipo de pesquisa é o bibliográfico, a partir de livros e artigos científicos, servindo-se, também, da pesquisa documental, pela análise da legislação e da jurisprudência.

1. moRoSIdade, RefoRmaS pRoceSSuaIS e duRação Razoável do pRoceSSo

A chamada “Crise da Justiça” é assunto em torno do qual têm gravi-tado discussões dos mais diversos grupos, de juristas a leigos, passando pela opinião pública e notavelmente pela grande mídia, que lhe tem dado singular destaque. Aliás, não é de hoje que temos percebido – e afirmado - encontrar-se

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“na ordem do dia a discussão em torno do grave problema da excessiva lentidão do Judiciário, comumente atribuída ao assustador volume de processos que tra-mitam nos Juízos e Tribunais brasileiros, sobrecarregando-os demasiadamen-te.” 182 Cuida-se de fenômeno que não se circunscreve às fronteiras nacionais, senão que, e quiçá por vezes até mais agudamente, problema instalado também em outros países183.

No Brasil, a tentativa de superação dos números se tem dado preci-puamente pela via da reforma legislativa. Assim, com relação especificamente ao Código de Processo Civil, datado de 1973, houve a edição de 60 (sessen-ta) alterações parciais que promoveram significativas mudanças em seu texto original184.

Neste mesmo ambiente, no ano de 2004, viu-se a edição da Emenda Constitucional 45, inaugurando a chamada Reforma do Judiciário. Dentre as modificações operadas no texto constitucional, merecem ser referidas a criação do Conselho Nacional de Justiça; a eliminação das férias coletivas nos juízos de primeiro grau e nos tribunais de segundo grau (art. 93, inc. XII); a previsão da distribuição imediata dos processos, em todos os graus de jurisdição; a insti-tuição de um mecanismo de filtragem aos recursos extraordinários, mediante a necessidade de demonstração da repercussão geral (art. 102, § 3.º) e da súmula vinculante (art. 103-A)185.

182 Conforme afirmou, em precedente estudo, uma das autoras deste ensaio: COUTO, Mônica Bonetti. A duração razoável do processo como direito fundamental no Brasil: mecanismos e alternativas à sua implementação. In: BAEZ, Narciso Leandro Xavier; NERY DA SILVA, Rogério Luiz; SMORTO, Guido. Os desafios dos Direitos Humanos Fundamentais na América Latina e na Europa. Joaçaba: Editora Unoesc, 2012. p. 371. Neste estudo, procurar-se-á separar duas realidades comumente confundidas: a “do acesso à Justiça” e “o acesso ao poder Judiciário”. O estudo do primeiro, mais amplo e com significado mais abrangente, escapa dos limites propostos por este breve ensaio, que centrará sua análise na crise do segundo – que representa, tão só e apenas, uma das possíveis facetas (e soluções) da crise da primeira.183 Esclarecendo que o problema da morosidade não é exclusividade brasileira, mas também sentido em outros países (tais como Itália, Inglaterra e até Estados Unidos), vide o excelente texto de Barbosa Moreira, resultado de conferência pronunciada em 05.04.2000, no Rio de Janeiro, no seminário “O Direito no Século XXI – Novos Desafios, publicado na Revista de Processo n. 99, julho/set.2000, sob o título O futuro da Justiça: alguns mitos, especialmente às páginas 142-143.184 Está na iminência de ser aprovado o Projeto de Lei de Novo Código de Processo Civil brasileiro (PL 8.046), em tramite perante a Câmara dos Deputados.185 Sobre a EC 45 ver, por todos: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (e outros). Reforma do Judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. Particularmente sobre o instituto da repercussão geral, traçando um paralelo com o direito comparado, consulte-se o trabalho de Arruda Alvim, A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral, publicado no livro anteriormente indicado (às págs. 63-99) e em separata, pela Ed. Revista dos Tribunais. V., com idêntico proveito: DINAMARCO, Cândido Rangel. O processo civil na reforma constitucional do Poder Judiciário, publicado na obra coletiva Reforma do Judiciário, Coord. Sérgio Rabello Tamm Renault e Pierpaolo Bottini, São

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Ainda por conta dessa mesma Emenda Constitucional – e para o que nos interessa, nestas breves linhas – acresceu-se ao art. 5.º o inciso LXXVIII, assegurando a todos, expressa e nomeadamente, tanto no âmbito judicial quanto no administrativo, “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

Tal alteração, para nós, teve muito mais um efeito didático do que qualquer outro significado. Uma das signatárias destas linhas já assentou em outra oportunidade que “em termos práticos ou significativos, pouco resultado teve o acréscimo, no rol dos direitos e garantias individuais, o direito à razoável duração do processo”186.

É que já se podia afirmar, antes mesmo do advento da EC 45, que a razoável duração do processo é inerente à própria garantia de acesso à justiça187-188, na exata medida em que uma atividade jurisdicional morosa e/ou ineficiente esvazia por completo o conteúdo do direito ao acesso à justiça189-190. Em outros termos: o acesso à justiça só é ampla e eficazmente garantido com o asseguramento de uma justiça célere, efetiva e justa.

Neste mesmo norte, aliás, a melhor doutrina aduzia que a duração razoável do processo e de um resultado útil era exigência implicada na própria garantia do devido processo legal. Assim, Cláudio Zarif anotou que:

Uma das garantias intrínsecas ao devido processo legal é o de que os processos devem ser céleres, buscando uma rápida solução para o conflito de interesses levado ao Judiciário, sem que se deixe de lado o respeito a outros princípios também decorrentes do due process,

Paulo: Saraiva, 2005. pp. 291-306. 186 Cf. COUTO, Mônica Bonetti. A duração razoável do processo como direito fundamental no Brasil: mecanismos e alternativas à sua implementação. In: BAEZ, Narciso Leandro Xavier; NERY DA SILVA, Rogério Luiz; SMORTO, Guido. Os desafios dos Direitos Humanos Fundamentais na América Latina e na Europa. Joaçaba: Editora Unoesc, 2012. p. 373. 187 Cf. CAPELLETI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça, Porto Alegre: Sérgio Fabris, tradução Ellen Gracie Northfleet, 1988. p. 161.188 Aliás, a Constituição da República de 1988 sempre foi um tanto enfática ao assegurar no rol de direitos e garantias fundamentais o acesso à justiça (art. 5, inciso XXXV), cujo significado e compreensão há de ser o direito de ingressar na justiça e também de obter uma prestação jurisdicional célere e eficaz.189 Cf. ROSAS, Roberto. Reforma do Judiciário: acertos e desacertos. In.: Coletânea de Estudos Jurídicos: Coordenadoras: ROCHA, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira; PETERSON, Zilah Maria Callado Fadul. Colaboradora: MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Brasília: Superior Tribunal Militar, 2008. p.431.190 Cf. RODRIGUES, Horácio Wanderley. “EC n.º 45: Acesso à Justiça e Prazo Razoável na prestação jurisdicional”. In: Reforma do Judiciário. São Paulo: RT, coord. Teresa Arruda Alvim Wambier e outros, p. 283.

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como o da ampla defesa e do contraditório191.

Em sentido semelhante, José Roberto dos Santos Bedaque ressaltou:

A garantia constitucional do devido processo legal abrange a efetivi-dade da tutela jurisdicional, no sentido de que todos têm direito não a um resultado qualquer, mas a um resultado útil no tocante à satisfa-tividade do direito lesado ou ameaçado. Mas também se inclui nesse contexto o direito à cognição adequada a assegurar o contraditório e a ampla defesa.Entre os direitos fundamentais da pessoa encontra-se, sem dúvida, o direito à efetividade do processo, também denominado direito de acesso à justiça ou direito à ordem jurídica justa, expressões que pre-tendem representar o direito que todos têm à tutela jurisdicional do Estado. Essa proteção estatal deve ser apta a conferir tempestiva e adequada satisfação de um interesse juridicamente protegido, em fa-vor de seu titular, nas situações em que isso não se verificou de forma natural e espontânea192.

De igual modo, era igualmente apontar a Convenção Americana so-bre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário, como antecedente legislativo contemplando a garantia de celeridade ou de uma duração razoável do processo. É o que dispõe o art. 8, I, de referido diploma:

Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e den-tro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, inde-pendente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se de-terminem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza193. Ao menos era essa a base normativa para a fundamentação de alguns

191 Cf. Da Necessidade de Repensar o Processo para que ele seja realmente efetivo, In: Processo e Constituição, Coordenação Luiz Fux e outros. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 140.192 Cf. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado. In: MARCATO, Antonio Carlos (organizador). São Paulo: Atlas, 2004, Comentários ao art. 273. p. 791.193 Cf. COUTO, Mônica Bonetti. A duração razoável do processo como direito fundamental no Brasil: mecanismos e alternativas à sua implementação. In: BAEZ, Narciso Leandro Xavier; NERY DA SILVA, Rogério Luiz; SMORTO, Guido. Os desafios dos Direitos Humanos Fundamentais na América Latina e na Europa. Joaçaba: Editora Unoesc, 2012. p. 373.

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julgados utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, que já assim decidia – reco-nhecendo a existência do direito fundamental ao processo sem dilações indevi-das – conforme se verifica da seguinte ementa:

O réu [...] tem o direito público subjetivo de ser julgado, pelo Po-der Público, dentro de prazo razoável, sem demora excessiva nem dilações indevidas. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 632). Doutrina. Jurisprudência. - O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário [...], traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional. (RTJ 187/933-934, Rel. Min. Celso de Mello)194. Deve-se referir ainda o princípio da eficiência administrativa, inserido

no art. 37, da CF pela EC 19/98, como também um embrião da mais recente inclusão da cláusula da duração razoável do processo.

Como quer que seja, a inclusão nominal, no art. 5º, dentre o rol de di-reitos e garantias, a razoável duração do processo, parece ter um efeito positivo, por sua conotação altamente didática195. Representando a consagração do anseio

194 Cf. COUTO, Mônica Bonetti. A duração razoável do processo como direito fundamental no Brasil: mecanismos e alternativas à sua implementação. In: BAEZ, Narciso Leandro Xavier; NERY DA SILVA, Rogério Luiz; SMORTO, Guido. Os desafios dos Direitos Humanos Fundamentais na América Latina e na Europa. Joaçaba: Editora Unoesc, 2012. pp. 373-374. 195 O próprio Secretário de Reforma do Judiciário já havia esclarecido, em primoroso texto publicado logo após edição EC 45, que a reforma constitucional do Poder Judiciário iniciada com a EC 45 representava apenas uma das várias medidas necessárias à reforma do Judiciário. No texto, afirma que a garantia da celeridade processual (art. 5., LXXVIII, pela EC 45), representa apenas uma diretriz, e não uma norma de aplicabilidade imediata. “No entanto”, prossegue, “consiste em orientação clara ao intérprete e ao legislador, e eiva de inconstitucionalidade qualquer proposta no sentido contrário, ou seja, que disponha sobre mecanismos de retardamento do andamento de feitos.” (Cf. texto escrito sob a epígrafe “Primeiro Passo” In: RENAULT, Sérgio Rabello Tamm; BOTTINI, Pierpaolo. Reforma do Judiciário. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 8). Em outra passagem, enfatiza: “É necessário ressaltar que a Emenda Constitucional n. 45 não encerra os debates, não finaliza as discussões sobre a atividade de realização de justiça. A reforma constitucional representa uma parte das ações que podem trazer resultados importantes para a melhoria do funcionamento do Judiciário e ampliação do acesso das pessoas aos serviços jurisdicionais prestados pelo Estado. Não há medida isolada que possa solucionar os problemas do Judiciário no País. É preciso compreender a reforma do Judiciário como um processo, composto de uma série de ações, cuja implementação coordenada poderá concretizar soluções.” (op. cit., p. 11)

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da população pela maior celeridade do Judiciário, deixa clara a imposição ao Estado de um “dever de atuação em favor da maior efetividade do processo, as-segurando-se a maior qualidade na prestação da justiça aos jurisdicionados”196.

O Supremo Tribunal Federal tem invocado e reiteradamente aplicado a garantia da duração razoável do processo (art. 5º, inciso LXXVIII), e, com esse lastro, decidido pela concessão de (novo) habeas corpus, à vista da demo-ra do julgamento, pelo Superior Tribunal de Justiça, de recurso ordinário, que perante aquela Corte foi interposto. Assim, decidiu-se: “1. Habeas corpus. 2. Excessiva demora na realização do julgamento de mérito de recurso ordinário em habeas corpus interposto no Superior Tribunal de Justiça. Ausência de pres-tação jurisdicional. Violação ao princípio constitucional da duração razoável do processo. 3. Constrangimento ilegal configurado. 4. Ordem concedida para que a autoridade coatora apresente o recurso ordinário em habeas corpus em mesa para julgamento até a 10ª sessão subsequente à comunicação da ordem.”197 E, na mesma direção: “Constitucional. Habeas corpus. Razoável duração do proces-so (art. 5.º, inc. LXXVII, da Carta Magna). 1. A demora de quase dois anos para o julgamento de RHC é irrazoável, mormente em se tratando de réu preso e com parecer ministerial pelo provimento parcial do recurso, a indicar, prima facie, a consistência das razões jurídicas nele expostas, por isso viola a garantia cons-titucional da razoável duração do processo, estatuída no art. 5º, inc. LXXVIII, da Carta Magna. Precedentes de ambas Turmas do STF: HC 109.825, 2ª T, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, DJe de 6/3/2012, e HC 111.200, 2ª T, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, DJe de 6/3/2012. 2. Ordem concedida para de-terminar o julgamento do RHC n. 28.627 na sessão seguinte à comunicação desta decisão”198.

O Superior Tribunal de Justiça tem trilhado caminho equivalente, procurando garantir, de sua parte, a realização do postulado constitucional da duração razoável do processo199.

196 Relatório do Projeto de Lei 166/2010 (fonte: www.senado.gov.br), Cf. COUTO, Mônica Bonetti. A duração razoável do processo como direito fundamental no Brasil: mecanismos e alternativas à sua implementação. In: BAEZ, Narciso Leandro Xavier; NERY DA SILVA, Rogério Luiz; SMORTO, Guido. Os desafios dos Direitos Humanos Fundamentais na América Latina e na Europa. Joaçaba: Editora Unoesc, 2012. p. 374.197 HC 111383/MT, Relator(a):  Min. Gilmar Mendes, DJe-099 DIVULG 21-05-2012.198 HC 110707/SP, Relator(a):  Min. Luiz Fux, DJe-121 - Divulg 20-06-2012.199 Assim: “(...) 3. Verificando-se, portanto, que o sobrestamento do pedido de progressão já perdura por longos 16 meses, tem-se a existência de constrangimento ilegal por ofensa ao primado da obrigatoriedade da jurisdição e da razoável duração do processo. 4. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida” (HC 236351/SP, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe 14.05.2012).

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2. a febRe do efIcIentIcISmo e a outRa face da moeda: a duRação (IR)Razoável do pRoceSSo e oS pRoceSSoS InStantâneoS?

É extreme de dúvida a importância de dar-se a devida atenção e o necessário respeito a uma duração razoável na solução dos conflitos levados ao Poder Judiciário. Como se anotou anteriormente, a morosidade da resposta jurisdicional desnatura o próprio significado da garantia do acesso à Justiça, porque, nas palavras de Kazuo Watanabe, “A problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata de apenas possibilitar o acesso à Justiça enquanto insti-tuição estatal e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa”200.

O tema aqui enfrentando exige-nos recordar que, além do postulado da duração razoável do processo, o princípio da eficiência também ganhou status constitucional. Com a Emenda Constitucional nº 19/98, a eficiência pas-sou a fazer parte do rol dos princípios que norteiam a Administração Pública, conforme consta do texto do art. 37, da Constituição Federal, in verbis: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...).”

É dizer, portanto, que a esse mesmo postulado – da eficiência – su-bordina-se também o Poder Judiciário, em todas as suas esferas e âmbitos de atuação 201e foi precisamente neste ambiente que se criou (pela EC 45) o Conse-lho Nacional de Justiça, empunhando a bandeira da “eficiência, modernização e transparência do Judiciário”.

Resta-nos saber, entretanto, qual o significado da eficiência no âm-bito do Poder Judiciário. Ou, em outras palavras, se a expressão eficiência do judiciário é análoga – e atrai a mesma compreensão, devendo subordinar-se às mesmas regras de mensuração – da eficiência da Administração Pública.

No terreno da Administração Pública, e em particular à luz da Emen-da Constitucional 19/98, vasta literatura procurou surpreender o sentido e im-pactos desse valor (eficiência), então alçado ao nível de garantia constitucional.

200 Cf. WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et all (coord.). Participação e processo. São Paulo; RT, 1988. p. 128. Ver, em sentido equivalente, do mesmo autor: Política Pública do Poder Judiciário Nacional para tratamento adequado dos conflitos de interesses. Revista de Processo, São Paulo, ano 136, v. 195, maio/2011, p. 385.201 Neste norte, preconiza Emerson Gabardo que “No Brasil, a eficiência, mais que um princípio de Direito Administrativo, é um princípio de Direito Constitucional, condicionante de toda a atividade administrativa do Estado.” (Cf. GABARDO, Emerson. Princípio constitucional da eficiência administrativa. São Paulo: Dialética, 2002. p. 18)

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Mas mesmo na seara da Administração Pública, a eficiência nunca apreendida como um conceito equivalente ao usado no ramo das ciências ge-renciais e da administração. Nem tampouco, deve-se dizer, poderia ser dissocia-do da ideia de qualidade. Nesse norte, acentuou José Eduardo Cardozo:

Desse modo, pode-se definir esse princípio como sendo aquele que determina aos órgãos e pessoas da Administração Direta e Indireta que, na busca das finalidades estabelecidas pela ordem jurídica, te-nham uma ação instrumental adequada, constituída pelo aproveita-mento maximizado e racional dos recursos humanos, materiais, téc-nicos e financeiros disponíveis, de modo que possa alcançar o melhor resultado quantitativo e qualitativo possível, em face das necessida-des públicas existentes202.

Em interessante passagem, Emerson Gabardo critica o que chama de “empresomania” - expressão essa de Jacques Le Mouël – afirmando que tal idéia gera duas ordens de problemas: primeiro “a despreocupação com as externalidades negativas (afinal, os custos sociais e globais são mais difíceis de serem medidos que os econômicos e específicos)”; e, de outro lado, “a des-preocupação com a correspondência entre as avaliações e a realidade (ocorre a constante readequação dos critérios de averiguação da eficiência, pois estes devem tornar-se mais simples e fáceis de serem medidos, em razão da busca pela justificação estatístico-matemática)”203.

Retomando o problema central deste ensaio, não colocamos em dúvi-da a relevância da criação e da atuação firme do Conselho Nacional de Justiça, cujos méritos são das mais variadas ordens e matizes. Em particular, é mere-cedora de aplausos a sua missão na avaliação de desempenho dos Tribunais de todo o país, mediante os dados colhidos semestralmente pelo CNJ204, com o louvável objetivo de criar uma cultura de planejamento e gestão estratégica do Poder Judiciário205. Com efeito, como se sabe, a criação de referido Conselho,

202 Cf CARDOZO, José Eduardo Martins. Princípios Constitucionais da Administração Pública (de acordo com a Emenda Constitucional n.º 19/98). In: MORAES, Alexandre de. Os 10 anos da Constituição Federal. São Paulo: Atlas, 1999. pp. 166-167.203 GABARDO, Emerson. Princípio constitucional da eficiência administrativa. São Paulo: Dialética, 2002. pp. 60-61.204 Louvável também a iniciativa da aproximação do Poder Judiciário (pelos editais do CNJ) e do Ministério da Justiça com a academia, procurando nas universidades e entidades científicas o apoio necessário mediante a realização de pesquisas e estudos para a promoção de propostas e soluções em termos de políticas judiciárias.205 É de competência do Conselho Nacional de Justiça o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe,

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“além de conferir maior transparência ao Poder Judiciário (...) busca a eficiên-cia do serviço prestado em cumprimento aos princípios constantes do caput do art. 37 da CF/1988”206.

De outro lado, a constatação de uma necessária atenção à gestão, or-ganização e ao gerenciamento dos cartórios e dos processos foi um dos incon-testáveis méritos iniciados com a Reforma Constitucional do Judiciário inau-gurada com a EC 45, voltada a uma melhor administração da Justiça. Neste sentido, reconhecer a existência de atores que sempre passaram ao largo de todas as reformas (agentes do Judiciário, serventuários e cartórios), até então meramente processuais, teve um importantíssimo papel.

Preocupa-nos, porém, a leitura que se tem dado sobre a chamada e tão reclamada “eficiência do Poder Judiciário”, calcada, precípua e notada-mente, em critérios quantitativos e que têm em mira a rapidez na prolação de sentenças. Neste ambiente parece deveras importante indagar e ponderar se essa eficiência ou rapidez pode ser obtida “a qualquer preço”, ou “a qualquer título”, na medida em que um indicador de quantidade nem sempre é sinônimo de qualidade.

além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura. Dentre as várias competências impostas pela Constituição no art. 103-B, destacam-se a de zelar: a) pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; b) pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União. Igualmente, compete-lhe: a) receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa; b) elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário; c) elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do STF a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa. (Cf. MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro; BRAGA, Sérgio. O ativismo judicial e o Conselho Nacional de Justiça, In: SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; MEZZAROBA, Orides. Org.: COUTO, Mônica Bonetti; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Justiça e [o Paradigma da] Eficiência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 322).206 Cf. MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro; BRAGA, Sérgio. O ativismo judicial e o Conselho Nacional de Justiça, In: SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; MEZZAROBA, Orides. Org.: COUTO, Mônica Bonetti; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Justiça e [o Paradigma da] Eficiência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 323.

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Está-se diante daquilo que se cunhou designar por febre do eficien-ticismo. Desejamos chamar a atenção, em particular, para as exigências mais atuais, que acabam por impor processos quase instantâneos, e no âmbito dos quais são proferidas decisões sem uma atenção mais acurada e detida, sobre as particularidades e complexidades de certas demandas.

Tratando de alguns dos mitos da justiça, e especificamente sobre a apontada morosidade do processo como uma das maiores mazelas do Judiciá-rio, Barbosa Moreira anotou:

O submito 4 é talvez o mais perigoso. Consiste em hiperdimensionar a malignidade da lentidão e sobrepô-la, sem ressalvas nem matizes, a todos os demais problemas na justiça. Para muita gente, na matéria, a rapidez constitui o valor por excelência, quiçá o único. Seria fácil invocar aqui um rol de citações de autores famosos apostados em es-tigmatizar a morosidade processual. Não deixam de ter razão, sem que isso implique – nem mesmo, quero crer, no pensamento desses próprios autores – hierarquização rígida que não reconheça como im-prescindível, aqui e ali, ceder o passo a outros valores. Se uma justiça lenta demais é decerto uma justiça má, daí não se segue que uma jus-tiça muito rápida seja necessariamente uma justiça boa. O que todos devemos querer é que a prestação jurisdicional venha a ser melhor do que é. Se para torná-la melhor é preciso acelerá-la, muito bem: não, contudo, a qualquer preço207. Realmente, nunca nos pareceu razoável ou de qualquer modo legítimo

pudesse um processo ficar à espera de uma decisão interlocutória ou de uma sentença por meses, ou anos. Há recursos de apelação nos Tribunais de Justiça que aguardam cinco, seis anos, ou até mais, para serem examinados. Mas daí a atingir-se o outro extremo, de processos que chegam a ser instantâneos, é um dado significativo de alerta e que merece toda a nossa atenção e reflexão.

Neste sentido, é necessário recolocar e redimensionar o fator tempo dentro de um processo judicial em seu devido lugar, na exata medida em que se trata – como bem ressaltou James Marins – de elemento insuprimível do pro-cesso. Anota referido autor, com singular propriedade:

Entre outras importantes modificações no texto constitucional, a Emenda citada acima inseriu na CF o “princípio da razoável duração

207 Cf. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O futuro da Justiça: alguns mitos. Revista de Processo 99, jul./set.2000. pp. 144-145.

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do processo”. A primeira ideia que surge dessa noção de razoabilidade do tempo no processo é de que esta cláusula pretende – exclusivamen-te – promover a aceleração do processo. Esse perigoso preconcei-to, vimos acima, aparece mesmo na exposição de motivos da EC 45, que contém proposição parcial, senão falsa, e carrega com ela graves riscos. O tempo razoável para o processo, concebido como amálgama de ga-rantias, não é necessariamente o tempo mais curto, mas justamente o mais adequado para que cumpra suas funções. Acelerar o processo pode, em algumas hipóteses, retirar a razoabilidade de sua duração. Processo “instantâneo” ou “quase instantâneo” não é razoável e repre-senta, inclusive, contraditio in terminis, ou seja, a própria noção de processo implica transcurso de certo tempo, lapso razoável para que possa ser solucionado. O propósito de instantaneidade ou de encurta-mento abrupto do processo configura, muitas vezes, atentado contra sua racionalidade e nessa medida representa agressão ao princípio da razoável duração do processo. Repita-se: o tempo é insuprimível do processo208.

E, mais adiante, o mesmo autor arremata, afirmando que o significado nuclear de duração razoável “abomina os extremos e condena à inconstitucio-nalidade tanto os processos de duração excessivamente longa, patologicamente eternizados,” mas, também, “os processos encurtados, encolhidos artificialmen-te em detrimento das garantias do procedural due process” 209.

concluSão

O discurso da eficiência tem tomado conta dos corredores do Judiciá-rio, da Academia, e, com singular atenção, da grande mídia e, por consequente, de toda a sociedade. Todos parecem clamar por um processo célere e, para essa obtenção, clamam por um controle numérico-quantitativo de processos e de de-cisões, a partir de uma análise econômica da eficiência, solução que, para nós, deve ser vista com alguma reserva ou cuidado.

Parece que circundam o tema, fundamentalmente, dois problemas, aqui apresentados com a formulação de duas questões cruciais: a) qual o sig-

208 Cf. MARINS, James. Processo instantâneo versus processo razoável: a dualidade temporal da garantia constitucional. Novos Estudos Jurídicos, v. 16, n. 2, mai-ago/2011, p. 191 (disponível em www.univali.br/periodicos. Acessado em: 01.04.2013). 209 Cf. MARINS, James. Processo instantâneo versus processo razoável: a dualidade temporal da garantia constitucional, cit., mesma página.

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nificado do princípio da eficiência aplicado ao Poder Judiciário?; e b) até que ponto a eficiência do Judiciário pode ser aferida, legitimamente, a partir de critérios da administração e da economia, classicamente usados na avaliação do desempenho das atividades empresariais?

A bem da verdade, as respostas a essas indagações não são fáceis de serem obtidas, nem tampouco constituíram o objeto deste trabalho. Pretendeu--se, tão só e apenas, chamar a atenção para o problema do exacerbado eficien-ticismo, convidando a comunidade a repensar essas questões, na busca de solu-ções que não estão prontas, justamente porque o objeto de estudo e de avaliação de desempenho é bastante peculiar (a Justiça, aqui entendida como o Poder Judiciário brasileiro).

Cremos, todavia, que neste ambiente, dever-se-ia preconizar pela efe-tividade do processo e da Justiça, e não apenas a sua celeridade, menos ainda aquela obtida a qualquer preço, é dizer, à mercê da necessária atenção a outras garantias fundamentais, tão ou quiçá, em algumas situações, mais importantes que a própria duração mínima dos processos. O que se pretende, naturalmente, é evidenciar que a duração excessiva dos pleitos é um mal, mas que um proces-so instantâneo, igualmente o é.

Não se está a afirmar, a esse propósito, que as metas do CNJ e das corregedorias dos Tribunais são de todo ilegítimas, ou descabidas. Ao contrário, o que se preconiza, em relação ao tema, é que sejam refletidos os critérios que tem em conta apenas a referência quantitativa. Indagar-se-á ainda se estes mes-mos critérios, quando aplicados, de fato poderão gerar os resultados esperados. Em outros termos, dever-se-á indagar se as ações propostas implicam em maior qualidade nos julgamentos e, por consequência, em uma maior percepção de Justiça pela sociedade210.

Parece-nos, enfim, que as reflexões que devem permear a questão consistem em encontrar uma resposta que permita obter-se um processo que seja iluminado pelos valores constitucionais, inclusive o da duração razoável do processo, mas que não dispense as formalidades mínimas, nem tampouco dispense a observância de outras garantias, tais como da segurança jurídica.

A ponderação entre os valores “celeridade” e “segurança jurídica” – que a primeira vista podem parecer absolutamente colidentes – é a medida que, a nosso ver, coloca-se como condição legitimadora de todas as reformas

210 Em raciocínio que se pode dizer análogo, olhando o mesmo problema da eficiência sob a ótica do processo penal, Alexandre Moraes da Rosa observa que o critério do custo-benefício, proposto pela teoria da Análise Econômica do Direito, não há de ser havido como válido para qualificar o processo como eficiente (Processo Penal eficiente? Não obrigado. In: CARVALHO. Thiago Fabres de. ROSA, Alexandre Morais da. Processo penal eficiente & ética da vingança: em busca de uma criminologia de não violência. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2012. p. 69).

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e ações, com vistas à superação da crise do Judiciário e, com isto, da Justiça. E, quem sabe, com a ponderação entre esses dois valores (celeridade

x segurança), encontre-se uma ‘fórmula’ intermediária, na qual o processo pri-me pela qualidade de pronunciamentos, mas descurar-se do tempo (em alguns casos, urgente), e com isso se alcance um novo e particular (porque atento às peculiaridades da Justiça) conceito de eficiência.

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9a efetIvIdade do pRoceSSo – uma vISão do aRt. 285 -

a do cpc à luz do pRocedImentalISmo habeRmaSIano e do contRadItóRIo paRtIcIpatIvo

pedrO SObrinO pOrtO VirgOlinO

Mestrando em Direito Processual Civil pela UFES. Procurador do Estado.

JOSé pedrO lucHi

Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma). Membro do Colegiado do Mestrado em Direito Processual Civil na UFES. Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UFES.

SumáRIo: 1. O paradigma de argumentação de Habermas como fundamento de legitimida-de e racionalidade das decisões judiciais. 2. A evolução do processo civil e sua aproximação ao modelo discursivo de Habermas mediante uma visão de contraditório participativo. 3. A efetividade como elemento de justiça da decisão e não como mera tempestividade. 4. A leitura do art. 285-A do CPC à luz do contraditório e da teoria habermasiana. Conclusão. Referências.

1. o paRadIgma de aRgumentação de habeRmaS como fundamento de legItImIdade e RacIonalIdade daS decISõeS JudIcIaIS

No processo de integração social, onde há a incessante busca de en-tendimento dos cidadãos, verifica-se forte antagonismo entre a facticidade dos meios de coerção e de sanções e a validade abarcada na legitimidade que con-grega as convicções racionalmente motivadas de seus autores. Dessa realidade apenas fica ressalvado o caso das ações reguladas por costumes ou tradições,

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onde há uma forte união entre o elemento facticidade e a validade211. No direito também se observa a presença dos elementos facticidade

e validade. A facticidade paira, justamente, na legalidade e no poder estatal de fazer valer o direito de forma coercitiva. Já a legitimidade, nas palavras de Ha-bermas, “se mede pela resgatabilidade discursiva de sua pretensão de validade normativa; e o que conta, em última instância, é o fato de elas terem surgido num processo legislativo racional - ou o fato de que elas poderiam ter sido jus-tificadas sob pontos de vistas pragmáticos, éticos e morais”212.

O Direito, responsável que é por regular a agir social, não pode pres-cindir de legitimidade, pois é esse elemento que lhe confere aceitabilidade e respeito por todos aqueles que estão sujeitos a seus efeitos. Assim, com esteio na lição de Habermas, a normatividade do Estado somente pode ser justificada à luz da teoria do agir comunicativo, onde se destaca a idéia de razão comunica-tiva, como fruto do discurso argumentativo. Os cidadãos devem poder assumir as leis como endereçados e autores, ao mesmo tempo.

Essa legitimidade é alcançada pela adoção, no Direito, do princípio do Discurso, como forma de conferir validade à norma jurídica. “O princípio do discurso submete a validade de qualquer tipo de norma de ação ao assen-timento daqueles que, na qualidade de atingidos, tomam parte em ‘discursos racionais’”213. Segundo o princípio do discurso: “válidas são precisamente aque-las normas de ação, com as quais todos os possivelmente atingidos como parti-cipantes em discursos racionais poderiam concordar”214.

Por “normas de ação”, entende-se aqui expectativas generalizadas de comportamento. Por “discursos racionais”, toda tentativa de resolver problemas de pretensões de validade no quadro de um espaço pú-blico e livre, quanto aos temas e participantes, e constituído na base da “obrigação” ilocucionária, isto é, de reconhecer e implementar o melhor argumento215.

Do princípio do discurso se extraem os princípios da moral e da de-mocracia, o segundo se atrela às normas de ação em forma jurídica, que podem ser justificadas por razões morais, ético-políticas e pragmáticas. O “princípio da

211 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia, entre facticidade e validade. 1. Vol. tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 212 Ibid. p, 50.213 HABERMAS, Jürgen. Ob. cit. p. 199.214 HABERMAS, Jürgen apud LUCHI, José Pedro. A lógica dos Direitos Fundamentais e dos Princípios do Estado. In: Linguagem e socialidade. Organização José Pedro Luchi. Vitória: EDUFES, 2005. p. 124.215 Ibid. p. 124.

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Democracia estabelece as condições para uma legítima colocação de leis, isto é, que seja processada pelas instâncias autorizadas de discussão, e assim possam obter a adesão de todos os consociados jurídicos.”216

No campo do processo também se constata a existência de tensão en-tre facticidade e validade. “A tensão entre facticidade e validade, imanente ao direito, manifesta-se na jurisdição como tensão entre o princípio da segurança jurídica e a pretensão de tomar decisões corretas”217 - 218.

Habermas afirma que para se alcançar o escopo do processo de paci-ficação social é necessário observar as condições de aceitabilidade racional das decisões judiciais, como meio de conferir-lhe legitimidade. Reproduz-se trecho esclarecedor de sua obra:

A tensão entre facticidade e validade se introduz na categoria de ex-pectativas de comportamentos sancionados pelo Estado e, com isso, segurança jurídica; de outro lado, os processos racionais da normati-zação e da aplicação do direito prometem a legitimidade das expec-tativas de comportamento assim estabilizadas- as normas merecem obediência jurídica e devem poder ser seguidas a qualquer momento, inclusive por respeito à lei. No nível da prática da decisão judicial, as duas garantias precisam ser resgatadas simultaneamente. Não basta transformar as pretensões conflitantes em pretensões jurídicas e de-cidi-las obrigatoriamente perante o tribunal, pelo caminho da ação. Para preencher a função socialmente integradora da ordem jurídica e da pretensão de legitimidade do direito, os juízos emitidos têm que satisfazer simultaneamente às condições de aceitabilidade racional e da decisão consistente219.

A pretensão à legitimidade da ordem jurídica demanda decisões fun-damentadas racionalmente, de modo que possam ser aceitas como decisões ra-

216 Ibid. p. 125.217 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia, entre facticidade e validade. 1. Vol. tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p . 245.218 “O direito não vale apenas porque é posto, mas sim enquanto é posto de acordo com um procedimento democrático, no qual se expressa intersubjetivamente a autonomia dos cidadãos. Essa é a forma mais genérica em que se apresenta o problema. No âmbito da jurisdição, a questão relaciona-se com a tensão entre segurança jurídica e decisão correta (ou discursivamente fundamentada).” NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 114.219 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia, entre facticidade e validade. 1. Vol. tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 246.

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cionais pelos membros do direito. Dita racionalidade é encontrada “não apenas na dimensão lógico-semântica da construção de argumentos e da ligação lógica entre proposições, mas também na dimensão pragmática do próprio proces-so de fundamentação”, não sendo conferida pela simples capacidade técnica do juiz220. Isso porque, as decisões judiciais são falíveis, não se podendo, em concreto, estabelecer uma única decisão correta fulcrada no paradigma da com-preensão exclusiva do “Juiz Hércules”221 sobre o sistema jurídico, suas regras, princípios e valores. A correção da decisão, consequência do processo dialético realizado na sua produção, surge como a melhor compreensão dos argumentos realizados até aquele momento. Com isso, Habermas sustenta que será possível compatibilizar o ideal de correção da decisão com a sua inegável falibilidade. A decisão não é correta por ser infalível, mas sim porque é fruto de um processo de argumentação democrático222.

Esse procedimento discursivo, no entanto, não é irrestrito, pois com-pete à ordem jurídica delimitar a esfera de participação no processo, ficando--lhe vedada apenas a sua supressão. A institucionalização jurídica impõe regras quanto ao procedimento a ser observado nos discursos, que por natureza são do-tados de racionalidade procedimental incompleta. E desse modo, garante uma justiça relacionada ao processo dentro do qual é preservada a argumentação223.

220 HABERMAS, Jürgen. Ob cit. p. 281.221 A noção de “Juiz Hércules” é extraída da obra de Ronald Dworkin “O império do Direito”. Vide DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. Revisão técnica Dr. Gildo Rios. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 222 “A crítica à teoria do direito solipsista de Dworkin tem que situar-se no mesmo nível e fundamentar os princípios do processo na figura de uma teoria da argumentação jurídica, que assume o fardo das exigências ideais até agora atribuídas a Hércules. Uma teoria da argumentação que se entrega a essa tarefa não pode limitar-se a um acesso lógico-semântico ao discurso jurídico. Por este caminho, é possível esclarecer as regras de inferência lógica, as regras semânticas e as da argumentação. E, na medida em que as últimas coincidem com as regras para passagens argumentativas não-triviais, analisadas por Toulmin, elas sugerem uma concepção pragmática. Argumentos são razões que resgatam, sob condições do discurso, uma pretensão de validade levantada através de atos de fala constatativos ou regulativos, movendo racionalmente os participantes da argumentação a aceitar como válidas proposições normativas ou descritivas. Uma teoria da argumentação que esclarece o papel e a construção de argumentos considera o jogo de argumentação sob o aspecto do produto e oferece, no pior dos casos, um ponto de partida para uma fundamentação dos passos da argumentação, que ultrapassam uma justificação interna de juízos do direito. Dworkin exigiu uma teoria abrangente para a justificação externa das premissas da decisão, a qual, como vimos, sobrecarrega os esforços solipsistas de cada juiz em particular.” HABERMAS, Jürgen, Ob. cit. p. 281.223 “Devido ao seu conteúdo idealizador, os pressupostos comunicativos gerais de argumentações só podem ser preenchidos de modo aproximado. Para julgar na perspectiva dos participantes, é necessário que os pressupostos pretensiosos da comunicação estejam suficientemente preenchidos, pois não existe um critério autônomo situado fora do processo. Isso constitui uma razão suficiente para manter aberta a possibilidade de rever as opiniões provisoriamente fundamentadas, à luz

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A teoria do discurso apontada por Habermas como método de racio-nalização das normas de conduta, aplicada ao processo civil, como paradigma procedimentalista que impõe o diálogo e a argumentação do juízo, faz repartir entre todas as partes da demanda o peso antes sustentado somente nos om-bros do “juiz Hércules”, criticado por Habermas, permitindo assim se chegar a maior otimização quanto à adoção de decisões que atendam ao critério último de correção buscado pela jurisdição. Critério este de correção, entenda-se, que, segundo Habermas, não significa a única decisão correta, mas aquela dotada de racionalidade suficiente para, na dimensão de tempo e espaço em que foi profe-rida, ser aceita legitimamente pelos interessados participantes224.

2. a evolução do pRoceSSo cIvIl e Sua apRoxImação ao modelo dIScuRSIvo de habeRmaS medIante uma vISão de contRadItóRIo paRtIcIpatIvo

Daniel Mitidiero, em sua obra “Colaboração no Processo Civil”, ex-põe que o processo civil passou por quatro grandes fases metodológicas: o pra-xismo, o processualismo, o instrumentalismo e o formalismo-valorativo.

O praxismo corresponde à pré-história do direito processual civil, tempo em que se aludia ao processo como “procedura” e não ainda como “di-ritto processual civile”. Época, com efeito, em que não se vislumbrava o pro-cesso como um ramo autônomo do direito, mas como mero apêndice do direito material. Direito adjetivo, pois, que só ostentava existência útil se ligado ao direito substantivo225.

de novas informações e argumentos. O processo jurídico compensa esse falibilismo, na medida em que garante decisões inequívocas, obrigatórias e de acordo com o prazo. Pois, no processo jurídico, pode-se controlar, na perspectiva de um observador, se as normas do processo foram mantidas. Desse modo, a obrigatoriedade social de um resultado obtido conforme o processo, tomada de empréstimo ao direito, entra no lugar de uma racionalidade procedimental, apenas imanente, isto é, assegurada somente através da forma argumentativa. “HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia, entre facticidade e validade. 1. Vol. tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 223.224 “A correção de juízos normativos não pode ser explicada no sentido de uma teoria da verdade como correspondência, pois direitos são uma construção social que não pode ser hipostasiada em fatos. “Correção” significa aceitabilidade racional, apoiada em argumentos. Certamente a validade de um juízo é definida a partir do preenchimento das condições de validade. No entanto, para saber se estão preenchidas, não basta lançar mão de evidências empíricas diretas ou de fatos dados numa visão ideal: isso só é possível através do discurso - ou seja, pelo caminho de uma fundamentação que se desenrola argumentativamente.” HABERMAS, Jürgen. Ob cit. p. 281.225 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil. Pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Ed. RT, 2009. p. 30.

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Nessa fase, os conhecimentos eram puramente empíricos, sem relação com princípios, não se valendo o processo de conceitos próprios e definição quanto a um método226.

Já a fase processualista vem à lume com o fito de empregar um trata-mento mais científico ao processo civil, nascida da obra de Oscar Bulow, que defende a existência de uma relação jurídica processual como base de orienta-ção do processo.

Na fase processualista, o processo deixa de ser mero procedimento e passa a representar uma relação jurídica autônoma, com pressupostos de va-lidade e existência próprios. Como característica dessa fase, a jurisdição, nas palavras de Daniel Mitidiero,

[...] assume a condição de poder vocacionado já não mais à tutela dos direitos subjetivos, acometendo-se-lhe a função de realizar o direito objetivo estatal e pacificar a sociedade. A ação deixa de ser compre-endida como um apêndice do direito material, passando a representar um direito público subjetivo autônomo de ir a juízo e lograr sentença227.

Ao buscar firmar uma ciência específica para o processo, dissociada do direito material, o processualismo produziu, em contrapartida, alguns efeitos indesejados, sob a ótica da justiça da decisão. Acabou por isolar a técnica pro-cessual por demais do direito material e da realidade social, distanciando-o de suas finalidades essenciais.

Nesse ponto, é interessante observar uma aproximação da fase do pro-cessualismo do processo civil com a corrente do positivismo judicial, abordada na obra de Habermas, Direito e Democracia, e que pretendia justificar a decisão judicial meramente com base nas normas impostas pelo próprio ordenamento, deixando de se valer de outros princípios e valores, aos quais o juiz, na visão de Habermas, não poderia se furtar a apreciar, sob o risco de aplicar uma decisão injusta e, portanto, incapaz de conferir legitimidade à atividade jurisdicional.

Pode-se dizer, então, que o apego exagerado à visão do processo

226 “O processo mesmo, como realidade da experiência perante os juízes e tribunais, era visto apenas em sua realidade física exterior e perceptível aos sentidos: confundiam-no com o mero procedimento quando o definiam como sucessão de atos, sem nada se dizerem sobre a relação jurídica que existe entre seus sujeitos (relação jurídica processual), nem sobre a conveniência política de deixar caminho aberto para a participação dos litigantes (contraditório). A jurisdição era encarada como um sistema posto para a tutela dos direitos subjetivos particulares, sendo essa a sua finalidade precípua; a “ação” era compreendida como um desdobramento do direito subjetivo e o processo como simples procedimento. O clima privatista do direito material apanhava em cheio o direito processual, engastando-o no mesmo plano.” MITIDIERO, Daniel. Ob. cit. p. 32.227 Ibid. p. 34.

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como ciência autônoma, francamente visível na fase processualista, implica em exacerbar o conflito, bem apontado por Habermas, que existe no processo entre faticidade e validade, uma vez que dito modo de ver o processo dá valor excessivo à segurança jurídica (faticidade), deixando de observar a necessária legitimidade da decisão a ser proferida (validade).

Diante do caráter asséptico da visão meramente científica do proces-so, não afeta a valores sociais que em última análise justificam a atividade juris-dicional (valendo relembrar com Habermas que o Poder Estatal só se justifica no direito e para a preservação do direito), é buscada uma nova forma de com-preender o processo civil, que passa a ser visto como instrumento a serviço do direito material, mas atento às necessidades sociais e políticas de seu tempo. Daí nasce o modelo instrumentalista do processo.

A perspectiva instrumentalista do processo assume o processo civil como um sistema que tem escopos sociais, políticos e jurídicos a al-cançar, rompendo com a ideia de que o processo deve ser encarado apenas pelo seu ângulo interno. Em termos sociais, o processo serve para persecução da paz social e para educação do povo; no campo po-lítico, o processo afirma-se como um espaço para afirmação da auto-ridade do Estado, da liberdade dos cidadãos e para a participação dos atores sociais; no âmbito jurídico, finalmente, ao processo confia-se a missão de concretizar a “vontade concreta do direito228.

É na fase instrumentalista que se observa, em maior monta, o fenô-meno de constitucionalização do processo civil. Com o reconhecimento da pri-mazia hierárquica da Constituição e a impostação de maior carga normativa direta a seus princípios e garantias processuais, os juristas passam a enxergar a atividade jurisdicional como instrumento da ordem constitucional. Nos dizeres de Cândido Rangel Dinamarco:

O processualista moderno adquiriu a consciência de que, como instru-mento a serviço da ordem constitucional, o processo precisa refletir as bases do regime democrático, nela proclamado; ele é, por assim dizer, o microcosmos democrático do Estado-de-direito, com as conotações de liberdade, igualdade e participação (contraditório), em clima de legalidade e de responsabilidade229.

228 MITIDIERO, Daniel. Ob cit. p. 36.229 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14. ed.. revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 27.

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Hoje nota-se uma paulatina evolução do instrumentalismo para a fase chamada “formalismo-valorativo”. Segundo Daniel Mitidiero,

[...] da instrumentalidade passasse ao formalismo-valorativo, que ora se assume como um verdadeiro método de pensamento e programa de reforma de nosso processo. Trata-se de uma nova visão metodológica, uma nova maneira de pensar o direito processual civil, fruto de nossa evolução cultural. O processo vai hoje informado pelo formalismo--valorativo porque, antes de tudo, encerra um formalismo cuja estru-turação responde a valores, notadamente aos valores encartados em nossa Constituição. Com efeito, o processo vai dominado pelos valo-res justiça, participação leal, segurança e efetividade, base axiológica da qual ressaem princípios, regras e postulados para sua elaboração dogmática, organização, interpretação e aplicação. Vale dizer: do pla-no axiológico ao plano deontológico230. O formalismo-valorativo irá orientar a forma de participação dos inte-

ressados no processo, bem como a própria atuação do juiz, tendo como base um dos valores (melhor seria dizer princípios) que orienta o processo como método de solução de conflitos e forma de exercício do Poder Estatal, qual seja, o prin-cípio da democracia, no seu viés participativo. Segundo Mitidiero:

[...] ao lado da democracia representativa, ideal próprio do Estado Moderno, ganha força a democracia participativa, própria do Estado Contemporâneo, verdadeiro direito de quarta dimensão, que incen-tiva os cidadãos a participarem diretamente no manejo de poder do Estado, dando legitimidade à normatividade construída pela via her-menêutica231.

Esse princípio democrático é garantia fundamental prevista em nossa constitucional mediante o instituto do contraditório. Nas palavras de Cândido Rangel Dinamarco:

Na realidade, o que legitima os atos de poder não é a mera e for-mal observância dos procedimentos, mas a participação que mediante o corre-to cumprimento das normas processuais tenha sido possível aos destinatários. Melhor falar, portanto, em legitimação pelo contraditório e pelo devido

230 MITIDIERO, Daniel. Ob cit. p. 47.231 MITIDIERO, Daniel, Ob. cit., p. 46.

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processo legal232.

Em iguais palavras se manifesta Habermas: “Quando nos apoiamos numa teoria procedimental, a legitimidade das normas jurídicas mede-se pela racionalidade do processo democrático da legislação política”233.

Nessa ordem de ideias restou superada a visão do contraditório como mero direito de ciência bilateral dos atos do processo e possibilidade de con-traditá-los. Evoluindo para uma garantia de efetiva participação no processo e de influência na construção da decisão judicial, mediante um diálogo a três, conduzido entre juiz, autor e réu234.

A participação (diálogo) é o terceiro elemento na trilogia que informa o contraditório. O diálogo deve ser estabelecido entre todos os integrantes da relação jurídica processual, ou seja, entre as partes (autor e réu) e o juiz, uma vez que a perfeita comunicação se concretiza por meio da interação aberta e franca entre seus integrantes235.

Humberto Theodoro Júnior defende que a garantia de participação inerente ao contraditório implica no direito das partes efetivamente influírem no julgamento da causa e também na impossibilidade de serem surpreendidas pelo julgamento de questão que não foi objeto de debate. O contraditório expressa o poder de influir na formação de decisões racionais236.

Teresa Arruda Alvim Wambier destaca também a importância do con-traditório como garantia do correto exercício do poder normativo pelo Estado-

232 DINAMARCO, Cândido Rangel. O princípio do contraditório e sua dupla destinação. In: Fundamentos do processo civil moderno. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 125. 233 HABERMAS, Jürgen. Ob cit. p. 68.234 “Contraditório é algo que perpassa a noção de defesa, e encontra guarida na ideia de participação e diálogo. O contraditório é exercido por todos os sujeitos do processo, inclusive pelo juiz, que deve participar ativamente na solução dos conflitos. Do ponto de vista dos demandantes, a participação deve ser vista não só como a obtenção de todas as informações necessárias, como também que as chances de reação tenham aptidão para influenciar nas decisões e soluções a serem dadas. A participação formal é mera simulação de contraditório e constitui negação à isonomia em seu sentido mais amplo.” RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de Direito Processual Civil. 1. Vol. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 114.235 LOPES, Maria Elizabeth de Castro. Princípio do Contraditório. In Princípios Processuais civis na Constituição. Coordenadores Maria Elisabeth de Castro Lopes, Olavo de Oliveira Neto. Rio de Janeiro, Elsevier, 2008. p. 104.236 “O contraditório não pode mais ser analisado tão-somente como mera garantia formal de bilateralidade da audiência, mas, sim, como uma possibilidade de influência (Einwirkungsmoglichkeit) sobre o desenvolvimento do processo e sobre a formação de decisões racionais, com inexistentes ou reduzidas possibilidades de surpresa.” THEODORO JÚNIOR, Humberto e NUNES, Dierle José Coelho Nunes. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no direito brasileiro: sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de aproveitamento da atividade processual. In: Revista de Processo, n. 168. São Paulo: RT, 2009.

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-Juiz. Na medida em que a atividade jurisdicional opera efeitos na esfera de in-divíduos, esses devem ser “vistos como efetivamente participantes das decisões do órgão jurisdicional que possam afetá-los”237.

Sobre o papel do contraditório no formalismo vale reproduzir algu-mas palavras de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira:

Nos tempos atuais, a regulação formal e temporal do procedimen-to não pode deixar de considerar o caráter essencial do contraditório para o fenômeno processual. Mostra-se imperiosa, como facilmente se intui, a participação dos interessados no iter de formação do provi-mento judicial destinado a interferir em sua esfera jurídica238.

Alvaro de Oliveira destaca que o diálogo judicial239 é um autêntico instrumento de democratização do processo, impedindo que o poder oficial do órgão judicial venha a tornar o exercício da jurisdição em mecanismo de opressão e de autoritarismo, a resultar em obstrução à correta e efetiva aplica-

237 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. A influência do contraditório na convicção do juiz: fundamentação de sentença e de acórdão. In: Revista e Processo, n. 168. São Paulo: RT, 2009. p. 54238 “Em face dessa realidade, mesmo a vontade do juiz não se exibe totalmente soberana, na medida em que condicionada, de um ou outro modo, à vontade e ao comportamento das partes, pelo que representam de iniciativa, estímulo, resistência ou concordância, e isso sem falar nos limites impostos pelo próprio sistema. A vontade e atividade as partes tendem, outrossim, a se plasmar e adequar aos estímulos decorrentes do comportamento do juiz e do adversário. Por isso mesmo, o juiz e as partes nunca estão sós no processo; o processo não é um monólogo: é um diálogo, uma conversação, uma troca de propostas, de respostas, de réplicas; um intercâmbio de ações e reações, de estímulos e impulsos contrários, de ataques e contra-ataques. Tudo isso implica, no essencial, a ideia de recíproco condicionamento e controle da atividade das partes e da atividade do órgão judicial, a apontar à dupla função assumida pelo contraditório: por um lado, garantir a igualdade entre as partes; por outro, satisfazer o interesse público na descoberta da verdade e realização da justiça. Assim concebido, não se pode deixar de reconhecer também no contraditório um poderoso fator de contenção do arbítrio do juiz”. OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Do formalismo no processo civil. 3. ed. rev. atual e aumentada. São Paulo: Saraiva, 2009. pp. 131-133.239 Tecendo crítica à visão de contraditório como processo dialético, Bárbaro Gomes Lupetti Baptista assim se manifesta: “O contraditório não é dialético, pois dele não deriva uma síntese que incorpora a tese e a antítese sustentadas em paridade de condições. No sistema contraditório, uma tese prevalece sobre a outra e a suposta “síntese” é, nada mais nada menos, do que a decisão arbitrária da autoridade, não decorrendo, de forma alguma, de um raciocínio logicamente construído. O contraditório é, portanto, representado pelo dever das partes de se contradizerem. Ele é, na verdade, o mecanismo que possibilita ao Juiz a eleição de teses e que, consequentemente, afasta as partes, uma vez que se sustenta na oposição de pontos de vista, em que apenas um saíra vencedor.” BATISTA, Bárbara Gomes Lupetti. Os rituais judiciários e o princípio da oralidade: construção da verdade no processo civil brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2008. p. 200.

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ção do direito240. Embora o contraditório seja ferramenta que beneficia a descoberta

da verdade, contribuindo para a correção da decisão, o que atende ao interesse público ínsito à atuação jurisdicional, o princípio é previsto na Constituição Fe-deral tão-somente como garantia das partes. Isso quer dizer que ao Estado-juiz incumbe preservar o contraditório, mas não tem o direito de exigir das partes que exercem essa garantia ativamente.

Como afluxo da face democrática do Estado Constitucional que, no processo, é sentido através da garantia fundamental do contraditório, que resga-ta o valor participação do cidadão na formação da vontade estatal, é desenhado o modelo cooperativo de processo241.

Há uma inegável proximidade do modelo de processo cooperativo e do método procedimental aclamado por Habermas como meio de permitir de-cisões racionais e legítimas, mediante o uso de técnicas de argumentação e de diálogo, onde não apenas o juiz, que nunca será um Hércules, mas também as partes envolvidas e todos os interessados possam apresentar argumentos para a melhor aplicação da norma ao caso concreto, isso tudo num ambiente de debate onde se assegure a liberdade de atuação dos participantes (dentro é claro de certos marcos normativos), trazendo o juiz ao nível da discussão.

É consequência do modelo participativo de processo o dever do juiz, que também é parte desse diálogo, fornecer aos demais suas razões para serem previamente avaliadas. Fica-lhe vedado, inclusive, julgar questão de ordem

240 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O juiz e o princípio do contraditório. In: Revista de Processo, n. 71. São Paulo: RT, 1993. p. 34. 241 Sobre o modelo cooperativo do processo colhe-se a seguinte passagem da obra de Daniel Mitidiero: “O processo cooperativo parte da idéia de que o Estado tem como dever primordial propiciar condições para a organização de uma sociedade livre, justa e solidária, fundado que está na dignidade da pessoa humana. Indivíduo, sociedade civil e Estado acabam por ocupar, assim, posições coordenadas. O direito a ser concretizado é um direito que conta com a júris prudentia, nada obstante concebido, abstratamente, como scientia júris. Por essa vereda, o contraditório acaba assumindo novamente um local destaque na construção do formalismo processual, sendo instrumento ótimo para a viabilização do diálogo e da cooperação no processo, que implica, de seu turno, necessariamente, a previsão de deveres de conduta tanto para as partes como para o órgão jurisdicional (deveres de esclarecimento, consulta, prevenção e auxílio). O juiz tem o seu papel redimensionado, assumindo uma dupla posição: mostra-se paritário na condução do processo, no diálogo processual, sendo, contudo, assimétrico no quando da decisão da causa. A boa-fé a ser observada no processo, por todos os seus participantes (entre as partes, entre as partes e o juiz e entre o juiz e as partes), é a boa-fé objetiva, que se ajunta à subjetiva para a realização de um processo leal. A verdade, ainda que processual, é um objetivo cujo alcance interesse inequivocadamente ao processo, sendo, portanto, tarefa do juiz e das partes, na medida de seus interesses, persegui-la.” MITIDIERO, Daniel, Ob. cit.

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pública sem que as partes tenham se manifestado previamente sobre a matéria242. O cooperativismo, construído na base da nova visão de contraditório

democrático, embora tenha pontos de semelhança com a teoria de Habermas, em dois aspectos se diferencia. O primeiro quanto à forma de participação do juiz no diálogo. Na visão atual de contraditório, o juiz desce ao nível das partes e assume uma posição semelhante a dos mesmos em relação à exposição de argumentos e confronto de ideias, voltando a seu palanque privilegiado apenas quando for decidir. Já Habermas não parece chegar a esse ponto em sua teoria. O juiz para Habermas mantém internamente sua compreensão sobre o debate e somente a externa no momento da sentença, indicando suas razões e aquelas discutidas no fundamento da decisão. Nas palavras de Habermas:

Apesar da relação circular entre normas jurídicas e estados de coisas, entre variantes de interpretação e relações com fatos, a apreciação jurídica não é tematizada, permanecendo atrás dos bastidores. [...]O discurso jurídico, no qual os fatos “provados” ou “tidos como verda-deiros” são julgados normativamente, só é abrangido, sob aspectos objetivos, pelo direito processual, na medida em que o tribunal tem que “apresentar” e “fundamentar” o seu juízo perante os participantes do processo e da esfera pública. É na fundamentação que se encontra a apreciação das questões e alegações produzidas durante a demanda243.

Conclui, em seguida Habermas que: “As regras do processo não regu-

lam, pois, os argumentos permitidos, nem o prosseguimento da argumentação; porém elas garantem espaços para discursos jurídicos que se transformam no objeto do processo, porém somente no resultado”244.

Ocorre que a atuação do juiz no diálogo, imanente ao novo paradig-ma de contraditório, é assaz benéfica para se obter uma melhor solução para o litígio, atingindo o escopo de justiça da jurisdição. É certo que se o juiz ouvisse as partes previamente à tomada da decisão sobre ponto não debatido, no que diz respeito aos motivos pelos quais o magistrado considera dever emitir dado

242 Nesse sentido é a posição de Daniel Mitidiero, de Humberto Theodoro Junior e de Tereza Arruda Alvim Wambier, dentre outros. MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil. Pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Ed. RT, 2009. / THEODORO JÚNIOR, Humberto e NUNES, Dierle José Coelho Nunes. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no direito brasileiro: sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de aproveitamento da atividade processual. In RePro n. 168. São Paulo: RT, 2009./ WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. A influência do contraditório na convicção do juiz: fundamentação de sentença e de acórdão. In: Revista de Processo, n. 168. São Paulo: RT, 2009. 243 HABERMAS, Jürgen, Ob cit. p. 294.244 HABERMAS, Jürgen. Ob cit. p. 294.

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pronunciamento, certamente as respostas poderiam influenciar positivamente a decisão judicial, mudando a convicção do julgador. Com isso se supera a efeti-va inexistência do “juiz Hércules”, cujas qualidades e predicados somente são encontrados na hipótese teórica de Dworkin245.

Ademais, o juiz, por não ouvir as partes quanto aos fundamentos que considera corretos para decidir, muitas vezes, as surpreende, haja vista que ditos fundamentos podem ou não ter sido discutidos no processo. Tal hipótese reper-cute em ofensa ao princípio da segurança jurídica e ao direito ao contraditório, posto que as partes não tiveram oportunidade de contrapor as teses apresentadas pelo magistrado. Pergunta-se: haveria algum problema do juiz indicar previa-mente seus argumentos sobre a lide ou essa manifestação somente pode ser realizada na decisão?

Ora, não há qualquer óbice. A título ilustrativo calha mencionar que isso já acontece no juízo criminal, quando o juiz realiza cognição sobre a via-bilidade da ação penal e sobre a existência de suporte probatório mínimo. Isso também já ocorre quando o juiz, no cível, antecipa a tutela, e, para tanto, apre-cia, mesmo que mediante cognição sumária (e na prática, por vezes exaustiva) o mérito da demanda.

Na prática, o diálogo comumente se realiza no resguardo do gabinete do magistrado, quando, ao receber uma das partes privativamente, o juiz a ques-tiona sobre certas dúvidas ou pontos nebulosos da demanda, colhendo a impres-são do participante do discurso. Nessa hipótese há o evidente inconveniente da reunião ter foro privado, sem que haja a participação da outra parte, e sem que

245 A preocupação do contraditório participativo é sentida no Anteprojeto do Código de Processo Civil encaminhado ao Senado Federal. O Anteprojeto, fiel ao sentido cooperativo do processo, impõe o dever do juiz franquear às partes a possibilidade de se manifestarem, previamente, sobre os fundamentos a serem adotados na decisão, mesmo que relativo à matéria de ordem pública. Da análise dos seus artigos 5º e 8º extrai a preliminar exegese que a participação passa a ser mais que um direito, tornando-se um dever das partes de colaborar com o juiz para a identificação das questões de fato e de direito. Reproduzem-se alguns de seus artigos: “Art. 5º As partes têm direito de participar ativamente do processo, cooperando entre si e com o juiz e fornecendo-lhe subsídios para que profira decisões, realize atos executivos ou determine a prática de medidas de urgência.” Art. 7º É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz velar pelo efetivo contraditório em casos de hipossuficiência técnica. Art. 8º As partes têm o dever de contribuir para a rápida solução da lide, colaborando com o juiz para a identificação das questões de fato e de direito e abstendo-se de provocar incidentes desnecessários e procrastinatórios. Art. 9º Não se proferirá sentença ou decisão contra uma das partes sem que esta seja previamente ouvida, salvo se se tratar de medida de urgência ou concedida a fim de evitar o perecimento de direito. Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual tenha que decidir de ofício.” Disponível em: www.senado.gov.br. Acessado em: 01.02.2012.

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as razões discutidas ingressem no processo, o que vem a ofender o princípio do contraditório. O princípio da oralidade, que informa a atividade processual, serve como fundamento normativo para justificar que a decisão judicial seja proferida em um ambiente de debate, sendo produzida na medida em que as questões vão se amadurecendo.

Sobre a possibilidade de alguma das partes deduzir argumento mera-mente protelatório ou infundado, isso não retira o dever do magistrado se ma-nifestar sobre o assunto, cabendo ao juiz, em contrapartida, reprimir a conduta desleal da parte, mediante a aplicação de multa por litigância de má-fé. Só não pode deixar de apreciar a questão levantada sob o fundamento de sua impro-priedade, pois, para saber se o argumento é impertinente ou não, é necessário que o juiz aduza as razões que o levaram a concluir de uma forma ou de outra.

É certo, contudo, que o próprio Habermas afirma que a jurisdição apresenta restrições materiais que tolhem a feição mais ampla do discurso no processo, restringindo a argumentação. Colhe-se o seguinte trecho de sua obra:

O ponto mais interessante de todo o processo aparece, quando se con-sideram as restrições materiais às quais o desenvolvimento do proces-so está submetido. Essas servem para a delimitação institucional de um espaço interno para o livre evoluir de argumentos em discursos de aplicação246.

Ao lado dessas restrições materiais, Habermas fala ainda em restri-ções sociais e temporais da evolução do processo, que está sujeito a prazos, não se permitindo que o feito dure tempo por demais prolongado. Ocorre que o discurso jurídico deve se moldar às garantias constitucionais, dentre elas a do contraditório, que assume a função de garantia de efetiva participação dos in-teressados na formação da decisão. Ao passo que só será efetiva a participação quando haja a possibilidade247 das partes interagirem com os fundamentos da sentença.

Não se quer com isso dizer que o contraditório se reflita como in-findável confronto de argumentos. A participação dos interessados é regulada, como regra, pelas normas do processo civil, que estabelece prazos, momentos e formas para que as partes se manifestem. A idéia de foro de debate ilimitado é perniciosa aos objetivos do processo.

Outra distinção entre a teoria de Habermas e a visão participativa do

246 HABERMAS, Ob cit. p. 293.247 Fala-se em possibilidade, pois o contraditório não configura um dever da parte produzir manifestação, mas, sim, um direito.

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contraditório é relativa à finalidade precípua de ambas. O procedimentalismo em Habermas tem o intuito primordial de conferir racionalidade à decisão, su-perando a sua falibilidade pela imposição de um ideal de correção fruto do dis-curso no processo. Busca vencer a visão solepsista contida na teoria de Dworkin de existência de um juiz Hércules e, mediante o debate, conferir o fundamento de legitimidade da decisão, onde as partes se vejam ao mesmo tempo como destinatárias e autoras da norma constituída pela decisão. Já o contraditório foi concebido primeiro como garantia das partes de atuarem no processo e, so-mente, num segundo momento foi-lhe atribuída importância como método de contribuição para tomada de decisões racionais.

Deve-se ainda observar que a teoria do discurso é aplicada ao pro-cesso civil por Habermas como forma de equilibrar o conflito entre facticidade e validade existente na atuação judicial. Logo, o procedimentalismo não é um fim em si mesmo, posto que está a serviço de conferir legitimidade à decisão, dotando-a de correção advinda do debate. Não pode, pois, ser visto como uma exigência absoluta e ser imposta em todo o caso de maneira despropositada. Nos casos onde houver menor complexidade e em que a legitimidade da de-cisão advier de outros meios, a técnica processual poderá restringir o foro do debate, em prol de implementar algum outro valor constitucional.248 O mesmo pode ser dito do princípio do contraditório.

3. a efetIvIdade como elemento de JuStIça da decISão e não como meRa tempeStIvIdade

Não é de hoje que se discutem formas de tornar o processo mais efetivo249. E se antes os juristas já se debruçavam sobre o tema, a efetividade da

248 Essa é a exegese que se chega da leitura da obra de Habermas “Direito e Democracia”. O discurso confere legitimidade à decisão em relação às partes, na medida em que propicia que ambas, atuando ativamente no debate, se sintam autoras e destinatárias da decisão, o que lhe confere aceitabilidade. Isso não significa dizer que haja a necessidade das partes atuarem efetivamente no discurso para que a decisão lhes seja legítima. E também não haverá a necessidade de legitimar o pronunciamento judicial dialeticamente quando a aceitabilidade for conferida por outros meios. Como exemplo da primeira hipótese cita-se a sentença que julga procedente o pedido, condenando o réu que se manteve revel. Já o segundo caso pode ocorrer, por exemplo, quando a decisão beneficia o interesse jurídico da parte, ocasião onde a aceitabilidade advém da pragmática posição de vencedor da contenda.249 Já quando da entrada em vigor do Código de Processo Civil atual, a doutrina apontava a preocupação do legislador acelerar o processo, mediante a adoção de técnicas de racionalização do procedimento. Por todos, é de fundamental consulta a obra de Rogério Lauria Tucci, sobre o julgamento conforme o estado do processo. TUCCI, Rogério Lauria. Do julgamento conforme o estado do processo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1982.

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prestação jurisdicional passou a ser assunto recorrente em diversos trabalhos doutrinários250, ao ponto de ser posicionada, por muitos, como o principal valor a ser garantido pela atividade judicial.

Por efetiva entende-se a atividade jurisdicional que, por meio do pro-cesso, assegura “ao vencedor tudo aquilo que ele tem direito a receber, da forma mais rápida e proveitosa possível, com menor sacrifício para o vencido”251.

Uma das medidas da efetividade é a capacidade do processo conferir a quem de direito o bem da vida buscado da forma mais célere possível252. “A apli-cação do direito ao caso concreto só é verdadeiramente eficaz se se realizar de modo seguro, fácil e rápido.”253 A demora para ser deferida a tutela jurisdicional pode resultar na perda do bem jurídico a ser tutelado. E mesmo para os casos onde não haja o perecimento do direito, o atraso na prestação judicial, com a manutenção da situação de incerteza, é por si só nocivo ao interesse daqueles que recorrem à justiça254.

A tempestividade, como elemento mensurador da efetividade da atua-ção do juiz, é garantia que emana do princípio constitucional do acesso à ordem jurídica. Nas palavras de José Rogério Cruz e Tucci:

É até curial que o direito de acesso à ordem jurídica justa, consagrado no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, não exprima apenas que todos podem ir à juízo, mas, também, que todos têm direito à ade-quada tutela jurisdicional, ou melhor, “à tutela jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva255.

250 “A principal função do processualista é buscar alternativas que favoreçam a resolução dos conflitos de modo seguro e tempestivo, mediante tutelas aptas a afastar a crise de direito material, realizando concretamente a vontade do legislador. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo. Influência do direito material sobre o processo. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 58. 251 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública: uma nova sistematização da teoria geral do processo. 2. ed. Revista e atualizada. Rio de Janeiro, Forense, 2003. p. 79.252 Nesse sentido. DIAS, Norma Chrisanto. Os prazos processuais e seu reflexo na efetividade do processo civil. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. p. 89.253 BUZAID, Alfredo. Do julgamento conforme o estado do processo. In Estudos e pareceres de direito processual civil. São Paulo: RT, 2002. 254 Fala-se, nesse caso, em dano marginal .“O dano marginal é aquele que o processo e sua duração causam à parte, independentemente do prejuízo já sofrido pelo descumprimento da obrigação ou desrespeito a direito, o qual será de algum modo reparado pelo processo.” HOFFMAN, Paulo. Princípio da Razoável Duração do Processo. In: Princípios Processuais civis na Constituição. Coordenadores Maria Elisabeth de Castro Lopes, Olavo de Oliveira Neto. Rio de Janeiro, Elsevier, 2008. pp. 332-333. 255 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Duração Razoável do Processo In: Processo Civil: novas tendências: estudos em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Junior/Fernando Gonzaga Jayme, Juliana Cordeiro de Faria e Maira Terra Lauar, coordenadores. Belo Horizonte, Del Rey,

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A preocupação em garantir a celeridade do processo se fez sentir no legislador constitucional, que destacou esse desígnio antes imanente implicita-mente na Carta Magna, ao inserir em seu texto, por meio de emenda constitu-cional, previsão contendo, de forma expressa, a garantia da duração razoável do processo. Desde então a Constituição passou a contar com o inciso LXXVIII, no seu artigo 5º, que traz a seguinte redação: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

Isso não quer dizer que o único valor a ser observado na prestação jurisdicional seja o seu elemento temporal. O açodamento do juiz em proferir a decisão pode ser tão ou mais nocivo do que a demora no pronunciamento judi-cial. Não se pode esquecer que a garantia da duração razoável do processo está inserida dentro do arcabouço de regras e princípios constitucionais que formam um micro-sistema normativo que estabelece parâmetros mínimos a serem, ne-cessariamente, seguidos no exercício da atividade jurisdicional e no processo.

Por essa razão o dispositivo em questão assegura não a mera agilidade do procedimento, mas a garantia de uma duração razoável do processo.

Nesse passo destaca-se a necessidade de o legislador estabelecer téc-nicas processuais que permitam, ao menos tempo, racionalizar a marcha pro-cessual, simplificando o seu procedimento, sem se descuidar das demais garan-tias constitucionais256.

A efetividade não se resume à tempestividade da decisão, mas tam-bém pressupõe a capacidade do processo conferir tutela a quem de direito. Ex-surge da garantia do acesso à justiça o dever de se proferir uma decisão justa, além de tempestiva. A justiça da decisão aqui está atrelada a seu viés de maior correção, o que não a infirma a falibilidade inerente a qualquer atividade de-cisória. E, como visto, a racionalidade do provimento judicial possui estreita ligação com o procedimento dialético realizado no processo.

Assim, de todas as garantias constitucionais a serem preservadas, ao se buscar acelerar o procedimento, deve haver um cuidado especial para não re-duzir, indevidamente, a participação das partes no processo, sob pena de retirar a legitimidade da atuação do Estado-juiz.

2008. p. 436.256 Sobre o risco do legislador criar técnicas que, a pretexto de agilizar o processo, atentem contra garantia contida no devido processo legal, e, assim, atingir efeitos práticos inversos ao almejado, tais como o prolongamento do feito, mediante o uso de instrumentos atípicos para a tutela de interesses legítimos, vale ler o artigo de Dierle José Coelho Nunes. NUNES, Dierle José Coelho. Eficiência processual: algumas questões. In: Revista de Processo, n. 169. São Paulo: RT, 2009.

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4. a leItuRa do aRt. 285-a do cpc à luz do contRadItóRIo e da teoRIa habeRmaSIana

O artigo 285-A, incluído pela Lei nº 11.277 de 2006, no Código de Processo Civil foi concebido como uma técnica para acelerar o procedimento em primeiro grau, permitindo o julgamento contrário ao autor, antes mesmo da citação, nos casos em que a matéria controvertida seja unicamente de direito e o juízo já houver proferido sentença de total improcedência em casos idênticos. A redação é a seguinte:

Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada. § 1º Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de 5 (cinco) dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação. § 2º Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao recurso257.

Trata-se de norma nitidamente voltada para atender ao valor celerida-de, permitindo racionalizar o procedimento, mediante um julgamento definitivo imediato, quando o juízo já esteja convencido de sua improcedência, por já haver apreciado questão “idêntica” em processos anteriores. Sob essa ótica é crucial analisar a regra do art. 285-A do CPC à luz das garantias constitucionais do devido processo legal, em especial se o preceito atende ao objetivo almejado na sua criação de implementar o direito à duração razoável do processo, sem desprezar os demais valores assegurados na Carta Magna, em especial, a segu-rança jurídica e o respeito ao contraditório e ampla defesa.

Eduardo Cambi defende que o dispositivo não implica ofensa ao con-traditório não se atribuindo-lhe a pecha de inconstitucionalidade:

[...] porque, na hipótese levantada, o demandado não será privado da sua liberdade nem de seus bens, conforme proíbe o art, 5º, LV, da CF; a decisão, ao contrário, ao rechaçar integralmente o pedido formulado manterá as coisas no estado em que se encontram e, portanto, confor-me já asseverado, somente pode ser-lhe favorável258.

257 BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acessado em: 09.04.2012.258 CAMBI, Eduardo. Notas sobre as questões recursais envolvendo a aplicação do art. 285-A do CPC. In: NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos polêmicos e atuais dos

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Também destacando o elemento de garantia constitucional das par-tes ínsito ao contraditório, Luiz Fux conclui não haver ofensa ao princípio em questão, por ausência de prejuízo para o réu, já que, embora não tenha sido ouvido, a decisão lhe foi favorável.259 Também amparado na inexistência de prejuízo por parte do réu e do autor, Humberto Theodoro Júnior conclui que a regra não afronta o princípio do contraditório.260

Já Daniel Mitidiero considera o dispositivo inconstitucional, ao ofen-der o contraditório do autor, pois:

[...] a pretexto de agilizar o andamento dos feitos, pretende o legis-lador sufocar o caráter dialético do processo, em que o diálogo judi-ciário, pautado pelos direitos fundamentais, propicia o ambiente de excelência para reconstrução da ordem jurídica e conseguinte obten-ção de decisões justas. Aniquila-se o contraditório, subtraindo-se das partes o poder de convencer o órgão jurisdicional do acerto de seus argumentos261.

recursos cíveis. Vol. 10. São Paulo: RT, 2007. p. 65.259 “O princípio do contraditório impõe que o juiz ouça o réu antes de decidir. Trata-se de consectário do devido processo legal segundo o qual ninguém pode ser despojado do seu direito, ainda que em nível de normação jurídica, sem que seja ouvido. O mesmo ocorre quando se trata de medida liminar, inaudita altera pars, porquanto o contraditório mantém-se, sendo, porém, postecipado. Por seu turno, o processo civil brasileiro é informado pelo princípio do prejuízo no tocante às nulidades, por isso que não se as declara se o ato não sacrificou os fins de justiça do processo, e norteia-se no sentido de conferir à parte o máximo de resultado mediante um mínimo de esforço processual. Exatamente sob a inspiração desses princípios, o legislador admite que o juiz possa rejeitar o pedido do autor e, portanto, favorecer o demandado, sem ouvi-lo anteriormente. À luz da ratio essendi da bilateralidade da ação e do processo, inspirados num processo cooperativo, mister concluir-se que a alteração conspira em favor de todos os princípios ora assentados.” FUX, Luiz. A reforma do processo civil: comentários e análise crítica da reforma infraconstitucional do Poder Judiciário e da reforma do CPC/Luiz Fux- 2. ed. Niterói, Ímpetos, 2008. p. 26.260 “O julgamento liminar, nos moldes traçados pelo art. 285-A, não agride o devido processo legal, no tocante às exigências do contraditório e ampla defesa. A previsão de um juízo de retratação e do recurso de apelação assegura ao autor, com a necessária adequação, um contraditório suficiente para o amplo debate em torno da questão de direito enfrentada e solucionada in limine litis. Do lado do réu, também, não se depara com restrições que possam se considerar incompatíveis com o contraditório e ampla defesa. se o pedido do autor é rejeitado liminarmente e o decisório transita em julgado, nenhum prejuízo terá suportado o demandado, adiante da proclamação judicial de inexistência do direito subjetivo que contra este pretendeu exercitar o demandante. Somente como vantajosa deve ser vista, para o réu, a definitiva declaração de certeza negativa pronunciada contra o autor.” THEODORO JUNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 18. 261 MITIDIERO, Daniel. Processo civil e estado constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007. p. 34.

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Não há, contudo, ofensa ao contraditório. O contraditório consiste em uma garantia das partes, conforme concebido pelo inciso LV do art. 5º da Cons-tituição Federal, que reza que “aos litigantes, em processo judicial ou adminis-trativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Essa garantia, na sua acepção mais moderna, é vista como o direito da parte participar do processo de formação da decisão judicial, o que implica na exigência de que o pronunciamento judicial se reporte aos argumentos por ela produzidos, não trazendo matéria nova que não tenha sido previamente enfrentada pelos litigantes. Para possibilitar que essa participação seja mais efetiva, impõe-se ao juiz o dever de compor a dia-lética processual.

O direito de a parte participar da formação da vontade do juiz não resulta no dever da outra parte ingressar ativamente no debate argumentativo. O autor não tem o direito de exigir que o réu seja coativamente ouvido. Nada obsta, por exemplo, que o réu, mesmo citado, se mantenha revel e nada diga em seu favor ou contra, de modo que ao juiz caberá julgar apenas com base nas afirmações do demandante. Desse modo, a ausência de manifestação do réu não ofende o direito de contraditório do autor. Ademais, a participação do réu, a princípio, é feita em seu benefício. Logo, não há interesse do autor na mani-festação do demandado. Assim, no caso do art. 285-A do CPC, como o autor se manifestou, via inicial, exerceu o seu direito ao contraditório.

Por outro lado, por não sofrer prejuízo, o réu não tem maculada a garantia do contraditório. O contraditório é a garantia posta em serviço da par-te, para que ela possa influir positivamente na decisão judicial a ser proferida. Sendo a decisão favorável, não haverá interesse do demandado fazer valer seu direito ao contraditório.

É certo que a efetiva existência de debate entre ambas as partes contribui para o juiz chegar a uma melhor decisão. Mesmo que a manifestação do réu em nada alterasse o elemento decisório da sentença de improcedência, os fundamentos apresentados em contestação poderiam conferir uma melhor compreensão ao juiz sobre a lide, trazendo-lhe melhores fundamentos para aprimorar sua decisão. Portanto, é ao órgão julgador que interessa ouvir ambas as partes.

Contudo, o contraditório não atua como garantia do juízo, que não pode exigir das partes que se manifestem no processo. Assim, haja vista que a técnica processual de improcedência liminar criada pelo art. 285-A do CPC atende ao interesse do demandado, não há qualquer incompatibilidade do pre-ceito com os ditames constitucionais. Como a decisão é favorável ao réu, mos-tra-se despicienda a instauração do contraditório antes da sentença.262

262 O contraditório será exercido quando e se houver recurso de apelação. Caso contrário o

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Sob outra visão, a norma impõe uma quebra parcial do debate em relação ao juízo de primeiro grau, com isso resta imiscuído o suporte teórico discursivo habermasiano que confere racionalidade à decisão. A regra do art. 285-A privilegia a visão do juiz autossuficiente que extrai sua decisão da inter-pretação de precedentes judiciais (precedentes aqui do próprio juízo). À Luz da teoria habermasiana, o dispositivo legal em comento não contribui para a correção da decisão judicial, ao passo que limita a evolução das ideias jurídicas oriundas dos debates travados ainda em primeiro grau de jurisdição.

Não se quer com isso dizer que a regra seja inconstitucional. Nesse passo, Habermas afirma que o discurso é regulado pelas normas do processo, que delimitam a forma e os termos do diálogo. É vedado à lei apenas esvaziar por completo a participação dos interessados na formação da decisão, quando essa atuação se faça necessária para conferir legitimidade ao pronunciamento judicial. A regra do art. 285-A não suprime, totalmente, o debate. Apenas o transfere para o Tribunal quando do julgamento da apelação a ser, eventualmen-te, interposta pela parte autora.

Sobre a hipótese de não haver recurso, a ausência de participação do réu é relevada pelo fato de ter-se sagrado vencedor, o que retira a necessida-de de se ver como coautor da sentença, haja vista que a sua aceitabilidade do comando judicial é decorrência natural da situação de beneficiário. A pacifica-ção é, assim, resolvida em razão da facticidade, sem que se tenha que recorrer à legitimidade do discurso. Já o autor não poderá nada reclamar, pois se não recorreu, assim o fez por livre escolha, devendo se contentar com a sentença proferida. A sua aquiescência é sinônimo de aceitabilidade. A instauração de um debate a três é postergada e condicionada. Só haverá a integralização do réu ao contraditório se e quando o demandante, por não estar satisfeito com o resultado, recorrer, demonstrando, assim, a impossibilidade da atuação judicial resolver o conflito com base apenas na facticidade do comando judicial, o que fará sobrelevar a importância de legitimação da decisão via o procedimento discursivo.

Impõe-se, contudo, seja respeitado o requisito de que o juízo já tenha proferido sentença de total improcedência em outros casos idênticos. Mais do que ser uma mera exigência legal, trata-se de medida necessária para possibili-tar a adequada formação de vontade do magistrado.

Sobre o sentido da exigência contida no art. 285-A, Patrícia Car-la de Deus Lima afirma que “Juízo é termo usado como sinônimo de órgão jurisdicional” e não de juiz263.

processo transitará em julgado, tornando-se imutável a decisão que julgou improcedente o pedido.263 LIMA, Patrícia Carla de Deus. Notas sobre o julgamento da apelação do art. 285-A do CPC. In: NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos

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Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Mi-guel Garcia Medina consideram que o art. 285-A deve receber uma interpreta-ção sistemática para que sua aplicação esteja restrita aos casos onde haja mais de um precedente do mesmo juízo e que a decisão esteja em sintonia com a jurisprudência das instâncias superiores264.

A despeito de o dispositivo adotar o termo “juízo” o intérprete não deve se ater à literalidade da expressão. Ao se reportar à existência de prece-dentes do mesmo juízo, a intenção clara da norma é delimitar que o julgamento de improcedência liminar se ampare em convicção formada pelo mesmo órgão julgador em processos anteriores, nos quais tenha realizado plena cognição, após ultimado o contraditório. Ocorre que o “juízo” é órgão judicial cuja com-petência é exercida pelo juiz, devendo ser levada em conta também a identidade do magistrado que atuou nos processos anteriores. Ora, não foi o intuito da norma, simplesmente, garantir a uniformização de decisões em um dado órgão jurisdicional. Se a intenção fosse apenas uniformizar a jurisprudência, teria o dispositivo se referido à existência de precedentes de Tribunais Superiores, pois são esses os órgãos imbuídos dessa tarefa na organização do Poder Judiciário.

Para dispensar a necessidade de debate no novo processo, a lei exige que aquele juízo, corporificado pela pessoa do juiz, já tenha participado, em mais de uma outra ação, de procedimento dialético sobre a questão jurídica a ser decidida, como forma de permitir-lhe amadurecer sua opinião e constituir, em contraditório prévio, sua vontade jurídica.

Mais uma vez deve ser trazida ao foco a lição de Habermas sobre a importância de a decisão judicial ser fruto de um processo de diálogo, exsur-gindo daí sua pretensão de correção. Habermas condena a figura do juiz centra-lizador que decide com base em fundamentos próprios, prescindindo de ouvir a opinião dos interessados. Os precedentes de outros magistrados, mesmo que vários, não são fundamento suficiente do agir judicial.

À luz dessa teoria é válido afirmar que a formação da convicção judicial deve ser realizada sempre dentro de um processo e mediante contraditório (participação das partes). Só será possível dispensar o debate em determinado processo, se, em outras demandas, o mesmo órgão julgador teve a oportunidade de formar sua vontade. Para fins de aplicação do direito, o recurso a um precedente proferido por juízo distinto guarda semelhança com

cíveis. Vol. 11. São Paulo: RT, 2007. p. 267.264 WAMBIER, Luiz Rodrigues, WAMBIER, Tereza Arruda Alvim, MEDINA, Miguel Garcia Medina. Breves comentários à nova sistemática processual civil,II: Leis 11.187/2005, 11.232/2005, 11.276/2006, 11.277/2006 e 11.280/2006. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. No mesmo sentido. ALVIM, José Eduardo Carreira. Alterações do código de processo civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006. p. 80.

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a interpretação de disposição literal de uma lei, no que diz respeito à atividade intelectiva do magistrado. Apenas a atuação daquele mesmo juiz em processo anterior similar é que é apta a desenvolver o raciocínio jurídico necessário para fazer valer a vontade concreta da lei.

A se exigir que determinado órgão julgador já tenha proferido deci-sões sobre casos semelhantes, não é possível afastar dessa ratio a figura do juiz em si, pois é o juiz, imbuído da função jurisdicional, quem profere a decisão com base em suas conclusões. Há uma relação umbilical entre o precedente do órgão julgador e o juiz que o proferiu para o fim do sentido a ser dado ao termo constante no art. 285-A.

Logo, não basta que os precedentes partam do mesmo órgão julgador, é também necessário que o juiz tenha sido o mesmo nesses processos. Esse ra-ciocínio é importante para o caso de haver mais de um juiz no juízo e também quando houver alteração de juiz em dado órgão jurisdicional.

Portanto, a norma dá relevo à experiência acumulada pelo juiz nas demandas anteriores e também à sedimentação de um mesmo entendimento no órgão julgador.

Desse modo, havendo decisões num e noutro sentido no mesmo juízo, a norma não deve ser aplicada aproveitando decisões antigas. Devem ser ob-servados os precedentes atuais que refletem a posição vigente do juízo, repro-duzindo uma uniformidade no entendimento do órgão julgador em caráter pro futuro. A adoção de paradigmas antigos, já ultrapassados, não pode ser aceita, pois não se compactua com a finalidade da regra que é conferir unidade e, as-sim, imprimir uma expectativa de que as decisões sejam proferidas num único sentido. Também não deve ser aplicado o dispositivo quando o mesmo juízo apresente decisões conflitantes e atuais quanto ao tema, pois, tal hipótese retira a característica da norma e resulta em prejuízo à segurança jurídica.

O art. 285-A fala, ainda, que os precedentes devem ter sido em “casos idênticos”. Não quer com isso dizer que as demandas sejam idênticas (mesmas partes, pedido e causa de pedir), pois se houvesse identidade seria caso de coisa julgada a resultar em extinção do processo sem análise de mérito.

Para Humberto Theodoro Júnior é necessário que a questão de direito discutida seja exatamente a mesma que a enfrentada nas decisões anteriores, o que pressupõe identidade de causa de pedir e pedido. “Se a tese de direito é a mesma, mas a pretensão é diferente, não e pode falar em “casos idênticos”, para os fins do art. 285-A. Da mesma forma, não ocorrerá dita identidade se, mesmo sendo idêntico o pedido, os quadros fáticos descritos nas duas causas se diferenciarem”265.

Uma vez que a regra impõe a prévia formação de vontade do órgão

265 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Ob cit. p. 16.

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julgador em casos anteriores, é forçoso concluir que:

[...] por “casos idênticos” haver-se-á de entender aqueles em que se repitam as mesmas circunstâncias fáticas e jurídicas, que em nada se difiram numa e noutra ação. Para que haja tal identidade, não basta que tais ações tenham o mesmo pedido e a mesma causa de pedir. Mais que isso, os fundamentos jurídicos integrantes da causa de pedir e do pedido de tais ações também devem ser idênticos. É que, con-siderando que a referida norma autoriza ao juiz copiar a motivação e dispositivo de sentença proferida anteriormente, tais elementos da sentença deverão ajustar-se, com precisão, aos fundamentos da nova ação. Não são “casos idênticos” aqueles relativos a uma mesma tese jurídica, que, no entanto, pode ser genericamente aplicada a uma va-riedade de casos266.

A mera identidade de teses jurídicas não pode ser invocada sob pena de se estar confundindo, em uma só figura, os discursos de fundamentação com os de aplicação. Segundo Habermas, seguindo a tese de Klaus Gunther267, a atividade jurisdicional é voltada, como regra, à realização de um discurso de aplicação e não de um discurso de justificação da validade da norma. No caso do discurso de aplicação, busca-se aferir a adequação da norma ao caso em concreto, observando todas as características essenciais da situação concreta, para então aferir de todas as normas potencialmente aplicáveis, qual delas é a mais adequada.

Portanto, o juiz não pode se ater apenas à tese jurídica, descuidando-se das circunstâncias fáticas de sua aplicação. Uma mesma norma jurídica válida pode ser aplicada a um caso concreto e afastada em outro caso distinto, haja vis-ta os elementos que diferenciam as hipóteses de aplicação nas duas situações.

É justamente a necessidade de o juiz analisar a adequação da norma ao caso concreto (mediante discurso de aplicação) e não a mera tese jurídica, o que pressupõe juízo de valor sobre os fatos que permeiam a lide, que distingue a técnica de julgamento liminar de improcedência criada pelo art. 285-A e a técnica de indeferimento da inicial constante do art. 295. Para esse último caso,

266 WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim e MEDINA, José Miguel Garcia. Ob cit. p. 68.267 “Sigo Klaus Gunther na distinção entre discursos de aplicação e discursos de justificação enquanto passos distintos e necessários que levam a afirmações morais ou jurídicas singulares em situações de conflito.” HABERMAS, Jürgen. A ética da discussão e a questão da verdade. Organização e introdução de Patrick Savidan. Tradução Marcelo Brandão Cipolla. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 24.

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onde o julgamento prescinde da realização de discurso de aplicação, não se faz necessário que o juiz tenha amadurecido sua convicção em demanda anterior, o que dispensa a exigência de precedentes268.

Por fim, com esteio nas palavras de Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, “o caso ao qual poderá ser aplicado o referido dispositivo legal não poderá conter qualquer argumento novo, que deva ser analisado pelo juiz”269.

No caso de o autor trazer novos fundamentos em sua inicial não en-frentados pelo juiz ao decidir os precedentes não poderá ser aplicado o art. 285-A. Não porque a regra permite copiar a decisão anterior para servir de fundamento da sentença a ser dada, mas pela razão de que a parte autora tem o direito, por conta desse dispositivo legal, de que o julgamento liminar somente ocorra quando a questão jurídica a ser decidida já tiver sido avaliada, com a devida profundidade, pelo magistrado em processo anterior, a permitir o correto amadurecimento do entendimento do juiz sobre a causa270.

268 O artigo 295 prevê a possibilidade de indeferimento liminar da inicial em três casos: por vício de ordem processual, por ausência de condição da ação e em razão da prescrição ou decadência. A decisão baseada na inexistência ou invalidade de pressuposto processual não aprecia o mérito do processo, por isso não atua sobre o conflito de interesse de direito material. Logo, não há necessidade de ser lastreada em precedentes. Já nos casos de ausência de condição da ação, a questão é analisada pelo magistrado em caráter abstrato, que faz uma avaliação “em tese” do direito. Não é realizado juízo de valor sobre a real incidência da lei a um fato concreto reconhecido judicialmente. Assim ocorre com o reconhecimento da impossibilidade jurídica em razão do feito versar sobre pretensão de cobrança de dívida de jogo, por exemplo. O processo é extinto porque o ordenamento pátrio não admite como válida essa pretensão, o que independe da situação fática descrita na inicial. Portanto, a análise das condições da ação se perfaz mediante exclusivo discurso de fundamentação. Por não ser realizado discurso de aplicação, o juiz não precisa valer-se de discurso desenvolvido para se chegar à decisão proferida em processo anterior. Mesmo o indeferimento liminar decorrente da declaração de decadência ou prescrição prescinde da realização de discurso de aplicação, pois dita declaração, quando emitida em caráter inaudita altera pars, é prévia à apreciação da existência ou não dos fatos indicados na inicial, afastando-se, de plano, a pretensão autoral.269 WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim e MEDINA, José Miguel Garcia. Ob cit. p. 68.270 Nesse sentido Gustavo de Medeiros Melo. “Antes de ser julgada improcedente de plano a sua pretensão, o autor tem o direito de amadurecer o debate sobre a parte do pedido que ainda não tem estabilidade hermenêutica naquele juízo.” MELO, Gustavo de Medeiros. O julgamento liminar de improcedência. Uma leitura sistemática da Lei 11.277/2006. In: Revista de Processo, nº 165. São Paulo: RT, 2008.

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COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

concluSão

No campo do processo também se constata a existência de tensão entre facticidade e validade, observada pelo duelo do princípio da segurança jurídica (poder sancionatório) e a pretensão de tomar decisões corretas.

Habermas afirma que para se alcançar o escopo do processo de paci-ficação social é necessário observar as condições de aceitabilidade racional das decisões judiciais, como meio de conferir-lhe legitimidade. A teoria do discurso apontada por Habermas como método de racionalização das normas de condu-ta, aplicada ao processo civil, como paradigma procedimentalista que impõe o diálogo e a argumentação do juízo, faz repartir entre todas as partes da demanda o peso antes sustentado somente nos ombros do “juiz Hércules” de Dworkin, permitindo assim se chegar a maior otimização quanto à adoção de decisões que atendam ao critério último de correção buscado pela jurisdição.

A correção da decisão, segundo Habermas, não significa a única de-cisão correta, mas aquela dotada de racionalidade suficiente para, na dimensão de tempo e espaço em que foi proferida, ser aceita legitimamente pelos interes-sados participantes.

A teoria do discurso é aplicada ao processo civil por Habermas como forma de equilibrar o conflito entre facticidade e validade existente na atuação judicial.

O procedimentalismo não é um fim em si mesmo, posto que está a serviço de conferir legitimidade à decisão, dotando-a de correção advinda do debate. Não pode, pois, ser visto como uma exigência absoluta e ser imposta em todo o caso de maneira despropositada.

Nos casos onde houver menor complexidade e em que a legitimidade da decisão advier de outros meios, a técnica processual poderá restringir o foro do debate, em prol de implementar algum outro valor constitucional.

Como afluxo da face democrática do Estado Constitucional que, no processo, é sentido através da garantia fundamental do contraditório, que resga-ta o valor participação do cidadão na formação da vontade estatal, é desenhado o modelo cooperativo de processo.

Há uma inegável proximidade do modelo de processo cooperativo e do método procedimental aclamado por Habermas como meio de permitir decisões racionais e legítimas, mediante o uso de técnicas de argumentação e de diálogo, isso tudo num ambiente de debate onde se assegure a liberdade de atuação dos participantes (dentro é claro de certos marcos normativos), trazen-do o juiz ao nível da discussão.

O cooperativismo, construído na base da nova visão de contraditório democrático, embora tenha pontos de semelhança com a teoria de Habermas,

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em dois aspectos se diferencia. O primeiro quanto à forma de participação do juiz no diálogo. Na visão atual de contraditório, o juiz desce ao nível das partes e assume uma posição semelhante a dos mesmos em relação à exposição de argumentos e confronto de ideias, voltando a seu palanque privilegiado apenas quando for decidir. Já Habermas não parece chegar a esse ponto em sua teoria. O juiz para Habermas mantém internamente sua compreensão sobre o debate e a externa no momento da sentença, indicando suas razões e aquelas discutidas no fundamento da decisão.

Outra distinção entre a teoria de Habermas e a visão participativa do contraditório é relativa à finalidade precípua de ambas. O procedimentalismo em Habermas tem o intuito primordial de conferir racionalidade à decisão, su-perando a sua falibilidade pela imposição de um ideal de correção fruto do discurso no processo. E, mediante o debate, confere fundamento de legitimi-dade da decisão, onde as partes se vêem ao mesmo tempo como destinatárias e autoras da norma constituída pela decisão. Já o contraditório foi concebido primeiro como garantia das partes de atuarem no processo e, somente, num segundo momento foi-lhe atribuída importância como método de contribuição para tomada de decisões racionais.

Hoje fala-se em métodos para conferir maior efetividade ao processo, o que traz à baila a tentativa de adotar técnicas que acelerem seu procedimento. Porém, a efetividade não se resume à tempestividade da decisão, mas também pressupõe a capacidade do processo conferir tutela a quem de direito. Exsurge da garantia do acesso à justiça o dever de se proferir uma decisão justa, além de tempestiva.

A justiça da decisão aqui está atrelada a seu viés de maior correção, o que não a infirma a falibilidade inerente a qualquer atividade decisória. E, como visto, a racionalidade do provimento judicial possui estreita ligação com o procedimento dialético realizado no processo.

Assim, ao se buscar acelerar o procedimento, deve haver um cuidado especial para não reduzir, indevidamente, a participação das partes no processo, sob pena de retirar a legitimidade da atuação do Estado-juiz.

A técnica do julgamento liminar de improcedência estabelecida pelo art. 285-A é performativa do desiderato de racionalização do procedimento. Embora não ofenda o contraditório e não esvazie a teoria do discurso sustentada por Habermas, deve ser amparada em precedentes formados pelo mesmo juiz atuante naquele juízo, como meio de assegurar a correta formação de vontade do julgador, amadurecida mediante o julgamento proferido nos processos ante-riores, onde tenha havido a instituição de debate.

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COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

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COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

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10a aplIcação da antecIpação de tutela no pRoceSSo de

execução

Vicente de paula maciel JúniOr

Doutor em Direito pela UFMG; Pós-Doutor em Direito Processual pela Università di Roma – La Sapienza; professor adjunto de direito processual civil da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, nos cursos de graduação e pós-graduação; Juiz do Trabalho Presidente da 28ª.Vara do Trabalho de Belo Horizonte

SumáRIo: Introdução. 1. Uma visão sistemática do CPC brasileiro. 2. As tutelas de urgência. 2.1 A confusão sobre a natureza das tutelas e fungibilidade. 2.2 As tutelas de urgência satis-fativas no direito brasileiro. 3. A execução provisória no sistema do CPC/73. 3.1 A execu-ção provisória no art.475-o. 3.2 A antecipação de tutela como técnica aplicável ao processo de execução. 3.3 Nossa proposta de interpretação. Conclusão. Referências.

“Entre uma decisão “justa”, tomada autoritariamente, e uma decisão “justa”, construída democraticamente, não pode deixar de haver diferença, quando se crê que a dignidade humana se realiza através da liberdade.” (Gonçalves, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. 2.ed. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2012.)

IntRodução

Não é de hoje que o Direito Processual Civil procura equacionar o problema do tempo razoável do processo com a sua eficácia e eficiência271. Es-

271 “O tempo é inimigo do processo e o seu decurso destempera a boa qualidade do provimento jurisdicional, quando a demora deste traz prejuízos, sofrimentos, ansiedades e quando, quantas vezes, o provimento tardo acaba por se tornar dispensável ou quiçá inútil. Por isso é que o direito processual, em sua disciplina positiva e na interpretação correta que se espera dos tribunais e demais destinatários, há de ser um sistema equilibrado entre dois ideais: de um lado, o zelo pela perfeição e boa qualidade dos resultados do processo, de outro a preocupação pela celeridade.” (DINAMARCO, 1987, p.462.)

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sas duas expressões que muito se distanciam em significado remetem-nos ao problema dos princípios processuais272 da segurança e da celeridade.

Enquanto pelo princípio da segurança o foco é a observância de pro-cedimentos que garantam o exercício pleno do contraditório e a possibilidade de produção de provas que justifiquem as razões de cada parte; a celeridade tem por objetivo assegurar que haja um limite e não se eternize a discussão no processo, garantindo, de preferência, uma resposta rápida ao litígio.

Embora possa parecer problema de fácil solução, na verdade é ques-tão de grande tormenta para o processualista e terreno movediço para o legisla-dor, sempre com graves repercussões na vida do jurisdicionado.

É importante percorrermos algumas premissas para o tratamento do tema central deste artigo e para isso começaremos explicando a finalidade de cada um dos livros de nosso Código de Processo Civil que formam nosso sistema processual.

1. uma vISão SIStemátIca do cpc bRaSIleIRo

A ideia de que cada livro de um Código de Processo Civil faz parte de um sistema: o sistema processual, é algo que não chama muito a atenção da doutrina hoje em dia e não desperta interesse que mereça muito destaque em uma obra jurídica. Entretanto, a falta de visão sistemática sobre os institutos do direito processual é responsável por grandes equívocos interpretativos da juris-prudência, além de desastrosas propostas de reformas processuais, que muita vez alteram significativamente ou mutilam o sistema processual, quebram sua unidade, dificultando sobremaneira sua compreensão.

Quem na Ciência do Processo utilizou-se da expressão “sistema pro-cessual” com maior veemência, para ressaltar que cada um dos institutos do processo pertence a um todo interligado, foi Carnelutti273.

A ideia central dos processualistas europeus274 era a de que, em tese, a jurisdição seria exercida basicamente por funções vinculadas a fins específi-cos, atribuídas a dois tipos de processos diferentes. A primeira seria destinada a

272 CHIOVENDA, 1941, 3v.273 CARNELUTTI, 1936, 3v.274 vide: CARNELUTTI, 1952, pp. 64-74.; CALAMANDREI, 1945.; CHIOVENDA, 1942; COUTURE, 1951. FAZZALARI, 1994. GUASP, Jaime. 1998. LIEBMAN, 1985. MANDRIOLI, 2000. MONTESANO, Luigi; ARIETA, Giovani, 1999. PISANI, 1999. SATTA, Salvatore; PUNZI, Carmine; 2000.

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conhecer o objeto litigioso e sobre ele fixar a certeza através de um provimento declaratório, constitutivo ou condenatório. A segunda função essencial do pro-cesso e que seria suficiente para exaurir a atividade jurisdicional seria a de exe-cutar, e teria por finalidade transformar em atos concretos aquilo está previsto no título executivo judicial condenatório, ou em título extrajudicial equiparável por lei, em efeitos, à sentença.

Posteriormente e por grande influência de Calamandrei275, foi incre-mentada e desenvolvida a ideia de um terceiro gênero de processo, sendo ele destinado a tutelar pessoas, provas e bens para outro processo. Ou seja, em face da possibilidade de a duração do processo principal de conhecimento ou execução demorar muito, as situações concretas que envolvessem pessoas, pro-vas e bens poderiam se alterar, causando danos irreversíveis e comprometendo o resultado útil do processo principal, por não haver o que entregar ao final ao vencedor.

O processo cautelar seria marcado pela ideia de prevenção. A ele não importaria o objeto do processo principal porque seu objetivo é garantir que pessoas provas e bens disputados em juízo se mantivessem íntegros durante a demanda e pudessem ser entregues àquele que lhes fizer jus.

Os processos especiais, ou procedimentos especiais como admitido em nosso CPC, são na verdade processos de conhecimento. Mas não são pro-cessos de conhecimento que se enquadrem em um rito comum, ordinário. A ideia central desses tipos processuais é que o direito material apresenta especi-ficidades e nem todos eles são iguais. Por isso os doutrinadores e o legislador do CPC/73 entenderam ser fundamental a existência desses tipos especiais para que melhor pudesse ser realizado o direito material, criando para tanto um tipo especial de processo.

É a tutela específica do direito por um tipo específico de processo, mais adequado à sua realização. Na Itália, dentre outros, temos como defensores dos processos especiais Pisani276; na Espanha, Guasp277; entre nós Marinoni278.

Segue abaixo um quadro expondo o modelo do sistema processual segundo as finalidades de cada livro do processo e que serviram para inspirar o legislador brasileiro na elaboração do CPC de 1973:

275 CALAMANDREI, 1936.276 PISANI, 1999.277 GUASP, 1998.278 MARINONI; ARENHART, 2003. MARINONI, 2000.

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Processo de conhecimento

Processo de execução

Processo cautelar

Processos Especiais

Processo de conhecimento que tem por finalidade buscar, através de

atividade desenvolvida em contraditório, a

CERTEZA a respeito de uma

situação controvertida, gerando uma sentença que

pode ser:

1)declaratória;2)constitutiva;

3)condenatória.

Processo que tem como pressuposto de sua existência a CERTEZA, que é corporificada em

um TÍTULO EXECUTIVO

judicial ou extrajudicial.

Sua finalidade é TRANSFORMAR

EM ATOS CONCRETOS aquilo que está

previsto no título.

Processo cuja finalidade é PREVENIR

pessoas, provas, e bens, que são objeto de disputas em um processo principal existente ou a ser

proposto. Seu objetivo não é resolver o problema de

mérito do processo

principal, mas apenas tutelar

pessoas, provas e bens para que eles

não pereçam no curso do processo

principal, em razão da sua demora. Justifica-se pela

urgência e necessidade da

atividade preventiva.

A ideia central desses processos é que há

direitos materiais que exigiriam tutelas

processuais diferenciadas,

específicas, que melhor atendessem à natureza desses direitos. Por isso

seriam criados tipos processuais para melhor

servir ao direito material

e torná-lo efetivo. Em razão dessa

finalidade os processos

especiais reúnem características que não

são comuns ou ordinárias, dentro da ideia

do processo de conhecimento. Ele une atos de conhecimento

com atos de execução, fazendo um

modelo híbrido de processo de

conhecimento, que permite, por exemplo,

a concessão de liminares satisfativas bem como

o efeito executivo imediato das decisões de

primeiro grau.

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2. aS tutelaS de uRgêncIa

A expressão “tutelas de urgência” representa o conjunto de situações jurídicas cujos pedidos são feitos e as decisões tomadas tendo por objeto a ne-cessidade de respostas céleres, urgentes. Se não houver a apreciação e o de-ferimento rápido, ou não haverá como garantir o resultado útil do processo, diante da iminente possibilidade de destruição de pessoas, provas e bens para o processo; ou o processo será um longo e frustrante caminho ao qual o autor estará condenado. Somente após todos os atos do script processual ele poderia ter acesso aos bens que, diante da evidência inicial das provas trazidas para a lide, desde o princípio lhe deveriam ter sido reconhecidos.

Tutelas de urgência são, portanto, o gênero, do qual as tutelas preven-tivas e satisfativas são espécies.

As tutelas de urgência preventivas são aquelas deferidas através do processo cautelar.279 Podem ainda ser concedidas por medidas cautelares.280 Se o objetivo do requerimento da tutela de urgência for para proteger pessoas, pro-vas e bens antes ou no curso do processo principal, para que ao final possam ter um resultado útil ao processo principal, a tutela é preventiva, cautelar.

Se o objetivo do requerimento da tutela de urgência for para antecipar os efeitos do provimento (da sentença), ou seja, entregar desde já o bem objeto da pretensão para gozo imediato do autor, em face de prova que evidencie o direito afirmado na petição inicial, então estamos diante das tutelas satisfativas.

O modus operandi das tutelas de urgência é a liminar. A liminar é de fundamental importância porque ela corporifica a urgência em uma decisão, sendo esta normalmente interlocutória. Não é fácil ao estudante e até mesmo aos juristas explicar ou entender o conceito de liminar.

Liminar é, antes de tudo, uma decisão no início da lide (in limini litis), ou antes do momento em que normalmente a decisão deveria ser dada em um processo. A decisão liminar é fundada na demonstração de situações de urgên-cia e necessidade que justifiquem essa antecipação de efeitos dados na decisão

279 O processo é uma garantia constitucional do cidadão para o acesso ao judiciário de modo a solucionar em contraditório com a outra parte uma situação jurídica conflituosa na qual esteja envolvido, utilizando-se de provas e argumentos no sentido de formar o convencimento do julgador a respeito de dos fatos alegados e tendo por parâmetro de julgamento o direito vigente em dado país.280 Medida é uma providência concreta determinada pelo juiz dentro do processo, considerando situações urgentes e necessárias que a justifiquem, o que deve ocorrer em caráter excepcional. A medida depende de a ação ter sido ajuizada pela parte, porque o juiz não pode instaurar a jurisdição por ato seu, uma vez que o princípio da demanda impõe a iniciativa do processo à parte. Portanto a medida é sempre incidental, normalmente tomada a requerimento da parte, excepcionalmente por iniciativa do magistrado.

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antecipada.Normalmente a decisão do processo coincide com o ato final do pro-

cedimento. A liminar é uma decisão que provoca a antecipação de uma pro-vidência concreta, seja em caráter preventivo (para a tutela do processo), seja em caráter satisfativo (para inverter o ônus do tempo do processo e conceder àquele que aparentemente tem razão o direito de uso e gozo imediato do bem pretendido através do processo).

Embora possa parecer que signifiquem a mesma coisa, as liminares satisfativas e preventivas são efetivamente diferentes em fundamentos, finali-dade e efeitos.

As tutelas de urgência preventivas não têm como objetivo resolver qualquer situação controvertida (o mérito) existente em um processo judicial pendente ou a ser proposto.

Seu foco é a proteção de pessoas, provas ou bens que são objeto de disputas e que podem sofrer danos se não houver o deferimento de uma decisão que os ponha a salvo.

Essa decisão não pode esperar o resultado do processo principal, por-que a demora na solução definitiva da causa que passasse por todos os atos do processo previstos no CPC, poderia fazer com que se chegasse a uma solução da controvérsia, mas já não houvesse o que entregar ao vencedor, em razão des-ses bens, pessoas, ou provas, terem se perdido no curso da demanda.

Por isso é que se pede uma tutela preventiva através de uma liminar e se ela tem em sua gênese a finalidade “preventiva para um outro processo”, ela será de natureza cautelar.

Já a lógica das tutelas satisfativas é completamente diferente. O obje-tivo da liminar de natureza satisfativa é antecipar os efeitos do provimento, ou seja, conceder ao autor o direito de usar e gozar o bem que é objeto da contro-vérsia, desde o momento em que se defira o pedido na liminar.

As razões que justificam e tornam isso possível no processo se pren-dem à ideia da evidência do direito do autor. Porque se o autor formula pedi-do no qual apresenta provas robustas de sua afirmação de direito, não haveria motivo para negar-lhe o direito do uso e gozo imediato dos bens que reivindica através do processo.

O objetivo primordial das tutelas satisfativas é inverter o ônus do tempo no processo, seguindo a ideia de que o autor que se apresenta com uma prova forte de sua afirmação de direito acaba “condenado ao processo”. Ele tem de esperar todo o iter do processo de conhecimento, do processo de exe-cução, para somente aí poder receber o bem da vida que, desde o início deveria estar consigo.

Os que defendem essas tutelas argumentam que os réus sem razão

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acabam abusando do direito de defesa e exercendo uma resistência infundada à pretensão do autor, pelo simples fato de que foi previsto um processo padrão em que todas as fases devem ser ultrapassadas para que se tenha, a final, acesso válido aos bens disputados.

Por isso defendem a possibilidade de que haja o deferimento liminar de tutelas satisfativas, para que o autor, que se apresenta com uma prova forte de seu direito, goze e use o bem desde já e transfira ao réu o ônus do tempo da solução da lide. Ou seja, é o réu que, privado do bem objeto de disputa, terá de esperar toda a solução da lide para tentar provar que o pedido inicial é improce-dente. Com isso ele teria pressa na resolução da controvérsia (porque não mais estaria com o bem) e somente recorreria se lhe pudesse advir algum resultado prático útil decorrente do recurso, pois, a cada fase o processo se tornaria mais caro para ele.

O pressuposto de uma tutela de urgência satisfativa é que o autor que afirma ser titular de um direito subjetivo em uma situação controvertida apre-sente provas que revelem as evidências de seu direito e que levem provavel-mente à confirmação de sua pretensão.

Isso se dá ou porque a prova por si só é aquela contra qual não há outra melhor prevista no ordenamento jurídico; ou porque, mesmo havendo a possibilidade de outras provas, aquelas apresentadas são suficientes para atestar os fatos alegados de modo firme, mesmo havendo outras provas possíveis, o que justifica o deferimento da liminar satisfativa, principalmente quando haja urgência e necessidade da tutela. Com isso a lesão ou ameaça ao direito do autor seriam restaurados de pronto.

A grande questão de oposição às tutelas satisfativas liminares é que elas antecipam os efeitos do provimento, ou seja, disponibilizam desde já ao au-tor o uso e gozo do bem, tal qual a execução estivesse se concretizando naquele momento, antecipadamente.

No pressuposto de que o autor tem razão e o réu resiste sem motivo plausível defere-se ao autor, no início da lide, em um juízo de delibação, sem que o contraditório tenha sido aprofundado sobre as questões controvertidas e sem que sequer tenha havido a decisão de primeira instância, o direito de uso e gozo pleno do bem.

O problema é que os pedidos iniciais que aparentemente são proce-dentes podem ser improcedentes em face da defesa e da atividade probatória posterior. Então, se aquele autor que aparentemente tinha razão perde a causa, ele terá usado e gozado do bem e privado o réu que tinha razão do legítimo exercício de seu direito...

Isso se agravaria em face da previsão em nosso sistema de que nin-guém pode ser privado de seus direitos e bens sem o devido processo legal, o

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que normalmente é invocado em favor desses argumentos.Marinoni281 entende que a antecipação de tutela se justifica por muitas

razões e defende que a possibilidade de erro é minimizada em virtude da prova inicial(evidência) e do cumprimento de requisitos objetivos que devem ser fei-tos pelo autor.

Além disso, argumenta que, se há sacrifícios, porque eles deveriam ser suportados pelo autor e não pelo réu aparentemente sem razão de resistir? Porque a jurisdição é pensada a partir do réu em detrimento do autor com evi-dência de suas razões?

Junte-se aos argumentos dos que defendem a antecipação de tutela que o CPC, ao prevê-la, inseriu a possibilidade da tutela satisfativa como insti-tuto ordinariamente previsto em nosso sistema processual, sendo esse o devido processo legal para os casos de urgência em nosso sistema.

Vamos ressaltar no quadro abaixo o que foi dito, indicando a classifi-cação das tutelas a partir do gênero das tutelas de urgência e, em linhas gerais, as respectivas diferenças de finalidades, forma e efeitos.

281 MARINONI, 1984; p.57-64. MARINONI, 1999. MARINONI, 2000. MARINONI, Malheiros Editores Ltda. 2000. MARINONI, 2002. MARINONI, Luiz Guilherme. 2000.

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TUTELA DE URGÊNCIA

Preventivas Satisfativas

- Tem a finalidade de proteger pessoas, provas e bens para um outro processo, de modo que eles não se percam enquanto dura o processo principal.

- Normalmente devem ser analisadas dentro de um processo cautelar, podendo excepcionalmente ser deferidas como medidas incidentais em um processo principal em curso.

- Excetuada a hipótese de acatamento da prescrição e decadência, nenhuma outra questão resolvida no processo cautelar afetará o mérito do processo principal.

- É possível a concessão de liminares fundadas no risco da demora de solução do processo principal (periculum in mora) e na plausibilidade do direito afirmado (fumus boni iuris).

- É possível, mediante prova ou justificação, a concessão da liminar sem ouvir a parte contrária (inaudita altera parte), desde que se demonstre que, tendo ciência do pedido o réu poderá precipitar o efeito danoso ao bem, pessoa ou prova envolvida no processo.

- Antecipa os efeitos do provimento, pressupondo que o autor tem razão em virtude de uma prova por ele apresentada que demonstre a evidência de seu direito.

- São decisões interlocutórias incidentais em um processo principal em curso.

- Há uma tendência de recrudescimento1 da decisão liminar, ou seja, que em face da evidência apresentada inicialmente pelo autor seu pedido seja confirmado a final. A decisão envolve uma avaliação de questão que se confunde com o próprio mérito.

- È possível a concessão de liminares fundadas na evidência do direito da parte; no risco da demora para o direito do autor; na inversão do ônus do tempo do processo, para que o réu aparentemente sem razão o suporte; além de outros requisitos que podem ser exigidos na lei.

- Não é nem deve ser usual a concessão da tutela antecipada sem ouvir a parte contrária. Como vai ser dado o bem ao autor para que ele desfrute desde já dele, é necessário que o réu seja ouvido, a fim de que se lhe possibilite juntar contraprova que justifique o indeferimento da liminar, ou mesmo que se confirme que a liminar deve realmente ser deferida, porque o réu não trouxe nenhum elemento novo e resiste sem razão aos pedidos da inicial.

1 A expressão é de DINAMARCO, 1987.

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As diferenças apontadas entre as tutelas cautelares e antecipadas não se resumem ao campo teórico.

A partir das diferenças estabelecidas pela própria lei brasileira, po-demos estabelecer critérios objetivos para a aplicação de ambos os institutos.

Diante de um caso concreto e considerando a matéria das tutelas de urgência, como o profissional poderia identificar na prática quando usar um processo cautelar e requerer uma liminar preventiva e quando ele deveria pro-por uma demanda principal e nesta pleitear antecipação de tutela?

O critério é simples. Quando o que eu pretendo com o pedido liminar for exatamente igual ao que eu pretendo com o pedido da demanda principal es-tou diante de uma tutela satisfativa e, então, devo ingressar com uma demanda principal e pedir a antecipação de tutela, comprovando os requisitos do art.273 do CPC.

Atente-se que não há previsão legal no direito brasileiro para pedido de antecipação de tutela antes do ajuizamento da própria ação principal. O pe-dido deverá ser sempre incidente.

Quando o que eu pretendo com o pedido liminar for proteger pessoas, provas e bens, de modo a tutelá-los para o processo principal, a fim de que não pereçam no curso da demanda, o pedido terá natureza preventiva, cautelar.

Desse modo terei de recorrer ao livro do processo cautelar e ali tentar encontrar dentre os processos cautelares típicos um que descreva as condições do periculum in mora e fumus boni iuris idênticas aos fatos do caso que tenho em mãos.

Se nenhum dos procedimentos cautelares típicos descrever hipóteses de fumus boni iuris e periculum in mora que enquadrem as hipóteses de meu caso concreto, então deverei lançar mão do poder geral de cautela previsto no art.798 do CPC, descrevendo as hipóteses de urgência e necessidade que, por analogia, correspondam ao periculum in mora e fumus boni iuris.

2.1 a confuSão SobRe a natuReza daS tutelaS e fungIbIlIdade Uma discussão importante sobre a aplicação das tutelas de urgência

decorre de uma antiga discussão havida em face do CPC de 1973, antes das reformas processuais da década de 1990.

O legislador de 1973 colocou dentro do livro do processo cautelar, como processos cautelares, alguns procedimentos que nada tinham de tutela preventiva. O caso mais gritante, a título de exemplo, foi o da ação de alimen-tos provisionais, que permitia o deferimento de uma liminar para fixação de alimentos que sempre teve nítido caráter satisfativo.

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Como bem observa THEODORO JR.282:

Na verdade, “a prestação de alimentos é conteúdo da ação de alimen-tos.” De maneira que sua concessão tem mais figura de liminar do que de medida cautelar. Há mais do que o fim de assegurar uma futura execução, uma sumária resolução da pretensão litigiosa.

Ora, deferidos os alimentos e pagos eles não seriam repetíveis, nem poderiam ser penhorados e também seriam irrenunciáveis. E mesmo se numa ação principal não se reconhecesse o estado de filiação do alimentando e ela fosse julgada improcedente, a parte vencedora deveria continuar a efetuar o pagamento até o trânsito em julgado da decisão.

Ressalta ainda o mestre mineiro283:

Na verdade, o código incluiu os alimentos provisionais no rol das medidas cautelares porque, ao tempo de sua elaboração, ainda não se tinha sistematizado a antecipação de tutela, o que viria a ocorrer com a lei n.8.952/94, que deu nova redação ao art.273. Na visão atual que o código tem da tutela preventiva, os alimentos provisionais devem, portanto, ser tratados como tutela antecipada e não mais como tutela cautelar.

Ora, não há nada mais satisfativo do que isso.Alguns outros procedimentos, como no caso da Justificação, sequer

poderiam ser classificados como processo, porque não prevêem o contraditório, não admitem defesa nem recurso e o seu objetivo é a mera produção de prova oral para a parte provar determinado fato.

Isso demonstra que o legislador de 1973, ao elaborar o CPC, também teve dificuldades de compreender e enquadrar tipos procedimentais na proposta de criação de um processo de natureza preventiva, cautelar.

Essa mesma dificuldade teve o legislador reformista a partir de 1994 ao criar e inserir no art.273 a antecipação de tutela.

Não foram poucas as interrogações e as surpresas dos profissionais do direito, principalmente porque já se desenvolvia no seio da jurisprudência e também da doutrina, argumentos no sentido de admitir em algumas situações extremas a tutela cautelar “satisfativa”.

O livro do processo de conhecimento, que marcou nosso sistema com

282 THEODORO JR., 2009. v.2, p.602. 283 THEODORO JR., 2009. v.2, p.602.

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a vocação para a ordinariedade, não admitia em seu bojo deferimento de limi-nares. A arquitetura do CPC havia reservado apenas o local dos procedimentos especiais para a possibilidade de concessão de liminares. A possibilidade de liminares satisfativas era uma característica, uma marca exclusiva dos proces-sos especiais. E a prática de atos executivos somente poderia ocorrer em um processo de execução284.

Para ter acesso às liminares satisfativas a parte deveria enquadrar os fatos de seu caso em um dos modelos pré-determinados de procedimentos es-peciais. Caso não conseguisse isso, não seria viável o requerimento no bojo de uma ação de rito ordinário, porque o processo comum não previa qualquer pos-sibilidade de concessão de liminar, fosse de natureza satisfativa ou preventiva.

Já o processo cautelar, como não se destinava à apreciação de ques-tões de mérito do processo principal, não era usado para que fossem formuladas pretensões de caráter satisfativo. E quando os advogados assim o faziam, as decisões dos tribunais eram uníssonas em reafirmar a imprestabilidade do pro-cesso cautelar para deferimento de tutelas de natureza satisfativa285.

Mas diante de alguns casos extremos a jurisprudência mostrou-se sen-sível e passou a admitir no bojo do processo cautelar algumas liminares que, de fato, eram satisfativas. Com isso um número cada vez maior de tutelas satisfati-vas foi admitido e elas foram requeridas no bojo de processos cautelares, o que motivou que os doutrinadores abrissem estudos sobre o tema em suas obras286.

Com o advento da inserção da tutela antecipada no CPC, no art.273 a razão para o deferimento de tutelas cautelares satisfativas simplesmente desa-pareceu, visto que passaram a se admitir tutelas satisfativas no próprio bojo do processo de conhecimento, como algo que faz parte do mesmo.

Entretanto, a doutrina e a jurisprudência, que já haviam dedicado sangue, suor e lágrimas para a fundamentação das chamadas tutelas cautelares “satisfativas”, ficou estupefata diante da interpretação do art.273 a partir da reforma de 1994.

284 SILVA, 1998, v.3, p.22.285 “A alteração do Código de Processo Civil foi necessária não apenas em razão das novas situações de direito material, que se mostraram carentes de tutela antecipatória, mas principalmente porque a doutrina e os tribunais não admitiam a prestação da tutela satisfativa em cognição sumária, com base na técnica cautelar.” MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz, 2010. 2.ed, v. 4, p.61.286 “A universalização da ordinariedade, como seria de prever, potencializou, em grau certamente não imaginado pelo legislador, a utilização do Processo Cautelar como instrumento para a realização de pretensões cuja natureza se mostre inconciliável com a morosidade natural do procedimento comum (ordinário ou sumaríssimo). Nosso Processo Cautelar passou então, por força dessas contingências, a servir de via alternativa para todas as ações (de direito material) que demandem uma resposta imediata.” SILVA, 1998, v.3, 2. ed, p.67.

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A antecipação de tutela acabava com as tutelas cautelares satisfativas? Elas ainda poderiam conviver?

Para dirimir a questão287, o legislador inseriu então o parágrafo 7º.288 no art.273, criando a possibilidade de o juiz converter um pedido de tutela anteci-pada em um medida cautelar incidental do processo ajuizado.

Com isso o legislador possibilitou a fungibilidade289 entre uma tutela cautelar e a tutela antecipada.

Ou seja, a parte pede uma tutela antecipada obedecendo obviamente os requisitos do art.273 do CPC para sua concessão. O juiz entende que o pedi-do tem natureza preventiva e não satisfativa. Em face dessa constatação ele de-fere uma medida cautelar incidental ao invés da tutela antecipada pleiteada, isso se estiverem presentes os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora.

A fungibilidade permitida em lei refere-se à hipótese em que a parte ingressa com demanda pelo rito comum. O autor deve requerer a antecipação de tutela de modo incidente, tentando provar ainda as demais hipóteses do art.273:

- prova inequívoca (leia-se prova que evidencie a afirmação de direito objeto da pretensão do processo principal);- verossimilhança da alegação (a confrontação da prova apresentada conduz à confirmação das hipóteses fáticas e jurídicas apresentadas pela parte);- fundado receio de dano irreparável e de difícil reparação (o direito afirmado pela parte e evidenciado pelas provas trazidas poderá resul-tar inútil se não puder ser gozado de imediato, uma vez que não se sabe qual o tempo de duração do processo);- reversibilidade (é critério fixado para ser observado pelo magistrado, entretanto a parte deverá de plano demonstrar a possibilidade de re-versão da medida de modo que ela não seja liminarmente indeferida).

287 Vide ainda BUENO, 2009. pp.128-130.288 Parágrafo acrescentado pela Lei n.10.444, de 07.05.2002. 289 Fungibilidade é adequabilidade. È a possibilidade de conversão de uma situação jurídica processual em outra. É o aproveitamento do processo que, embora proposto com objetivo definido pelo autor, a forma não se mostra a mais adequada ao fim proposto. Diante disso e em face do princípio da economia processual e da instrumentalidade da forma permite-se o aproveitamento do processo adequando-o de modo que atinja o seu fim. A fungibilidade não é propriedade do processo cautelar. É instituto reconhecido nos recursos.

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Algumas decisões290 e mesmo alguns autores291 defendem que é possí-vel que a fungibilidade ocorra tanto quando a parte requer antecipação de tutela e o juiz defere tutela cautelar, como na hipótese em que a parte requer a tutela cautelar podendo ser deferida a antecipação de tutela.

Não pensamos assim. A fungibilidade sempre foi admitida entre ins-titutos que têm a mesma natureza e proximidade de efeitos. Dentro do processo cautelar a fungibilidade aparece como uma característica dele que decorre do art.805 do CPC, mas ela só é possível quando se admite a adequação de uma medida cautelar por outra também cautelar292. Portanto, é exercida a proteção cautelar, a tutela de prevenção mais adequada a evitar que pessoas, provas ou bens objeto de disputas em processos pereçam enquanto se resolve o processo principal.

Não há dentro do processo cautelar nenhum outro artigo que fale de fungibilidade, muito menos que autorize a fungibilidade entre uma tutela cau-telar e uma tutela antecipada.

Ou seja, pedida uma tutela cautelar não há previsão legal de fungibi-lidade para que o magistrado defira uma tutela antecipada.

Na época em que o CPC/73 foi feito sequer havia a previsão legal de antecipação de tutela no direito brasileiro.

A antecipação de tutela somente foi inserida na reforma processual de 1994.

Quando houve a previsão da fungibilidade através de nova reforma processual no ano de 2002, ela apenas acresceu o §7º. ao art.273 do CPC e nele somente houve a autorização para que um pedido de antecipação de tutela fosse

290 Cf.TJSC – APELAÇÃO CÍVEL: ac 216570 SC. Relator: EDSON UBALDO. Julgamento: 28.07.2009. 1ª. Câmara Direito Civil. EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO CAUTELAR INOMINADA – PRETENSÃO CARACTERIZADA COMO ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA – INICIAL INDEFERIDA – FUNGIBILIDADE DAS MEDIDAS CAUTELARES EVIDENCIADA – DEVER DE ANÁLISE DO MÉRITO – SENTENÇA CASSADA: O §7º. Do art.273 do CPC consagrou a aplicação da regra do princípio da fungibilidade entre a tutela antecipatória e a cautelar, permitindo que se defira, a título de antecipação de tutela, medida cautelar e vice-versa, desde que preenchidos os seus respectivos pressupostos.291 “O § 7º do art.273, portanto, deve ser interpretado de forma a permitir fungivilidade ampla e recíproca entre a “tutela antecipada” e a “tutela cautelar”. (BUENO, 2009, p.132). Vide ainda TARDIN, 2006; LAMY, 2006. 292 “Com o exercício da ação cautelar, a parte provoca a atividade jurisdicional preventiva do Estado,mas, por não corresponder ela à realização de um direito material de cautela ( como ocorreria nas hipóteses de garantias reais), o interessado, em regra, não tem especificamente o direito subjetivo a uma determinada prestação. Fica resguardado ao órgão judicial o poder de determinar concretamente qual a medida provisional que mais fielmente desempenhará a função de assegurar a eficiência e utilidade do processo principal”. THEODORO JR., 2009. v.2. p.539.

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convertido em medida de natureza cautelar em razão de expressa autorização de aplicação da fungibilidade.

Na reforma não houve qualquer menção à aplicação da fungibilidade quando a parte pedisse tutela cautelar de modo a autorizar o magistrado a en-tender e deferir em seu lugar uma tutela antecipada.

Ou seja, em termos legais(CPC) não há qualquer autorização para que o instituto da fungibilidade previsto no §7º. do art.273 do CPC fosse também aplicado em via inversa ao que foi previsto293.

Mas a nosso ver não basta esse argumento. Mais importante do que ele é perceber que a ausência de permissão para a utilização da fungibilidade entre a tutela cautelar e a tutela antecipada decorre exatamente do fato de que elas são ontologicamente diferentes, conforme acima foi esclarecido.

O deferimento de uma tutela cautelar pressupõe a necessidade e ur-gência de uma tutela para proteção de pessoas, provas e bens envolvidos em um processo principal. Suas condições são as provas do fumus boni iuris e do periculum in mora.

Para a tutela cautelar são precisos dois requisitos e não se discute o mérito do processo principal.

Na antecipação de tutela são exigidos cinco requisitos (requerimento da parte, verossimilhança da alegação, fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, manifesto propósito protelatório do réu e reversibilidade da medida). Além disso, o que se pretende é que seja antecipado exatamente aquilo que é o efeito do processo principal(a entrega do bem da vida pretendido pela parte). O fundamento é que haja a inversão do ônus do tempo do processo para que o réu aparentemente com razão use e goze desde já do bem da vida que postula em juízo.

Portanto, quando se pleiteia uma tutela antecipada é possível que os dois requisitos do fumus boni iuris e periculum in mora tenham sido comprova-dos no pedido da parte. Por isso o legislador entendeu por bem deferir a possi-bilidade de fungibilidade no §7º. do art.273 do CPC.

Entretanto, quando o pedido é de tutela cautelar, a parte, em tese, teria de demonstrar duas condições da ação (fumus boni iuris e periculum in mora). Como poderia o magistrado pressupor que estariam demonstradas as outras hipóteses necessárias para a configuração da antecipação de tutela?! A fungibilidade seria quantitativa e qualitativamente incabível.

293 Isso é inclusive admitido mesmo por aqueles que defendem a aplicação recíproca do §7º. do art.273 do CPC, como podemos ver em SCARPINELLA BUENO: “A leitura do §7º. Do art.273 é suficiente para revelar que não há nele autorização para a “conversão” ou fungibilidade da “tutela cautelar” em “tutela antecipada”. Só de “tutela antecipada” em “ tutela cautelar”. (BUENO, 2009,p.130)

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Atente-se que, mesmo a hipótese do §7º. do art.273 do CPC é passível de críticas sérias. Isso porque o §7º. autoriza que o juiz defira algo que não foi efetivamente pedido pela parte. Ora, a parte pede antecipação de tutela e o ma-gistrado entende que o caso é de tutela cautelar e assim o defere.

Dentro da estrutura do CPC/73 essa hipótese configuraria julgamento citra294 ou mesmo extra petita295. O magistrado não estaria ofendendo o princípio da demanda e da imparcialidade?!

E se o autor recorresse dessa decisão dizendo que não foi isso que pretendeu e o juiz não apreciou sua pretensão de modo específico, havendo ne-gativa de tutela jurisdicional que afeta o seu direito de acesso ao judiciário para a apreciação das lesões e ameaças de que entende ser vítima?

Seria sob essa ótica inconstitucional o §7º. do art.273 do CPC, por ofensa ao art.5º., XXXV da CF/88?

Particularmente não concordamos com o §7º., art.273 do CPC, por-que entendemos que a utilização dos institutos da tutela antecipada (de natureza satisfativa) e das tutelas cautelares (de naturezas preventivas), não oferece qual-quer dificuldade para o enquadramento em nosso modelo do devido processo legal. Ainda mais após a criação da antecipação de tutela no art.273 do CPC.

Repetimos, o critério é simples: se o que se pretende com a tutela liminar é exatamente aquilo que se pretende como resultado do processo prin-cipal, a tutela é antecipada, de natureza satisfativa.

Por outro lado, se o que se pretende é a proteção de pessoas, provas e bens para um outro processo, a tutela é preventiva, cautelar.

Quando se dispõe na técnica processual de meio capaz de atender às necessidades do processo, compete ao profissional a utilização correta da via legal. O erro crasso deve desencadear as consequências previstas na lei para aquele que o comete, mas não pode gerar a banalização do erro e a supressão do sistema legal sob o fundamento de que a forma deve ser superada sempre pelo conteúdo.

Não se pode esquecer que o processo é a garantia que a parte tem de ser processada e de processar alguém segundo um modelo paradigmático que se aplica a todos. Quando as contingências passam a moldar o processo ele perde sua essência e beneficia uns, em detrimento de outros. Se a norma é vilipendia-da para atender o conteúdo em detrimento da forma, seguramente a outra parte no processo teve prejuízo na forma como foi processada, o que vicia o conteúdo da decisão que a prejudicou.

Como todo processo de linguagem, o direito tem linguagem própria e é dever daqueles que nele se formam, atuam e praticam, dominar o conteúdo e

294 A juiz teria julgado apreciando menos do que foi pedido.295 O juiz teria julgado fora do objeto do pedido.

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a forma, de modo a preservar o sistema de garantias que ele cria.

2.2 aS tutelaS de uRgêncIa SatISfatIvaS no dIReIto bRaSIleIRo

O local dentro do CPC de 1973 em que foram permitidas tutelas li-minares satisfativas no direito brasileiro foram nos procedimentos especiais de jurisdição contenciosa.

Os chamados processos especiais são processos que não adotam o modelo padrão, o modelo ordinário. Dentro da técnica processual, esses proces-sos se destacam por características que os cientistas processuais identificaram como específicas a partir da comparação com o procedimento comum. São ca-racterísticas dos procedimentos especiais:

1) A limitação do objeto a uma questão normalmente vinculada a um direito material específico, previsto ou no Código Civil ou no Código Comercial. 2) Esse direito material define e limita o objeto do processo especial, que tem um conjunto de questões conexas com esse objeto.3) Sempre foi característica dos processos especiais a possibilidade de concessão de tutelas de urgência, liminares de natureza satisfativa, com antecipação dos efeitos do provimento.4) O rito adotado é sumarizado em parte e adaptado à exigência do direito material e depois de superada essa fase inicial o processo nor-malmente segue o rito ordinário.5) As decisões (sentenças) proferidas nos processos especiais nor-malmente são executadas de imediato, não ficando sujeitas ao efeito impeditivo (suspensivo) dos recursos eventualmente interpostos. A sentença também antecipa os seus efeitos.6) O livro dos processos especiais é um livro aberto no sentido de que não se limitam apenas àqueles institutos que foram previstos no CPC. Fazem parte dos processos especiais todas as matérias processuais que sejam regulamentadas por leis específicas referentes a certos di-reitos materiais. Portanto, a matéria processual prevista no Código de Defesa do Consumidor, relativa aos direitos processuais individuais e coletivos são também processos especiais. Da mesma forma a lei da Ação Civil Pública, a lei da Ação Popular, a lei do Mandado de Segurança, a lei dos Juizados Especiais são todos processos especiais, dentre outros.

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Com a reforma processual parcial ocorrida a partir de 1994 no Bra-sil296, houve uma alteração muito mais profunda do que se possa imaginar no sistema processual.

Em verdade foi quebrada a lógica do sistema que atribuía ao processo de conhecimento a atividade apenas de cognição e ao processo de execução o objetivo exclusivo de transformação em atos concretos daquilo que estava pre-visto no título executivo.

Uma característica que existia apenas de modo excepcional, como marca do processo especial, passou a fazer parte do processo comum, ordinário. Ou seja, todo processo de conhecimento de rito ordinário em que se compro-vem os requisitos previstos para a antecipação de tutela podem gerar o deferi-mento da tutela de urgência satisfativa.

Por outro lado, não foi boa a técnica legislativa, porque o legislador trouxe a regulamentação da antecipação de tutela para o processo de conheci-mento, sendo que ela deveria na verdade ser tratada no processo de execução.

Pode soar estranha nossa afirmação ao aluno ou mesmo ao profis-sional já acostumado a ver a antecipação de tutela no bojo do processo de co-nhecimento, mas não se pode perder de vista que o “DNA” desse instituto está na regulamentação de um procedimento que culmina com a prática de um ato executivo, com antecipação dos efeitos da tutela, que é exatamente aquilo que se pretende como resultado final do processo. O que a liminar satisfativa pro-porciona é a entrega do bem da vida objeto da pretensão.297

É preocupante a desinformação ou mesmo o descuido com que o tema vem sendo tratado e que tem causado tantos equívocos. Dentre eles podemos apontar a proposta presente no projeto de lei do novo CPC, de número 8046/10, que cria uma terceira espécie de tutela, chamada de tutela da evidência.

A evidência é instituto vinculado ao direito americano298 e diz respeito às provas que devem ser apresentadas pelas partes que justifiquem a existência da demanda.

296 Leis 8.952, de 13 de dezembro de 1994 e 10.444, de 07 de maio de 2002297 O instituto da antecipação de tutela tem estreita relação com a execução provisória. Nesta a execução é processada embora não exista ainda o trânsito em julgado da decisão. Entretanto, enquanto na tutela antecipada antecipa-se os efeitos do provimento mesmo sem haver ainda uma decisão definitiva, na execução provisória executa-se sem poder concretizar os efeitos do provimento, mesmo já havendo uma decisão definitiva de primeira instância, sujeita a recurso com efeito suspensivo. Nos parece contraditória a situação, o que conduz ao raciocínio de que ou a antecipação de tutela revogou a execução provisória e generalizou a possibilidade de que a tutela antecipada seja deferida também quando já se tenha a decisão definitiva do processo, ou a antecipação de tutela deve ser executada nos termos da execução provisória, o que limitaria e esvaziaria os seus efeitos. Como a antecipação de tutela é instituto posterior ao da execução provisória, entendo que houve evidente revogação deste por aquele.298 Confira FIUZA; SOUZA, 1998, v.1, no.1 (jan-jul).g

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O título IX, capítulo I, art.269 e, especialmente o art.278 do projeto 8046/10 mencionam a evidência como uma nova modalidade de tutela, ao lado das tutelas de urgência preventivas e satisfativas.

O título IX do projeto refere-se às “Tutela de urgência e tutela da evidência”.

No primeiro artigo do capítulo I, quando vai regulamentar as dispo-sições comuns a ambos os tipos de tutela o legislador reformista já demonstra toda a imprecisão e desinformação no trato da matéria.

Senão vejamos:

“Art. 269. A tutela de urgência e a tutela da evidência podem ser re-queridas antes ou no curso do processo, sejam essas medidas de natu-reza satisfativa ou cautelar.” (grifos nossos). Ora, a redação é incompreensível. O capítulo faz referência a disposi-

ções comuns à tutela de urgência e da evidência, mas o título separa cada uma delas como institutos diversos.

Posteriormente o art.269 do projeto afirma que ambas as tutelas, de urgência e de evidência podem ter natureza satisfativa ou cautelar. (sic)

Pergunta-se: qual tutela de evidência é cautelar?! Toda a seção III que foi dedicada à tutela da evidência refere-se à

mesma como tutela satisfativa em face da evidência da prova!A evidência é fundamento da tutela satisfativa, mas não da cautelar,

que é preventiva e pressupõe apenas o fumus boni iuris e o periculum in mora.A evidência é fundamento das tutelas satisfativas. Porque existe pro-

va (evidência) das alegações do autor justifica-se a urgência na apreciação do pedido de antecipação de tutela, invertendo-se o ônus do tempo no processo.

Todas as hipóteses da seção III do projeto de lei 8046/10 referem-se a situações em que haja uma prova irrefutável, uma situação de incontrovérsia so-bre fatos ou o direito. Como se vê, a evidência não é uma nova forma de tutela, um terceiro gênero. Ela é fundamento de uma tutela de natureza satisfativa que, em razão da existência de uma prova (evidência) do fato ou do direito, justifica que haja a inversão do ônus do tempo no processo e que o réu que resiste sem motivo suporte os efeitos da tutela em prol do autor que apresenta evidência de seu direito.

Tratar a evidência como uma forma de tutela nova é, portanto, um grande equívoco. E tratá-la como tutela cautelar é uma heresia.

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3. a execução pRovISóRIa no SIStema do cpc/73

O instituto da execução provisória encontrava-se no artigo 587 do CPC/73 com a seguinte redação:

“A execução é definitiva, quando fundada em sentença transitada em julgado ou em título extrajudicial; é provisória, quando a sentença for impugnada mediante recurso recebido só no efeito devolutivo.” 299

A execução provisória somente se configuraria quando a sentença estivesse sujeita apenas ao efeito devolutivo. Se houvesse admissão de efeito suspensivo300 pela hipótese legal não caberia execução definitiva.

Logo ao comentar o art.588 do CPC/73, Alcides de Mendoça Lima301 revelava a origem do instituto da execução provisória:

“A execução provisória nasceu da necessidade de conciliar os interes-ses do credor, com seu direito reconhecido em sentença impugnada, nos casos expressos em lei, por via de recurso com efeito meramente devolutivo; e os do devedor, que ainda não perdeu a causa de modo definitivo. Àquele se assegura a reparação do seu direito violado, em-bora provisoriamente; ao último, concedem-se garantias de ser ressar-cido se a sentença executada for anulada, reformada ou modificada, tornando, assim, ineficaz e inoperante a execução provisória.”

A execução provisória foi instituto concebido para acelerar a execu-

299 Para LIMA (op.cit.p.379) na verdade a expressão efeito devolutivo ou devolução não é correta tecnicamente, porque somente se devolve algo para alguém que antes possuía a coisa e os tribunais superiores nunca possuíram os processos antes que eles lhes fossem enviados das instâncias inferiores. O autor sugere o uso da expressão “efeito de transferência” em substituição a “efeito suspensivo”. Ressalta ainda o autor que no direito romano não havia recurso algum nos moldes do que hoje se conhece como apelação. Foi o direito canônico que introduziu esse sistema. A partir de então a apelação passou a ser essencialmente devolutiva e por natureza suspensiva. O efeito meramente devolutivo tornou-se exceção nos ordenamentos processuais, porque ele sempre permitira a execução da sentença, mesmo que de modo provisório. 300 Para José Carlos Barbosa Moreira a denominação efeito suspensivo, apesar de tradicional, é inexata. Explica o Mestre que, quando o recurso é tempestivamente interposto, ele não suspende efeitos que já estivessem ocorrendo. O que ocorre é o prolongamento do estado de ineficácia em que a decisão se encontrava. Quando a parte interpõe o recurso na verdade ele impede que ocorram os efeitos da decisão. (MOREIRA, 2000.)301 LIMA, 1991. p. 383.

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ção, de modo que o vencedor da demanda condenatória pudesse, desde logo, dar início não só à apuração dos valores reconhecidos na sentença ainda pen-dente de recurso recebido em efeito devolutivo, como também promover atos executivos destinados à satisfação do exequente.

A execução provisória é, portanto, uma técnica processual voltada a antecipar atos jurisdicionais executivos frente a um processo que, embora deci-dido, está submetido a uma possibilidade de alteração em face de pender uma impugnação à decisão que foi proferida.

A decisão proferida é definitiva, porquanto o juiz cumpriu e acabou seu ofício jurisdicional em relação ao processo de conhecimento. O que é pro-visório é o título judicial condenatório, uma vez que o recurso interposto não permitiu que ela transitasse em julgado302.

A execução provisória é uma antecipação dos efeitos do provimento303 realizada em um momento do processo em que o título judicial ainda não tran-sitou em julgado. Embora provisório, o título não é um nada jurídico. Ele já é a resposta do Estado-juiz ao caso concreto submetido ao Poder Judiciário. Ele contém mais do que a verossimilhança que é exigida para a antecipação de tute-la. A sentença judicial condenatória impugnada já contém a certeza consubstan-ciada em um título executivo cujo efeito ainda depende de uma situação jurídica processual condicionante. Essa situação é o recurso interposto e recebido ape-nas no efeito devolutivo que ainda recoloca a decisão ou parte dela sub judice.

Essa ideia da execução provisória é que originou o instituto da ante-cipação de tutela.

Enquanto a execução provisória se volta ao processo de execução, a antecipação de tutela foi idealizada no bojo do processo de conhecimento. Mas ambos os institutos se referem à possibilidade de execução antes que o processo tenha concluído todas as suas fases.

A execução provisória parte da certeza sobre fatos que foram reco-nhecidos em uma decisão judicial. Já a antecipação de tutela parte da verossimi-lhança das alegações da parte que demonstram requisitos legais que autorizam a antecipação dos efeitos do provimento.

A execução provisória veio antes, muito antes, sendo instituto cuja finalidade inicial foi assegurar, mesmo que timidamente, uma “vantagem” à parte vitoriosa na demanda, de modo que ela pudesse dar início ao processo de

302 Neste sentido: “O que é “provisório” na hipótese, no sentido colocado de depender, em alguma medida, de ulterior confirmação jurisdicional, é o título que fundamenta a execução e não os atos executivos, a execução propriamente dita. É o título executivo e não a execução que carece de uma confirmação ulterior; é ele, o título, e não ela, a execução, que produz efeitos imediatos sob condição resolutiva.” BUENO, 2008. p.134. 303 BUENO, 2008. p.141.

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execução, mesmo havendo recurso de efeito meramente devolutivo pendente sobre a matéria decidida.

A antecipação de tutela é instituto moderno que, inserindo-se na fase de conhecimento, quebra a lógica do sistema e pressupõe, fundada em mera ve-rossimilhança, o direito de o autor não ser prejudicado pelos efeitos corrosivos do tempo no processo.

Em comum ambos os institutos objetivaram a celeridade, fazendo uma opção pelo autor que aparentemente tem razão, contra o réu que resiste sem razão, valendo-se para isso, da necessária sequência dos atos processuais previstos na lei.

Com isso, esses institutos visam fortalecer as decisões judiciais, en-fraquecendo a resistência do réu no cumprimento das mesmas.

Nesse sentido, Scarpinella304 fala com propriedade que:

“É importante insistir na última observação do parágrafo anterior ao emprestar para a execução provisória de um título executivo judicial o mesmo modelo executivo de quaisquer outros títulos executivos da mesma origem, é importante ter consciência de que disto decorre um fortalecimento necessário da decisão proferida, a despeito de sua su-jeição ao sistema recursal e, conseqüentemente, do juízo prolator. É fundamental que a força executiva da sentença e dos acórdãos, mes-mo quando eles dependam de ulterior deliberação em sede recursal, seja reconhecida e acatada pelo executado, tal qual nela ou neles reco-nhecido, o que tem tudo para conviver harmonicamente com a lógica do desfecho recursal e da execução que o sistema admite neste meio tempo. Pensamento diverso teria o condão de neutralizar ou, quando menos, reduzir o espectro da eficácia das decisões jurisdicionais, dire-triz que vai de encontro às conquistas mais recentes do direito proces-sual civil brasileiro, no plano constitucional e no plano infraconstitu-cional.”

3.1 a execução pRovISóRIa no aRt. 475-o

A execução provisória está hoje regulamentada no CPC no capítulo X intitulado “Do cumprimento da sentença”, no art.475-o305.

304 Op. cit. pp. 144-145.305 Introduzido pela lei n.11.232 de dezembro de 2005 com a seguinte redação:“Art.475-o – A execução provisória da sentença far-se-á, no que couber, do mesmo modo que a definitiva, observadas as seguintes normas:

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Chama a atenção na redação do art.475-o que o mesmo se tenha de-dicado mais a estabelecer um sistema de responsabilidades e garantias contra os atos provisórios de execução do que propriamente regulamentar o procedi-mento da execução provisória. E quando o fez foi pródigo em contradições e hesitações, conforme demonstraremos de modo objetivo a seguir.

Após dispor sonora e pomposamente no caput do art. 475-o que a exe-cução provisória da sentença será feita da mesma forma que a definitiva, dando a entender que haverá a entrega de bens e finalmente o demandante vitorioso, após percorrer o longo iter do processo, irá concretizar seu direito reconhecido, o legislador passa a dispor em seus itens sobre a responsabilidade do autor pela execução provisória, responsabilizando-o por eventuais prejuízos decorrentes da mesma, quando não o submete à exigência de prestação de caução.

Assim, os incisos I, II do art.475-o confirmam a atribuição da respon-sabilidade da execução provisória ao exequente.

O inciso III e o §2º do art.475-o dedicaram-se a regulamentar o siste-ma de garantias (cauções), seja para exigi-las ou para as dispensa-las.

O legislador andou mal em tratar do tema da responsabilidade nesse capítulo X do processo de execução, porque essa matéria, além de ter regula-mentação na lei material (direito civil sobre responsabilidade patrimonial) de-

I - corre por iniciativa, conta e responsabilidade do exequente, que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido;II - fica sem efeito, sobrevindo acórdão que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidados eventuais prejuízos nos mesmos autos, por arbitramento;III - o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem alienação de propriedade ou dos quais possa resultar grave dano ao executado dependem de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos.§1º. no caso do inciso II do caput deste artigo, se a sentença provisória for modificada ou anulada apenas em parte, somente nesta ficará sem efeito a execução.§2º. A caução a que se refere inciso III do caput deste artigo poderá ser dispensada: I - quando, nos casos de crédito de natureza alimentar ou decorrente de ato ilícito até o limite de sessenta vezes o valor do salário mínimo, o exequente demonstrar situação de necessidade; II - nos casos de execução provisória em que penda agravo perante o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça (art.544), salvo quando da dispensa possa manifestamente resultar risco de grave dano, de difícil ou incerta reparação.§3º. Ao requerer a execução provisória, o exequente instruirá a petição com cópias autenticadas das seguintes peças do processo, podendo o advogado declarar a autenticidade, sob sua responsabilidade pessoal:I - sentença ou acórdão exequendo;II - certidão de interposição do recurso não dotado de efeito suspensivo;III - procurações outorgadas pelas partes;IV - decisão de habilitação, se for o caso;V - facultativamente, outras peças processuais que o exequente considere necessárias.

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veria ser especificamente regulamentada no capítulo IV do processo de execu-ção, que é dedicado ao tratamento da responsabilidade patrimonial em relação aos processos judiciais.

Quanto à caução o tratamento também foi ambíguo, porque a caução é exigida como se fosse a chamada “caução legal” 306, o que ocorre no inciso III do art.475-o. Entretanto e logo a seguir, no §2º. do art.475-o, o legislador excepciona e relata dois casos que podem justificar a dispensa da caução. Essas hipóteses devem ser verificadas em contraditório, porque dependem da com-provação dos fatos que estão descritos nas hipóteses legais dos incisos I e II do art.475-o.

Além do mais, os incisos I e II do art.475-o são descritas em razões de necessidade e urgência de seu deferimento, o que nos remete por óbvio ao tipo legal previsto para as tutelas preventivas cautelares que regulamentam a maté-ria, que é o processo cautelar de caução previsto dos artigos 826 a 838 do CPC.

Portanto, essa caução teria de ser dada, por iniciativa do exequente, em processo cautelar de caução, que pressupõe a comprovação das condições das ações cautelares e se desenvolve em contraditório para apuração da exis-tência das hipóteses fáticas que justificam a fixação de caução. Não poderia em tese haver a mera imposição via medida incidental, mas apenas como fruto do devido processo cautelar de caução.

Some-se a isso o fato de o legislador ter arquitetado o sistema de exe-cução provisória definindo que ela se processa do mesmo modo que a definiti-va. Logo a seguir vincula os efeitos dessa execução provisória a condicionantes fáticas e à prestação de caução. Depois diz que a caução pode ser dispensada em situações que descreve na norma.

Ora, a lei não previu hipóteses específicas de cabimento da execução provisória, não regulamentou condicionantes próprias para o seu processamen-to. A norma foi omissa, apenas dizendo que a execução provisória se processa do mesmo modo que a definitiva (caput do art.475-o do CPC).

Portanto, o procedimento e os parâmetros processuais para a execu-ção provisória no direito brasileiro, sejam quanto à forma ou quanto à extensão, são aqueles que estão definidos no CPC quanto à execução definitiva de senten-ça sujeita apenas a recurso com efeito meramente devolutivo.

Subsidiariamente aplica-se também ao processo de execução o pro-cesso de conhecimento, por força do art.598 do CPC.

No processo de conhecimento, o instituto da antecipação de tutela previsto no art.273 do CPC é o único instituto que prevê ato executivo no curso do processo de conhecimento e é plenamente compatível com o processo de

306 Aquela que decorre para sua existência unicamente da justificativa de ser exigida em lei para que o direito possa ser deferido.

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execução porque tem nele a sua origem. Os requisitos previstos para a anteci-pação de tutela constituem as hipóteses legais previstas pelo legislador para o deferimento da antecipação dos efeitos do provimento também no processo de execução e na execução provisória.

Se assim não for, como justificar que no processo de conhecimento, em cognição sumária, sem que todas as fases do processo tenham sido cum-pridas, o juiz possa deferir uma medida que antecipe os efeitos do provimento, com a entrega real do direito objeto da demanda à parte, fundado apenas na ve-rossimilhança da alegação do autor e não possa fazer o mesmo quando já exista um título executivo, provisório ou não?!

3.2 a antecIpação de tutela como técnIca aplIcável ao pRoceSSo de execução

Entendemos que a execução provisória como regulamentada hoje no CPC aparentemente estaria em contradição com o instituto da antecipação de tutela, o que merece esclarecimento.

Ao introduzir a antecipação de tutela no CPC o legislador admitiu a generalização de um ato de execução e o regulamentou dentro do livro do pro-cesso de conhecimento.

Essa alteração rompeu com a lógica segundo a qual o livro do proces-so de conhecimento trataria apenas da regulamentação da cognição e o livro do processo de execução serviria apenas para regrar o procedimento da execução.

Com isso passou-se a admitir que no processo de conhecimento fos-sem praticados atos executivos que antecipassem os efeitos do provimento quando a parte comprovasse a verossimilhança de suas alegações, nos termos dos requisitos exigidos pelo art.273 do CPC, o que somente era antes imaginá-vel no âmbito do processo de execução.

Por outro lado, manteve-se o instituto da execução provisória que é instituto da execução que pressupõe a existência de um título executivo, que por sua vez é fundado na certeza e não na mera verossimilhança, como ocorre na antecipação de tutela.

Ora, os questionamentos decorrem do fato que hoje temos o instituto da antecipação de tutela que é uma decisão de urgência de natureza satisfativa dada de modo provisório no processo de conhecimento. Essa decisão poderá antecipar os efeitos do provimento, conferindo de imediato à parte o direito de usar e gozar do bem objeto do processo. Essa decisão provisória é interlocutó-ria e é fundada apenas na verossimilhança da alegação da parte e não em uma sentença proferida após o exaurimento da cognição.

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Nem mesmo na sentença hoje o juiz pode deferir uma tutela com ta-manha extensão de efeitos do que a decisão de antecipação de tutela, a não ser que decida sobre a antecipação de tutela na própria sentença.

De outra feita, a execução provisória em princípio não é capacitada à produção de efeitos tão amplos, indo normalmente até a penhora e dependendo também do recurso ser recebido apenas no efeito devolutivo.

Entretanto, nada há que justifique essa limitação de efeitos da execu-ção provisória. Também nada há que impeça o deferimento da antecipação de tutela em sede de processo de execução.

Para tentar harmonizar os institutos, deve-se compreender que a an-tecipação de tutela na verdade é oriunda da execução provisória e foi prevista para ser deferida dentro do processo de conhecimento. Ela é ato de execução incidente em processo de conhecimento, com efeitos de entrega dos bens objeto do processo em razão do reconhecimento da verossimilhança das alegações da parte e da consequente inversão do ônus do tempo no processo favoravelmente a essa parte.

A execução provisória nunca poderia ter efeitos menores do que os da antecipação de tutela, porque ela é fundada em um título executivo que, mesmo sendo provisório, já estabeleceu a certeza sobre o conflito de interesses.

Portanto, é natural que a execução provisória deva admitir a “inver-são do ônus do tempo no processo de execução”, permitindo que se aplique a antecipação dos efeitos do provimento de modo pleno também no processo de execução, porque não se tem aí apenas a verossimilhança, mas sim a certeza das alegações da parte que já constam em um título executivo provisório.

Há muito mais razões que justificam o deferimento da antecipação dos efeitos do provimento no processo de execução do que no processo de co-nhecimento.

Há inclusive claro dispositivo legal que fortalece esse entendimen-to e que consta no CPC, como no artigo 598307, onde expressamente está pre-vista a possibilidade de aplicação subsidiária do processo de conhecimento ao de execução.

A integração do sistema se faz em matéria de execução a partir do processo de execução e de suas normas, podendo aplicar-se os institutos do pro-cesso de conhecimento quando regulamentem em parte ou totalmente matérias que lhes sejam comuns.

Normalmente essa interpretação pressupõe a compatibilidade dos ins-titutos e a prevalência, em caso de conflito, da norma especial sobre a geral subsidiária.

307 Art.598 – Aplicam-se subsidiariamente à execução as disposições que regem o processo de conhecimento.

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Também se deve ter em conta que a lei posterior, via de regra, revoga a anterior.

Entendemos que não há incompatibilidade entre a idéia da execução provisória e da antecipação de tutela, porque a própria origem da antecipação de tutela está no instituto da execução provisória. Ambos partem do pressuposto de que o direito de algum modo já consolidado ao autor deve ser efetivado e o réu deve suportar os ônus da espera da solução do processo. Por isso ocorrem e se justificam os atos de execução contra o réu.

A lei que instituiu a antecipação de tutela no processo de conheci-mento no direito brasileiro foi a lei n.8.952, de dezembro de 1994, alterada em 2002 pela lei n.10.444.

A lei que regulamentou a execução provisória, como vimos, data de dezembro de 2005.(lei n.11.232)

Não se cogita na doutrina e jurisprudência sobre a hipótese que a lei 11.232/05 tivesse revogado no todo ou em parte as leis que criaram a antecipa-ção de tutela. Embora posterior, a lei que regulamentou a execução provisória no art.475-o do CPC não teve, portanto, qualquer revelação de incompatibilida-de entre os institutos, que permanecem convivendo no CPC.

No entanto, entendemos que ambos os institutos não têm sido utiliza-dos adequadamente e isso se explica por problemas hermenêuticos.

3.3 noSSa pRopoSta de InteRpRetação

Em nosso pensamento, o instituto da antecipação de tutela previsto no art.273 estabeleceu as hipóteses de seu cabimento e essas hipóteses corres-pondem à regulamentação das situações de fato que devem estar demonstradas, tanto para o deferimento da antecipação dos efeitos do provimento no processo de conhecimento como na execução, seja esta provisória ou não.

Isso se justifica porque a antecipação de tutela normatizou nos incisos do art.273, hipóteses fáticas que caracterizam e fundamentam a possibilidade de inversão do ônus do tempo no processo, caso comprovadas.

Essas hipóteses não são incompatíveis com a execução. A execu-ção definitiva já deve mesmo ir rumo à entrega efetiva dos bens para saldar o exeqüente. Nessa espécie mais se torna necessária a aplicação da antecipação de tutela, cujos requisitos já decorrem em grande parte do título executivo judicial.

Se a execução for provisória também se justifica o deferimento de an-tecipação de tutela em seu âmbito porque esses tópicos correspondem, a nosso ver, às situações descritas no art.273 do CPC para a concessão da antecipação de tutela que justificam sua generalização para a execução em todas as suas formas, mesmo porque a execução provisória será realizada da mesma forma

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que a definitiva.Abaixo apresentamos as razões em tópicos, segundo as quais enten-

demos que se justifica a utilização da antecipação de tutela seja na execução provisória ou definitiva da sentença:

Mas e a atribuição de responsabilidades ao exequente, bem como a exigência de caução, previstos pelos incisos, parágrafos e itens do art.475-o do CPC não impediriam essa aplicação extensiva?

Entendemos que não, porque a execução provisória nos termos do

Execução definitiva Execução provisória

- há título definitivo transitado em julgado e liquidado;

- há certeza decorrente do título, o que é muito mais do que verossimilhança da alegação;

- a resistência é injustificada e obrigará o próprio Estado a ingressar no patrimônio do devedor e dele extrair bens para pagar o credor;

- Não se justifica, em princípio, a resistência a título transitado em julgado e liquidado o que faz pressupor o obstáculo ilegal ao direito da parte, assegurado inclusive no processo;

- a impugnação do executado, se existir, virá de modo incidental via embargos do devedor;

- a execução definitiva corre por conta do devedor;

- o exequente acaba ficando com o ônus de suportar o processo de execução e corre os riscos decorrentes da possibilidade de inadimplemento;

- a sentença executiva pode em tese ser desconstituída por ação rescisória, mas a probabilidade é rara e afasta a possibilidade de irreversibilidade em face da segurança já resultante da existência do próprio título.

- o art.475-o, caput, do CPC autoriza que a execução provisória se dê da mesma forma que a definitiva, o que atrai o mesmo raciocínio acima exposto em relação à execução definitiva;

- Há título sujeito a recurso com efeito meramente devolutivo. Esse título sempre será mais que mera verossimilhança porque ele já contém a resposta do Estado-Juiz à demanda formulada pelas partes;

- A resistência do executado não se justifica, porque o Estado-juiz já cumpriu e acabou seu ofício jurisdicional de primeiro grau e a parte tem a resposta sobre a apreciação do conflito de interesses segundo uma cognição plena;

- O exequente tem o ônus de suportar o processo e corre os riscos oriundos da possibilidade de inadimplemento;

- o título executivo pendente de recurso pode em tese ser desconstituído por recurso, mas a probabilidade é menor.

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art.475-o regulamentou apenas a responsabilidade por danos decorrentes de eventual mudança de rumos em posterior avaliação do título executivo quando do julgamento do recurso, explicitando as responsabilidades do exequente. Isso não impede que a execução prossiga até o final.

Mesmo quanto à possibilidade de levantamento de dinheiro entendo perfeitamente possível que ocorra na execução provisória, bastando que estejam presentes os requisitos do art.273, havendo ainda a possibilidade de o julgador avaliar os riscos dos fatos para a causa e exigir, conforme o caso, a prestação de caução.

Mas não há qualquer contradição na possibilidade de usar-se a anteci-pação de tutela como técnica generalizada para a execução de sentenças, sejam provisórias ou não.

Ela é inclusive compatível como técnica de tutela de direitos perten-centes a outros ramos da Ciência Jurídica, como podemos constatar, a título de exemplo, no Direito do Trabalho.

Considerando que no Direito do Trabalho o objeto da regulamentação é a relação de emprego e o foco da tutela é centrado na proteção do crédito tra-balhista, que tem natureza alimentar, mais se justifica a utilização de técnicas processuais que conduzam à efetivação dos direitos reconhecidos nas sentenças trabalhistas.

Aliás, isso é expressamente previsto na CLT, no art.769, que tem a seguinte redação:

“Art.769. Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em for incompatível com as normas deste Título.”

A compatibilidade da interpretação que demos para a aplicação da antecipação de tutela em sede de execução tem tudo que ver com a tutela do crédito de natureza alimentar a que se dedica a CLT.

E é tão importante sua utilização porque pacifica e supera as restrições diversas vezes impostas à possibilidade de levantamento de dinheiro pelo recla-mante, que fica aguardando os infindáveis recursos, mesmo quando já possui um título (ainda que provisório) e precisa da verba, que é para seu sustento (em face da natureza alimentar do crédito).

O próprio art.475-o do CPC autoriza a dispensa de prestação de cau-ção, mesmo na liberação de dinheiro, conforme dispõe o seu §2º. (quando nos casos de crédito de natureza alimentar ou decorrente de ato ilícito até o limite de sessenta vezes o valor do salário mínimo, o exequente demonstrar situação

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de necessidade). A necessidade do empregado em relação ao recebimento de seus cré-

ditos não pagos e oriundos da relação de emprego é evidente, sendo hipótese que via de regra ocorre nos processos trabalhistas. Qual empregado não precisa de seus salários e direitos trabalhistas?!

Como consequência objetiva da norma, o valor de sessenta salários mínimos autoriza em tese e de pronto que haja liberação de dinheiro em todas as causas de rito sumaríssimo trabalhistas, porque elas tem o limite em quarenta salários mínimos. E abrange inclusive as causas de rito ordinário trabalhistas até o limite de 60 salários mínimos.

Portanto, se a matéria já é sumulada, se o recurso é contra orientação jurisprudencial, isso já autoriza, com segurança, a liberação do dinheiro. Se a matéria é de alto grau de conflito, inclusive no tribunal, o juiz deverá analisar os demais aspectos do requerimento da parte, mas não está impedido pela pró-pria lei de liberar o valor, invertendo o ônus do tempo no processo em favor do autor, caso em que analisará se há razões ou não da dispensa de prestação de caução.

Por isso não há restrições para o uso da técnica da antecipação de tute-la também no âmbito da execução, mesmo porque é muito mais fácil comprovar os requisitos do art.273, porquanto já se tem o título executivo. Isso inclusive resgataria o equilíbrio entre processo de conhecimento e de execução, além de valorizar a decisão de primeira instância tomada após a cognição plena.

concluSão

Logo, segundo nosso entendimento, a antecipação de tutela é que re-gulamenta as hipóteses fáticas que possibilitam a antecipação da execução, seja provisória ou definitiva.

Em fase de execução de título judicial, é perfeitamente possível e compatível o pedido de antecipação dos efeitos do provimento.

Havendo pedido do exequente, que deve demonstrar as hipóteses do art.273 do CPC, o magistrado deve dar vista ao executado.

Havendo necessidade, o juiz pode realizar audiência de justificação em caso de dúvida sobre quaisquer das hipóteses do art.273 do CPC.

Se a parte formulou pedido e há grave risco de dano, sendo a matéria fortemente controvertida também nos tribunais e inexistindo súmula ou orien-tação jurisprudencial, ele pode fixar caução, ou mesmo indeferir o pedido de antecipação, do mesmo modo como o faz no processo de conhecimento.

Se o recurso pendente versa sobre matéria sumulada, então a questão se resolve e facilita ao juiz a apreciação e deferimento da antecipação de tutela

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na execução.A generalização da aplicação da técnica da antecipação dos efeitos do

provimento, como forma compatível com o processo de conhecimento e de exe-cução, resgata e harmoniza as incoerências hoje presentes no CPC. Essas incoe-rências decorrem, como vimos, da disparidade entre os efeitos executivos anteci-pados conferidos às decisões interlocutórias de cunho satisfativo, que vigoram no processo de conhecimento, por força do art.273 do CPC, e da ausência de efeitos quando se tem uma sentença judicial, transitada em julgado ou não.

Entendemos que nossa proposta é perfeitamente viável, não depende de qualquer elaboração legislativa e pode ser aplicada de imediato, bastando usar os institutos jurídicos já disponíveis em nosso CPC, a partir da compreen-são e interpretação sistemática de nosso direito processual.

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Seção II paRa além do podeR JudIcIáRIo: JuStIça e

efetIvIdade doS dIReItoS fundamentaIS

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1a heteRocompoSIção de lItígIoS pela aRbItRagem e SeuS

IdeáRIoS de JuStIça

adriana SilVa maillart

Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Ca-tarina. Coordenadora do Curso de Direito, professora e pesquisadora do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho (UNINOVE).

SumáRIo: Introdução. 1. Autonomia da vontade ou autonomia privada? 2. A autonomia privada na arbitragem. 3. A autonomia privada na arbitragem, ideais de liberdade e justiça. Conclusão. Referências.

IntRodução

A arbitragem tem como seu princípio primordial a autonomia das par-tes, aqui tratada como autonomia privada. A importância deste princípio para a arbitragem é tão significativa que a Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional (Uncitral), recomenda expressamente a sua obedi-ência308. Isso se deve, em grande parte, por vantagens proporcionadas por esse princípio, tais como a certeza, a previsibilidade e a uniformidade (cf. LEW, 1978, 79).

Por outro lado, existe uma parte da literatura que acredita que a arbitra-gem e seu princípio basilar seriam uma expressão do neoliberalismo, principal-mente por aventar a utilização da lex mercatoria como regra de fundo aplicável à arbitragem309. Ou seja, a arbitragem seria uma criação das regras de mercado e

308 “Onde as partes adotaram regras para a condução de uma arbitragem [...] o procedimento de arbitragem deveria ser conduzido de acordo com essas regras, não obstante disposições em contrário nas leis locais” (cf. STRENGER, 1998, p. 37).309 José Alexandre Tavares Guerreiro (1993, p. 111), explicando este posicionamento, afirma que: “liberarem-se as partes contratuais de um sistema de direito positivo determinado no contrato

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dos capitalistas para beneficiar os economicamente mais favorecidos. Este artigo tem por intento, portanto, analisar as particularidades do

princípio da autonomia privada e suas implicações no instituto da arbitragem, desmistificando a sua origem como uma expressão neoliberalista, mas, sobre-tudo, defendendo que este instituto pode contribuir para a efetivação da Jus-tiça, desenvolvendo a capacidade do agente e da eliminação das privações de liberdade 310, mas também sendo um forte aliado na batalha contra a crise do Judiciário.

1. autonomIa da vontade ou autonomIa pRIvada?

O princípio da autonomia da vontade foi uma das grandes expressões de liberdade individual, principalmente, com as primeiras concepções de direi-tos subjetivos como direitos individuais, no século XVI. Com esses direitos in-dividuais, surge também a noção de liberdade contratual, do livre-arbítrio e, por sua vez, a qualificação do indivíduo como pessoa moral, ressaltando-se a sua capacidade de escolha. A partir desse momento, como ressalta Nadia de Araújo (2004, p. 41), o indivíduo passa a ser livre e com autonomia para fazer opções.

O princípio da autonomia da vontade é um dos institutos mais contro-

(ou, pelo menos, como alternativa, um outro sistema de direito positivo, significaria, ao ver do jurista italiano [o autor se refere a Michael Joachim Bonell], dotá-las de um poder de autonomia praticamente ilimitado. Estar-se-ia revivendo, extemporaneamente, com o contrato sem lei e a arbitragem autossuficiente, sem vinculação a qualquer lei estatal, o liberalismo econômico e o individualismo jurídico dos séculos XVIII e XIX – o que Bonell afirma como apoio em autorizadas passagens de Henri Battifol – sendo que, na atual experiência jurídico-política, na qual o indivíduo é levado em consideração principalmente como membro ativo e responsável da sociedade e em que os interesses dos particulares somente recebem tutela jurídica na medida de sua compatibilidade com os interesses da coletividade, o poder e auto-regulação das partes, enquanto sujeitos privados, pressupõem, necessariamente, um ordenamento objetivo e geral que discipline esse mesmo poder, determinando-lhe o âmbito de aplicação”.310 O desenvolvimento da capacidade do agente e da eliminação das privações de liberdade são requisitos essenciais do desenvolvimento como liberdade. “O ponto central da teoria de desenvolvimento de Amartya Sen é considerar que a liberdade é o meio e o fim de desenvolvimento. Dessa maneira, desenvolvimento consiste na atribuição de capacidade às pessoas para realizarem as várias coisas que se pode considerar valioso fazer ou ter. O verdadeiro desenvolvimento, dessa maneira, consiste em eliminar as privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente a sua condição de agente”[...] “O diferencial da teoria de Sen está em considerar a liberdade individual sobre dois prismas: o da capacidade individual e o da capacidade social. A liberdade defendida por Amartya Sen é considerada um produto social, em que as disposições sociais visam a expandir as liberdades individuais e, ao mesmo tempo, essas liberdades individuais são usadas não só para melhorar a vida de cada um, mas também para tornar as disposições sociais mais apropriadas e eficazes” (SILVA, 2007, pp. 15-16).

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versos do sistema jurídico, tendo seus defensores e seus críticos311. Essa matéria é tão controversa que sua existência chega a ser negada por Almicar de Castro (2001, p. 226), para quem o que existe na teoria dos contratos é uma liberdade autorizada e delimitada pelo Direito, e não uma autonomia da vontade.

Para outros, como é o caso de Fernando Noronha (1998, p. 88), “o contrato constitui um comando, ou preceito, que, embora privado, é como tal reconhecido pelo ordenamento jurídico” e, portanto, o contrato e a autonomia possuem uma função econômico-social. Desse modo, afirma o autor que a ex-pressão a ser adotada atualmente quando se fala de autonomia nos contratos é autonomia privada, e não autonomia da vontade. Isso porque autonomia priva-da exprimiria a nova concepção de liberdade individual: a liberdade de auto-re-gulamento de interesses nas relações privadas como fato social (NORONHA, 1994, p. 89). Dessa forma, abandona-se a concepção clássica de autonomia (da vontade) preconizada pelo antigo liberalismo: a de que as partes possuem liber-dade ampla e ilimitada para determinar suas relações jurídicas, preocupando-se simplesmente com o seu benefício econômico privado e exclusivo.

Para Antonio Valdecantos (1994, p. 109), autonomia é uma região particular da liberdade: “o âmbito em que um indivíduo é ‘autônomo’ coincide com o âmbito livre de interferências de que esse indivíduo desfruta para eleger seu próprio plano de vida ou para renunciar a seguir um plano de vida coerente”.

Enrique Lalaguna Dominguez (1978, p. 35) também ressalta que a au-tonomia privada se apresenta como o limite de nossos atos, como algo negativo ou restritivo à liberdade, mas, em contraposição, esse limite também é a asse-guração e a garantia da liberdade312, de tal maneira que, por meio da autonomia privada, “o homem afasta sua liberdade natural, mas recebe em contraprestação

311 “Ya en 1927 el profesor Niboyet consideraba la teoría de la autonomía de la voluntad como la más difícil del Derecho internacional privado, dificultad que parece haber sido probada si tenemos en cuenta que aún en nuestros días se debate esta cuestión sin que los autores se hayan puesto de acuerdo sobre la existencia o no de la misma” (PARRA RODRÍGUES, 2001, p. 226).312 Álvaro Villaça Azevedo (1988, p. 17) ainda ressalta que, “ante a possibilidade do legislador de regular todas as formas contratuais, que vão surgindo no mundo moderno, abre-se um campo fértil à liberdade das partes. Nesse clima de liberdade, a autonomia da vontade semeia novas formas de progresso, procurando resolver os problemas advindos das necessidades, sempre crescentes, de ordem sócio-econômica, sendo os indivíduos impelidos aos mais variados pactos, que se mesclam em um colorido sui generis. Contudo, importante é que essa liberdade seja condicionada, pois a liberdade, sendo um bem nas mãos de pessoas de bom senso, pode se transformar num mal, quando dirigida por forças que escravizam o homem, de uma forma ou de outra. Dessa maneira, a liberdade está condicionada a certos princípios de convivência intersubjetiva, para que não se verifiquem abusos e para que se reafirme, sempre, a ideia de que o Direito pode não ser a própria Justiça, mas para ela tende. O direito de um há que chegar até o limiar do direito de outrem, para que haja o respeito mútuo entre os homens, numa reafirmação constante da ideia, segundo a qual o Direito deve harmonizar sua vida”.

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uma liberdade que se afirma na sociedade e que desta recebe sua garantia” (LA-LAGUNA DOMINGUES, 1978, p. 35).

Apesar de a autonomia privada ser vista como um princípio de ordem política e, mais concretamente, um princípio de ordem político-liberal, hoje ela não apenas é um princípio puramente político, nem, principalmente, um princípio puramente liberal313. Como explica Perlingieri (apud LIMA, 1999, p. 33), ela “abrange todas as liberdades pessoais garantidas constitucionalmente. Nesse sentido, a autonomia privada não se exprime apenas nos negócios jurí-dicos, mas também através da própria identidade do indivíduo dentro da órbita dos valores hierarquicamente dispostos na Constituição, destacando-se no caso da Constituição de 1988, os arts. 5º, 6º e 7º”.

Dessa maneira, tem-se que a autonomia, como os ideais de liberdade individual, está respaldada não às regras de mercado e aos ideários do libera-lismo econômico. Pode-se afirmar que, hoje, o liberalismo (remodelado) visa, sobretudo, ao respeito à pessoa e ao reconhecimento dos fins humanos, e a aceitação da autonomia privada, sob este prisma, prevê limites, mas não limites tão rígidos que venham a suprimi-la. Isso porque, admitindo-se a supressão da autonomia privada, também se estaria anulando totalmente a pessoa e a conver-tendo em puro instrumento da comunidade, apesar de que os valores de solida-riedade e co-participação nunca devem ser afastados de seu objetivo final, pois o estímulo para que as pessoas exerçam sua capacidade é um importante fator para o seu desenvolvimento pessoal e de toda a sociedade314.

313 “Siempre que se habla del principio de autonomía privada se quiere ver en él un principio de orden político y, más concretamente, un principio característico del orden político liberal. Es frecuente la afirmación de que el principio de autonomía de la voluntad es un principio de signo individualista y liberal, que debe ser sustituido por un principio intervencionista más conforme con las concepciones sociales que hoy imperan. No se va a negar que el principio de autonomía alcanzó extraordinario vigor dentro de las direcciones políticas de matiz liberal, como también es cierto que la corrección de las exageraciones a que condujo su imperio bajo el reinado de las ideas liberales y la misma enemiga contra éstas, son las causas del aumento de las restricciones que ha sufrido en la época moderna. Lo que debe negarse es que el principio de autonomía privada sea un puro principio político y que sea un principio liberal. El liberalismo es un principio de Derecho, porque el respeto a la persona y su reconocimiento como ser de fines exigen su vigencia, y es dentro de su marco donde puede el hombre realizarse plenamente. La supresión de la autonomía privada como principio general del Derecho llevaría consigo la total anulación de la persona y su conversión en puro instrumento de la comunidad. El principio de autonomía de la persona es además un principio tradicional del Derecho español, que ha reconocido y defendido siempre el valor del individuo y la necesidad de protección jurídica de la realización de sus fines”. (DÍEZ-PICAZO; GULLÓN, 2001, pp. 370-371).314 Como afirma Eduardo Sens dos Santos (2001, p. 53), “o contrato, como fato social e econômico que é, tem efeito ‘cascata’. À proporção que o contratante imediato é lesado, toda a comunidade sente os prejuízos; da mesma forma, quando ambas as partes são beneficiadas pelo pacto, a vantagem é comum. Por esses motivos, não se pode observar o fenômeno apenas sob o prisma de contratante e contratado, pois o contrato passou a ser uma ‘instituição social’ - os bons contratos,

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É certo que, muitas vezes, as consequências que o direito atribui à autonomia privada são distintas da vontade subjetiva do agente, mas sempre correspondem a um intento prático e podem ser conformes com a vontade geral das pessoas. Assim, apesar de se perceber a importância do individualismo e da liberdade, como expressão necessária do reconhecimento da dignidade moral da pessoa humana (STRENGER, 2000, p. 56), tem-se em conta que o interesse geral não pode ser olvidado, considerando-se sempre os valores sociais, pois, como assinala Irineu Strenger (2000, p. 72), “a vontade socializada e legalizada é que devemos entender por autonomia. A sociedade e o legislador soberano que a representa diante do indivíduo formam a confiança deste a fim de que ele possa exercer sua vontade jurídica pelo bem comum”. Em verdade, o que se pretende não é limitar os poderes dos indivíduos, mas fazer com essa liberdade seja res-paldada pelos valores sociais e os ideais igualitários. Por este motivo, entende-se que quando se trata da autonomia nos contratos e em arbitragem, a expressão a ser utilizada deve ser autonomia privada e não autonomia da vontade.

2. a autonomIa pRIvada na aRbItRagem

Como aponta Cristina Riggenbach (1999, p. 17), “[...] o princípio da autonomia da vontade [autonomia privada] foi inserido em nosso ordenamento jurídico como uma forma privilegiada de aperfeiçoamento do direito estatal e não como uma supressão deste pelo individualismo privado” ou pelo neolibe-ralismo315.

A autonomia privada na arbitragem não seria uma expressão das re-gras do mercado, como defende José de Albuquerque Rocha (1998, p. 21):

[...] o liberalismo [presente na arbitragem] trabalha com uma acepção abstrata de liberdade. Contempla as pessoas dessocializadas, o que significa não prever as consequências das relações sociais. Esquece que por trás da liberdade teórica estão sempre as relações de poder que desigualam as pessoas socialmente e limitam sua liberdade de escolha. Vale dizer, olvida o fato de que a liberdade utópica não sig-

que promovam desenvolvimento econômico e social, são de interesse de toda a sociedade”.315 Welber Barral (2000, p. 97), reforçando esta ideia, especifica que: “pode-se dizer [...] que a globalização econômica, e o desenvolvimento do comércio internacional, favorecem a utilização da arbitragem. Afinal, é sobretudo nos contratos internacionais que a cláusula compromissória é inserta com mais freqüência, em razão do receio de um contratante em se submeter à ordem jurídica do outro contratante. Tal comportamento pragmático não revela, entretanto, qualquer caráter intrinsecamente neoliberal da arbitragem, nem serve de fundamento ao mito ideológico que se formou em torno do instituto”.

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nifica que as partes estejam em igualdades de condições para impor seus interesses na relação contratual. [...] de nada serve ser titular de direitos e liberdades se a inquietude pela sobrevivência impede de exercitá-los e reclamá-los.

Embora se saiba que, por vezes, os economicamente mais fortes po-dem tentar conseguir alguns benefícios, mesmo neste caso, o Estado procura criar meios para amenizar e equilibrar as regras do jogo316. Aqui, quando se trata de autonomia privada na arbitragem, essas regras são determinadas pelos limi-tes impostos a estes institutos. Estes limites, que compreendem a ordem pública e outros meios equivalentes a esta figura, visam a tornar o acordo das partes mais igualitário. Dessa maneira, a liberdade só será realmente conquistada se os valores sociais forem respeitados e os ideais igualitários estiverem presentes. No caso específico da autonomia privada, essa concepção de liberdade é conse-guida por se permitir que as partes exerçam sua condição de agente ao firmarem um acordo, mas ao mesmo tempo prever limites a este limite preservando o interesse da comunidade.

Vale ressaltar que, a autonomia privada na arbitragem possui o mes-mo ideal da autonomia privada no direito dos contratos, mesmas características e mesmos limites, possuindo apenas algumas especificidades quando presente neste meio alternativo/amigável de disputa. A autonomia privada rege pratica-mente todo o processo arbitral e serve de medida. Isto porque o princípio da autonomia privada abarca não só a opção em recorrer a esse meio alternativo de controvérsias, mas também de escolher as regras de fundo e de procedimento às quais estará vinculado o juízo arbitral, entre outras liberdades. Dessa for-ma, pode-se constatar que o princípio da autonomia privada está previsto desde a instauração do juízo arbitral até a sentença final proferida pelo árbitro. De maneira mais sistemática e acadêmica, poder-se-ia apontar quatro momentos claros em que o princípio da autonomia privada está presente na arbitragem: na escolha da forma de jurisdição; na escolha do árbitro; na escolha da regra de fundo; e na escolha do procedimento.

A autonomia para escolher a forma de jurisdição se reflete na possi-bilidade de escolha da arbitragem por meio da inserção da convenção de ar-bitragem em um contrato, afastando a competência do Poder Judiciário para

316 José Maria Roca Martínez (1992, p. 87), comentando sobre tema, expõe que, “no cenário internacional, inclusive existe uma tensão entre a sociedade internacional dos comerciantes e a sociedade internacional de Estados. Tendo em vista que os primeiros visam na autonomia um jogo de interesses comuns, a desvinculação dos poderes estatais e império da vontade privada e, os segundos, com sua pluralidade de ordenamentos jurídicos, de normas imperativas e de organizações judiciais distintas”.

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solucionar o mérito do litígio e delegando essa competência ao árbitro. Essa convenção, nas palavras de Nilton César Antunes da Costa (2006, p. 81), cons-titui-se na “manifestação de vontade das partes interessadas em poder submeter ao juízo arbitral a solução de seus litígios (futuros ou presentes) decorrentes de uma determinada relação contratual ou extracontratual, que envolva necessaria-mente direitos disponíveis e partes maiores e capazes”.

Por meio da convenção arbitral, as partes afastam do Poder Judiciário o conhecimento do mérito da controvérsia, como se pode observar pela nova redação dada pela Lei n. 9.307/96, aos incisos VII, do art. 267 e XI do art. 301 do Código de Processo Civil Brasileiro. Como ressalta Clávio Melo de Valença Filho (apud COSTA, 2006, p. 134), a partir desse momento, “o juiz estatal é proibido de conhecer o mérito da controvérsia não porque seja relativamente incompetente, mas por absoluta falta de poderes jurisdicionais para a causa, poderes que lhe foram subtraídos pela autonomia da vontade das partes, respal-dada no próprio ordenamento jurídico estatal que o investiu”.

O termo “convenção de arbitragem” foi uma inovação do direito bel-ga, pois até 1972, época em que a legislação belga introduziu o termo em seu direito arbitral, era apenas conhecida a expressão “cláusula compromissória”317. E ainda com um inconveniente: a cláusula compromissória não possuía eficácia plena para instaurar um juízo arbitral, ficando dependente da assinatura do com-promisso arbitral. No Brasil, antes da lei atual, quando desrespeitada a cláusula arbitral, não havia a obrigação das partes de recorrerem ao juízo arbitral para solucionar seus conflitos e, dessa forma, o seu inadimplemento se resolvia em perdas e danos. No entanto, como expõe Pedro A. Batista Martins (1999, p. 18), essas perdas e danos deveriam estar previstas de antemão no contrato como estipulação penal, tendo em vista a difícil ou impossível apuração posterior.

A título do que acontece em grande parte dos países318 e na Lei Modelo

317 A expressão “convenção de arbitragem” está presente em todo o texto que regula a arbitragem na Bélgica. Apenas para citar um exemplo desta regulação transcreve-se aqui o texto do art. 1.677 do Código judiciário belga que prevê que: “toute convention d’arbitrage doit faire l’objet d’un écrit signé des parties ou d’autres documents qui engagent les parties et manifestent leur volonté de recourir à l’arbitrage”. (Grifou-se).318 A lei espanhola prevê no seu art. 9.1 que: “el convenio arbitral, que podrá adoptar la forma de cláusula incorporada a un contrato o de acuerdo independiente, deberá expresar la voluntad de las partes de someter a arbitraje todas o algunas de las controversias que hayan surgido o puedan surgir a respecto de una determinada relacion jurídica, contractual o no contractual”. (Grifou-se). A lei de arbitragem voluntária portuguesa no seu art. 1,2 também utiliza a expressão para determinar a fórmula pela qual as partes expressam sua vontade de utilizar-se da arbitragem para solucionar suas controvérsias. Prevê a lei portuguesa que: “a convenção de arbitragem pode ter por objecto um litígio actual, ainda que se encontre afecto a tribunal judicial (compromisso arbitral), ou litígios eventuais emergentes de uma determinada relação jurídica contratual ou extracontratual (cláusula compromissória)”. (Grifou-se).

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da Uncitral319, o Brasil passou a reconhecer a convenção de arbitragem como meio de submeter a solução de litígios ao juízo arbitral. A convenção de arbi-tragem, no atual sistema brasileiro, compreende a cláusula compromissória e o compromisso arbitral.

O divisor de águas para se determinar se se está diante de uma cláu-sula compromissória ou de um compromisso arbitral é o próprio litígio320. Isso porque a cláusula compromissória é inserida em contrato antes de surgir o con-flito, e pode ser que ele nem mesmo surja; já o compromisso arbitral só será celebrado ocorrendo o litígio, pois é o chamamento para que as partes firmem as regras para a instauração do juízo arbitral321.

Um dos grandes propósitos da arbitragem está na autonomia das partes para escolher, e até mesmo para substituir322, o julgador de suas contendas, ou seja, na autonomia para eleição do árbitro. César Fiúza (1995, p. 130), ratifi-cando essa ideia, assevera que “os árbitros [...] têm seus poderes na vontade das partes, e apenas aqueles conferidos pelas mesmas. Isso em virtude do caráter ex-cepcional de sua função”. Essa autonomia, inclusive, autoriza que as partes ele-jam os árbitros pessoalmente ou se reportem a um órgão arbitral institucional ou entidade especializada que regulará essa escolha (RIGGENBACH, 1999, p. 45).

A escolha do(s) árbitro(s) pelas partes, como se pode depreender, é subjetiva, seguindo o critério da confiabilidade das partes e algumas regras for-mais impostas por lei. A lei brasileira, a título de exemplo, além do caráter de confiabilidade, também exige que os árbitros, sempre em número ímpar, sejam

319 O art. 7º, I, da Lei Modelo da Uncitral dispõe que: “convenção de arbitragem é uma convenção pela qual as partes decidem submeter à arbitragem todos ou alguns dos litígios surgidos ou a surgir entre elas com respeito a uma determinada relação jurídica, contratual ou extracontratual”. (Grifou-se).320 Neste sentido Beat Walter Rechsteiner (2001, p. 52), para quem, “a convenção de arbitragem, juridicamente válida, é o elemento indispensável para a instituição de um tribunal arbitral e sua competência no julgamento de uma lide. Quando refere-se a uma lide futura, decorrente de determinada relação jurídica, entre duas partes, mormente de natureza contratual, a convenção de arbitragem (convention d’arbitrage, patto di arbitrato, Schiedsvereinbarung Schiedsabrede) é denominada cláusula compromissória (clause compromissoire) ou, por vezes, também, cláusula arbitral (Schiedsklausel). Se, entretanto, a convenção de arbitragem estiver relacionada à lide já existente, costuma-se falar em compromisso arbitral (compromis, Schiedsvertrag).321 Isso pode ser concluído pela própria redação dos arts. 4º, caput, e 9º da LA. O art. 4º, caput, prevê que: “a cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato”. O art. 9º, por sua vez, dispõe que: “o compromisso arbitral é a convenção através da qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial”.322 No sistema brasileiro (art. 16 da LA), a própria substituição dos árbitros passa pelo crivo da autonomia das partes. Assim, não podendo o árbitro desempenhas sua função, fica, primeiramente, a critério das partes a sua substituição.

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capazes (art. 13, § 1º). A exigência de número ímpar de árbitros visa a evitar um empate na decisão final, que poderia causar problemas para a resolução e, assim, inviabilizar a celeridade da arbitragem.

O ofício de árbitro, também, requer o cumprimento de certas obriga-ções legais e ético-morais323. As obrigações ético-morais dizem respeito à con-duta do árbitro, que na Lei de Arbitragem brasileira (art. 13, § 6º) constitui na determinação de que os árbitros devem proceder com imparcialidade, indepen-dência, competência, diligência e discrição. Já as obrigações legais são aquelas referentes à ordem processual. Diante dessas obrigações, os árbitros devem ne-cessariamente respeitar, no procedimento arbitral, os princípios processuais do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e seu livre convencimento.

O árbitro, no desempenho de sua função, também possui competência para determinar sua própria competência, suspeição324 ou impedimento325. Tal princípio, conhecido como competência da competência, como afirma Pedro A. Batista Martins (apud BARRAL, 2000, p. 32, é “o conceito [...] pelo qual toda e qualquer dúvida ou controvérsia com relação à validade, existência e eficácia do contrato e/ou da cláusula arbitral que dele conste, cabe ao árbitro resolver”.

Para finalizar, a Lei de Arbitragem brasileira, ainda, expressamente prevê que o árbitro é juiz de fato e de direito326.

323 Neste sentido ver BARRAL, 2000, p. 27324 Segundo Joel Figueira Júnior (1999, p. 202), “suspeito de parcialidade será o árbitro que for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes; se alguma das partes for sua credora ou devedora, ou de seu cônjuge ou de parentes destes, em linha reta ou na colateral, até 3.º grau; se herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de alguma das partes; se receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo arbitral; se tiver aconselhado alguma das partes acerca do objeto da causa, ou subministrar meios para atender às despesas do litígio; se for interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes”.325 Para Joel Figueira Júnior (1999, p. 202), “[...] é impedido de funcionar o árbitro nos processos em que for parte; em que interveio como mandatário da parte, oficiou como perito, funcionou como órgão do Ministério Público ou prestou depoimento como testemunha; que tenha conhecido da matéria anteriormente quando proposta perante a jurisdição estatal, extinta pelo compromisso arbitral; quando nele estiver postulando, como advogado da parte, o seu cônjuge ou qualquer parente seu, consanguíneo ou afim, em linha reta, ou na linha colateral, até segundo grau; quando cônjuge, parente, consanguíneo ou afim, até o terceiro grau; quando for órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica, parte na causa”.326 Para Carlos Alberto Carmona (2006, p. 230), por essa expressão, “[...] talvez tenha o legislador querido ressaltar que, por conta de sua investidura privada, os árbitros são juízes de fato (privados), mas sua decisão produz a mesma eficácia da decisão estatal (daí serem também juízes de direito); talvez tenha o legislador querido ressaltar que o árbitro lidará tanto com as questiones facti quanto as questiones iuris. Seja como for, resulta claro desta fórmula, verdadeiramente histórica, que o instituto da Lei foi o de ressaltar que a atividade do árbitro é idêntica à do juiz togado, conhecendo o fato e aplicando o direito”.

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A autonomia privada também permite a escolha da regra aplicável ao fundo do litígio da arbitragem, determinando, inclusive, se ela será de direito ou de equidade. A definição sobre o tipo de arbitragem possui grande relevância para se determinarem as referidas regras. Isso porque, segundo Ricardo Soares Stersi dos Santos (2000, pp. 39-40),

[...] quando a escolha recair em regras de direito, as partes terão que definir se aplicam: a lei substancial de um determinado Estado; os princípios gerais de direito; a lex mercatoria; os usos ou os costu-mes. Quando a escolha recair na equidade, utilizar-se-á o parâmetro de justiça adotado pela sociedade naquele momento histórico ao caso concreto.

Um dos pontos importantes, principalmente na arbitragem internacio-nal, recai sobre a lex mercatoria, que, segundo Adriana Noemi Pucci (2004, p. 14), “é uma lei especial, própria do comércio internacional, oriunda dos usos e costumes do comércio internacional e dos princípios gerais de direito dos quais estão imbuídas as relações comerciais internacionais”. A utilização da lex mercatoria possui defensores e críticos. Os defensores da lex mercatoria afirmam que o seu uso deve ser incentivado, pois atende às especificidades do comércio internacional, e, muitas vezes, a aplicação do direito nacional não é apropriada para meios alternativos de conflitos (PUCCI, 2004, pp. 22-23.). Os críticos, contudo, afirmam que a lex mercatoria deve ser evitada, pois nela “não existem fundamentos teóricos claros, definidos e comprovados que permitam afirmar que a Lex Mercatoria é realmente um sistema legal independente dos sistemas jurídicos nacionais” (PUCCI, 2004, p. 23). Na visão dessa pesquisa, não há motivos para descartar o uso da lex mercatoria como regra de fundo da arbitragem, podendo ser utilizada tanto na arbitragem interna quanto na inter-nacional, devendo, como em toda regra de escolha de lei aplicável, respeitar a ordem pública e os bons costumes.

Alguns autores, como João Bosco Lee e Jean-Christophe Pommier, incluem nesses limites o instituto da fraude à lei. Dessa forma, as partes, na arbitragem interna, não poderiam adotar direito estranho ao direito interno do contrato327. Na arbitragem internacional, como prevê a da Convenção de Roma

327 Para João Bosco Lee (2002a, pp. 179-181), “o reconhecimento da autonomia da vontade, é com certeza, uma evolução no direito internacional privado brasileiro, sendo necessário para a eficácia da lei de arbitragem. Entretanto, sua aplicação à arbitragem interna é ‘excessiva e inapropriada’. O direito interno se impõe à arbitragem interna. Como entende Jean-Christophe Pommier: ‘ao contrato interno, a única lei competente suscetível de regê-lo é esta ordem jurídica interna sobre a qual todos os pontos de conexão convergem. Na verdade, ‘a possibilidade de uma designação da

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para os contratos, estaria defesa às partes a eleição de direito que não tivesse um mínimo de conexão328.

Aqui se defende que as partes têm liberdade para eleger o direito que melhor lhe aprouver, devendo somente, em caráter de praticidade, ser analisa-dos na arbitragem internacional os direitos dos países com os quais o contrato tem conexão para evitar problemas na execução da sentença arbitral. Isso por-que, se alguma regra prevista como necessária pelo país onde a sentença arbitral vai ser reconhecida não foi observada, pode haver a inviabilidade de execução da sentença. As regras de ordem pública, vale ressaltar, também não podem ser olvidadas.

A autonomia privada na arbitragem também permite que as partes es-colham as regras do procedimento arbitral, permitindo a adequação do procedi-mento aos interesses das partes, visando a satisfazer os objetivos da arbitragem.

Essa prática de conferir liberdade às partes e ao próprio árbitro de es-colher o procedimento não é uma exclusividade brasileira. Países como França, Espanha, Portugal e Itália também preveem essa possibilidade em seus sistemas arbitrais.

Como ressalta Carlos Alberto Carmona (1998, p. 36), “[...] a vontade das partes (e, subsidiariamente, dos árbitros) quanto à especificação de regras procedimentais encontra limitação na natureza e finalidade da arbitragem e também da lei”. Deve ficar claro que, apesar do processo arbitral depender do

lei aplicável ao contrato pelas partes, faz supor que a arbitragem revela um caráter internacional, com exigência prévia’. [...] Ademais, a escolha pelas partes de um direito estrangeiro quando a arbitragem é interna poderia constituir um caso de fraude à lei. A respeito de uma crítica feita sobre a lei modelo da Uncitral, que permite a internacionalização ‘fictícia’ da arbitragem pela simples vontade das partes, Fouchard, Gaillard e Goldman assinalam que ‘autorizamos assim, senão a fraude à lei normalmente competente, ao menos uma evasão diante desta lei, que não é justificada objetivamente pelas necessidades do comércio internacional. Pommier observa também que ‘internacionalizando o contrato interno, as partes podem afastá-lo das disposições imperativas da lei interna normalmente aplicável [...] pela única intervenção da regra de conflito [...]’. Assim, escolhendo um direito estrangeiro, as partes internacionalizam a arbitragem e se afastam do direito interno, o que caracteriza fraude à lei”. Vide ainda: LEE, 2002b, pp. 355-356.328 Beat Walter Rechsteiner (2001, pp. 92-93), ratificando esta ideia, expõe que: “o tribunal arbitral deverá levar em consideração todos os direitos nacionais sobre o direito internacional privado que tenham uma conexão relevante com a lide a ser julgada. Frequentemente estes direitos apontam para um mesmo direito aplicável. Em todos os países-membros da União Europeia (UE), p. ex., está em vigor a Convenção de Roma de 19.07.1980 sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais. Se a lide ocorrer entre partes com sede em países da União Europeia (UE), o tribunal arbitral necessitará, obviamente, levar em consideração a mencionada Convenção desde que a lide decorra de uma relação contratual com conexão internacional. Aliás, existindo convenções uniformizando o direito internacional privado ou o direito material, vigorando em todos os Estados, cujos direitos virtualmente têm um interesse a ser aplicado ao caso concreto, o tribunal arbitral sempre terá que levá-las em consideração”.

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consenso das partes, ele deve observar os princípios anteriormente analisados, principalmente os que se referem aos requisitos básicos do processo judicial, como o contraditório, a igualdade das partes, o livre convencimento dos árbi-tros, etc.

Aqui entra a importância em se definir que tipo de arbitragem as par-tes hão optado na convenção arbitral: institucional ou ad hoc. Se as partes ele-gerem um órgão arbitral institucional para solucionar seus litígios, geralmente, serão consideradas as regras procedimentais do referido órgão329. Por outro lado, como adverte Ricardo Soares Stersi dos Santos (2004, p. 61), “a escolha da arbitragem ad hoc demanda a formulação, a negociação e a indicação de regras procedimentais e processuais estabelecidas pelas próprias partes que podem estar inseridas na convenção de arbitragem”. Conforme o mesmo autor, “são essas regras estipuladas que irão reger o desenvolvimento da arbitragem, desde que não violem a ordem pública” (SANTOS, R., 2004, p. 61).

3. a autonomIa pRIvada na aRbItRagem, IdeaIS de lIbeRdade e JuStIça

A arbitragem possui no princípio da autonomia privada a sua base e este princípio, por sua vez, está embasado nos ideais de liberdade e do liberalis-mo. Contudo, a autonomia presente na arbitragem não está vinculada às ideolo-gias do liberalismo econômico, controlado pelas regras de mercado.

Isso porque, a autonomia privada, ressalta-se novamente, princípio basilar da arbitragem, não se confunde com a iniciativa econômica ou com a au-tonomia contratual em sentido estrito. Ela abrange todas as liberdades pessoais garantidas constitucionalmente, manifestas por meio da própria identidade do indivíduo dentro da órbita dos valores hierarquicamente dispostos na Constitui-ção. Por autonomia, também se deve entender “a vontade socializada e legaliza-da [...] representada pelo indivíduo para exercer sua vontade jurídica pelo bem comum” (STRENGER, 2000, p. 72). A manifestação de capacidade individual não deve ser condenada, se não representar um afastamento da comunidade e se incentivar a promoção da capacidade social.

Por meio da expressão de vontade presente na arbitragem, o indivíduo demonstra, assim, que recuperou as suas potencialidades de expressão, de mo-

329 Neste sentido Ricardo Soares Stersi dos Santos (2004, p. 61), para quem: “a opção pela arbitragem institucional faz com que as partes se submetam às regras processuais e procedimentais previamente estabelecidas em regulamento de arbitragem de uma instituição indicada para o julgamento da demanda. Nesta hipótese, a liberdade de vontade se restringe à escolha do órgão institucional responsável pela resolução do conflito, aderindo-se as regras previamente delimitadas por este”.

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vimento, de possibilidade de escolha, inclusive o da opção pela solidariedade. Esse ponto de vista é mais bem explicado por Sálvio de Figueiredo Teixeira (apud SANTOS, R., 2004, p. 37), que expõe que:

A realidade social pujante em que vivemos não se contenta mais com o modelo individualista das soluções judiciais de antanho. Desde o final do século passado, vem-se construindo um novo perfil, alicerça-do na prevalência do interesse social sobre o individual. Daí exigir-se um Judiciário mais participativo e ativista, na busca de uma sociedade mais justa, humana, solidária, contando para isso com instrumentos processuais mais eficientes, a exemplo da ação civil pública, das ações coletivas, dos juizados especiais, do mandado de segurança coletivo, das ações de controle de constitucionalidade. Mecanismos hábeis e eficazes que suplementem a atividade estatal, priorizando o social. Se assim é, não há porque excluir desses mecanismos a arbitragem, em atenção aos interesses de importantes segmentos sociais, aos quais a Justiça oficial não tem dado abrigo satisfatório.

Dos ensinamentos de Sálvio de Figueiredo Teixeira, pode-se retirar que a arbitragem não pode ser considerada oriunda da hegemonia da ideologia liberal econômica, pois, segundo este autor, a arbitragem vem auxiliar o Judi-ciário a transformar a sociedade em algo mais justo, humano e solidário.

Para outros autores, como ressalta Carlos A. Filártiga Lacroix (2001, pp. 43-44), esse instituto leva à justiça que mais se acerca do ideal, já que surge de um acordo entre as partes, priorizando a autonomia da vontade sobre todos os aspectos do processo. Aqui se sustenta que a arbitragem pode ser conside-rada uma justiça que mais se acerca do ideal, não somente porque surge de um acordo de vontades, mas porque incentiva o exercício da condição de agente e prima pelo interesse social, tese defendida por Amartya Sen na sua teoria de desenvolvimento, como visto anteriormente (vide nota de rodapé n. 3).

Existe, sobretudo, na arbitragem, como ressalta Cláudio Vianna de Lima (1994, p. 21), uma tendência “à obtenção de consenso, antes do que uma condenação, evitando o acirramento de ânimos entre pessoas que tenham que persistir convivendo, coexistindo na mesma comunidade, no mesmo meio”. A preocupação de que as partes solucionem seus conflitos de maneira amigável pode ser percebida na Lei de Arbitragem, que estimula as partes a decidir tudo de comum acordo (escolha de árbitros, procedimento, entre outros), além de incentivar a conciliação ao longo de todo o processo (art. 21 e 28 da LA).

A opção pela não-litigiosidade também está presente na execução de sentenças arbitrais, tendo em vista que, geralmente, as sentenças arbitrais são

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cumpridas sem maiores objeções da parte devedora, pois as partes prestigiam e recorrem a esse meio de solução de controvérsias com o intento de verem suas pretensões atendidas de maneira rápida e eficaz, até porque estão cientes de que da sentença arbitral não cabe recurso ao Poder Judiciário (art. 18 da LA).

Contudo, a arbitragem não está imune da intervenção do Estado, como a princípio se poderia imaginar. Esta intervenção pode ser encontrada, por exemplo, nas especificidades para a inserção de cláusula compromissória nos contratos de adesão, para a ação de nulidade da sentença e para as inter-venções do Judiciário por falta do imperium do juízo arbitral. Do nosso ponto de vista, esta intervenção não visa apenas à garantia da liberdade individual, mas sim à proteção segurança jurídica e dos valores igualitários. Isto porque, a liberdade encontrada na arbitragem não é ilimitada. Ela, como recorda Almicar de Castro (apud SANTOS, R., 2004, p. 40), “pode se mover em certos limites, mas em qualquer direção encontra barreira instransponível”, como a liberdade de pássaro na gaiola. Essas barreiras instransponíveis são utilizadas para dar um perfil mais social à arbitragem, evitando abusos que dela pudesse ocorrer.

A liberdade encontra limites com relação ao objeto que pode ser pas-sível de arbitragem e sobre quem pode se utilizar da arbitragem (art. 1º da LA); ela pode depender, inclusive, do Estado para ter plena eficácia, seja na instância de controle da validade da sentença arbitral, seja diante da necessidade de re-conhecimento e execução (art. 32, 33 e 38 da LA); deve ser condizente com o princípio da boa-fé e demais princípios processuais constitucionais (art. 21, § 2º, da LA); e visa a proteger a parte mais fraca (art. 4º, § 2º, da LA). A arbitra-gem ainda deve observar os limites da ordem pública, bons costumes e sobe-rania nacional (art. 2º, § 1º, da LA). Cabe ainda ao Poder Judiciário: apreciar e decidir os pedidos de nulidade da sentença arbitral (art. 33 da LA); proceder aos atos judiciais que darão garantia a efetivação da sentença arbitral; suprir a von-tade da parte recalcitrante que celebrou cláusula compromissória incompleta e se recuse a firmar o compromisso arbitral (arts. 6 º e 7 º da LA).

Dessa maneira, como ressalta Welber Barral (2000, p. 51), a arbitra-gem não pode ser exorcizada como a “institucionalização da hegemonia do poder econômico”, temendo-se “enfim que a arbitragem configure a definitiva privatização da justiça, em prol daqueles que detêm o poder econômico, e em detrimento da cidadania, conquistadas após árduo processo histórico”. Segundo esse autor, “a virtude continua a estar no meio termo. Nem a arbitragem merece tal zelo apologético, que lhe outorga poder mágicos de resolver os problemas do Judiciário nacional, nem constitui ameaça à salvaguarda da cidadania prota-gonizada pelos juízes”.

Muito pelo contrário, pois, como aponta Ricardo Stersi (in BARRAL, 2000, p. 8) “será no Poder Judiciário que grande parte da Lei de Arbitragem en-

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contrará a sua interpretação”, demonstrando o entrelaçamento entre estes dois métodos heterocompositivos de soluções de controvérsias.

Em países em que se tentou desvincular a arbitragem do Poder Judi-ciário, houve uma experiência catastrófica, como foi o caso da tentativa belga de suprimir o Judiciário do controle de questões relativas à arbitragem interna-cional, em que:

[...], o legislador proibiu seu juiz estatal de conhecer pedidos de anu-lação de sentenças arbitrais lá proferidas, sempre que nenhuma das partes fosse pessoa física nacional ou residente naquele país, ou ju-rídica que lá detivesse a sua sede ou sucursal. Em suma, aboliu-se a possibilidade de ataque às sentenças quando ambas as partes fossem estrangeiras. Os resultados, decepcionantes, demonstram que, se os operadores do comércio internacional querem uma justiça específica, administrada de forma diferente, não a querem, assim, tão distante do Judiciário (VALENÇA FILHO, 2002, p. 22).

Neste caso também prevalece a máxima de Julían Marías que asseve-ra que a intervenção do Estado não deve ser nem mínima, nem máxima; deve ser suficiente330.

A arbitragem, do nosso ponto de vista, não resulta um direito mí-nimo331, mas um direito máximo, pois o direito é determinado pelas partes e

330 Neste sentido são as palavras de Stein e Shand (apud NORONHA, 1994, p. 11), para quem “um sistema jurídico que se contente com manter a ordem, pela mera repressão de toda e qualquer turbação, não nos satisfaz. Pretendemos certamente que o direito realize esse objetivo, mas exigimos também que se traduza em justiça. Isto é, espera-se que não só o direito possa conter a violência, mas que também deva haver tratamento igual, e que as normas sejam tais que impeçam discriminações e iniquidades. Além disso, espera-se proteção em relação a governos demasiado zelosos ou a legisladores excessivamente inclinados a considerar a sociedade como um todo. Pode acontecer que estes governos, na manutenção da ordem e na prossecução de objetivos de bem-estar e justiça para a coletividade no seu conjunto, limitem além da medida a liberdade de movimento ou de expressão do indivíduo”.331 Outro ponto que não vincula os ensinamentos do liberalismo tradicional à arbitragem diz respeito à interferência estatal, pois, segundo José de Albuquerque Rocha (1998, pp. 16-17), “para os liberais a solução está, pois, em eliminar a intervenção do Estado na liberdade dos indivíduos por ser o sistema da livre-iniciativa individual o que permite mobilizar, o melhor possível, as informações, conhecimentos e competências necessários à regulação da vida social”. E essa visão individualista e atomista da sociedade presente no liberalismo teria como consequências que: “(1) [... a] “regulação da vida social deve resultar preferencialmente da livre competição entre os indivíduos (mercado) e; (2) a intromissão do Estado só se justifica para garantir a liberdade individual”. Daí resultando a tese do Estado mínimo e, conforme José de Albuquerque Rocha, a do direito mínimo, pois regulado por regras formuladas pelas partes (ROCHA,1998, pp. 16-17).

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fiscalizado pelo Estado. Além do mais, tendo em vista a crise do Judiciário, que, segundo Bo-

aventura de Sousa Santos (1983, p. 139), “manifesta-se pela crescente incapaci-dade (em termos de falta de recursos financeiros, técnicos, profissionais e orga-nizacionais) do sistema judicial para responder ao aumento da procura dos seus serviços”, a arbitragem pode ser uma alternativa para amenizar o abarrotamento das demandas do Poder Judiciário e, consequentemente, o entrave da entrega da prestação da tutela jurisdicional. Isto porque se os litígios de direito patrimonial disponíveis forem solucionados por meio de arbitragem, ao Poder Judiciário restará mais tempo para apreciar mais adequadamente os litígios sobre direito indisponível. Pois como bem alerta Pedro A. Batista Martins (1999, p. 4), “a realização da justiça é direito natural do cidadão que ao Estado cabe assegurar. Não se trata de um direito concedido pelo Estado, pois se configura dever deste prover os meios à solução dos litígios e a pacificação social” e a atual estrutura judiciária não tem colaborado para tanto.

concluSão

Não se pode negar que a arbitragem tem como princípio basilar a autonomia das partes, princípio este que está presente durante todo o processo arbitral, desde a sua instituição até a escolha das regras que regerão este tri-bunal. Entretanto, esta autonomia possui limites, tanto que a expressão a ser adotada quando se trata deste princípio em arbitragem, é autonomia privada e não autonomia da vontade. Por este motivo, ela não deve ser confundida com a iniciativa econômica ou com a autonomia contratual em sentido estrito e, por-tanto, não tem relação direta com a ala radical do liberalismo, em que as partes possuem liberdade ampla e ilimitada para determinar suas relações jurídicas, preocupando-se exclusivamente com o seu benefício econômico. Inclusive por-que a arbitragem deve sempre observar os limites da ordem pública e bons costumes e está em constante diálogo com o Poder Judiciário.

Após analisar, ao longo deste artigo, as particularidades do princípio da autonomia privada e suas implicações no instituto da arbitragem, pode-se observar que ela não é uma expressão pura neoliberalista, como defendem al-guns autores. Isso porque, a arbitragem, como prevista no sistema jurídico bra-sileiro – contendo noções de liberdade de autonomia e igualdade, de interven-ção necessária do Estado e condizente a teoria de justiça igualitária, incentiva a condição de agente, mediante a capacidade individual e social, eliminando também as privações de liberdade impostas às partes carentes de uma devida tutela jurisdicional. Nessa medida, a justiça presente na arbitragem abranger valores sociais e de igualdade, por conceder autonomia às partes, mas também

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delimitá-la dentro de parâmetros sociais.A arbitragem, desta maneira, pode ser considerada um meio menos

litigioso de resolver litígios e um meio de cooperação com o Judiciário. Ela deve ser considerada um meio hábil, racional e eficiente de solução de dispu-tas, devendo ser utilizada como um método natural e habitual de resolução de controvérsias. Até porque, infelizmente, a jurisdição, por meios tradicionais de acesso à Justiça, não tem conseguido efetivar a justiça necessária e tão exigida no momento atual, inviabilizando o provimento da solução das controvérsias e, consequentemente, da pacificação social. A arbitragem pode, ao menos em algumas matérias específicas, satisfazer essas pretensões.

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2uma RevaloRIzação do dIReIto a paRtIR de paul RIcoeuR:

o JuSto, a ReSponSabIlIdade e a SuStentabIlIdade

álVarO gOnçalVeS antuneS andreucciProfessor do Programa de Mestrado em Direito da UNINOVE.

SumáRIo: Introdução. 1. Paul Ricoeur e a justa medida. 2. A ética e o direito. 3. Respon-sabilidade e socialização do risco. 4. Considerações finais: sustentabilidade e desgoverno. Referências.

IntRodução

Este artigo propõe uma leitura da obra do filósofo Paul Ricoeur, O Justo332, com o objetivo de relacionar algumas de suas reflexões com a ideia de sustentabilidade, sendo esta compreendida aqui como um princípio ético a ser adotado pelo Direito.

Atualmente não é mais possível isolar o Direito como se fosse um sistema autossuficiente, independentemente de sua prática, ou seja, do contexto em que é produzido, da sociedade e da cultura na qual se insere, das disputas que traduz e dos operadores que o aplicam no cotidiano. Ao mesmo tempo, as fronteiras de soberania do Estado no século XX não são mais, neste novo sécu-lo, intransponíveis, o que nos leva a considerar novas dimensões geográficas de aplicação e intersecção de sistemas jurídicos. A pluralidade é um conceito que se faz presente não só no Direito como, também, em todos os aspectos culturais. Esta talvez seja a condição mais visível da pós-modernidade.

É nesse sentido que, tanto internamente, quanto externamente, os sistemas jurídicos de um país são pressionados para ampliar o debate, recepcionando elementos que não estavam previstos no momento de sua criação legislativa. O reconhecimento de identidades internas plurais e de

332 RICOEUR, Paul. O Justo 1 – A justiça como regra moral e como instituição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008; e RICOEUR, Paul. O Justo 2 – Justiça e verdade e outros estudos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.

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responsabilidades externas coletivas transformam o Direito e o discurso jurídico numa prática da mobilidade consciente ou, pelo menos, na necessidade de se adaptar e de se comunicar com essa nova realidade.

As questões ambientais e seus riscos trouxeram à tona um debate fun-damental sobre a sobrevivência da humanidade, tanto para as gerações atuais, quanto para as futuras. A possibilidade de grandes colapsos sociais provoca-dos pelos usos e abusos dos recursos naturais pelas sociedades humanas fez com que diversos alertas (científicos, artísticos, religiosos, jurídicos, políticos, etc.) se movimentassem nesta direção, qual seja, a de compreender as causas e consequências dos problemas ambientais e propor soluções. Nesta perspectiva um ponto fundamental vem sendo levantado em comum pelas mais diversas interpretações: a necessidade de mudança do paradigma individualista para o coletivo-colaboracionista.

Fundamentalmente esta mudança implica num debate sobre os va-lores éticos. Isso significa que instituições públicas e privadas, incluindo o terceiro setor, ou seja, instituições que possuem alcance efetivo de divulgar informações e se comunicar com a sociedade, podem provocar e levantar as necessidades desta (re)avaliação ética, contudo, este é um processo que ocor-re individualmente. Dai a importância de uma reavaliação que leve em conta a manutenção de certos direitos individuais. Nesse sentido, e compreendendo que este movimento já está presente no mundo contemporâneo (independente da discussão sobre ele ser majoritário ou não), o fenômeno jurídico encontra-se num momento propício para avaliar como incorporar estes valores coletivos, como categoria interpretativa, na sua prática e no sentido do justo.

1. paul RIcoeuR e a JuSta medIda

Na obra O Justo, de Paul Ricoeur, encontramos diversos trabalhos do filósofo francês, produzidos em suas atividades acadêmicas, nos quais de-senvolve um dos problemas centrais de suas investigações: questões relativas ao plano jurídico. Ao longo de 26 textos, o autor preocupa-se em retomar uma investigação que, segundo ele, foi negligenciada e ficou oculta “durante o hor-rível século XX” (RICOEUR, Vol. 1, 2008, p. 2) devido a violência ocorrida em escalas sem precedentes. Desta forma a proposta que resultou na reunião destes textos foi com “a intenção de resistir à tendência incentivada pelo espírito do tempo que me propus, desde alguns anos, agir direito com o direito, fazer justi-ça à justiça” (RICOEUR, Vol. 1, 2008, p.3).

Os estudos reunidos nesta obra foram frutos de sua participa-ção no Institutdeshautesétudespourla justice (IHEJ) e na Écolenationale de

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lamagistrature, onde Ricoeur pode encontrar o “jurídico na feição precisa do judiciário, com suas leis escritas, seus tribunais, seus juízes, seu cerimonial do processo e, coroando tudo, o pronunciamento da sentença na qual o direito é dito nas circunstâncias de uma causa, de um caso, eminentemente singular” (RICOEUR, Vol. 1, 2008, p.3).

Ponto central, portanto, de sua reflexão, é a ideia de que existe um “lugar” na sociedade onde a palavra sobrepuja a violência e, neste debate ins-taurado pelo processo, o ato de julgar apresenta-se com duas finalidades: uma de curto prazo e outra de longo prazo. A primeira é a de deslindar uma situação conflituosa e, a segunda, é a de contribuir para a realização da paz social. O que impulsiona esta situação seria a indignação social diante de “retribuições desproporcionais, promessas traídas, divisões desiguais” (RICOEUR, Vol. 1, 2008, p.5), ou seja, a própria percepção da injustiça na qual a intenção moral da indignação seria seu duplo oposto, com a expectativa de uma vitória depositada na palavra contra a violência.

Esta situação intencional de justiça, da qual decorre a ideia de separar a justiça da vingança, é caracterizada como um testemunho de ordem ontogê-nica que cria um espaço epropõe um distanciamento entre os protagonistas, através do estabelecimento da presença de um terceiro elemento na dinâmica social:

Ora, de que modo tal distância pode ser instituída, senão pela entrada em cena de um terceiro que não seja um dos protagonistas? Propõe-se uma grande equação, e o justo começa a distinguir-se do não justo: a equação entre justiça e imparcialidade. Justa distância, mediação por um terceiro e imparcialidade se enunciam como os grandes sinônimos do senso de justiça para cujo caminho a indignação nos conduziu des-de a mais tenra idade. (RICOEUR, Vol. 1, 2008, p.6).

Em nossa organização judiciaria, o juiz é colocado neste papel do terceiro entre as partes do processo, ou seja, ele é o “operador da justa distância”(RICOEUR, Vol. 1, 2008, p.9). Este conceito desdobra-se em um se-guinte, e que está presente em diversos momentos de sua reflexão, qual seja, a ideia da “justa medida” que remonta a Aristóteles.

A justa medida relaciona-se com a ideia de uma justiça distributiva, identificando igualdade com divisão justa. É possível ainda classificar a exis-tência de uma igualdade simples, aritmética, e de uma igualdade complexa, que procuraria abolir a própria dominação instituída por uma distribuição repres-

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siva. Contudo, é no ato de julgar que a justiça distributiva se apresenta como melhor metáfora da separação entre a violência e o diálogo. Utilizando-se dos conceitos de “a-partar” esferas de atividade, de “de-limitar” as pretensões de um e de outro, e de corrigir as distribuições injustas, Ricoeur explica que o “ato de julgar consiste realmente em separar (...) trata-se realmente de estabelecer a parte de um e a parte de outro” (RICOEUR, Vol. 1, 2008, p.178). Ou seja, o ato de julgar é aquele que “a-parta”, que “se-para”333. Fundamental neste proce-dimento é a estrutura do processo, identificado em quatro partes fundamentais segundo o autor (que, de uma maneira geral, refere-se ao âmbito penal): 1) o pressuposto de um terceiro; 2) a existência de um sistema jurídico; 3) o debate, que deve-se conduzir de um estado de incerteza para a um estado de certeza; 4) a sentença, que profere o direito334.

É, portanto, através de procedimentos processuais que o conflito termina numa sentença. Este ato de julgar equivale a ideia de deslindar (separar), propósito do julgamento que, em sua finalidade de curto prazo, procura por termo à incerteza e, a longo prazo, desnuda um fenômeno mais amplo, o con-flito identificado em sua dimensão política, “situado na origem da discussão pública” (RICOEUR, Vol. 1, 2008, p.178).

Toda esta análise, por si só, não acrescenta muita novidade a outras leituras explicativas do sistema jurídico e do significado social do direito e da política. Porém, elas são importantes para compreender como se estruturam as bases do pensamento jurídico de Paul Ricoeur que irá desembocar na preocu-pação dialética de um desejo de querer viver bem. Esta pretensão inclui a ideia de que a justa distância pode separar o que é devido a cada parte a partir de um reconhecimento do outro. Fazendo uma analogia entre a amizade, no âmbito particular, e o reconhecimento do outro, no âmbito público, o filósofo procura construir uma ética da hospitalidade cívica, instituída no e pelo reconhecimento da justiça como instância mediadora dos conflitos:

Esse passo do próximo ao distante, ou mesmo da apreensão do próxi-mo como distante, é também o passo da amizade à justiça. A amizade

333 O lugar da justiça encontra-se assim marcado em negativo, como que fazendo parte do conjunto das alternativas que uma sociedade opõe à violência, alternativas que, ao mesmo tempo, definem um Estado de direito (RICOEUR, Vol. 1, 2008, p.179).334 O processo pode ser caracterizado globalmente Segundo Ricoeur nos seguintes termos: ele consiste em estabelecer uma justa distância entre o delito que desencadeia a cólera privada e pública e a punição infligida pela instituição judiciária. Enquanto a vingança cria um curto-circuito entre dois sofrimentos, o da vítima e o infligido pelo vingador, o processo se interpõe entre os dois, instituindo a justa distância de que acabamos de falar (RICOEUR, Vol. 1, 2008, p.184).

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das relações privadas recorta-se sobre o fundo da relação pública da justiça. Antes de qualquer formalização, de qualquer universalização, de qualquer tratamento procedimental, a busca de justiça é a busca de uma justa distância entre todos os seres humanos. Justa distância, meio-termo entre a pouquíssima distância própria a muitos sonhos de fusão emocional e o excesso de distância alimentado pela arrogância, pelo desprezo, pelo ódio ao estranho, desconhecido. Eu veria na vir-tude da hospitalidade a expressão emblemática mais próxima dessa cultura da justa distância. (RICOEUR, Vol. 2, 2008, p.66).

Em seu projeto filosófico sobre a justiça, Ricoeur propõe compreen-der no ato de julgar a longo prazo, a contribuição do julgamento muito mais como ferramenta, como uma tecnologia social, contribuindo para a paz pública, para a paz social, do que apenas o de proporcionar a segurança. O ponto fulcral deste raciocínio é o de direcionar o fundamento do direito para o reconhecimen-to mútuo. Nesse sentido, tanto aquele que “ganhou” o processo, como aquele que “perdeu”, ainda se sentem capazes de reconhecer o adversário como sendo um sujeito de direito. Então, aquele que perdeu, que foi condenado, “deveria poder declarar que a sentença que o contraria não era um ato de violência, mas de reconhecimento” (RICOEUR, Vol. 1, 2008, p.180).

Neste projeto o Direito propõe-se a assegurar a harmonia social atra-vés de princípios de reconhecimento da pluralidade, como um instrumento co-letivo de harmonia, ao mesmo tempo em que coíbe através das próprias normas e da estrutura de suas instituições, que fosse utilizado como ferramenta de inte-resses particulares ou de grupos específicos.

2. a étIca e o dIReIto

Longe de propor algo que possa ser compreendido como simples in-genuidade, Paul Ricoeur procura introduzir na reflexão sobre o justo, sobre o sistema jurídico e sobre o direito a importância do debate sobre a ética e a mo-ral. Nesse sentido, o valor do termo reconhecimento como proposta cívica de base ética para a construção social do espaço político, seria um dos princípios que solidificariam a moral que reconhece as normas e se propõe a cumpri-las.

Apesar de existir uma longa discussão entre o que seria próprio da ética e o que seria próprio da moral e, ao mesmo tempo, os possíveis campos de intersecção entre os dois conceitos – debate que Ricoeur não pretende de-senvolver –, o autor estabelece uma distinção entre ambas. O conceito de moral designaria duas situações relacionadas entre si: 1) a região das normas, ou seja,

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os princípios daquilo que seria permitido e proibido e 2) o sentimento subjetivo de obrigação da relação do sujeito com as normas. O conceito de ética é cons-tituído a partir deste ponto fixo que define o sentido da moral, apresentando-se repartido em dois: algo que se situa anteriormente as normas (ética anterior) e aquilo que está localizado depois das normas (ética posterior). Sua tese prin-cipal é a de que “a ética anterior aponta para o enraizamento das normas na vida e no desejo; a ética posterior tem em vista inserir as normas em situações concretas” (RICOEUR, Vol. 2, 2008, p.50). É importante salientar que a única forma de se tomar conhecimento da ética anterior (anterior as normas) é revelar seus conteúdos na ética posterior ou, em outras palavras, na sabedoria prática. Esta relação explicaria o emprego de um único termo para designar o que está a montante e a jusante das normas: ética.

A ideia de ética é explicada como sendo uma “meta-moral”, ou seja, uma reflexão de segundo grau sobre as normas. No primeiro grau, no plano moral, o que temos como condição básica de existência seria apenas um sujeito capaz de imputação, ou seja, um sujeito que possa se designar como autor ver-dadeiro de seus próprios atos. Nesse sentido, uma norma “implica como defron-tante um ser capaz de entrar numa ordem simbólica prática, ou seja, de reco-nhecer nas normas uma pretensão legítima a regular as condutas” (RICOEUR, Vol. 2, 2008, p.52)335.

Para definir a ética, anterior e posterior, o autor recorre a Aristóte-les, Kant e Hegel. A primeira produz-se a partir da vida e do desejo, propondo aquilo que seria o “viver bem” e, a segunda, constituiria-se a partir das virtudes aplicadas a práxis de casos concretos. Na primeira podemos observar uma tría-de onde o si mesmo, o outro próximo e o outro distante “são igualmente honra-dos: viver bem, com e para os outros, em instituições justas” (RICOEUR, Vol. 2, 2008, p.62). Por sua vez, na segunda, teríamos implicadas diversas virtudes (coragem, temperança, liberalidade, justiça, etc.) que deveriam ser reformula-das e reescritas à luz dos casos inseridos em nossa complexidade atual. Ricoeur, seguindo indicações do próprio Aristóteles, indica a prudência como sendo uma virtude que poderia auxiliar nesta reinterpretação moderna da virtudes contem-porâneas.

Em conclusão, podem ser consideradas equivalentes as duas formu-lações seguintes: por um lado, pode-se ver a moralidade como plano de referência em relação ao qual se definem de ambos os lados uma ética fundamental que lhe seria anterior e éticas aplicadas que lhe

335 Pronunciar o termo autonomia é propor a determinação mútua entre norma e sujeito obrigado. A moral não pressupõe nada mais do que um sujeito capaz de pôr-se, pondo a norma que o põe como sujeito.(RICOEUR, Vol. 2, 2008, p.52).

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seriam posteriores. Por outro lado, pode-se dizer que a moral, em seu desdobramento em normas privadas, jurídicas e políticas, constitui a estrutura de transição que guia a transferência da ética fundamental em direção às éticas aplicadas que lhe dão visibilidade e legibilidade no plano da práxis. (RICOEUR, Vol. 2, 2008, p.62).

Podemos retomar agora a ideia do “reconhecimento” do outro como o fundamento de um conceito de “justo” em Paul Ricoeur, conjugando a identida-de entre o viver bem e a paz pública. Desta forma podemos interpretar o pensa-mento do filósofo sobre o campo do direito utilizando suas próprias categorias e compreender no conceito de justo, por um lado, e nas instâncias judiciarias, por outro, as duas faces da ética, tendo nas normas e nas palavras proferidas pelo juiz a moralidade pública e privada.

Ao final deste breve percurso sobre algumas das ideias de Ricoeur, devemos ainda abordar o conceito de responsabilidade para retomarmos uma ideia apresentada inicialmente sobre as questões ambientais e o conceito de responsabilidade coletiva.

3. ReSponSabIlIdade e SocIalIzação do RISco

Paul Ricoeur também investiga o conceito jurídico de responsabili-dade e propomos aqui uma leitura aproximativa dos termos: reconhecimento mútuo, ética e responsabilidade.

Este conceito é visto, no direito clássico, como a obrigação de reparar os danos que infringimos por nossa culpa (direito civil) e a obrigação de supor-tar o castigo (direito penal). A origem do termo é indicada pelo verbo imputar que possui uma relação primitiva com a ideia de obrigação “que pode ser enfei-xada pelo termo genérico retribuição” (RICOEUR, Vol. 1, 2008, p.35).

Procurando deslindar a etimologia da palavra, o filósofo explica que imputar corresponde a ideia de atribuir a alguém uma ação condenável e, nesse sentido, “o juízo de imputação leva ao juízo de retribuição” (RICOEUR, Vol. 1, 2008, p.36). Desta forma podemos relacionar a retribuição com a atribuição, deixando explicita a derivação de atribuir e retribuir.

Analisando o contexto francês, no âmbito do direito civil, Ricoeur identifica na responsabilidade a obrigação de reparar, derivando desta relação certa despenalização (no sentido de punição) da responsabilidade, sendo possí-vel ainda aludir que além da ideia de punição fosse possível desaparecer tam-bém a ideia de culpa. Desta forma:

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O Código Civil francês continua falando de culpa (faute) para pre-servar, ao que parece, três ideias, quais sejam: que foi cometida uma infração, que o autor conhecia a norma, e que ele era senhor de seus atos a tal ponto que poderia ter agido de outra maneira. Assim, em di-reito civil clássico a ideia de culpa esta dissociada da ideia de punição, mas, apesar disso, continua vinculada à ideia de obrigação de reparar. Mas esse estatuto mostra-se hoje conceitualmente frágil. Toda a his-tória contemporânea daquilo que se chama direito da responsabili-dade, no sentido técnico do termo, tende a abrir espaço para a ideia de responsabilidade sem culpa, sob a pressão de conceitos como os de solidariedade, segurança e risco, que tendem a ocupar o lugar da ideia de culpa. É como se a despenalização da responsabilidade civil também devesse implicar sua inteira desculpabilização. (RICOEUR, Vol. 1, 2008, p.49).

A grande questão colocada pelo autor é: essa transformação poderia ser consumada? O problema encontra-se em saber se a mudança da ideia de culpa pela noção de risco não redundaria, paradoxalmente, numa completa des-reponsabilização da ação. Na França, esta noção teve alguns efeitos perversos. Segundo Ricoeur ocorreu um movimento no sentido de que, quanto maior for o campo dos riscos, maior a necessidade de se identificar um responsável, ou seja, uma pessoa física ou jurídica capaz de indenizar e reparar. Desta forma, a virtude da solidariedade, invocada em apoio às aspirações da filosofia do risco, acaba ameaçada de ser desalojada de sua posição “uma vez que a proteção con-tra o risco orienta para a procura de segurança mais do que para a afirmação de solidariedade” (RICOEUR, Vol. 1, 2008, p.51)336.

Fundamental neste debate é apontar para a ideia de que, ultrapassados os exageros, seria possível encontrar um caminho mais equilibrado, onde a im-putação de responsabilidade fosse dissociada da reivindicação de indenização, levando “de uma gestão individual da culpa para uma gestão socializada do risco” (ENGEL, apud:RICOEUR, Vol. 1, 2008, p.50).

Dito isto, agora, para podemos propor o que seria uma responsabili-dade identificada com a socialização do risco, devemos aproximar os concei-tos já aludidos, de reconhecimento mútuo e de ética, conforme analisados por

336 Sobre este tema Ricoeur realiza um importante debate com a obra de Ulrich Beck, A Sociedade do Risco (2010). Nesta Beck compreende que, ao longo do século XIX, a natureza foi subjugada e explorada, transformando-se de um fenômeno externo em um fenômeno interno, fabricado. Atualmente, a partir de grandes desastres naturais e, também, daqueles fabricados pelos seres humanos, teríamos um novo paradigma a ser construído: O reverso da natureza socializada é a socialização dos danos à natureza, sua transformação em ameaças sociais, econômicas e políticas sistêmicas da sociedade mundial atualmente industrializada. (BECK, 2010, p. 10).

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Ricoeur. O reconhecimento mútuo é aquele que reconhece na pluralidade uma dimensão social da cidadania, assumindo o desejo de um “viver bem” como prática social. Em outras palavras, eu posso viver bem reconhecendo o outro e assumindo uma ética do justo como aceitação da solidariedade do risco, pois a responsabilidade funda-se numa identidade coletiva de interdependência. Nesta perspectiva temos, no campo jurídico, o Direito propondo-se a realizar, através das normas, uma ética pautada na virtude do justo e do reconhecimento coletivo (ética fundamental), que é efetivada nas instâncias judiciarias através dos casos concretos (ética aplicada).

Como suporte a estas reflexões podemos observar as ideias de Otfried Höffe sobre democracia e globalização, compreendendo nestas, como desdo-bramento, a existência atual de um destino comum. Para o filósofo do Direito a nossa sociedade global apresenta-se hoje fundamentada a partir da compreen-são de que possui um destino comum, que fundamenta-se em três dimensões: 1) a existência de uma comunidade de violência reinante em todo o mundo; 2) por outro lado, a existência de uma comunidade de cooperação (que, segundo Höffe, espera-se que seja ainda mais rica); 3) um destino comum.

[...] uma coisa é certa: em parte, por não mais querer, e em parte, por não mais poder viver de outra forma, a Humanidade mune-se de um campo global de referencias, que se revela sob a forma de uma rede de influências e relações, de interesses momentaneamente comuns e de uma miscelânea de opiniões. Com isso, abre espaço tanto para novas oportunidades quanto para novos perigos e acarreta não só uniformi-zações, mas também restrições. Desta forma, tem origem uma socie-dade mundial coletiva, isto é, uma sociedade com destino comum em três dimensões [...]. (HÖFFE, 2005, p. 8).

4. conSIdeRaçõeS fInaIS: SuStentabIlIdade e deSgoveRno

A partir das ideias de Ricoeur, propomos uma leitura específica daqui-lo que seria uma prática jurídica comprometida com a sustentabilidade. Como aludido no início deste trabalho a pluralidade jurídica se apresenta como uma condição contemporânea, tanto nas questões internas de um país quanto no âm-bito externo, transformado (ou devendo transformar) a ordem simbólica do Di-reito e seu discurso numa prática da mobilidade consciente337. Esta pressupõe a

337 Uma interessante discussão sobre a ideia de mobilidade pode ser encontrada na obra do antropólogo Marc Augé, intitulada “Por uma antropologia da mobilidade” (2010). Neste estudo ele investiga os sentidos da globalização, analisando conceitos como urbanização, fronteiras, utopias,

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compreensão do reconhecimento mútuo que acabamos de explicar, como sendo uma opção adotada conscientemente pelo Direito e, em última instância, pela sociedade politicamente ativa que faz da cidadania um instrumento eficaz de controle e diálogo político. Acrescesse a isto a compreensão de responsabilida-de ambiental na dimensão de um destino comum da humanidade.

Um passo importante para estruturação deste Direito afinado com a mobilidade consciente e, portanto, com uma sociedade dinâmica que procura conjugar responsabilidade mútua presente e futura, é a compreensão de um “devido processo legal ambiental”. Este incorporaria em seu funcionamento pressupostos fundamentais para a efetivação de um compromisso ético com a sustentabilidade, possibilitando uma análise sistêmica de prioridades e agilida-de na prática jurídica. Marcelo Rodrigues explica que:

O devido processo legal ambiental é expressão derivada do tradicio-nal devido processo legal, só que aqui focado para as lides ambientais, qual seja, pretende-se com ela dizer os postulados fundamentais do procedural dueprocess (contraditório e ampla defesa, duração razo-ável do processo, motivação das decisões judiciais, acesso efetivo à justiça, juiz natural, paridade de armas e isonomia entre os litigantes) sejam interpretados, nos processos coletivos ambientais, levando-se em consideração as peculiaridades e singularidades do equilíbrio eco-lógico (bem ambiental constitucional). (RODRIGUES, 2010, p. 228).

Paul Ricoeur foi chamado a depor, em 19 de fevereiro de 1999, como testemunha no caso de sangue contaminado, perante a Corte de Justiça da Re-pública Francesa. Este depoimento é incluído como epílogo da obra O Justo,

dentre outros. Expressa o autor que: a mobilidade sobremoderna exprime-se nos movimentos de população (migração, turismo, mobilidade profissional), na comunicação geral instantânea e na circulação dos produtos, das imagens e das informações. Ela corresponde ao paradoxo de um mundo onde podemos teoricamente tudo fazer sem deslocarmo-nos e onde, no entanto, deslocamo-nos (AUGÉ, 2010, pp. 15 - 16) e, também: a mobilidade no espaço permanece um ideal inacessível a muitos, enquanto é a primeira condição para uma educação real e uma apreensão concreta da vida social. Quanto à mobilidade no tempo, existem duas dimensões muito diferentes inicialmente, na aparência, mas muito estreitamente complementares. De um lado, aprender a se deslocar no tempo, aprender a história, é educar o olhar focado no presente, prepara-lo, torna-lo menos ingênuo ou menos crédulo, torna-lo livre. De outro lado, escapar, na medida do possível, aos constrangimentos de idade é a forma mais autêntica de liberdade. A educação continua sendo a melhor garantia. Em toda verdadeira democracia, a mobilidade do espírito deveria ser o ideal absoluto, a primeira obrigação. Quando a lógica econômica fala de mobilidade é para definir um ideal técnico de produtividade. É o ponto de vista inverso que deveria inspirar a democracia. Assegurar a mobilidade dos corpos e dos espíritos o mais cedo e pelo maior tempo possível levaria a um excedente de prosperidade material (AUGÉ, 2010, p. 108).

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vol 2. Neste texto final o filósofo discute acerca da existência de um tratamento penal para casos de responsabilização individual que, na verdade, encobririam a falta de um tratamento político adequado e responsável perante a sociedade. Desta forma, a sociedade foi acostumada (ou treinada) a clamar pelo escândalo em vez do debate, por um tratamento penal, na falta de um político, enfim, pela sensação de medo que a falta de uma punição revelaria o que estaria oculto. Po-rém, segundo Ricoeur, o preço pago por esta cultura serio o de deixar instituído um sistema de desgoverno como prática política.

Nesse sentido, a característica fundamental deste tipo de política seria a própria ausência de política, ou seja, ausência de debate, inação das instâncias políticas perante às quais os próprios políticos deveriam ser levados a prestar contas, o que significaria, ao fim e ao cabo, prestar contas a sociedade como um todo338. Inação também na falta de uma cultura cidadã de responsabilidade mútua, comprometida com o viver bem. Segundo Ricoeur:

Em compensação, o vasto domínio do erro e da falta no plano do des-governo não é levado em consideração por essa penalização do âmbi-to político. Pessoalmente, eu apresentaria em termos de desgoverno aquilo que foi visto excessivamente em termos penais, de negligência, lentidão nas decisões etc. Isso significa que tudo o que é da ordem da omissão de fazer deveria ser pensado mais politicamente do que penalmente. (RICOEUR, 2008, Vol. 2, p. 287).

A incapacidade, neste caso, de considerar o que seria uma justa dis-tância dos atos praticados, tanto por membros do governo, quanto por outros agentes, nos quais os resultados afetam nosso destino comum, como caracteriza Höffe, traduz a raiz de toda esta problemática: a falta de um espaço e de uma comunidade política madura onde o reconhecimento mútuo e a responsabili-dade ética possam guiar as escolhas do caminho que a justiça, e o conceito de justo, devam assumir.

Em suma, o que se propôs aqui, a partir da leitura da obra O Justo, de Paul Ricoeur, foi realizar uma breve análise de como o Direito e as instâncias

338 Importante neste debate é a compreensão de que a administração do Estado e a política administrativa também precisa ser vista, e revista, a partir destes princípios. Sobre a necessidade de uma reforma administrativa, Irene Nohara explica que: Para que os objetivos constitucionais de promoção de uma sociedade mais justa e igualitária sejam alcançados, deve-se buscar atacar as verdadeiras causas dos males burocráticos, que estão: no fisiologismo, nos favorecimentos indevidos, nas negociatas políticas das trocas de favores às custas da melhor realização dos interesses públicos, na má utilização das verbas públicas, nos corporativismos infundados e também, diga-se, na falta de investimentos estruturais e de capacitação e valorização humanas. (NOHARA, 2012, p. 229).

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judiciárias podem se relacionar – e se comprometer – com o meio ambiente e com a ideia de sustentabilidade como princípio ético que abrange todos os âm-bitos da sociedade humana (relações interpessoais, entre o homem e a natureza, entre consumo e produção, etc.). Nesse sentido, indicamos como fundamental a compreensão de uma prática da mobilidade consciente que possibilita a con-junção do pluralismo jurídico, a existência de um reconhecimento mútuo nas relações sociais e uma responsabilização ética da prática jurídica. Porém, é na dimensão política e na conscientização cidadã de participação-fiscalização do governo – e impedindo um efetivo desgoverno – que a legalidade poderá se tornar legítima.

RefeRêncIaS

AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió: EDUFAL: UNESP, 2010.

BECK, Ulrich. Sociedade de risco: Rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010.

HÖFFE, Otfried. A Democracia no Mundo de Hoje. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

NOHARA, Irene Patrícia. Reforma Administrativa e Burocracia: impacto da eficiência na configuração do direito administrativo brasileiro. São Paulo: Atlas, 2012.

RICOEUR, Paul. O Justo 1 – A justiça como regra moral e como instituição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.

______________. O Justo 2 – Justiça e verdade e outros estudos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.

RODRIGUES, Marcelo Abelha. “Devido Processo Legal Ambiental Aplicado”. In: GALLI, Alessandra. Direito socioambiental: homenagem a Vladimir Passos de Freitas. Curitiba: Juruá, 2010.

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3aceSSo ao dIReIto vIgente: pRoblemaS, RIScoS e pRopoStaS

paRa uma elaboRação legISlatIva à luz doS valoReS RepublIcanoS e da leI de aceSSo à InfoRmação

Fabiana de menezeS SOareS

Professora Associada da Faculdade de Direito da UFMG. Pesquisadora DTI/Cnpq. Em 2008/2009 realizou estágio Pós Doutoral (CAPES) no Centro de Estudos e Avaliação Legislativa- Universidade de Genebra. Docente de Gra-duação e no Programa de Pós Graduação em Direito vinculada à Linha de pes-quisa “Direitos humanos e Estado Democrático de Direito: Fundamentação, Participação e Efetividade” onde coordena o Projeto Estruturante: Juridicida-de, Fundamentação e Discursividade e o Grupo de Pesquisa Observatório para qualidade da lei cuja interface com a extensão virtual é desenvolvida em plata-forma web 2.0 (legistica.ning.com “O que são boas leis?”).

“A coerção, com seu imanente apelo ao medo, é também um convite a que a sociedade dos homens, ao invés de ser livre e feliz, se torne uma imensa e sombria colônia de eunucos e escravos. Que a abdicação da liberdade im-porte alivio é verdade e é compreensível. O exercício da autodeterminação constitui, ao mesmo tempo, grandeza e dor, crescimento e pena, morte e ressurreição do ser humano. Quem pois se recusa a liberdade, não padece a angústia de decidir. Ao preço, porém, de não crescer, de continuar sempre menor, de um modo ou de outro, por preguiça ou covardia, como lembrava Kant há quase duzentos anos.”(João Baptista Villela. Direito, coerção e responsabilidade: por uma ordem social nao violenta)

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SumáRIo: Introdução. 1. Notas, tendências e questões sobre a elaboração legislativa na contemporaneidade (Legística). 1.1 A Legistica no quadro da elaboração legislativa demo-crática. 1.2 O contexto normativo/fático da produção do direito. 2. A corrosão silenciosa do sistema normativo e seus impactos sobre a elaboração legislativa. 2.1 Notas técnicas aos projetos de proposições legislativas. 3. Pluralidade de fontes do direito e as tensões entre Executivo e Legislativo. 3.1. Lacunas, omissões legislativas e ativismo legislativo. Quadro de omissões legislativas expressas. 3.2 As Medidas Provisórias – MPs. a) Medidas Provisórias anteriores à Emenda Constitucional nº 32, de 2001. b) Medidas Provisórias posteriores à Emenda Constitucional nº 32, de 2001. b.1) Esquemas comparativos de pro-posições quanto às possibilidades de debate. c) O Executivo e o Legislativo na arena do Congresso Nacional: quantitativo de proposições 2006 a 2012. 4. Por uma metodologia compreensiva para o processo de enucleação do jurídico. a) Modelagem de tipologia de atos normativos de sistema normativo federal/nacional b) Modelagem de tipologia de atos normativos de sistema normativo estadual. 4.1 A garantia da idoneidade do texto normati-vo. 4.2 A Legimática a serviço da reconstrução do cenário vigente (e dos impactos futuros). 4.2.1 Lexedit: Um software para redação legislativa. 4.2.2 Sumário Topográfico do Código Civil Brasileiro. Conclusão.

IntRodução

A formação do Direito no Brasil prioriza, de forma geral, a aplicação do direito. Os currículos dos cursos de direito dedicam poucas disciplinas à elaboração legislativa (aqui compreendido como produção de atos normativos por parte do legislativo, executivo e judiciário).

O problema não é exclusivo da academia brasileira339. Estudos sobre a proeminência da formação do pensamento jurídico destinado à aplicação do direito expressam este modelo nas faculdades de direito fora do país.

A discussão sobre temas relativos à teoria da legislação ainda perma-necem circunscritos a alguns temas na teoria do direito, no processo legislativo,

339 CAUPERS, João – Relatório sobre programa, conteúdo e métodos de uma disciplina de Metódica da Legislação. Legislação. Cadernos de Ciência de Legislação. 35 (2003) 7-87: GUIBENTIF, Pierre - A produção do direito. Crítica de um conceito na fronteira entre sociologia do direito e ciência de legislação. Legislação. Cadernos de Ciência de Legislação. 7 (1993) 31-72; AINIS, Michele – La legge oscura: come e perché non funziona. Roma: Editori Laterza, 2002; ALMEIDA, Marta Tavares de – Legista: uma nova profissão? Legislação. Cadernos de Ciência de Legislação. 41 (2005) 35-43; ALMEIDA, Marta Tavares de – A contribuição da Legística para uma política de legislação: concepções, métodos e técnicas. Legislação. Cadernos de Ciência de Legislação. 47 (2007) 77-91.

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à história das codificações, bem como em sede de direito parlamentar. Todos ocupam um espaço pequeno não obstante o fato de que signifique a expressão do porvir “jurídico”.

O planejamento de políticas públicas, a preocupação com a accoun-tability, o incremento de modificações organizacionais para boa governança reforçaram o ambiente da atividade de legislação como ação340. Esta dimensão, por outro lado, exigiu uma maior racionalização no processo de elaboração le-gislativa e a retomada de estudos sobre a produção do direito na contempora-neidade.

Para tal, fez-se necessário o avanço metodológico para gestão de pro-jetos legislativos apto a propiciar a perspectiva do planejamento e reconstrução do cenário presente (a ser objeto da ação legislativa), por meio de uma rede de informações idôneas (primárias, autênticas, íntegras e atualizadas) que permita o delineamento do problema objeto da ação legislativa, dos impactos e afetados.

Isso significa que tanto a comunicação do ato, quanto a adequação da ação legislativa à resolução do problema concorrem para o desenvolvimento de uma legislação responsável (elaborada em ambiente de avaliação legislativa).

Neste contexto, a qualidade do sistema jurídico emerge como neces-sidade e interfere no acesso ao direito vigente. A análise de diversos sistemas normativos vigentes à luz do planejamento da elaboração é capaz de identificar tensões, gargalos que se constituem em riscos à eficiência no acesso ao direito vigente.

A identificação desses problemas abre uma estrada que aponta para a constituição de uma politica para boa legislação no Brasil, sobretudo sob a égide da Lei de acesso à informação.

1. notaS, tendêncIaS e queStõeS SobRe a elaboRação legISlatIva na contempoRaneIdade (legíStIca)

A introdução de métodos e técnicas da Legística, ainda é tarefa a ser desenvolvida341 no Brasil diante do atraso de quase duas décadas na discussão

340 DELLEY, Jean-Daniel. Para pensar a lei. Introdução a um procedimento metódico. Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, vol.7, n. 12, pp. 101-143, jan./jun.2004. 341 NOLL, Peter. Gesetzgebungslehre, Reinbeck bei Hambourg, Rowohlt:1973; MADER, Luzius. L’évaluation législative. Pour une analyse empririque de la Législation, Lausanne: Payot, 1985; KARPEN, Ulrich - Institutional framework for an efficient Regulatory Impact Assessment. Legislação. Cadernos de Ciência de Legislação. 50 (2009) 379-389; GUIBENTIF, Pierre - A produção do direito. Crítica de um conceito na fronteira entre sociologia do direito e ciência de legislação. Legislação. Cadernos de Ciência de Legislação. 7 (1993) 31-72; CHEVALLIER, J. – A racionalização da produção jurídica. Legislação. Cadernos de Ciência de Legislação. 3 (1992) 9-23; CAUPERS, João – Relatório sobre programa, conteúdo e métodos de uma disciplina de Metódica

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sobre a melhoria da compreensão, acesso e nível de eficácia da legislação, con-forme se verifica na literatura jurídica e na experiência estrangeira.

A Legística,(MORAND, 1999, p. 37) como disciplina jurídica autô-noma342, já foi designada como Ciência da Legislação (MADER, 1985, p.15), Legisprudência (WINTGENS, 2002, p.10) cujo fim é racionalizar a produção do direito e o objeto a otimização para maior eficiência da atividade legislativa do Estado.

1.1 a legíStIca no quadRo da elaboRação legISlatIva democRátIca

As discussões sobre as ligações entre a qualidade da lei e o desenvol-vimento econômico e social partiram também das recomendações da OCDE – Improving the Quality of Laws and Regulations: Economic, Legal and Ma-nagerial Techniques (OECD/Sigma, 1994), dos documentos produzidos pela União Europeia, tais como: Mandelkern Report (2001) e do programa Better Regulation (2001) e Better Lawmaking (2002).

Nesses estudos foi evidenciada a importância do desenvolvimento das ações em prol da qualidade da legislação através de técnicas e instrumentos para a consecução da harmonização, consolidação e simplificação legislativas. Neste particular, deve ser ressaltada a experiência de bijuridismo e bilinguismo canadenses343 que culminou por se antecipar à União Europeia (UE) e incremen-tou as ações acima referenciadas.

No Brasil, em 2005 foi criada a disciplina Legística na Faculdade de Direito da UFMG que se vale de uma plataforma em web 2.0 com o fim de propiciar a produção, difusão, discussão sobre as tendências, problemas e boas

da Legislação. Legislação. Cadernos de Ciência de Legislação. 35 (2003) 7-87;HESPANHA, António Manuel - Leis bem feitas e leis boas. Legislação. Cadernos de Ciência de Legislação. 50 (2009) 31-47; GAROUPA, Nuno; VILAÇA, Guilherme Vasconcelos – A prática e o discurso da avaliação legislativa em Portugal. Legislação. Cadernos de Ciência de Legislação. 44 (2006) 5-29. A partir destes estudos, o grupo de pesquisa Observatório para qualidade da lei aplicou e criou instrumentos da metodologia legística em 3 projetos de pesquisa: Legislação em Defesa agropecuária Cnpq e Fapemig; Avaliação legislativa das modificações do regime recursal do agravo de instrumento. Secretaria da Reforma do Judiciario/Pnud, Ministério da Justiça.342 MORAND, Charles-Albert. Éléments de Légistique Formelle et Materielle. Légistique Formelle et Materielle.Aix-en-Provence: Presses Universitaires D’Aix-Marseille-PUAM, 1999 p.45; WINTGENS, Luc J. Legisprudence: A new Theoretical Approach to Legislation. Proceedings of the Fourth Benelux-Scandinavian Symposium on Legal Theory. Oxford-Portland Oregon: Hart Publishing, 2002, p 1-38.343 SOARES, Fabiana de Menezes – O papel da legística nos processos de integração (ALCA): o caso Brasil/Canadá em sede de planejamento legislativo. Legislação. Cadernos de Ciência de Legislação. 40 (2005) 5-27.

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práticas em elaboração legislativa, além de emular os seus inputs344 na justifica-ção da decisão de legislar 345.Também na UFMG, em 2006, ocorreu o Seminário de Legística Comparada346 e em 2007, um conclave específico sobre o tema,na Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais/ALMG (Congresso Inter-nacional de Legística) que culminou no livro “Legística: Qualidade da Lei e Desenvolvimento”347.

A partir de 2009, o Executivo federal alavancou iniciativas expressas pela criação do Pro Reg (Programa para a Programa de Fortalecimento da Ca-pacidade Institucional para Gestão em Regulação), do desenvolvimento de edi-tais para pesquisas em elaboração legislativa por parte da SAL- Secretaria para Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, além da Câmara dos Deputados por meio de debates sobre Qualidade Legislativa (2011).

Neste particular, é curioso ressaltar que coube ao Executivo a elabo-ração de uma política de boa legislação. Esta atuação mais do que simbólica evidencia a instrumentalização da elaboração legislativo-regulatória como ação governamental.

Enquanto isso, o legislativo além de não ter tratado devidamente o tema, não consegue responder às demandas por legislação expressos, judicial-mente, nos casos de mora legislativa, como veremos mais à frente.

No Senado, tanto a Informática Legislativa quanto o Centro de Estu-dos da Consultoria do Senado vem publicando desde 2008, estudos que envol-vem o uso de ferramentas no circuito de atividades que cercam a elaboração legislativa, bem como na análise sobre modelos de avaliação que tocam o con-teúdo de proposições.

Nesse contexto, o debate sobre o conhecimento real do direito, a oti-mização da publicidade oficial, sua clareza e simplicidade se inserem no quadro da garantia de eficácia dos Direitos Fundamentais348.

Além disso, há o custo simbólico (desconfiança nas instituições), so-cial, econômico (expresso, inclusive judicialmente) de uma legislação com pro-

344 Compreendido como o campo valorativo que dimensiona a possibilidade fática de realização do conteúdo axiológico. FERRAZ Jr., Tércio Sampaio, Direito, Retórica e Comunicação. São Paulo: Saraiva, 1997 pp.113-114.345 Disponível em: www.legistica.ning.com - “ o que são boas leis?”346 O curso de Legística Comparada foi promovido pelo programa de pós-graduação em Direito e o Niepe. Teve como palestrantes Tito Gallas - chefe do Serviço de Jurilingüistas do Conselho da União Européia (Bruxellas), Marta Tavares, da Universidade de Nova Lisboa e Pierre Issalys, da Universidade de Laval.347 Brasil. Disponível em: http://consulta.almg.gov.br/consulte/publicacoes_assembleia/obras_referencia/arquivos/legistica.html. Acessado em: 15.10.2012348 Soares, Fabiana de Menezes. Produção do Direito e Conhecimento da Lei à Luz da Participação Popular e sob o Impacto da Tecnologia da Informação. p. 345. Tese de doutorado (Filosofia do Direito)-Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 06/03/2002

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blemas no plano da eficácia técnica e social. Nesse sentido, a melhoria da qualidade da lei também surge como

estratégia para evitar excessivos e inúteis encargos aos cidadãos, às adminis-trações públicas, às empresas349, na medida em que vem acompanhada por uma ação de simplificação legislativo-regulatória, que inclua ações de consolidação que diminuam e clarifiquem atos normativos em vigor.350

1.2 o contexto noRmatIvo/fátIco da pRodução do dIReIto

O legislador brasileiro, ao densificar o comando constitucional con-tido no art 59, parágrafo único da Constituição da República Federativa do Brasil-CRFB/88, especificou uma chave hermenêutica, “ elaboração”, que, em sede de produção de direito, nos remete a uma dimensão de desenvolvimento, planejamento, desenho, presentes nos sentidos que distinguem redigir de ela-borar.

No Brasil, a Lei Complementar 95/98 teve como fim disciplinar a redação, consolidação e elaboração dos atos normativos. A partir da sua pu-blicação, entes da federação e o Executivo Federal351 elaboraram suas normas sobre produção de normas em uma tentativa de concorrer para um maior acesso ao direito vigente.

Nesses termos, foram positivadas regras sobre a articulação lógico--formal ( cláusulas de barreira contra pluralidade de temas em um mesmo di-

349 Voermans, Wim. A Learning Legislator? Dutch attempts to prevent brain-drain in the legislative process. In: Mader, Luzius; Moll, Chris (eds.). The Learning Legislator. Proceedings of the 7 th Congresso f the European Association of Legislation (EAL), 31st May-1st June, The Hague, The Netherlands, 2006, pp. 189-206. Baden-Baden, Nomos Verlagsgesellschaft. Vide também sobre a avaliação de impacto: Meuwese, Anne C.M. Impact Assessment in EU Lawmaking. Alphen aan dem Rijn. The Netherlands: Kluwer Law International BV- European Monographs, 2008.350 Vide o Projeto Kafka que sintetiza um modelo de ação no plano de uma política de boa legislação. Disponívem em: http://www.kafka.be/showpage.php?iPageID=150. “In the Kafka Report, we present you with a limited selection of the various administrative reforms that have already been completed in favour of citizens, businesses as well as for other target groups. After nearly 4 years of Kafka battling, more than 200 laws and regulations have been abolished or simplified. The administrative costs for corporations decreased by 25 % in comparison with 2003, a drop of 1.7 billion euros. Thanks to the administrative reform Belgium is the fastest country in Europe to create a new company. Watch the presentation Kafka starts up a business.” Acessado em: 15.09.2012.351 Decreto 4176/2002. EmMG: Lei Complementar 78/2004 e Decreto 43 987/200 do Estado de Minas Gerais.O Manual de Redacao Parlamentar, 2 edição, ALMG incluiu um instrumento de avaliação legislativa por meio de check list (pp.32-33) Disponível em: http://consulta.almg.gov.br/consulte/publicacoes_assembleia/cartilhas_manuais/arquivos/manual_parlamentar.html. Acessado em: 15.09.2012.

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ploma normativo). Sob outro prisma, foram positivadas condições para maximizar a defi-

nição do impacto normativo da nova norma jurídica sobre o sistema normativo, através da exigência do elenco expresso das revogações, com o fim de incre-mentar a sua executoriedade e assim evitar um ativismo judicial, pernicioso, nesta seara.

Sob o ponto de vista da dimensão da eficácia dos atos normativos, o âmbito de incidência, os fins e princípios da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) atingem a produção do direito e acabam por reforçar este contexto de avaliação ao qualificar o acesso aos motivos que informam a gestão fiscal352.

A positivação do seu modelo de avaliação de eficiência adiciona mais um critério a ser levado em conta à consecução da eficácia técnica e social dos pacotes de atos normativos vinculados às políticas públicas.

A recente entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação – Lei 15527/2011 (eficácia diferida para 16 de maio de 2012)353 propicia um novo elemento à obrigatoriedade de maior transparência no que se refere aos motivos que informam o impulso para legislar e que se constituem o cerne da Legística: a justificação das escolhas do legislador em face da ampla discricionariedade da qual se reveste o exercício da sua função.

O supramencionado ato normativo inclui o Legislativo no seu âmbito de incidência e determina uma classificação das informações sigilosas, de modo que a regra passa a ser o acesso (grifo nosso):

352 Art. 48.São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.Parágrafo único.  A transparência será assegurada também mediante:  (Redação dada pela Lei Complementar nº 131, de 2009).        I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos; (Incluído pela Lei Complementar nº 131, de 2009).        II – liberação ao pleno conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público; (Incluído pela Lei Complementar nº 131, de 2009).        III – adoção de sistema integrado de administração financeira e controle, que atenda a padrão mínimo de qualidade estabelecido pelo Poder Executivo da União e ao disposto no art. 48-A. (Incluído pela Lei Complementar nº 131, de 2009). 353 Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências.

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“Art. 1o Esta Lei dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com o fim de ga-rantir o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal. Parágrafo único. Subordinam-se ao regime desta Lei: I - os órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, incluindo as Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público; (...) Art. 3o Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção; II - divulgação de informações de interesse público, independente-mente de solicitações; III - utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação; IV - fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na ad-ministração pública; V - desenvolvimento do controle social da administração pública. (...)Art.7 o§ 3o O direito de acesso aos documentos ou às informações neles contidas utilizados como fundamento da tomada de decisão e do ato administrativo será assegurado com a edição do ato decisório respec-tivo. (...)§ 4o A negativa de acesso às informações objeto de pedido formulado aos órgãos e entidades referidas no art. 1o, quando não fundamentada, sujeitará o responsável a medidas disciplinares, nos termos do art. 32 desta Lei.”

Caberá ao legislador densificar o modelo de transparência que veio à lume pela Lei de Acesso à Informação nas normas sobre produção de normas em sede parlamentar, pois são estas normas que informam o processo sobre a decisão de legislar.

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2. a coRRoSão SIlencIoSa do SIStema noRmatIvo e SeuS ImpactoS SobRe a elaboRação legISlatIva

Restou evidenciado o reforço que a metodologia proposta pela Le-gisitica recebeu com o advento da Lei de Acesso à Informação. Este diploma normativoacha-se afinado às boas práticas internacionais de avaliação legis-lativa, pois otimiza a reconstrução de cenários de vigência presente, permite prognósticos acerca de âmbitos de incidência futuros que possam clarificar e orientar ações para maximizar a executoriedade de atos normativos.

Assim, seu escopo é direcionado não só ao momento pós vigor, mas sobretudo na fase prévia, na qual o ato normativo ainda não foi positivado, mas está sendo elaborado e avaliado, nas seguintes dimensões:

a) Exame das razões que informam a opção por uma intervenção esta-tal de natureza legislativa, na elaboração de ato normativo.b)Definição de estratégias de aproximação da informação jurídica veiculada via ato normativo e os seus destinatários (inclusive os ga-rantidores da sua executoriedade), interessados ou afetados pelo ato normativo.c) Elaboração do modelo de avaliação legislativa (ex ante/ ex post) a ser adotado para a gestão do projeto de ato normativo. d) Densificação, otimização e publicização tanto da motivação da escolha (dentre uma das alternativas possíveis) da direção do texto inicial do projeto de ato normativo, quanto da criação das condições necessárias, materiais e instrumentais para a justificação da decisão de legislar. e) Planejamento das estratégias em prol do vigor, da clareza e da cer-teza acerca do direito vigente, inclusive no que se refere à melhoria dos diários oficiais e da publicidade de informações jurídicas que fa-voreçam uma decodificação da linguagem354.

Assim, os órgãos com competências normativas ao final do seu pro-cesso hermenêutico para densificarem suas próprias normas sobre produção de normas preencherão o conceito aberto da elaboração à luz do contexto técnico-legal atual de publicidade e transparência incrementados pela tecnologia da informação. Esta diretriz foi positivada pela Lei de Acesso à Informação, ao qualificar a publicidade oficial (grifo nosso):

354 Soares, Fabiana de Menezes Soares. Teoria da Legislação... pp.245-256 e pp.279-300, sobre o conhecimento do direito e a devida publicidade da lei.

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Art. 8º É dever dos órgãos e entidades públicas promover, indepen-dentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas. (...)§ 2º Para cumprimento do disposto no caput, os órgãos e entidades públicas deverão utilizar todos os meios e instrumentos legítimos de que dispuserem, sendo obrigatória a divulgação em sítios oficiais da rede mundial de computadores (internet). § 3º Os sítios de que trata o § 2o deverão, na forma de regulamento, atender, entre outros, aos seguintes requisitos: I - conter ferramenta de pesquisa de conteúdo que permita o acesso à informação de forma objetiva, transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão; (...) V - garantir a autenticidade e a integridade das informações disponí-veis para acesso; VI - manter atualizadas as informações disponíveis para acesso; VII - indicar local e instruções que permitam ao interessado comu-nicar-se, por via eletrônica ou telefônica, com o órgão ou entidade detentora do sítio; e VIII - adotar as medidas necessárias para garantir a acessibilidade de conteúdo para pessoas com deficiência, nos termos do art. 17 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000, e do art. 9o da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pelo Decreto Legislativo no 186, de 9 de julho de 2008. § 4º Os Municípios com população de até 10.000 (dez mil) habitantes ficam dispensados da divulgação obrigatória na internet a que se re-fere o § 2o, mantida a obrigatoriedade de divulgação, em tempo real, de informações relativas à execução orçamentária e financeira, nos critérios e prazos previstos no art. 73-B da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).

2.1 notaS técnIcaS aoS pRoJetoS de pRopoSIçõeS legISlatIvaS

As notas técnicas que integram as proposições legislativas não são disponibilizadas aos cidadãos, administração publica, por força de atos norma-

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tivos das casas parlamentares355, apesar de produzidos por servidores públicos, no exercício de suas atividades funcionais, com uso de recurso público.

As notas técnicas, de modo geral, são definidas como os pareceres so-licitados pelos parlamentares às consultorias (órgãos de assessoramento técnico composto por cargos de provimento efetivo) , ou elaborados de moto próprio pelos consultores, durante o processo de elaboração legislativa, com o fim de externar vícios, problemas de ordem técnico-jurídica, análises de conjuntura, em geral, contrárias as pretensões originais acerca da escolha de um certo sen-tido para a legislação de um dado tema. São estudos que integram a justificam a decisão de legislar.

Argumentando-se a contrario sensu, a negativa de acesso às notas técnicas equivale a assumir que os princípios da motivação, proporcionalidade e razoabilidade não se aplicam à elaboração normativa, que densifica o princí-pio da legalidade.

A legalidade é um principio forte em sede de exercício da atividade pública, visto que conforma a atuação de todas as funções: administrativa, judi-cial e também legislativa.

Levada às últimas e nefandas consequências, aquela argumentação sig-nifica, assim, defender que o legislador atua com absoluta liberdade para legislar, e que ao contrário das demais autoridades da República, os seus motivos, os cidadãos não podem conhecer. Ademais, conduz a uma assimetria entre os po-deres da República incompatível com a disciplina constitucional, visto que não se trata da expressão da opinião inviolável do parlamentar, e sim da expressão de conformação do princípio da legalidade, mas de processo de formação das leis, por sua natureza público, acessível e passível de controle social e jurisdicional.

À guisa de direito comparado, a experiência do Canadá é particularmente elucidativa se considerarmos o seu contexto de “novo mundo”, ao lado do bijuridismo (e bilinguismo que enseja a uma maior sofisticação redacional) cujo sistema jurídico recebeu a influxo da common law e da civil law. Com o desenvolvimento e consolidação das análises de impacto (RIAS356) os seus princípios de accountability (dever de prestar de contas pelos resul-tados) e transparência, os relatórios de impacto tiveram o seu valor jurídico reconhecido como chave hermenêutica invocada junto à Corte Constitucional Canadense.

Os relatórios influenciaram julgamentos acerca do sentido da norma neles expresso, em consequência do aporte de informações entre governo, le-

355 Cada casa parlamentar define o uso e a redação das suas notas técnicas através dos Regimentos, atos da Mesa, Manuais de redação e técnica legislativa, Regimentos e/ou atos normativos que regulam os serviços de consultoria.356 Regulatory Impact Assesment Analysis Statement.

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gislativo e sociedade trazidas a lume por meio da análise de impacto, compro-metida com a eficácia e efetividade das futuras normas jurídicas357.

Até o presente momento, não houve no Brasil nenhuma disponibili-zação nos sites das casas legislativas, acerca da classificação das informações contidas nas Notas Técnicas, em conformidade com o art 24 da Lei de Acesso à Informação.

Este entendimento não se sustenta mais à luz da Lei de acesso à in-formação que possibilita o acesso aos documentos públicos não classificados como informações que ameacem a segurança nacional, violem a intimidade e o sigilo protegido legalmente.

Vale ressaltar, que as condições para uma análise legislativa que in-duza, no plano prático, ações de coordenação entre Executivo/Legislativo/Exe-cutivo estão no âmbito de incidência da Lei de acesso à informação para ga-rantir as possibilidades do fluxo de informações dentro e entre a administração pública (incluídos justiça e legislativo) e em relação ao “público externo” : a sociedade brasileira.

A perspectiva de ações coordenadas previstas na gestão de projetos legislativos (aqui entendido no sentido amplo que inclui a elaboração normativa do Executivo) é uma prática consolidada na experiência suíça e informada pela participação popular358.

3. pluRalIdade de fonteS do dIReIto e aS tenSõeS entRe executIvo e legISlatIvo

357 HOULE, France. Regulatory History Material as an Extrinsic Aid to interpretation: An empirical study on the use of RIAS by the Federal Court of Canada. 19 Canadian Journal of Administrative Law & Practice, July, 2006. pp.151-189.358 BUSSMANN, Werner, KLÖTI, Ulrich, KNOEPFEL, Peter.(Éditeurs). Traduit de allemand par Frédéric VARONE. Politiques Publiques. Évaluation- Chapitre 5 Les objets et le critères d’évaluation, par Peter Knoepfel, Frédéric Varone, Werner Bussmann, Luzius Mader. Collection Politique Comparée. Economica: Paris, 1998. pp. 83-112. Vide a estrutura para gestão da consulta e coordenação entre executivo e legislativo e vice versa. Disponível em : http://www.admin.ch/ch/f/rs/c172_061.html, http://www.bk.admin.ch/themen/planung/index.html?lang=fr : “Depuis 1968, le Conseil fédéral présente sa stratégie politique au Parlement nouvellement élu dans un rapport sur le programme de la législature (art. 146 LParl, ). Il y inscrit les objectifs et les mesures les plus importants pour la législature qui commence. Depuis le 1er décembre 2003, le Parlement peut modifier les plans et faire des propositions concrètes au Conseil fédéral (art. 147 LParl,). Dans le système gouvernemental suisse, basé sur la concordance, un tel programme ne peut absolument pas refléter celui d’un parti ou d’une coalition, comme c’est le cas dans les pays voisins. Le programme de la législature est plutôt un instrument de dialogue, entre le Conseil fédéral et le Parlement, qui doit montrer en temps voulu ce que le gouvernement va faire, et dans quels domaines il peut compter sur le soutien des deux Chambres ou, au contraire, s’attendre à des blocages ou à des adaptations.” Acessado em: 30.09.2012.

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Historicamente, a atividade de elaboração legislativa se desenvolveu por meio dos corpos técnicos institucionalizados na figura dos drafters ou le-gistas (daí o termo drafting, designação forjada na Common Law, precisamente na Inglaterra359) que designa os que assessoram o governo e o parlamento com o fim de concorrerem para a qualidade da atividade de legislação fundada na avaliação dos riscos, na pro-atividade que planeje a densificação (e assim asse-gurar a eficácia técnica e a executoriedade do ato normativo), na clara definição do problema a ser objeto da elaboração normativa e dos seus possíveis afetados.

A melhoria da qualidade das leis, que se refere a todo o círculo nor-mativo (da elaboração à entrada do novo ato normativo no ordenamento jurí-dico) é objeto da Metódica da Legislação (uma das linhas de investigação da Legística) desenvolvida doutrina jurídica europeia, notadamente alemã, suíça e britânica, a partir da década de 70 como metodologia compreensiva ao propor uma analise que leve em conta o contexto das politicas públicas existentes e a ela conexas360.

Todavia, a doutrina brasileira e a prática legislativa das Casas Legis-lativas e do Executivo se ressentem da adoção de medidas que assegurem estra-tégias a favor da simplificação legislativa, contra a proliferação legislativa, pela avaliação de impacto, e melhoria na publicidade dos atos normativos.

3.1 lacunaS, omISSõeS legISlatIvaS e atIvISmo legISlatIvo

A existência de lacunas evidenciadas em processos hermenêuticos, a opção do Legislativo em nāo-legislar, o ativismo legislativo do Executivo tensionam o sistema jurídico nacional tanto sob a ótica da segurança jurídica, na validade dos atos normativos, bem como nas repercussões sobre o nível de confiança das instituições e na própria justiça, que se vê no papel de legislar, conforme a crônica judiciária brasileira recente.

Dois exemplos emblemáticos de demanda por racionalidade legisla-tiva podem ser exemplificados. O primeiro evidenciado tanto na (ADI) 4277, bem como na (ADPF) 132 do STF com o reconhecimento da união estável homoafetiva.

O segundo em decisão proferida pelo STF em 22 de junho de 2011 e que fixou regras sobre o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, confor-

359 BARTOLE, Sergio. Lezioni di tecnica legislativa,Padova. CEDAM, 1988. 360 BUSSMANN, Werner, KLÖTI, Ulrich, KNOEPFEL, Peter.(Éditeurs). Traduit de allemand par Frédéric VARONE. Politiques Publiques. Évaluation- Chapitre 5 Les objets et le critères d’évaluation, par Peter Knoepfel, Frédéric Varone, Werner Bussmann, Luzius Mader. Collection Politique Comparée. Economica: Paris, 1998. pp.73-108.

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me o inciso XXI do art 7° da CRFB/88361. As omissões legislativas denunciadas em sede constitucional, expres-

sam uma série de temas sobre os quais o legislativo ainda não tratou e que se constituem em mora legislativa: Aviso Prévio Proporcional, Aposentadoria Especial do Art. 40, § 4º, da CF; Direito de Greve, Lei Complementar Federal para Criação de Municípios, Tribunal de Contas: Criação de Cargos no Modelo Federal (vide quadro a seguir).

A questão da omissão legislativa, que tantos malefícios causam ao exercício de direitos, inclusive de natureza fundamental coloca em destaque a necessidade do aprimoramento instrumental de novas técnicas de decisão que preencham casos de lacuna motivados pela inação do legislador, sobretudo diante da garantia de constitucional de acesso ao judiciário e da vedação ao juiz de invocar ausência de lei como impeditivo à prestação constitucional.

O Apelo ao Legislador (Appellenstscheidnung)362 é técnica desenvolvida pela Corte Constitucional Alemā que assinala um estado de ainda constitucionalidade em face da omissão legislativa declarada, ao mesmo tempo em que provoca o Legislativo no sentido de preencher a lacuna.

361 SANTOS, Leticia Camilo. Análise da decisão judicial no quadro da Legisprudência: o diálogo das fontes do direito. pp. 2011.173. Dissertação (Mestrado em Legística). Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.362 MENDES, Gilmar Ferreira. O Apelo ao Legislador: Appellenstscheidnung, na práxis da Corte Constitucional Alemā. In Revista de Informação Legislativa. vol. 29, n.114, pp. 473-484, abr./jun. 1999. CONTINENTINO, Marcelo Casseb. Apelação ao Legislador como técnica de decisão de inconstitucionalidade e o Supremo Tribunal Federal. A Jurisprudência do STF nos 20 anos da Constituição. Oganizadores: MENDES, Gilmar Ferreira, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, VALE, André Rufino. Sāo Paulo: Série IDP-Editora Saraiva, 2004. pp. 236-240.

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PROCESSO RELATOR DATA DO JULGAMENTO

MI 788 Min. Carlos Britto 15/04/2009MI 795 Min. Cármen Lúcia 15/04/2009MI 796 Min. Carlos Britto 15/04/2009MI 797 Min. Cármen Lúcia 15/04/2009MI 808 Min. Carlos Britto 15/04/2009MI 809 Min. Cármen Lúcia 15/04/2009MI 815 Min. Carlos Britto 15/04/2009MI 825 Min. Carlos Britto 15/04/2009MI 828 Min. Cármen Lúcia 15/04/2009MI 841 Min. Cármen Lúcia 15/04/2009MI 850 Min. Cármen Lúcia 15/04/2009MI 857 Min. Cármen Lúcia 15/04/2009MI 879 Min. Cármen Lúcia 15/04/2009MI 905 Min. Cármen Lúcia 15/04/2009MI 927 Min. Cármen Lúcia 15/04/2009MI 938 Min. Cármen Lúcia 15/04/2009MI 962 Min. Cármen Lúcia 15/04/2009

a) Quadro de omissões legislativas expressas

Fonte: Site STF. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaOmissaoInconstitucional. Acessado em: 27.09.2012.

A falta de coerência do ordenamento jurídico brasileiro, em virtude da presença de antinomias reais, não sanáveis pelos critérios cronológico, hie-rárquico e de especialidade é um dos grandes problemas da legislação a ser enfrentado face suas repercussões na esfera da segurança jurídica e do acesso ao judiciário, em decorrência , principalmente, da dificuldade em se reconstruir a cadeia de fontes do direito, por exemplo, em subsistemas normativos comple-xos caracterizados pela alta atividade de densificação normativa.

Outra questão que dilarga os limites às noções clássicas de comple-tude e determinação do e infra ordenamento jurídico363 refere-se à evolução ou

363 GUASTINI, R. discute o que chama de dogma da completude e da necessidade de sua integração a depender do legislador, mas com a proeminência da atuação do juiz. Das Fontes às normas.

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mesmo cessação do suporte fático face à letra da lei e o legislador ignora a necessidade de aprimorar a legislação. Trata-se de uma tensão entre texto x contexto, entre estrutura lógico - formal e âmbito de incidência que atinge a dimensão de eficácia do ato normativo.

Mais uma vez a Corte Constitucional Alemã desenvolveu uma ju-risprudência que agrega significados congruentes com a contemporaneidade à função de legislar e ao correlato o dever do legislador em vigiar a legislação e de corrigí-la, de modo a assegurar a minimização da incerteza quanto à efetivi-dade de direitos fundamentais364.

Assim, a situação de lacuna e quase-lacuna necessita de meios para a enucleação do potencial repertorio de normas, matéria jurídica do acervo social365 com elevado gradiente jurígeno apto a atuar na elaboração normativa, inclusive decorrente de um diálogo entre as fontes do direito, travado em seara constitucional.

A valorização dos trabalhos técnicos no curso da elaboração legislati-va como no caso canadense, expressa uma ação qualitativa que pode contribuir ao preenchimento legislativo das lacunas no nosso ordenamento, na medida em que otimizam a tomada de decisão sobre legislar de forma responsável de modo a propiciar condições para uma accountability legislativa, respeitada a liberda-de do legislador em escolher, de forma motivada e transparente.

Um dos aspectos da Legística, a metodologia da avaliação legislati-va colocam em evidencia o papel das informações idôneas para a tomada de

Tradução de Edson Bini. Sāo Paulo: Editora Quartier Latin, 2005. pp. 176-184.364 “O juiz tem a obrigação de decidir os litígios que lhe são submetidos sob pena de denegação de justiça. Quando os fatos tratados são certos, estáveis, não evolutivos, esta obrigação é menos problemática do que quando o juiz é confrontado a prognósticos aleatórios e indeterminados em campos pouco seguros e em contínua transformação. Nesta última constelação, a priori, não se exclui que a evolução dos fatos possa levar, por vezes, a uma violação dos direitos fundamentais. Obrigado a julgar, não podendo postergar sua decisão indefinidamente, pode o juiz, em benefício da dúvida, simplesmente ignorar a incerteza da situação e se proibir de apor um veto à ação litigiosa ou deve, num espírito de precaução, se opor? Confrontada a tal situação, em contextos tão diversos quanto a segurança de um novo tipo de instalação nuclear, os efeitos do consumo de maconha ou os impactos de uma nova regulamentação relativa ao aborto, a Corte Constitucional Federal alemã desenvolveu uma jurisprudência original no tocante ao controle da constitucionalidade das leis impondo ao legislador uma obrigação de vigilância e de correção legislativas (Beobachtungspflicht, Korrektur-oder Nachbesserungspflicht) quando subsistir qualquer incerteza relativa aos efeitos da lei sobre os direitos fundamentais. Em outras palavras, o juiz constitucional obriga o legislador a reunir e explorar sistematicamente os dados necessários a uma avaliação dos efeitos produzidos pela lei e corrigi-la em função desta avaliação”. FLüCKIGER, Alexander, traduzido do francês por Marilúcia ChamarelliRevisão de Fabiana de Menezes Soares. A obrigação jurisprudencial da avaliação legislativa: uma aplicação do princípio da precaução aos direitos fundamentais Senatus, Brasília, vol.7, n.1, pp.14-23, jul. 2009.365 SOARES, Fabiana de Menezes. Teoria da Legislação... p.130

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decisão tanto por parte do Executivo, quanto do Legislativo, se as politicas e a legislação possuem um caráter ideológico, a avaliação legislativa apoia a sua fundamentada escolha.366

Neste sentido, o âmbito de incidência da Lei de Acesso à Informação inclui dentre os seus destinatários-beneficiários o Executivo, Legislativo e Ju-diciário que também podem solicitar informações entre si367 o que possibilitará,

366 MENEGUIN, Fernando Borato. A avaliação de impacto legislativo no Brasil. Textos para Discussão 70. Brasília: Centro de Estudos da Consultoria do Senado, março de 2010. pp.03-19. Sobre os aspectos simbólicos da produção do direito: CHEVALLIER, J. – A racionalização da produção jurídica. Legislação. Cadernos de Ciência de Legislação. 3 (1992) 9-23.Oeiras/Portugal: Instituto Nacional de Administração. 367 Art. 1o  Esta Lei dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal. Parágrafo único.  Subordinam-se ao regime desta Lei: I - os órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, incluindo as Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público; II - as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Art. 2º  Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, às entidades privadas sem fins lucrativos que recebam, para realização de ações de interesse público, recursos públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos congêneres. Parágrafo único.  A publicidade a que estão submetidas as entidades citadas no caput refere-se à parcela dos recursos públicos recebidos e à sua destinação, sem prejuízo das prestações de contas a que estejam legalmente obrigadas. Art. 3o  Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção; II - divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações; III - utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação; IV - fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública; V - desenvolvimento do controle social da administração pública. Art. 4º  Para os efeitos desta Lei, considera-se: I - informação: dados, processados ou não, que podem ser utilizados para produção e transmissão de conhecimento, contidos em qualquer meio, suporte ou formato; II - documento: unidade de registro de informações, qualquer que seja o suporte ou formato; III - informação sigilosa: aquela submetida temporariamente à restrição de acesso público em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado; IV - informação pessoal: aquela relacionada à pessoa natural identificada ou identificável; V - tratamento da informação: conjunto de ações referentes à produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transporte, transmissão, distribuição, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação, destinação ou controle da informação; VI - disponibilidade: qualidade da informação que pode ser conhecida e utilizada por indivíduos,

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juridicamente, a formação, também, uma rede de cooperação nas suas respecti-vas elaborações normativas.

A inclusão da dimensão avaliativa (durante a elaboração normativa) na interpretação do sentido de “elaborar” prescrito na LC 95/98. Tal inclusão se coaduna com os princípios de razoabilidade, finalidade, proporcionalidade e eficiência positivados em nosso sistema normativo, além de concorrer, preven-tivamente, para dirimir óbices futuros no plano da eficácia técnica e social do ato normativo a ser elaborado.

equipamentos ou sistemas autorizados; VII - autenticidade: qualidade da informação que tenha sido produzida, expedida, recebida ou modificada por determinado indivíduo, equipamento ou sistema; VIII - integridade: qualidade da informação não modificada, inclusive quanto à origem, trânsito e destino; IX - primariedade: qualidade da informação coletada na fonte, com o máximo de detalhamento possível, sem modificações. Art. 5o  É dever do Estado garantir o direito de acesso à informação, que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão. Art. 6º  Cabe aos órgãos e entidades do poder público, observadas as normas e procedimentos específicos aplicáveis, assegurar a: I - gestão transparente da informação, propiciando amplo acesso a ela e sua divulgação; II - proteção da informação, garantindo-se sua disponibilidade, autenticidade e integridade; e III - proteção da informação sigilosa e da informação pessoal, observada a sua disponibilidade, autenticidade, integridade e eventual restrição de acesso. Art. 7º  O acesso à informação de que trata esta Lei compreende, entre outros, os direitos de obter: I - orientação sobre os procedimentos para a consecução de acesso, bem como sobre o local onde poderá ser encontrada ou obtida a informação almejada; II - informação contida em registros ou documentos, produzidos ou acumulados por seus órgãos ou entidades, recolhidos ou não a arquivos públicos; III - informação produzida ou custodiada por pessoa física ou entidade privada decorrente de qualquer vínculo com seus órgãos ou entidades, mesmo que esse vínculo já tenha cessado; IV - informação primária, íntegra, autêntica e atualizada; V - informação sobre atividades exercidas pelos órgãos e entidades, inclusive as relativas à sua política, organização e serviços; VI - informação pertinente à administração do patrimônio público, utilização de recursos públicos, licitação, contratos administrativos; e VII - informação relativa: a) à implementação, acompanhamento e resultados dos programas, projetos e ações dos órgãos e entidades públicas, bem como metas e indicadores propostos; b) ao resultado de inspeções, auditorias, prestações e tomadas de contas realizadas pelos órgãos de controle interno e externo, incluindo prestações de contas relativas a exercícios anteriores. 

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3.2 aS medIdaS pRovISóRIaS – mpS

A LC 95/98 foi regulamentada pelo Decreto 4176/2012 que por sua vez estabeleceu normas e diretrizes para a elaboração, a redação, a alteração, a consolidação e o encaminhamento ao Presidente da República de projetos de atos normativos de competência dos órgãos do Poder Executivo Federal, além de positivar um instrumento de avaliação legislativa: a check list sobre a quantidade e qualidade dos futuros impactos, disposta no seu Anexo 1 (Ques-tões que devem ser analisadas na elaboração de atos normativos no âmbito do Poder Executivo).

Consoante, a doutrina e a experiência jurídica em sede de elaboração legislativa nos últimos 30 anos, retromencionada, um ato normativo nacional consagrou a avaliação legislativa, através de modelo analítico de avaliação de impacto, ao densificar o sentido de elaboração presente na LC 95/98.

Com o fim de concorrer para a garantia de condições de decidibili-dade, eficácia técnica e social (inclusive sob o ponto de vista dos destinatários, efetividade) do futuro ato normativo inspirada no modelo redacional do U.S. Code 368 (que prenuncia, por meio de título, o tema a ser tratado), foram pres-critas diversas regras em prol da unidade, homogeneidade, articulação lógica, clareza e legibilidade do texto, vejamos:

Objeto e AssuntoArt. 7º O primeiro artigo do texto do projeto indicará o objeto e o âmbito de aplicação do ato normativo a ser editado.§ 1º O âmbito de aplicação do ato normativo será estabelecido de forma específica, em conformidade com o conhecimento técnico ou científico da área respectiva.§ 2º O projeto de ato normativo terá um único objeto, exceto quando se tratar de projeto de codificação.§ 3º Os projetos de atos normativos não conterão matéria estranha ao objeto a que visa disciplinar, ou a este não vinculado por afinidade, pertinência ou conexão.Art. 8º Idêntico assunto não será disciplinado por mais de um projeto de ato normativo da mesma espécie, salvo quando um se destinar, por remissão expressa, a complementar o outro, considerado básico.Todavia, a crônica legislativa de nosso país demonstra a quantas anda

368 Disponível em: http://uscode.house.gov Acessado em: 17.09.2012.

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a observância da legalidade em sede de elaboração legislativa, con-forme o emblemático caso a seguir relatado. Em 26 de novembro de 2010 foi publicada a Medida Provisória 513, cuja ementa prenuncia-va uma miríade de temas, sem qualquer conexão entre si, e também omitia tema que se referia a encargos de natureza financeira (despesa) de ajuda humanitária ao Haiti: Autoriza o Fundo de Compensação de Variações Salariais - FCVS a assumir, na forma disciplinada em ato do Conselho Curador do Fundo de Compensação de Variações Salariais - CCFCVS, direitos e obrigações do Seguro Habitacional do Sistema Financeiro da Habitação - SH/SFH, oferecer cobertura direta a contratos de financiamento habitacional averbados na Apólice do SH/SFH, autoriza o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte - DNIT a utilizar recursos federais em apoio à transferên-cia definitiva do domínio da malha rodoviária federal para os Estados, acresce o Porto do Polo Industrial de Manaus no item 4.2 da Relação Descritiva dos Portos Marítimos, Fluviais e Lacustres, integrante do Anexo do Plano Nacional de Viação, aprovado pela Lei no 5.917, de 10 de setembro de 1973, e dá outras providências. (…)Art. 9º Fica a Casa da Moeda do Brasil - CMB autorizada a doar cem milhões de cédulas de gourdes à República do Haiti, para auxiliar na recomposição do meio circulante daquele País.§ 1º O objeto da doação prevista no caput será fabricado pela CMB, a quem competirá providenciar o transporte até o destino.§ 2º A despesa envolvida na doação prevista no caput não poderá ultrapassar R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais) e os custos serão suportados pela CMB.

Esta MP foi convertida na Lei 12.409, em 25 de maio de 2011, com poucas modificações no seu texto original, não obstante a LC 95/98 e o Decreto 4176/2002.

No mundo da vida, tal estratégia de aglutinação de temas, desconexos e com diferentes impactos, frustram a possibilidade do amplo debate na arena legislativa, aberta, pública, passível de controle social, além de traduzir-se em claro amesquinhamento do contraditório no processo legislativo369.

O ativismo legislativo do Executivo, nesses moldes, ė favorecido pelo modelo vigente de tramitação das Medidas Provisórias, a ser modificado via PEC 70/2012, em tramitação (parecer aprovado pela Comissão de Constituição

369 Sobre a difusão de modelos processuais de contraditório e seu sentido na formação da lei em sociedades pluralistas. SOARES, Fabiana de Menezes. Teoria da Legislação... pp.222-230.

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e Justiça – CCJ/ Câmara dos Deputados).O outro lado, dessa equação responde pela demanda do Legislativo

em legislar sem pautas trancadas, apesar da conforme o posicionamento do hoje Vice-Presidente da República, à época Presidente da Câmara dos Deputados.

Michel Temer370 traçou um paralelo entre a disciplina de tramitação das MPs antes e depois da Emenda 32 que modificou o art 62, por sua vez den-sificado pela Resolução n°1/2002 do Congresso Nacional (dispõe sobre apre-ciação, pelo Congresso Nacional das Medidas Provisórias) que melhorou as possibilidades de controle do Legislativo:

a) Medidas Provisórias anteriores à Emenda Constitucional nº 32, de 2001

Medidas provisórias – Edição e Reedição por Governo (1988-2001)*

Medidas Provisórias

Governo

Total Geral

Sarney Collor Itamar FHC (1º) FHC (2º) Originárias 125 89 142 160 103 619Reeditadas 22 70 363 2.449* 2.587 5.491Convertidas 96 74 71 130 98 473Revogadas 2 5 5 12 4 28Sem eficácia 6 8 15 3 2 34Rejeitadas 9 11 0 1 1 22

*Anteriores à EMC nº 32, de 11/09/2001.**Inclui 699 reedições de medidas originárias de governos anteriores.***Inclui 137 reedições de medidas originárias de governos anteriores.

Fonte: COUTO, Cláudio. O Segundo governo FHC: coalizações, agendas e instituições. Tempo social: revista de sociologia da USP, vol. 15, n.2, 269-301, nov. de 2003.

370 Deixem o Legislativo legislar. Senatus, Brasília, vol.7, n.1, pp.12-13, jul. 2009.

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b) Medidas Provisórias posteriores à Emenda Constitucional nº 32, de 2001.

Medidas provisórias – Edição por Governo (2001*- 2009).

Medidas Provisórias Governo Total Geral

FHC (2º) Lula (1º) Lula (2º) Editadas 102 240 119 461Convertidas 84 201 90 375Em tramitação -- -- 15 15Prejudicadas 2 2 -- 4Rejeitadas 14 9 7 30Sem eficácia 1 8 3 12Vetadas** 1 0 -- 1Revogadas 0 2 4 6

*Posteriores à EMC nº 32, de 11/09/2001.**Foi vetado o projeto de lei de conversão.

Fonte: Página da Presidência da República na internet (www.presidencia.gov.br).

A discussão sobre a apropriação da agenda do Legislativo371, acres-centa outros contornos paradoxais àqueles expressos nos casos de omissão le-gislativa, mas curiosamente os quadros abaixo relevam as peculiaridades que cercam a tramitação das proposições do Executivo (em comparação com as demais), em função das possibilidades de debate. De um lado, as proposições que veiculam políticas apropriadas por meio de iniciativas privativas (como Mps e projetos de lei de sua competência), de outro os projetos de lei para os quais as possibilidades de maior ou menor incremento do discussão variam de acordo com a disposição governamental para a cooperação na elaboração com-partilhada com o Legislativo372:

371 Em razão do recorte de análise do presente artigo interessa-nos o último indicador apontado pelos autores, a saber, os tipos de proposições utilizadas pelo Executivo para veicular a apropriação da agenda legislativa. SILVEIRA E SILVA, Rafael e ARAÚJO, Suely Mara Vaz Guimarães. A apropriação da agenda do Legislativo: como aferir este fenômeno? Textos para Discussão 76. Brasília: Centro de Estudos da Consultoria do Senado, setembro de 2010. pp.01-40. 372 Idem, p.13-14 Os autores definem Projeto de lei como projetos de tramitação independente

COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

264

MPV

- Validade imediata;

- Rito simplificado

PLI

- Possibilidade de requisição de urgência;

- Maior independência do governo e desenvoltura dos

líderes da coalização

MPV

- Menor possibilidade para requerer urgência

- Maior chance para debates e modificações ao longo dos

debates nas comissões

b.1 Esquemas comparativos de proposições quanto às possibilidades de debate

A PEC 70/2012 propõe a submissão do Projeto de Lei de Conversão (PLV) a um juízo prévio acerca do atendimento dos pressupostos constitucio-nais (preliminarmente ao exame pelo plenário) , a vedação da reedição de MPs na mesma sessão legislativa373 e da prorrogação da sua vigência, o aumento do prazo para manifestação da Câmara dos Deputados e Senado Federal (o que incentiva maior debate), a vedação expressa de que tanto a Medida Provisó-ria (e portanto a elaboração normativa do Executivo deverá se conformar ao comando constitucional) quanto o Projeto de Lei de Conversão não conterão matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão.

(PLI): a “proposições apresentadas que, por manobras e negociações, o governo impede que a ela sejam anexadas outras matérias semelhantes, que já estejam tramitando no Congresso; nesse caso, o Executivo demonstra preferir que sua proposição não seja influenciada pelos debates e abordagens das demais proposições (…);os projetos de lei apensado (PLA) são proposições apresentadas pelo governo que entram no processo de tramitação normal; significa dizer que, havendo outro(s) projeto(s) de lei que trate(m) do mesmo tema, existe possibilidade concreta da proposta do governo ser anexada a estas e tramitarem em conjunto; neste caso, infere-se que o governo admite que sua proposta seja submetida a um maior número de debates e discussões.” 373 Art 57 da CFRB/2012. O Congresso Nacional reunir-se-á, anualmente, na Capital Federal, de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1 ° de agosto a 22 de dezembro. (Sessão legislativa ordinária)

265

COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

c) O Executivo e o Legislativo na arena do Congresso Nacional: quantitativo de proposições 2006 a 2012

Fonte: Centro de Documentação e Informação – Cedi - Coordenação de Relacionamento, Pes-quisa e Informação – CORPI, Câmara dos Deputados por meio de solicitação - Lei de Acesso à Informação- protocolo n° 169351 -82A2102819680, que disponibilizou a listagem das propo-sições, em setembro de 2012, que e também: Disponível em: http://www.relacoesinstitucionais.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/assuntos_parl/propostas-de-emenda-a-constituicao-1, http://www.relacoesinstitucionais.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/assuntos_parl/pro-jetos-de-lei/. Acessado em: 29.09.2012.

Origem esituação

Medidasprovisórias

Leis(projetos de

lei deconversão,

projetosde lei)

Projetosde leis

ordinárias(PL)

Projetosde leis

complementares(PLC)

Propostasde

EmendasConstituição

(PEC)

Decretos Legislativos PDC*

Total

Proposiçõesdo

executivo168 278 15 7 68

Proposiçõesdo

legistativo(Câmara dosDeputados e

SenadoFederal)

4.846 9.222 825 304 5197

Proposiçõesdo

executivotransformadas

emnormas

jurídicas

249 117*** 5 3 74

Proposiçõesdo

executivotransformadas

emnormas

jurídicas

272 9 7 5 93

*Os decretos legislativos são atos privativos do Congresso Nacional e meio para sustação da eficácia de atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa (Art.59, inciso VI e art. 49 da CRFB/88).

COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

266

Na análise qualitativa, pode ser observado que apenas 1,9% dos Pro-jetos de Decreto Legislativo-PDC se transformaram em normas jurídicas, sendo que dos 304 PDCs apresentados, cerca de 59% são proposições que tem como objeto a sustação de atos normativos de competência da Presidência, dos Minis-térios, Agências Reguladoras, órgãos autônomos e nenhum foi aprovado.

Instrumento para controle dos atos do Executivo, os PDCs aprovados foram aqueles cujo objeto versa a escolha de membros do Tribunal de Contas da União/TCU, disciplina de relações jurídicas decorrentes da conversão de Medi-das Provisórias, e a realização de plebiscito para criação do Estado de Carajás e o referendo sobre a hora local do Estado do Acre.

A ausência de Leis Complementares que responde por boa parte das omissões legislativas, por lacunas no sistema normativo, encontrou uma franca produção legislativa por parte do Legislativo que superou o Executivo, todavia, enquanto o Executivo aprovou cerca de 42,8% das suas PECs, o Legislativo permaneceu no patamar de cerca de 11,7%.

Em termos proporcionais, o Executivo obteve maior êxito quanto à aprovação das suas proposições: 1,9% dos projetos do Legislativo se transfor-maram em normas jurídicas contra 79% de aprovação daqueles decorrentes de iniciativa do Executivo.

4. poR uma metodologIa compReenSIva paRa o pRoceSSo de enucleação do JuRídIco

A comunicação acerca do sistema normativo em vigor sustenta a cir-culação da informação jurídica de forma compreensível por parte do destinatá-rio-executor, do destinatário-beneficiário e do interessado ou possível afetado.

Para estes diferentes tipos de destinatários, a identificação da arquite-tura da tipologia vigente de atos normativos (e as propostas de tipologia à luz de processos de simplificação) é necessária tanto para o acesso ao texto, quanto para a definição dos atos normativos a serem revogados durante processos de elaboração normativa encetados pelo Legislativo, Executivo e Judiciário.

267

COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

a) Modelagem de tipologia de atos normativos de sistema normativo federal/nacional 374

(Atos normativos secundários produzidos pelo Ministério da Agricul-tura nas áreas de saúde animal, sanidade vegetal, segurança alimentar afetos ao direito fundamental à alimentação).

Esta arquitetura da tipologia de atos normativos veículos de fontes do direito obviamente cria conflitos dentro da Federação que impactam, nota-damente, o STF: hoje há mais de 5.000 processos nesta seara o que ensejou o lançamento de um Projeto Piloto de Conciliação de Conflitos Federativos375.

374 Instrumento para reconstrução e análise de cadeias de fontes (arquitetura de tipologia de atos normativos) desenvolvida no curso de pesquisa sobre Legislação em defesa agropecuária financiada pela Fapemig e Cnpq. SOARES, Fabiana de Menezes. Legística aplicada à defesa agropecuária – Diagnóstico e Prognóstico de um sistema normativo complexo. Tendências e Perspectivas do Direito Administrativo. Uma visão da Escola Mineira.Belo Horizonte: Editora Forum, 2012. pp. 397-398.375 Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=218026. Acessado em: 14.09.2012. (...) ”A ideia surgiu a partir da constatação de que tramitam hoje, no STF, mais de cinco mil processos que tratam de conflitos entre entes da Federação – e envolvem desde temas complexos, como propriedades em áreas de fronteira, até causas mais simples, como execuções de débitos de pequeno valor. “Grande parte desse contencioso poderia ser reduzida ou

portaria interministerial

Leis complementares

CONSTITUIÇÃO

FEDERALDecretos-lei

Decretos

Medidas provisórias

Leis

ato interministerial

decisão

circular

portaria conjunta

Resolução do Senado

recomendação

portaria interinstitucional

instrução interna

decisão normativa despacho

instrução de serviçõ

instrução

nota técnica

ofício circular

resolução

portaria

instrução normativa

instrução normativa conjunta

norma interna

COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

268

Se de um lado há uma definição mais consolidada de espécies nor-mativas por parte do Legislativo, no caso do Executivo376 há uma proliferação criativa de espécie os atos normativos secundários da sua competência e na la-cuna quanto á disciplina dos seus conceitos, competências que permitam com-preender a sua hierarquia.

O cipoal normativo no qual os cidadãos brasileiros estão imersos, fru-to de uma produção legislativa exacerbada, oriunda dos diversos entes estatais (Municípios, Estados, Distrito Federal e União) poderia ser melhorado caso novas técnicas e experiências de simplificação, uniformização e harmonização

evitada se contássemos, no âmbito da própria Administração Pública, com ambiente institucional em que se pudesse, por meio do diálogo, estabelecer uma cultura de consenso na solução desses conflitos, de forma muito mais célere, eficaz e econômica do que pela via judicial”, afirmou o ministro Gilmar Mendes no convite para o primeiro encontro. Para a primeira reunião, foram convidados os procuradores-gerais dos estados das regiões Norte e Centro-Oeste, o consultor-geral da União, a secretária-geral de Contencioso da AGU, o procurador-geral federal, o diretor da Câmara de Conciliação e Arbitragem da AGU e o presidente da Associação Nacional dos Procuradores de Estado (Anape). Além da carta convite assinada pelo ministro Gilmar Mendes, o juiz Jurandi Borges Pinheiro, que atua como auxiliar no gabinete,fez contato direto com os convidados. “A informalidade é um dos componentes que favorecem a conciliação”, explica o magistrado, que tem experiência em mutirões de conciliação na Justiça Federal no Rio Grande do Sul.  “A receptividade foi ótima. Hoje, há um reconhecimento da importância das formas alternativas de solução de conflitos, que muitas vezes surgem apenas por problemas de comunicação: como não sabem com quem conversar, as partes acionam a Justiça”. O projeto pretende examinar, inicialmente, as ações cíveis originárias em trâmite no gabinete do ministro Gilmar Mendes que envolvam os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins (Região Norte) e Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás (Centro-Oeste). A ideia, porém, é envolver todos os Estados da Federação.(...). O ministro Gilmar Mendes observa que existem iniciativas de sucesso de conciliação, como a Câmara de Conciliação e Arbitragem da AGU, que atua na solução de controvérsias entre órgãos da Administração Federal. “Existe ainda, contudo, bastante espaço para uma atuação mais criativa nesse campo”, defende o ministro. “Poderíamos pensar, aqui, em práticas conciliatórias também em relação a conflitos entre os diversos entes da federação”.376 Vide Portal LexML. Disponível em: http://www.lexml.gov.br. Acessado em: 15.09.2012.” Trata-se de um portal especializado em informação jurídica e legislativa. Pretende-se reunir leis, decretos, acórdãos, súmulas, projetos de  leis entre outros documentos das esferas federal, estadual e municipal dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todo o Brasil: uma rede de informação legislativa e jurídica que pretende organizar, integrar e dar acesso às informações disponibilizadas nos diversos portais de órgãos do governo na Internet.O LexML significa mais do que a  unificação da informação legislativa e jurídica em um único portal: trata-se de uma infraestrutura que permitirá manipular eficazmente a gigantesca quantidade de informações existentes no país. O LexML facilitará o acesso do cidadão à informação, cumprindo assim o preceito constitucional que define o cidadão como o titular do direito de acesso à informação (CF, Art 5º, XIV), e contribuirá na agilização de processos judiciais, administrativos e legislativos. O LexML é uma das peças-chave do Governo Eletrônico, tendo já sido recomendado pela versão 4.0 do E-Ping, padrão de Interoperabilidade do Governo Eletrônico”.

269

COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

fossem não só objeto de estudo, mas positivadas (e efetivadas) em normas que alcancem a atividade de legislação não só do Parlamento, mas do Executivo.

b) Modelagem de tipologia de atos normativos de sistema normativo estadual

(Atos normativos secundários produzidos por secretarias e órgãos es-taduais com competência sobre licenciamento ambiental e zoneamento)

Fonte: SIAM- Sistema Integrado de informação Ambiental. Disponível em: http://www.siam.mg.gov.br/sla/action/Consulta.do. Acessado em: 15.09.2012.

Enquanto isso, Estados Membros e Municípios no exercício de suas competências constitucionais são impactados por atos normativos secundários cuja reconstrução das cadeias de fontes é complexa e repercute no grau de cer-

Delib. COPAMRes. Conj. SEMAD/SETOC/SEPLAG

DeliberaçãoRes. Conj. SEMAD/AGE

Res. Conj. SEMAD/SECTES/SEPLAG

Res. Conj. SEMAD/SECTES/IGAM/CETE

Port. IEFRes. CONAMARes. Conj. SEMAD/SETOP/

SEPAG

Res. Conj. SEMAD/FEAM/SEPLAG

Res. Conj. SEMAD/BDMG

Res. Conj. SEMAD/SES/SEPLAG

Res. Conj. SEMAD/SEDRU/SEPLAG

Res. SEMAD

Port. FEAM

Delib. Conj. CERH-MG

Delib. Norm. COPAM/CERH

Delib. Norm. Conj.COPAM-CERH

Memo CircularRes. Conj. SEMAD/

FEAM

Port. Conj. FEAM/IEF/IGAM

Delib.Con. Admin.IEF

Delib.CERH-MGInst. Norm. (INCRA)

Res.CERH-MGDiretiva COPAM

Res.CERH-MGDiretiva COPAM

Delib. Norm. COPAMPort Conj. FEAM/IEF

Inst. Norm. (Chico Mendes)Res. COPAM

Res. Conj. SEMAD/SEDRURes. conj. SEMAD/SEDE/SEPLAG

Port. IGAM

Res. Conj. SEMAD/IEF/FEAM/IGAM

Res. Conj. SEMAD/IGA

CONSTITUIÇÃO

FEDERAL

Lei Delegada

Decreto legislativo

Decreto federalDecreto lei

Decreto Estadual

Constituição do Estado

Lei Complementar

Lei

COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

270

teza sobre o direito vigente. Esta situação acaba por novamente tensionar o cír-culo de produção do direito, alargando os limites da indeterminação do sistema normativo, pois dificulta a identificação de atos normativos a serem incluídos na cláusula de revogação disposta no art 9° da LC 95/98: “A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas”377.

Esta constatação se faz mais evidente em campos normativos, com alta densidade de regras editadas em fluxo contínuo, por diversas fontes, em graus e hierarquias distintas.

Neste particular, a Legimática oferece ferramentas e possibilidades de documentação jurídica que não só contribuem para otimizar a publicidade de atos normativos, bem como para propiciar acesso à reconstrução de cadeias de fontes e às normas vigentes. Tal situação enseja a introdução de elementos (muitas vezes sob a perspectiva da garantia de eficácia técnica) que interferem no sentido de normas de hierarquia superior acarretando problemas na esfera da validade material e da efetividade.

A qual categoria de destinatário interessaria a ausência de reconstrução da cadeia de fontes, com cristalina definição das revogações (e minimização das revogações tácitas) e maior transparência quanto ao acesso ao direito vigente?

4.1 a gaRantIa da IdoneIdade do texto noRmatIvo

Se a elaboração normativa analisada sob o ponto de vista sistemático e das tensões entre normas sobre produção de normas, neste contexto, o próprio texto da lei, acha-se vulnerabilizado apesar de publicado no Diário Oficial e portanto aparentemente válida.

Em estudo de caso, João Aberto Lima378 desenvolveu um instrumento de rastreamento/apuração do texto original de leis, a partir de um emblemático e singular pedido de informações realizado pelo Ministério Público Federal que culminou por demonstrar uma comédia de erros no texto da Lei Geral de Orça-mento (Lei 47):

[…] pedido de informação realizado pelo Ministério Público Federal (MPF) que questionou o Senado Federal “sobre quais mecanismos

377 LUZZATTI, Claudio – Abrogazione e indeterminatezza dell ordinamento giuridico L abrogazione delle leggi – un dibatito analítico- Quaderni di Filosofia Analítica del Diritto, pp. 65-75 Giuffrè: Milano, 1987. 378 LIMA, João Alberto de Oliveira. A apuração do texto original da Lei Geral de orçamento (Lei 4320/1964) a partir das Bases da Legislação Federal – Estudo de Caso. Brasília a. 48 n. 192 out./dez. 2011. pp.79-93.

271

COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

e providências podem ser adotadas para minimizar a incidência de erros na divulgação de textos legislativos, por meios eletrônicos”. Essa consulta foi motivada pela questão de ordem da decisão judicial proferida pelo Exmo. Juiz Federal Leandro Paulsen na qual consta-tou que as partes (Empresa Privada e União) trabalhavam com uma redação equivocada do § 4o do art. 1o do Decreto no 64.833/1969 que estava disponível na internet, inclusive em sítios de órgãos oficiais. Segundo a decisão, exarada na Ação Ordinária no 87.00.01353 6/ RS em 18 de dezembro de 2009, o entendi mento equivocado poderia ter “implicado prejuízos vultosos à União”.

O estudo evidencia além de questões relativas às condições para co-nhecimento da lei379 o uso de ferramentas que permitam a análise simultânea de bases de dados legislativos (diálogo entre as fontes do direito de natureza legal), multivigentes, na plataforma do LEXML.

O fato de estarmos em ambiente de legislação multinível por si só justificaria uma Política de Boa Legislação que tornasse a LC/95 mais eficaz no que se refere a clara vinculação de seus preceitos ao modelo de validade (o que tornaria mais fácil seu controle judicial) cujo cumprimento responderia pela devido processo de elaboração de um dado ato normativo.

4.2 a legImátIca380 a SeRvIço da ReconStRução do cenáRIo vIgente (e doS ImpactoS futuRoS)

Na última década, o crescimento vertiginoso das mídias propiciou um grande acesso e uma disponibilização de conteúdos em níveis até então jamais vistos. A informação jurídica também sofreu o impacto desta “Idade Tecnológi-ca,” mas, a sua compreensão e o seu ordenamento sistêmico não se desenvolve-ram, ainda, na mesma proporção.

As questões ligadas ao uso da tecnologia da informação aplicadas à atividade de legislação, à gestão de bancos de dados legislativos e ao suporte

379 Sobre a presunção de conhecimento da lei e a crítica ao modelo de publicidade oficial, vide SOARES, Fabiana de Menezes. Teoria da Legislação... pp. 251-300. No que se refere à relação entre gestão da documentação em informação jurídica e o exercício da cidadania, Op.cit. em Apuração do texto original da Lei Geral de Orçamento....p 80; PASSOS, Edilenice. Requisitos recomendáveis para as bases de legislação estadual e distrital. Senatus, Brasília, vol. 7, n. 2, p. 16 23, dez. 2009.380 MERCATALI, P. Verso un software di auito ala redazione dele leggi. Atti del Convegno “Il diritto nel Nuovo Mondo- Facoltà di Giurisprudenza: Genova, 1996. O estudo de caso sobre o Lexedit foi elaborado na tese de doutorado já citada: SOARES, Fabiana de Menezes. Produção do Direito e Conhecimento da Lei à Luz da Participação Popular e sob o Impacto da Tecnologia da Informação...

COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

272

aos sistemas de apoio à decisão de legislar, ainda necessitam avançar em nossa realidade381.

Duas iniciativas serão destacadas pois atuam em momentos e pers-pectivas diferentes do círculo de formação de atos normativos, o Lexedit e o uso de sumário topográfico para ato normativo.

4.2.1 Lexedit: Um software para redação legislativa

O Lexedit382 do Senado Federal é um projeto que atua na melhoria da produção da informação jurídica no seu nascedouro, isto é atua na racionaliza-ção da linguagem do texto normativo que por sua vez recebe intervenções dos partícipes da elaboração legislativa.

Trata-se de projeto em curso e leva em consideração as peculiaridades na elaboração de atos normativos primários e administrativos do Senado Fede-ral. Vejamos a sua interface383:

381 SOARES, Fabiana de Menezes, BARROS, Louise Menegaz, FARAH, Natalia – Legimática: a tecnologia da informação aplicada à qualidade da produção legislativa. Legislação. Cadernos de Ciência de Legislação. 47 (2007) 53-75382 SOARES, Fabiana de Menezes, Teoria da Legislação... realizou estudo de caso sobre o Lexedit – Editor de textos normativos, desenvolvido pelo ITTIG - Istituto di Teoria e Tecniche dell’Informazione Giuridica de Florença no qual elencou e analisou suas funcionalidades. O projeto desenvolvido no Senado Federal. Prodasen, por João Holanda e João Alberto de Oliveira Lima. Disponível em: http://projeto.lexml.gov.br/noticias/lexedit. Acessado em: 15.09.2012383 Apresentação feita pelo Joao Alberto de Oliveira Lima, Analista de Informática Legislativa do Senado Federal, projeto desenvolvido pela Equipe do LEXML Equipe LexML: Marcos Fragomeni, João Rafael Nicola, Lauro Cesar Araujo, João Holanda. VII Encontro Nacional de Diretores-Gerais. II Encontro Nacional de Secretários-Gerais da Mesa. Brasília:10/agosto/2012.

273

COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

274

4.2.2 Sumário Topográfico do Código Civil Brasileiro

O segundo é um instrumento que permite uma visão sistemática, de um dado conjunto de normas jurídicas, condensada em um único esquema dinâ-mico de modo a compreender as suas linhas estruturantes daquele sistema: o su-mário topográfico do Código Civil Brasileiro384. Este instrumento não encontra similar na literatura de referência e pode ser usado como ferramenta tanto para avaliação de cenários de incidência normativa vigente, quanto permitir uma visão de um dado conjunto de regras, princípios, atos normativos de um dado subsistema normativo, de forma sintética e dinâmica. O que se segue é apenas a imagem, exemplificativa, da representação do Código Civil cujo acesso, via site, permite visualizar cada grupamento de artigos, por seção, título e livro385.

384 Disponível em: http://www.senado.gov.br/publicacoes/MLCC/. Acessado em: 15.09.2012. 385 Basta deslizar o cursor que esta mandala jurídica aponta as suas ramificações e articulações logico-formal. Cada quadrado e cada cor, representa um pedaço do Código Civil Brasileiro. A ferramenta que pode ser usada para qualquer legislação ou mesmo subsistema. O sumário topográfico foi apresentado durante as comemorações dos 10 anos do Código Civil, em 08/08/2012 durante o lançamento da obra Memória Legislativa do Código Civil, Brasília: Senado Federal 2012, de autoria de Edilenice Passos e Joao Alberto de Oliveira, na Câmara dos Deputados, , em quatro volumes: Volume 1 - Quadro Comparativo ,Volume 2 - Tramitação na Câmara dos Deputados - 1º Turno,Volume 3 - Tramitação no Senado Federal ,Volume 4 - Tramitação na Câmara dos Deputados - 2º Turno.

275

COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

concluSão

Neste contexto de incoerência do ordenamento, acima descrito, a edi-ção da Lei Complementar 95/98 alterada pela Lei Complementar nº 107, de 26/04/2001 (Dispõe sobre a Redação e Consolidação de Atos Normativos) e das normas administrativas contidas no Decreto 4176/2002 (Estabelece nor-mas e diretrizes para a elaboração, a redação, alteração, a consolidação e o encaminhamento ao Presidente da República de projetos de atos normativos de competência dos órgãos do Poder Executivo Federal) pareceu alvissareiro, na primeira hora, no sentido de elevar a cultura de legislação no país, que por sua vez, repercutisse na qualidade da elaboração, do acesso e da consolidação da legislação.

Todavia, tal presságio não se concretizou, aliás foi frustrado pelo pró-prio texto que contradiz os princípios que pretendeu positivar como informa-dores da atividade de elaboração, redação de atos normativos e notadamente, consolidação.

O advento da Lei de Acesso à Informação é uma importante ação para o incremento da avaliação legislativa no Brasil e o aprimo ramento da elabora-ção legislativa responsável em todo o círculo de produção do Direito.

Todavia, o amadurecimento das instituições democráticas no Brasil enseja por parte dos destinatários e dos interessados pelos atos normativos (leis e atos normativos secundários) uma atitude emancipatória em relação à com-preensão do universo jurídico que significa o conhecimento, a crítica e a vigi-lância sobre os processos de elaboração legislativa, que nos falam de uma peça no mosaico do que entendemos como “jurídico”.

COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

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4peRSpectIvaS de conStRução da cIdadanIa e da

SocIalIdade: um eStudo a paRtIR da étIca da magIStRatuRa

FranciScO cardOzO OliVeira

Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor do mestrado e da graduação em Direito no UNICURITIBA e de direito civil na Escola da Magistratura do Paraná, em Curitiba. Juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Paraná.

ViViane cOêlHO de SéllOS KnOerr

Doutora em Direito do Estado pela PUC/SP. Mestre em Direito das Re-lações Sociais pela PUC/SP. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/CAMP. Advogada. Professora Universitária em Graduação e Pós-Graduação é também coordenadora do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA-PR.

SumáRIo: Introdução. 1. Compreensão da ética e o lugar da ética profissional na realida-de brasileira. 2. O sentido do Código de Ética da Magistratura. 2.1 Contexto histórico do Código de Etica da Magistratura. 2.2. Fundamentos, deontologia e Código de Ética da Ma-gistratura. 3. Código de Ética da Magistratura: o sentido do compromisso com a cidadania e a socialidade. 3.1 Independência e imparcialidade do Magistrado. 3.2 Transparência do trabalho do magistrado. 3.3 Integridade pessoal e profissional do Magistrado. 3.4 Prudência e exercício da jurisdição. Conclusão. Referências.

IntRodução

Um Código de Ética da Magistratura não se restringe a um catálogo de deveres ou de modelos de comportamento socialmente esperados; em torno de normas éticas para a atividade dos juízes desenvolve-se todo um sentido de realização de justiça; capturar esse sentido constitui o objetivo da reflexão

277

COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

desenvolvida no artigo, que começa traçando um quadro da compreensão e do lugar da ética profissional na realidade brasileira e evolui, por meio de um pen-sar dialético, em busca de fixar o sentido do Código de Ética da Magistratura até um ponto de chegada, e ao mesmo tempo de partida e de abertura, em torno da questão do quanto o Código está de fato comprometido com o que deveria ser essencial para o trabalho do juiz, que é a construção da cidadania e da so-cialidade. O objetivo é o de, mediante uma análise crítica, verificar o quanto o Código de Ética da Magistratura está comprometido com uma premissa ética da presença do outro, fundamental para o resgate do sentido da ética e da moral na contemporaneidade de hegemonia da técnica e de valores mercantis, considera-da a realidade social brasileira.

1. compReenSão da étIca e o lugaR da étIca pRofISSIonal na RealIdade bRaSIleIRa

No contexto de busca de um fundamento pós-positivista para o direi-to tornou-se inevitável o confronto com a ética e a moral. Pode-se estabelecer pelo menos dois caminhos no debate em torno do papel da ética e da moral no direito; um deles de resgate da ética e da moral numa perspectiva metafísica, que se aproxima de posições jusnaturalistas, e outro da dialética de valores éti-cos e morais inseridos nos usos da linguagem, considerado, neste caso, a virada linguístico-pragmática de uma tentativa de superação do caráter solipsista no pensamento jurídico. A questão central do papel da ética e da moral no direito pode ser objetivada pelo que Manuel Atienza enfatiza no sentido da possibilida-de ou não da cognoscibilidade ética ou moral no confronto com uma perspecti-va puramente descritiva das normas integrantes do sistema jurídico386; ou seja, ele coloca em causa o papel que os valores jogam na compreensão do fenômeno jurídico. Assim, uma vez considerado que na contemporaneidade pode não ser suficiente pensar o direito como ciência descritiva, a compreensão do lugar da ética, para o efeito de situar o sentido do Código de Ética da Magistratura, pre-cisa assumir um sentido pragmático e crítico, de situar o problema dos valores inseridos na linguagem do mundo da vida, o que significa, em última instância, tratar da questão da ética e da moral na realidade de construção da socialidade no Brasil.

Segundo Gilberto Dupas, existe um paradoxo nas sociedades pós-mo-dernas: ao mesmo tempo em que repudiam valores, cresce a demanda por ética e preceitos morais; ele assinala que a ética desconstrói a moral e seus juízos de

386 Réplica a Pierluigi, In Analisi e diritto. Madrid: Marcial Pons, 2010. pp. 309-311.

COLEÇÃO JUSTIÇA, EMPRESA E SUSTENTABILIDADE Volume 3

278

bem e de mal porque geralmente está baseada numa metamoral, sem relação direta com a cultura. Mas, de acordo com Geraldo Dupas, a demanda por éti-ca decorre do vazio de valores provocado pelo incremento da tecnologia e da informação que fizeram desaparecer os fundamentos ontológicos, metafísicos e religiosos; não é mais possível estabelecer o que seja uma lei justa ou uma decisão justa; Dupas assinala que se tornou necessário reencontrar o dever-ser, em meio a incerteza e a deslegitimação.387

Em torno da incerteza e da deslegitimação, Daniel Hirata mostra como a cultura da periferia, por exemplo, repensa o problema da responsabi-lização e da ética confrontada com a luta pela sobrevivência que contrapõe o mercado e a vida; diz ele:

Este é o território que circulam os guerreiros, a figura dos que conse-guem “sobreviver na adversidade”, sabendo circular em um univer-so incerto, violento, de realidades fugazes, que muda a cada instan-te, também da informalidade, de relações ambíguas entre o lícito e o ilícito, espaços onde é difícil construir medidas precisas, cálculos exatos ou uma razão rigorosa. Poderíamos então esboça a segunda caracterização: a inversão dos valores e dos equilíbrios das polari-dades tradicionais da inteligibilidade, porque busca uma explicação pelo mais confuso, mais obscuro, mais desordenado, mais condenado ao acaso, pois o princípio de decifração dadas as relações sociais e de sua ordem visível é a confusão da violência, das paixões, dos ódios, das cóleras, dos rancores, dos amargores, é a obscuridade dos acasos, das contingências, de todas as circunstâncias miúdas que produzem os conflitos com desfechos violentos[...]”.“[...] A importância do valor da palavra se encontra no valor ético da responsabilidade, ou seja, da capacidade de responder sobre si no futuro. Esta é a maneira de desafiar a essência aleatória deste futuro incerto e de suas circunstâncias imprevisíveis. Trata-se de uma ca-pacidade de construir o tempo futuro, portanto, procedimento quase inverso do enquadramento jurídico moral da responsabilidade, sob o qual se responde pelo que se fez no passado. Aqui, a responsabilidade se constrói a partir da capacidade de realizar inteiramente uma pro-messa no futuro a partir de uma certa conduta, de um proceder. Qual futuro? Impossível responder, este é um mundo sem transcendência nenhuma, pura imanência inscrita na mais radical contingência das situações da vida “loka” um mundo que não promete nada, a não ser

387 Ética e poder na sociedade da informação – de como a autonomia das novas tecnologias obriga o rever o mito do progresso, 3. ed. São Paulo: Unesp, 2011. p. 77.

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a incerteza e a imprevisibilidade.388

A mesma premissa que coloca a necessidade de uma ética para o mun-do incerto e violento das cidades, pode estar na base dos fundamentos de um código de ética da magistratura; também a responsabilização do juiz não pode mais ser mensurada pelos atos passados, pela história de vida; a responsabiliza-ção dos atos do juiz depende de um proceder futuro para o qual não existem pa-râmetros certos e confiáveis; ou seja, a configuração socioeconômica que pode bloquear a evolução social, faz surgir a necessidade de “códigos de ética”, para o juiz e para a sobrevivência na vida em sociedade.

Um código de ética da magistratura também se justifica por razões econômicas porque permite uniformizar procedimentos e avaliar resultados e, ao mesmo tempo, ajuda garantir uma certa segurança jurídica das decisões ju-diciais, que esteja de acordo com modelos econômicos institucionalizados. O dever-ser da ética da magistratura precisa ser pensado numa perspectiva dialé-tica que, nos termos do pensamento de Alaôr Caffé Alves, não envolve apenas a norma ou a conduta tomados de forma isolada, mas o que na conduta é mani-festação do normativo e vice-versa389.

Torna-se necessário compreender o compromisso com a ética em um mundo dominado pela tecnologia e pela falta de referência a valores. O sentido do compromisso com a ética pode ser aquele formulado por Jurandir Freire Costa; diz ele,

A fé que suporta a prova da dívida é a dos que aceitam a condição da falta. O que não significa lamento vitimatório ou melancolia inativa. Dúvida não é convite à inação. É o que nos faz reconhecer a dignidade do outro, pois só a igualdade diante da dúvida nos define como seres capazes de agir eticamente. É na desproporção entre a fragilidade do saber e a magnitude do fazer que reside a grandeza do ato de justiça.390

O compromisso com a ética exige dúvida na fé e, ao mesmo tempo, remete para a necessidade de construção de uma moralidade que não está limi-tada ao plano puramente individual, mas diz respeito à presença do outro e à socialidade.

A emergência de códigos de ética na atualidade pode sugerir dificul-

388 Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida, tese de doutorado, USP, São Paulo, 2010.389 Dialética e direito - linguagem, sentido e realidade. Sâo Paulo: Manole, 2010.390 O ponto de vista do outro, figuras da ética na ficção de Graham Greene e Phillip K. Dick. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2010. p. 73.

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dades para a evolução social, porque bloqueada a construção de uma moralida-de pelo atual estágio da tecnologia e de configuração da vida social e econômi-ca. Nesse sentido, conforme lembra André Duarte, na Carta sobre o humanismo Heidegger chamava a atenção para a crescente demanda por ética como sinto-ma da desorientação que advém quando “só se pode confiar na estabilidade do homem da técnica, entregue à massificação, planejando e organizando o todo de seus planos e ações em conformidade apenas com a técnica”, a ponto de não saber mais como se comportar senão seguindo à risca preceitos e regras; daí a proposta de Heidegger de possibilidade de uma relação ética que envolve o cuidado de si e o cuidado do outro, ou seja, como diz André Duarte, a escuta do chamado do outro que sou como possibilidade do encontro de outrem em sua alteridade, sem o que a relação ética não é possível391.

Assim, a observância de um Código de Ética somente faz sentido no comportamento aberto para a alteridade, o que evidentemente, não se reduz a uma perspectiva de normas éticas estritamente disciplinares e punitivas ou mesmo de cunho profissionalizante e produtivo.

2. o SentIdo do códIgo de étIca da magIStRatuRa

A responsabilidade administrativa, civil e criminal dos magistrados está integrada por disciplina normativa desde o texto da Constituição da Repú-blica, passando pela Lei Orgânica da Magistratura, até disposições integrantes de leis processuais civis e penais.

A Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar n.º 35/1979) re-gula as garantias da magistratura consistentes na vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. O juiz perde o cargo em virtude da prática de crime comum ou de responsabilidade, com sentença transitada em julgado, ou em processo administrativo, quando comprovado o exercício de outra função, salvo o magistério, recebimento de valores em processos em julgamento ou o exercício de atividade político-partidária. A Lei Orgânica da Magistratura disci-plina ainda as prerrogativas dos magistrados entre elas o direito de portar arma, prisão especial, prisão por ordem escrita do Presidente do Tribunal, salvo prisão em flagrante, com imediata comunicação ao Presidente do Tribunal.

Entre os deveres do juiz a Lei Orgânica da Magistratura trata expres-samente do dever de cumprir e fazer cumprir as disposições legais e os atos de ofício; não exceder prazos para decisão ou sentença de forma injustificada; tratar com urbanidade as partes, membros do Ministério Público, Advogados,

391 Vidas em risco, crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

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e demais pessoas envolvidas no processo; residir na Comarca; comparecer ao local de trabalho e respeitar horários; fiscalizar subordinados; e manter conduta irrepreensível na vida pública e particular. O juiz está proibido de exercer co-mércio ou participar de sociedade comercial, salvo como acionista ou cotista; exercer cargo de direção em sociedade, associação ou fundação; manifestar por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento.

Como se observa, antes mesmo da edição do código de ética da ma-gistratura já estavam integrados ao ordenamento jurídico brasileiro inúmeras normas reguladoras do comportamento e da atuação do juiz, que recebiam uni-ficação sistematizadora desde a Constituição e a Lei Orgânica da Magistratura. As normas integradas à legislação ao longo do tempo não impediram a punição de atos de infração disciplinar, bem como a prática de crimes.

O conjunto de normas regulador do comportamento e da atuação do juiz, contudo, parece não ter sido suficiente para dispensar a edição de um có-digo de ética da magistratura. É nesse contexto que deve ser pensada também a necessidade de normas éticas para regular o comportamento do juiz.

O problema da vinculação aos princípios éticos deve ser visto em duas perspectivas: uma que diz respeito aos fundamentos de justiça no ato de julgar e outra que diz respeito ao caráter sancionador da regra ética para a pessoa do juiz.

No primeiro aspecto, considerados os fundamentos de justiça, na perspectiva do positivismo jurídico, o princípio ético somente vincula acaso inserido no âmbito da norma. Numa correlação entre direito e moral, a partir do pensamento de Ronald Dworkin, por exemplo, poderia ocorrer vinculação mesmo quando o princípio não esteja expresso em norma positiva.

No segundo aspecto, no Código de Ética da Magistratura, a vincula-ção emerge da premissa de que as regras éticas complementam o que consta da legislação disciplinadora dos deveres do juiz.

De qualquer modo, uma vez considerado que já haviam normas disci-plinares suficientes para a punição de atos infracionais ou práticas criminosas, a indagação que surge é a da necessidade de edição de um código de ética da magistratura, sendo certo que não estava em causa espécie de combate à impu-nidade por ausência de instrumentos legais, tão comum nos discursos moralis-tas ou moralizantes, de certo modo recorrentes na realidade social brasileira.

Uma resposta a essa questão pode ser encontrada naquilo que Guiller-mo Lariguet assinala, mencionando Manoel Atienza, de que existe uma peculia-ridade na exigência de virtudes e de uma ética judicial, dado que a aplicação do direito não implica apenas o manejo de conhecimento instrumental, mas cobra uma justificação moral de fins e de meios, em um contexto em que não existe acordo sobre como resolver os conflitos.392

392 Virtudes, ética profesional y derecho – una introducción filosófica. Montevideo: B de F Editores,

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De fato, a justificativa para um código de ética da magistratura diz respeito diretamente ao ato de aplicação do direito e, desse modo, a finalidade desse tipo de regulação não pode ser objetivada sem levar em conta o quanto ela está comprometida com os ideais de justiça na vida social.

2.1 contexto hIStóRIco do códIgo de étIca da magIStRatuRa

O Código de Ética da Magistratura está compromissado com a pro-posta Íbero-americana de Ética Judicial; ganhou ênfase a necessidade de es-tabelecer princípios básicos para os julgadores; consolidou-se o propósito de realizar esforços para a aprovação de um Código de Ética em todos os países da Íbero-américa. De acordo com o postulado, o objetivo dos códigos de ética Íbero-americanos devia ser o de incrementar a confiança e a autoridade moral dos julgadores. O Código Modelo proposto está dividido do seguinte modo: independência, imparcialidade, motivação, conhecimento e capacitação, justiça e equidade, responsabilidade institucional, cortesia, integridade, transparência, segredo profissional, prudência, diligência e honestidade profissional.

O Conselho Nacional de Justiça, ao editar o Código de Ética da Ma-gistratura, deu cumprimento à diretiva colocado pelos compromissos com a proposta Íbero-americana de Ética Judicial. Como se observa, a edição do Có-digo de Ética da Magistratura não esteve determinada apenas pela necessidade de coibir ações nocivas à prática judicial por parte dos juízes brasileiros; antes, cumpria atender os reclamos da comunidade internacional por uma regulação ética dos comportamentos capaz de aumentar a confiança e a autoridade moral de juízes.

Logo, impõe-se verificar duas questões: primeiro, as razões e a exten-são da perda de confiança e de autoridade moral dos julgadores subjacentes à necessidade de uma regulação ética; segundo, a capacidade das normas éticas, para além da regulação jurídica já existente, de assegurar confiança e autoridade moral dos julgadores. A resposta a essas questões somente se viabiliza na me-dida em que investigados os fundamentos do Código de Ética da Magistratura.

A perda da confiança e da autoridade moral dos julgadores pode estar relacionada à própria insegurança constitutiva da sociedade pós-moderna para o que a existência de um código de ética da magistratura poderia não ser remédio suficiente para os seus males.

2012. p. 43.

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2.2. fundamentoS, deontologIa e códIgo de étIca da magIStRatuRa

Um código de ética da magistratura respalda um compromisso com um determinado fundamento de justiça. Daí a preocupação do Código de Ética da Magistratura com a independência, a imparcialidade e a prática da prudência por parte do juiz. O comportamento ético, portanto, não tem uma componente estritamente individual; em torno do comportamento ético ergue-se toda a complexidade da construção da socialidade.

No pensamento de Kant pode ser encontrada uma distinção entre ética e moral. O imperativo moral kantiano diz respeito a uma moralidade construída na vida social, enquanto que a ética está relacionada a um procedimento de conduta individual.

No contexto de afirmação do positivismo em confronto com o direito natural, Hegel formula a passagem de um fundamento natural da eticidade que, confrontada com a liberdade na vida social, culmina com o Estado393; a etici-dade, portanto, envolve uma dialética de inserção do indivíduo na vida social.

Pensar a ética significa pensar o conjunto de valores de uma deter-minada vida social (Weltvorstellungen) que, obviamente, inclui a questão da justiça.

É necessário investigar então quais são os fundamentos de justiça que legitimam o Código de Ética da Magistratura.

Em termos de comportamento ético do juiz, impõe-se observar o per-curso desde a deontologia clássica até os atuais códigos de ética. Sobre a ques-tão relacionada à ética e à deontologia pode ser útil citar trecho de artigo escrito por Francisco Cardozo Oliveira e Rodrigo Jacob Cavagnari:

A deontologia jurídica clássica reduziu a ética a um conjunto de deve-res estritamente comportamentais: regras de conduta restritas a indi-car como o juiz devia conduzir a vida profissional, pessoal e familiar em sociedade, de modo a não ferir o decoro do cargo; no campo pro-fissional, a deontologia clássica conferiu especial importância à pos-tura de neutralidade do juiz, não só em relação ao conflito subjacente ao processo propriamente dito, como também a aplicação da lei e a assimilação de valores sociais em conflito. A preocupação com a neu-tralidade na aplicação do direito como regra de conduta profissional atendia à mentalidade do direito moderno de imunizar a atividade ju-

393 El sistema de la eticidad, Madrid, Editora Nacional, 1982; Über die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts, sein Stelle in der praktischen Philosophie und sein Verhältnis zu den positiven Rechtswissenschaften, Jenaer Schriften 1801-1807, Frankfurt an Main, Suhrkamp Verlag, 1986. pp. 434-530.

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risdicional de juízos de valores e de afirmar o primado da lei positiva, de origem estatal. O bom juiz, portanto, seria aquele que, no campo profissional, fosse obediente à positividade da lei alheia a valores.Em torno da visão da deontologia clássica, Álvaro Reis Figueira afir-ma que a postura do juiz de obediência à lei, no sistema do civil law reforça a imagem de substancial confiança na administração da jus-tiça. A imagem de neutralidade no comportamento do juiz, portanto, reproduz, na atividade profissional, as premissas do positivismo jurí-dico; o que se espera do juiz é a aplicação acrítica da lei positiva.Um outro desdobramento da deontologia jurídica clássica em torno da figura do juiz direcionou-se para o aspecto disciplinar, com regras de atuação no processo e de relação com as partes e seus interesses; nesse sentido, podem ser mencionadas regras disciplinadoras da im-parcialidade, de impedimentos e de responsabilidade civil.394

Como se verifica, a ética da deontologia clássica estava comprometi-da com a neutralidade e a disciplina do juiz. Com o surgimento dos códigos de ética, altera-se o sentido da regulação do comportamento do juiz; nesse sentido Francisco Cardozo Oliveira e Rodrigo Jacob Cavagnari afirmam que,

[...] com os códigos de ética que começam a surgir no final do século XX, que têm como preocupação básica dois aspectos: a qualidade dos serviços prestados pelos agentes judiciários e a profissionalização da magistratura.Nesta nova ordem de regulação de condutas, o juiz deve prestar con-tas de suas atividades de modo a garantir o funcionamento da admi-nistração da justiça.Os códigos de ética relegam a plano secundário o caráter institucio-nal da prestação jurisdicional e o valor republicano do trabalho do juiz, para reduzi-lo a profissional burocrático que, na administração da justiça, deve alcançar índices de produtividade e de qualidade na prestação de serviços judiciários.Da ética de compromisso com a neutralidade da deontologia clássi-ca, passa-se, na atualidade, à ética comprometida com a profissio-nalização e a produtividade; tal ética de profissionalização do juiz e de produtividade na administração da justiça está de acordo com as exigências da cultura de massa pós-moderna, que elevou os valores

394 O juiz e a ética: compromisso com uma jurisdição da intersubjetividade do direito ao direito (não publicado).

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da economia de mercado a princípios reguladores da vida em socie-dade395.

Na atualidade, portanto, a regulação da ética judicial contempla a bus-ca de um compromisso do juiz com a profissionalização e a produtividade. Até que ponto a finalidade de profissionalização e a busca de produtividade permi-tem alcançar o cuidado com o outro, implicado na ética, é questão que perma-nece em aberto a depender do quanto esses objetivos possam, de fato, constituir uma práxis de realização da justiça no mundo.

Na realidade da economia neoliberal, um compromisso com a pro-fissionalização e a produtividade pode contribuir para aproximar o trabalho do juiz de uma forma de empresarialidade da vida social, no sentido do formulado por Michel Foucault396, reduzida a realização da justiça a uma perspectiva de domínio de aparatos tecnológicos de gestão organizacional e de conflitos.Tem-se então que o Código de Ética da Magistratura pretendeu suplan-tar a insegurança e a desorientação característica da falta de valores da sociedade brasileira contemporânea em nome de um compromisso objetivo com a profissionalização e a produtividade dos juízes; onde o ideal de justiça não é mais uma promessa, o trabalho e a produtivi-dade mensuráveis podem significar o alívio provocado pelas tensões derivadas dos bloqueios de evolução social.

3. códIgo de étIca da magIStRatuRa: o SentIdo do compRomISSo com a cIdadanIa e a SocIalIdade

Uma maior objetividade no exame do sentido finalístico do Código de Ética da Magistratura, tomando sempre o contexto atual da sociedade brasileira, pode ser alcançada mediante o exame de algumas regras, representativas da tensão que se corporifica diante dos bloqueios à evolução social comprometida com o outro, como pressuposto de uma vivência ética, que não se resume à normatização de comportamentos profissionais.

Trata-se de, mediante o exame de algumas regras do Código de Ética da Magistratura, identificar bloqueios e limites para um compromisso efetivo do trabalho do juiz com a construção da cidadania em meio a uma socialidade aberta à presença do outro. Para esse exame podem ser eleitas as regras que

395 O juiz e a ética: compromisso com uma jurisdição da intersubjetividade do direito ao direito (não publicado).396 Nascimento da biopolítica, São Paulo: Martins Fontes, 2008.

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tratam da independência e imparcialidade do magistrado, transparência, integri-dade pessoal e profissional e, particularmente, a da prudência. A escolha dessas regras também decorre do fato de que nelas se materializa o que é essencial nesta reflexão, que é a tensão entre um compromisso ético, que não se esgota na esfera estritamente individual, e um compromisso ético que alcança a totalidade concreta da vida em sociedade.

3.1 IndependêncIa e ImpaRcIalIdade do magIStRado

A premissa principal que o Código de Ética da Magistratura coloca para a independência do juiz é a questão relativa às influências externas estra-nhas à justa convicção. Segundo José Renato Nalini a independência do juiz está relacionada à proteção de ingerências pelos demais poderes do Estado; também diz respeito à independência ética e financeira do juiz; ele afirma que a convicção do juiz deve ser a de fazer justiça conforme o ordenamento jurídi-co.397 Em função dessa premissa do fazer justiça conforme o ordenamento é que se coloca a questão das influências externas, que dizem respeito àqueles fatores que determinam a convicção para a decisão. Como se verifica, o problema está diretamente relacionado à interpretação da lei.

É certo que o juiz não deve sofrer influência externas como, por exemplo, a de submeter sua vontade a imperativos de grupos econômicos, de facções ideológicas, de credos religiosos, etc. Mas é preciso considerar também que a interpretação da lei não ocorre em um ambiente desprovido de valores e de finalidades; o próprio juiz está inserido em um contexto social e os valores desse meio podem influenciar a convicção da decisão justa. A independência do juiz, portanto, deve ser buscada em um compromisso metodológico com o problema da interpretação que, em termos de construção da socialidade, pode tomar a perspectiva sugerida por A. Castanheira Neves em que interpretação jurídica deve alcançar a normatividade prático-jurídica da norma, mediante cri-tério de problematização concreta dos elementos do caso, que possa conduzir a solução materialmente adequada do conflito.398

O compromisso com a busca da normatividade prático-jurídica da norma pode contribuir para romper com a cultura de um positivismo metodo-lógico, arraigado na tradição de interpretação e aplicação do direito, incapaz de assimilar as dinâmicas de valores dos conflitos emergentes na realidade social brasileira de assimetrias marcantes.

397 Ética da magistratura – comentários ao Código de Ética da Magistratura - CNJ, São Paulo: RT, 2006.398 O problema actual da interpretação jurídica, In Metodologia jurídica – problemas fundamentais. Coimbra: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade, Coimbra Editora, 1993. pp. 83-154.

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A questão da independência do juiz, portanto, não pode ser vista ape-nas na perspectiva de um compromisso com o fazer justiça de acordo com o ordenamento, a menos que se tenha como relevante uma ideia de ordenamento segundo a proposta de Santi Romano, em que o ordenamento jurídico não deve se restringir a estrutura das normas; o Direito, dizia ele, não é a norma posta, mas a entidade que a põe; a norma é mais objeto do ordenamento do que consti-tuinte de sua estrutura; o processo de objetivação do Direito é anterior à norma. O ordenamento jurídico, segundo Santi Romano, é uma instituição e, portanto, podem coexistir pluralidades de ordenamentos jurídicos.399 Na perspectiva em que a ordem jurídica deva abarcar a ordem social e que, por isso, a relação jurí-dica não possa negligenciar a ordem social em que ela está inserida, faz sentido o compromisso do juiz com a justiça do ordenamento jurídico porque a ordem que caracteriza o jurídico é vista integrada à ordem da vida social.

Já o problema da imparcialidade, como estabelece o art. 8.º do Código de Ética da Magistratura, está relacionado à equidistância do juiz em relação às partes, o que não significa atitude passiva e inação.

A imparcialidade do Juiz constitui garantia processual reconhecida pelo art. 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

No âmbito da Constituição brasileira a imparcialidade configura espé-cie de garantia dotada de fundamentalidade. É necessário ter em conta, todavia, que a observância da imparcialidade pelo Juiz, em respeito aos princípios cons-titucionais do contraditório e da ampla defesa, na forma do inc. LV do art. 5.º da Constituição, não implica espécie de neutralidade ou indiferença com a realida-de do processo; deve-se superar a visão típica do Estado liberal que associou a imparcialidade do juiz à neutralidade técnica na interpretação e na aplicação da lei. Nesse sentido, Fabrício Dreyer de Ávila Pozzebon afirma que a imparciali-dade do juiz, que diz respeito aos interesses imediatos com a causa, e mesmo a impessoalidade, que pressupõe trabalho pelo bem comum, sem favorecimentos específicos, não podem ser confundidos com uma espécie de neutralidade em relação aos valores e à realidade social que repercutem no processo. 400

Não se pode olvidar, todavia, que o compromisso do juiz com valores não pode abrir espaço para uma atuação calcada nas preferências pessoais capaz de comprometer a interpretação da lei. Como limite a possíveis arbitrariedades do subjetivismo, a Constituição da República exige a necessária fundamentação das decisões judiciais, nos termos do inc. IX do art. 93; assim, mesmo que o juiz possa estar convicto por uma espécie de pré-julgamento, ele não está dispensa-do de motivar e de fundamentar a decisão e, com isso, dar conta da racionali-

399 O ordenamento jurídico, Florianópolis. Fundação Boiteux, 2008. 400 A imparcialidade do juiz no processo penal brasileiro, in Revista da Ajuris n.º 108, dezembro de 2007, pp. 166-182.

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dade das conclusões firmadas, com apoio nas provas produzidas no processo, e possibilitar o exercício do contraditório. Como afirma Artur César de Souza, o princípio da imparcialidade na realidade complexa do Estado Democrático de Direito está informado por elementos simultaneamente negativos e positivos, em que os elementos positivos dizem respeito a obrigação do juiz de ponderar todos os interesses sociais e públicos legalmente relevantes no caso concreto401.

Como se verifica, a questão da imparcialidade do juiz, embora diga respeito mais diretamente à equidistância em relação aos interesses das partes, não significa um simultâneo desinteresse pela realidade do processo e mesmo pela realidade social que lhe é subjacente.

3.2 tRanSpaRêncIa do tRabalho do magIStRado

A regulação da transparência no Código de Ética da Magistratura está relacionada ao dever de informar e ao comportamento do juiz na relação com os meios de comunicação social.

O dever de informar se estende desde a atuação no processo até a co-laboração com os órgãos de controle e de aferição de desempenho profissional, ou seja, corregedorias de justiça e o próprio Conselho Nacional de Justiça.

O dever de informar por parte do juiz é a contrapartida do direi-to à informação assegurado no texto da Constituição da República (inc. XIV, do art. 5.º).

O direito à informação constitui espécie dos direitos humanos e deve ter por objetivo a formação de uma vontade pública capaz de inserir a pessoa no processo de construção da socialidade e da democracia; nesse sentido, Fran-cisco Cardozo Oliveira e Daniel José Pereira de Camargo Salles assinalam o seguinte:

A ideia do direito à informação como direitos humanos, contudo, se encontra obliterada pela atual configuração da sociedade pós-moder-na. Na construção dos fundamentos do que poderia ser concebido como direitos humanos à comunicação e à informação Raimunda Ali-ne Lucena GOMES sublinha o contexto histórico que, nos debates da Unesco permitiu desde a formulação do projeto de uma nova ordem mundial da informação e da comunicação (NOMIC), de caráter mais político e emancipatório, até os dias atuais, de preponderância de um

401 A parcialidade do Juiz (Justiça Parcial) como critério de realização no processo jurisdicional das promessas do constitucionalismo social, In Revista dos Tribunais n.º 96, março de 2007, vol. 857 pp. 27-53.

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enfoque técnico de assimilação de ideias em torno da configuração de uma sociedade da informação ou de uma sociedade da informação e do conhecimento, em que consolidada a preocupação pelas novas tecnologias da informática, em especial a Internet, com relevo para o aspecto do consumo. (2007, 77-118 e 154-157). Na medida em que o acesso à informação se reduz ao caráter instrumental das novas tecno-logias informáticas, a luta pelo reconhecimento do direito à informa-ção opera apenas no nível formal, sem força de superação emancipa-tória na direção de novas formas de evolução social402.

A questão de um dever de informar por parte do juiz é vista como fer-ramenta de construção da socialidade; não se trata de uma forma de transparên-cia tomada no sentido de prestação de contas de uma prática de justiça que não inclui a cidadania e que está afeta ao exercício do poder; a ideia de prestação de contas como sentido da transparência serve mais à legitimidade do próprio exercício do poder do que à possibilidade de afirmação de direitos, mediante articulação possibilitada pela informação.

O dever de informar do juiz, desse modo, tanto no processo como na relação como os meios de comunicação de massa deve estar voltado para o resgate daqueles elementos necessários à formação de uma vontade pública que permite à pessoa articular a defesa de direitos e o resgate da justiça na vida em sociedade.

3.3 IntegRIdade peSSoal e pRofISSIonal do magIStRado

As regras relacionadas à integridade pessoal e profissional estão vol-tadas para o dever do juiz de não obter vantagens de entidades públicas ou pri-vadas capazes de comprometer a independência funcional. A rigor, a regra diz respeito ao compromisso do juiz de viver de acordo com os vencimentos que aufere no exercício do cargo de juiz.

De todo modo, é preciso ter presente a advertência de Silvio Rosa Filho para os bloqueios vistos por Hegel já evidenciados na consolidação da modernidade para a constituição de uma “individualidade ética” confrontada com a “aparência de vida ética”; a esse respeito diz ele:

“[...] tudo leva a pensar que, inicialmente, a autoconservação particu-

402 A relação entre propriedade liberdade de expressão na cultura digital, In Revista de Estudos Jurídicos UNESP n.º 20 Franca, pp. 01-28, 2010.

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lar correria o risco de ir significando algo como uma autodestruição generalizável; que, em seguida, a independência da individualidade deixara entremostrar a ameaça de uma generalização da forma hete-rônoma de vida; que, por fim, a auto-exigência de formação da “per-sonalidade singular”, se veria determinada a não representar mais que uma deformação da subjetividade. Sucede que tais processos regres-sivos já se acham em curso, à solta no próprio andamento dos novos tempos que a cada passo, como tivemos ocasião de assinalar, sempre concorrem para convocar, essencialmente, o comparecimento de seu oposto. Disso dá testemunho, em primeiro lugar, o surgimento de uma mera “aparência de vida ética” para o qual, como diz Hegel, “a signi-ficação habitual da moralidade pode convir aproximadamente[...]”403.

Um princípio de integridade pessoal e profissional não pode negli-genciar as ameaças derivadas de uma premissa de individualismo abstrato do homem privado ou do homem público, considerados de forma isolada. Ou seja, pensar a integridade pessoal e profissional do juiz exige levar em conta os riscos, os perigos e a significação de uma “aparência de vida ética” no atual contexto da sociedade brasileira; é necessário ter presente que o juiz não pode obter vantagens de entidades públicas e privadas, mas as entidades públicas e privadas também devem estar comprometidas com uma ética de não oferecer vantagens a juízes e agentes públicos capazes de comprometer o exercício da função pública. O quanto isso seja possível numa realidade social comprome-tida com o arrivismo individual em larga medida depende da advertência de Theodor Adorno, na Mínima Moralia, de que não existe vida correta na falsa.

3.4 pRudêncIa e exeRcícIo da JuRISdIção

O Código de Ética da Magistratura define prudência como a busca de comportamentos e decisões resultantes de juízo justificado racionalmente, após meditação e valoração de argumentos. Não seria o caso de valoração de argumentos, mas de valoração da prova, já que o compromisso da decisão justa, segundo o Código de Ética, deve ser com a verdade das provas. Também resulta abstrato um compromisso com a prudência que exige meditação, no momento em que se impõe a cobrança por soluções rápidas e pelo cumprimento de metas. O Código deixou de fazer referência à questão da justiça e da equidade, con-forme proposto pelo Código Modelo Íbero-americano, que colocava como fim

403 Eclipse da moral – Kant, Hegel e o nascimento do cinismo contemporâneo. São Paulo: Editora Barcarolla, 2009.

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último da atividade judicial realizar a justiça por meio do direito; preferiu-se um compromisso abstrato do juiz com a prudência.

De todo modo, a questão da prudência está diretamente comprome-tida com fundamentos de justiça. O ser prudente, como referido por Aristóte-les, está confrontado com a contingência. O juiz prudente, portanto, deve estar preparado para decidir diante da contingência dos fatos e da vida; a prudência, como diz Pierre Aubenque, representa a possibilidade e o risco da ação humana; e o caminho entre um saber absoluto que tornaria a ação inútil e uma percepção caótica que tornaria a ação impossível; a prudência revela o humanismo trágico, em que a ética mede a distância que separa o homem dos deuses.404

O juiz prudente deve estar atento à realidade em que está inserido porque somente desde modo poderá captar o sentido da ação humana refletida nas provas do processo que o habilita a formar juízo justificado racionalmente, como quer o Código de Ética da Magistratura. O juiz prudente, portanto, so-mente adquire sentido no compromisso com a realização da justiça na vida em sociedade.

Ao que parece, o Código de Ética da Magistratura, mais comprome-tido com uma visão de profissionalismo e de produtividade, pode não ter assu-mido o sentido de prudência necessário para romper os bloqueios no caminho de construção da cidadania e da socialidade que, em última instância, traz o significado do compromisso com o outro.

concluSão

De um modo geral, embora o Código de Ética da Magistratura esteja formalmente comprometido com os valores da Constituição e da democracia, as regras específicas, no atual contexto da sociedade neoliberal, assumem um perfil deontológico, disciplinar e de preocupação com a profissionalização e a produtividade.

Não se verifica no Código de Ética da Magistratura um compromisso objetivo com a realização da justiça como finalidade da atividade jurisdicional, de modo que a ética do juiz, para utilizar a premissa de Silvio Rosa Filho405, assume o caráter de alienação particularista, em meio a desvalorização da sin-gularidade da sociedade de massas e de consumo, e que contrapõe o mercado e a vida.

Em meio a esses paradoxos, é preciso pensar no que afirma Jurandir

404 A prudência em Aristóteles. São Paulo: Discurso Editorial, 2003.405 Eclipse da moral – Kant, Hegel e o nascimento do cinismo contemporâneo. São Paulo: Editora Barcarolla, 2009.

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Freire Costa, de que a justiça exige olhos bem abertos, inclusive para rever as mais caras fantasias sobre bondade que venhamos a acalentar. Um ideal de jus-tiça desatento ao que se passa ao redor é mera autossatisfação narcísica. Não há preocupação com o outro em tal atitude; há egocentrismo, mesquinhez que visa preservar da usura a imagem ideal que se tem de si. 406

Em termos de uma ética judicial, portanto, impõe-se o compromisso moral mais elevado de realização da justiça no mundo. Mas isso só é possível no momento em que as regras do Código de Ética da Magistratura se mostrem capazes de transcender o mero produtivismo e a alienação a que ele conduz, e possam abrir caminhos para a evolução social comprometida com a presença do outro e, consequentemente, com a construção da socialidade.

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5paRâmetRoS étIco-JuRídIcoS daS expeRImentaçõeS cIentífIcaS envolvendo SeReS humanoS: o eScopo

pRotetIvo da autonomIa e dIgnIdade do homem

Janaína recKziegel

Professora e Pesquisadora da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Doutoranda em Direitos Fundamentais e Novos Direitos pela Univer-sidade Estácio de Sá – RJ. Mestre em Direito Público. Especialista em “Mercado de trabalho e exercício do magistério em preparação para a Magistratura” e em “Educação e docência no ensino superior”. Gra-duada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade do Oeste de Santa Catarina. Advogada e Professora Universitária.

matHeuS Felipe de caStrO

Matheus Felipe de Castro é Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá-PR. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor adjunto de Direito Penal do Departamento de Direito da UFSC. Pesquisador do Programa de Pós-graduação em Direito da UNOESC e advogado criminalista em Florianópolis.

SumáRIo: Introdução. 1. Breve contextualização histórica: dos primeiros contornos éticos norteadores das pesquisas científicas com seres humanos ao estreitamento da relação bio-ética e direito. 2. A condição autônoma do paciente sob o prisma da dignidade humana. 3. O neoconstitucionalismo e suas contribuições à discussão acerca da (in)viabilidade da pon-deração principiológica: entre a autonomia e a dignidade humana. Conclusão. Referências.

IntRodução

A Bioética tem apresentado ao mundo jurídico uma série de novos de-safios no trato das questões correlatas à biomedicina e ao progresso científico--tecnológico, cenário em que se destaca a experimentação clínica envolvendo seres humanos, não por acaso eleita como objeto de análise do presente ensaio.

A prática, registrada desde longa data em resposta à imperiosa neces-

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sidade de se buscar mecanismos aptos a promover a proteção da saúde humana, dá-se por intermédio da pesquisa de novas substâncias medicamentosas ou te-rapias direcionadas a enfermidades cotidianas, cujas intervenções tradicionais não têm se mostrado exitosas e sobretudo àquelas que persistem incuráveis.

Decorrência do estágio de desenvolvimento sócio-cultural manifes-tado pela humanidade, a exemplo da quebra de paradigmas nos mais diversos setores, a investigação clínica também fora influenciada, no transcorrer dos tempos, pelo novo pensamento instalado na modernidade, consubstanciando--se em importantes avanços na área médica como a descoberta da insulina e do fabrico de vacinas para doenças endêmicas como a varíola.

O fato é que a condição autônoma e livre do homem igualmente reconhecida a partir desse momento histórico não só repercutiu em fatores po-sitivos, consoante ora explicitado, mas acabou por representar a desmedida de seu poder de domínio, tendo como marco as atrocidades cometidas durante a própria Segunda Grande Guerra sob o pretexto da inexistência de regulação da atividade científica experimental com seres humanos.

Nesse contexto, o advento do Código de Nuremberg em 1947 inau-gura a perspectiva de uma sistemática regulatória e o faz sob a égide da limi-tação ética dos procedimentos dessa espécie de estudo, inspirando as Declara-ções e normativas internacionais que lhe seguiram. Sobressaíra-se, inclusive, porque estabeleceu diretrizes de cunho ético a partir da própria valorização da autonomia da vontade, além do resguardo da dignidade humana, antecipando a imprescindível imbricação e equilíbrio entre os três fatores que se pretende analisar no decorrer deste trabalho.

Não obstante a propositura de uma regulamentação incipiente, pauta-da nas Declarações Internacionais ou mesmo em Resoluções internas, nota-se que persiste uma lacuna quando se trata de limites ético-jurídicos objetivos, ap-tos a efetivamente legitimar as experimentações científicas com seres humanos, tema que permanece, portanto, à margem de um tratamento legislativo especí-fico, cabendo ao Direito recorrer à principiologia, o que só vem a demonstrar a importância teórico-social da discussão.

A abordagem resta, nesses termos, dividida em três capítulos. Num primeiro momento, faz-se o resgate histórico da realização dos ensaios clínicos com seres humanos, a partir da disciplina regulatória que lhe foi conferida em âmbito internacional e pátrio, tópico a que por ora já se reporta, de forma conci-sa, é claro, porque indispensável à introdução do tema de pesquisa. Procede-se, ainda, ao exame da relação entre Bioética e Direito, campos do saber conver-gentes, em especial ao enfoque capitular destinado, em sua essência, à exposi-ção das primeiras irradiações éticas no controvertido universo da utilização de indivíduos em experimentos dessa natureza.

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Parte-se, então, para o debate da condição autônoma do paciente, não só um dos elementos precípuos da medicina moderna, conquistado com a su-peração da tendência ao paternalismo médico que a precedeu, mas verdadeiro aporte da qualificação ética da atividade experimental, ao lado da dignidade humana.

Ao fim, trata-se justamente da correlação aventada, analisando-se a principiologia ponderativa relativa a esses dois atributos (autonomia e digni-dade) sob a ótica do neoconstitucionalismo. Sem a pretensão de aprofundar o referido fenômeno, tem-se apenas o intuito de apreender as suas contribuições teórico-práticas capazes de conduzir à legitimidade das investigações clínicas, apontando os possíveis parâmetros ético-jurídicos que se busca, já que também é esta a incumbência do direito hodierno em face da inexistência de uma limi-tação legislativa concreta e objetiva.

1. bReve contextualIzação hIStóRIca: doS pRImeIRoS contoRnoS étIcoS noRteadoReS daS peSquISaS cIentífIcaS com SeReS humanoS ao eStReItamento da Relação bIoétIca e dIReIto

A abordagem histórica dos fenômenos sociais propicia o desvelar do processo evolutivo experimentado pela humanidade sob os mais diversos as-pectos, sobretudo no que se reporta à vinculação ínsita entre o comportamento humano, as formas de interação com o meio e a ordem jurídica característica de cada época.

Neste contexto, a modernidade representou o reconhecimento do in-divíduo como ser autônomo, dotado de dignidade, suplantando a noção que outrora o reduzia a mero objeto a partir da própria concepção de direitos huma-nos que começava a se estabelecer, conferindo-lhe respaldo social e jurídico. A superação dos chamados “determinismos naturais” ou mesmo das explicações de cunho divino, típicas da fase medieval, cederam espaço à racionalidade e ciência oportunizando, com o transcorrer dos tempos, um progresso significa-tivo também na área médica por meio da descoberta de técnicas curativas ou medicamentos importantes para a saúde humana. O crescente poder de inter-venção e controle sobre a dinâmica, quer natural, quer social, que se perfez pela consciência de liberdade e autonomia assumidas nesse novo cenário cultural, acabou por despertar no ser humano, a contrario sensu, uma perigosa medida de suas potencialidades, externando-se no emprego de métodos imprudentes e lesivos no exercício da medicina, em especial quanto aos experimentos cientí-ficos correlatos407.

407 JUNGES, José Roque. Bioética e os paradigmas da justiça e do cuidado. In: _____. Bioética

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Recorrendo-se aos registros históricos, tem-se inúmeros casos con-gêneres, a citar o ocorrido no ano de 1721, na Inglaterra, quando o cirurgião inglês Charles Maitland inoculou varíola no organismo de seis prisioneiros sob a promessa de concessão de liberdade ao fim do procedimento experimental. Na Alemanha, por sua vez, entre os últimos anos do século XIX e a primeira metade do século XX, ensaios clínicos não consentidos pelos pacientes foram realizados com a exposição a doenças venéreas incuráveis, à febre tifóide ou mesmo ao frio intenso, além de transplante de células cancerígenas, com o in-tuito de analisar o grau de resistência e a evolução sintomática para suposto aperfeiçoamento no trato das enfermidades408.

A Segunda Guerra Mundial, entretanto, surge como referencial exem-plificativo em face da prática reiterada, com o consequente uso em larga escala de seres humanos, já que incontáveis as situações fáticas em que prisioneiros foram involuntariamente submetidos a técnicas degradantes de esterilização e congelamento ou envolvendo gases tóxicos, substâncias venenosas e agentes infecciosos, principalmente nos campos de concentração nazistas de Ravens-brück, monitorado pelo Dr. Herta Oberheuser, e Auschwitz, pelos médicos Jo-seph Mengele e Eduard Wirths, destacando-se a finalidade militar das experi-mentações409.

Em resposta aos abusos relatados, à época defendidos pelos pesquisa-dores em nome do Estado e do progresso científico, chegando-se a argumentar no sentido da persistência e similitude destes experimentos ao longo dos sécu-los antecedentes à guerra, bem como da ausência, até então, de uma normativa regulamentadora, instalou-se, ao final do conflito em êxito, o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg visando julgar tais condutas, consideradas crimes contra a humanidade, e os agentes responsáveis410.

O evento culminou ainda na elaboração do Código de Nuremberg, documento que merece destaque por representar o primeiro marco de cunho ético411 voltado à limitação das condutas em pesquisas com seres humanos a

hermenêutica e casuística. São Paulo: Edições Loyola, 2006. pp. 73-74.408 ARAÚJO, Laís Záu Serpa de. Aspectos éticos da pesquisa científica. In Pesquisa odontológica brasileira. vol. 17. São Paulo, 2003. pp. 57-63. 409 BOGOD, David. The Nazi Hypothermia Experiments: Forbidden Data, Anaesthesia, vol. 59, n. 12 p. 1155, dez. 2004. 410 O referido Tribunal efetuou o julgamento de vinte e três médicos; dezesseis foram declarados culpados e sete condenados à morte (GAFO, J. La experimentación humana. In: _____. Ética y legislación en enfermería. Madrid: Universita, 1994. pp. 207-31).411 Nas palavras de Aristóteles, a ética, como uma área da filosofia, é “a ciência da conduta humana” (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Edson Bini. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2007. p. 34). Nesse sentido, adota-se aqui também entendimento de mesma linha, em que a ética se traduz na “busca de justificativas para verificar a adequação ou não das ações humanas” (VASQUES, Adolfo Sanches. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. pp. 15-34).

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partir de dez princípios legitimadores fundados nos critérios de beneficência, autonomia, consentimento livre e informado, além da minoração dos riscos, indispensabilidade do emprego dos métodos em indivíduos e a devida regula-ção científica412.

Em que pese sua representatividade inaugural, a Codificação acabou por não exercer, a priori, efetiva influência prática, inclusive no âmbito jurídi-co, já que desprovida de força legal em função de não ter sido incorporada, de imediato, às legislações internas, persistindo os casos de arbitrariedades nos estudos clínicos desenvolvidos nos mais diversos países. Não se pode descon-siderar, no entanto, a inspiração dada à Declaração de Helsinque, cujo primeiro texto, aprovado no ano de 1964, na Finlândia, recebera nova versão em 2000, agora na cidade de Edimburgo, mediante votação na 52ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial413.

Tem-se a inferir, portanto, que a proposta ética de Nuremberg só vem a ser implementada na relação médico-paciente a partir da década de 1960. De fato, as Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisa Biomédica envolven-do Seres Humanos são postuladas apenas em 1982, num esforço conjunto do Conselho para Organizações Internacionais de Ciências Médicas (CIOMS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), sendo objeto de constantes revisões, a exemplo das realizadas em 1993 e 2000, com ênfase, respectivamente, na apro-vação do protocolo de pesquisa por comissão ética e inserção do consentimento de menores, quando possível, e no uso de placebo, dentre outros aspectos, como a extensão dos benefícios obtidos não só a todos os partícipes, mas ao agrupa-mento social em que se realizou determinada pesquisa414.

Em outros termos, a sistemática evolutiva, ainda que gradual e res-trita, das tentativas de se submeter as intervenções médico-científicas a níveis aceitáveis de manipulação da natureza e do próprio organismo humano, aqui consideradas as suas consequências controversas manifestadas desde a expec-tativa de melhoria da qualidade de vida e saúde das populações aos abusos que induziram verdadeiras patologias físicas e mentais, demonstra a preocupação social inerente a essas questões.

Ao analisar as especificidades desse complexo quadro em que o pro-gresso científico imprescinde de uma moderação ética, propiciando a coexistên-cia harmônica e pacífica entre a aplicação de novas tecnologias e o equilíbrio

412 VIEIRA, Sonia; HOSSNE, Willian Saad. Pesquisa Médica: A Ética e a Metodologia. São Paulo: Pioneira, 1998. p. 37.413 ARAÚJO, Laís Záu Serpa de. Aspectos éticos da pesquisa científica. Pesquisa odontológica brasileira, São Paulo, vol. 17, pp. 57-63, 2003.414 VIEIRA, Sonia; HOSSNE, Willian Saad. Pesquisa Médica: A Ética e a Metodologia. São Paulo: Pioneira, 1998. p. 38.

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humano e ambiental, nota-se que os ensaios legislativos, embora incipientes, resultam do surgimento da Bioética415 que se perfectibiliza em verdadeira “to-mada de posição da sociedade” diante dos referidos desafios, contribuindo de forma preponderante também nas discussões voltadas ao equacionamento ético dos casos concretos que importam na vida em geral, bem como na particulari-dade da preservação da saúde de cada indivíduo416.

Considerando-se a ruptura de paradigmas suscitada na modernidade e o estranho uso que, por vezes, emprestou-se aos novos conceitos típicos deste momento histórico, com a exacerbação do poder de domínio e autonomia do homem a partir da apreensão equivocada da perspectiva científica e racional, o que traz aspectos aptos a explicar (sem que isso represente qualquer indício de anuência) as experimentações cruéis e desmedidas já relatadas, prestar-se a julgamentos de tal ordem desvela a necessidade de se lançar um olhar ético--valorativo sobre a Ciência, sobretudo no âmbito médico, porque sua atuação reflete em vários setores da vida humana, tornando-se incoerente e temeroso afastá-la do contexto das relações sociais.

Corroborando o exposto, Morin e Sousa Santos417 argumentam, in-clusive, acerca da relevância de se restabelecer os laços entre os campos ético e científico, uma vez que a concepção moderna de ciência manteve justamente um discurso secular contrário, tendo como embasamento postulados de objeti-vidade e racionalidade que se valiam, de modo único e exclusivo, do conteúdo e prática puramente científicos, promovendo a segregação entre fato e valor, sem externar qualquer interesse em perquirir o sentido e fim precípuo dos co-nhecimentos abarcados, de sua aplicabilidade ou mesmo do próprio progresso da área.

A Bioética passa a simbolizar, portanto, uma resposta social a esse processo de estagnação ético-reflexivo por que passou a ciência moderna, po-dendo ser identificada a partir das duas tradições que encerra418: a ecológica, de caráter hermenêutico, fundada na crítica interpretativa das proposições cul-

415 O termo Bioética (Bio=Ethik) fora empregado, pela primeira vez, no ano de 1927 em artigo de Fritz Jahr publicado no periódico alemão Kosmos, oportunidade em que é tratada como “o reconhecimento de obrigações éticas não apenas com relação ao ser humano, mas para com todos os seres vivos” (GOLDIM, José Roberto. Bioética e complexidade. In: MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia Ludwig (Org.). Bioética e responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 55).416 JUNGES, José Roque. Bioética hermenêutica e casuística. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 11.417 MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice S. Dória. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. pp. 117-133; e SOUSA SANTOS, Boaventura de. Um discurso sobre as ciências. 14. ed. Porto: Afrontamento, 2003. pp. 10-23.418 Por se tratar de temática que exige detalhamento capaz de extrapolar o objeto proposto no presente ensaio, a epistemologia da Bioética sob o enfoque ora aludido (casuística e hermenêutica) restringir-se-á a esta breve abordagem teórica.

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turais advindas da utilização das biotecnologias e sua repercussão no entorno natural e social; e clínica, de cunho casuístico, visando às soluções concretas dos dilemas com que se deparam os profissionais médicos em seu mister, bem como os cientistas nas pesquisas desenvolvidas com seres humanos419.

Voltada à discussão interdisciplinar e à busca de diretrizes para a exe-cução de experimentos científicos, a Bioética vem a irradiar o Direito, esten-dendo também a ele a preocupação ética que acaba por se traduzir também na imperiosa necessidade de propositura de limites jurídicos às técnicas biomédi-cas, deflagrando, consoante explicitado anteriormente, a sua regulamentação em ordenamentos internos ou postulados internacionais, a exemplo da Declara-ção dos Direitos do Homem (1948) e da Declaração de Helsinque já menciona-da. Em verdade, a complexidade e relevância do tema acabaram por suscitar um novo campo do direito, específico para o “estudo e normatização das questões bioéticas” sob a denominação de Biodireito420.

Em sede nacional, o processo regulatório típico dessa nova conjuntu-ra começa a caracterizar-se com a vigência da Resolução 01/88, do Conselho Nacional de Saúde, que vem a ser substituída pela Resolução CNS 196/96, ampliando-se os parâmetros ético-limitadores das práticas experimentais para além da área da saúde, mediante o redirecionamento das pesquisas com seres humanos, sendo assim consideradas aquelas que “individual ou coletivamente, envolvam o ser humano de forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de informações ou materiais”421.

Ainda no que concerne à Resolução 196/96, ressalta-se que ao esta-belecer os requisitos norteadores da realização de estudos clínicos no país, fun-damenta-os, dentre outros pontos, nos quatro referenciais basilares da Bioética: autonomia, caracterizada pelo consentimento livre e esclarecido e proteção aos vulneráveis; beneficência, compreendida como a ponderação entre benefícios e riscos a partir da maximização dos primeiros e minoração dos últimos; não maleficência, evitando-se danos previsíveis; e justiça, que se perfaz por meio da consideração igualitária entre os interesses envolvidos, com vantagem signifi-cativa para os sujeitos da pesquisa e mínimo ônus aos vulneráveis, garantindo o fito sócio-humanitário422. O regramento pátrio, de embasamento principiológico

419 JUNGES, José Roque. Epistemologia da bioética: casuística e hermenêutica. In: _____. Bioética hermenêutica e casuística. São Paulo: Edições Loyola, 2006. pp. 33.420 MÖLLER, Letícia Ludwig. Esperança e responsabilidade: os rumos da Bioética e do Direito diante do progresso da ciência. In: MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia Ludwig (Org.). Bioética e responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009. pp. 42.421 ARAÚJO, Laís Záu Serpa de. Aspectos éticos da pesquisa científica. In Pesquisa odontológica brasileira. vol. 17. São Paulo, 2003. pp. 57-63.422 BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n.196 de 10 de outubro de 1996. Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Presidente: Adib

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comum, diferencia-se da linha internacional ao vedar a remuneração dos partí-cipes, tema esse que igualmente se mostra controverso em face do potencial da permissividade em gerar estímulo, ainda que indireto, de sujeição involuntária à pesquisa, afora aspectos de comercialização do próprio corpo423.

As esferas da Bioética e Direito têm a exercer, portanto, outras im-portantes contribuições para as sociedades hodiernas, apontando as diretrizes essenciais à determinação dos contornos éticos indissociáveis à legitimidade das experimentações envolvendo seres humanos, sobretudo quando considera-da a amplitude dos questionamentos e desafios a elas imanentes que suscitam a preponderância de um equilíbrio sistemático e constante entre o progresso científico e a própria condição livre e digna do homem.

2. a condIção autônoma do pacIente Sob o pRISma da dIgnIdade humana

O advento do Código de Nuremberg no ano de 1947, em consonância com o pensamento desenvolvido a partir da modernidade, veio a difundir a con-dição autônoma do paciente, invocando-a como um dos elementos primordiais ao respaldo ético da atividade clínica.

Em contexto etimológico, cabe ressaltar que o termo autonomia deri-va das palavras de origem grega autos (si mesmo) e nomos (norma ou governo), o que lhe confere o significado literal e autoexplicativo de “governar-se ou dar normas a si mesmo”, reportando-se ao reconhecimento do status de “pessoa” do paciente e o seu poder de decisão acerca dos tratamentos ou outras intervenções a ele prescritas. Quando transposto ao campo da Bioética, o fenômeno da va-lorização da autonomia, em referência de cunho semântico à própria liberdade do indivíduo, traduz-se na superação do chamado paternalismo médico tradi-cional em que se subjugava o seu direito ao conhecimento das características e implicações do trato clínico in casu, bem como de manifestar a respectiva concordância ou não (consentimento informado), uma vez que o profissional deliberava unilateralmente nesse sentido424.

A incidência normativa no âmbito jurídico nacional pode ser notada na Resolução 196/96 sob a nomenclatura de “consentimento livre e esclareci-do”, definido em item II.11 como “ a anuência do sujeito da pesquisa e/ou de

de Jatene. Diário Oficial da União, 16 out.1996, n. 201, Seção 1. pp. 50-51.423 OLIVEIRA, Fátima de. Bioética: uma face da cidadania. São Paulo: Moderna, 1997. p. 48.424 ANDORNO, Roberto. “Liberdade” e “dignidade” da pessoa: dois paradigmas opostos ou complementares na bioética? In: MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia Ludwig (Org.). Bioética e responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009. pp. 75-76.

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seu representante legal, livre de vícios (simulação, fraude ou erro), dependên-cia, subordinação ou intimidação, após explicação completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, po-tenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar”, mediante concreção em formulário específico, autorizando a inequívoca participação voluntária425.

A congruência ética implícita na nova perspectiva adotada na relação médico-paciente erige a autonomia da vontade à condição de verdadeiro apor-te da medicina moderna não só em uma acepção restrita voltada ao cotidiano dos consultórios, mas no que tange às experimentações científicas pertinentes, desempenhando papel preponderante quanto à limitação da atuação do pesqui-sador e da prática investigatória, além de impor certa medida, ainda que a priori paradoxal, ao indivíduo em si, porque a ele não se faculta, por exemplo, agir incondicionalmente, submetendo-se a situações degradantes que o reduzam a mero objeto de estudo, sob pena de afronta à dignidade humana.

Consoante assevera Andorno426, a ênfase na autonomia não pode, en-tretanto, revestir-se de exclusividade ou supremacia que a faça recair em “re-lativismo moral”, comprometendo o próprio escopo ético da questão, ao não estabelecer qualquer vínculo com outros “bens objetivos que transcendam aos sujeitos” integrantes do binômio médico-paciente. O autor, com o intuito de exemplificar postura extrema a esse respeito, cita o norte-americano H. Tristram Engelhardt427, para quem a ética médica constitui “mera empresa não violenta de solução de conflitos” em que tais bens objetivos externos são irrelevantes, sendo a vontade, por sua vez, um imperativo absoluto.

Nesse contexto, Bourguet428 também se reporta a Engelhardt, afirman-do que práticas controversas como eutanásia, aborto, alienação parcial do corpo e experimentações com seres humanos também se mantêm coerentes e sistê-micas sob a ótica diferenciada desse autor porque dotadas de uma antropologia típica que as justifica:

[...] já que o corpo humano é apreendido como ‘objeto’, como enti-dade que existe fora e diante do sujeito, a relação entre a pessoa e seu

425 BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n.196 de 10 de outubro de 1996. Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Presidente: Adib de Jatene. Diário Oficial da União, 16 out.1996, n. 201, Seção 1. pp. 50-51.426 ANDORNO, Roberto. “Liberdade” e “dignidade” da pessoa: dois paradigmas opostos ou complementares na bioética? In: MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia Ludwig (Org.). Bioética e responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 77.427 A referência se deve às considerações tecidas por H. Tristram Engelhardt em sua obra intitulada “The Foundations of Bioethics” (New York, Oxford University Press, 1996). 428 BOURGUET, Vincent. O ser em gestação - Reflexões bioéticas sobre o embrião humano. Trad. Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 131.

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corpo submete-se às categorias do instrumento, da fabricação e da propriedade, as quais descrevem a relação exterior do corpo com as coisas. E é sobre o fundo dessa suposta ‘estranheza’ do corpo que a apropriação dos outros corpos torna-se justificável: a disposição ab-soluta do outro humano não-consciente se enraíza na autodisposição absoluta de si mesmo. É porque a pessoa não é encarnada que o corpo é visto como objeto mais próximo e que, portanto, a corporeidade humana despoja-se de toda significação pessoal imediata: o corpo, or-ganismo biológico não-consciente, é uma ferramenta que espera seu mestre, a vontade.

A autonomia da vontade, de fato, constitui-se em temática que com-porta as mais diversas abordagens interpretativas, a exemplo da teoria comple-xa de Engelhardt ora exposta. Alterando-se o enfoque, infere-se que a liberdade de arbítrio igualmente resta associada à autonomia; em Rousseau, com o sig-nificado de razão, aqui entendida como “formação racional da vontade comum sob a forma de leis gerais e abstratas produzidas no processo democrático” e em Kant, “de vontade subordinada a um imperativo moral”429.

A matriz kantiana, portanto, difere substancialmente da visão de En-gelhardt, à medida que refuta o processo de “coisificação” do indivíduo, vincu-lando a sua autonomia a preceitos como moral, racionalidade e à própria dig-nidade humana, que a tem inclusive como fundamento, aspecto esse que vem a denotar a correlação entre os dois princípios, ambos indispensáveis à análise teórico-prática dos limites éticos das pesquisas com seres humanos430.

Ao conceber o ser humano, na condição de ser racional, como um fim em si mesmo, contrapondo-se à ideia de tê-lo apenas como um meio ou mero instrumento suscetível de manipulação arbitrária pela vontade e interesse alheios, Kant determina que se o preço é típico das coisas, a dignidade, como valor intrínseco e incondicional, assim o é em relação àquilo (ou em melhor sentido, “àquele”) que não permite equivalência, sendo insubstituível, ou seja, a pessoa431.

A partir dessa perspectiva, a dignidade humana pode ser vista como a qualidade congênita de todos os indivíduos que se materializa pela autodetermi-nação racional, fazendo-se reconhecer, do mesmo modo, nos sujeitos incapazes

429 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Lealdade processual: elemento da garantia de ampla defesa em um processo penal democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 40.430 Em primeiro plano, exige-se o resgate da percepção de Kant quanto a um e outro (autonomia e dignidade), motivo por que a discussão correlata, por si só, será tratada no Capítulo subsequente.431 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. e notas por Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009. pp. 241-265.

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de se autogerirem (crianças, enfermos mentais) porque dignos por existência432. Trata-se da dignidade em sua dimensão básica, atributo inato e ético impeditivo da subsunção do homem a mero objeto, a exemplo de papel análogo exercido pelos bens jurídicos essenciais aqui também insertos433.

Considerando-se as ponderações de Benedetto Croce434 e Pérez--Luño435, a dignidade humana, por sua vez, comporta um conceito de conteúdo crescente e variável, sendo delineada em determinado momento histórico, con-forme as demandas sociais e valores de cunho moral adotados, à época, em cada sociedade. Configura-se, nesses termos, a sua dimensão cultural, representando as diferentes formas com que os agrupamentos sociais implementam a própria dignidade em seu nível básico, buscando-se a compreensão ética das finalida-des comuns.

Da análise de tais dimensões, infere-se a sua congruência com o pos-tulado kantiano que respalda a dignidade humana no princípio da autonomia, sendo este último expresso em “não escolher de outro modo senão de tal modo que as máximas de sua vontade também estejam compreendidas ao mesmo tempo como lei universal no mesmo querer; regra prática essa que seja um im-perativo, isto é, que a vontade de todo ser racional esteja necessariamente ligada a ela como condição”436.

Reportando-se à autonomia do paciente, essa concepção figura como elemento impreterível do debate acerca da relativização do livre arbítrio, uma vez que a ele não se faculta valer-se de sua condição autônoma para justificar a exposição a experimentos biomédicos que venham a gerar danos despropor-cionais à saúde porque representa também afronta à dignidade humana em sua dimensão particular e universal.

Embora a autonomia consista em fundamento precípuo da dignida-de, esta a ela não permanece adstrita; são atributos distintos, de cuja harmoni-zação depende a legitimidade jurídica e ética das experimentações científicas,

432 DWORKIN, Ronald. O domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Trad. Jerferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. pp. 309-310.433 Ainda que tais bens essenciais, voltados à existência do homem e ao exercício da autodeterminação individual, estejam contemplados na dimensão básica da dignidade humana, impreterível ressaltar que esta, por si só, independe de reconhecimento jurídico (MARTINEZ, Miguel Angel Alegre. La dignidad de la persona como fundamento del ordenamiento constitucional español. León: Universidad de León, 1996. p. 21). 434 CROCE, Benedetto. Declarações de Direitos – Benedetto Croce, E. H. Carr, Raymond Aron. 2. ed. Brasília: Senado Federal, Centro de Estudos Estratégicos, Ministério da Ciência e Tecnologia, 2002. pp. 17-19.435 PÉREZ-LUÑO, Antônio Enrique. Derechos humanos em la sociedade democratica. Madrid: Tecnos, 1984. p. 48.436 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. e notas por Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009. pp. 269-285.

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justificando uma abordagem teórica sob o enfoque neoconstitucionalista da ponderação entre princípios.

3. o neoconStItucIonalISmo e SuaS contRIbuIçõeS à dIScuSSão aceRca da (In)vIabIlIdade da pondeRação pRIncIpIológIca: entRe a autonomIa e a dIgnIdade humana

Um dos maiores desafios do mundo jurídico consiste no enfrentamen-to dos debates típicos da Bioética, panorama que não o distancia (pelo contrá-rio, a ele propõe), a busca de um equacionamento ético entre a liberdade indivi-dual, transcrita na autonomia da vontade, e a dignidade humana, preceitos que permanecem sob constante “conflito real ou aparente”437, em especial no que se reporta às experimentações biomédicas.

Nesse sentido, o neoconstitucionalismo se apresenta, ainda que de forma incipiente, haja vista tratar-se de fenômeno ao qual o direito brasileiro vem buscando se moldar nos últimos tempos, como um paradigma capaz de nortear a discussão ora estabelecida, oferecendo contribuições significativas para as questões ético-jurídicas imanentes ao binômio autonomia-dignidade do paciente438.

A sistemática neoconstitucionalista fundamenta-se em linhas diver-sas, porém comuns a certa medida, desenvolvidas sob a ótica da Constituição de 1988, tendo como características centrais: o reconhecimento da força normativa dos princípios; emprego de métodos mais abertos e flexíveis na hermenêutica jurídica, com ênfase para a ponderação; constitucionalização do Direito, ex-pandindo-se a incidência das normas e valores correlatos, em especial dos di-reitos fundamentais, sobre todo o ordenamento; diálogo entre Direito, Moral e Filosofia; e, por fim, judicialização da política e das relações sociais439.

437 Termo que se empresta de Roberto Andorno, Professor Doutor do Institute of Biomedical Ethics, University of Zurich – Suíça (ANDORNO, Roberto. “Liberdade” e “dignidade” da pessoa: dois paradigmas opostos ou complementares na bioética? In: MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia Ludwig (Org.). Bioética e responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 73).438 O Neoconstitucionalismo, proposto em especial na Espanha e Itália, vem exercendo influência na academia brasileira nos últimos anos, principalmente após a divulgação de obra organizada pelo jurista mexicano Miguel Carbonell e publicada na Espanha em 2003, sob o título homônimo de “Neoconstitucionalismo(s)”, revelando que talvez não exista uma única concepção neoconstitucionalista, em referência às “diversas visões sobre o fenômeno jurídico contemporâneo que guardam entre si alguns denominadores comuns relevantes e justificam o seu agrupamento sob um mesmo rótulo”, mas dificultam a sua conceituação objetiva. (SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: _____ (Coord.). Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. pp. 114-115).439 SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: _____ (Coord.). Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. pp.

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Importando-se tais perspectivas para o cenário das pesquisas com se-res humanos, torna-se imperioso perquirir em que termos vêm a interpretar o delicado quadro que se apresenta quando, por exemplo, respeitadas as normas regulamentadoras contidas na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saú-de, extrapolam-se os riscos esperados e típicos do procedimento, ocasionando danos desproporcionais à integridade física ou moral do partícipe voluntário (cujo consentimento se dá de forma livre e esclarecida), sendo o próprio su-jeito indiferente a tal evento porque acredita e externa submissão espontânea e irrestrita (por motivação de ordem íntima como a possível cura). A legalidade inicial persiste, ratificada agora pela autonomia da vontade, ou decai em face do desrespeito à dignidade humana?

Resta configurado, portanto, um dos “casos difíceis” do Direito, sobre o qual o neoconstitucionalismo se debruça, discutindo métodos de argumenta-ção racional (identificada aqui com a razoabilidade) que conduzam a melhor resolução desta e qualquer outra questão prática levada ao mundo jurídico440.

Tendo em vista à definição dos chamados “hard cases”, Maia adverte que, controversos e não rotineiros, emergem quando “as práticas legais existen-tes não fornecem uma resposta definitiva, quer seja porque surge uma incerteza em face das várias normas que podem ser aplicadas ao caso concreto, quer se apresente uma antinomia entre normas, ou, ainda, (em casos mais raros) haja uma lacuna legal”441. Ao discorrer acerca do tema, Atienza442 ressalta que tais eventos não são taxativos, admitindo, inclusive, variados arranjos entre si, e complementa o rol dos problemas jurídicos ensejadores de casos difíceis, den-tre outros aspectos, com o que chama de “problemas de interpretação”, oriun-dos de dúvidas quanto à extensão da norma aplicável.

Superada essa breve explanação teórica, a análise das particularidades contidas na prática de experimentos científicos que se coadunam à suposição fática acima indagada conduz à técnica ponderativa, uma vez que dois princí-pios (autonomia e dignidade humana) constituem o foco do conflito jurídico. Isso porque as pesquisas com seres humanos não dispõem de tratamento nor-mativo específico, aqui considerado em sentido estrito, na condição de regras

113-114 e 129.440 Neste sentido: DWORKIN, Ronald. Is Law a Sistem of Rules? In: _____ (Ed.). Philosophy of Law. Oxford: Oxford University Press, 1971; e ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Trad. Luiz Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.441 MAIA, Antonio Cavalcanti. Nos vinte anos da Carta Cidadã: do pós-positivismo ao neoconstitucionalismo. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Org.). Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 124. 442 ATIENZA, Manuel. Argumentación Jurídica. In: VALDÉZ Ernesto Garzón; LAPORTA, Francisco J. (Org.). El derecho y la justicia. Madrid: Trotta, 2000. p. 236.

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legais, cogentes e imperativas, já que a Resolução 196/96 se perfectibiliza em “recomendação ética e não em uma lei em si”443, sem que isso implique, é claro, na redução de sua relevância.

Ainda que da referida Resolução conste o fato de que toda pesquisa com seres humanos envolve risco, sendo referenciado, inclusive, o dano even-tual - imediato ou tardio - que comprometa o indivíduo ou a coletividade (item V), passível, inclusive, de indenização (subitens V.6 e V.7), dela também se extrai que o “pesquisador responsável é obrigado a suspender a pesquisa ime-diatamente ao perceber algum risco ou dano à saúde do sujeito [...] consequente à mesma, não previsto no termo de consentimento [...]” (subitem V.3). Nesses termos, autonomia da vontade e dignidade, enquanto diretrizes principiológi-cas, igualmente embasam o debate.

Em verdade, por meio do reconhecimento da força normativa dos princípios, sobretudo daqueles dotados de expressiva carga axiológica como solidariedade social, igualdade e a própria dignidade humana, o neoconstitu-cionalismo permite uma “maior abertura da argumentação jurídica à moral e ao mundo empírico subjacente”444, compreendida aqui, portanto, a ética, já que ramo filosófico que tem por objeto de estudo os valores morais, matéria-prima dos direitos humanos445.

Segundo Nascimento, os princípios de que se trata, somados à liber-dade, integram o conteúdo essencial da sistemática constitucional brasileira. A dignidade, caracterizada pela “aceitação da centralidade da pessoa natural como ser moral, capaz de fazer escolhas racionais no convívio coletivo”, mostra-se consonante à própria noção de solidariedade designada como a “co-responsabi-lidade pelo destino de todos”446

Retomando o caso hipotético sob análise, essas concepções condu-zem ao entendimento da autonomia do paciente enquanto capacidade de auto-determinação individual desprovida de qualquer resquício de irracionalidade ou conteúdo arbitrário, uma vez que “em seu significado mais profundo, a liberda-

443 ARAÚJO, Laís Záu Serpa de. Aspectos éticos da pesquisa científica. In Pesquisa odontológica brasileira. vol. 17. São Paulo, 2003. pp. 57-63.444 SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: _____ (Coord.). Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 140.445 SHESTACK, Jerome J. The Philosophical Foundations of Human Rights. In: SYMONIDES, Janusz. Human Rights: concepts and standards. London: UNESCO, 2000. p. 31. Em mesmo sentido, Nalini afirma que a moral é o objeto de estudo da ética porque se constitui em “conjunto de normas de conduta ou costumes adotados por certo grupo social” (NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 73).446 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Lealdade processual: elemento da garantia de ampla defesa em um processo penal democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 48.

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de não consiste em poder agir caprichosamente, fazendo inclusive aquilo que resulta prejudicial para si mesmo ou para os demais” 447.

Dessa forma, não lhe é facultado expor sua saúde a danos despropor-cionais, ainda que a isto tenha consentido, tampouco se atribui ao pesquisador a liberalidade de prosseguir em tal experiência ou a qualquer outro indivíduo de assim também agir, em respeito à condição digna e ao escopo solidário que vigoram em uma sociedade democrática. Não se está aqui a conjeturar nenhu-ma proposição utópica, apenas corrobora-se o que Nascimento448 já constatara, ou seja, “porque nos reconhecemos como dotados dos mesmos atributos humanos dispomos de uma autonomia intrínseca, tão verdadeira quanto a nossa interdependência social”, o que faz a afronta à dignidade humana, em sua dimensão particular e universal (motivada pelo dano à saúde) suscitar a insuficiência do aporte exclusivo na condição autônoma do homem como pressuposto de legitimidade ética e jurídica, essa última, em especial, intrínseca ao próprio preceito de legalidade.

Em outros termos, as vontades humanas são “parciais e falíveis”, não subsistindo nenhum elemento que justifique sua imposição sobre as demais449, assim como também não se pode afirmar que a dignidade humana a ela ou aos demais valores (liberdade, igualdade, solidariedade) se sobressaia (o que parece transparecer, a priori), haja vista tratar-se, mais uma vez nas palavras de Nas-cimento, de proposição em aberto porque sem resposta ou com pareceres em vários nortes. O próprio autor, entretanto, assim se posiciona: embora seja, de um lado, direito fundamental do indivíduo e de outro, ônus constitucional do Estado em face da sociedade, dos grupos e dos demais indivíduos, a dignida-de “não abriga uma “carga de sentido” suficiente para que possa ser apontada como matriz e como critério de priorização e de ponderação entre os direitos fundamentais, em razão da dependência havida entre o conceito de dignidade [...] pretensamente invariável, e o conceito variável de pessoa, ao qual o primei-ro é referido”. Em alusão à teoria kantiana, justifica, inclusive, que não basta afirmar que a pessoa deva ser tratada como sujeito e não mero objeto já que, na prática, a “reificação” é admitida em vários casos, a exemplo da alienação da força de trabalho nos moldes capitalistas; a dignidade como vetor imprescinde do alargamento de seu sentido para além desse, sendo compreendida como sín-

447 ANDORNO, Roberto. “Liberdade” e “dignidade” da pessoa: dois paradigmas opostos ou complementares na bioética? In: MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia Ludwig (Org.). Bioética e responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 74.448 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Contribuindo para uma doutrina constitucional adequada: dialogando com a teoria da constituição dirigente. Revista JurisPoiesis. Rio de Janeiro, ano 8, n. 8, p. 429, jul. 2005. p. 429.449 DORIA, A. Sampaio. Direito Constitucional: curso e comentários à constituição. 2 tomos. 3. ed. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1953.

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tese das concepções de liberdade, igualdade e solidariedade quando, no entanto, passa a confundir-se com a própria justiça450.

Sob a mesma perspectiva, após a análise desses outros princípios, Nascimento expressa a conclusão que ora se transcreve de forma literal porque imprescindível à elucidação da postura por ele adotada:

Como se pode ver, a escolha por um vetor exclusivo da ordem cons-tituída é no mínimo problemática. Talvez seja necessário reconhecer que não há um único princípio fundamental positivo com prioridade sobre os demais princípios fundamentais do qual derivem em última análise todos os direitos humanos e fundamentais. Não há nada na ordem constitucional brasileira que justifique a afirmação de existir hierarquia entre princípios fundamentais, pelo contrário. Há direitos humanos positivados e soluções para questões práticas que encontram fundamento na dignidade humana, outros e outras que decorrem do princípio da inviolabilidade da vida, outros ainda emanam do princí-pio democrático, ou mesmo do imperativo de solidariedade451.

Em verdade, toda a argumentação aventada acerca de questões envol-vendo o suposto conflito entre a dignidade humana e a autonomia da vontade no âmbito das pesquisas científicas com seres humanos, o que ora se fez, em geral, sob a inspiração do neoconstitucionalismo, vem a expor as características desse novo paradigma que, se louváveis por uma face, também suscitam críticas em outro expediente.

Outrossim, direcionando-se a abordagem aos aspectos diretamente relacionados ao debate proposto nesse artigo, tem-se, consoante postura ex-ternada por Sarmento452, que a preferência por princípios e ponderação, em de-trimento de regras jurídicas e o processo de subsunção legal, pode acarretar problemas significativos quando não acompanhada de necessária justificação. O uso em larga escala de fundamentações principiológicas vagas ou mesmo desnecessárias (pela existência de lei correlata) demonstra um repúdio exacer-

450 Trata-se de raciocínio complexo e muito bem estruturado trazido por Nascimento, justificando a extensão da paráfrase que, inclusive, tenciona-se fiel ao pensamento do autor. (NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Lealdade processual: elemento da garantia de ampla defesa em um processo penal democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. pp. 106-110).451 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Lealdade processual: elemento da garantia de ampla defesa em um processo penal democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 116.452 SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: _____ (Coord.). Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. pp. 132, 139-140.

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bado ao positivismo, desconsiderando-se, por exemplo, a maior previsibilidade e segurança das decisões pautadas em normas, já que menos sujeitas às valora-ções subjetivas do intérprete.

Imperioso ressaltar que o autor não descarta a aplicação de princípios; ao contrário, considera um progresso jurídico porque, essenciais, conferem maior plasticidade ao Direito: “[...] o importante é encontrar uma justa medida, que não torne o seu processo de aplicação amarrado demais, como num sistema exclusivo de regras, nem solto demais, como sucederia com um que se fundasse apenas em princípios”.

Em posição análoga, Nascimento afirma que a própria Constituição brasileira, por ser “reativa, compromissória, analítica e dirigente”, também faz uso de conceitos abertos e flexíveis, tendência corroborada pelo ‘direito ético’ que suplantou o positivismo. Consoante o autor, “esta realidade conduz a uma visão do ordenamento jurídico centrada nos princípios, reconhecidos como ca-tegoria normativa, e a uma metodologia centrada nas teorias da argumentação, portanto, entre nós o risco de um decisionismo autoritário, que neutralize o pro-cesso de integração é muito alto”453, devendo-se, então, construir “parâmetros formais de legitimidade” aptos a assegurar a aplicação democrática do direito.

Afora as particularidades e críticas tecidas às técnicas de argumenta-ção ou teorias relativas ao processo hermenêutico, sobretudo a partir do fenô-meno neoconstitucionalista, o fato é que Direito e Bioética devem lançar seus influxos sobre as pesquisas científicas com seres humanos visando resguardar a legitimidade das intervenções por meio de um equacionamento (e não sobrepo-sição) entre dignidade humana e liberdade individual capaz de manter incólume a condição principiológica de cada uma, sem representar a supervalorização da força normativa que igualmente exercem no ordenamento jurídico hodierno.

concluSão

Condicionante dos fenômenos jurídicos, dentre eles o aspecto norma-tivo, a dinâmica sócio-cultural, pautada sobretudo no avanço biotecnológico e suas repercussões na esfera médica, faz suscitar questões controversas como a realização de pesquisas envolvendo seres humanos, em especial quando anali-sadas sob a perspectiva de promoção da autonomia do paciente, não só corolá-rio da medicina moderna como fundamento da própria dignidade humana.

Embora indubitáveis os progressos conquistados por intermédio da

453 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Contribuindo para uma doutrina constitucional adequada: dialogando com a teoria da constituição dirigente. Revista JurisPoiesis. Rio de Janeiro, ano 8, n. 8, p. 429, jul. 2005, p. 433.

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atividade médico-científica relacionados ao desenvolvimento de novos substra-tos medicamentosos e técnicas de intervenção continuada para a cura ou mino-ração dos males acarretados pelas mais diversas doenças, registros históricos tem desvelado os abusos outrora cometidos, a exemplo das atrocidades pratica-das durante a Segunda Guerra Mundial, mediante experimentações arbitrárias que não dispunham de qualquer regulamentação ética.

Como uma resposta social aos referidos episódios, dá-se a primeira tentativa internacional nesse sentido com o advento do Código de Nuremberg (1947), oportunidade em que se projetam as diretrizes hoje basilares da Bio-ética, passando a informar as Declarações e demais documentos de intenção conseguintes. Nesse mesmo panorama, a ordem jurídica brasileira conta com a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde que tão somente postula elementos norteadores do procedimento de pesquisa, dedicando-se à denotação ética, sem estabelecer, no entanto, parâmetros de uma limitação objetiva.

A questão assume contornos ainda mais relevantes se considerada a participação voluntária e irrestrita (ao menos no contexto fático) de indivíduo que se submete a experimento desta natureza, cujos riscos à saúde e integridade física e moral são, por si só, uma constante, em virtude de motivação pessoal consubstanciada, por exemplo, na ânsia de auferir a cura e extrapolam-se tais riscos de modo a provocar danos desproporcionais, tendo a pesquisa respeitado, inicialmente, os requisitos previstos na Resolução 196/96 quanto ao consenti-mento livre e esclarecido e ao conhecimento das possíveis e esperadas conse-quências do método.

Conduzindo-se a discussão acerca da amplitude da autonomia da von-tade sob a égide do Direito e da Bioética, porque ciências correlatas e capazes de fornecer os subsídios para a análise de casos complexos como o apresenta-do, já que inexiste legislação específica, não há como relegar o conflito ético--jurídico que se instala pela afronta à própria dignidade humana. Suscita-se aqui o aporte em aspectos típicos da matriz kantiana que refuta a “reificação” do ser humano, com a consequente redução do status de sujeito de direitos, em face da sua caracterização como mero instrumento de investigação científica, igno-rando-se o agir racional e universalizante em que aquela também se funda. O precedente gerado pela permissividade da conduta do indivíduo que se expõe, sem limites, à pesquisa científica restaria, portanto, contrário ao ordenamento pátrio e perigoso ao próprio sujeito e à coletividade.

No que se reporta ao plano teórico, o embate principiológico merece, ainda, a incidência de uma análise de cunho ponderativo. Recorrendo-se aos preceitos do Neoconstitucionalismo, em especial ao reconhecimento da força normativa dos princípios e a flexibilização da hermenêutica jurídica, afora as críticas que igualmente lhe são dirigidas no sentido de exacerbação do emprego

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de princípios em detrimento de regras, redundando em fundamentações vagas ou autoritárias, o fato é que, desprovida de regramento (e não regulação), a le-gitimidade das pesquisas científicas imprescinde de parâmetros ético-jurídicos que só podem ser preconizados por intermédio do equilíbrio entre a dignidade humana e a autonomia da vontade, princípios essenciais que se complementam para gerir a vida particular do indivíduo e a própria sociedade.

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6genoma humano: a ImpoRtâncIa de um acoRdo

InteRnacIonal paRa compaRtIlhaR oS benefícIoS daS peSquISaS***

maria criStina cereSer pezzella

Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná; Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Professora de Pós-graduação em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina; Coordenadora/Líder do Grupo de Pesquisas (CNPq) intitulado Direitos Fundamentais Civis: A Ampliação dos Direitos Sub-jetivos Universidade do Oeste de Santa Catarina. Avaliadora do INEP/MEC e supervisora do SESu/MEC; Advogada.

riVa SObradO de FreitaS

Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Coimbra – Portugal; Doutora e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo; Professora pela Universidade do Oeste de Santa Catarina; Coordena-dora/Líder do Grupo de Pesquisas (CNPq) intitulado Constituição e Cidadania pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho e Direitos Fundamentais Civis: A Constitucionalização dos Direitos Fundamentais Civis pela Universidade do Oeste de Santa Catarina; Professora Assistente-Doutora da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho.

“Quem habita este planeta não é o Homem, mas os homens. A pluralidade é a lei da Terra”454

*** Este artigo é uma homenagem a Patrícia Schneider, Mestre pela Universidade de Caxias do Sul e graduada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, que inicialmente desenvolveu e apresentou na Escola Superior da Magistratura – AJURIS, na mesa Coordenada pela Prof. Dra. Maria Cristina Cereser Pezzella, em evento sob a coordenação científica da Mestra e Juíza Rosana Garbim e Profa. Dra Maria Claudia Crespo Brauner, em 2009.

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SumáRIo: Introdução. 1 Concessão de patentes ao material genético humano. 2 Importância da formulação de um acordo internacional, a preservação da saúde e o incentivo ao desen-volvimento. 3. Acordo internacional e sua propositura. Conclusão. Referências.

IntRodução

O presente artigo tem por finalidade destacar algumas divergências que envolvem as concessões de patentes ao Genoma Humano. O objetivo re-pousa na avaliação da possibilidade de elaboração de um acordo internacional, com diretrizes precisas e eficazes, sobre o tema que pudesse delinear as con-cessões de patentes, dirimindo dúvidas e buscando soluções para a repartição adequada dos benefícios oriundos das pesquisas, em especial na área da saúde. A âncora do estudo repousa na divergência das concessões de patentes do ma-terial genético humano.

Insuficiente dizer que o Genoma Humano é patrimônio comum da humanidade e que pertence a todas as pessoas, pois há necessidade de criar me-canismos internacionais de proteção em razão do diferente tratamento jurídico conferido a esta questão nos mais diversos países. O tratamento diferenciado de cada país permite visualizar um verdadeiro calcanhar de Aquiles, por isso merece tratamento a ser desenvolvido em esfera internacional.

O Brasil é um país que se rege pelos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, que adota o modo capitalista de produção como sistema econômico preponderante, mas também é um país que adotou um sistema capi-talista funcionalizado455 pela própria funcão social da propriedade privada dos meios de produção. Esta pode ser vista em seu aspecto inerte, como coisa a ser apropriada, ou pode ser vista em seu aspecto dinâmico, por meio dos contratos. Assim, toda propriedade, no seu aspecto estático, dinâmicou ou organizacional foi atingida pela função social da propriedade constitucionalmente admitida, mas o ser humano não é passível de apropriação.

454 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Traduzido por Roberto Raposo. Introdução de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981. As autoras são gratas: Marília Pereira. Pesquisadora integrante do Grupo – Direito Fundamentais Civis: A Ampliação dos Direitos Subjetivos –, acadêmica do curso de Direito da Universidade do Oeste de Santa Catariana, pelas– Direitos Fundamentais Civis: A Ampliação dos Direitos Subjetivos – Marília Pereira, acadêmica do 7º período do curso de Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina, pela colaboração. As autoras são gratas também a Pedro Henrique Pezzella Bonin, acadêmico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.455 Sistema capitalista funcionalizado que, constitucionalmente, concretiza o princípio da função social da propriedade.

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A Ordem Econômica Constitucional previu que o Estado poderia susbstituir a iniciativa privada em setores considerados estratégicos para o de-senvolvimento nacional. Compreende-se que a saúde é uma dessas questões estratégicas que estão a merecer uma dedicação mais aprofundada por parte do Estado, principalmente mediante a constituição de empresas públicas que pos-sam produzir aquilo que é fundamental para a solução de problemas enfrenta-dos pela saúde brasileira. Trata-se de um típico problema de demanda elevada. As questões que envolvem a saúde dos nacionais (e dos não nacionais) mere-cem ser objeto de estudo científico, dentro e fora do país, também merecendo uma ordem nacional de controle e proteção na esfera local e internacional.

Sublilhe-se que debates como este são malvistos por amplos setores econômicos, eis que acabam por ferir interesses corporativos. No entanto, a democracia visa criar um ambiente social e político para a efetivação dos di-reitos das maiorias e não das minorias economicamente vulneráveis. Por isso, a economia deve ser normatizada pelo direito, ou seja, tornar-se viável para a realização do horizonte de aspirações que o povo brasileiro definiu em sua Constituição de 1988 e para além dela456.

A efetivação dos direitos fundamentais passa sim pelo terreno do eco-nômico, do financeiro e da reserva do possível num ambiente historicamen-te determinado, mas não pode aí encontrar o seu teto de desenvolvimento. O terreno do jurídico e do político são os terrenos determinantes daquilo que é necessário e querido e devem fazer avançar a sociedade.

1. conceSSão de patenteS ao mateRIal genétIco humano

Registre-se que, desde o início das pesquisas que envolvem o material genético humano, não houve consenso entre os diversos países acerca da for-ma de proteção que seria concedida para as manipulações e sequenciamentos advindos do genoma humano457. Tal fato gerou diferenças na forma de conce-

456 Esta normatização referida pelo texto considera as teorias sobre a aplicabilidade das normas constitucionais de José Afonso da Silva. Para o autor, dispositivos constitucionais desta natureza, são normas de eficácia limitada e aplicabilidade indireta, mediata e reduzida. Carecem de mediação legislativa, para além de eventuais políticas públicas, de modo a atingir as metas constitucionais propostas. Para mais informações consultar a obra Aplicabilidade das normas constitucionais de José Afonso da Silva, 2000.457 Barchifontaine esclarece: “O mundo vivo, microorganismos, plantas, animais e o homem são constituídos de células. O núcleo da célula contém os cromossomos: 23 pares no homem. Os cromossomos são constituídos de DNA (Ácido Desoxirribonucléico), molécula que guarda todas as informações codificadas na forma de genes. O DNA é compactado dentro do núcleo celular em 23 pares de cromossomos. O DNA é constituído de quatro bases ou “letras”: adenina (A), citosina (C), guanina (G), timina (T). O genoma humano é formado por 3,5 bilhões de pares de bases. Seqüência de milhares de “letras” formam “palavras”: os genes (mais ou menos 50 mil).” Ainda,

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ber o genoma, pois alguns países passaram a conceder proteção aos resultados advindos das manipulações do genoma enquanto outros, em contrapartida, não concederam tal proteção. Os países que autorizam a proteção das manipulações advindas do genoma humano estipulam em favor do cientista ou pesquisador uma propriedade temporária utilizando o instituto da patente que, quando con-cedida aos genes, se intitula como patentes biotecnológicas458.

A figura da patente também é conhecida no direito brasileiro459, mas no Brasil esta não pode ser utilizada para proteger a propriedade advinda de manipulações genéticas porque a lei não permite. Pela legislação brasileira, em conformidade com o artigo 8º, da Lei 9.279/96, são concedidas patentes para invenções460 ou modelos de utilidade que preencham os seguintes requisitos: novidade absoluta, atividade inventiva e aplicação industrial461.

o Autor traz conceitos importantes: “GENÉTICA: ciência que trata da reprodução, herança, variação e o conjunto de fenômenos e problemas relativos à descendência. CROMOSSOMO: material hereditário cuja principal função é conservar, transmitir e expressar a informação genética que contém. A espécie humana tem 46 cromossomos (23 pares). GENE: unidade física e funcional do material hereditário que determina uma característica do indivíduo e é transmitida de geração em geração. DNA: sigla em inglês de Ácido Desoxirribonucléico. É um complexo filamento de substâncias químicas que, ordenadas de forma especial em cada pessoa, diferenciam um indivíduo do outro, como uma “marca registrada” genética que condiciona desde a cor dos olhos até a ocorrência de uma moléstia. GENOMA: material genético contido nos cromossomos de um organismo. GENOMA HUMANO: conjunto de genes de um organismo, o patrimônio genético armazenado no conjunto de seu DNA ou de seus cromossomos. Contém informações sobre as principais características hereditárias, alterações e doenças que o ser humano pode sofrer em sua vida. Conhecer e localizar os genes possibilita intervir sobre os responsáveis pelas doenças”. (PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Fundamentos de bioética. São Paulo: Paulus, 1996. pp. 246-9).458 O termo biotecnologia significa a junção da biologia à tecnologia, fatores que aliados permitem desvendar informações acerca do material genético humano.459 No Brasil, a patente é tratada como “um título de propriedade temporária sobre uma invenção ou modelo de utilidade, outorgados pelo Estado aos inventores ou autores ou outras pessoas físicas ou jurídicas detentoras de direitos sobre a criação. Em contrapartida, o inventor se obriga a revelar detalhadamente todo o conteúdo técnico da matéria protegida pela patente”. (INPI. Sobre o conceito de patentes. Disponível em: http://www.inpi.gov.br.. Acessado em: 21.07.2012).460 Cláudia Inês Chamas refere o significado de invenção: “Entendemos invenção como uma idéia ou um conjunto de idéias que, mediante aplicação, possibilita solucionar um problema técnico. A invenção é um bem imaterial, podendo se materializar na forma de um produto ou processo, ou de um novo uso de produto ou processo já conhecido”. (CHAMAS, Cláudia Inês. “Propriedade intelectual e biotecnologia.” In: Cadernos Adenauer. Biotecnologia em discussão, vol.8. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2000. p. 99).461 Os requisitos para a concessão de patentes pela modalidade de invenção – novidade absoluta, atividade inventiva e aplicação industrial – estão elencados, respectivamente, do artigo 11 ao 15, da Lei de Propriedade Industrial nº. 9.279/96, qual sejam: art. 11 – A invenção e o modelo de utilidade são considerados novos quando não compreendidos no estado da técnica; art. 12 – Não será considerada como estado da técnica a divulgação de invenção ou modelo de utilidade, quando

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O genoma, pela prescrição contida no artigo 10, inciso IX, da Lei 9.279/96, não é considerado nem invenção e nem modelo de utilidade, logo, não pode ser objeto de patente. Por outro lado, o genoma não preenche os três requisitos apontados, o que ressalta o fato de não poder ser objeto de concessão de patente no Brasil. O doutrinador Luiz Otávio Pimentel esclarece porque o material genético não preenche os requisitos legais de novidade e aplicação industrial:

O problema de ordem técnica, a ser superado pelas invenções que tem por objeto a matéria viva, refere-se ao cumprimento dos requisitos de patenteabilidade, particularmente a novidade e a aplicação indus-trial. Muitos produtos obtidos pela biotecnologia são substâncias que já existem de forma natural (proteínas, anticorpos, microorganismos, etc), que poderiam ser considerados como meros descobrimentos e não uma invenção patenteável. A aplicação industrial, que pressupõe a repetição do resultado, ao tratar de matéria viva, geralmente mu-tante e em contínua evolução, torna o resultado da utilização indus-trial dificilmente homogêneo. De modo que os requisitos devem ser verificados em parâmetros distintos do tradicional. A peculiaridade do material genético, por exemplo, é a replicação (suscetibilidade de reproduzir-se por si mesmo)462.

No mesmo sentido e numa visão complementar, Salvador Darío Bergel exemplifica a ausência do requisito atividade inventiva, como se pode observar:

A descoberta do genoma e a subsequente intervenção na matéria viva são realizadas seguindo estágios de rotina: clonagem do DNA, re-combinação genética, fusão celular, verificação do DNA em bancos de dados e sequenciarão automática. Seguir estes estágios de rotina não pode levar a existência de uma atividade inventiva porque esta atividade não pode ser derivada da aplicação de técnicas convencio-

ocorrida durante os 12 (doze) meses que precederem a data de depósito ou a da propriedade do pedido de patente [...]; art. 13 – A invenção é dotada de atividade inventiva sempre que, para um técnico no assunto, não decorra de maneira evidente ou óbvia do estado da técnica; art. 14 – O modelo de utilidade é dotado de ato inventivo sempre que, para um técnico no assunto, não decorra de maneira comum ou vulgar do estado da técnica; art. 15 – A invenção e o modelo de utilidade são considerados suscetíveis de aplicação industrial quando possam ser utilizados ou produzidos em qualquer tipo de indústria. LEI 9.279/96. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9279.ht. Acessado em: 19.09. 2012.462 PIMENTEL, Luiz Otávio. Direito Industrial. As funções do Direito de Patentes. Porto Alegre: Síntese, 1999. p. 223.

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nais conhecidas por um técnico especializado463.

A Lei 9.279/96 prescreve no artigo 10 que os seres vivos encontrados na natureza não serão objeto de patente, pois não passam de mera descoberta. Logo, no Brasil, as manipulações decorrentes do genoma humano são consi-deradas meras descobertas, sendo defendida a tese de que o cientista apenas observou e examinou mais atentamente o genoma e descobriu o que já exis-tia no mundo dos fatos e, portanto, as manipulações advindas do genoma não são consideradas invenções, disto resultando que não é permitida a concessão de patentes às manipulações e sequenciamentos advindos do material genético humano.

Considerar as manipulações advindas do genoma como descobertas, e não como invenções, merece a ponderação de Ubirajara Mach de Oliveira, que desenvolve assim seu pensamento:

O próprio mundo científico alterou a visão de si mesmo. VILLALBA destaca que Newton e Darwin já não foram considerados os descobri-dores da lei da gravidade e da evolução, mas sim seus criadores. As des-cobertas científicas passaram a ser vistas como obras da imaginação464. Registre-se que, em que pese exista o impedimento via legislação bra-

sileira à concessão de patentes ao material genético humano, há no Instituto Nacional de Propriedade Industrial muitos pedidos deste tipo de patente465. Tais requerimentos são feitos em sua grande maioria por países estrangeiros466.

463 BERGEL, Salvador Darío. “Genoma Humano e Patentes, p. 137-46.” In: GARRAFA, Volnei; PESSINI, Leo. Bioética: poder e injustiça. Traduzido por Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Centro Universitário São Camilo/ Loyola/Sociedade Brasileira de Bioética, 2003. p. 142.464 OLIVEIRA, Ubirajara Mach de. A proteção jurídica das Invenções de Medicamentos e de Gêneros Alimentícios. Porto Alegre: Síntese, 2000. p. 35.465 “O Instituto Nacional da Propriedade Industrial é uma autarquia federal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. A função precípua do INPI é executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial levando em conta sua função social, econômica, jurídica e técnica. O INPI é ainda responsável pela concessão de marcas e patentes (...)”. (KRETSCHMANN, Ângela; MÜLLER, Michele Coelho. “O sistema internacional de patentes e a transferência de tecnologia”. In: Revista Estudos Jurídicos, São Leopoldo, Unisinos, vol. 38, n. 2, maio-ago. 2005, p. 77). 466 Este dado foi obtido junto ao INPI do Rio de Janeiro. Tais pedidos chegam ao Brasil por intermédio do PCT (Patent Cooperation Treaty) que é um tratado procedimental e administrativo, que busca facilitar o procedimento de concessão de patentes em mais de um país. O procedimento se divide na fase internacional e fase nacional. Na fase internacional, deposita-se apenas um pedido em um escritório. Esse pedido terá efeito nos demais Estados designados. Após, ocorre a busca internacional, onde se pesquisa quanto à novidade da invenção examinada. Logo após, ocorre a

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Ressalte-se que muitos países estão ponderando os requisitos da patenteabi-lidade e vêm concedendo de forma ampla patentes de genes para Empresas e Laboratórios, o que dá margem a grandes preocupações, em especial, no que diz respeito à violação ao princípio da dignidade da pessoa humana467 nas con-cessões de patentes.

Diante da relevância da dignidade humana, verifica-se que é o Es-tado que existe em função da pessoa humana e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua e não o meio para se efetivar a atividade Estatal468. Conclui-se que a dignidade da pessoa constitui um limite à ação do Estado, bem como de todos os indivíduos da sociedade469. Resulta daí que o

publicação internacional, que é realizada pelo escritório internacional da OMPI. A fase nacional existe somente nos escritórios que o requerente quiser prosseguir com a concessão de patente, sendo que este já possui informações acerca das chances de obter ou não a patente. (KRETSCHMANN, Ângela; MÜLLER, Michele Coelho. Op. cit., p. 73). “A Organização Mundial da Propriedade Intelectual - OMPI, criada em 1967, é um dos 16 (dezesseis) organismos especializados do sistema das Nações Unidas, de caráter intergovernamental, com sede em Genebra, Suíça. A Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) é uma organização internacional cujo objetivo é zelar pela proteção dos direitos dos criadores e titulares da propriedade intelectual em âmbito mundial e, consequentemente, contribuir para que se reconheça e recompense o talento dos inventores, autores e artistas”. (OMPI. Dados sobre a Organização Mundial de Propriedade Intelectual. Disponível em: http://www.wipo.int/about-wipo/es/gib.htm. Acessado em: 02.09.2012).467 Cláudio Moreno defende o uso da expressão pessoa humana da seguinte maneira: “Na obra de nossos escritores há dezenas de exemplos em que o adjetivo humano foi usado para se opor a outros tipos de pessoas. No séc. 16, Manuel Pires de Almeida compara, na obra de Camões, as pessoas deificadas com as pessoas humanas; Camilo Castelo Branco respeita a adoração de um jovem enamorado, para o qual a noiva é uma pessoa divina, prometendo que não vai “pô-la em confronto com os lapsos das pessoas humanas”; Rubião herda a fortuna de Quincas Borba com a condição de cuidar muito bem do cachorro – cuidar dele, no fundo, “como se cão não fosse, mas pessoa humana”; e Saramago, em A Caverna, afirma “que nem tudo se encontra resolvido na relação entre as pessoas humanas e as pessoas caninas”. Estou muito mais inclinado a admitir que foi algum motivo sutil, e não um afrouxamento estilístico, que terá levado nossos escritores a empregarem também pessoa humana no sentido genérico. Em Machado: “os romancistas [...] se presumem grandes analistas da pessoa humana cheio de mistérios científicos, que ele não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana”. Em Lima Barreto: “estávamos diante da mais terrível associação de males que uma pessoa humana pode reunir”; “há um cristal de pureza inalterável como núcleo eterno da pessoa humana”. Em Rui Barbosa: “Aí não há senão uma altitude da pessoa humana, do mérito individual na solitária sublimidade do seu poder”. Em Drummond: “ na pessoa humana vamos redescobrir aquele lugar”. Em Nelson Rodrigues: “Stalin e Hitler se juntaram contra a pessoa humana”. O leitor vai concordar que quase todos esses exemplos ficariam capengas se retirássemos o adjetivo e deixássemos apenas pessoa. Essa mesma sutileza deve ser a responsável desvalidos de humanos que não são pessoas – o que deixa claro que uma coisa não pressupõe necessariamente a outra”. 468 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 65.469 PIÑEIRO, Walter Esteves. “O princípio bioético da autonomia e sua repercussão e limites

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princípio da dignidade humana, dada a sua relevância, é base para qualquer construção, ganhando importância como “norte guiador” nas pesquisas que en-volvem o Genoma Humano. Assim, é necessário que os temas a que se referem os valores mais intrínsecos do ser humano e da própria espécie sejam analisados sob o amparo do princípio da dignidade humana470.

A amplitude da concessão de patentes também é objeto de reflexão de Luiz Otávio Pimentel, que assim se refere: “O Instituto Europeu de Patentes tem sido flexível ao deferir os pedidos de patentes biotecnológicas, reduzindo cada vez mais os casos de proibição de patenteabilidade” 471.

A grande divergência advém de que, a legislação brasileira, em con-traponto com outras legislações, não permite o patenteamento do material ge-nético humano472. A maior parte das pesquisas ocorre no mundo ocidental e a maioria das patentes foi concedida nos Estados Unidos da América do Norte 473. Tal situação de concessão diferenciada de proteção pode incentivar desigualda-des entre nações, conforme alerta Giovanni:

Além disso, é muito provável que futuras pesquisas no campo da genética aumentem as desigualdades entre as nações ricas e pobres, como também entre ricos e pobres, no interior de cada nação [...]. Sem medidas adequadas, é provável que os benefícios favoreçam somente as pessoas ricas das nações ricas474.

Constata-se que diversos países investem quantias consideráveis na pesquisa genética para alcançar o patenteamento do maior número de genes

jurídicos”. In: Cadernos Adenauer. Bioética. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, maio de 2002. p. 125.470 SCHRAMM, Fermin Roland. “A pesquisa bioética no Brasil entre o antigo e o novo.” In: Cadernos Adenauer. Bioética. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, maio de 2002. p.90.471 PIMENTEL, Luiz Otávio. Op. Cit., p. 223.472 Os países sofrem pressão dos cientistas e das Empresas privadas, assim: “Para se ter uma idéia segundo as diretrizes da Comunidade Econômica Européia, as patentes terão validade por vinte anos e abrangem, desde microorganismos, como bactérias e vírus, até linhas celulares e elementos isolados do corpo humano, como seqüências de material genético, apenas não é admitido, por hora, o patenteamento do corpo humano como um todo ou de suas partes isoladamente, já nos Estados Unidos da América, há dez anos essas patentes são possíveis...” (CARLUCCI, Nina Valéria. Biotecnologia e bioética. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/1842/biotecnologia-e-bioetica. Acessado em: 10.07.2012). 473 RIFKIN, Jeremy. A valorização dos genes e a reconstrução do mundo: O século da biotecnologia. São Paulo: Makron Books, 1999. p.67.474 BERLINGUER, Giovanni. “Ciência, mercado e patentes do DNA humano, p. 97-106.” In: Revista de Bioética e ética médica, Brasília, Conselho Federal de Medicina PF, vol. 8, n. 1. 2000, p. 99.

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possíveis, em razão dos interesses de cunho econômico475.O embate que ocorre acerca do tema entre os países, se torna mais

acirrado face aos grandes avanços na área da saúde, lucros econômicos e po-der que as manipulações do genoma prometem trazer. Jeremy Rifkin refere a importância dos genes na atual conjuntura: “Os genes são o ouro verde do século biotecnológico. As forças políticas e econômicas que controlam os re-cursos genéticos do planeta exercerão enorme poder sobre a futura economia mundial”476.

No Brasil, cumpre citar o Projeto de Lei nº 2695/03 que propõe uma alteração no inciso IX, do artigo 10, da Lei 9.279/96, para permitir a patente as sequências de DNA com aplicações industriais. A redação original vigente do referido artigo é a seguinte: “Art. 10. Não se considera invenção nem modelo de utilidade: [...] IX - o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais bio-lógicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o ge-noma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais”477. O Projeto de Lei pretende que a redação seja alterada para:

Art. 1º O inciso IX do art. 10 da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação: IX - o todo ou parte de se-res vivos naturais, os materiais biológicos encontrados na natureza e os processos biológicos naturais, exceto seqüências totais ou parciais de ácido desoxirribonucleico e materiais biológicos isolados de seu entorno natural ou obtidos por meio de procedimento técnico, cujas aplicações industriais sejam comprovadas clara e suficientemente no pedido de patente478.

Na justificativa das alterações do projeto de lei em comento consta expressamente:

475 Neste sentido refere Salvador Darío Bergel: “La Sociedad Americana de Genética Humana (ASHG) destacó que el patentamiento de ESTs va a resultar em detrimento del Proyecto Genoma Humano, ya que éste debe ser el resultado de uma cooperación internacional y no de uma competencia entre laboratorios y países para ver quiém puede poseer la mayor proporción del genoma humano”. (BERGEL, Salvador Darío. “Notas para um debate actual acerca del patentamiento del material genético humano.” In: ANDRADE, Raiza; GÓMES, Francisco Astudillo; BERGEL, Salvador Dario; et al. Biotecnologia y Propriedad intelectual. Venezuela: Livrosca Coracas, 1999. p. 46). 476 RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., p. 39.477 LEI 9.279/96. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9279.htm. Acessado em: 09.09.2012.478 PROJETO DE LEI Nº 2695/03. Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/188275.pdf. Acessado em: 24.08.2012.

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A nossa lei de proteção industrial contém importante entrave para o desenvolvimento científico nacional na área biológica, e posterior aplicação do conhecimento ou tecnologia desenvolvida. Trata-se do inciso IX do art.10, cuja redação impede o patenteamento de mate-riais biológicos, mesmo que retirado da natureza ou separado do seu entorno natural.Esta proibição está, atualmente, em desacordo com a postura adotada pela maioria dos países, a qual é conceder patente a material biológi-co purificado e isolado de seu entorno, desde que este material tenha aplicação industrial. O propósito do presente projeto de lei é colocar este aspecto da legislação em sintonia com os demais países, e criar um incentivo para a pesquisa brasileira em biotecnologia, com a pos-sibilidade de instituições, empresas e pesquisadores nacionais paten-tearem o resultado de seus atos inventivos.A nova redação que ora propomos para o citado inciso IX mantém a condição de não se considerar invenção os seres vivos naturais, os materiais biológicos encontrados na natureza e os processos naturais. No entanto, excepcionaria, como o faz o atual art. 18 em relação a mi-croorganismos transgênicos, os materiais biológicos retirados do seu meio natural e as seqüências de ácido desoxirribonucleico ou DNA, como é popularmente conhecido, sob a condição de que tenham apli-cação industrial. Entendemos esta redação proposta como de grande importância para a ciência nacional479.

Os dados advindos das manipulações do genoma tornaram-se infor-mações ricas e sua discussão persiste na busca de saber qual seria a melhor forma de proteger tais informações e, ainda, se a patente seria o instituto cor-reto para alcançar tal proteção de forma a distribuir corretamente os benefícios oriundos das pesquisas. Como a patente já vem sendo utilizada, cumpre analisar a possibilidade de um acordo internacional sobre o tema para evitar as diver-gências e os problemas citados.

2. ImpoRtâncIa da foRmulação de um acoRdo InteRnacIonal, a pReSeRvação da Saúde e o IncentIvo ao deSenvolvImento

Da análise realizada, resulta um quadro negativo, vez que a concessão de patentes ao material genético humano sem limites pode prejudicar o desen-volvimento científico e tecnológico criando monopólios, que são incompatíveis

479 PROJETO DE LEI Nº 2695/03. Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/188275.pdf. Acessado em: 24.08.2012.

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com o desenvolvimento.Por outro lado, a simples condenação da concessão de patentes re-

presenta cerceamento ao desenvolvimento, da ciência e das possibilidades de melhoria, na área da saúde. É inegável que o incentivo às pesquisas no Genoma Humano pode trazer inúmeros benefícios para a humanidade, alcançando avan-ços em diversas áreas. Entre estas, destaca-se a da saúde e da qualidade de vida, assim como a prevenção de doenças e a criação de novos medicamentos. Ainda, a concessão de patentes estimula a produção científica na área da biotecnologia, pois os pesquisadores e cientistas se sentem estimulados e recompensados com a proteção advinda da patente.

O que se deseja é proporcionar o estímulo ao avanço científico na área da biotecnologia, proteger a vida e a saúde humana, bem como estabelecer normas para o uso do genoma humano em caráter global para inibir os abusos na utilização deste material que pertence à humanidade, conforme prescreve a Declaração do Genoma Humano. A concessão de patentes interessa a todos os cidadãos do mundo, portanto, é necessário que sejam delineados limites a estas concessões em caráter mundial. Todas as nações devem se unir a fim de estabe-lecer critérios bem definidos para as concessões nesta área tão promissora e ao mesmo tempo tão complexa.

Poucas questões têm o condão de gerar tanta polêmica e preocupa-ções por parte da sociedade moderna como a concessão de patentes ao mate-rial genético humano, seja pelas inúmeras possibilidades de melhoria, seja pelo medo do resultado480. Atualmente, o grande problema que é conciliar o saber dos cientistas com o respeito ao ser humano. Ubirajara refere a importância desta conciliação:

Não obstante, convém persistam os estudos a respeito, diante da be-néfica influência decorrente da investigação científica e do incremen-to da atividade inventiva. É possível que, no futuro, seja necessário encontrar um ponto de equilíbrio entre os interesses e os direitos dos cientistas, inventores e empresários [...]. Precisamos estar conscien-tes, neste fim de século, de que a tecnologia é um poder, um benéfico poder, que precisa estar subordinado aos interesses precípuos do ser humano e da sociedade como um todo. [...] A atual sistemática de acumulação da riqueza, baseada no conhecimento e na inovação, re-sulta na imprescindibilidade de uma adequada proteção jurídica aos

480 SYMONIDES, Janusz (org). “Novas dimensões, obstáculos e desafios para os direitos humanos: observações iniciais.” In: Direitos humanos: novas dimensões e desafios, p. 47 e “Os direitos humanos e o progresso científico e tecnológico.” In: Direitos humanos: novas dimensões e desafios. pp. 307-33.

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esforços de pesquisa e de desenvolvimento. Trata-se de um requisito indispensável para incentivar novos investimentos em áreas de alta tecnologia, assegurando um merecido retorno que compense os riscos financeiros envolvidos481.

O objetivo central é proteger a dignidade do ser humano e, ao mesmo tempo, incentivar o desenvolvimento científico e tecnológico para que se possa usufruir dos benefícios advindos das pesquisas com o genoma humano. Por esta razão, é fundamental pensar numa regulamentação em escala mundial dos limi-tes e das possibilidades das concessões de patentes, por haver a necessidade de cotejar interesses relevantes postos em disputa. Andrew argumenta defendendo a importância da regulamentação:

Parece-me que o interesse público, no caso da pesquisa genética, deve ser protegido pela sociedade e não deve ser deixado nas mãos de pes-quisadores individuais. Leis bem feitas podem conciliar a segurança do público e os benefícios do progresso científico mais eficientemente do que o poderiam as pessoas individuais. Cientistas, imersos em sua própria pesquisa e motivados pela fama de descobertas importantes, po-dem, facilmente, omitir-se em ver os interesses de seus concidadãos482.

A Sociedade da Informação permite que ocorra, via engenharia gené-tica, avanços significativos nestas pesquisas que podem ser divulgados numa perspectiva em tempo real. Neste compasso, a legislação ainda não se adequou de forma a regular satisfatoriamente as inovações e, em especial, a propriedade dos resultados das pesquisas483. Como todas as dimensões do poder, as con-

481 OLIVEIRA, Ubirajara Mach de. Op. Cit., pp. 38-40.482 VARGAS, Andrew C. Problemas de bioética. Edição Revisada, São Leopoldo RS: Unisinos, 1990 p. 135.483 Weeramantry refere: “Vivemos numa época dominada pela tecnologia, sendo esta uma nova fonte de poder. Aos que dominam a tecnologia, ela confere um poder sobre o restante da sociedade, sob diversos aspectos, mais fundamental e abrangente do que qualquer outro jamais apresentado na longa história da humanidade. Proporciona um controle mais substantivo sobre o meio ambiente, a sociedade, o corpo e a mente humana do que aquele que possuíam os grandes potentados do passado. Como todas as outras dimensões do poder, também esta deve estar sujeita a lei. Contudo, o progresso da tecnologia tem sido tão rápido e a sua influência tão difusa que o direito não têm se mostrado a altura da tarefa. (...) O desenvolvimento da tecnologia corre em paralelo com o crescimento dos impérios empresariais dela detentores. Porque a tecnologia sofisticada é cara e porque sua geração e seu controle demandam vultuosos investimentos, as grandes corporações costumam ter a sua propriedade”. (SYMONIDES, Janusz (org). Op. Cit., p. 307).

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cessões de patentes ao material genético humano, por envolver questões que interessam a todos os indivíduos e, principalmente, por afetar a todos indistin-tamente, também devem estar sujeitas às leis484. No tocante a relevância desta fonte de poder, Elaine S. Azevedo defende:

A possibilidade de revelação do código genético de pessoas, povos e nações é o centro das preocupações éticas na pesquisa em genética humana. Conhecer o DNA de pessoas, povos e nações significa ter acesso ao conhecimento de vulnerabilidades e das resistências a mi-croorganismos, a agentes químicos e físicos, a respostas e reações a drogas e medicamentos e, possivelmente, a interferências sobre com-portamentos. Ainda que haja exageros teóricos induzidos por possi-bilidades de investimentos no mercado pertinente, a apropriação da informação genética de pessoas, povos e nações, reveste-se de real poder cientifico, político, estratégico e bélico485.

Certamente uma regulamentação nesta área envolverá diversos con-flitos de interesses nos mais diversos âmbitos, tais como éticos, científicos e econômicos. No entanto, é necessário estabelecer limites às concessões de pa-tentes antes que ocorra um verdadeiro confisco do patrimônio genético. Salva-dor Dario Bergel, alerta para a dificuldade, e por outro lado, para a necessidade de regulamentação:

Todos compreendemos que quando se patenteia material genético humano, convergem três áreas: a econômica, a científica e a social. Ás vezes, é difícil conciá-las, mas isso não nos deve deixar numa situação de conformismo em que aceitemos as coisas como são. É aconselhável lembrar que a declaração da UNESCO sobre o genoma humano e os direitos humanos significou a superação de uma série de problemas, o que não impediu a construção de um instrumento amplamente aceito por diferentes países, grupos étnicos e raças. É necessário insistir nisso para que se possa resolver com justiça várias questões ligadas à propriedade do genoma humano. Assim, o mundo não vai virar uma verdadeira selva em que indústrias, agentes de pro-priedade industrial e escritórios nacionais de patentes ditem as regras

484 Idem, p. 307.485 AZEVEDO, Eliane S. “Ética na pesquisa em genética humana em países em desenvolvimento.” In: PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Chiristian de Paul de. Bioética: Poder e Justiça. São Paulo: Sociedade Brasileira de Bioética Centro Universitário São Camilo, Loyola. 2003. p. 327.

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em detrimento do interesse geral486.

Um tratamento jurídico adequado para o tema, tanto em âmbito inter-no quanto internacional, deve conter, além das perspectivas relacionadas com a propriedade industrial, as preocupações éticas que envolvem a manipulação genética sobre o genoma humano, em especial, que atenda ao princípio da dig-nidade da pessoa humana487 e que proteja a distribuição dos benefícios em uma perspectiva internacional.

3. acoRdo InteRnacIonal e Sua pRopoSItuRa

Há que se destacar que alguns novos parâmetros já estão sendo estru-turados pela doutrina acerca da regulamentação do patenteamento do material genético humano. Destaca-se o pensamento de Salvador Darío Bergel que suge-re a formulação de um acordo internacional na perspectiva dos limites às con-cessões de patentes e a apropriação do genoma humano, incluindo a sequência total ou parcial de genes488, posicionamento que merece respaldo. Tal acordo, conforme o autor, compreende as seguintes determinações:

Um acordo internacional como esse deveria ao menos estabelecer: 1. Claras restrições à apropriação do genoma humano, separando-se as patentes daquilo que se considera a descoberta de dados genéticos. 2. Critérios unificados para prevenir, quando o material for patente-ado, que o inventor obtenha ganhos que ultrapassem os limites de sua contribuição à sociedade. 3. Amplos critérios no tocante à con-cessão de licenças. 4. A permanência obrigatória no domínio público das sequências totais ou parciais de genes. 5. Um intercâmbio mais amplo e melhor conduzido de informações científicas para permitir o progresso nas pesquisas atuais. 6. A garantia de acesso aos progressos médicos por populações que para eles contribuem489.

Cumpre ressaltar que mencionado doutrinador defende a permanên-cia no domínio público da investigação acerca do genoma humano:

Várias iniciativas de organizações acadêmicas e industriais têm ten-

486 BERGEL, Salvador Darío. Op. Cit., p. 144, 2003.487 SCHOLZE, Simone Henriqueta. Op. Cit., p. 67. 488 BERGEL, Salvador Darío. Op. Cit., p. 143, 2003.489 Idem, p. 144.

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tado preservar e promover o domínio público da investigação do ge-noma, a fim de interromper os avanços das sociedades genômicas e suas políticas de apropriação irrestrita de material genético. [...]. J. F. Mattei assinala quanto a isso que a apropriação do conhecimento por meio de patentes vai levar ao confisco do futuro. O projeto de sequenciação reuniu seis países. Uma situação como essa não vai ser aceitável no futuro para todos os países que se viram excluídos nem para os países subdesenvolvidos490.

Para preservar interesses coletivos, a fim de que a utilização do insti-tuto da patente do material genético humano atenda aos interesses dos cidadãos, do Estado e da ciência, deve sempre prevalecer o interesse público, procurando garantir não somente o básico para a população, mas o acesso a todas as novas benfeitorias advindas das manipulações, em especial na área da saúde. Convém ressaltar que um melhoramento em termos genéticos pode significar a vida de um cidadão. O material genético pertence à humanidade, sendo justo que os re-sultados das pesquisas neste meio não permitam a criação de monopólios, mas sim sejam compartilhados, sem discriminação, por todos os indivíduos. Neste sentido preleciona Salvador Darío Bergel:

Na consideração do material genético humano, é evidente o estreito vínculo entre a pesquisa do genoma e a saúde pública no tocante ao diagnóstico e ao tratamento de doenças. Há um interesse geral em faci-litar a pesquisa sem interferências de modo a dar à comunidade cientí-fica fácil acesso às informações obtidas. Temos que assinalar que gran-de parte dessa pesquisa se concentra no mundo ocidental, no mundo desenvolvido habitado por 1% da população mundial e que a maioria das patentes do genoma foram concedidas nos Estados Unidos491.

Outro aspecto que deverá ser levado em consideração pelos países desenvolvidos é a possibilidade de proporcionar aos países em desenvolvimen-to a utilização de pesquisas sem o pagamento de Royalties492. A manipulação

490 Ibidem, p. 145.491 Ibidem, p. 146.492 “É um direito que o titular da patente tem de receber benefícios a partir do uso por terceiros da idéia que ele protegeu. Os Royalties são uma parte do dinheiro recebido através da patente, toda vez que alguém quiser usar a invenção patenteada deverá pagar os Royalties para usar”. (PROGRAMA Política e Direito Socioambiental (PPDS), do ISA, em 6 e 7 ago. Brasília. 2004. “Questão dos Royalties.” (Oficina). Disponível em: http://www.socioambiental.org/nsa/inst/docs/download/duvidas_pontos_polemicos_bio.pdf. Acessado em: 14.09.2012).

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genética interessa a todos os cidadãos do mundo, não sendo justo que as nações menos desenvolvidas sejam alijadas das pesquisas em determinadas áreas, pela falta de recursos para pagar os Royalties correspondentes. A dispensa do pa-gamento de Royalties nas pesquisas deverá ser regulada entre os países, com o fim de proporcionar o desenvolvimento conjunto das Nações. Uma norma internacional com diretrizes precisas sobre o tema poderia compatibilizar as concessões de patentes com o avanço científico e tecnológico, preservando a dignidade humana e o futuro das novas gerações.

concluSão

Diante do panorama traçado, acerca das divergências nas concessões de patentes ao material genético humano, verifica-se que a propriedade indus-trial no Brasil prevê a concessão de patentes quando o invento preencher os requisitos correspondentes à novidade absoluta, atividade inventiva e aplicação industrial. A lei menciona que os seres vivos encontrados na natureza não se-rão objeto de patentes, pois não passam de mera descoberta (artigo 10, da Lei 9.279/96). Assim, sob a ótica da legislação brasileira, nas patentes de material genético humano, têm-se uma descoberta que carece dos critérios já descritos.

O Brasil coíbe a concessão de patentes ao material genético humano enquanto outros países, com destaque aos Estados Unidos da América do Norte (EUA), autorizam a concessão de patentes ao material genético humano sem limites podendo prejudicar o tão almejado desenvolvimento científico e tecno-lógico e, ainda, prejudicar a distribuição dos benefícios oriundos das pesquisas. Verifica-se a necessidade de uma regulamentação específica sobre o tema, a fim de proteger a dignidade do ser humano e, ao mesmo tempo, proporcionar a continuidade das pesquisas com a repartição dos benefícios.

Esta concessão necessita de regulamentação urgente. Os rumos do debate do tema em apreço consistem exatamente em uma regulamentação, por meio de um acordo internacional, com diretrizes precisas e claras sobre o tema, envolvendo questões como a prevalência do interesse público na pesquisa e na distribuição dos resultados, o acesso aos melhoramentos de forma igualitária, a dispensa de pagamento de Royalties, entre tantas outras implicações que ainda devem ser muito debatidas para que sejam alcançadas soluções adequadas para a proteção das pesquisas que envolvem o genoma humano, de forma a adequar as pesquisas e os resultados às expectativas sociais.

RefeRêncIaS

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Traduzido por Roberto Raposo.

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7RealIzação da JuStIça: pRocedImentoS extRaJudIcIaIS e

atIvIdade empReSaRIal

paSqualinO lamOrte

Mestrando em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA--PR. Professor integrante do quadro da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Pesquisador Científico e Membro do Grupo de Pesquisa Cidadania Empresarial, certificado no CNPq e mantido pelo Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.

JOSé edmilSOn de SOuza lima

Doutor e Mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Uni-versidade Federal do Paraná. Professor do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA.

SumáRIo: Introdução. 1. Jurisdição. 2. Acesso e crise da Justiça. 2.1. A distância do cida-dão ao acesso à justiça. 2. 2. Falta de estrutura do Poder Judiciário. 3. Demora Judicial. 4. Resolução de Conflito via Extrajudicial. 4.1. Da Função Notarial e os Procedimentos Extrajudiciais. 4.2. Lei 11441/2007 - Divórcio, Partilha e Inventários Administrativos. 4.3. Procedimentos extrajudiciais e atividade empresarial. Conclusão. Referências.

IntRodução

Possibilitar que as partes resolvam seus conflitos sem adentrar na es-trutura do Poder Judiciário, permite tornar a justiça mais célere, e portanto, mais efetiva, na sua função, em contraposição ao problema da crise da justiça.

Quando este acesso fica obstruído ou inacessível em virtude, por exemplo, da demora judicial, cria-se assim um crise denominada de “crise do Poder Judiciário”.

O presente trabalho tem interesse em demonstrar a importância do

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acesso à justiça partindo da constatação de que o sistema judicial brasileiro não encontra totalmente estruturado para garantir os direitos previstos em toda a nossa norma constitucional.

Em virtude disso, surgem novas propostas alternativas de resolução da crise da justiça. Algumas delas estão relacionadas às práticas dos cartórios extrajudiciais como uma forma alternativa de resolução de conflitos, passando a ser uma solução mais célere e muito menos burocrática.

1. JuRISdIção

Para iniciar o presente trabalho faz-se necessário esclarecer a função do Estado para a resolução de conflitos visando uma organização entre a socie-dade e o interesse particular.

O homem vive em sociedade, e onde há sociedade há direito, por isto, quando este mesmo homem, que se organiza e defende seus direitos, faz nascer necessidades individuais, vislumbra que essa mesma necessidade é inerente á vida social quando se depara com algum tipo de conflito de direitos.

O que se discute no presente trabalho é a legítima titularidade por parte do Estado para resolução de conflitos entre particulares, e se essa legitimi-dade possa ser levada a outros campos e que muitas vezes a justiça privada seja uma resolvida, mesmo com a participação do Estado, mas não como detentor absoluto de resolução de conflitos.

Por isto, resta imperioso esclarecer o termo jurisdição, como sendo a função estatal de prestar a tutela legal em relação aos casos concretos, desde que as partes tenham interesse nesta resolução de determinados conflitos.

Assim, pode-se definir Jurisdição como sendo o poder-dever conferi-do ao Estado de solucionar determinado litígio concreto que é trazido para seu exame. Como nos ensina Antonio Adonias Aguiar Bastos493: proibida a solução dos conflitos pelas mãos dos próprios litigantes, e tendo o Estado chamado para si o monopólio da jurisdição, passou a tocar-lhe o poder-dever de dirimir as querelas surgidas entre os integrantes de dada sociedade.

Por isto, a tutela jurisdicional se concretiza com a provocação do in-teressado ou de alguma parte em particular e tem como finalidade a capacidade que o Estado tem de decidir e impor decisões.

O conceito adotado no livro Teoria Geral do Processo, de Antônio

493 BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. O Direito Fundamental à Razoável Duração do Processo e a Reforma do Poder Judiciário: Uma Desmi(S)Tificação. In Anais do CONPEDI. (Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/Anais/Antonio%20Adonias%20Aguiar%20Bastos_Efetividades%20e%20Garantias%20do%20Processo.pdf) 2010.

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Carlos de Araújo Cintra e outros494, indica a jurisdição como uma função do Estado: podemos dizer que é uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça.

Para Antônio Carlos Costa e Silva495, o Estado possui uma determina-da função de editar normas e também de promover a atuação da vontade desta determinada lei:

O Estado, órgão soberano, se possui funções formais organizativas que lhe permitem editar as normas jurídicas e promover sua execução, tem, também, que solucionar os “conflitos de interesses”, promoven-do a atuação da vontade de lei, ante cada caso concreto.

2. aceSSo e cRISe da JuStIça

Após os conceitos acima descritos sobre a Jurisdição e o papel do Estado na resolução de conflitos de interesses, passa-se agora, a descrever o acesso e consequentemente a crise da Justiça, como um dos problemas mais anacrônicos quando se fala em demora da prestação jurisdicional do Estado.

No Brasil, com o advento de nossa Constituição Federal de 1988, ocorre uma ampliação da ideia ao acesso da justiça, com uma consequente am-pliação pelo direito à Justiça, e assim, consequentemente um crescimento das demandas judiciais. Janete Ricken Lopes de Barros496 explicita:

“A prestação jurisdicional é monopólio do Estado, é direito de todos e dever do Estado e, por isso, não pode ser privilégio de poucos. É de-ver do Estado facilitar o acesso à justiça, seja pelo direito positivado, seja pela divulgação e esclarecimentos desses direitos, estruturando órgãos e agentes, sem como isso gerar ônus para o cidadão.”

Em virtude disto, deveria o poder judiciário estar preparado para os números de demandas judiciais, o que não ocorreu mesmo com o advento de

494 ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, 26. ed., São Paulo, Malherios, 2010. p. 149.495 SILVA, Antônio Carlos e. Da jurisdição executiva e dos pressupostos da execução civil. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1980.496 BARROS, Janete Ricken Lopes de. Acesso à Justiça: Cidadania, Jurisdição e Liberdades Individuais. In Anais do CONPEDI. (Disponível em: www.idp.edu.br/component/docman/doc.../37-janete-conpedi-2010), 2010.

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nossa Constituição Cidadã, culminado assim, com a discussão em torno do pre-sente acesso à chamada direito à justiça.

O acesso à Justiça, que é um direito efetivo, verifica-se ainda mais com o aumento populacional e uma consequente proliferação dos conflitos, sendo que, estes conflitos têm relação direta com o aumento populacional.

Nesse sentido, se manifesta Kazuo Watanabe497:

[...] o acesso à Justiça não se limita a possibilitar o acesso aos tribu-nais, mas de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa, a saber: (i) o direito à informação; (ii) o direito à adequação entre a ordem jurídica e a realidade socioeconômica do país; (iii) o direito ao acesso a uma justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo da realização da ordem jurídica justa; (iv) o direito a preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a objetiva tutela dos direitos; (v) o direito à remoção dos obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo a uma justiça que tenha tais características . Abaixo são identificados alguns problemas que dificultam ou impos-

sibilitam o acesso à Justiça.

2.1. a dIStâncIa do cIdadão ao aceSSo à JuStIça

No Brasil, boa parte da população vem sendo segregada do acesso à justiça muitas vezes por questões econômicas, ficando impossibilitadas de lutar por seus direitos que deveriam ser resguardados pelo Estado através do poder judiciário.

Viviane Coêlho de Séllos Knoerr destaca:

Vivemos em uma sociedade na qual a maioria da população vive e cria seus filhos em condições precárias, dada a problemática da de-sigualdade na distribuição de renda, o que reduz as chances de as-censão individual. No entanto, pelo crescimento e desenvolvimento dos indivíduos é que se constrói um Estado forte, sendo imperativa a erradicação da pobreza, da marginalização e do analfabetismo total, funcional ou político498.

497 WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e a Sociedade Moderna. In: Participação e Processo. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1988.498 SÉLLOS, Viviane. O Problema Da Dignidade Humana E Os Projetos Para Erradicação Da

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Neste sentido, é muito relevante as palavras observadas por Boaven-tura Souza Santos499:

“[...] estudos revelam que a distância dos cidadãos em relação à ad-ministração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é estado social a que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não apenas fatores econômicos, mas também fatores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades econômicas. [...] os cidadãos de menores recursos tendem a conhecer pior os seus direitos e, portan-to, a ter mais dificuldades em reconhecer um problema que os afeta como sendo um problema jurídico.[...] em segundo lugar, mesmo re-conhecendo o problema como jurídico, como violação de um direito, é necessário que a pessoa se disponha a interpor a ação. Os dados mostram que os indivíduos das classes mais baixas hesitam muito mais que os outros em recorrer aos tribunais [...].”

De acordo com Alcio Manoel de Sousa Figueiredo:

A propósito, o sistema judicial brasileiro não se encontra estruturado para garantir os direitos expressos na Constituição, em decorrência de inúmeros fatores e obstáculos limitantes para o acesso à justiça, tais como: (i) fatores econômicos: custas judiciais e custas periciais eleva-das para a produção de provas; (ii) fatores sociais: duração excessiva do processo, falta de advogados, juízes e promotores; (iii) fatores cul-turais: desconhecimento do direito; analfabetismo; ausência de políti-cas para disseminação do direito; (iv) fatores psicológicos: recusa de envolvimento com a justiça; medo do Poder Judiciário; solução dos conflitos por conta própria; (v) fatores legais legislação com excesso de recursos e chicanas protelatórias; lentidão na outorga da prestação jurisdicional.

Exploração Do Trabalho Infantil. In Anais Do Conpedi. (Disponível em: Http://Www.Conpedi.Org.Br/Manaus/Arquivos/Anais/Recife/Trabalho_Justica_Viviane_Gondim.Pdf). Florianópolis: Boiteux, 2006. 499 SANTOS, Boaventura de Sousa et al. Os tribunais nas sociedades contemporâneas: o caso português. Porto: Afrontamento, 1996. p. 48.

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2. 2. falta de eStRutuRa do podeR JudIcIáRIo

Muitos são os autores que criticam o fato de que o Poder Judiciário não tem estrutura para acompanhar a mudança social, o aumento de conflitos e a velocidade dos acontecimentos.

Conforme descreve Dallari500, percebe-se a deficiência do Estado em relação ao Poder Judiciário:

“[...] em muitos lugares há juízes trabalhando em condições incom-patíveis com a responsabilidade social da magistratura. A deficiência material vai desde as instalações físicas precárias até as obsoletas or-ganizações dos feitos: o arcaico papelório dos autos, os fichários dati-lografados ou até manuscritos, os inúmeros vaivens dos autos, numa infindável prática burocrática de acúmulo de documentos”.

Nos dias de hoje é inaceitável que o judiciário apresente problemas relacionados à sua estrutura, mas torna-se visível que os recursos humanos, a quantidade insuficiente de Juízes, funcionários e auxiliares da justiça não con-seguem ser suficientes para as soluções de conflitos que são deparados atual-mente pelo Poder Judiciário.

É necessário urgentemente um aumento do número de juízes, de varas cíveis, de auxiliares da justiça através de concursos públicos, pois sem estas mudanças torna-se impossível alcançar uma qualidade efetiva do judiciário em prol do cidadão.

A implementação da informática através de programas virtuais para impetração de novos processos em todo o poder judiciário, também é uma for-ma de combater a morosidade do judiciário.

Ocorre que, o presente artigo tem o condão de demonstrar que outras formas de resolução de conflitos, como os procedimentos extrajudiciais, são soluções para atender os anseios do cidadão em determinadas lides.

Conforme os obstáculos declinados na presente citação, o acesso à justiça passa a ser uma preocupação da sociedade, pois deve-se tentar medidas que possam solucionar os conflitos sociais de forma mais célere e não deixar que os problemas ligados ao judiciário impeçam de se fazer justiça em deter-minados conflitos.

Por essa razão, a discussão do acesso à justiça como uma consequente crise, passa a ser um tema de grande relevância as questões sociais.

O excesso de trabalho, o infindável número de processos, a falta de

500 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juizes. São Paulo: Saraiva, 1996. pp. 156-157.

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estrutura, de funcionários ou de juízes, são fatores que podem ser considerados para uma explicita lentidão da aplicação da justiça e da tutela jurisdicional.

3. demoRa JudIcIal

A demora judicial é um dos elementos caracterizadores da negação de acesso à justiça, sendo que, com a promulgação da Emenda Constitucional nº. 45 verifica-se a preocupação quanto ao andamento de um processo judicial.

Na Emenda Constitucional n°45, a celeridade e duração razoável do processo passaram a ser determinações constitucionais expressas, como precei-tua o art. 5°, inciso LXXVIII: “A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeri-dade de sua tramitação”.

A Constituição Federal, no inciso LXXVIII, positivou, entre nós, o princípio da razoável duração dos processos e da celeridade processual, garan-tindo assim, direitos que deverão ser preservados para o cidadão.

É preciso buscar conferir novas formas de resolução de conflitos, evi-tando-se que o Poder Judiciário continue a ser o destino de questões as quais não haveria necessidade de se exigir que um juiz se pronuncie e diga o direito, uma vez que não quando não se existe litígio, é possível a composição pela via administrativa.

Sobre a demora na prestação jurisdicional, apenas para exemplificar, a Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica, no seu Artigo 8º. (Dos Direitos à liberdade Pessoal) garante o direito a um prazo razoável na tramitação do processo:

Artigo 8º - Garantias judiciais - 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabele-cido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obriga-ções de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. (sublinhado nosso)

A inafastabilidade do Poder Judiciário está prevista no Artigo 5º, inci-so XXXV, da Constituição Federal, quando diz: “a lei não excluirá da aprecia-ção do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Ocorre que, esta garantia constitucional fundamental não poderá se confundir com a atividade exclusiva jurisdicional, isto é, conforme explica Ro-

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berto Portugal Bacelar501:

A inafastabilidade do Poder Judiciário prevista no art. 5º., inc. XXXV, da Constituição Federal da República é garantia fundamental que não se confunde com o monopólio da atividade jurisdicional. Este não pressupõe que todas as questões devam necessariamente ser decididas por um Juiz de Direito. Já há muito tempo sabemos que um dos pro-blemas que prejudica a celeridade da justiça reside principalmente nas pautas dos Juízes. Enquanto um Juiz, no limite máximo de sua capaci-dade, conseguiria – em tese – fazer dez audiências por dia, este mesmo juiz, se fosse auxiliado por dez Juízes leigos, com a mesma capacidade produtiva, poderia fazer cento e dez audiências em um único dia.

Por isto, deve-se esclarecer que a morosidade, a precária estrutura do Poder Judiciário e o sistema processual brasileiro contribuem como uma má distribuição da justiça, mas não se deve ficar adstrito apenas a estes empecilhos, e sim, encontrarmos soluções viáveis para resolução de conflitos que satisfaçam de maneira rápida o desejo de cada um.

4. ReSolução de conflItoS vIa extRaJudIcIal

O procedimento em via administrativa é diferente do judicial, pois permite que as partes ou os interessados possam resolver seus conflitos de for-ma consensual, isto é, sem a intervenção do Poder Judiciário.

A desjudicialização é o meio de retirar a responsabilidade do Poder Judiciário referente à apreciação de um determinado processo e transferir aos Cartórios Extrajudiciais, com o intuito de simplificar o andamento de processos e agilizar ações que envolvam um determinado litígio.

Assim, pode-se conceituar desjudicialização como sendo: desjudicia-lizar é desburocratizar os procedimentos e o Estado nas resoluções de conflitos, transferindo para a via extrajudicial por meio do Registro Civil.

Tal via vem beneficiar as pessoas que enfrentam demorados e cansati-vos processos judiciais, tendo como reflexo a redução dos grandes números de processos a cargo do Poder Judiciário.

Em razão disto, o presente artigo apresenta a seguir a função notarial e os procedimentos alternativos como forma de desjudicialização.

501 BACELLAR. Roberto Portugal. A mediação no contexto dos modelos consensuais de resolução de conflitos. In Revista de Processo. Editora Revista dos Tribunais. 1999.

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4.1. da função notaRIal e oS pRocedImentoS extRaJudIcIaIS

A função notarial busca o cumprimento do ordenamento jurídico e concomitantemente a resolução de interesses sem necessariamente uma deter-minada ocorrência de litígio. Por isto, tem-se uma maior celeridade nos proce-dimentos resolvendo rapidamente os interesses individuais.

Sobre os serviços notariais, dispõe o Artigo 236 da Constituição Federal502.

A função notarial tem como principal característica ser dotada de fé pública, e está evidentemente submetida ao princípio da legalidade.

O Conselho Nacional de Justiça CNJ, no tocante a Resolução de Con-flitos em via Administrativa, a normatizou através de resolução. A seguir segue parte da Resolução nº. 35 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ503).

O CNJ pacificou a questão de ser ou não opcional a escolha da via ad-ministrativa em substituição à via judicial (Poder Judiciário), eliminando quais-quer dúvidas neste sentido ocorridas até a edição da citada Resolução.

No próprio preâmbulo da Resolução nº 35/2007 do CNJ, o Conselho justifica a edição da Resolução em função da natureza da Lei nº 11.441/2007, cuja principal proposta foi a de conferir maior celeridade à celebração dos atos por esta Lei contemplados, no sentido de minimizar o verdadeiro afogamento em que se encontra o Poder Judiciário brasileiro, emperrado sob a responsabili-dade de dizer o direito em milhares de lides sob sua tutela.

Compreende-se, portanto, pela leitura do citado artigo 3º, pela não existência de óbice para que a escritura seja lavrada em qualquer tabelionato localizado no país, seja em qualquer parte, observadas e respeitadas as condi-ções, requisitos e pressupostos determinados pela própria legislação em estudo.

502 Art. 236 – Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. §1º. Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.§2º. Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.§3º. O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.503 Art. 3º As escrituras públicas de inventário e partilha, separação e divórcio consensuais não dependem de homologação judicial e são títulos hábeis para o registro civil e o registro imobiliário, para a transferência de bens e direitos, bem como para promoção de todos os atos necessários à materialização das transferências de bens e levantamento de valores (DETRAN, Junta Comercial, Registro Civil de Pessoas Jurídicas, instituições financeiras, companhias telefônicas, etc.). (BRASIL, CNJ/2007).

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4.2. leI 11441/2007: dIvóRcIo, paRtIlha e InventáRIoS admInIStRatIvoS

Como exemplo de resolução de conflito, achamos importante destacarmos a Lei 11441/2007, que após muita luta do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, trouxe grande inovações em medidas de divórcios e inventários.

A Lei n° 11.441/07504 traz uma mudança significativa no sistema de inventários, partilhas, separação e divórcio consensuais, desde que sem partes incapazes, inclusive filhos menores de 18 anos ou interditados.

Conforme o Art. 982 do CPC, havendo testamento ou interessado in-capaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário.

Outrossim, a Lei n° 11.441/07 mantém a obrigatoriedade de se ter um advogado assistindo, assessorando as partes, mesmo sem ter bens a partilhar505.

A Lei 11.441/2007 traz a obrigatoriedade da presença do advogado, pois o mesmo comparece como assistente das partes, não havendo necessidade de exibição de procuração, sendo que, tem o advogado o múnus público de as-sistir as partes, não criando assim nenhuma dificuldade na superação de proble-mas, pois sendo sabedor das normas jurídicas, somente auxiliará na composição da vontade individual das partes.

Valestan Milhomem Costa, descreve a importância da Lei 11.441/07 e como a edição da mesma está em perfeita sintonia com a sociedade moderna, que pede uma justiça mais célere e menos burocrática.

A Lei nº 11.441/07, que passou a permitir o inventário, a separação e o divórcio administrativos, é a demonstração inconteste do bom senso daqueles que vêm conduzindo a reforma do Judiciário, demonstrando um sério compromisso com a desburocratização, com a celeridade, com a efetividade e com a segurança jurídica, princípios cogentes em

504 Art. 1124 – A do CPC - A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento. 505 Art.982 do CPC: (...) Parágrafo único. O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. Art.1124-A do CPC (...) § 2o O tabelião somente lavrará a escritura se os contratantes estiverem assistidos por advogado comum ou advogados de cada um deles, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.

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toda sociedade moderna comprometida com o desenvolvimento sus-tentável, com a defesa de suas instituições, com a economia popular e com o fortalecimento do crédito, cuja principal garantia ainda é imo-biliária. Já era tempo de dispensar a tutela judicial para as sucessões sem testamento, quando os interessados, sendo maiores e capazes, es-tão de pleno acordo quanto à partilha dos bens, pois a função de aqui-latar se o quinhão concreto não fere o quinhão abstrato contemplado na lei, observando-se a devida vocação hereditária, e de fiscalizar o recolhimento da contribuição tributária correspondente ao valor dos bens, pode perfeitamente ser desempenhada por um tabelião, profis-sional do direito dotado de fé pública, sobretudo quando as partes contam com a assistência de advogado506.

A edição da referida Lei nº 11.441/2007, fará com que haja uma me-lhor aplicação desta que tem por finalidade descongestionar o Judiciário e levar mais comodidade aos interessados em realizar os atos previstos na respectiva lei, bastando às partes apenas comparecer, com advogado, ao Cartório de Notas e realizar o procedimento pertinente.

4.3. pRocedImentoS extRaJudIcIaIS e atIvIdade empReSaRIal

O presente tópico tem o condão de demonstrar à importância do procedimento extrajudicial ligado a atividade empresarial, pois os interesses de uma determinada empresa que possa ser resolvido em via administrativa, em muito auxiliaria a descentralização de demandas judiciais em prol das extraju-diciais.

As modificações iniciadas através da Lei 11.441/2007, tornou mais acessível a atuação perante os Cartórios para a prática dos atos enunciados na respectiva Lei, pois sendo nítido o caráter social dos institutos referidos, não podem estes culminarem em grandes despesas para os interessados, e pode-se assim, pensar em uma alternativa para empresas como forma de resolução de futuros conflitos com novas elaborações de normas neste sentido.

Por essa razão, em virtude de poucos escritos sobre o referido assunto ligado a atividade empresarial, deve-se pensar em aplicação desta via extrajudi-cial em atuações empresarias como forma de descentralização do poder judiciá-

506 COSTA, Valestan Milhomem. A atividade notarial, o inventário, o divórcio e a separação administrativos. A Lei nº. 11.441/07. Disponível em: http://www.irib.org.br/be/BE/2979.html. Acessado em: 08.06.2007.

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rio e aplicação de determinada norma jurídica ligada as atividades empresariais.

concluSão

Um dos principais objetivos dos procedimentos administrativos aqui demonstrados seria desafogar o poder judiciário, retirar da apreciação de juízes um determinado conflito para a resolução particular e imediata dos principais interessados.

Em virtude de um mundo globalizado o acesso à justiça deveria estar mais acessível às pessoas, independente da condição econômica ou intelectual, sendo que, o referido acesso deve ser de caráter absoluto, isto é, atingir a todos.

Enquanto temos um grande aumento populacional e não obrigatoria-mente um avanço legislativo que acompanhe os anseios e desejos de todo cida-dão, pode-se encontrar a injustiça ao invés de se fazer justiça.

Quando se discute a demora judicial, vem á tona a morosidade do poder judiciário, sua falta de estrutura, mas o presente artigo tem o condão de demonstrar que tal problema pode ser ocasionado pelo Estado, e que a via ad-ministrativa é uma resolução para conflitos particulares.

Para o cidadão o importante que seu problema – que pode ser tempo-rário – deva ser analisado e tomado uma solução em tempo razoável, e não ter que aguardar vários anos para seu interesse ser apreciado pelo Estado.

Por tudo que foi descrito no presente artigo, verifica-se que alguns meios de solução de conflitos deverão ser utilizados pelo cidadão, como exem-plo, o trabalho dos Cartórios Extrajudiciais, que visam uma solução rápida para os desejos individuais.

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8JuStIça e paRadIgma da efIcIêncIa:

a pRevenção do RetRoceSSo do dIReIto fundamental à educação e ao deSenvolvImento humano

rOgériO geSta leal

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Desen-volvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Professor e pesquisador do Programa de Pesquisa, Extensão e Pós-graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC). Professor titular da Universi-dade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Coordenador Científico do Núcleo de Pesquisa Judiciária da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Magistrados Brasileiros (ENFAM), e membro da Rede de Direitos Fundamentais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Conselheiro Científico do Observatório da Justiça Bra-sileira. Coordenador Executivo do Comitê de Gestão da Rede dos Observatórios do Direito à Verdade, à Memória e à Justiça das Universidades Brasileiras e membro da Comissão de Altos Estudos do Centro de Referência Memórias Reveladas.

daniela menengOti ribeirO

Doutora em Direito-Relações Econômicas Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) com período de pesquisa (doutorado sanduíche) na Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne. Bolsista CNPq no mestrado e no doutora-do. Mestre em Direito-Relações Internacionais, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora e pesquisadora do Programa de Pesquisa, Extensão e Pós-graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC).

SumáRIo: Introdução. 1. A prevenção do retrocesso social do direito fundamental à educa-ção. 2. Para além do econômico: a educação como dimensão do Índice de Desenvolvimento Humano. Conclusão. Referências.

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IntRodução

No âmbito nacional, o direito à educação esta previsto no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 como um direito fundamental de natureza social, e os artigos 205 a 214 delimitam parâmetros que devem pautar a atuação do legislador e do administrador público, além de critérios que o Judiciário deve adotar quando convocado a julgar questões que envolvam tais direito.

O reconhecimento da educação como um direito fundamental de na-tureza social tem, pois, uma dimensão protetiva que ultrapassa interesses me-ramente individuais.

Além da previsão constitucional, outros documentos jurídicos con-têm dispositivos importantes referente ao direito à educação, tais como o Pac-to Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966507, ratificado pelo Brasil em 12 de dezembro de 1991, e promulgado pelo Decreto Legislativo n. 592, a 6 de dezembro de 1992; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90) e o Plano Nacional de Educação (Lei n. 10.172/2001).

Tem-se que o poder público, titular do dever jurídico de promover a educação, conforme expressamente previsto no artigo 205 da CF/88, deverá organizar-se para fornecer os serviços educacionais a todos, de acordo com os princípios estatuídos na Constituição, ampliando cada vez mais as possibilida-des de que todos venham a exercer igualmente este direito.

Verifica-se aqui o reconhecimento da progressividade desta categoria de direitos, expressa igualmente no Pacto Internacional dos Direitos Econômi-cos, Sociais e Culturais, que em seu artigo 2º, alínea I, estabelece que os direitos que têm por objeto programas de ação estatal seriam realizados progressiva-mente, até o máximo dos recursos disponíveis de cada Estado.

Ainda, de acordo com o previsto no artigo 13 do Pacto, tem-se que os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educa-ção. Concordam em que a educação deverá visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais.

Concordam, ainda, que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a

507 No que se refere à natureza das obrigações estatais direcionadas à efetivação do direito à educação, vale destacar que os artigos 13 (II) e 14 do Pacto, combinados com o artigo 2º (I) que estabelecem obrigações de caráter prestacional a serem realizadas progressivamente ou, ainda, impõem ao Estado a adoção de medidas legislativas concretas para aprimorar a proteção desses direitos.

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tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. (Inciso I)

Tem-se, diante deste breve panorama que a educação, como direito fundamental de caráter social ocupa posição de destaque no ordenamento jurí-dico, cabendo ao Estado aplicar investimentos para a organização e manutenção de um sistema público de educação capaz de garantir o acesso de todos.

1. a pRevenção do RetRoceSSo SocIal do dIReIto fundamental à educação

O caso em análise trata de Apelações Cíveis interpostas respectiva-mente pelo Ministério Público Estadual, e pelo Estado do Rio Grande do Sul, em face de sentença que julgou procedente a ação ordinária ajuizada contra o Estado, em que se postulou o retorno do repasse dos valores necessários à manutenção do Projeto Político Pedagógico da Escola Estadual de Educação Básica Neusa Mari Pacheco508.

A decisão a quo julgou procedente a ação, aos efeitos de determinar que o Estado do Rio Grande do Sul repassasse à Escola Estadual de Educação Básica Neusa Mari Pacheco - CIEP, os valores necessários para a manutenção de seu Projeto Político Pedagógico, adotando todos os critérios elencados no artigo 2°509, do Decreto n° 37.104/96.

Inconformado, o Estado apelou da sentença alegando que a verba des-tinada à escola encontra-se de acordo com os critérios tracejados pela legislação de regência, e, ainda, não há qualquer demonstração de prejuízo às atividades desenvolvidas pela escola com a diminuição deste referido repasse.

Como relator, Rogério Gesta Leal se manifestou manutenção da sen-tença proferida pelo juízo a quo, afirmando, incialmente que a Escola em ques-tão enquadra-se em classe que faz jus a um maior repasse de verbas conforme dispõem o Decreto n. 37.104/96.

Também motivou seu voto declarando que o Centro Integrado de

508 Apelação Cível Nº 70027162254, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogerio Gesta Leal, Julgado em 18/12/2008.509 “Art. 2º - O suprimento de recursos às escolas da rede pública estadual de ensino, assim entendido como sendo o repasse de recursos financeiros, far-se-á segundo critérios que deverá levar em conta a matrícula real, o grau de ensino, o nível de ocupação por turno e a tipologia da escola. Parágrafo único - Qualquer alteração nos critérios referidos no “caput”, deverá ser publicada pela Secretaria da Educação até o final do primeiro semestre do ano, para ter vigência a partir do trimestre seguinte.” In: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Decreto nº 37.104, de 19 de dezembro de 1996. Disponível em: http://www.al.rs.gov.br/Legis/. Acessado em: 12.09.2012.

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Educação Pública (CIEP) em questão, diante das atividades desenvolvidas, me-rece seu enquadramento na categoria escolas agrícolas semi-internos, escolas abertas e especiais510, pois, conforme seu regimento interno, mantém em fun-cionamento classe especial para deficientes mentais educáveis, ensino de 1º e 2º graus em turno integral, bem como desenvolve atividades nas áreas agrícola, ecológica, desportiva, artística, cultural, cientifica e profissional.

Ademais, afirmou que uma vez conferida referida verba para man-tença da escola e de todas suas atividades, não pode o ente estatal, por mera liberalidade, sem fundamentos específicos, suprimir a verba destinada para seu efetivo funcionamento, sem contra-prestação compensadora, sob pena de ca-racterizar-se retrocesso social contra Direitos Fundamentais.

O Tribunal entendeu, por unanimidade, negar provimento a ambos os apelos, assegurando o repasse dos valores necessários à manutenção do Projeto Político Pedagógico da Escola Estadual de Educação Básica Neusa Mari Pache-co.

Em outra oportunidade, o Supremo Tribunal Federal já teve oportuni-dade de se manifestar sobre questões desta natureza, razão pela qual se destaca a abordagem que fez de tema similar o então Ministro Sepúlveda Pertence, nos autos da ADIn nº 2.065-DF, intentada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT), impugnando o art.17, da Me-dida Provisória nº1.911/99 (reeditada pela última vez sob o nº 1.999-15, de 12.02.2000), que revogava os artigos 6º e 7º, da Lei 8.212/91, e os artigos 7º e 8º, da Lei 8.213/91, extinguindo o Conselho Nacional de Seguridade Social e os Conselhos Estaduais e Municipais de Previdência Social.

O argumento central dos partidos e proponentes da ação foi o de que a Medida Provisória sob comento estaria violando o princípio da proibição de retrocesso social, na medida em que o art. 194, VII, da Constituição Federal de 1988, demarcador do caráter democrático e descentralizado da administração da seguridade social, não poderia simplesmente ser ceifado do Texto Político, sob pena de inexistir dispositivo infraconstitucional garantidor da descentrali-zação administrativa da seguridade social511.

510 Conforme Anexo I do mesmo Decreto, os critérios para definição do índice de manutenção das escolas agrícolas semi-internos, escolas abertas e especiais, possuem peso 10,00 e peso percentual 22,69.511 Decisão publicada no DJ de 04/06/2004, veiculada pelo Ementário do STF nº 2154-1. Veja-se que, de igual sorte e mais contemporaneamente, o mesmo STF, na ADIn nº 3.105-DF, cujo relator para o acórdão foi o Ministro Cezar Peluso, movida pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP) com vistas à declaração de inconstitucionalidade do artigo 4º, caput e respectivo parágrafo único, da Emenda Constitucional nº 41/2003, que instituiu a contribuição previdenciária dos servidores públicos inativos e pensionistas, decidiu no sentido da procedência parcial do pedido. Em tal decisão, consta do voto vencido do Ministro Celso de

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Apesar de, por maioria, o STF não ter conhecido a ação, o Ministro Sepúlveda Pertence consignou sua admissibilidade da inconstitucionalidade de lei simplesmente derrogatória de lei anterior necessária à eficácia plena de nor-ma constitucional512, aduzindo que:

Certo, quando, já vigente a Constituição, se editou lei integrativa ne-cessária à plenitude da eficácia, pode subsequentemente o legislador, no âmbito de sua liberdade de conformação, ditar outra disciplina le-gal igualmente integrativa de preceito constitucional programático ou de eficácia limitada; mas não pode retroceder – sem violar a Cons-tituição – ao momento anterior de paralisia de sua efetividade pela ausência de complementação legislativa ordinária reclamada para im-plementação efetiva de uma norma constitucional.

O Supremo Tribunal Federal, nos autos do Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº410715/SP, da relatoria do Ministro Celso de Mello, publicado em 2006 restou consignado que:

A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a ava-liações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental [...] Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prer-rogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possí-vel, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas de-finidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em des-

Mello o argumento da inconstitucionalidade in totum do art. 4º, e seu parágrafo único, da EC nº 41/2003, dando destaque à fundamentalidade dos direitos de natureza previdenciária, razão pela qual não se poderiam admitir suas violações sob pena de caracterizar retrocesso social.512 Na doutrina nacional, há ainda quem sustente – de forma um pouco extravagante – que: “se uma norma constitucional definidora de direito social atinge certo nível de densidade normativa, por ação do legislador, essa concretização pode passar a integrar o próprio conteúdo da norma constitucional, restando, pois, insuscetível de supressão ou modificação arbitrária por via infraconstitucional – mas, para tanto, é necessário que venha a ser objeto de consenso profundo, idôneo a permitir que radique na consciência jurídica geral.” in: Derbli, 2008, p. 369. Já se viu que as contingências de múltiplas variáveis do cotidiano tensionam rígidas estruturas de direitos e garantias, que merecem as devidas e concretas ponderações, o que aliás parece concordar o autor citado, em pp. 378-379.

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cumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional.

Esta decisão do STF confirma o argumento de que o Brasil conta hoje com o que se chama de indicadores constitucionais parametrizantes do mínimo existencial, que são públicos e cogentes, não podendo ser desconsiderados por quem quer que seja (setor público ou privado). Tais indicadores, em síntese, dizem respeito à construção de uma sociedade livre, justa e solidária; à garan-tia o desenvolvimento nacional; à erradicação da pobreza e da marginalização, bem como à redução das desigualdades sociais e regionais; à promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A densificação normativa porém mais objetiva e precisa destes indica-dores pode ser encontrada ao longo de todo o Texto Político, consubstanciando--se nos direitos e garantias fundamentais, individuais e coletivos, nos direitos sociais, nos direitos à educação, à saúde, à previdência, etc.

Daí a afirmação que

[...] a educação não é uma propriedade individual, mas pertence por essência à comunidade. O caráter da comunidade imprime-se em cada um de seus membros e é no homem, muito mais do que nos animais, fonte de toda a ação e de todo comportamento. Em nenhuma parte o influxo da comunidade nos seus membros tem maior força que no esforço constante de educar, em conformidade com seu próprio sentir, cada nova geração. A estrutura de toda a sociedade assenta nas leis e normas escritas e não escritas que a unem e unem seus membros513.

Por sua vez, os Poderes Estatais e a própria Sociedade Civil – através da cidadania ou mesmo de representações institucionais dela – estão vinculados a estes indicadores norteadores da República, eis que se afiguram determinan-tes para todos os atos praticados pelos agentes públicos e pela comunidade, no sentido de vê-los comprometidos efetivamente com a implementação daquelas garantias.

John Rawls514 define a proteção do mínimo social com o objetivo de

513 JAEGER, 1989, p. 4.514 Rawls desenvolve a ideia de fundamentos constitucionais, afirmando que as pessoas não podem se envolver na sociedade como cidadãos, muito menos como cidadãos iguais, o nível de bem-estar

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garantir uma igualdade de oportunidades, dependendo do governo para “asse-gurar oportunidades iguais de educação e cultura para pessoas semelhantemen-te dotadas emotivadas, seja subsidindo escolas particulares seja estabelecendo um sistema de ensino público” 515.

Nesta mesma linha de raciocínio, é possível afirmar que o simples argumento da escassez de recursos dos cofres públicos não pode autorizar o esvaziamento de direitos fundamentais, muito menos os relacionados à educa-ção, eis que diretamente impactantes em face da vida humana e sua dignidade mínima, e por isto estarão sujeitos ao controle jurisdicional para fins de se afe-rir a razoabilidade dos comportamentos institucionais neste sentido, devendo inclusive ser aprimorados os parâmetros, variáveis, fundamentos e a própria dossimetria concretizante do direito em xeque.

Não se afigura simples, pois, trazerem-se à colação argumentos do tipo princípio da não reversibilidade das prestações sociais, ou o princípio da proibição da evolução reacionária, como fórmulas retóricas e mágicas para po-der garantir, a qualquer preço – que nem se sabe qual -, tudo o que for postulado por segmentos da comunidade (indivíduos), pelo simples fato de que o Estado está obrigado a tanto, isto porque o desafio da bancarrota da previdência so-cial, o desemprego duradouro, parecem apontar para a insustentabilidade do princípio da não reversibilidade social.516

Assim, tendo alcançado um certo nível de proteção dos respectivos direitos, não pode retroceder, já que a cláusula de proibição do retrocesso social protege o núcleo essencial dos direitos sociais.

[...] o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas (“lei de segurança social”, “lei do sub-sídio de desemprego”, “lei do serviço de saúde”) deve considerar--se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos compensatórios, se traduzem na prática numa “anulação”, “revoga-ção” ou “aniquilação” pura e simples desse núcleo essencial. A li-berdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade

material e social e de instrução e educação for baixo. In: RAWLS, 1997. p. 213.515 RAWLS, 1997. pp. 303-304.516 CANOTILHO, 2008, p.112. No Brasil ver a respeito em: DERBLI, 2007. p. 433-495. Vale também a advertência feita por SARLET; FIGUEIREDO, 2010, p. 45, no sentido de que: “Ao contrário do que defende parcela da doutrina, a universalidade dos serviços de saúde não traz, como corolário inexorável, a gratuidade das prestações materiais para toda e qualquer pessoa, assim como a integralidade do atendimento não significa que qualquer pretensão tenha de ser satisfeita em termos ótimos.”

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têm como limite o núcleo essencial já realizado517.

Neste ponto, o Tribunal Constitucional Português precisou o que sig-nifica este princípio em um caso concreto, aduzindo que ele operaria tão so-mente quando: (a) estivesse em risco o núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana, isto é, quando, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se pretenda proce-der a uma anulação, revogação ou aniquilação pura e simples daquele núcleo essencial; (b) quando a alteração redutora do conteúdo do direito social se faça com violação do princípio da igualdade ou do princípio da proteção da confian-ça; (c) quando é atingido o conteúdo de um direito social cujos contornos se encontram enraizados ou sedimentados no seio da sociedade518.

Na mesma direção estão as assertivas de Queiroz, quando sustenta que a garantia de uma proteção efetiva do direito jusfundamental não resulta criada a partir da legislação ou política pública aprovada, mas vem posta atra-vés da atuação da legislação, daqui advindo a noção de dever de proteção jurídico-constitucional – pressuposto quer do Legislador, quer do Administra-dor Público, quer do Judiciário -, caracterizando-se como verdadeiro dever positivo do Estado em face do titular do direito como um direito de defesa em sentido material. “Por sua vez, o dever de protecção do Estado, uma vez dima-nada a lei de protecção, converte-se, face ao titular do direito, num direito de defesa em sentido formal”519.

Com tais parâmetros, vai-se demarcando também jurisprudencial-mente as condições e possibilidades de aplicação desta ferramenta garantidora dos direitos fundamentais, retirando-a da mera esfera especulativa do tema520.

517 CANOTILHO, 1999. p. 327.518 Acórdão do Tribunal Constitucional nº509/2002, envolvendo tema atinente ao rendimento social de inserção de trabalhadores em Portugal, revogando disposição anterior do rendimento mínimo garantido previsto na Lei nº 19-A/96, de 29 de Junho, e criando o rendimento social de inserção, podendo, grosso modo, dizer-se que os direitos e prestações previstos na legislação que instituía e regulamentava o rendimento mínimo garantido são substituídos, com adaptações, pelos direitos e prestações previstos na legislação que cria e, posteriormente, virá a regulamentar, o rendimento social de inserção. Tribunal Constitucional. Acórdão n.º 509/02. Disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020509.html. Acessado em: 12.09.2012.519 QUEIROZ, 2006, p.70. Todavia, a própria autora reconhece no mesmo texto, quando trata do princípio do não retrocesso social em termos de Direitos Fundamentais Sociais, que: “Mas haverá aí fundamentalmente de distinguir entre uma reversibilidade fáctica, relativa a recessões e crises económicas, da proibição do retrocesso social propriamente dito, isto é, a reversibilidade dos direitos adquiridos como ocorre, v.g., quanto se reduzem os créditos da segurança social, o subsídio de desemprego ou as prestações de saúde.” p. 74. Na mesma direção, SERNA; TOLLER, 2000.520 AGRAVO DE INSTRUMENTO. CAUTELAR. REPASSE DE VERBAS PELO MUNICÍPIO.

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Cabe ressaltar que se encontra presente na ação posta em debate, inte-resse público indisponível, pois o serviço prestado pela escola foi reconhecido nacionalmente, obtendo registro de primeiro lugar no prêmio Klickeducação, uma vez que a escola conta com piscina semi-olímpica térmica, banda marcial com 144 componentes, grupos de teatro, invernada artística, coral infantil, jor-nal “Mente Aberta”, centro agrícola, centro ecológico, estudos de dança, educa-ção para o turismo e ainda, alimentação para os infantes que estudam em turno integral; não podendo o Estado reduzir os repasses feitos à escola em prejuízo da coletividade.

Segundo artigo 205 da Constituição Federal brasileira, “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”521, garantido de forma gratuita, para ricos e pobres (artigo 208, I,).

No que tange o apelo do Ministério Público, transcrevo parte do pare-cer ministerial que abordou a matéria in verbis:

ENTIDADE SEM FINS LUCRATIVOS E DE UTILIDADE PÚBLICA MUNICIPAL. CONVÊNIO. PREPONDERÂNCIA DO INTERESSE PÚBLICO NA CONTINUIDADE DO SERVIÇO. MANUTENÇÃO DE REPASSES DE VERBA DESTINADA À ASSOCIAÇÃO INDEPENDENTE DE ASSINATURA DE CONVÊNIO PARA O ANO DE 2007. Demonstrados a razoabilidade, pela ocorrência da plausibilidade, verossimilhança, do direito material afirmado pela parte, e o fundado receio de que, antes do julgamento da ação, venha a ocorrer lesão grave e de difícil reparação à sua pretensão, correto deferimento da liminar. Há considerar o efetivo interesse público na continuidade do serviço prestado pela entidade privada, por se tratar de atendimento de crianças e adolescentes abrigados, que ficariam sem qualquer proteção se efetivamente cessado o repasse das verbas. RECURSO DESPROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70018574236, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 27/03/2007); e REEXAME NECESSÁRIO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. MUNICÍPIO. APLICAÇÃO DE RECURSOS EM AÇÕES E SERVIÇÕES PÚBLICOS DE SAÚDE. PERCENTUAL ÍNFIMO. CONVÊNIOS. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. Apresentado-se ínfimo o percentual não aplicado pelo Município em recursos para a saúde, a questão deve ser analisada sob o prisma do princípio da proporcionalidade, possibilitando-se o repasse de verbas oriundas de convênios realizados com o Estado do Rio Grande do Sul, sob pena de a medida vir a prejudicar a própria comunidade local. SENTENÇA CONFIRMADA EM REEXAME NECESSÁRIO. (Reexame Necessário Nº 70019257062, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Silveira Difini, Julgado em 30/05/2007)521 O conceito de desenvolvimento tornou-se por longos anos um conceito paralelo à noção de desenvolvimento econômico, embora o primeiro seja mais amplo por integrar aspectos relativos à qualidade de vida, bem-estar individual e social e felicidade inspirada nos artigos 22 e seguintes da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o que permite maior valorização das pessoas.

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[...] Em que pese esteja o Ministério Público absolutamente legiti-mado a propor Ação Civil Pública para assegurar os direitos da co-letividade, no caso o direito à educação e, latu sensu, à dignidade da pessoa humana, não pode ele pretender direcionar as ações estatais, determinando o quantum a ser repassado pelo ente público à certa instituição educacional.In casu, é adequada a demanda para a manutenção da remessa de recursos financeiros nos moldes em que vinha fazendo o Estado antes de estabelecer nova base de cálculo, pois assim pretende-se apenas manter em funcionamento o educandário com todas as suas atividades benéficas à comunidade em que se situa, nos moldes em que o estado se propôs originalmente.Na espécie, cumpre considerar também que , na perícia efetuada, não foram computados os rendimentos auferidos pela escola com o desen-volvimento de atividades gerenciadas pelo círculo de pais e mestres, obtidas com a venda da produção agrícola, aluguéis da quadra de es-portes e etc. Assim, não se pode afirmar que o lucro decorrente dessas atividades é incapaz de complementar, suficientemente,a receita da instituição. Ao contrário, pois justamente a Escola neste período vem se mantendo sem esta complementação da verba que pretende a Pro-motoria de Justiça implementar.Aqui o que serviu para também justificar a procedência da ação como anteriormente afirmado, serve no ponto a justificar o indeferimento da complementação pretendida.Não se dúvida ou desacredita que o Estado esteja a fazer um maior esforço para implementar este serviço de melhor qualidade. Todavia, disto não se devem demitir os pais e alunos (através do COM) também responsáveis pela manutenção e funcionamento da escola, em uma moderna e equilibrada estrutura de recursos, em que todos devem ser colaboradores, nem que apenas com a prestação de serviços e esforços. Tudo e especialmente em um Estado que não é rico.Dessa forma, embora louvando a zelosa atuação da colega de primeiro grau, tenho que o pedido deduzido em sede de apelação choca-se com a situação de fato que se tem mantido ao longo dos anos.Assim, deve ser improvido, também, o recurso da promotoria de Jus-tiça, mantendo-se a sentença prolatada.

E o que se espera do Poder Judiciário nestes cenários? Que opere com eficiência na solução de conflitos! Mas o que significa esta eficiência?

Em recentes pesquisas desenvolvidas no país, tem-se apontado como

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critérios de mensuração material de eficiência funcional do Poder Judiciário os seguintes: agilidade, previsibilidade, imparcialidade e custo de acesso, eis que, cada um desses elementos influencia: (a) a utilidade esperada de recorrer-se ao judiciário; (b) a decisão dos agentes de recorrer ao judiciário ou a outro método de resolução de disputa; (c) as decisões de produção, investimento e contrata-ção em geral, na medida em que, sendo a ida à justiça algo que pode ocorrer em qualquer negócio, a forma como essa funciona ajuda a determinar o retorno esperado do negócio.

Respostas a estes interrogantes possuem dimensões econômicas efe-tivas que vão se associar na avaliação funcional do Poder Judiciário, o que, vinculado às questões de satisfatividade social do serviço que este presta, con-siderando cada e diferente segmento comunitário, pode dar um perfil cada vez mais detalhado da eficiência institucional do Estado-Juiz.

Aqui entra, então, outra lógica de eficiência, denominada de Eficiên-cia Econômico-Social – PEES, que tomam a seguinte dimensão nas palavras de Everton Gonçalves e Joana Stelzer522:

Não obstante, tem-se que o PEES prima, quando da elaboração ou aplicação normativa, pela essência econômica da norma que, devendo ser eficiente - maximizadora de resultados esperados quando da adju-dicação de direitos entre os agentes, ou quando determinante de obri-gações - não deve olvidar a consideração, no cálculo econométrico, das variáveis de cunho social e temporal que, corretamente valoradas, devem ser internalizadas de forma que a relação de custo e benefício demonstre a realidade das utilidades que se aufere sacrificando deter-minados bens e serviços de outrem, ainda, considerado o maior nú-mero possível ou a totalidade dos agentes envolvidos e possibilitada a eliminação das externalidades para a sociedade presente e futura.523

Nesta perspectiva, equaliza-se ao máximo possível os interesses do mercado e do Estado em face dos sociais, o que redundará em necessária har-monização – tanto quanto possível - da ação econômica dos agentes, obser-

522 Para os autores, “O próprio Posner ensina que a riqueza, não sendo o único critério de escolha social, deve, no entanto, ser considerada, tanto quanto outros anseios sociais. Assim, socialmente, deve ser almejada a distributividade da riqueza e deve ser propiciada inclusão, dos desejos individuais de cunho não economicista, no cálculo econométrico de custo/benefício conforme utilização de metodologia adequada para a mensuração das variáveis; objetivando, por fim, a maximização do bem-estar das populações envolvidas.” In: GONÇALVES; STELZER, 2007. p. 11.523 GONÇALVES; STELZER, 2007, p. 15. Ampliando os horizontes sociais desta relação vai GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

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vados critérios constitucionais como distributividade, justiça social, defesa do meio ambiente, erradicação do desemprego, etc, (ordem econômica e social) dando primazia a eles quando da tomada de decisões no âmbito destas relações.

2. paRa além do econômIco: a educação como dImenSão do índIce de deSenvolvImento humano

Atualmente é quase que universalmente aceito que o sucesso de um país ou o bem-estar de um indivíduo não podem ser avaliados somente pelo po-der econômico. O rendimento é, obviamente, elemento crucial para se alcançar o progresso, contudo, é preciso também avaliar se as pessoas conseguem ter vidas longas e saudáveis, se têm oportunidades para receber educação e se são livres de utilizarem os seus conhecimentos e talentos para moldarem os seus próprios destinos.

Sobre esta abordagem, cumpre destacar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), lançado pela Organização das Nações Unidas (ONU) no início da década de 1990 que propõe verificar o grau de desenvolvimento de um país utilizando alguns indicadores de desempenho.

Visando enfatizar a necessidade de constantes aplicações de medi-das socioeconômicas mais abrangentes, que incluam também outras dimensões fundamentais da vida e da condição humana, o IDH combina três componentes básicos do desenvolvimento humano:

a) a longevidade, que também reflete, entre outras coisas, as condi-ções de saúde da população; medida pela esperança de vida ao nascer; b) a educação, medida por uma combinação da taxa de alfabetização de adultos e a taxa combinada de matrícula nos níveis de ensino fun-damental, médio e superior; c) a renda, medida pelo poder de compra da população, baseado no PIB per capita ajustado ao custo de vida local para torná-lo compa-rável entre países e regiões, através da metodologia conhecida como paridade do poder de compra (PPC) 524.

Segundo o IDH, a nuclearidade deste terceiro elemento (rendimento)

524 Em economia a paridade do poder de compra (PPC) ou paridade do poder aquisitivo (PPA) é o método alternativo à taxa de câmbio para se calcular o poder de compra de países. A PPC mede quanto uma determinada moeda pode comprar em termos internacionais (dólar), já que bens e serviços têm diferentes preços de um país para outro, ou seja, relaciona o poder aquisitivo de tal pessoa com o custo de vida do local, utilizando como parâmetro seu salário.

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é reconhecida pela sua inclusão como uma das três dimensões básicas do IDH, juntamente com a saúde e a educação.

A abordagem do desenvolvimento humano reconhece o contributo do rendimento para um maior domínio dos recursos e o efeito que isso tem no alargamento das capacidades das pessoas através da nutrição, do abrigo e de oportunidades mais amplas.

Ou seja, é necessário que os economistas e os cientistas sociais com-preendam melhor as interligações entre essas três dimensões, criando uma sen-sibilização mais ampla daquilo que conduz ao desenvolvimento humano, dando destaque para a elementos que ultrapassam a esfera do crescimento econômico e tocam a saúde e a educação.

De acordo com o Relatório do IDH,

Muitos países obtiveram grandes ganhos na saúde e na educação ape-sar de um modesto crescimento no rendimento, enquanto que outros países com um forte crescimento económico ao longo de décadas não conseguiram progressos igualmente impressionantes na esperança de vida, na educação e nos padrões de vida em geral525.

A título de exemplo,

Em Timor-Leste, mais de 70% dos alunos no final do primeiro ano não conseguiam ler uma única palavra quando confrontados com um excerto de texto simples. Estas dificuldades na melhoria da qualida-de da educação ilustram a oscilação da eficácia do envolvimento do Estado526.

O que conduz a reflexão de que os países conseguem melhores de-sempenhos no IDH quando realizam mais progressos na saúde e na educação:

Embora na saúde a influência principal fosse a transmissão de inova-ções tecnológicas, como as vacinações e as práticas de saúde pública, na educação foram os ideais acerca do que as sociedades – e os go-

525 PNUD, 2010, p. 5.526 PNUD, 2010, p. 43.

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vernos – devem fazer e quais as metas a que os pais aspiram para os seus filhos527.

O RDH de 1990 recorria a uma definição clara do desenvolvimento humano como um processo de “alargamento das opções das pessoas”, realçan-do a liberdade para ser saudável, receber instrução e desfrutar de um padrão de vida digno528, mas também sublinhava que o desenvolvimento e o bem-estar hu-manos vão muito para além dessas dimensões, abrangendo um leque muito mais vasto de capacidades, incluindo as liberdades políticas e os direitos humanos.

O desenvolvimento humano tem a ver com a sustentação regular de resultados positivos ao longo do tempo e o combate contra os pro-cessos que empobrecem as pessoas ou estão subjacentes à opressão e à injustiça estrutural. Princípios plurais como a equidade, a susten-tabilidade e o respeito pelos direitos humanos são, por conseguinte, fulcrais. [...] O desenvolvimento humano tem também a ver com a abordagem das disparidades estruturais – deve ser equitativo. E tem a ver com a habilitação das pessoas para que exerçam escolhas indi-viduais e participem, definam e beneficiem dos processos aos níveis familiar, comunitário e nacional – para que fiquem capacitadas529.

De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi-mento (PNUD), o desenvolvimento humano é aquele que integra aspectos de desenvolvimento social, desenvolvimento econômico (incluindo desenvolvi-mento local e rural) e desenvolvimento sustentável. O conceito situa as pessoas no centro do desenvolvimento, tratando da promoção do potencial das pessoas, do aumento de suas possibilidades e o desfrute da liberdade de viver a vida que eles valorizam.

A realidade brasileira no Relatório do IDH que, vale lembrar, conside-ra as condições de saúde, educação e renda de cada local, é ainda preocupante. Mesmo que o relatório tenha apontado que a maioria das pessoas no mundo tem vidas mais longas, mais educação e maior acesso a bens e serviços do que

527 PNUD, 2010, p. 57.528 “La verdadera riqueza de una nación está en su gente. El objetivo básico del desarrollo es crear un ambiente propicio para que los seres humanos disfruten de una vida prolongada, saludable y creativa. Esta puede parecer una verdad obvia, aunque con frecuencia se olvida debido a la preocupación inmediata de acumular bienes de consumo y riqueza financiera.” In: PNUD, 1990, p. 29. (tradução livre)529 PNUD, RDH, 2010. pp. 2-3.

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nunca, e que o IDH médio mundial aumentou 18% entre 1990 e 2010 e 41% desde 1970, o Brasil ainda ocupa a 84ª posição entre os 187 países avaliados no estudo.

Esta realidade, se comparada com a posição do país no ranking do PIB mundial, no qual possui a sexta posição530, conduz a conclusão de que os níveis de educação e saúde do Brasil ainda são muito baixos, e, portanto, mere-cedores de atenção e esforços por parte do Estado.

concluSão

A proteção de um bem jurídico como a educação envolve interes-ses que ultrapassam a singularidade do indivíduo. Trata-se de um direito que, mesmo podendo ser exercido individualmente, deve ser compreendido em sua dimensão coletiva e até mesmo difusa, e decorre de grandes esforços das polí-ticas públicas.

Tem-se que pessoas em todo o mundo têm tido mais saúde, riqueza e educação do que nunca, porém o progresso ao longo dos últimos 40 anos tem sido assimétrico531, em especial em termos de qualidade. Isto quer dizer que os avanços na saúde e educação são possíveis mesmo quando o crescimento econômico se revela ilusório.

No entanto, a formulação e concretização das políticas públicas comprometidas com os direitos e garantias fundamentais demanda a interven-ção do Estado, em um conjunto de ações que envolvem medidas legislativas, administrativas e financeiras. Isso significa reconhecer que o direito à educação se concretiza mediante o planejamento e a implementação de medidas eficazes.

Nesta perspectiva, o argumento da escassez de recursos dos cofres públicos não deve ser argumento para se permitir o esvaziamento de direitos fundamentais, ainda mais quando se trata de educação, já que reconhecidos como elementos responsáveis pelo desenvolvimento humano e pelo aumento da capacidade das pessoas para provocarem a mudança nas famílias, comunidades e países.

530 Dados extraídos do Fundo Monetário Internacional, World Economic Outlook Database, abril de 2012: Nominal GDP list of countries. Dados para o ano de 2011. 531 PNUD, 2010, p. 47.

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Referências

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