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Artigo publicado no Arquivo Maaravi.
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Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG - Volume 1, n. 7 –
Outubro, 2010
Kafka e o rato*
Kafka and the rat
Jacó Guinsburg**
Resumo: A partir de uma pequena fábula sobre um rato e um gato, avalia-se o valor que
impregna as palavras no texto de Kafka. O vocábulo "rato" implica - quando aplicado para
simbolizar um ser consciente, dotado de inteligência, de essência de algum modo humana -
redução a algo mais baixo na escala ou pelo menos colocado em um contexto semelhante àquele
em que o homem vê situado o rato.
Palavras-chave: Kafka. Rato. Condição humana.
Abstract: Focusing on a Kafka fable about a cat and a mouse, the present paper assesses the
value that impregnates the words. The term "mouse" implies – when it is used to symbolize a
sentient being provided with intelligence and a human essence – the lessening to something
lower in the chain or at least placed in a context similar to that which man considers proper to a
mouse.
Keywords: Kafka. Rat. Human Condition.
Ai - dizia o rato - o mundo se torna cada dia mais pequeno. Primeiro era tão amplo que eu tinha
medo, seguia adiante e sentia-me feliz ao ver à distância, à direita e à esquerda, alguns muros,
mas esses longos muros se precipitam tão velozmente uns sobre os outros que já estou no
último quarto e, ali no canto, está a armadilha para a qual vou. - Apenas tens de mudar a
direção de tua marcha, disse o gato, e comeu-o.
Nessa fabulazinha, temos quase todos os elementos constitutivos do universo kafkiano.
Tentemos discerni-los:
A figura central é um rato, isto é, um ser que, por natureza, instinto, rói tudo o que encontra à
sua frente, mas, no caso, trata-se de um rato que tem mundo, campo de consciência, portanto,
só pode ser entendido como forma transmutada, metamorfoseada, do homem. Porém, dado o
valor que impregna a palavra "rato", o termo implica - quando aplicado para simbolizar um ser
consciente, dotado de inteligência, de essência de algum modo humana - redução a algo mais
baixo na escala ou pelo menos colocado em um contexto semelhante àquele em que o homem
vê situado o rato. Em suma, a figuração escolhida por si, de chofre, indica um sentido e suscita
uma sensação, no mínimo, estranhadores, distanciadores em relação ao modo de nos inserirmos
em nossa constelação habitual de vida.
Esse caráter, metamorfose negativa da figura que deve dizer eu, acentua-se, ou melhor,
intensifica-se como imagem alienatória em sua relação com o mundo. Com efeito, o seu quadro
de vida, o contexto em que se inscreve e se desenvolve a sua existência, se lhe apresenta como
algo crescentemente temível. Primeiro, psicologicamente, a amplitude, por sua própria
indefinição, por sua ligação com o que é inapreensível por grandeza do objeto ou falibilidade do
sujeito, infunde um sentimento de temor. Porém, a existência de alguns muros, à direita e à
esquerda, um ponto de apoio, de repouso, de constituição de espaço em um quadro dentro da
possibilidade roedora, dá-lhe momentos de felicidade.
Há limites, há regras, há valores, há crenças, há uma moldura social, etc., o homem não é um
náufrago a navegar sobre a frágil, senão oca ou mesmo ilusória, tábua de sua consciência no
oceano infinito, desesperador do nada ou da divindade inefável, inalcançável. Mas, à medida
que prossegue em sua roedora caminhada, vê as espaçosas delimitações consoladoras, onde
afinal se podia respirar, transformadas em longos muros. O rato sente-se, então, novamente não
só temeroso, mas agora já aprisionado, encerrado no seu espaço, no seu mundo. O que antes
apenas o inseria, passa agora a encerrá-lo. É um longo corredor de novo projetado, com o seu
ponto de fuga, sua perspectiva no infinito, nesse mau infinito de Hegel e dos gregos. A reação
do roedor é evidentemente (embora não registrada) a de pôr-se a correr, a querer escapar. Mas
justamente essa velocidade, que é a do sujeito, faz com que os muros se precipitem uns sobre os
outros. E, no caso, não apenas como ilusão óptica, mas no plano da realidade vivencial. O
mundo que devia servir-lhe de lugar precipita-se, desaba sobre ele, obrigando-o a acelerar a sua
fuga, a entrar prematura ou extemporaneamente no último quarto, a cumprir finitamente uma
trajetória infinita, a colocar-se na boca do poço, da armadilha do nada, do sem-fim, uma vez que
este não é um limite, como em uma série matemática, um dado ponderável do imponderável,
mas um absoluto em sua ilimitação, além do qual poderia existir algo. Assim, completa-se uma
divisão, uma cisão básica entre sujeito e mundo: o primeiro acossado pelo segundo, perdendo o
terreno sob os pés, e posto em solidão, em situação trágica. A movimentação psicológica inicial,
o conjunto daquilo que envolve mesmo as estruturas e convenções sociais (muros), vai
desembocar em um simbolismo de natureza metafísica ou no mínimo transcendental,
abrangendo toda a roedora condição.
Mas o processo alienatário, que começa por exilar o homem de sua forma natural e que
prossegue desterrando-o de seu mundo natural, criando entre ambos a incisão trágica, chega,
por um terceiro desdobramento, de corte entre a relação que ainda assim subsistia entre
significante e significado, de ironia trágica, que acrescenta o sinal menos aos dois sinais
negativos anteriores, à negação total, ao absurdo. É o que se verifica, na fabulazinha, quando o
gato, depois de sugerir ao rato o uso de seu livre arbítrio e a mudança de direção, engole-o. É o
momento da negação da consciência como possibilidade de superação da fissura trágica.
Constituída pelos outros ou pelo Outro, que seria Deus, ela já é, por si, na medida em que objeto
de outrem, em que exilada da pura subjetividade, uma forma degradada, que subsiste à custa
desse outro e que ele espreita, a cada passo, para abocanhá-la. A consciência tampouco é uma
garantia de realidade, ela tampouco pode "realizar". Vive a sua ilusão de certeza numa via
crucis entre o Ser e o Nada.
É claro que esta redução ao absurdo, que fizemos mais por razões ilustrativas, não pode ser
aplicada de maneira tão estrita, indiscriminadamente, à obra de Kafka. Ela é tão tomada pelos
paradoxos, pelos dilemas da condição e da existência humana, que ela própria oscila
contraditoriamente, pelo menos quando vista a luz da biografia de seu autor, ora num ora
noutro sentido. Nem por isso seria inadequado se a denominássemos o mito do absurdo. Ela o
realiza em todos os níveis de interpretação. Essa mesma fabulazinha que apresentamos e
procuramos analisar em termos fenomenológicos é passível de ser compreendida de outras
maneiras. Tomemos as duas figuras metamórficas polares: o rato, o indivíduo angustiado,
perseguido, alienado, o filho rejeitado, oprimido, o homem às voltas com os seus fantasmas; e o
gato, Deus, a autoridade, o poder, os valores, as camadas dominantes, as forças recalcadoras, os
fantasmas da mente. Dessa simples indicação, sem entrar no exame formal e estilístico de O
Processo, de O Castelo e de outras criações kafkianas, nem na natureza dos recursos de
construção e linguagem que tornam tão singular esse universo ficcional, escritura do labirinto
atectônico da solidão humana, resulta um jogo trágico e tanto maior quanto de caráter
monológico e não dialógico.
* Este artigo foi publicado, anteriormente, em O Estado de São Paulo, 4/5/91, p.5.
**Jacó Guinsburg é Professor Emérito da USP, tradutor e autor de, entre outros
títulos: Stanislávski e o teatro de arte de Moscou; Leoni de'Sommi: um judeu no teatro da renascença
italiana; Diálogos sobre teatro; Aventuras de uma língua errante: ensaios de literatura e teatro ídiche,
de 1996.