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Justiça Restaurativa

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Superlotação carcerária, aumento crescente da criminalidade, insatisfação com a justiça e fragilidade do senso comunitário são sintomas do paradigma disfuncional de crime e de justiça vigente em nossas sociedades.A Justiça Restaurativa firmou-se nas últimas décadas como resposta inovadora às necessidades não atendidas de vítimas e autores de crimes. Esta disciplina vê os crimes como violações de pessoas e relacionamentos interpessoais, violações que acarretam a obrigação de reparar os danos e males que, em última instância, afetam não apenas vítima, ofensor e seus grupos de pertença, mas toda a sociedade. O crime leva ao rompimento do tecido social, e este enfraquecimento dos laços comunitários engendra condições propiciadoras de violações futuras.Com procedimentos diferentes criados para lidar com as particularidades dos mais diversos crimes e culturas locais, a Justiça Restaurativa é um fenômeno mundial presente em todos os continentes, que vem sendo adotada no âmbito da justiça juvenil, mas também em muitos outros contextos: para resolução de problemas disciplinares nas escolas, como resgate de práticas de justiça de comunidades tradicionais, metodologia para combater altos índices de reincidência criminal, para reintegrar egressos do sistema penitenciário, restaurar sociedades dilaceradas por guerras civis e solucionar conflitos em comunidades as mais diversas.O Prof. Howard Zehr, é um dos pioneiros na sistematização da Justiça Restaurativa, sua aplicação prática integrada ao sistema judiciário norte-americano e pesquisa de novos campos de aplicação.

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CONTEÚDO

Prefácio de Leoberto Brancher . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3

1. VISÃO GERAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13Por que este livro? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15A Justiça Restaurativa não é... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18A Justiça Restaurativa é focada em necessidades e papéis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

2. PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31Os três pilares da Justiça Restaurativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34O “quem” e o “como” são importantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36A Justiça Restaurativa visa endireitar as coisas . . . . . . . . . . 40Uma lente restaurativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .44Definindo Justiça Restaurativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .48As metas da Justiça Restaurativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49Perguntas balizadoras da Justiça Restaurativa . . . . . . . . . . . 50Indicadores de Justiça Restaurativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52

3. PRÁTICAS RESTAURATIVAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53O cerne das abordagens geralmente envolve um encontro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55Os modelos diferem quanto ao “quem” e ao “como” . . . . 58Os modelos diferem quanto a seus objetivos . . . . . . . . . . . . . . 63Um continuum restaurativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

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4. ISTO OU AQUILO? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71Justiça retributiva X Justiça Restaurativa? . . . . . . . . . . . . . . . . . 71Justiça criminal X Justiça Restaurativa? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72A Justiça Restaurativa vista como um rio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74

ANEXO 1: PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

DA JUSTIÇA RESTAURATIVA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83Leituras Selecionadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

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PREFÁCIO

Faz poucos anos, menos de dez. Embora fôssemos todos já bastante crescidos, mais parecíamos garotos ávidos por

alcançar o final de um conto de literatura juvenil. Assim era a atmosfera de encantamento e mistério quando os primeiros “manuscritos” sobre Justiça Restaurativa começaram a apa-recer entre nós, que sofregamente nos debruçávamos sobre traduções improvisadas, às vezes confusas, embora nunca o suficiente obscuras para nos retirar o entusiasmo, ou para encobrir a veia latejante da boa nova que traziam.

Entre esses achados, destacavam-se fragmentos de textos do Prof. Howard Zehr – alguns que, aliás, agora podemos ver traduzidos neste livro. Não apenas pela mística de serem con-siderados parte importante dos “originais que deram início à série”, mas, sobretudo, pela capacidade de expressão sintética, esquemática e visual, pelos recursos de linguagem capazes de objetivar insights, pela capacidade de transmitir, apesar das nossas mal traduzidas linhas, a percepção da intensidade das emoções experimentadas apenas pelas pessoas que convivem concretamente com a aflição e a dor da violência e do crime, das algemas e das cadeias que as cercam.

Tabelas comparativas (“isto ou aquilo”), traduções do intraduzível (“o que a Justiça Restaurativa não é”), fórmulas

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sintéticas e organizativas, como “princípios fundamentais de Justiça Restaurativa”, que você vai encontrar neste livro, eram recebidas e decifradas como fragmentos de um tesouro que se insinuava após uma busca até então sem norte e, por isso mesmo, longa, tormentosa e desnutrida – mas sempre persis-tente – em homenagem aos fiapos intuitivos de esperança com os quais se costuma tecer o porvir humano.

Foi com matrizes essenciais como as que você vai encon-trar neste pequeno livro que se nutriram os primeiros pas-sos e encontros do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Justiça Restaurativa da Escola Superior da Magistratura da AJURIS – Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, espaço de aprendizagem e de reflexão teórica que deu origem ao Projeto Justiça para o Século 21 – Instituindo Práticas Restaurativas, desde o qual passamos a submeter o cotidiano dos processos da Justiça Juvenil de Porto Alegre ao crivo das novas lentes reveladas por Howard Zehr: as lentes restaurativas.

Não surgia aí apenas mais um espaço de estudos, senão que, como diria Humberto Maturana, abria-se uma nova teia de conversações – inspirada e pautada pelos princípios axio-lógicos da novidade restaurativa, e compartilhada por juízes, promotores de justiça, defensores públicos, policiais (embora, na verdade, não muitos), assistentes sociais, psicólogos, psi-quiatras, educadores sociais e professores.

Além de abarcar diferentes facetas do mesmo objeto de trabalho – conflitos, violências e infrações penais envolven-do crianças e adolescentes –, esse grupo se identificava por compartilhar um sentimento comum de esgotamento e asfi-xia diante dos respectivos sistemas institucionais e reper-tórios acadêmicos, marcados por hierarquias autoritárias e suas certezas irredutíveis, na prática, tão arrogantes quanto reprodutoras de violências, violências certamente maiores do

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que as atribuídas à maioria dos jovens submetidos aos seus mecanismos de controle e poder.

Nosso primeiro teste das ideias sobre Justiça Restaurativa ocorreria ainda em 2002. Na audiência de instrução, a vítima de um roubo a mão armada, uma senhora de 50 anos, foi soli-citada a fazer o reconhecimento de dois réus menores. Sua casa fora invadida por três rapazes (o terceiro era um maior, que conseguiu fugir), mas logo cercada pela polícia, com todos dentro e, felizmente, o desfecho foi a rendição. Ela fez pouco caso do vidro espelhado da sala de reconhecimentos. “Claro que conheço. Eles moram no mesmo condomínio. Esse aqui – disse apontando para um deles – eu conheço desde bebê. Carreguei ele muito no colo quando o ônibus estava lotado, pois a mãe dele embarcava umas paradas adiante da minha, ela tinha de viajar em pé e então eu levava ele no colo...”. A manifestação dessa senhora, feita refém com sua filha de 21 anos e o neto de 8 meses dentro da própria casa, serviria de senha para iniciar o primeiro círculo restaurativo realizado no Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre.

Apesar da inexperiência e das dificuldades metodológicas, os encontros proporcionaram uma confirmação irreversível das hipóteses teóricas. Principalmente quando um dos rapa-zes, ainda preso, aparentemente resistia às orientações da mediadora para que se desculpasse com as vítimas (o méto-do então era o da mediação da terapia familiar sistêmica). O rapaz se levantou, pediu para pegar no colo o bebê, também presente ao encontro e, com a criança nos braços, colocou-se de joelhos e, chorando, pediu perdão.

Vista de fora, a cena pode parecer excessivamente teatral, até mesmo manipulatória. Mas para quem esteve ali, vivendo de dentro a força emotiva e a intimidade do encontro, não restaram dúvidas. Quem ali se prostrava e pedia perdão de

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joelhos não era mais o ladrão, o assaltante, o réu, o menor infrator. Era de novo aquele menino vizinho que a vítima – como ele agora com seu neto – há 17 anos segurara em seu colo. E desde esse nível incomensuravelmente profundo de resgate e conexão, um novo futuro se abriria para todos.

As vítimas puderam sentir-se aliviadas do seu trauma e do seu temor. Afinal, os algozes no fundo não eram tão monstru-osos assim e, com certeza, nunca mais voltariam, eles mesmos, a tentar novamente assaltá-las. Aliás, uma das propostas de reparação feita pelos rapazes, mas recusada pelas vítimas, era de que eles viessem todas as noites vigiar seu portão e dar-lhes segurança no horário de chegarem em casa. Ora, do ponto de vista das vítimas, aceitá-los agora como seus “segu-ranças” seria prorrogar excessivamente a vivência traumáti-ca do assalto. Mas depois de todo o ocorrido, aqueles dois, com certeza, não as assaltariam outra vez. Ficara evidente que cada um desses jovens – agora confrontados com sua própria humanidade através do espelho do reconhecimento do sofrimento e da humanidade das vítimas, e dos próprios familiares integrados ao encontro – descera até o inferno do crime, mas para reencontrar a raiz da própria identidade e para dali ressurgir firmado noutro sentido, noutro propósito, noutra perspectiva de vida. A experiência, ao final, por maior que tenha sido o sofrimento, foi de respeito, responsabilidade e liberdade. E essa cena do pedido de perdão resume uma vivência cuja intensidade e repercussão em termos de elabo-ração psíquica não poderia ser proporcionada por qualquer prisão – nem, talvez, psicanálise – do mundo.

Vale ressaltar que esse testemunho de resgate das relações de humanidade e proximidade, em que um conflito grave, ao ponto de tipificar um crime, acaba dando lugar a uma expe-riência de transcendência e enlevo, não faz parte da literatura

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internacional, nem teve palco na Nova Zelândia, na Austrália, no Canadá ou nos Estados Unidos. Foi vivido e escrito no Brasil. Ocorreu aqui em casa, conosco, tal como poderia ter acontecido na sua casa, com você, na sua instituição, escola ou comarca. Ou talvez aconteçam em breve através da sua ação.

Depois de muito estudar e muito refletir a respeito de nossas práticas de justiça com infratores menores de idade “sob as lentes restaurativas”, e de realizar testes eventuais como o relatado acima, em 2005 iniciamos uma aplicação mais sistemática e estruturada. Com subsídios do Governo Federal (Secretaria da Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça, e Secretaria Nacional de Direitos Humanos) e de agências das Nações Unidas (PNUD e UNESCO, esta com recursos do Programa Criança Esperança, da Rede Globo), surgiu o Projeto Justiça para o Século 21, com o objetivo de difundir a aplicação dos princípios e práticas da Justiça Restaurativa na pacificação de conflitos e violências envolvendo crianças, adolescentes e seu entorno familiar e comunitário.

Ainda que a princípio centrada no Juizado da Infância e da Juventude e nos atos infracionais e correspondentes proces-sos judiciais e medidas socioeducativas (modalidade de san-ção penal prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, aplicável a menores com idades entre 12 e 17 anos), esse foco ampliado do Projeto levou à experiência de aplicação das práticas restaurativas em outros espaços de atendimento a crianças e jovens, como escolas, abrigos e organizações não governamentais.

Mensurar resultados é difícil quando se trata de avaliar um processo que envolve mudanças culturais e, sobretudo, quando se atua de forma difusa e capilarizada. Mas importa dizer que a qualidade das ideias que você encontrará resu-midas neste livro foi suficiente para gerar um interesse e um

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despertar tão abrangentes que os grupos de leitura iniciais deram lugar a um processo que denominamos “encharca-mento de capacitações”, dirigido a pessoas e instituições que atuam com foco em crianças e adolescentes na capital gaúcha. Entre 2005 e 2011, 11.793 pessoas participaram de atividades de sensibilização e formação promovidas diretamente pelo Justiça 21. Destas, 1.059 realizaram o Curso de Formação de Lideranças em Justiça Restaurativa promovido pela Escola Superior da Magistratura e 908 participaram do nosso Curso de Formação de Coordenadores de Círculos Restaurativos. Um monitoramento feito pela Faculdade de Serviço Social da PUCRS acompanhou 380 casos atendidos no Juizado entre 2005 e 2007. Entrevistando os participantes, constatou-se que 95% das vítimas e 90% dos ofensores saíram satisfeitos de sua experiência de contato com a justiça após participarem de procedimentos restaurativos. (Os índices internacionais de satisfação no contato com a justiça criminal giram em torno de meros 12 a 15% positivos). Cerca de 90% dos acordos foram julgados cumpridos. A reiteração de atos infracionais entre os ofensores participantes caiu em 23% comparativamente a outros que não participaram de nenhum encontro restaurativo (a íntegra do relatório da pesquisa está disponível em www.justica21.org.br).

Esse testemunho tem por objetivo dizer “seja bem-vindo à Justiça Restaurativa, sinta-se em casa, você também pode”. Porque faz pouco que chegamos por aqui com as mãos vazias, a mente assolada por dúvidas, e o coração amargurado diante de tantos problemas por resolver com ferramentas que sabida-mente não funcionam, além de apresentarem terríveis efeitos colaterais, como surrar crianças e aprisionar adolescentes.

Para nosso alívio, porém, apareceria essa luz no fim do túnel do crime. E, a propósito do alcance das luzes restaurativas, uma

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ressalva. Não se iludam os céticos com a falsa ideia de que Justiça Restaurativa só funcione restrita à justiça juvenil. De fato, sua expansão no mundo vem tendo como carro-chefe essa área da jurisdição criminal – a dos crimes praticados por menores de idade. Aliás, aqui já podemos comemorar a recente introdução dos conceitos essenciais da Justiça Restaurativa nesse campo através da Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012, que regulamentou o Sinase – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo –, abrindo as portas para construirmos uma justiça juvenil res-taurativa para atender nossos adolescentes infratores. Mas essa vanguarda da justiça juvenil em acolher a Justiça Restaurativa se deve mais a fatores conjunturais do que à natureza em si do objeto dessa área jurisdicional.

Entre esses fatores, alinham-se a maior flexibilidade das normas processuais e do próprio sancionamento, a histórica (e contraproducente, embora muito mais benéfica do que a mera punição) ênfase terapêutica no tratamento do delinquente, a afeição a práticas interdisciplinares, a maior abertura e pesso-alidade no trato com as partes envolvidas no processo, a maior benevolência com o infrator menor de idade, a integração de familiares, comunidades e diversos serviços de atendimento, com efeito, que fazem da justiça juvenil um canteiro fértil para as sementes restaurativas. Aliás, já bastariam essas carac-terísticas para ensinar, e muito, à justiça penal de adultos: precisamos processos e sanções mais flexíveis, intervenções interprofissionais, menos automatismo punitivo, maior dis-ponibilidade para a escuta das necessidades dos envolvidos, mais humanidade no trato com os infratores, e habilidade e agilidade na articulação de redes.

Mas as ideias da Justiça Restaurativa não se esgotariam nesse conjunto já conhecido de recomendações. Elas levam ao âmago das próprias concepções do sistema, de modo a fazer

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com que sua aplicação experimental e aparentemente inofen-siva no atendimento a adolescentes infratores seja apenas um mote para iluminar e colocar em xeque a improdutividade dos mais arraigados pressupostos implícitos do sistema penal tradicional, que podem ser resumidos nos conceitos estrutu-rantes de culpa, perseguição, imposição, castigo e coerção. O simples fato de operar a justiça penal tentando substituir esses conceitos, respectivamente, pelos de responsabilidade, encontro, diálogo, reparação do dano e coesão social, mesmo que complexo e trabalhoso, e talvez por ora somente possí-vel de forma tópica e ocasional, já é por si só atitude capaz de subverter e colapsar positivamente um sistema obsoleto e oneroso cuja reprodução, definitivamente, não se justifica.

Trata-se aqui de uma subversão não apenas penetrante e capaz de desafiar os núcleos conceituais do sistema, mas tam-bém transversal, ao ponto de nos fazer ver que o sistema insti-tucional de justiça não é senão reflexo de um padrão cultural, historicamente consensual, pautado pela crença na legitimida-de do emprego da violência como instrumento compensatório das injustiças e na eficácia pedagógica das estratégias puniti-vas. E essa crença, muito embora cristalizada e perfeitamente visível nos alicerces do sistema jurídico-penal, somente está ali porque reside insidiosamente incrustada nas nossas mais sutis e cotidianas relações de poder – desde onde continua se reproduzindo de forma sub-reptícia e indiscriminada.

É nessa perspectiva que se pode compreender também porque os princípios e métodos da Justiça Restaurativa, apesar de emergentes e radicados na justiça penal, possam ter apli-cação eficiente ou, no mínimo, produzir reflexões relevantes quando estendidos à resolução de conflitos sob diferentes molduras procedimentais ou em contextos ambientais diver-sos, e não somente no âmbito da justiça formal.

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Tamanha é a abrangência das ideias sintetizadas neste pequeno livro que, apesar de não ensinar exatamente o “como” (tal qual possivelmente ninguém o faça), mostra muito claramen-te “em que” e “por que” uma abordagem restaurativa dos confli-tos e do crime pode fazer toda a diferença nessa encruzilhada da história em que a violência e a insegurança transbordam e nos desafiam, transfiguradas em esfinges pós-modernas.

Através de um texto leve, preciso e dinâmico, o decano da Justiça Restaurativa nos conduz a um encontro denso, embora descontraído, com as bases conceituais dessa inovadora pro-posta, ao mesmo tempo em que fornece elementos preciosos para fazermos nossos próprios juízos e reflexões sobre tudo o que até aqui vimos falando e fazendo em nome da justiça. Aos que estiverem dispostos a um encontro despojado e honesto com suas crenças, com seus valores, com suas práticas de poder e, portanto, consigo mesmos, o processo que está por se iniciar com a leitura deste livro conduzirá a um irreversível e empolgante resultado.

Shalom para você e para todos os que possam vir a ajudar a libertar das prisões do crime e dos conflitos e, indissociáveis delas, das prisões do medo, da ignorância e do sofrimento.

Leoberto Brancher Juiz de Direito

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1VISÃO GERAL

Enquanto sociedade, como devemos reagir às ofensas? Quando acontece um crime ou quando é cometida uma

injustiça, o que precisa ser feito? O que pede nosso senso de justiça?

Para os norte-americanos a premência dessas questões intensificou-se com os eventos traumáticos de 11 de setembro de 2001. Mas a discussão é antiga e, na verdade, tem abran-gência internacional.

Quer estejamos preocupados com crimes ou outras ofen-sas, nossa reflexão sobre tais questões foi profundamente mol-dada pelo sistema jurídico ocidental – não apenas no Ocidente, mas também em grande parte do outro lado do mundo.

O sistema jurídico ocidental ou, mais especificamente, a justiça criminal, tem importantes qualidades. No entanto, vem crescendo o reconhecimento de suas limitações e carên-cias. Não raro, vítimas, ofensores e membros da comunidade sentem que o sistema deixa de atender adequadamente às suas necessidades. Os profissionais da área da justiça – juízes, advogados, promotores, oficiais de condicional, funcionários do sistema prisional – amiúde expressam sua frustração com o sistema. Muitos sentem que o processo judicial aprofunda as chagas e os conflitos sociais ao invés de contribuir para seu saneamento e pacificação.

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A Justiça Restaurativa procura tratar de algumas dessas necessidades e limitações. Desde os anos 70 vem surgindo vários programas e abordagens em centenas de comunidades de vários países do mundo. Com frequência são oferecidos como alternativas paralelas ou no âmbito mesmo do sistema jurídico vigente. No entanto, a partir de 1989, a Nova Zelândia fez da Justiça Restaurativa o centro de todo o seu sistema penal para a infância e a juventude.

Atualmente, em muitas localidades, a Justiça Restaurativa é considerada um sinal de esperança e um rumo para o futuro. Resta saber se conseguiremos realizar suas promessas.

A Justiça Restaurativa começou como um esforço para lidar com assaltos e outros crimes patrimoniais que em geral são vistos (em muitos casos incorretamente) como ofensas menores. Hoje, contudo, as abordagens restaurativas estão disponíveis em algumas comunidades para aplicação às modalidades mais violentas de crime: morte causada por embriaguez ao volante, agressão, estupro e mesmo homicídio. A partir da experiência das Comissões de Verdade e Reconciliação na África do Sul, também vêm sendo realizados esforços para aplicar a estrutura da Justiça Restaurativa a situações de violência generalizada.

Além disso, tais abordagens e práticas estão ultrapassan-do o sistema de justiça criminal e chegando a escolas, locais de trabalho e instituições religiosas. Alguns defendem a ideia de que abordagens restaurativas como os “círculos” (prática específica que nasceu nas comunidades indígenas canaden-ses) podem ser usadas para trabalhar, resolver e transformar os conflitos em geral. Outros veem as “conferências de gru-pos familiares” (modalidade com raízes na Nova Zelândia e Austrália, e também em encontros facilitados entre vítima e ofensor) como um caminho para construir e sanar comunida-des. Kay Pranis, destacada defensora da Justiça Restaurativa,

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VISÃO GERAL

afirma que os círculos são uma modalidade de democracia participativa que vai um passo além da regra da maioria sim-ples (veja as p. 61-62 para uma explicação mais detalhada dos círculos no contexto da Justiça Restaurativa).

Nas sociedades onde o sistema jurídico ocidental substi-tuiu ou suprimiu processos tradicionais de justiça e resolução de conflitos, a Justiça Restaurativa oferece uma estrutura apta a reexaminar e, por vezes, reativar tais tradições.

Embora o termo “Justiça Restaurativa” abarque uma ampla gama de programas e práticas, no seu cerne ela é um conjunto de princípios, uma filosofia, uma série alternativa de perguntas paradigmáticas. Em última análise, a Justiça Restaurativa oferece uma estrutura alternativa para pensar as ofensas. Examinarei esse arcabouço nas páginas que se seguem, explorando o modo como pode ser utilizado.

POR QUE ESTE LIVRO?Neste livro não tentarei defender a Justiça Restaurativa.

Nem explorarei as muitas implicações dessa abordagem. Gostaria que ele fosse uma breve descrição ou resumo da Justiça Restaurativa. Ainda que apresente abaixo alguns dos programas e práticas, meu foco recairá principalmente sobre seus princípios ou filosofia.

Este livro é para as pessoas que ouviram a expressão “Justiça Restaurativa” e estão curiosas sobre suas implica-ções. Também se destina àqueles que estão trabalhando nesse campo, mas têm dúvidas, ou estão perdendo a clareza quanto à sua missão. Espero poder oferecer esclarecimento sobre os legítimos rumos do comboio da Justiça Restaurativa e, em alguns casos, levar o trem de volta aos trilhos.

Trata-se de um empenho importante nos dias de hoje. Como toda tentativa de mudança, a Justiça Restaurativa muitas vezes se

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HOWARD ZEHR – JUSTIÇA RESTAURATIVA

desencaminhou no curso de seu desenvolvimento e dissemina-ção. Na presença de cada vez mais programas que se intitulam “Justiça Restaurativa”, não raro o significado desse termo se tor-na rarefeito ou confuso. Devido à inevitável pressão do trabalho no mundo real, amiúde a Justiça Restaurativa tem sido sutilmente desviada ou cooptada, afastando-se dos princípios de origem.

Essa questão vem preocupando de modo especial os gru-pos de defesa dos interesses das vítimas. A Justiça Restaurativa se diz orientada para as vítimas – mas será de fato? Essas associações de vítimas temem que os esforços para promover a Justiça Restaurativa sejam com frequência motivados prin-cipalmente pelo desejo de trabalhar de maneira mais positiva com os ofensores. Assim sendo, a Justiça Restaurativa poderá se tornar apenas uma forma de lidar com os ofensores, tal como o sistema criminal que procura aprimorar ou substituir.

Outros se perguntam se ela de fato atendeu de modo ade-quado às necessidades dos ofensores e se seus esforços são efetivamente restaurativos. Será que os programas de Justiça Restaurativa oferecem apoio suficiente para que os ofensores cumpram suas obrigações e mudem seus padrões de com-portamento? Será que de fato tratam os males que levaram os ofensores a se tornarem quem são? Tais programas não estarão se tornando somente uma outra forma de punir os ofensores, sob outro pretexto? E a comunidade como um todo? Estará suficientemente motivada para envolver-se e assumir suas obrigações em relação às vítimas, aos ofensores e a seus membros em geral?

Experiências anteriores para promover mudanças no cam-po da justiça nos advertem de que desvios e deformações acontecem inevitavelmente, apesar de nossas melhores inten-ções. Se os defensores da mudança não estiverem dispostos a reconhecer e atacar esses prováveis desvios, seus esforços

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VISÃO GERAL

poderão acabar produzindo algo muito diferente do que pre-tendiam. De fato, as “emendas” podem acabar sendo muito piores que o “soneto” que planejavam reformar ou substituir.

Uma das salvaguardas mais importantes contra tais des-vios é dar a devida atenção aos princípios fundamentais. Se estivermos bem conscientes deles, se planejarmos nossos pro-gramas com esses princípios em mente, se nos deixarmos avaliar por esses mesmos princípios, é bem mais provável que nos mantenhamos na trilha correta.

A questão é que o campo da Justiça Restaurativa tem cres-cido com tanta rapidez e em tantas direções que às vezes não é fácil caminhar para o futuro com integridade e criativida-de. Somente uma visão clara dos princípios e metas poderá oferecer a bússola de que precisamos para encontrar o norte num caminho inevitavelmente tortuoso e incerto.

Este livro é uma contribuição que procura articular os conceitos da Justiça Restaurativa em termos bem diretos. No entanto, devo admitir que existem limitações à estrutura que esboçarei aqui. Sou considerado por muitos como um dos pri-meiros sistematizadores e divulgadores da Justiça Restaurativa. Apesar de ter me esforçado bastante para manter uma abertura crítica, possuo um viés favorável a esse ideal. Além disso, apesar de meu empenho em contrário, escrevo do ponto de vista de minha própria “lente”, que se formou a partir daquilo que sou: um homem branco, de classe média, descendente de europeus e cristão menonita. Tal biografia e ainda outros interesses neces-sariamente modelam minha voz e visão.

Mesmo havendo certo consenso dentro do campo da Justiça Restaurativa quanto às grandes linhas que demarcam seus princípios, nem tudo passa sem contestação. Estas pági-nas retratam a minha compreensão da Justiça Restaurativa, que deve ser testada pelas vozes de outros.

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HOWARD ZEHR – JUSTIÇA RESTAURATIVA

Por fim, escrevi este livro no contexto da América do Norte. A terminologia, as questões levantadas, e mesmo o modo como o conceito foi formulado refletem em certa medida as realidades do meu ambiente. Mas espero que ele seja útil também para profissionais que atuam em outros contextos, mesmo que adaptações ou traduções sejam necessárias.

Tendo em vista esse pano de fundo e essas qualificações, passemos agora à questão: o que é Justiça Restaurativa? Muitas ideias equivocadas cercam o termo e penso que é cada vez mais importante definir aquilo que a Justiça Restaurativa não é.

A JUSTIÇA RESTAURATIVA NÃO É...• A Justiça Restaurativa não tem como objeto principal

o perdão ou a reconciliação.

Algumas vítimas e defensores de vítimas reagem negativa-

mente à Justiça Restaurativa porque imaginam que o obje-

tivo do programa seja o de estimular, ou mesmo forçar, a

vítima a perdoar ou se reconciliar com o ofensor.

Como veremos mais adiante, o perdão ou a reconciliação não

são o objetivo principal ou o foco da Justiça Restaurativa. É

verdade que a Justiça Restaurativa oferece um contexto em

que um ou ambos podem vir a acontecer. De fato, algum grau

de perdão, ou mesmo de reconciliação, realmente ocorre

com mais frequência do que no ambiente litigioso do pro-

cesso penal. Contudo, esta é uma escolha que fica totalmente

a cargo dos participantes. Não deve haver pressão alguma

no sentido de perdoar ou de buscar reconciliação.

• A Justiça Restaurativa não é mediação.

Tal como os programas de mediação, muitos progra-

mas de Justiça Restaurativa são desenhados em torno da

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VISÃO GERAL

possibilidade de um encontro facilitado entre vítimas, ofen-

sores e, possivelmente, membros da comunidade. No entan-

to, nem sempre se escolhe realizar o encontro, nem seria

apropriado. Além disso, as abordagens restaurativas são

importantes quando o ofensor não foi pego ou quando uma

das partes não se dispõe ou não pode participar. Portanto,

a abordagem restaurativa não se limita a um encontro.

Mas, mesmo quando o encontro acontece, o termo “media-

ção” não constitui uma descrição adequada daquilo que vai

acontecer. Num conflito mediado se presume que as partes

atuem num mesmo nível ético, muitas vezes com responsa-

bilidades que deverão ser partilhadas. Embora esse conceito

de culpa partilhada seja válido em certos crimes, na maioria

deles isso não ocorre. As vítimas de estupro ou mesmo de

roubo não querem ser vistas como “partes de um conflito”.

Na realidade, podem estar em meio a uma luta interna contra

a tendência de culparem a si mesmas.

De qualquer maneira, para participar de um encontro de

Justiça Restaurativa, na maioria dos casos o ofensor deve

admitir algum grau de responsabilidade pela ofensa, e um

elemento importante de tais programas é que se reconheça

e se dê nome a tal ofensa. A linguagem neutra da mediação

pode induzir ao erro, e chega a ser um insulto em certas

situações.

Ainda que o termo “mediação” tenha sido adotado desde

o início dentro do campo da Justiça Restaurativa, ele vem

sendo cada vez mais substituído por termos como “encontro”

ou “diálogo” pelos motivos expostos acima.

• A Justiça Restaurativa não tem por objetivo principal

reduzir a reincidência ou as ofensas em série.

Num esforço para ganhar aceitação, os programas de Justiça

Page 21: Justiça Restaurativa

• 20 •

HOWARD ZEHR – JUSTIÇA RESTAURATIVA

Restaurativa muitas vezes são promovidos ou avaliados

como maneiras de diminuir a reincidência ou os crimes em

série.

Há bons motivos para acreditar que tais programas redu-

zem de fato a criminalidade. As pesquisas realizadas

até o momento – com foco principalmente em ofenso-

res juvenis – são bastante animadoras em relação a esse

quesito. No entanto, a redução da reincidência não é o

motivo pelo qual se devam promover os programas de

Justiça Restaurativa.

A diminuição da criminalidade é um subproduto da Justiça

Restaurativa, que deve ser administrada, em primeiro

lugar, pelo fato de ser a coisa certa a fazer. As necessidades

das vítimas precisam ser atendidas, os ofensores devem

ser estimulados a assumir responsabilidade por seus atos,

e aqueles que foram afetados por seus atos devem estar

envolvidos no processo – independente do fato de os ofen-

sores caírem em si e abandonarem seu comportamento

transgressor.

• A Justiça Restaurativa não é um programa ou projeto

específico.

Muitos programas adotam a Justiça Restaurativa em todo

ou em parte. Contudo, não existe um modelo puro que

possa ser visto como ideal ou passível de implementação

imediata em qualquer comunidade. Estamos ainda numa

fase de aprendizado muito intenso nesse campo. As práti-

cas mais interessantes que têm surgido nos últimos anos

não passavam pela cabeça daqueles que deram início aos

primeiros programas, e muitas ideias inovadoras surgirão

em virtude do diálogo e experimentação futuros.

Page 22: Justiça Restaurativa

• 21 •

VISÃO GERAL

Do mesmo modo, todos os mode-

los estão, em alguma medida,

atrelados à cultura. Portanto a

Justiça Restaurativa deve ser

construída de baixo para cima,

pelas comunidades, através do

diálogo sobre suas necessidades

e recursos, aplicando os princípios às situações que lhes

são próprias.

A Justiça Restaurativa não é um mapa, mas seus princípios

podem ser vistos como uma bússola que aponta na direção

desejada. No mínimo, a Justiça Restaurativa é um convite

ao diálogo e à experimentação.

• A Justiça Restaurativa não foi concebida para ser apli-

cada a ofensas comparativamente menores ou ofensores

primários.

Talvez seja mais fácil conseguir o apoio da comunidade a

programas que lidam com os chamados “casos de menor

gravidade”. No entanto, a experiência tem demonstrado

que a Justiça Restaurativa pode produzir maior impacto

nos casos de crimes mais graves. Além disso, se seus prin-

cípios forem levados a sério, a necessidade de abordagens

restaurativas fica muito clara no tocante aos casos mais

graves. As perguntas balizadoras da Justiça Restaurativa

(veja p. 50) podem ajudar a criar respostas judiciais a situa-

ções muito difíceis. A violência doméstica é provavelmente

a área de aplicação mais problemática e, nesse caso, acon-

selho grande cautela.

A Justiça Restaurativa é uma bússola e não um mapa.

Page 23: Justiça Restaurativa

• 22 •

HOWARD ZEHR – JUSTIÇA RESTAURATIVA

• A Justiça Restaurativa não é algo novo nem se originou

nos Estados Unidos.

O moderno campo da Justiça Restaurativa de fato desen-

volveu-se nos anos 70 a partir de experiências em comu-

nidades norte-americanas com uma parte considerável de

população menonita. Buscando aplicar sua fé e visão de paz

ao campo implacável da justiça criminal, os menonitas e

outros profissionais de Ontário, Canadá, e depois de Indiana,

Estados Unidos, experimentaram encontros entre ofensor e

vítima dando origem a programas, nessas comunidades, que

depois serviram de modelo para projetos em outras partes

do mundo. A teoria da Justiça Restaurativa desenvolveu-se

inicialmente desses empenhos.

Contudo, o movimento deve muito a esforços anteriores e a

várias tradições culturais e religiosas. Beneficiou-se enorme-

mente do legado dos povos nativos da América do Norte e

Nova Zelândia. Portanto, suas raízes e precedentes são bem

mais amplos que a iniciativa menonita dos anos 70. Na verdade,

essas raízes são tão antigas quanto a história da humanidade.

• A Justiça Restaurativa não é uma panaceia nem neces-

sariamente um substituto para o processo penal.

A Justiça Restaurativa não é, de modo algum, resposta

para todas as situações. Nem está claro que deva substi-

tuir o processo penal, mesmo num mundo ideal. Muitos

entendem que, mesmo que a Justiça Restaurativa pudesse

ganhar ampla implementação, algum tipo de sistema jurí-

dico ocidental (idealmente orientado por princípios restau-

rativos) ainda seria necessário como salvaguarda e defesa

dos direitos humanos fundamentais. De fato, esta é a fun-

ção das varas de infância e juventude no sistema de Justiça

Restaurativa juvenil da Nova Zelândia.

Page 24: Justiça Restaurativa

• 23 •

VISÃO GERAL

A maioria dos defensores da Justiça Restaurativa concor-

da que o crime tem uma dimensão pública e uma priva-

da. Creio que seria mais exato dizer que o crime tem uma

dimensão social ao lado de uma mais local e pessoal. O

sistema jurídico se preocupa com a dimensão pública, ou

seja, os interesses e obrigações da sociedade representada

pelo Estado. Mas esta ênfase relega ao segundo plano, ou

chega a ignorar, os aspectos pessoais e interpessoais do

crime. Ao colocar o foco sobre as dimensões privadas do

crime, consequentemente valorizando seu papel, a Justiça

Restaurativa procura oferecer um maior equilíbrio na

maneira como vivenciamos a justiça.

• A Justiça Restaurativa não é necessariamente uma alter-

nativa ao aprisionamento.

A sociedade ocidental, e especialmente os Estados Unidos,

faz uso abusivo dos presídios. Se a Justiça Restaurativa

fosse levada a sério, nosso recurso ao aprisionamento seria

reduzido e a natureza dos estabelecimentos prisionais

mudaria significativamente. No entanto, as abordagens

restaurativas podem também ser usadas em conjunto com

as sentenças de detenção, ou em paralelo a estas. Elas

não são necessariamente uma alternativa à privação de

liberdade.

• A Justiça Restaurativa não se contrapõe necessariamente

à justiça retributiva.

Apesar de minhas afirmações em obras anteriores, não

vejo mais a Justiça Restaurativa como oposta à justiça

retributiva. Esta questão será tratada em maior detalhe

nas p. 71-72.

Page 25: Justiça Restaurativa

• 24 •

HOWARD ZEHR – JUSTIÇA RESTAURATIVA

A JUSTIÇA RESTAURATIVA É FOCADA EM NECESSIDADES E PAPÉIS

O movimento de Justiça Restaurativa começou como um esforço de repensar as necessidades que o crime gera e os papéis inerentes ao ato lesivo. Os defensores da Justiça Restaurativa examinaram as necessidades que não estavam sendo atendidas pelo processo legal corrente. Observaram também que é por demais restritiva a visão prevalente de quais são os legítimos participantes ou detentores de interesse no processo judicial.

A Justiça Restaurativa amplia o círculo dos interessados no processo (aqueles que foram afetados ou têm uma posi-ção em relação ao evento ou ao caso) para além do Estado e do ofensor, incluindo também as vítimas e os membros da comunidade. 1

Como esta visão de necessidades e papéis marcou a origem do movimento, e pelo fato de a estrutura de necessidades/papéis ser tão inerente ao conceito, é importante começar nossa revisão desse ponto. À medida que o campo da Justiça Restaurativa se desenvolveu, a análise dos detentores de inte-resse tornou-se mais complexa e abrangente. A discussão que segue se limita a algumas das preocupações centrais que já se faziam presentes desde o início do movimento e que conti-nuam a desempenhar um papel central. Ela também se limita às necessidades “judiciais” – necessidades das vítimas, ofen-sores e membros da comunidade que podem ser atendidas, ao menos em parte, pelo sistema judicial.

Vítimas

A Justiça Restaurativa se preocupa em especial com as necessidades das vítimas de atos ilícitos, aquelas necessidades que não estão sendo adequadamente atendidas pelo sistema

Page 26: Justiça Restaurativa

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VISÃO GERAL

de justiça criminal. Não raro as vítimas se sentem ignora-das, negligenciadas ou até agredidas pelo processo penal. Isto acontece em parte devido à definição jurídica do crime, que não inclui a vítima. O crime é definido como ato cometido contra o Estado, e por isso o Estado toma o lugar da vítima no processo. No entanto, em geral as vítimas têm uma série de necessidades a serem atendidas pelo processo judicial.

Devido à definição jurídica de crime e à natureza do pro-cesso penal, quatro tipos de necessidade parecem estar sendo especialmente negligenciadas:

1. Informação. A vítima precisa de respostas às suas dúvidas

sobre o ato lesivo – por que aconteceu e o que aconteceu

depois? Precisa de informações reais, não especulações

ou informações oficiais vindas de um julgamento ou dos

autos do processo. Conseguir informações reais em geral

requer que tenhamos acesso direto ou indireto ao ofensor

que detém a informação.

2. Falar a verdade. Um elemento importante no processo de

recuperação ou superação da vivência do crime é a oportu-

nidade de narrar o acontecido. De fato, na maioria dos casos

é importante que a vítima reconte sua história várias vezes.

Há bons motivos terapêuticos para tanto. Parte do trauma

acarretado pelo crime advém da forma como ele perturba

nossa visão sobre nós mesmos e o mundo, nossa história

de vida. Transcender essa vivência implica em “recontar”

nossa vida, narrando a história em contextos significativos,

muitas vezes em situações onde receberá reconhecimento

público. Com frequência é importante para a vítima contar a

história àqueles que causaram o dano, fazendo-os entender

o impacto de suas ações.

Page 27: Justiça Restaurativa

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HOWARD ZEHR – JUSTIÇA RESTAURATIVA

3. Empoderamento. Em geral as vítimas sentem que a ofensa

sofrida privou-lhes do controle – controle sobre sua proprie-

dade, seu corpo, suas emoções, seus sonhos. Envolver-se

com o processo judicial e suas várias fases pode ser uma for-

ma significativa de devolver um senso de poder às vítimas.

4. Restituição patrimonial ou vindicação. A restituição patri-

monial por parte do ofensor geralmente constitui elemento

importante para as vítimas, por vezes, em virtude das perdas

reais sofridas mas, igualmente, devido ao reconhecimento

simbólico que a restituição dos bens representa. Quando

um ofensor faz um esforço para corrigir o dano cometido,

mesmo que parcialmente, isto é uma forma de dizer “estou

assumindo a responsabilidade, você não é culpado/a pelo

que eu fiz”. De fato, a restituição de bens é um sintoma ou

sinal que representa uma necessidade mais básica – a de

vindicação. Embora o conceito de vindicação esteja fora

do escopo deste livro, estou convencido de que se trata de

uma necessidade básica que todos temos ao sermos tratados

injustamente. A restituição de bens é uma dentre muitas

outras maneiras de atender a essa necessidade de igualar

o placar. Um pedido de desculpas também pode contribuir

para satisfazer essa necessidade de ter reconhecido o mal

que nos foi infligido.

A teoria e a prática da Justiça Restaurativa surgiram e foram

fortemente moldadas pelo esforço de levar a sério as necessi-dades das vítimas.

Ofensores

O segundo maior foco de preocupação que motiva a Justiça Restaurativa é a responsabilidade do ofensor.

Page 28: Justiça Restaurativa

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VISÃO GERAL

O sistema de justiça penal se preocupa com responsabilizar os ofensores, mas isto significa garantir que recebam a puni-ção que merecem. O processo dificilmente estimula o ofensor a compreender as consequências de seus atos ou desenvolver empatia em relação à vítima. Pelo contrário, o jogo adversarial exige que o ofensor defenda os próprios interesses. O ofensor é desestimulado a reconhecer sua responsabilidade e tem poucas oportunidades de agir de modo responsável concretamente.

As estratégias neutralizadoras – estereótipos e raciona-lizações que os ofensores adotam para se distanciarem das pessoas que agrediram – nunca são contestadas. Assim, infe-lizmente, o senso de alienação social do ofensor só aumenta ao passar pelo processo penal e pela experiência prisional. Por vários motivos esse processo tende a desestimular a res-ponsabilidade e a empatia por parte do ofensor.

A Justiça Restaurativa tem promovido a conscientização sobre os limites e subprodutos negativos da punição. Mais do que isto, vem sustentando que a punição não constitui real responsabilização. A verdadeira responsabilidade con-siste em olhar de frente para os atos que praticamos, significa estimular o ofensor a compreender o impacto de seu compor-tamento, os danos que causou – e instá-lo a adotar medidas para corrigir tudo o que for possível. Sustento que este tipo de responsabilidade é melhor para as vítimas, para a sociedade e para os ofensores.

Além da sua responsabilidade para com as vítimas e a comunidade, o ofensor tem outras necessidades. Dentro dos parâmetros da Justiça Restaurativa, se queremos que assuma suas responsabilidades, mude de comportamento, torne-se um membro que contribua para a comunidade, devemos também atender às suas necessidades. O assunto ultrapassa o escopo deste livro, mas as seguintes sugestões esboçam o necessário.

Page 29: Justiça Restaurativa

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HOWARD ZEHR – JUSTIÇA RESTAURATIVA

Os ofensores precisam que a justiça lhes ofereça:

1. Responsabilização que

a. Cuide dos danos resultantes,

b. Estimule a empatia e a responsabilidade e

c. Transforme a vergonha.2

2. Estímulo para a experiência de transformação pessoal,

inclusive:

a. Cura dos males que contribuíram para o comportamento

lesivo,

b. Oportunidades de tratamento para dependências quími-

cas e/ou outros problemas e

c. Aprimoramento de competências pessoais.

3. Estimulo e apoio para reintegração à comunidade.

4. Para alguns, detenção, ao menos temporária.

Comunidade

Os membros da comunidade têm necessidades advindas do crime, e também papéis a desempenhar. Defensores da Justiça Restaurativa como o juiz Barry Stuart e Kay Pranis argumentam que, quando o Estado assume o lugar do cidadão, isso termina por enfraquecer nosso sentido comunitário. 3 As comunidades sofrem o impacto do crime e, em muitos casos, deveriam ser consideradas partes interessadas pois são víti-mas secundárias. Os membros da comunidade também têm importantes papéis a desempenhar e talvez, ainda, responsa-bilidades em relação às vítimas, aos ofensores e a si mesmos.

Quando a comunidade se envolve com o processo, poderá iniciar um fórum para discutir essas questões, atividade que vai, ao mesmo tempo, fortalecer a própria comunidade. Este assunto é igualmente muito vasto. Os itens a seguir sugerem algumas áreas que merecem atenção.

Page 30: Justiça Restaurativa

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VISÃO GERAL

As comunidades precisam que a justiça ofereça:

1. Atenção às suas preocupações enquanto vítimas.

2. Oportunidades para construir um senso comunitário e de

responsabilidade mútua.

3. Estímulo para assumir suas obrigações em favor do bem-

-estar de seus membros, inclusive vítimas e ofensores, e

fomento das condições que promovam convívio saudável.

Muito mais poderia ser escrito – e de fato foi – sobre quem são as partes envolvidas em um crime e suas necessidades e papéis. Contudo, as questões básicas esboçadas acima – quanto às suas necessidades e aos papéis desempenhados por vítimas, ofensores e membros da comunidade – continuam a oferecer o foco central, tanto para a teoria quanto para a prática da Justiça Restaurativa.

Em resumo, os serviços do sistema de justiça criminal ou penal estão centrados nos ofensores e na aplicação do casti-go – e garantem que eles recebam o que merecem. A Justiça Restaurativa está mais centrada nas necessidades da vítima, das comunidades e dos ofensores.