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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA UFPB UFPE - UFRN
OS ARGUMENTOS TRANSCENDENTAIS: KANT E O PROBLEMA DE HUME
TULIO SALES SOUZA LIMA
NATAL 2010
TULIO SALES SOUZA LIMA
OS ARGUMENTOS TRANSCENDENTAIS: KANT E O PROBLEMA DE HUME
Tese apresentada ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia UFPB UFPE UFRN como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Juan Adolfo Bonaccini.
NATAL 2010
Catalogao da Publicao na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Lima, Tlio Sales Souza. Os argumentos transcendentais : Kant e o problema de Hume / Tlio
Sales Souza Lima. 2010. 366 f. Tese (Doutorado em Filosofia) Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes. Programa Integrado de Doutorado em Filosofia UFPB UFPE - UFRN, 2010.
Orientador: Prof. Dr. Juan Adolfo Bonaccini. . 1. Causalidade (Filosofia). 2. Kant, Immanuel, 1724-1804. 3.
Legalidade. 4. Hume, David, 1711-1776. 5. Finalidade. 6. Metafsica. I. Bonaccini, Juan Adolfo. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Ttulo.
RN/BSE-CCHLA CDU 11
TULIO SALES SOUZA LIMA
OS ARGUMENTOS TRANSCENDENTAIS: KANT E O PROBLEMA DE HUME
Tese apresentada e aprovada em 11 de maio de 2010
BANCA EXAMINADORA
................................................................................................................... ORIENTADOR: Prof. Dr. Juan Adolfo Bonaccini (UFRN)
....................................................................................................................... MEMBRO: Profa. Dra. Andra Luisa Bucchile Faggion (UEM)
......................................................................................................................... MEMBRO: Prof. Dr. Fernando Raul de Assis (UFPE)
........................................................................................................................... MEMBRO: Prof. Dr. Daniel Durante Pereira Alves (UFRN)
................................................................................................................................. MEMBRO: Prof. Dr. Daniel Omar Perez (PUC-PR)
............................................................................................................................ SUPLENTE: Prof. Dr. Jaimir Conte (UFRN)
NATAL 2010
AGRADECIMENTOS
So incontveis as pessoas de minha convivncia com as quais sou imensamente
grato e desejaria agradecer pela contribuio, ou mesmo pela acessibilidade
demonstrada ao longo dos quatro anos em que me envolvi nesta importante tarefa que
foi a elaborao da presente tese. O mesmo se deu com as instituies envolvidas.
Como nem sempre possvel abraar a todas essas pessoas e instituies, me limito a
registrar meus agradecimentos a todos os colegas estudantes que comigo partilharam a
honra de freqentar a primeira turma de doutorado em filosofia do Norte e Nordeste do
Brasil, atravs de uma realizao conjunta que integrou as Universidades Federais da
Paraba, Pernambuco e Rio Grande do Norte.
com imensa satisfao que tambm registro a alegria e a honra de conviver
com os professores que fazem parte desse programa integrado de doutorado em filosofia
atravs dessas trs Universidades. Cumpre externar o imenso carinho e apreo que eles
se ocupam quando do exerccio de suas funes, e sempre o fazem com o devido
desprendimento, o que certamente s tem a dignificar a prtica do magistrio filosfico.
Como aluno, resolvi participar ativamente desse intercmbio, e posso garantir que vivi
essa integrao. De fato, como aluno regular fiz questo de cumprir algumas disciplinas
ministradas na UFPB, convivi com os deslocamentos envolvidos nesta iniciativa e
participei da representao dos alunos e de muitos eventos conduzidos pelo programa.
No cmputo geral, s tenho a afirmar que tudo isso foi extremamente gratificante para o
meu aproveitamento em todos os sentidos.
Apesar de tudo, agora chegou o momento de citar pessoas que foram especiais
na consecuo de nosso objetivo, ou seja, aquelas que de uma forma ou de outra,
contriburam decisivamente para o presente trabalho que, reputamos, foi um exerccio
de longa, mas instigante pesquisa que exige de qualquer pessoa que encare desafio
similar, no mnimo, um compromisso de recluso que fortalea atitudes como a da
reflexo desinteressada, como de slito no campo da pesquisa em filosofia. Agradeo
inicialmente ao meu orientador no doutorado, professor Dr. Juan Adolfo Bonaccini.
Seus comentrios, crticas, e correo rigorosa ajudaram a determinar os principais
contornos desta tese de um modo que mal posso avaliar. Ademais, suas sugestes
bibliogrficas foram de extrema valia para melhorar a minha reflexo sobre os vrios
temas envolvidos. De resto, sua obstinada opo por encarar a filosofia como um
empreendimento que deve trilhar os caminhos do rigor e da sistematicidade, constituiu-
se num fator de grande relevncia que me motivou a perseguir, sempre com tenacidade,
todas as fases desta tese.
Por fim, com grande emoo que enalteo a participao dos meus familiares
mais diretos. A eles, s posso agradecer, pelo simples fato de me deixarem vontade
para enfrentar quase que diariamente todo o encargo que envolve uma pesquisa de
tamanha envergadura. A minha esposa, Maria de Ftima, que sbia, o apoio foi
decisivo e inestimvel, e ficar sempre guardado no meu corao. A meus filhos -
Daniel, Rafael e Luciana -, dedico este trabalho na esperana de que eles internalizem
que empreendimentos como este dignificam a pessoa humana, seja qual for a idade. E
que entendam, adicionalmente, que a educao, certamente, um dos caminhos mais
curtos para o nosso sucesso. Por ltimo, no poderia esquecer as inestimveis e
inesquecveis figuras de Dona Alade, minha me, e de Seu Cirnio, meu sogro, que nos
deixaram no tempo em que eu trabalhava na produo desta tese. Os dois so exemplos
de vida que ficaro guardados para sempre na minha memria!
Se tomarmos em nossas mos um volume qualquer, de teologia ou metafsica escolstica, por exemplo, faamos a pergunta: Contm ele qualquer raciocnio abstrato referente a nmeros e quantidades? No. Contm qualquer raciocnio experimental referente a questes de fato e de existncia? No. s chamas com ele, ento, pois no pode conter seno sofismas e iluso. (E., XII, XXXIV: 222) A crtica no se ope ao procedimento dogmtico da razo no seu conhecimento puro, enquanto cincia (pois esta sempre dogmtica, isto , estritamente demonstrativa, baseada em princpios a priori seguros), mas sim ao dogmatismo, quer dizer, presuno de seguir por diante apenas com um conhecimento puro por conceitos (conhecimento filosfico), apoiado em princpios, como os que a razo desde h muito aplica, sem se informar como e com que direitos os alcanou. O dogmatismo , pois, o procedimento dogmtico da razo sem uma crtica prvia da sua prpria capacidade. (...) A crtica antes a necessria preparao para o estabelecimento de uma metafsica slida fundada rigorosamente como cincia, que h-de desenvolver-se de maneira necessariamente dogmtica e estritamente sistemtica (...) (C.R.P., BXXXV- XXXVI, p.30-31)
RESUMO O presente trabalho - Os argumentos transcendentais: Kant e o problema de Hume -, tem como seu objetivo geral interpretar a resposta de Kant ao problema de Hume luz da conjuno das temticas de causalidade e induo o que equivale a uma leitura ctico-naturalista deste. Neste sentido, tal iniciativa complementa o tratamento anterior visto em nossa dissertao de mestrado, onde a mesma temtica fora examinada a partir de uma leitura meramente ctica que Kant fez do pensamento humeano e onde foi analisada apenas a causalidade. Dentre os objetivos especficos, listamos os seguintes: a) a filosofia crtica cumpre trs funes bsicas, uma fundante, uma negativa e uma que defenderia o uso prtico da razo, aqui nomeada de defensiva; b) a soluo kantiana do problema de Hume na primeira crtica cumpriria as funes fundante e negativa da crtica da razo; c) o tratamento kantiano da temtica da induo nas demais crticas cumpriria a funo defensiva da crtica da razo; d) que as provas da resposta de Kant ao problema de Hume so mais consistentes quando se consideram cumpridas estas trs funes ou momentos da crtica. A estrutura bsica do trabalho comporta trs partes: na primeira - A gnese do problema de Hume -, nossa pretenso reconstituir o problema de Hume, analisando-o sob a tica das duas definies de causa, onde a diluio da primeira definio na segunda corresponde reduo psicolgica do conhecimento probabilidade, do que se segue a chamada naturalizao das relaes causais; na segunda - Legalidade e Causalidade -, menciona-se que quando se considera Hume na opo ctico-naturalista, Kant no est habilitado a lhe responder atravs do argumento transcendental AtB; AB da segunda Analogia, prova que est embasada na posio de pensadores contemporneos como Strawson e Allison; na terceira parte - Finalidade e Induo -, admite-se que Kant responde a Hume no nvel do uso regulativo da razo, embora o desenvolvimento dessa prova exceda os limites da funo fundante da crtica. E isto fica articulado tanto na Introduo quanto nas Consideraes Finais, atravs do cumprimento da funo defensiva [e negativa] da crtica. Neste contexto, com base no recurso aos ditos argumentos transcendentais que se projetam por toda a trilogia crtica, procuramos estabelecer soluo para uma questo recorrente que reaparece em vrias passagens de nossa apresentao e que diz respeito a existncia e/ou a necessidade das leis causais empricas. Diante disso, nossa tese que os argumentos transcendentais somente constituem uma soluo apodtica para o problema ctico-naturalista de Hume quando est em pauta um projeto prtico em que o interesse da razo esteja assegurado, conforme ser, enfim, provado em nossas Consideraes Finais. Palavras-chave: analogia, argumentos transcendentais, causalidade, deduo, finalidade, induo, legalidade, Urteilskraft, vida comum.
ABSTRACT This work whose title is "The transcendental arguments: Kant Andy Hume's problem" has as its main objective to interpret Kant's answer to Hume's problem in the light of the conjunction of the causality and induction themes which is equivalent to skeptical- naturalist reading of the latter. In this sense, this initiative complements the previous treatment seen in our dissertation, where the same issue had been discussed from a merely skeptical reading that Kant got from Hume thought and was only examined causality. Among the specific objectives, we list the following: a) critical philosophy fulfills three basic functions, a founding, one negative and one would argue that the practical use of reason, here named as defensive b) the Kantian solution of Hume's problem in the first critisism would fulfill its founding and negative functions of critique of reason; c) the Kantian treatment of the theme of induction in other criticisms would will fulfill the defense function of critique of reason; d) that the evidence of Kant's answer to Hume's problem are more consistent when will be satisfied these three functions or moments of criticism. The basic structure of the work consists of three parts: the first the genesis of Hume's problem - our intention is to reconstruct Hume's problem, analyzing it from the perspective of two definitions of cause, where the dilution of the first definition in the second match the reduction of psychological knowledge to the probability of following the called naturalization of causal relations; whereas in the second - Legality and Causality - it is stated that when considering Hume in the skeptic-naturalist option, Kant is not entitled to respond by transcendental argument AtB; AB from the second Analogy, evidence that is rooted in the position of contemporary thinkers, such as Strawson and Allison; in third part - Purpose and Induction - admits that Kant responds to Hume on the level of regulative reason use, although the development of this test exceeds the limits of the founding function of criticism. And this is articulated in both the Introduction and Concluding Remarks by meeting the defensive [and negative] function of criticism. In this context, based on the use of so-called transcendental arguments that project throughout the critical trilogy, we provide solution to a recurring issue that recurs at several points in our submission and concerning to the "existence and / or the necessity of empirical causal laws. In this light, our thesis is that transcendental arguments are only an apodictic solution to the Humes skeptical-naturalist problem when is at stake a practical project in which the interest of reason is ensured, as will, in short, proved in our final considerations. Key-words: analogy, transcendental arguments, causation, deduction, purpose, induction, legality, Urteilskraft, common life.
ZUSAMMENFASSUNG Diese Arbeit "Die transzendentalen Argumente: Kant und Humes Problem" hat als Allgemeinziel Kants Antwort auf Humes Problem zu interpretieren im Hinblick auf die Verbindung der Themen der Kausalitt und Induktion, was einer skeptisch-naturalistischen Lesung von ihm entspricht. In diesem Sinne ist es eine behandlungsergnzende Initiative unserer vorherigen Abhandlung, in der das gleiche Problem von einer lediglich skeptischen Lesung abgesehen behandelt wurde, die Kant vom Denken Humes machte und in welcher man nur die Kausalitt analysiert hat. Zu den spezifischen Zielen zhlen: a) die kritische Philosophie erfllt drei Grundfunktionen und nmlich eine Grndende, eine Negative und eine die die praktische Anwendung der Vernunft behauptet, hier Defensive genannt; b) die Kantische Lsung des Humenischen Problems in der ersten Kritik wrde die Grndungs- und Negativfunktion der Kritik der Vernunft erfllen; c) die Kantische Behandlung des Induktionsthemas in den weiteren Kritiken wrde die Verteidigungsfunktion erfllen; d) dass die Kantischen Antwortbeweise auf Humes Problem bestndiger sind, wenn diese drei Funktionen oder Momente der Kritik zufrieden gestellt werden. Die grundlegende Gliederung der Arbeit besteht aus drei Teilen: im Ersten - Humes Problementstehung ist unser Ziel, Humes Problem zu rekonstruieren, eine Analyse aus der Sicht der beiden Kausaldefinitionen, in der die Auflsung der ersten Definition in der Zweite entspricht der psychologischen Herabsetzung der Kenntnis zur Wahrscheinlichkeit, und daraus folgt die so genannte Naturalisierung der kausalen Beziehungen; im Zweiten Rechtmigkeit und Kausalitt wird erwhnt, dass das Erwgen einer skeptisch-naturalistischen Option von Hume Kant nicht berechtigt auf ihn in transzendentaler Argumente "AB, AB" der zweiten Analogie zu reagieren. Dieser Beweis ist auf die Position zeitgenssischer Denker wie Strawson und Allison basiert; im dritten Teil Zweck und Induktion wird zugegeben, dass Kant auf die regulative Nutzung der Vernunft reagiert, obwohl die Entwicklung dieses Beweises ber die Grenzen der Grndungsfunktion der Kritik hinausgeht. Und das wird sowohl in der Einleitung als auch in den Schlussbemerkungen durch die defensive [und negative] Erfllungsfunktion der Kritik formuliert. In diesem Zusammenhang und basiert auf den Einsatz der sog. transzendentalen Argumente, die sich durch die ganze kritische Trilogie erstrecken, bieten wir eine Lsung fr ein immer wiederkehrendes Thema, das an mehreren Stellen unserer Darstellung vorkommt und zwar was die "Existenz bzw. die Notwendigkeit von empirischen Kausalittsgesetzen betrifft. Vor diesem Hintergrund ist unsere These, dass die transzendentalen Argumente nur eine apodiktischen Lsung fr das skeptisch-naturalistische Problem von Hume sind, wenn ein konkretes Projekt im Interesse der Vernunft versichert ist, wie in unseren abschlieenden berlegungen am Ende erwiesen wird. Stichwrter: Analogie, transzendentale Argumente, Kausalitt, Deduktion, Zweck, Induktion, Rechtmigkeit, Urteilskraft, gewhnliches Leben.
SUMRIO INTRODUO 11 Das funes [ou momentos] da crtica: o fundante, o negativo e o defensivo 13Dos argumentos transcendentais e do tom ausente de azul 21Da estrutura e do contedo 28 PRIMEIRA PARTE 38 1 A GNESE DO PROBLEMA DE HUME 381.1 Das definies e dos princpios 441.2 Da formao do princpio da cpia 471.3 Da formao do princpio associacionista da imaginao 531.4 Das relaes 591.5 Do contraponto entre conhecimento e probabilidade 641.6 Da crena 761.7 Do hbito 811.8 Da probabilidade 841.9 Da necessidade 971.10 Da naturalizao das relaes causais 114 SEGUNDA PARTE 122 2 LEGALIDADE E CAUSALIDADE 1222.1 Da colocao do problema: os argumentos transcendentais 1232.2 Do objeto e da referncia 1282.2.1 Da teoria humeana do feixe 1332.2.2 Da rplica kantiana teoria humeana do feixe 1402.2.3 Do esquematismo e da capacidade de julgar em geral 1512.3 Da interpretao de Strawson - Gegenstand 1662.3.1 Das relaes de tempo objetivas e subjetivas 1662.3.2 Da primeira analogia e da refutao do idealismo 1732.3.3 Da causalidade 1782.3.4 Da contribuio de Strawson 2052.4 Da interpretao de Allison - Objekt 2162.4.1 Do marco transcendental (Objekt) e da segunda analogia 2192.4.2 Do exame do argumento essencial 2242.4.3 Da objeo a Strawson 239
TERCEIRA PARTE 251 3 FINALIDADE E INDUO 2513.1 Dos argumentos transcendentais teleolgicos 2653.2 Do uso hipottico da razo 2763.2.1 Da formao da unidade sistemtica da natureza 2793.2.2 Da necessidade do raciocnio analgico 2933.3 Da resposta de Kant ao problema de Hume 308 CONSIDERAES FINAIS 333 BIBLIOGRAFIA 355
11
INTRODUO
O problema da necessidade da determinao causal dos acontecimentos no mundo e na
vida dos homens foi uma das principais preocupaes nos primrdios do pensamento
filosfico, permanecendo desde ento um dos tpicos mais importantes da reflexo humana
como princpio unitrio que rege o universo e que veio a substituir paulatinamente os termos
antropomrficos prprios da teologia natural antiga. Nessa perspectiva, os manuais de histria
da filosofia registram que o pensador pr-socrtico Anaximandro empregou pela primeira vez
o conceito de princpio, algo como uma razo suficiente com uma significao causal, mas
ainda unido sincreticamente com uma significao jurdica derivada de uma legislao divina,
como se pode depreender com base nos fragmentos de sua clebre sentena, bem como
atravs de relatos doxogrficos posteriores de Simplcio constantes de sua recenso Fsica
de Aristteles. Mas, foi somente poca de Galileu e Newton com a vigncia da revoluo
cientfica, qual subjaz a revoluo [conceitual] copernicana, que se presenciou a ocorrncia
de uma transformao mais radical no conceito de causalidade que se viu reduzido de uma
caracterizao marcadamente teleolgica de explicao dos fenmenos a partir de sua causa
final, presente em larga medida no aristotelismo, para o de validade judicativa de certas
frmulas esquemticas exprimindo relaes entre fatos observveis. Na considerao de
Hume, podemos adiantar, prima facie, que a teleologia virou induo.
Com efeito, a reflexo filosfica dos trs ltimos sculos acerca do problema da
causalidade tem sido, em grande escala, centrada na anlise da chamada causa eficiente e,
nesse desiderato, guiada pelo relato de Hume tanto no Tratado da Natureza Humana1quanto
na Investigao sobre o entendimento humano2. Por um lado, ao criticar nossa idia de
conexo necessria entre causa e efeito como uma projeo ilcita da realidade a partir de
nossas prprias expectativas geradas de maneira associativa, Hume tomado como tendo
recusado a concepo racionalista de causalidade enquanto expressa nos termos filosficos da
metafsica da tradio - as chamadas essncias de re. Por outro lado, ele props uma anlise
da conexo causal singular em termos de instanciao de uma regularidade na sucesso de
1 Hume. Tratado da Natureza Humana, doravante Tratado. As citaes retiradas desta obra tiveram por referncia a edio brasileira da UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001, traduzida por Dborah Danowski. Para efeito de abreviatura, toda vez que se utilizar essa obra usamos a letra T seguida de nmeros romanos, primeiro o livro, depois a parte, e de nmero arbico pela seo, e aps dois pontos, a pgina e o pargrafo. 2 Hume. Investigaes sobre o entendimento humano e sobre os princpios da moral, doravante [primeira ou segunda] Investigao. As citaes retiradas dessa obra foram feitas por referncia a edio brasileira da UNESP, 2004, traduzida por Jos Oscar de Almeida Marques. Para efeito de abreviatura, toda vez que dela nos utilizamos, usaremos a letra E seguida de nmero romano da seo e do pargrafo e aps dois pontos da pgina em arbico.
12
eventos semelhantes, ao tomar a causa como uma condio necessria e suficiente para a
ocorrncia de um evento. Alguns sucessores de Hume, entre os quais Kant o grande
destaque, sustentaram que a idia de que causa e efeito so necessariamente conectados. O
conceito de causa, emenda Kant na Crtica da Razo Pura3, implica o carter de
necessidade, que nenhuma experincia pode dar (C.R.P., A112, p.153) e, contra o relato
humeano da regularidade, ele era inflexvel afirmando que o prprio conceito de uma causa
contm (...) o conceito de uma ligao necessria com um efeito (C.R.P., B5, p.38-39).
De fato, trata-se de um ponto de vista pacfico tanto nos escritos de Hume como nos
de Kant que o conceito de causalidade tema superveniente e, ao que parece, momento
essencial do modo filosfico de reflexo, a ponto de se constituir em problema proeminente
de suas filosofias, ocupando, conseqentemente, contedos expressivos em suas obras. Com
efeito, se pretendemos fazer algum julgamento sobre o pensamento filosfico de Hume e de
Kant, nos parece fundamental que apreendamos suas respectivas especulaes acerca do
problema da causalidade e, mais ainda, como cada um, a seu modo, respondeu as exigncias
temticas colocadas por essa questo, vendo como ela se insere no mbito da metafsica.
Talvez possamos mesmo generalizar tal estratgia e, neste sentido, compreender determinado
pensador parece que , antes de tudo, fazer uma leitura de sua exposio filosfica como a
construo de uma resposta ao problema que ele prprio se colocou. De fato, talvez esta
espcie de mxima constitua uma firme suposio de que quando no h problema tampouco
existe resposta, e nem sequer filosofia. Numa palavra, admitindo este raciocnio, o primeiro
passo para entender a filosofia de determinado autor sempre tentar estabelecer o problema
que ele se determinou a tematizar, j que a tarefa da tematizao , de alguma forma, a
problematizao da prpria resposta. Dentro dessas premissas, Kant fundamentou sua
resposta ao problema de Hume, constituindo concomitantemente seu prprio problema,
matria que foi longamente discutida ao longo de nossa dissertao de mestrado4.
Entretanto, o problema de Kant , certamente, bem mais complexo do que aquele que
nos ocupamos naquela ocasio5. Kant pretende em aporte sua resposta fundante a Hume
3 Kant. Crtica da Razo Pura. Utilizamos para as citaes retiradas dessa obra a que tm por referncia a traduo portuguesa da Fundao Calouste Gulbenkian, 3 edio de 1994, feita por Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujo. As notas referentes a ela passaro a ser definidas pela abreviao C.R.P. com os respectivos pargrafos, diferenciando se edio A ou B, e, pgina. 4 Sales Lima, T. A resposta de Kant ao problema de Hume. Dissertao de Mestrado em Filosofia apresentada e defendida no PPGFIL/UFRN. Natal, 2003. 5 Transcrevemos a seguir passagens introdutrias (pginas 22 e 23) da aludida dissertao: (...) em se tratando de uma interpretao textual da resposta de Kant ao problema de Hume, tendo como fio condutor o conceito de causalidade decidimos, em primeiro lugar, nos manter nos limites da filosofia terica de Kant e a dando boa preferncia matria contida na Crtica da Razo Pura. De fato, isto, de incio, j exclui de nossa considerao todos os aspectos concernentes ao conceito de causalidade que foram tematizados por Kant na Crtica da Razo
13
tambm defender a metafsica do desgaste experimentado poca: de um lado, alguns
afirmam que Hume destruiu os fundamentos da metafsica da tradio; se isto for correto,
ento, tambm ser lcito afirmar que a tarefa que coube a Kant foi reconstru-la diante de
novos horizontes, ou de novos paradigmas. Nesse contexto, o resultado do envolvimento no
clebre contencioso entre Kant e Hume, adicionalmente nos permite extrair um equipamento
conceitual de enorme riqueza e variedade para o pensamento filosfico que se seguiu,
inclusive relaes metafricas sumamente oportunas como a seguinte: bem conhecida uma
premissa constante da introduo aos Prolegmenos6 onde Kant afirma que as advertncias
cticas de Hume interromperam seu sono dogmtico. Isto nos faculta de chofre a estabelecer a
seguinte conjectura: se Kant no tivesse feito essa leitura de Hume, o legado terico deste
teria ido longe demais, induzindo a morte prematura da metafsica, ou, pelo menos, levando
ao impasse a ento conhecida e aquecida polmica entre as opinies emitidas pelas escolas
dogmticas e cticas no que toca ao estado da arte da metafsica. Em certos manuais de
histria da filosofia no escassa a presena desse tipo de conjectura7 dando conta que o
modo positivo de filosofar humeano teria se imposto de tal forma aos destinos da filosofia que
esta correria o risco de se transformar numa mera legitimadora das cincias (atitude conhecida
mais recentemente por cientificismo), decretando, por conseguinte, o fim da metafsica.
Das funes [ou momentos] da crtica: o fundante, o negativo e o defensivo
Feita essa breve apresentao, de bom alvitre buscar relacion-la aos pressupostos
metodolgicos do problema e, para tanto, deveremos verificar como Kant se posiciona diante
de algumas questes filosficas candentes em sua poca e, principalmente, daquelas que em
sua considerao se tornaram emergentes aps sua leitura de Hume. Como ponto de partida,
Prtica e na Crtica da Faculdade do Juzo, mas no aqueles contidos nos Prolegmenos e nos Princpios Metafsicos da Cincia da Natureza (...) Em quarto lugar, porque esta nunca deve ser nossa palavra fechada sobre o assunto, mas, somente o delineamento de um projeto futuro e, portanto, passvel de aprofundamento. Vide Sales Lima, T. A resposta de Kant ao problema de Hume. (Dissertao de Mestrado em Filosofia apresentada e defendida no PPGFIL/UFRN. Natal, 2003). V-se que o presente empreendimento terico procura delinear uma tese de maior envergadura estendendo-se para alm da primeira crtica kantiana, demandando, assim, uma complementao e tambm um desejvel exame de fundo do tema da dissertao. 6 Kant. Prolegmenos a Toda Metafsica Futura. As citaes retiradas desta obra foram feitas tendo por referncia a edio portuguesa das Edies 70, 1987, traduzida por Artur Mouro. Para efeito de abreviatura, toda vez que se utilizar essa obra, usaremos Prolegmenos, seguido de vrgulas, respectivamente do pargrafo (exceto na Introduo que no contm pargrafos numerados) e da pgina. 7 Na Seo I (E., I) da primeira Investigao (Das diferentes espcies da filosofia) Hume nos oferece um amplo suporte terico para trabalhar essa questo, a qual fazemos algumas referncias dispersas ao longo de nossa primeira parte. Com efeito, no stimo artigo de uma de suas obras (ver Ceticismo Filosfico. So Paulo/Curitiba, EPU/EDUFPR, 2000), Plnio Junqueira Smith problematiza as chamadas concepes metafsicas do empirismo britnico enfatizando o papel de Hume no contexto de tais conjecturas.
14
nos servimos dos prefcios (A e B) e correspondente introduo Crtica da Razo Pura que,
a nosso ver, parecem instaurar uma nova agenda sistematizada por Kant para de um lado
defender a metafsica; de outro responder a Hume, ainda que esta iniciativa no seja
unanimemente reconhecida como prioritria para alcanar o fim ltimo da razo exposto em
C.R.P., B833, p.639. Tais textos so referenciais e se revestem de grande interesse, sobretudo
metodolgico, para o programa da crtica transcendental da razo: o primeiro destaca como
assunto de interesse o campo de batalha da metafsica (o sentido da crtica, como veremos,
est presente explicitamente no prefcio primeira edio); o segundo a revoluo
copernicana (a nfase claramente metodolgica ou, mais exatamente, a consumao da
inverso do mtodo de tratamento das questes metafsicas preconizada pela metfora do giro
copernicano, presente no prefcio segunda edio); o terceiro a defesa da metafsica (o
Problema Geral da Razo Humana que localizamos em C.R.P., B21-22, p.50-51, onde se
aborda a disposio natural dos seres humanos para a metafsica em conformidade idia que
possumos dos fins essenciais ou do interesse da razo a partir do primado da razo prtica em
geral, e que culmina em C.R.P., B868, p.662), diante da paulatina cientificizao das prticas
scio-culturais que se verificava poca.
Depreende-se da leitura desses textos iniciais da primeira crtica que Kant elabora uma
soluo inovadora para o tratamento das questes metafsicas postas em litgio ante a disputa
entre dogmticos e cticos. Este tratamento unitrio8 e, segundo a lgica dos a priori, pode
ser realizado pelo cumprimento de trs funes9 (ou momentos) da crtica, nem sempre bem
explcitas ou desenvolvidas sem sinuosidades ao longo da Doutrina Transcendental dos 8 A raiz do processo utilizado est no sentido do giro copernicano e na lgica do a priori que unificou o tratamento dado tanto aos princpios imanentes experincia, quanto aos transcendentes. Segundo o parecer de Kant, dever-se-ia considerar, necessariamente, os princpios dos dois domnios como de mesma espcie, a saber, segundo sua origem so homogneos na medida em que ambos so fundados a priori em nosso aparelho cognoscente, no provm da experincia e parecem, portanto, autorizar validade metodolgica tanto no campo do domnio da experincia, quanto na usurpao desta. Esta soluo inovadora corresponde, se nossa avaliao estiver correta, no s ao contedo da Crtica da Razo Pura, em seu inteiro teor, mas se projeta por toda a chamada trilogia crtica sob a denominao geral de argumentos transcendentais que, de resto, buscam emprestar conciso e coerncia ao ttulo da presente tese: Os argumentos transcendentais: Kant e o problema de Hume, o qual procuraremos justificar concomitantemente ao seu desenvolvimento. 9 No prefcio B encontram-se esboos dessas funes que sero desenvolvidas ao longo da filosofia crtica. A funo fundante (e Kant fala desta deduo da nossa capacidade de conhecimento a priori, na primeira parte da Metafsica...) pode ser localizada em C.R.P., BXVIII-XIX, p.20-21; a funo negativa pode ser localizada logo a seguir: C.R.P., BXIX-XX, p.21; a funo defensiva em C.R.P., BXXI, p.22. Embora no tenha problematizado o conjunto das trs funes, devemos a Heidegger a proposta desta interpretao e a sugesto aproximada dos termos (principalmente do primeiro aqui tomado por fundante), que so abordadas ao longo da introduo de sua Phenomenological Interpretation of Kants Critique of Pure Reason (ver Bibliografia). Note que no estamos falando de utilidade (negativa e positiva) da crtica (o que pode ser visto no mesmo prefcio em C.R.P., BXXIV-XXV, p.24-25), mas da funo ou funes que a crtica se prope a cumprir, como prova a argumentao kantiana a partir de seus prefcios e correspondente introduo e, de resto, o que nos parece evidente nessa passagem que a funo defensiva da crtica apresenta de fato uma utilidade positiva e altamente importante no uso moral. Os grifos na citao so nossos.
15
Elementos, a saber, as funes fundante, negativa e defensiva10: a funo fundante11 foi
desenvolvida exausto em nossa dissertao e tem a ver basicamente com a instituio de
uma nova ontologia ou teoria dos objetos, parecendo ter sua maior expresso na Analtica dos
Princpios; a funo negativa12 restringe o possvel conhecimento a priori a partir da razo
pura, tendo sua maior expresso ao longo da Dialtica Transcendental; a funo defensiva13
se compraz em mostrar a utilidade positiva adjudicada s idias da razo quando convocadas
a defender a metafsica no campo das aes humanas. A fim de tornar mais claro nossos
objetivos de pesquisa, cremos ser de bom alvitre tecer alguns comentrios adicionais sobre as
trs funes retromencionadas.
Na que toca a primeira funo [,a fundante], a estratgia adotada por Kant consistira
em estabelecer ao longo da Analtica Transcendental as provas de que as categorias e os
princpios do entendimento puro se constituem em condies de possibilidade da prpria
experincia numa seqncia lgica que comea na Deduo Metafsica, passa pela Deduo
Transcendental, Esquematismo e, finalmente, Princpios. Esta longa deduo tem seu pice no
princpio supremo de todos os juzos sintticos [a priori] numa conhecida passagem em
C.R.P., B197, p.195 em que as condies da possibilidade da experincia em geral so, ao
mesmo tempo, condies da possibilidade dos objetos da experincia. Quem compreende
esta proposio compreende com clareza a Crtica da Razo Pura e, com maior distino
ainda, como se constitui o cumprimento criterioso de seu momento fundante. Isto parece ficar
definitivamente caracterizado quando associamos a ela duas outras passagens da aludida obra,
uma anterior e outra posterior: no primeiro caso (i) com C.R.P., B73, p.87 no final da Esttica
Transcendental; no segundo (ii) com C.R.P., B303, p.263-264. De fato, da primeira
10 Esta ltima funo, como factum (termo introduzido somente na segunda crtica) da razo, se expressa basicamente nos escritos kantianos dedicados parte prtica de sua filosofia, incluindo a alguns tpicos que podem ser localizados na ltima crtica. Nosso interesse trabalhar conceitos puros da razo, como o de liberdade e outros derivados como o de personalidade, dentro de uma tica inicialmente especulativa cujo excurso preliminar pode ser localizado na primeira crtica, ainda que quanto a seu exame de fundo no haja alternativa a no ser a devida interpretao dessas idias da razo dentro do contexto prtico, na Fundamentao da Metafsica dos Costumes e na Crtica da Razo Prtica, por exemplo. 11 Transcrevemos sua exata passagem no prefcio B (C.R.P., BXVIII-XIX, p.21): Este ensaio d resultado e promete o caminho seguro da cincia para a metafsica, na sua primeira parte, que se ocupa de conceitos a priori, cujos objetos correspondentes podem ser dados na experincia conforme a esses conceitos. O grifo nosso. 12 Transcrevemos sua exata passagem no prefcio B (C.R.P., BXIX-XX, p.21): Porm, desta deduo da nossa capacidade de conhecimento a priori, na primeira parte da Metafsica, extrai-se um resultado inslito e aparentemente muito desfavorvel sua finalidade, da qual trata a segunda parte; ou seja, que deste modo no podemos nunca ultrapassar os limites da experincia possvel, o que precisamente a questo mais essencial desta cincia. O grifo nosso. 13 Transcrevemos sua exata passagem no prefcio B (C.R.P., BXXI, p.22): Resta-nos ainda investigar, depois de negado razo especulativa qualquer processo neste campo do supra-sensvel, se no domnio do seu conhecimento prtico no haver dados para determinar esse conceito racional transcendente do incondicionado e, assim, de acordo com o desgnio da metafsica, ultrapassar os limites de qualquer experincia possvel com o nosso conhecimento a priori, mas somente do ponto de vista prtico. O grifo nosso.
16
associao (i) podemos inferir a formulao da hiptese copernicana em duas etapas
interligadas, quais sejam, s instncias da sensibilidade (Esttica) e do entendimento
(Analtica), o que efetivamente nos sugere a importncia e a centralidade do correlato do
conceito, que a intuio [emprica], como um diferencial explcito da filosofia kantiana em
relao ao dogmatismo e, por isso, se requer que se torne sensvel um conceito abstrato, isto
, que se mostre na intuio um objeto que lhe corresponda, porque, no sendo assim, o
conceito ficaria (como de diz) privado de sentido (C.R.P., B299, p.259-260); a segunda
associao (ii) nos acena para o captulo que tematiza a distino entre fenmenos e nmenos,
onde Kant mostra o papel inovador que atribuiu Analtica Transcendental na filosofia
crtica, a saber, o de uma metafsica do entendimento cujas proposies fundamentais so
apenas princpios de representao dos fenmenos, de modo que surge no escopo de seu
sistema uma espcie de ontologia da experincia ou teoria dos objetos. Kant projeta, portanto,
um novo paradigma de reestruturao para problemas afetos ontologia forjando,
conseqentemente, um deslocamento no horizonte dos mtodos e classificaes utilizadas
pela chamada metafsica tradicional e, nesse desiderato, os contedos da Crtica da Razo
Pura por si s representam em grande medida esse esforo de transformao e sistematizao.
Ora, parece claro que esse esforo de sistematizao no se restringe ao cumprimento
da funo fundante da crtica, ou seja, ao uso e, portanto, a mera aplicao de formas
discursivas s intuitivas com o fito de fundamentar o conhecimento cientfico. Se assim fosse,
os neokantianos estariam certos no seu prognstico reducionista de que o legado terico de
Kant se resumiria unicamente a legitimar o conhecimento atravs de uma nova modelagem
epistemolgica. Ao contrrio, se o esforo de sistematizao kantiano no se confina a tratar
cincias historicamente determinadas, mas avanar e questionar o seu sentido passamos a
compreender a importncia do cumprimento dos momentos ou funes negativa e defensiva
da crtica, incluso que em seu inteiro teor excede os contornos da filosofia terica e, a rigor,
da prpria Crtica da Razo Pura. Com efeito, ao mostrar a possibilidade de juzos sintticos
a priori no mbito da experincia, a Crtica da Razo Pura fixa esses limites e determina o
cumprimento de sua funo negativa objeto da Dialtica Transcendental, pois preciso no
apenas assegurar a validade do conhecimento cientfico, mas tambm compreender o cerne
das iluses transcendentais. De fato, a funo negativa da crtica, uma vez dissolvidas as
iluses dos raciocnios dialticos da razo pura, opera num sentido disciplinador com o fito de
prevenir divagaes ao estilo do dogmatismo, cuja pretenso forjar conhecimento a partir de
simples atos lgicos, sugerindo-nos, por conseguinte, que devemos valorizar a atuao dessa
funo negativa adjudicada crtica, ou melhor, que o proveito maior e talvez nico de toda
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a filosofia da razo pura , por isso, certamente apenas negativo (C.R.P., B823, p.633), e que
em seu uso terico a razo no pode ultrapassar os limites da experincia possvel. Neste
sentido, o cumprimento da funo negativa da crtica, atravs da Dialtica Transcendental,
no deixa de ser tambm um esforo de reestruturao dos temas da metafsica tradicional ou,
numa palavra, numa crtica vigorosa metafsica pregressa no que toca usurpao por esta
dos limites [ou da incontinncia] de possibilidade do conhecimento.
Ora, se no tenho autorizao para ultrapassar os limites da experincia possvel no
mbito da razo terica resta-nos o apelo razo prtica. A compreenso adequada deste fato
depende em larga escala da compreenso do sentido da passagem da filosofia terica para a
filosofia prtica de Kant. com relao ao uso prtico da razo que vemos o cumprimento da
funo defensiva da crtica na medida em que ela consiste em mostrar a incapacidade da razo
terica de legislar num campo que est alm dos limites da experincia possvel como
abordado no prefcio segunda edio (C.R.P., BXXIX-XXX, p.27). Um exemplo sugestivo
facilita a compreenso da passagem do momento negativo ao defensivo da crtica: na terceira
das Antinomias da Razo Pura observa-se que o conceito de causalidade natural na
cosmologia racional cumpre uma funo negativa na primeira crtica. Analisado mais de
perto, este mesmo conceito apresenta seu contraponto positivo na idia de liberdade
estabelecida na segunda crtica, onde vai cumprir uma funo defensiva que fundamental no
domnio prtico. Com efeito, a terceira antinomia refere-se oposio entre liberdade e
determinao plena e , por isso, decisiva para a fundamentao da moral kantiana. Neste
nterim, cabe mencionar que podemos lanar mo de raciocnio similar, respectivamente nos
casos dos paralogismos e do ideal da razo pura, onde fica claro o cumprimento da funo
negativa da crtica e seu sentido de passagem funo defensiva cujo desenvolvimento se
dar no mbito da filosofia prtica.
Como dito, nossa dissertao de mestrado se ocupou exclusivamente da funo
fundante da crtica: ela se consubstanciou naquela ocasio pela resposta de Kant ao problema
de Hume na Analtica Transcendental da Crtica da Razo Pura. No entanto, a presente tese
incorpora a pretenso de alargar a temtica, ao mostrar que a resposta de Kant ao problema de
Hume requer um primeiro complemento, a saber, o cumprimento das funes negativa e
defensiva da crtica e, para isso, teremos que levar em considerao, necessariamente, certos
contedos adicionais presentes na prpria Crtica da Razo Pura, em seguida articulando-os
bem como estabelecendo e esclarecendo suas passagens s demais crticas14 e, eventualmente,
14 Veja-se, por exemplo, o que Kant diz em C.R.P., B869-870, p.663-664. Com efeito, com o exame completo da trilogia crtica, torna-se factvel entender que a arquitetnica kantiana deve ser entendida no como um dado de
18
a outros escritos kantianos notadamente na rea de sua filosofia prtica. Nesta iniciativa se
insere a temtica da liberdade dentro de um quadro que inicialmente pode ser debatido a partir
de sua vertente especulativa. Com efeito, a conjuno das temticas da causalidade e
liberdade se impe filosofia de Kant como provas utilizadas para refutar o pensamento
ctico-naturalista [tanto especulativo quanto prtico] de Hume, e tal iniciativa se caracteriza
por estar esboada num projeto de longo prazo que parece incluir toda a sua meditao que
vir a se constituir na matria de sua trilogia crtica. Isto nos parece reforar que os contedos
presentes nos prefcios A e B e correspondente introduo Crtica da Razo Pura j
acolhem15 e prenunciam a defesa do cumprimento das funes fundante, negativa e defensiva
da crtica, o que corroborava com o que ele teria escrito a seu confidente Marcus Herz, dando
notcia que trabalhava e estava decididamente comprometido com a realizao de um projeto
de grande envergadura, seno revolucionrio.
Com efeito, Kant inicia o prefcio de 1781 fazendo uma descrio da situao trgica
em que se encontrava a razo humana poca, notadamente ao lidar com um campo
especulativo de extrema sutileza como a metafsica, declarada por uns como necessria, por
outros como impossvel. Requer-se, portanto, transformar a variedade de opinies num saber
unvoco. Ora, essa uma tarefa que deve ser adjudicada responsabilidade de um juiz que
deve julgar ou, de forma mais geral, pensar, modo de ao crucial de qualquer atitude crtica.
Para tal ele nos mostra que o pensamento no se dirige a um mundo j posteriormente
constitudo, dado que o nosso pensamento requer um esforo de sntese, sem o qual algo
permanece desconexo e conceitualmente indeterminado, sem que se possa deduzir16 sua
realidade objetiva. O fato que, ao contrrio dos cticos, sem o pensamento (entendimento)
no se pode constituir uma experincia objetiva, mas, contrariamente aos dogmticos, o
pensamento no pode lidar diretamente com a experincia, mas s mediatamente, atravs de
conceitos. Em resumo, percebe-se aqui o alvo do sentido crtico: em parte ele diverge do
ceticismo, em parte do dogmatismo. A anarquia est posta e o discurso filosfico
comparado por Kant a um campo de batalha17. s pretenses daqueles que s confiam em
uma vez por todas, mas como um processo em formao, onde lacunas surgem e podem ser superadas, em que problemas imprevistos se pem, e at novos princpios tm que ser propostos, e Kant parece descrever esses sentidos de passagem (bergang) pela utilizao de mtodos de isolamento e sntese. 15 Ibidem. A metafsica divide-se em metafsica do uso especulativo e metafsica do uso prtico da razo pura e , portanto, ou metafsica da natureza ou metafsica dos costumes (C.R.P., B869, p.663). 16 Segundo Kant, o objeto indeterminado (conceitualmente) de uma intuio emprica o fenmeno; e s podemos dizer que o objeto determinado quando da atuao do pensamento (entendimento). Isto ficou claro na dissertao de mestrado na parte referente deduo transcendental das categorias. 17 Percebe-se (em C.R.P., AIX-X, p.4-5) que o palco de disputa que engendrava a metafsica na poca de Kant estava armado espera de atitudes que incorporassem, no entender de Kant, um sentido crtico: Inicialmente, sob a hegemonia dos dogmticos, o seu poder era desptico. Porm, como a legislao ainda trazia consigo o
19
raciocnios abstratos se opem, incansavelmente, as dvidas dos cticos, indicando o
distanciamento entre a teoria e a experincia e resultando naquilo que Kant por vezes chama
de indiferentismo, talvez a forma mais dissimulada de misologia.
Nessa perspectiva, enquanto os chamados metafsicos dogmticos tomam identidades
axiomticas como premissas (arbitrrias ao estilo da definio/construo matemtica),
analisando conceitos que j contm o conjunto de suas caractersticas (juzos analticos), os
empiristas cticos (aluso a Hume) so incapazes de conceber o conhecimento como a
produo de algo mais que regularidades contingentes (juzos sintticos), percepes
mentalmente associadas, mas no conectadas ou sintetizadas kantianamente falando. Entre a
necessidade vazia (formal e demonstrativa) de uns, e a multiplicidade indeterminada (varivel
e persuasiva) de outros, haver lugar para a instaurao de um sentido crtico? possvel
fundar um saber da experincia? Se h uma experincia possvel no sentido crtico, parece
que o fundamento dessa experincia para ser universal e necessrio deve, segundo o modelo
kantiano, ser independente da experincia. Ao sentido crtico18, que em si parece incuo,
incorporado o mtodo transcendental com o fito de ajudar a dirimir as questes impostas pelas
partes litigantes (dogmticos e cticos) quando da instituio de um tribunal da razo que ter
como sua tarefa precpua instituir o autoexame e a autolegitimao da razo independente da
experincia19. Vale acrescentar, como consta de nota em C.R.P., BXXII, p.23, que Kant
vestgio da antiga barbrie, pouco a pouco, devido a guerras intestinas, caiu essa metafsica em completa anarquia e os cpticos, espcie de nmadas, que tem repugnncia em se estabelecer definitivamente numa terra, rompiam, de tempos em tempos, a ordem social. Como, felizmente, eram poucos numerosos, no poderam impedir que os seus adversrios, os dogmticos, embora sem concordarem num plano prvio, tentassem repetidamente, restaurar a ordem destruda (...) depois de serem tentados todos os caminhos (ao que se v) em vo, reina o enfado e um indiferentismo, que engendram o caos e a noite nas cincias, mas tambm, ao mesmo tempo, so origem, ou pelo menos preldio, de uma prxima transformao e de uma renovao dessas cincias, que um zelo mal entendido tornara obscuras, confusas e inteis. 18 O sentido crtico envolve uma questo de direito (quid juris) e deve ser distinguida da questo de fato (quid facti). Nos parece, como de praxe poca, Kant faz uso da linguagem jurdica em todos os seu escritos. O sentido crtico utilizado, dessa feita, para simbolizar perfeitamente a tentativa de pacificao entre os litigantes da questo metafsica. O sentido crtico como um tribunal da razo que deve dirimir as querelas metafsicas, analogia com os tribunais jurdicos. Retomando a linguagem metafrica, ao fazer a comparao entre o estado da razo especulativa abandonada a incessantes lutas internas e o estado de natureza - estado onde indivduos estariam em contnua oposio entre si, absorvidos em uma guerra de todos contra todos, segundo a conhecida expresso de Hobbes -, Kant explica que a nica possibilidade de ultrapassar esse conflito a instituio de um estado civil (estado de direito) que levaria a comunidade pacificao. Seguindo uma cadeia de raciocnio, no limitada Crtica da Razo Pura, Kant vai concluir que a passagem do estado de natureza ao estado civil um dever moral (imperativo categrico) e, analogamente, a postura ou o sentido crtico tambm o . Nos parece que a j pode ser visto um certo compromisso conjuntivo entre causalidade e liberdade. Extramos o argumento dessas passagens analgicas em: Kant, Immanuel, A Metafsica dos Costumes Parte I Princpios Metafsicos da Doutrina do Direito. Trad. Artur Mouro. Lisboa: Edies 70, 2004, bem como na prpria Crtica da Razo Pura: (C.R.P., B780, p.604). 19 Com efeito, a razo especulativa no seu uso transcendental em si dialtica. (C.R.P., B805, p.620). A verdadeira pacificao da razo entre os litigantes feita, segundo Kant, na dialtica transcendental, tpica de disputa entre as posies assumidas pelos racionalistas e empiristas de diversificadas matizes. Para ele, a prpria filosofia est calcada no interesse da razo [,que propriamente o de tornar prtica a razo pura,] em buscar para
20
formula sua proposta inicialmente como uma hiptese, passvel de justificao a partir de seus
prprios mritos, e no algo infalvel como constantemente se objeta de forma enganosa ao se
fazer referncia aos a priori; melhor dizendo: a necessidade e universalidade dos a priori que
pertencem ao conhecimento objetivo agora no nascem mais dos objetos, mas devem-se ao
sujeito cognoscente; como a necessidade e a universalidade da experincia no esto
consignadas experincia sensorial, ela jamais pode ser refutada com os recursos da prpria
experincia (das cincias empricas) e, por tratar-se de experimentos da razo, sua validade
uma questo epistmica e metafsica, de possibilidade bem mais que de probabilidades. Com
base nesse pressuposto de generalizao atribudo ao mtodo transcendental (apensa a uma
expressa nota observatria prpria contida em C.R.P., BXVIII, p.21; e da nota 8 da presente
Introduo), Kant complementa o prefcio edio de 1787 dedicando boa parte de sua
argumentao para tratar da passagem do conceito de causalidade ao conceito de liberdade.
Isto corresponde tarefa de articular o cumprimento das funes fundante [da Analtica] e
negativa da crtica [,a qual ser tarefa da Dialtica Transcendental], como exposta
detalhadamente nas Antinomias da Razo Pura e a partir dos problemas que elas colocam.
Isso, porm, no deve ser tudo20: a Dialtica Transcendental deve representar e
presidir a funo negativa da crtica; alm disso, ela se afigura como locus privilegiado do
sentido de passagem (bergang) dessa ltima funo [negativa] sua funo defensiva, o que
legitima e possibilita, segundo o projeto kantiano de longo prazo, a razo prtica em geral.
Noutros termos: aps ter concludo a impossibilidade da metafsica no domnio da razo pura,
Kant julgou necessrio defend-la no campo do agir humano. Com efeito, a funo defensiva o condicionado o incondicionado e, por isso, s ela deve assumir o nus de pacificar a razo. De fato, como veremos em Legalidade e Causalidade, a faculdade do entendimento insaturada ou no preenchida completamente e, por isso, incapaz de julgar as antinomias da razo por ter seus limites impostos pelas categorias. Em contrapartida, a faculdade da razo saturada e, como veremos em Finalidade e Induo, ela pode inferir mediatamente, sendo que seu uso no est limitado ao mbito do condicionado [ou aos conceitos do entendimento]. Portanto, uma das caractersticas que distinguem a conduo dos temas cientficos em Kant o uso regulativo que ele faz de conceitos, revelando a importncia do termo idia nesse desiderato. 20 Os correspondentes prefcios e a introduo Crtica da Razo Pura, insistimos, so claros no sentido de acolher, mesmo que propedeuticamente, o cumprimento das funes da crtica (fundante, negativa e defensiva). Com efeito, fato que conceitos como os de liberdade e imortalidade, por exemplo, queiram ou no os adeptos de teorias positivas (e parece que eles receberam uma grande influncia de parte do empirismo de Hume), pertencem disposio natural de todo ser humano, isto , so inerentes nossa natureza e, como bem j asseverava Aristteles, o homem um ser racional que tem por natureza uma tendncia ao saber em geral. O prprio Kant confirmava nossa disposio para a metafsica quando tendemos naturalmente a fazer inferncias racionais, ou melhor, toda determinao objetiva projetada sobre o pano de fundo de uma totalidade incondicionada, sem a qual ela seria despojada de qualquer finalidade, e que o esprito do homem renuncie de uma vez por todas s inquiries metafsicas to pouco de esperar como ns suspendermos completamente a nossa respirao para no respirarmos sempre um ar impuro (Ver Prolegmenos a Toda a Metafsica Futura que queira apresentar-se como cincia. Trad. Artur Mouro. Lisboa: Edies 70, 1987, p.166). No sem razo o principal problema da Crtica da Razo Pura : como so possveis juzos sintticos a priori? Ou melhor: como possvel a metafsica enquanto cincia? (C.R.P. B22, p.51), de modo que a metafsica futura s ter sentido como lgica ou filosofia transcendental.
21
da crtica considera para as idias da razo um uso positivo21, como uma boa metafsica, cuja
temtica est adjudicada filosofia prtica. Sendo assim, a razo especulativa no funda a
filosofia moral, mas permite seu desenvolvimento ao mostrar que no h contradio entre
liberdade e leis da natureza, excluindo as doutrinas que tornam impossvel um uso prtico da
razo, como a de Hume, para quem a razo no prtica e como sentimento no pode guiar a
vontade, resultando que os conceitos de liberdade e as idias da razo em geral no seriam
mais que quimeras. E isto exatamente a defesa da metafsica que um Problema Geral da
Razo Pura como estabelecido na Seo VI da introduo Crtica da Razo Pura (ver
C.R.P., B21-22, p.50-51) ou, em outros termos, da conjuno das temticas da causalidade e
liberdade, objetivo geral de Legalidade e Causalidade e Finalidade e Induo.
Dos argumentos transcendentais e do tom ausente de azul
Diante do exposto, podemos assegurar que, em ltima anlise, Kant inventa uma
soluo inovadora que postula tratar a epistemologia no nvel ontolgico e, como acabamos
de ver, suas caractersticas, ocorrem indistintamente nas trs Crticas, configurando, prima
facie, condies para conceitos, juzos ou argumentos a priori de importncia seminal para o
desenvolvimento conciso e coerente deste trabalho, por isso denominado de Os argumentos
transcendentais: Kant e o problema de Hume. Este ttulo sustenta nossa adeso posio de
autores que defendem o uso dos argumentos transcendentais como uma estratgia de combate
objeo ctica e que foi empregada por filsofos tanto kantianos como de outras correntes.
Assim, estabelecidas tanto a soluo bem como a abrangncia Das funes [ou momentos]
da crtica: o fundante, o negativo e o defensivo, nosso prximo passo nesta Introduo
apresentar os argumentos transcendentais como uma forma genrica de combate ao ceticismo
ou de reidentificao de particulares na organizao de nossa experincia, que tanto pode ser
expressa atravs de um ideal de racionalidade dedutiva quanto num ideal de racionalidade
indutiva. A aludida apresentao ser feita pela via de seu contraponto ao tom ausente de azul.
Com efeito, A gnese do problema de Hume, apresenta elementos em que este
oferece provas para mostrar que no princpio empirista da cpia, introduzido no[s] tpico[s] 21 Ver C.R.P., BXXIV-XXV, p. 24-25. A funo defensiva da crtica se expressa de maneira mais direta naquilo que Kant chama de uso polmico da razo, na Doutrina Transcendental do Mtodo: Pelo uso polmico da razo pura entendo, ento, a defesa das suas proposies contra as negaes dogmticas das mesmas (C.R.P., B767, p.596). No mais, devemos entender que a exposio da Dialtica Transcendental, alm de sua funo distintiva que a negativa, j cumpre de certo modo uma funo defensiva, [o que de fato pode ser visto que j levamos em considerao ao longo do presente trabalho] e que pode ser confirmado a partir de cada captulo do Livro Segundo da Dialtica Transcendental: no captulo dos paralogismos temos a figura da personalidade moral; nas antinomias temos a liberdade moral; no ideal da razo pura temos a teologia moral.
22
1.1 [e 1.2], as impresses (pelas quais ele entende a sensao e o sentimento) antecedem as
idias (pelas quais ele entende de modo amplo os pensamentos e outras representaes
mentais). Atravs de exemplos, Hume coloca que sempre que houver algum problema com as
faculdades (por exemplo, se a pessoa nasceu cega ou surda), ou se o rgo da sensao, que
permite o surgimento das impresses, no houver sido colocado em uso, como por exemplo,
se uma pessoa nunca saboreou um abacaxi, as impresses e suas idias correspondentes
estaro perdidas, como pode ser visto no Tratado (T., I, I, 1: 29, 9) bem como na primeira
Investigao (E., II, VII: 36-37), ensinando-nos que as impresses simples sempre precedem
as idias correspondentes. Existe, todavia, um contra-exemplo a este primeiro princpio da
natureza humana22: no clebre caso humeano do tom ausente de azul, devemos imaginar que
uma pessoa, que havia desfrutado de excelente viso por trinta anos de sua vida, tenha se
familiarizado com todos os tipos de cores, exceto por uma determinada tonalidade de azul.
Suponhamos que tal pessoa posta diante de uma gradao de vrios tons de azul, desde o
mais escuro at o mais claro, e se uma determinada tonalidade de azul que ele nunca havia
visto estiver ausente, ele notar um branco na continuidade da srie e ser capaz de formar a
idia dessa determinada cor. Hume admite a exceo, mas no acha que ela importante o
suficiente para provocar qualquer mudana na mxima geral, pois se trata de uma instncia
to particular e singular que quase no digno de nossa ateno, no merecendo que, apenas
por sua causa, alteremos nossa mxima geral (T., I, I, 1: 30, 10 [alm de E., II, VIII: 38]).
No obstante, contra-exemplos como esses j se afiguram como suficientes para
deslocar a experincia, configurada por um argumento transcendental, de uma forma saturada
para uma forma insaturada, ou melhor, de um ideal de racionalidade dedutivo que assume
uma condio de fundamentao [AtB; AB] para um ideal de racionalidade indutivo que no assume uma condio de fundamentao [AtB; BA]. Isto evidencia que, na hiptese de Hume, por menor que seja, a incerteza ou a probabilidade considerada uma constante no
processo de organizao de nossa experincia perceptiva e que, na vida comum, carecemos de
incertezas [ou de causas] ou, de resto, contra-exemplos so exemplos de anomalias que
engendrem regras com base em experimentos. Em outras palavras, Hume nunca postula a
22 Vale ressaltar que o contra-exemplo do tom ausente de azul pe em questo no somente o princpio empirista da cpia formulado nos tpicos 1.1 e 1.2, mas tambm o princpio associacionista da imaginao que em Hume o segundo princpio da natureza humana, formulado nos tpicos 1.2 e 1.3. Com efeito, ele no estaria apontando somente para a possibilidade de uma idia simples sem impresso que a precedesse, mas tambm apontaria para um modo de organizao de nossa experincia em que o distinguvel no seria mais estritamente separvel, de modo que a cadeia de semelhanas estaria diante de uma unidade para alm da exterioridade de suas relaes, o que ter como conseqncia negar a prpria relao de causalidade como Hume, por exemplo, vai sugerir na primeira Investigao ao afirmar que todo efeito um acontecimento distinto de sua causa (E., IV, XI: 59).
23
regra como um dado absoluto, como uma descrio sem excees de tudo o que h na
natureza. Nesse desiderato, com o caso do tom ausente de azul, Hume parece relatar que a
comprovao de leis por exceo pode ser entendida no como algo desprovido de sentido, ou
irracional, mas como um procedimento vlido em todo processo de investigao racional. As
chamadas anomalias, muitas vezes podem ser causadas como meras excees ou como
fenmenos que parecem violar as regras.
Contudo, quantas anomalias ou contra-exemplos podem ser tolerados antes que
tenhamos que abandonar estas regras algo, na concepo de Hume, muito difcil de
mensurar, e que, afinal, s a experincia na vida comum [a posteriori] pode nos fornecer, de
modo que a gnese de sua doutrina, em grande medida, deve ser procurada em sua prpria
incerteza - a probabilidade ou possibilidade em graus. Assim, Hume acha que terminamos
nossa investigao quando alcanamos o princpio mais generalizado, ainda capaz de
observao emprica. Qualquer coisa que estiver alm disso, no passa de mera hiptese ou
conjectura, sendo, portanto, intil, uma vez que nunca pode ser satisfeita ou sequer
confirmada pela via de um processo de verificao emprica que, em ltima anlise, no
outro que o prprio problema do significado de nossas teorias cientficas.
Ora, a crtica kantiana vai reputar como um escndalo para a filosofia, qualquer estilo
de argumentao transcendental que admita contra-exemplos, ou no assuma uma condio
de fundamentao. Em seu ideal de racionalidade dedutivo, ao longo de toda a trilogia crtica
Kant parece estar obstinado postulao de um princpio unificador da razo, que
paradoxalmente consiga deduzir a induo ou, numa palavra, em perseguir um princpio de
unidade de fins que responda ao ceticismo de Hume quanto causalidade e, por extenso,
como veremos ao longo deste trabalho, tambm induo23. Nestes termos, a Filosofia das
23 O captulo Apndice Dialtica Transcendental na Crtica da Razo Pura nos parece ser o contraponto da Deduo Transcendental das Categorias na Analtica Transcendental. A questo que se pe a seguinte: possvel uma deduo transcendental dos conceitos puros da razo? A legitimao dessa questo parece reabrir o tema da resposta de Kant ao problema de Hume e sua continuidade se prolonga para alm da questo da resposta posta na Segunda Analogia da Experincia, tema de nossa segunda parte, e se prolonga nas duas introdues Crtica da Faculdade do Juzo, bem como na sua parte referente teleologia. A empreitada no fcil, pois, diferentemente de uma Idia da razo, o conceito de teleologia tem um objeto dado, mas, diferentemente de um conceito do entendimento, no determina seu objeto, ou seja: no fundo, a soluo teleolgica de Kant no traria novidade com relao de Hume, pois faria passar uma necessidade subjetiva da derivada [da experincia], isto , um hbito, por uma necessidade objetiva fundada no conhecimento (ver Prolegmenos, Int., p.14), como veremos em nossas Consideraes Finais. Contemporaneamente falando, esta parece ser uma tentativa de demonstrao da induo, ou da busca de um a priori indutivo, algo similar ao que tenta mostrar a seguinte passagem: O problema se assemelha questo: como justificar racionalmente a lgica dedutiva? No h resposta geral para essa pergunta, posto que a lgica dedutiva exerce um papel fundamentador em nossa racionalidade [como quer Kant]. Rejeit-la seria irracional. Mas por que filsofos geralmente no exigem uma justificao para a lgica dedutiva, mas exigem-na para a lgica indutiva? A resposta que eles esto na verdade procurando uma justificao dedutiva para a induo [e tal o papel conspcuo dos argumentos transcendentais kantianos ao longo da trilogia crtica, a saber, em Legalidade e Causalidade e Finalidade e Induo, a partir
24
Cincias pode at dizer que a induo a glria do cientificismo (evidentemente Hume como
grande pensador no compactuaria com essa mxima reducionista), mas parece que a
Filosofia no concorda com essa conjectura e a tem no s na conta de um escndalo, mas,
insistimos com o que j dizamos no incio de nossa dissertao, como problema de cunho
genuinamente filosfico, a saber, o mais que conhecido problema de Hume -, a induo24.
Assim, em um certo sentido [metafrico], a resposta de Kant ao problema de Hume seria a
postulao de argumentos transcendentais saturados como condio de justificao [e de
fundamentao] para casos como o do tom ausente de azul. No que se segue, procuramos
esclarecer essa questo, comeando por precisar com mais acurcia a forma bsica [saturada]
de um argumento transcendental e sua variante [insaturada] ctico-naturalista.
Com efeito, sustenta-se que qualquer estilo de argumentao transcendental pode ser
apresentado de acordo com a seguinte forma genrica: o conhecimento de um objeto qualquer
ou evento A ou de qualquer relao entre A e outro objeto ou evento B pressupe
necessariamente uma proposio, que no se pode alcanar pela generalizao [comparativa]
nem de A nem de AtB, mas se assume como fundamento transcendental do conhecimento de A ou de AtB, de modo que um princpio como o da sucesso no tempo segundo a lei da causalidade de que Todas as mudanas acontecem de acordo com o princpio da ligao de
de argumentos transcendentais do tipo abdutivo que designamos respectivamente por analogias esquemticas ou constitutivas e analogias simblicas ou regulativas]. Ver O problema da induo e os cursos do mundo, In: COSTA, Cludio. Uma introduo contempornea filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2002, p.195. A passagem supra, posta pelo professor Cludio mais que uma questo epistemolgica e, nesse caso, a aporia deveria ser tratada no nvel ontolgico que precisamente a soluo conceitual [copernicana] proposta na trilogia crtica pelos argumentos transcendentais no cumprimento das funes fundante, negativa e defensiva. 24 A despeito do Apndice Dialtica Transcendental, a primeira crtica pouco ou nada acrescenta com relao a resposta de Kant questo da induo o que nos leva a conjecturar que isso talvez poderia ser uma manifesta concordncia de Kant com Hume no que diz respeito impossibilidade de uma resposta apodtica induo no que diz respeito s leis causais particulares, ou melhor, a questo principal da presente tese que sobre a [prova da] existncia e/ou a necessidade das leis causais empricas. Nessa mesma linha de argumentao, Barra (2002, p.159 - nota), supe que o silncio relativo da Crtica da Razo Pura quanto ao problema da induo poderia tambm significar que, at aquele momento, Kant no visualizara um modo de enfrent-lo. A descoberta de uma extenso necessria da faculdade do conhecimento para o domnio da reflexo permitiu-lhe, ento, colocar-se indiretamente diante do problema. Digo indiretamente porque Kant nunca se refere claramente induo em nenhuma das sees da Crtica da Faculdade do Juzo. O que h so indcios nesse e em outros textos de que os juzos reflexivos oferecem meios seno para resolver o problema - esse dificilmente poderia ser o objetivo de Kant -, pelo menos com certeza para impugnar algumas de suas conseqncias cticas. Como veremos em Finalidade e Induo, Kant vai afirmar a importncia dos argumentos transcendentais teleolgicos: Hume objeta queles que acham necessrio aceitar um princpio teleolgico do ajuizamento para todos estes fins da natureza, isto , um entendimento arquitetnico: que tambm poderamos com igual direito perguntar como que seria possvel um entendimento como esse, isto , como que as diversas faculdades e qualidades que constituem a possibilidade de um entendimento que tem simultaneamente poder realizador, se podem encontrar num ser de forma to conforme a fins. S que esta objeo no tem consistncia (CJ, 80, 372). Observao: referncias Crtica da Faculdade do Juzo, retiradas da edio de Valrio Rohden e Antnio Marques (ver bibliografia), sero obtidas pela abreviatura CJ, seguida pelo nmero do pargrafo e pelo nmero da pgina correspondente edio da Academia de Berlim, conforme constam nas margens da edio de Rohden e Marques.
25
causa e efeito (C.R.P., B232, p.217), que Kant expe na Segunda Analogia da Experincia,
nos sugere que a possibilidade de A ser causa de B sempre precede a probabilidade de que A
causou B ou, numa palavra, que existe um argumento do tipo modus ponens AtB; AB na origem de qualquer argumento abdutivo do tipo AtB; BA, seja ele indutivo ou analgico, como est respectivamente descrito em pormenor no desenvolvimento dos temas de
Legalidade e Causalidade e Finalidade e Induo. De fato, apenas neste sentido que
podemos assegurar que um argumento transcendental kantiano do tipo saturado AtB; AB responde apoditicamente ao tom ausente de azul, representado proposicionalmente por um
argumento transcendental ctico-naturalista humeano do tipo insaturado AtB; BA25. Considere-se, por exemplo, a nossa experincia como um sistema nico em que na
vida comum constatamos coisas materiais. Essa uma situao descritiva em que, apesar das
eventuais diferenas que possam existir, o fato que todos ns nos movimentamos nesse
sistema que supomos possuir uma certa unicidade de modo que nossas descries possam ser
sempre reidentificveis [indutiva, analgica ou mesmo dedutivamente]. Um tpico caso de
questionamento ctico pode dizer respeito nossa crena na imperceptvel existncia contnua
dos objetos. Nesse desiderato, o que justifica nossa manuteno dessa crena e o fato de nos
basearmos tanto nela? Como pode ser encontrado ao longo do contexto terico Da
interpretao de Strawson - Gegenstand (ver 2.3), o nosso argumentador transcendental
simplesmente vai responder que dado que consideramos a ns mesmos como participantes de
um mundo singular unificado de objetos espcio-temporais, e nessa concepo os objetos
25 Podemos aqui fornecer algumas caractersticas adicionais que confere a um argumento transcendental AtB; AB um estatuto pleno de fundamentao, ao contrrio do argumento transcendental ctico-naturalista AtB; BA. De incio, est claro que o argumento transcendental kantiano deve tornar possvel o conhecimento de A ou de AtB e o recproco no pode ser verdadeiro. Se o fosse, em qualquer situao, ele j se degeneraria num argumento AtB; BA; em segundo lugar, todo argumento AtB; AB a primeira condio de A ou de AtB, ainda que toda uma srie de generalizaes empricas possa ocorrer entre o espao que medeia AtB; AB e A ou AtB como descrito ao longo do tpico 3.2.2. Com efeito, para Kant um ideal de racionalidade indutivo sempre requer a existncia de um ideal de racionalidade dedutivo como causa [regulativa] do primeiro, o que significa que somente a estrutura AtB; AB e no AtB; BA assume o estatuto de fundamento transcendental ou, como afirmamos no tpico 1.8, AtB; BA representa algo como um vetor de probabilidade num espao de possibilidades AtB; AB. Somente neste sentido podemos afirmar que um raciocnio obtm validade objetiva, e isto ocorre no argumento AtB; AB da Segunda Analogia da Experincia, onde de fato se pode dizer que o evento A pressupe necessria [e universalmente] a ocorrncia de um evento B, o qual colocado como efeito do primeiro; em terceiro lugar, como ser ratificado no tpico 2.1, o objetivo de toda argumentao transcendental [,mesmo na sua forma ctico-naturalista como supe Strawson,] sempre o de combater ao ceticismo, explicando os objetos, eventos e relaes, atravs da invocao de uma proposio de carter universal: como veremos em nossas Consideraes Finais, recorrendo a este tipo de argumentao transcendental no mbito prtico-moral que Kant vai concluir, de modo apodtico, sua resposta ao problema de Hume, ou seja, qualquer ato s objetivamente livre quando os meios justificam [apoditicamente] os fins ou, numa palavra, quando ele pode ser expresso proposicionalmente conforme primeira formulao de um imperativo categrico, cuja forma AtB; AB representa a conscincia de um dever desinteressado.
26
espcio-temporais tm de existir de maneira imperceptvel para constituir o mundo como
nico e unificado e no ilusrio, uma crena em sua imperceptvel existncia contnua uma
condio [transcendental] de nosso pensamento tanto sobre o mundo quanto de nossa
experincia dele. Estas consideraes nos levam, segundo Stroud (1968, p.242) ao seguinte
impasse diante do argumento ctico: possvel a demonstrao da existncia de argumentos
transcendentais que assumam uma condio de fundamentao AtB; AB? Esta uma suposio que deve permanecer somente no mbito do possvel, ou de condies epistmicas,
como de resto pode ser mais bem compreendida ao longo do contexto terico Da
interpretao de Allison - Objekt (ver 2.4). No obstante, se essa demonstrao for entendida
como verificao, tal como alude o princpio de significatividade de Strawson, fica aberta a
porta para o ctico, uma vez que nada me garante que no futuro qualquer causa ou evento,
como o do tom ausente de azul, possa vir a se interpor como um contra-exemplo quilo que
assumido como um argumento transcendental saturado.
Nessa perspectiva, no modelo transcendental kantiano, pode-se pensar a estrutura da
experincia em dois nveis bem caracterizados que neste trabalho distinguimos devidamente
por Legalidade e Causalidade e Finalidade e Induo: em primeiro lugar, o nvel das
possibilidades formais de objetividade, caso em que o alcance das categorias definido pela
intuio sensvel; em segundo lugar, o nvel das possibilidades formais consideradas em si
mesmas, caso em que as categorias possuem alcance indeterminado [e hipottico]. Vale
mencionar, que se houvesse uma separao completa entre esses dois nveis, a conseqncia
seria a desfigurao completa da estrutura transcendental kantiana. Para evitar isso, ou seja,
para que a aludida estrutura possa ser considerada uma estrutura da experincia, preciso que,
alm da categoria em seu uso constitutivo, tambm a idia, ainda que em seu uso regulativo,
se relacione com a experincia. Como veremos, ao longo de Finalidade e Induo, essa
incorporao da vocao da razo na idia de uma unidade sistemtica da natureza formao
da estrutura transcendental da experincia necessria para retirar da prpria idia o carter
dogmtico e exclusivamente ilusrio de entidade metafsica, fazendo que seu uso regulativo [e
analgico] participe das condies de possibilidade do conhecimento, embora de um modo
no imanente. nesse desiderato, que nos argumentos transcendentais se integram os
momentos fundante, negativo e defensivo da crtica, numa arquitetnica que, defendendo o
interesse da razo, responde, em seu todo, ao naturalismo de Hume.
Nesse contexto, podemos dizer que o discurso humeano sobre a causalidade parece
enfatizar a sua definio natural exposta em A gnese do problema de Hume. No discurso
kantiano isto equivaleria, prima facie, a considerar que tal temtica fica circunscrita funo
27
fundante que ela possui na Analtica Transcendental da Crtica da Razo Pura. Ao operar a
aparente fuso das duas definies de causa (ou a diluio do conceito de causa filosfica no
de causa natural como ser descrito na primeira parte), Hume se depara com dois grandes
problemas: primeiro o da impossibilidade de um padro para a natureza em sua finalidade26;
e, segundo, ao equiparar os conceitos de necessidade e liberdade27, impossibilitou toda ao
humana ao nvel de princpios, isto , segundo a representao de leis28. Isto nos leva a
importncia de interrogar a natureza a partir de uma prescrio sistemtica da razo29, de
modo a considerarmos nosso conhecimento emprico ainda incompleto e condicionado
enquanto este no estiver em conformidade aos princpios da razo pura, no seu uso prtico e
nomeadamente no seu uso moral (C.R.P., B836, p.641), pois s nesse caso, possuem
realidade objetiva. Isto requer que a resposta de Kant ao problema de Hume seja analisada
tambm com relao ao cumprimento das funes negativa e defensiva da crtica, de modo
que fica confirmada a necessidade de um exame ulterior de seus temas para alm da Analtica
dos Princpios da primeira crtica, ficando assim estabelecida a caracterstica de ubiqidade de
nossos argumentos transcendentais. Concluindo esta Introduo, abordaremos sucintamente,
26 Hume opera uma naturalizao [mecanicista] dos juzos causais. Essa naturalizao da necessidade mental que permite pressupor uma regularidade no curso da natureza, como explcita em E., V, XXI: 88-89. A Hume fala de harmonia preestabelecida como se o curso da natureza fosse da ordem dos fins (causa final). Um desgnio, portanto, estaria subjacente ao ajuste de nossas idias ao mundo externo. A Seo XI da primeira Investigao se encarregar de refutar o argumento do desgnio, mostrando que ilegtima a inferncia de uma ordem externa, superior, e com implicaes sobre o universo, a partir de uma certa ordem encontrada nele, como veremos detalhadamente no tpico 3.3. Kant diria o contrrio: se o homem considerado somente enquanto membro da natureza, como determinar o que confere valor absoluto sua existncia? Parece que Kant vai tornar sem efeito a naturalizao proposta por Hume, isto , busca um fundamento racional AtB; AB para a noo de necessidade psicolgica AtB; BA que Hume se limitou a naturalizar. 27 Neste sentido, nos parece, que a liberdade no se encontra na iluso de que tudo podemos e, tampouco, no conformismo de que nada podemos. Hume, [em E., VIII e T., II, III, 1-2], equipara [ou melhor, compatibiliza] os conceitos de liberdade e necessidade de modo que nos parece que a reconstituio operada a respeito da necessidade, tendo como pano de fundo as duas definies de causa, tambm vlida para a liberdade (isto parece dito em E., VIII, XXVII: 139). Ao contrrio, para Kant (ver C.R.P., B472, p. 406 e ss. - Terceira Antinomia), as leis da liberdade que informam a ao moral humana excedem as noes de causao natural e obedecem sua prpria causalidade no mecnica. 28 A esse respeito Kant se pronuncia no seu escrito de propedutica moral (ver KANT, Immanuel, Fundamentao da Metafsica dos Costumes, Trad. de Paulo Quintela, Lisboa: Edies 70, 1992, p. 47.) como veremos em nossas Consideraes Finais. Com a separao entre o uso terico e prtico da razo, Kant reconhece a distino entre liberdade e necessidade. A rigor, para Kant, o conceito de liberdade no reside na lei moral, visto ser ele mesmo uma idia da razo especulativa. Mas esta idia permaneceria puramente problemtica, limitativa e indeterminada, se a lei moral no nos ensinasse que somos seres livres. A realizao da liberdade, portanto, se d na razo prtica que significa a nossa capacidade de escolher nossas aes independentemente de fundamentos determinantes sensveis, como os impulsos, as paixes, sensaes, etc, o que no compactuado por Hume (ver T., II, III, 1-2 e E., VIII). 29 Ver C.R.P., B383, p. 316-317: Assim, a razo relaciona-se apenas com o uso do entendimento; no na medida em que este contm o fundamento da experincia possvel (porque a totalidade absoluta das condies no um conceito utilizvel na experincia, porquanto nenhuma experincia incondicionada), mas para lhe prescrever a orientao para uma certa unidade, de que o entendimento no possui qualquer conceito (...).
28
no que se segue, a estrutura e o contedo das partes e captulos do presente trabalho e de suas
Consideraes Finais.
Da estrutura e do contedo
Diante do exposto, o presente trabalho - Os argumentos transcendentais: Kant e o
problema de Hume -, tem como seu objetivo geral interpretar a resposta de Kant ao problema
de Hume luz da conjuno das temticas de causalidade e induo o que equivale a uma
leitura ctico-naturalista deste. Neste sentido, tal iniciativa complementa o tratamento anterior
visto em nossa dissertao de mestrado, onde a mesma temtica fora examinada a partir de
uma leitura meramente ctica que Kant fez do pensamento humeano e onde foi analisada
apenas a causalidade. Dentre os objetivos especficos, listamos os seguintes: a) a filosofia
crtica cumpre trs funes bsicas, uma fundante, uma negativa e uma que defenderia o uso
prtico da razo, aqui nomeada de defensiva; b) a soluo kantiana do problema de Hume na
primeira crtica cumpriria as funes fundante e negativa da crtica da razo; c) o tratamento
kantiano da temtica da induo nas demais crticas cumpriria a funo defensiva da crtica da
razo; d) que as provas da resposta de Kant ao problema de Hume so mais consistentes
quando se consideram cumpridas estas trs funes ou momentos da crtica. Neste contexto,
atravs do recurso aos argumentos transcendentais que se projetam por toda a trilogia crtica,
procuramos estabelecer soluo para uma questo recorrente que reaparece em vrias
passagens de nossa apresentao e que diz respeito a existncia e/ou a necessidade das leis
causais empricas. Diante disso, nossa tese que os argumentos transcendentais somente
constituem uma soluo apodtica para o problema ctico-naturalista de Hume quando est
em pauta um projeto prtico em que o interesse da razo esteja assegurado, conforme ser,
enfim, demonstrado em nossas Consideraes Finais.
Na primeira parte - A gnese do problema de Hume -, considerada em seus vrios
tpicos ou captulos, nosso principal objetivo reconstituir o chamado problema de Hume,
analisando-o sob a tica das duas definies de causa - a causalidade e a induo -, onde a
diluio da primeira na segunda corresponde reduo psicolgica do conhecimento
probabilidade, o que culmina na naturalizao das relaes causais do tpico 1.10. Podemos
dizer que ao reconstituir o problema de Hume, estamos elaborando o projeto de uma
verdadeira metafsica que para ele a prpria cincia da natureza humana: uma investigao
pormenorizada sobre a natureza do entendimento humano, na qual podemos demarcar as
partes da mente e descobrir os poderes e limites do entendimento humano, num tipo de
29
geografia mental (E., I, XIII: 28) que se constitui no cultivo da verdadeira metafsica (E.,
I, XII: 27) e que substituir com proveito a carcomida metafsica da tradio na descrio da
filosofia segundo os objetivos apropriados da vida comum. Observe-se, de antemo, que no
h como distinguir na filosofia de Hume os momentos fundante, negativo e defensivo, uma
vez que em funo de suas tendncias antimetafsicas, ele descarta tanto os ditos conceitos
puros da razo em geral quanto a prpria razo prtica, como expostos por Kant na Dialtica
Transcendental da Crtica da Razo Pura e na Crtica da Razo Prtica, alm de qualquer
tipo de ordem teleolgica da natureza como os conceitos inscritos na segunda parte da Crtica
da Faculdade do Juzo.
Nesta primeira parte, aps um breve prembulo onde se qualificar as particularidades
da filosofia humeana tanto no Livro I do Tratado quanto na primeira Investigao, sero, em
seguida, apresentados os seus pressupostos filosficos, que se constituem precisamente nas
definies e princpios organizadores da experincia segundo a acepo humeana: o princpio
empirista da cpia que busca revelar as possveis operaes analticas de nossa mente, e o
princpio associacionista da faculdade da imaginao, que de sua vez est mais ligado s
possveis operaes sintticas que gravitam em nossa mente como devidamente descrito no
tpico 1.3. Observe que os tpicos 1.1, 1.2 e 1.3, juntamente com o 1.4 - Das relaes -,
constituem o chamado primeiro bloco de captulos da primeira parte que no seu conjunto
comportam o que Hume define em T., I, I, 4: 37, 7 como os elementos cuja formao resultam
na constituio da experincia. Ressalte-se que no importante captulo 1.4, Hume antecipa
noes cruciais para a presente tese como relaes naturais e relaes filosficas, s quais
tivemos a iniciativa de antecipar uma projeo de seus envolvimentos respectivamente com os
raciocnios de legalidade, como veremos em Legalidade e Causalidade, e de finalidade,
como os contidos em Finalidade e Induo, mormente em seu tpico 3.2.2.
Depois de constituda a experincia, passamos a tratar do segundo bloco de captulos
da primeira parte que tem o objetivo precpuo de justific-la e que corresponde Parte III do
Livro I do Tratado. Tais so os tpicos Do contraponto entre conhecimento e probabilidade,
Da crena, Do hbito, Da probabilidade e Da necessidade que, em seu conjunto,
tratam da clebre reduo psicolgica humeana do conhecimento probabilidade, bem como
da interposio em 1.9 da concepo unitria de uma necessidade subdeterminada como
convm ao ctico-naturalismo. Com efeito, como veremos em 1.5, toda A gnese do
problema de Hume tem sua pauta na pesquisa de um substituto ctico-naturalista para o
princpio lgico-ontolgico da razo suficiente reduzindo-o psicologicamente induo.
Embora Hume tenha conscincia das dificuldades tericas atreladas este princpio, ele
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defende que ele no tem que ser postulado como uma necessidade metafsica, mas como uma
probabilidade cientfica e, sendo assim, o ctico-naturalismo, mesmo evitando a tpica do
dogmatismo, nunca deixa de enfatizar a importncia de todos ns permanecermos abertos e
em constante aperfeioamento na busca de causas como estmulo para qualquer investigao.
Nos tpicos 1.6, 1.7 e 1.8, a abordagem mais pormenorizada de termos que na
filosofia humeana adquirem o estatuto de conceitos filosficos, como crena, hbito e
probabilidade, ajudam a explicitar e consolidar a opo de Hume pela filosofia da vida
comum, contribuindo sobremaneira para a sua anlise ctico-naturalista das relaes causais
no contexto de um ideal de racionalidade indut