198
8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 1/198

Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 1/198

Page 2: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 2/198

K ARL MANNHEIMROBERT K. MERTON

C. W RIGHT MILLS

SOCIOLOGIA DOCONHECIMETO

Organização e Introdução de:ANTÔNIOROBERTO BERTELLI

MOACIRG. SOARES PALMEIRAO TÁVIOGUILHERMEVELHO

Z A H A R E D I T O R E SRIO DE JANEIRO

ÍNDICE

INTRODUÇÃO

Page 3: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 3/198

O PROBLEMA DE UMA SOCIOLOGIA DOCONHECIMENTO — K ARLMANNHEIM

Tradução de M AUROGAMAe INA DUTRA

SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO — ROBERT K ING MERTON Tradução de S ÉRGIOSANTEIRO

CONSEQÜÊNCIAS METODOLÓGICAS DA SOCIOLO-GIA DO CONHECIMENTO — C. WRIGHTMILLS

Tradução de  NGELAMARIAXAVIER DE BRITO

INTRODUÇÃO

Uma apreciação das origens da Sociologia doConhecimento basta para nos indicar que esta não

surge como uma especialização da Sociologiacomo ciência anteriormente estabelecida: surge,isto sim, junto com a própria Sociologia e a partirde uma problemática estreitamente vinculada àdesta última. É a Revolução Industrial,desorganizando todo um sistema de vidaestabelecido, que leva os homens a pensarem nocontrole não apenas de suas relações com anatureza, mas no das suas próprias inter-relações.É a mesma Revolução Industrial que,dessacralizando verdades secularmente estabele-cidas, leva estes mesmos homens a refletirem nãosomente sobre as transformações econômico-sociais em curso, mas também sobre as condiçõesde veracidade e validade do seu próprioconhecimento, inclusive daquele novo tipo de

Page 4: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 4/198

conhecimento emergente, e a constatarem avinculação entre o pensamento em geral e ascondições existenciais. Ao contrário da velha teoriado conhecimento, constata-se que não apenas o

erro se liga a condições extrateóricas, mas quetodo pensamento se processa numa totalidadehistórico-social.É na primeira metade do século XX, entretanto,que a Sociologia do Conhecimento começa a seapresentar como tal e a ser sistematizada. Sóentão é que ela ganha um status universitário. Oimpulso que o estudo sociológico do conhecimentotinha tido com o marxismo nos meados do séculoXIX tem condições de ser retomado com a crise doconhecimento desencadeada pela emergência docapitalismo financeiro, com a crescenteconcentração da produção e o desenvolvimento doimperialismo (a indicar uma aparente recuperaçãodo capitalismo), bem como com a novaconfiguração política internacional de que iriamresultar duas guerras de amplitude e caráter atéentão desconhecidos, e a partir dos avanços feitosnas Ciências Físicas e na Psicologia, como ainda na

reflexão filosófica (grandemente influenciada portais avanços) desenvolvida pela fenomenologia.Em tal esforço de compreensão sociológica doconhecimento destaca-se a obra de Mannheimque, incorporando as contribuições do idealismoalemão e da fenomenologia, através sobretudo dacrítica do trabalho de Max Scheller, mantém comoquadro de referência básico o materialismohistórico. É importante termos em vista,porquanto, a exceção de alguns trabalhos de

Page 5: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 5/198

Lênin, pouco divulgados e das discutidas reflexõesde Lukács, dá-se um verdadeiro bloqueio dareflexão marxista sobre o conhecimento: oempenho da construção do socialismo em um só

país cria condições para uma dogmatização domarxismo, o que leva ao abandono da atitudecrítica do materialismo histórico de Marx e Engels.Mas o fato é que, além de ter sido um verdadeirorepositório do marxismo não-dogmático (ainda queo final de sua obra descambe para um idealismoaté certo ponto ingênuo), a reflexão de Mannheimé a mais ampla e a mais profunda da história daSociologia do Conhecimento. E, o que é maisimportante, o seu relativismo conseqüente,baseado na análise histórico-estrutural dasociedade e do conhecimento, parece ser o que demais fecundo nos deu a análise sociológica doconhecimento.Mas nos trinta primeiros anos do século XX, aSociologia do Conhecimento, como assinalaMerton, permanece como uma disciplina européia.A Sociologia nos EUA, desenvolvendo-sefundamentalmente em função de alguns

problemas práticos, não era levada ao tipo deindagação sobre seus próprios fundamentos,comum entre os sociólogos do Velho Mundo. Oestudo do conhecimento aí é, antes de mais nada,um estudo de alguns aspectos do conhecimento"prático", como, por exemplo, comunicação demassa e propaganda, e voltado para utilizaçõespráticas, não interessado tanto em porquês, masfundamentalmente nos como. O desenvolvimentohistórico do capitalismo naquele país, entretanto,

Page 6: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 6/198

se encarregaria de alterar ainda que parcialmente(trata-se de toda uma outra tradição intelectual) talquadro: a crise de 1929 encontra os EstadosUnidos numa posição central de decisão, e a

falência do conhecimento econômico reflete-sesobre outras esferas, obrigando os pensadoresdaquele país a uma reflexão mais profunda emtorno do conhecimento do que a desenvolvida atéentão. Por outro lado, a América do Norte eraatingida pelo desenvolvimento das Ciências Sociaisna Europa, onde um funcionalismo à historicistaencontrava-se com a tradição historicista aorelativizar o conhecimento, considerando-o não emtermos de verdadeiro-ou-falso, mas em termos dafunção que desempenha num sistema social. Sóentão, através do trabalho de teóricos comoMerton e Znaniecki, é que se desenvolve umaSociologia do Conhecimento nos EUA, tentandofundir a tradição sociológico-filosófica européiacom a sua própria tradição empiricista — esforçocuja eficácia não nos cabe aqui analisar.

Nos países subdesenvolvidos, o estudo doconhecimento (desenvolvido, sobretudo, a partirda década dos 50) assume também um caráterprático. Trata-se de estudar o conhecimento emfunção das exigências do esforço de emancipação.Faz-se a crítica do "pensamento alienado"; forjam-se instrumentos capazes de, atuando ao nível dacognição, levarem as massas a uma aceleração em

seu processo de tomada de consciência política.Não há dúvida de que esse esforço tem produzidofrutos, sobretudo naqueles países em que o

Page 7: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 7/198

esforço de emancipação se vem operando semgrandes emoções. Entretanto, naqueles atingidospela contra-revolução, tal linha de orientação depesquisas merece (porquanto o conhecimento

simplesmente prático está sujeito a falênciasquando não se mostra imediatamente eficaz) serrepensada.

Este volume pretende, na medida do possível,inserir-se nessa linha de reflexão.O artigo "O Problema de uma Sociologia doConhecimento", de Karl Mannheim, figura já pordemais conhecida do leitor brasileiro, apresentaseu autor em plena reação contra o idealismoalemão (trata-se em grande parte de uma crítica aMax Scheller) e lançando as bases de suaSociologia do Conhecimento, que ganharia forma

final em Ideologia e Utopia. Extremamente denso,representa, entretanto, talvez o que de melhor nostenha deixado o sociólogo alemão em forma deartigo. Nele como que se esgota a colocação daproblemática da Sociologia do Conhecimento.

Já em Robert King Merton ("Sociologia do

Conhecimento"), encontramos uma exposiçãosegura e didática da problemática e dos teóricosda Sociologia do Conhecimento, associada a umapreocupação de operacionalidade consubstanciadana elaboração de um paradigma para o estudoconcreto do conhecimento. Merton, sociólogo quese encontra à base do desenvolvimento domoderno estrutural-funcionalismo nos EUA,preocupado com estabelecer os fundamentos de

Page 8: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 8/198

uma integração teórica das contribuições européiae norte-americana ao estudo do conhecimento,passa em revista as contribuições até então feitasao estudo da matéria, demonstrando uma erudição

e uma honestidade intelectual nem sempreencontradas naqueles que se dizem seusseguidores.Uma perspectiva profundamente crítica em relaçãoa toda a Sociologia do Conhecimento é o que nosoferece C. Wright Mills na sua exposição sobre"Conseqüências Metodológicas da Sociologia doConhecimento". Tendo como quadro de referênciageral uma visão histórica dos processos sociais,retoma, entretanto, como caminho conseqüente àinvestigação empírica nesse campo, a contribuiçãodo pragmatismo de Peirce e Dewey. E, indo maisadiante que Merton e Mannheim, insiste nacontribuição que a Sociologia do Conhecimentopode trazer à epistemologia.A tarefa que nos propomos aqui é a de associaruma introdução à Sociologia do Conhecimentocom o lançar o leitor diante de artigos de altacategoria, de forma que ele não apenas tenha uma

"notícia" dessa disciplina, mas penetre o maisprofundamente possível na sua problemática.Neste sentido chamamos a atenção para o fato deque a faceta didática do volume não se encontratanto neste ou naquele artigo, mas na recorrênciatemática dos mesmos. A preocupação com a con-tribuição dos clássicos, o sentido de umaSociologia do Conhecimento, a historicidade doconhecimento, as articulações entre o pensamentoe a base existencial são alguns dos eixos que po-

Page 9: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 9/198

derão orientar o leitor em sua reflexão em tornodeste volume.ANTÔNIOROBERTO BERTELLI MOACIRSOARESPALMEIRA

O TÁVIOGUILHERMEVELHO

Page 10: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 10/198

O PROBLEMA DE UMA SOCIOLOGIA DOCONHECIMENTO

K ARL MANNHEIMTradução de M AURO GAMA e I NA DUTRA

1. A Constelação do Problema

O termo "constelação" vem da astrologia e se

refere à posição e relação mútuas das estrelas nahora do nascimento de um homem. Investigam-seessas relações pela crença de que o destino dacriança recém-nascida é determinado por essa"constelação". Em um sentido mais amplo, o termo"constelação" pode designar a combinaçãoespecífica de certos fatores em um momentodado; e isso deverá ser observado quando ti-vermos certeza de que a presença simultânea devários fatores é responsável pela configuraçãoassumida por um fator no qual estivermosinteressados. Para nós, a astrologia não temnenhum sentido ou realidade além do exposto. A

categoria de constelação, no entanto, foi aduzidado contexto descritivo e teórico da astrologia e,tendo sido incorporada em um novo contextoweltanschauung, representa, agora, uma dascategorias mais importantes que usamos parainterpretar o mundo e a mente humana. Temocorrido também, em outros campos, que catego-rias fundamentais sejam desentranhadas no seucontexto original, quando tornado obsoleto — para

Page 11: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 11/198

serem utilizadas mais adiante em um novocontexto teórico próprio. Apesar de pouco ter sidofeito até agora para se estudar em categoriasdessa espécie, e apesar de terem sido

praticamente descuidadas em investigaçõesmetodológicas, podemos dizer que sãoprecisamente essas categorias que constituem omais valioso instrumental que temos parainterpretar o mundo e dominar os fenômenos queencontramos tanto na vida diária quanto nasCiências Culturais. As categorias da Filosofia daHistória, em particular (ex.: "destino"), voltam aser continuamente férteis, apesar de numa formabastante alterada — e nossa interpretação domundo estará sempre assentada sobre elas.A categoria de "constelação", assim destacada doseu contexto original, mostrou-se-nosparticularmente fértil no único campo em queainda poderemos fazer uso, hoje, de um genuínoinstinto metafísico: na contemplação da história dopensamento. Enquanto a natureza se tornou mudae despida de significado para nós, ainda temos osentimento, ao lidar com a história e também com

a psicologia histórica, de sermos capazes deinterligar a essencialidade da interação das forçasbásicas, e alcançar os rumos que marcam arealidade além da superfície tópica dosacontecimentos diários. A esse respeito, mesmo ointelectual especializado é um metafísico, querqueira, quer não, pois não pode deixar de fazer,por causa da sua individualidade, conexões causaisentre acontecimentos separados, e reduzir tudo oque encontra às forças impulsionadoras que

Page 12: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 12/198

tornam possíveis os vários eventos individuais.Obviamente, esse tipo de metafísica, único que nosserve, difere enormemente de todos os outrostipos de metafísica existentes no passado — na

mesma medida em que a categoria de constelaçãonão significa para nós o mesmo que, por exemplo,para a astrologia.O nosso conhecimento do próprio pensamentohumano se desenvolve numa seqüência histórica;e fomos levados a levantar este problema da"constelação" pela convicção de que o próximoestágio possível do conhecimento serádeterminado pelo status alcançado pelos váriosproblemas teóricos e, também, pela constelaçãode fatores extrateóricos, em um momento dado,tornando possível prever-se determinadosproblemas se mostrarão solucionáveis.Especialmente nas Ciências Culturais, estamosconvencidos de que nem toda questão pode sercolocada — muito menos solucionada — emqualquer situação histórica e de que os problemasvêm e vão em um ritmo específico que pode serapurado. Enquanto nas Matemáticas e na Ciência

Natural o progresso parece, em boa parte, serdeterminado por fatores imanentes, uma questãolevando a outra, com uma necessidade puramentelógica e com interrupções devidas apenas adificuldades ainda não solucionadas, a história dasCiências Culturais mostra um tal progresso"imanente" apenas para um período limitado. Emoutras ocasiões, problemas não-prefigurados porqualquer coisa imanente aos processos de pensa-mento precedentes emergem abruptamente, e

Page 13: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 13/198

outros problemas subitamente se desfazem; estesúltimos, no entanto, não desaparecem de uma vezpor todas, mas reaparecem, posteriormente, deforma modificada. Podemos investigar o segredo

desse ritmo ondulatório das sucessivas correntesintelectuais e descobrir-lhe um padrão significativoapenas pela tentativa de compreensão daevolução do pensamento como um processo vital,rompendo, assim, a pura imanência intelectual dahistória do pensamento. Aqui, se é válido falarnesses termos, vemos confirmar-se o ditado deque nada pode ser intelectualmente um problemase não. tiver sido, em primeira instância, umproblema da vida prática. Se ampliarmos o nossocampo de visão de acordo com o exposto, então oproblema implicado pela categoria de"constelação" nos exigirá não apenas observaruma abordagem sinóptica de todos os problemasteóricos dados em determinado instante, mastambém levar em conta, na mesma medida, osproblemas simultâneos da vida prática. Nesse pon-to, a nossa dúvida assume a seguinte forma: quefatores intelectuais e vitais tornam possível o

aparecimento de um problema dado nas CiênciasCulturais, e até que ponto eles garantem asolubilidade do problema?Colocando o nosso problema dessa maneira,podemos afirmar que as correntes vitais e práticas,tanto quanto as correntes teóricas e intelectuais donosso tempo, parecem apontar em direção a umadissolução temporária dos problemasepistemológicos e em direção à emergência daSociologia do Conhecimento como disciplina focal

Page 14: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 14/198

— e também que a constelação éexcepcionalmente favorável à solubilidade,precisamente, dos problemas dessa disciplina.

Tentaremos, primeiramente, caracterizar a

constelação que deu origem aos problemas daSociologia do Conhecimento e descrever ascorrentes fundamentais que favorecem essaabordagem. É nossa crença não ser um esforçovão fazer preliminarmente inquirições dessanatureza antes de atacarmos qualquer problemada história do pensamento. Devemos adotar esseprocedimento pelo fato de ter o nosso horizonte setornado mais largo, e porque a nossa maiorrefletividade não somente nos capacita comotambém nos obriga a evitar fazer indagações noexato momento em que elas nos ocorrem, de ummodo ingênuo e inconsciente, mas, pelo contrário,a atentar conscienciosamente para a formaçãointelectual dos nossos problemas, para asconstelações responsáveis por sua emergência.

Tais investigações também parece terem-setornado necessárias devido à forma específica emque o trabalho, nas Ciências Culturais, é

organizado, ou, mais precisamente, a ausência dequalquer divisão de trabalho prescritainstitucionalmente, cujo resultado é que cadaindivíduo investiga, por si, seus própriosproblemas. À vista disso, uma orientação sinópticaquanto ao status de todos os problemas dessecampo se faz cada vez mais imperativa. O quenecessitamos, entretanto, não é apenas de umcatálogo das correntes e rumos existentes, mas deuma análise estrutural absolutamente radical dos

Page 15: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 15/198

problemas que podem surgir em determinadaépoca, uma análise que não somente informe aosleigos acerca do que se esteja passando na pesqui-sa, mas indique as últimas escolhas realizadas pelo

cientista cultural no curso do seu trabalho, astensões em que vive e que influenciam seupensamento, consciente ou inconscientemente. Talanálise do trabalho em andamento das CiênciasCulturais nos fornecerá a caracterização maisfundamental da situação intelectual predominanteem nosso tempo.Se, então, nos indagamos acerca dos verdadeirose fundamentais fatores que consubstanciam aconstelação que, necessariamente, deu origem ao

problema de uma Sociologia do Pensamento emnosso tempo, as quatro coisas seguintes parecerãodignas de menção:

1) O primeiro e mais importante fator, que tornaviável a indagação de questões sociológicas acercado pensar, é o que pode ser chamado de auto-transcendência e auto-relativização dopensamento. Autotranscendência e auto-relativização do pensamento consistem no fato deque pensadores individuais, e ainda mais a visãodominante de uma determinada época, longe deatribuírem primazia ao pensamento, concebem-nocomo algo subordinado a outros fatores maisenglobantes — como sua emanação, suaexpressão, seu concomitante, ou, em geral, comoalguma coisa condicionada por alguma outra. Háobstáculos consideráveis no caminho de uma talauto-relativização — assim, acima de tudo o

Page 16: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 16/198

paradoxo do pensador que, ao planejar relativizar opensamento, isto é, subordiná-lo a fatoressuprateóricos, postula êle próprio, implicitamente,a validade autônoma da esfera do pensamento,

enquanto pensa e elabora o seu sistema filosófico;dessa forma, êle arrisca auto-refutar-se, posto quea relativização de todo pensamento equivaleria ainvalidar também suas próprias afirmações.Portanto, essa posição envolve o perigo de umcirculas vitiosus teórico. A tentativa de relativizarqualquer outra esfera, tal como arte, religião etc.,não encontra esse obstáculo; quem quer queesteja convencido de que arte, religião etc.dependa de um fator mais englobante, como "vidasocial", pode afirmá-lo, sem medo de seemaranhar em autocontradição lógica. Nesteúltimo caso, nenhuma contradição pode surgir,pois, ao afirmar a relação de dependência emquestão, não se precisa postular a esfera da arte eda religião como algo válido em virtude daquelaafirmação; mas, no que se refere ao pensamento,é claro que não se pode relativizá-lo sem que seseja, simultaneamente, um sujeito-pensante, i. e.,

sem postular a esfera do pensamento como algoválido.

Podemos escapar a este círculo viciosoconcebendo o pensamento como um fenômenomeramente parcial, pertencendo a um fator maisenglobante dentro da totalidade do processo

mundial e, especialmente, como quedesvalorizando a esfera da comunicação teóricaem que essa auto-contradição se esboça. Para

Page 17: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 17/198

mencionar apenas um tipo de solução: se alguéminsiste em que a esfera do pensamento (a dosconceitos, julgamentos e inferências) é,simplesmente, uma esfera de expressão ao invés

da constituição (cognitiva) última de objetos, acontradição, antes insuperável, se minimiza. Paramaior segurança esse método, para se descartarda contradição teórica, não é imanente à teoria, ese alguém — para colocar numa forma paradoxal— pensa "dentro do pensamento" apenas, jamaisconseguirá levar a cabo essa operação mental.Estamos aqui às voltas com um ato de violação daimanência do pensamento — com um esforço paracompreender o pensamento como um fenômenoparcial dentro do campo mais vasto da existência,e para como que determiná-lo a partir de dadosexistenciais. O "pensador existencial", no entanto,afirma precisamente que sua posição última éexterior à esfera do pensamento e que, para ele, opensamento nem constitui objetos nem abrange,em última análise, matérias-de-fato reais, masapenas expressa crenças extrateoricamenteconstituídas e garantidas. Uma vez que se deprecie

o pensamento dessa forma, contradições internas(cf. Hegel) e paradoxos não podem mais serconsiderados como sintomas de pensamentosdefeituosos — ao contrário, tais sintomas podemser valorizados como manifestações de algumfenômeno extrateórico que seja realmenteapreendido na existência. Desde que os princípiosfilosóficos últimos estão suprateoricamenteestabelecidos, a progressão histórica de umsistema filosófico a outro não fica limitada a uma

Page 18: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 18/198

espécie de refutação teórica. Ninguém abandonaum tal princípio último porque se prove envolvercontradições; os sistemas filosóficos mudam se osistema vital em que se vive sofre uma alteração.

É, no entanto, importante atentar-se para essesprincípios filosóficos últimos, porque eles estãoenvolvidos, de uma forma ou de outra, em todainvestigação das Ciências Culturais.Se olharmos para a "relativização do pensamentoteorético", de um ponto de vista sociológico ehistórico, veremos que ele pode ser levado adiantede muitas maneiras, dependendo daquilo sobreque a entidade se assenta e de que se julga que opensamento dependa; esse papel pode serdesempenhado pela consciência mística, pelareligiosa, ou qualquer outro tipo de gnosticismo, oupor uma esfera empiricamente investigada, sub-seqüentemente, hipostasiada como realidadeúltima, tal como a esfera social ou biológica. Emtodos esses casos, o fator de que se julga que opensamento dependa contrasta-se com ele como"Existencia", e o contraste entre "Pensamento" e"Existência" é resolvido filosóficamente de acordo

com o modelo da Filosofia grega. Na maior partedesses sistemas, a "Existencia" aparece como umtodo, em contraste com o "Pensamento",meramente parcial; e costuma-se acreditar que,para se apossar da realidade, se necessita de umórgão supra-racional (i. e., intuição) ou de umaforma mais elevada de cognição (i. e., oconhecimento dialético, em contraposição aoconhecimento refletivo).

Page 19: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 19/198

Mas essa relativização do pensamento não é umfenômeno exclusivamente moderno. A consciênciamística e religiosa sempre se inclinou a relativizaro pensamento em relação ao êxtase ou ao

conhecimento revelado, e a doutrina da primaziada vontade representa exatamente mais umaforma de resolver esse problema da relativização.Se fosse apenas um caso de auto-relativização, aSociologia do Conhecimento poderia ter emergido;em qualquer época o aspecto característico é,todavia, precisamente o de que um único fatornunca é razão suficiente para que um problemasurja: o que se requer é toda uma constelação detendências mentais e práticas. A nova e distintafeição que nossa época foi obrigada a ter, emacréscimo à auto-relativização do pensamento, emgeral, para tornar possível a Sociologia doConhecimento, foi a da relativização dopensamento numa direção específica, isto é, comvistas à realidade sociológica.

2) Em nossas últimas observações, especificamosum fator mais relevante, cuja análise nos ajudará acompletar a elucidação da constelação total, daqual a Sociologia do Conhecimento emerge. Após aautoliquidação da consciência religiosa medieval(um tipo de consciência que, como vimos, contémelementos transcendendo a pura racionalidade),constatamos, como sistema englobante seguinte, oracionalismo do iluminismo. Este sistema, que foi oúnico a dotar a Razão de autonomia real, foi, comotal, o menos indicado a realizar a relativização dopensamento. Pelo contrário, ele apontava na

Page 20: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 20/198

direção oposta, isto é, em direção a uma absolutaauto-hipostatização da Razão em contraste comtodas as forças irracionais.A essa altura, todavia, um fator completamente

diferente emerge, o qual só podemos explicar emtermos de verdadeiros desenvolvimentos sociais,em vez de em termos do desenvolvimentoimanente, de idéias, isto é, para usar umaexpressão de C. Binkmann,, a constituição daciência oposicional da Sociologia. O humanismo —primeira tentativa de grupos laicos se engajaremem pesquisas, no Ocidente — já representou umaespécie de ciência oposicional; mas esse tipo deciência atingiu o estágio sistemático apenas noperíodo iluminista, que estava por preparar ocenário para a revolução burguesa. Tanto o núcleosistemático quanto o sociológico dessa ciênciaoposicional foi a sua hostilidade para com ateologia e a metafísica — e encontrou sua tarefaprincipal na desintegração da monarquia, com suatradição teocrática residual, e do clero, que era umdos seus suportes. Nesse conflito, encontramospela primeira vez uma certa forma de depreciar

idéias que estavam por se tornar um componenteessencial da nova constelação. Que idéias eramcombatidas é de importância secundária; o queimporta é o fato de vermos, aqui, pela primeiravez, uma espécie de atitude para com idéias que,daquele ponto em diante, se transformaram namarca característica de todas as classesemergentes, e que apenas encontraram suaprimeira consciência e formulação refletiva nomarxismo. É o que se pode chamar de "des-

Page 21: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 21/198

mascaradora mudança de mentalidade". Essa éuma mudança de mentalidade que não visa arefutar, negar ou colocar em dúvida certas idéias,porém, antes de tudo, a desintegrá-las —- mas, de

tal forma, que toda a concepção de mundo de umestrato social se desintegra simultaneamente.Devemos atentar, a essa altura, para a distinçãofenomenológica entre "negar a verdade" de umaidéia e "determinar a função" que ela exerce. Aonegar a verdade de uma idéia, ainda apressuponho como "tese" e, assim, me colocosobre a mesma base teórica (e não mais queteórica) de que a idéia está constituída. Ao colocá-la em dúvida, continuo a raciocinar dentro domesmo padrão categorial que lhe dá origem. Masquando nem mesmo levanto a questão (ou, pelomenos, quando não faço dessa questão o núcleodo meu argumento), acerca da veracidade daquiloque a idéia estatui, mas que o considera apenasnos termos da função extrateórica a que se põe aserviço, então, e somente então, realmente atinjoum "desmascaramento" que, de fato, representanão uma refutação teórica, mas a destruição da

eficácia prática dessas idéias.VMas, dessa destruição extrateórica da eficácia de proposições teóricas podemos também distinguirvários tipos. Assim, podemos apontar outra vez emdireção de uma certa diferença fenomenológica —aquela entre, por exemplo, o "desmascaramento"de uma mentira como tal e o "desmascaramento"sociológico de uma ideologia.Se dissermos que determinada declaração é uma"mentira", isso também não constitui refutação

Page 22: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 22/198

Page 23: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 23/198

de que a primeira visa à personalidade moral deum indivíduo e procura destruí-lo moralmente,revelando-o como um mentiroso, enquanto o des-mascaramento de uma ideologia, na sua forma

pura, ataca, por assim dizer, apenas uma forçasócio-intelectual impessoal. Quandodesmascaramos ideologias, procuramos trazer àluz um processo inconsciente não para aniquilar aexistência moral de pessoas que elaboram certasafirmações, mas para destruir a eficácia social decertas idéias através do desmascaramento dafunção a que servem. Desmascarar mentirassempre foi feito; o desmascaramento deideologias, no sentido acima definido, contudo,parece ser um fenômeno exclusivamente moderno.

Também nesse caso, o fato de que a função sócio-psíquica de uma proposição ou "idéia" sejadesmascarada não significa que ela seja negada ousubmetida a uma dúvida teórica — inclusive não setrata de questão acerca de veracidade oufalsidade. O que acontece, na verdade, é que aproposição é "dissolvida": trata-se, aqui, dacorrosão existencial de uma proposição teórica,

com uma atitude dirigida para comunicaçõesteóricas, que negligencia o problema de suaveracidade ou falsidade, e busca transcender osseus significados teóricos imanentes, em direçãoda existência prátka. A emergência da mentalidadedesmasca-radora (que devemos entender, sequisermos compreender o caráter distintivo denosso tempo) é o segundo fator carente de umainterpretação em termos sociológicos — querepresenta algo radicalmente novo, devido não

Page 24: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 24/198

tanto à direção quanto à forma pela qual aimanência implícita é transcendida. O conflitoprático das classes sociais deu origem a um novotipo de atitude para com idéias que, inicialmente

apenas praticadas com vistas a algumas poucasidéias selecionadas, transformaram-se mais tardeno protótipo de uma nova forma de transcender aimanência teórica, em geral.

3) A emergência da mudança de mentalidadedesmascaradora — a história oculta que aindacarece de uma investigação mais exata — nãobasta, todavia, para explicar a causa de termos,hoje, uma constelação permitindo odesenvolvimento de uma Sociologia doPensamento. Devemos ainda mencionar doisfatores mais importantes que contribuem para

configurar a variante contemporânea dopensamento existencial relativizante.Primeiro, a "relativização", nos termos em que acaracterizamos acima (em termos de"desmascaramento" e "transcendência"), referia-seapenas a certos itens individuais do pensamento —o seu objetivo ainda era parcial. Segundo, nósainda indicamos o terminus do movimento detranscendência, o absoluto em cuja relação certositens são relativizados. E ainda mais, conformedissemos, o pensamento, a imanência do signi-ficado teórico, não podem ser transcendidos amenos que coloquemos algo mais englobante,como um Ser, em contraste com ele — um Sercujas ideias sejam concebidas como "expressão","função", ou "emanação". Mas, nesse caso, ainda

Page 25: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 25/198

carecemos do ponto de referência, da esferaontológica de central importância, a cujo respeitopode o pensamento ser considerado como relativoou dependente. Como dissemos, um tal centro

jamais poderá ser pensado; ele se deslocarásempre para aquela esfera da vida em que opensador que sistematiza, como "ser prático", vivemais intensamente. Em tempos idos, indivíduosque transcendiam o pensamento "viviam" nasrevelações religiosas, nos êxtases etc.; durante oúltimo e contemporâneo estágio da evolução daconsciência, todavia, o traço característico foi ofato do senso de realidade se ter cada vez maisconcentrado na esfera histórica e social e de ser,nessa esfera, o fator econômico considerado comocentral. Desse modo, a teoria atualmente nãotranscendeu em direção à experiência religiosa ouestática; as classes emergentes, particularmente,experimentam o campo histórico e social como omais imediatamente real; e esta é,concomitantemente, a esfera que é contrastadacom idéias como "Ser", ou "Realidade", em relaçãoaos quais as idéias são consideradas como algo

parcial, funcional, como mera "tomada deconsciência" de alguma coisa mais englobante.Esse é um novo tipo de metafísica ontológica, nãoobstante haver recebido sua formulação maisdefinida de um positivismo antimetafísico.,Queuma tal neometafísica tenha sido criada pelopositivismo não nos surpreenderá mais, todavia, senos lembrarmos que, afinal de contas, também opositivismo é uma metafísica, visto que configuraum determinado complexo a partir da totalidade

Page 26: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 26/198

do existente e, como outra metafísica qualquer,hipostasia-o na forma de um absoluto ontológico.Esse complexo hipostasiado para o positivismo éaquele das descobertas da ciência empírica. E está

coerente com o deslocamento do centro vital daexperiência para a esfera sócio-econômica quetenha a Sociologia sido desenvolvida pela correntepositivista. Quando, em seus últimos escritos,Saint-Simon analisou trabalhos literários, formas deGoverno etc., nos termos do processo sócio-econômico, especificou aquela esfera que maistarde veio a desempenhar, cada vez mais, o papeldo pólo "absoluto", em cuja direção a imanênciateórica era transcendida. Quando a Sociologia seconstituiu, dentro da moldura da consciênciapositivista, o terminus ontológico do movimentoque transcendia a imanência teórica estava dado.

4) Mas ainda nos falta um traço indispensável àplena caracterização da constelaçãocontemporânea. Antes que o atual estágio pudesseser atingido, o "desmascaramento", como método,teve que superar a parcialidade que, a princípio,limitava o seu emprego. Apesar do objetivo tersido, desde o seu início, a desintegração daWeltanschauung total de uma classe dirigente, oque realmente se deu foi, apenas, a desintegraçãode certas idéias, cuja natureza "funcional" foimostrada em termos sociológicos; as idéias deDeus, da metafísica etc., foram relativizadas dessamaneira. Esse empreendimento, não obstante,somente poderia atingir seu objetivo final quando anatureza presa a interesses das idéias, a

Page 27: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 27/198

dependência do "pensamento" à "existência",fossem trazidas à luz, não apenas quanto a certasidéias escolhidas da classe dirigente, mas de talforma que a superestrutura (como diria Marx)

ideológica inteira aparecesse como dependente darealidade sociológica. O que se devia fazer erademonstrar a natureza determinada existencial-mente de um sistema inteiro de Weltanschauung,mas do que da idéia deste ou daquele indivíduo.Que não se poderia, nessa conexão, consideraridéias ou crenças isoladamente, mas, em vezdisso, compreendê-las como partes mutuamenteinterdependentes de uma totalidade sistemática,foi a lição que aprendemos do historicismomoderno. Questões de detalhe, tais como a queconcerne à exata contribuição de uma ou outraépoca, ou escola, à emergência dessa visãototalizante da ideologia (ex.: em que profundidadeestá o historicismo germinalmente presente noIluminismo, e como a mentalidade românticatornou possível a visão global de totalidadeshistóricas), não precisam ser investigadas aqui.

Temos que mencionar, no entanto, um dos mais

importantes representantes do pensamento históri-co, e de quem Marx aproveitou o conceito detotalidade histórica que lhe permitiu colocar oproblema ideológico acima referido — ou seja,Hegel. Inclusive no seu pensamento, encontramoso tema da auto-relativização da teoria, emborapeculiarmente modificada. Assim, Hegel distingueo pensamento "refletivo" do pensamento"filosófico"; desvaloriza a esfera na qual o princípioda contradição é válido enquanto comparado ao

Page 28: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 28/198

verdadeiro movimento da idéia; realça a doutrinada "dialética da Idéia", segundo a qual as crençassubjetivas dos homens são meros instrumentospara auxiliar o tráfego de desenvolvimentos reais.

Em todos esses casos, se a palavra "ideologia”fosse acrescentada, encontraríamos a mesmaconcepção fundamental que subjaz à teoriamarxista. Tanto em Hegel quanto em Marx, vamosencontrar, depreciada, a mera "crença subjetiva",conforme Hegel, ou "ideologia", conforme aterminologia marxista; essa esfera subjetiva éprivada de sua autonomia em favor de algumarealidade básica. É uma diferença relativamenteinsignificante a existente entre Hegel, quepermanece dentro da tradição idealista, e paraquem a realidade básica é mental — e Marx, quecompartilha a colocação positivista da realidade, edefine essa realidade básica em termos derealidade econômica e social. Apenas porque essasimilaridade estrutural existe, a categoria de"totalidade" pode desempenhar um papel crucialem ambos os autores: as crenças das pessoasreais não dependem da existência social dessas

mesmas pessoas, de modo fragmentário, mas é atotalidade do seu mundo mental, a superestruturaglobal, que é uma função da sua existência social.É apenas em decorrência dessa aspiração à"totalidade" que a tentativa de transcender ateoria com o subsídio da técnica de"desmascaramento" assume uma nova formaespecífica, claramente distinta de todas as versõesanteriores. Como resultado disso, vemos um novotipo de relativização, o da invalidação de idéias.

Page 29: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 29/198

Quanto a esse ponto, podemos relativizar idéias,não por negá-las uma a uma, não por as colocarem dúvida, não por mostrá-las como reflexos desseou daquele interesse, mas demonstrando que elas

fazem parte de um sistema ou, mais radicalmente,de uma totalidade de Weltanschaung que, comoum todo, é ligada a, e determinada por, um estágiodo desenvolvimento da realidade social. A partirdesse ponto, universo em confronto com universos,

já não mais se trata de proposições individuais emoposição a proposições individuais.Como vimos, o problema de uma Sociologia doConhecimento surgiu como um resultado dainteração de quatro fatores: 1) a auto-relativizaçãodo pensamento e do conhecimento; 2) oaparecimento de uma nova forma de relativizaçãointroduzida pela mudança de mentalidade"desmascaradora"; 3) a emergência de um novosistema de referência, o da esfera social, a respeitodo qual o pensamento poderia ser concebido comorelativo; 4) a aspiração de tornar essa relativizaçãototal, relacionando não um pensamento ou idéia,mas todo um sistema de idéias a uma realidade

social subjacente.Quando esse estágio é alcançado, a ênfase originalque acompanha a emergência desses novospadrões de pensamento é substituída, e diversasformas superficiais de expressão, originalmenteassociadas com a nova abordagem, somem por simesmas. Desse modo, a ênfase no"desmascaramento" para determinar a funçãosocial das idéias pode, cada vez mais, sereliminada. À medida que nossa teoria adquire

Page 30: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 30/198

maior escopo, adquirimos cada vez menosinteresse em minimizar idéias individuais,estigmatizando-as de falsificações, enganos,mistificações e tipos de "mentiras"; estando cada

vez mais cientes do fato de que todo pensamentode um grupo social é determinado pela suaexistência, encontramos cada vez menos espaçopara o exercício do "desmascaramento". O"desmascaramento" arrosta um processo desublimação — que o transforma em mera operaçãode determinar o papel funcional de qualquerpensamento. O "desmascaramento" não consistemais em coisas tais como descobrir o "crime dopadre" e congêneres — acostuma-se, inclusive, irum pouco mais longe, excluindo-se, em muitos ca-sos, o engano consciente; o objetivo da operaçãocrítica é alcançado quando se especifica que olocus da idéia a ser combatida pertence a umsistema teórico "obsoleto" e, ainda mais, a umtodo existencial que a evolução deixou para trás.A segunda "alteração" que ocorre nesse estágioconsiste num alargamento natural da aspiração àtotalidade. Uma vez familiarizados com a

concepção de que as ideologias dos nossosoponentes constituem, afinal de contas, a funçãode suas posições no mundo, não podemos deixarde concluir que nossas idéias são, também,funções de uma posição social. E, mesmo, se nosrecusarmos a admiti-lo, o oponente nos obrigará aencarar aquele fato — pois ele, eventualmente,fará uso também do método de análise ideológica,e o aplicará ao seu interlocutor. É esta,precisamente, a característica principal da

Page 31: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 31/198

presente situação: o conceito de "ideologia" foiinicialmente derivado da "ciência oposicional", masnão se manteve como privilégio das classesemergentes. Os seus oponentes também

empregam essa técnica de pensamento —primeiramente, a burguesia, que foi bem sucedidae está consolidando a sua posição. Hoje, não émais privilégio dos pensadores socialistas observara determinação social das idéias, que setransformou em parte integrante da consciênciacontemporânea como um todo, um novo tipo deinterpretação histórica que deve ser adicionada àsanteriores. Nessa conexão, o aspecto principal quepede atenção é o fato de que novos métodos etécnicas de pensamento que vão surgindo nasCiências Culturais têm suas origens na realidadesocial, mas posteriormente iniciam uma auto-evolução, eventualmente perdendo contato comseu lugar social de origem. A essa altura, temosque observar a maneira pela qual o conteúdo e afunção das novas técnicas se modificam quandoperdem seu conteúdo social original. Já vimos doisexemplos disso: primeiro, a modificação da atitude

de "desmascaramento", isto é, o fato de que certoscomplexos teóricos dados são superadosindiretamente por referência a uma visão sinópticado processo histórico, em vez de pelo"desmascaramento" de itens isolados; e, emsegundo lugar, o fato de que a escolha da esferasocial como um sistema de referência foi pelaprimeira vez realizada por uma "ciênciaoposicional" e, então, tornou-se, gradualmente,

Page 32: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 32/198

mais ou menos uma posse comum de todos oscampos.Podemos mencionar um terceiro aspecto daexpansão natural e da evolução das idéias, isto é,

o fato de que a tendência fundamental para aauto-relativização (característica distintiva damentalidade moderna) não pode estacionar emqualquer momento dado. Assegurado que idéias ecomplexos teóricos são relativos ao Ser — é aindapossível conceber este Ser não só comoessencialmente imutável, estático, mas tambémcomo dinâmico. Mas é característico dopensamento moderno considerar seu último pontode referência — neste caso, o Ser — si-multaneamente como algo "dinâmico" e "vindo aser". Não somente idéias, mas também o "Ser", doqual elas parecem depender, devem serreconhecidos como algo dinâmico — tanto maisque, para aqueles que têm discernimento, os seuspróprios pontos de vista sofrem, também, umaconstante modificação. Isso levanta a necessidadede satisfazer o anseio de totalidade de um modomais completo. Não basta compreender que as

"idéias" de uma classe antagônica são ditadas pelasua "existência", não basta reconhecer que nossaspróprias idéias sejam ditadas pela nossa própriaexistência; o que temos de entender é que tantonossas "idéias" quanto nossa "existência" consti-tuem componentes de um processo evolutivototalizante, no qual estamos comprometidos. Esseprocesso global, então, é postulado como o nossoderradeiro "absoluto" (embora imutável eevolutivo); ideias conservadoras e progressistas

Page 33: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 33/198

(para usar esses rótulos ultra-simplificados)aparecem como derivados desse processo. Emnossa opinião, a presente constelação deproblemas implica esse radical encaminhamento

das idéias às suas últimas conseqüências; e asdificuldades envolvidas nesse conjunto de teseslevam à emergência dos problemas da Sociologiado Conhecimento.

Temos de retroagir ao ponto em que os problemasoriundos da realidade social buscam uma soluçãosistemática e rever as possíveis soluções viáveisnos vários estágios da evolução da consciência.

2.Posições Teóricas

Até aqui, delineamos a constelação daquelesfatores que precisaram ser dados em conjunto, demodo que o problema da Sociologia doConhecimento pudesse chegar a emergir. Mesmoainda nesta investigação preliminar nossaabordagem tem sido, principalmente, sociológica:mostramos como uma corrente oposicional deopinião levou a questões relativas à determinaçãosociológica dos modos de pensamento. Tendoatravessado dois estágios — sendo o primeiro, oupreparatório, o pensamento da burguesiaemergente, o segundo o da classe oposicionalseguinte, o proletariado — essas idéias adquiriram,entrementes, tal alcance, tal urgência, que

ninguém que queira pensar em categorias de umaimportância genuinamente global pode permitir-se

Page 34: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 34/198

ignorá-las como componentes do pensamento con-temporâneo.

Se olharmos a história como um rio dividido emvários braços, e concebermos a história dopensamento como também separada em correntesvariadas, por alguma necessidade históricainevitável (e qualquer estudo mais minucioso dahistória não pode senão confirmar semelhanteconcepção), neste caso podemos facilmente serlevados a assumir a posição extrema de que ahistória das idéias consiste em seqüências depensamentos completamente isoladas, sem a maisleve intercomunicação, de tal maneira que, porexemplo, pensamento conservador e progressistateriam, cada um deles, encerrado em si própriouma tradição independente de interpretação do

mundo. Aqueles que pensam dessa maneira estãoinclinados a adotar ou uma solução de extremadireita ou uma de extrema esquerda, para oproblema de interpretação da história; levando emconsideração apenas a rota histórica atravessadapor seu próprio grupo, e pelas pretensões por estelevantadas, eles são totalmente incapazes de fazer

justiça à função e à significação dos modos de pen-sar de outros grupos. Agora não pode haver dúvidade que as teorias, métodos e atitudes históricos ousociológicos se formam sempre em estreitacorrelação com a posição social específica, e comos interesses intelectuais, de uma classe ou grupo

social. Contudo, precisa-se admitir que, após teruma classe descoberto algum fato histórico ousociológico (que está colocado nesta linha de visão

Page 35: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 35/198

devido à sua posição específica), todos os outrosgrupos, quaisquer que sejam seus interesses, nãosó podem levar em consideração cada fato comodevem, de algum modo, incorporar cada fato ao

seu sistema de interpretação do mundo.Uma vez isto admitido, devemos concluir que todosos grupos, ainda que entregues a suas tradiçõesseparadas, procuram, contudo, desenvolver umaimagem globalizante do mundo, não ignorandoqualquer dos fatos trazidos à luz por algum deles.Por isso, a pergunta que enfrenta uma concretaSociologia do Conhecimento é a seguinte: quecategorias, que concepções sistemáticas sãousadas pelos diferentes grupos em um estágiodado, na avaliação de um mesmo fato descobertono curso das operações práticas? E quais são astensões que aparecém na tentativa de adaptaresses novos fatos àquelas categorias e concepçõessistemáticas? Podemos afirmar isto mais simples-mente, se deixarmos de lado o papel daspressuposições sistemáticas a priori no processodo pensamento; o que perdura, então, é o fato deque correntes intelectuais diversas não se

desenvolvem isoladamente, mas mutuamente seafetam e se enriquecem; e, no entanto, não sefundem num sistema comum, mas tentamconsiderar a totalidade dos fatos descobertos, par-tindo de diferentes axiomas gerais.Essa visão da estrutura histórico-sociológica doprocesso intelectual induz à conclusão de que, emcada momento, existem vários "pontos de vista"sistemáticos e filosóficos diferentes, dos quais sepode experimentar a consideração de um novo

Page 36: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 36/198

fato emergente por uma nova faceta da realidadecognitiva.Com efeito, nenhum de nós se coloca num vácuode desincorporadas verdades supra-temporais;

todos nós confrontamos a "realidade" comproblemas já estruturados e sistematizaçõessugeridas, e a obtenção de um novo conhecimentoconsiste em incorporar novos fatos à velhaarmação de definições e categorias, determinandoseu lugar entre elas. Não queremos negar que"classe" ou "idéia" são realidades objetivas;todavia, elas carecem do caráter de "fatospersistentes", atribuído às coisas (também umtanto erroneamente, ao que parece) em virtude doque nos seriam apresentadas inquestionavelmenteda forma que "são". Que os conceitos mencionados("classe", "idéia") são objetivamente reais, seprova pelo fato de invariavelmente resistirem àstentativas de que deles se duvida, e de imporemao espectador uma espécie de padrão gestaltiano.Mas a pergunta sobre o que eles são serárespondida de modo diferente, dependendo dospontos de vista sistemáticos de que são exa-

minados. É esta a razão por que é tão fascinanteobservar como a descoberta de determinados fatos(tais como "classe", "ideologia") se relaciona comcertos compromissos sistemáticos e sociais; como,por exemplo, o conceito de "classe" diz essen-cialmente respeito a um pensamento de oposição,enquanto certos conceitos "orgânicos", como"tradição" ou "protocolo", têm uma afinidade como pensamento conservador. O que isso sugere éque certos compromissos, por assim dizer, nos

Page 37: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 37/198

tornam sensíveis a certas realidades do passado,do presente ou do futuro. Entretanto, uma vez queos fatos se tenham tornado visíveis, eles sãotambém admitidos pelas outras correntes, na

perspectiva específica em que lhes surgiram. E apergunta mais provocante talvez seja aquela sobreo meio pelo qual os preconceitos sistemáticosdestes outros grupos modificam, no seupensamento, a realidade descoberta por algumaoutra pessoa.

Tudo isso significa, naturalmente, que mesmo asdescobertas científicas especializadas estãofortemente ligadas a certas pressuposiçõesfilosóficas e sistemáticas, e somente se podemdestacar destas últimas no que diz respeito aalguns dos seus aspectos parciais. Quando novos"dados" estão sendo interpretados, oreconhecimento de novos "fatos" depende de quea criação do sistema tenda a um sentido filosóficoque ocorre prevalecer. Como vimos acima, não sepode estabelecer, de uma vez por todas, de queposições filosóficas faz uso o pensamentoconservador e o progressista, respectivamente —

estas correlações também são dinâmicas pornatureza. É preciso investigar-se histórica esociologicamente há quanto tempo, e até queponto, o positivismo é um meiocaracteristicamente "burguês" de pensamento;que nuança de positivismo vem a ser uma basepara o pensamento proletário; em que opositivismo de uma burguesia prosperamenteconsolidada difere do positivismo e domaterialismo revolucionários; de quanto do

Page 38: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 38/198

pensamento "dinâmico" se irão apropriar os gruposrespectivamente revolucionário e conservador, eassim por diante.Não tentaremos investigar a gênese histórico-

social dos vários pontos de vista de que arealidade, atualmente, está sendo interpretada.Nosso plano é, de preferência, escolherarbitrariamente um corte transversal dos pontosde vista contemporâneos e verificar que diferentesprincípios fundamentais estão na base a partir daqual se pode tentar a análise dos novos problemasque emergem presentemente. Pois parece termosatingido o estágio em que o problema de umaSociologia do Conhecimento, que pertenceu atéagora ao contexto do pensamento progressista, sereconhece como uma "realidade persistente" ecomo tal está sendo manejada também de todosos outros pontos de vista. Havendo delineado aconstelação que tornou possível a emersão doproblema, temos agora de encarar a questãoadicional: quais são as posições sistemáticaspreexistentes no pensamento dos variados gruposcom que este problema se depara, no momento

em que ele alcance aquele status de "realidadepersistente" que exige, de cada grupo, dar-lheatenção? Que filosofias contemporâneas, que"pontos de vista" permitem trabalho sistemáticosobre esse problema, e qual é a característicaespecífica desses pontos de vista?Entre os mais importantes "pontos de vista"filosófico-sistemáticos, de que se pode tentar aelaboração de uma Sociologia do Conhecimento,parecem incluir-se, atualmente, os seguintes: a)

Page 39: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 39/198

positivismo, b ) apriorismo formal, c) apriorismomaterial (i.e., a escola fenomenológica moderna),d ) historicismo.Para falar mais exatamente, apenas o positivismo

tem dado, até agora, uma Sociologia doConhecimento amplamente desenvolvida, e istoem duas variantes — sendo uma a chamada teoriamaterialista da história, que se relaciona com anuança proletária do positivismo, e a outra a teoria"positivisto-burguesa", desenvolvida por Durkheim,Lévy-Bruhl, Jerusalém etc. O apriorismo formalcontribuiu meramente com uma aproximaçãoinicial ao problema de uma Sociologia do Conhe-cimento, sem se ocupar de investigações históricasminuciosas. Pode-se pensar nessa conexão dasvárias nuanças do neokantismo, que obtevereconhecimento, em parte entre os burgueses, emparte entre os sociais-democratas.A discussão mais pormenorizada se reservará paraa moderna escola fenomenológica, do apriorismomaterial, tanto que, a esta altura, omitiremosqualquer das caracterizações da mesma. Umadiscussão separada se dedicará também ao ponto

de vista filosófico do historicismo, eminentementerelevante para o problema da Sociologia doConhecimento. Entre os representantes desteponto de vista, podemos citar Troeltsch e o mar-xista de esquerda ortodoxa G. Lukács.É o debate entre as duas últimas escolasmencionadas (fenomenologia e historicismo) queconsideramos decisivo. Antes, porém, de acolheressas duas posições, faremos umas poucasobservações sobre as duas escolas primeiro

Page 40: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 40/198

mencionadas. Nossa própria concepção seráapresentada como seção final deste ensaio.a ) O positivismo, meramente uma filosofia da não-filosofia, trata o problema da Sociologia do

Conhecimento como pertencente a uma disciplinacientífica especializada. É, no entanto, uma escolaessencialmente iludida, não só porque hiposta-siaum conceito particular do empirismo, como porquedefende que o conhecimento humano pode sercompleto sem a metafísica e a ontologia. Alémdisso, esses dois princípios são mutuamentecontraditórios: uma doutrina que hipostasia certosmétodos paradigmáticos, e as esferas de realidadea eles correspondentes como "absolutamente"válidas, se torna desse modo, ela própria, umametafísica — não obstante particularmentelimitada. Aplicada na prática, a doutrina positivistatem por conseqüência tomarem os cientistas, cadaum, e em cada campo particular de pesquisa, osubstrato "material", ou o "psíquico", como sendo arealidade "última", para a qual todos os outrosfenômenos (e.g., intelectuais, artísticos e outros,de ordem cultural) podem localizar-se no passado.

Uma variedade de positivismo — aquela que tomaa esfera econômica para exprimir a realidadeúltima — é particularmente importante para aSociologia do Conhecimento. Os partidários dessateoria, especialmente aqueles que representam o"marxismo vulgar", sustentam, primeiro, que nadaexiste senão a matéria e, segundo, que a singularfatualidade persistente da matéria se revela, naesfera social, pelas relações econômicas; é nestes

Page 41: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 41/198

termos, então, que se deveria responder pelasrealidades culturais.

Como resposta às decisivas experiências do nossotempo, todas as variantes do positivismo foramfundamentalmente genuínas: de nosso ponto devista, elas representam uma reflexão honestasobre o fato de o centro da nossa experiênciahaver-se deslocado da esfera espiritual e religiosapara a sócio-econômica. Foi o capitalismo, com aintensificação das lutas de classe por ele causadas,o responsável por esta mudança dos centros deexperiência para esses campos, bem como pelofato de o pensamento científico e tecnológicotornar-se o único protótipo reconhecido de todo opensamento. Não é, de modo algum,surpreendente que uma filosofia, procurando

fornecer uma interpretação do mundo com estetipo de experiência e de pensamento sendo seuquadro de referência básico, fundamentou suaepistemologia exclusivamente na Ciência Naturale, em sua ontologia, atribuiu realidade apenas àsesferas que experimentou como reais — recusandointeiramente o reconhecimento teórico daquelasesferas que, em sua experiência prática,apareceram somente na periferia. Esse defeito,essa unilateralidade, seria facilmente corrigido;tudo o que se faria necessário seria umalargamento do horizonte, que permitiria umatransformação da mera anti-metafísica na

compreensão positiva de que todo pensamentohumano é de tal modo estruturado que, emalguma parte, tem de assumir o Ser absoluto — e,

Page 42: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 42/198

conseqüentemente, tem de pressupor uma ououtra esfera como absoluta. Mais grave, porém, éoutro defeito do positivismo, isto é, o de que suaspressuposições fenomenológicas inconscientes são

falsas, de modo que seus métodos sãocompletamente inadequados, em especial ao tratarda realidade artístico-intelecto-espiritual.As descrições positivistas da realidade sãofenomenologicamente falsas, porque seus adeptos— como naturalistas e psicólogos — são cegosdiante do fato de que o pretendido "significado"' éespecífico, sui generis, incapaz de se dissolver ematos psíquicos. São cegos para o fato de que apercepção e o conhecimento dos objetossignificativos envolvem, como tal, interpretação eentendimento; de que os problemas surgidos nestaconexão não podem ser resolvidos pelo monismocientífico; e, finalmente, de que seu naturalismo osimpede de ver, de maneira correta, as relaçõesentre a realidade e o significado.Apesar dessas observações, devemos reconhecerque foi o positivismo o primeiro a descobrir earticular o problema de uma Sociologia do

Conhecimento. E, ainda que devamos consideraros métodos e premissas do positivismo como nãomais suficientes, porque muito estreitos, temosque admitir que esta doutrina contêm dois pontosque revelam experiência autêntica e, porconseguinte, até agora permanecem válidos,mesmo para nós. Um deles é que o positivismodeu, pela primeira vez, uma formulação filosóficado fato de ter o homem contemporâneo mudadoseu centro de experiência para a esfera

Page 43: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 43/198

econômico-social — esta é a orientação "mundana"do positivismo; o outro é seu respeito pelarealidade empírica, que fará a metafísica, sob aforma de pura especulação, impossível para

sempre. Insistimos, pois, que, substantivamente, opositivismo executou a reviravolta essencial emdireção a um caminho de pensamento apropriadoà situação contemporânea; sistemática emetodologicamente, contudo, não ultrapassou umnível relativamente primitivo, desde que, porexemplo, não reconhece o fato de que estaorientação "mundana" envolvia também umahipostasia, uma metafísica.b ) A filosofia da validade formal representa umsegundo ponto de vista, do qual se poderia tentarerigir uma Sociologia do Conhecimento. Tudo o queesta escola tem conseguido, porém, sãomeramente uns poucos princípios de uma teoriageral de Sociologia da Cultura; e não é de admirar,em nossa opinião, que este tipo de filosofia nãotenha inspirado nenhuma pesquisa sociológicaconcreta. Pois a filosofia da validade deprecia oSer, como se oposto ao Pensamento, em amplitude

equivalente a uma declaração de completodesinteresse pelo Ser. Essa escola pretende,primordialmente, compreender o pensamento emtermos de pensamento, isto é, tanto de certo modoimanente como para dar uma justificação teóricadessa posição "imanentista". Na verdade, sob esteponto de vista imanente, a diferençafenomenológica entre "ser" e "significação", para aqual a atitude positivista é necessariamente cega,torna-se facilmente discernível, e estaremos

Page 44: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 44/198

prontos a fazer justiça à diferença essencial entreum ato de experiência e a significação por estepretendida. No entanto, se não se vai além desseponto de vista imanente (como no caso da filosofia

da validade), tal dualismo será hipostasiado comoalguma coisa absoluta, e o segundo termo darelação — "significação" — receberáinevitavelmente uma exagerada ênfase metafísica.A filosofia da validade se interessa, sobretudo, porsalvar a "validade" das redes da gênese histórica esociológica e preservá-la na sublimidade supra-temporal. Mas isso provoca uma ruptura nosistema: tanto a esfera da "validade" teóricaquanto a dos outros valores são hipostasiadascomo absolutos supra-temporais, enquanto osubstrato material em que os mesmos atualizam éabandonado ao anárquico fluxo do Ser.Esta filosofia continuou auto-consistente por tãolongo tempo quanto teve coragem bastante paraafirmar — como fez a filosofia do Iluminismo — suafé inabalável na Razão e, seguindo o exemplo dasteorias de "lei natural", para declarar uma posiçãoespecífica, com a derivação correspondente a

"validade" tida como a única totalmente "correta".(É claro que, agindo assim, a gente contemplanecessariamente do alto o fato de se estarconferindo validade "eterna" a um estágiotransitório da história do pensamento.) Mas aconsistência interna desse tipo de filosofia seperde tão logo que, sob a impressão da va-riabilidade histórica do pensamento, todas asproposições materiais são apresentadas comopuramente relativas e existencialmente

Page 45: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 45/198

determinadas, embora a autonomia e a supra-temporalidade sejam sustentadas em defesa doselementos formais do pensamento, tais como ascategorias ou — nas mais novas variantes desta

filosofia — os valores formais. Sociologicamente, oestágio anterior — a asserção da verdade exclusivade uma posição material — corresponde àautoconfiança da nascente ordem burguesa, queteve inquebrantável fé em certos dogmas. Quando,porém, mais tarde, a burguesia foi obrigada aadotar uma posição defensiva, a ordem socialburguesa passou a ser uma mera "democraciaformal", i.e., contentou-se com afirmar o princípioda completa liberdade de opinião e recusou-se afazer uma escolha entre as várias opiniões. Talatitude corresponde à pressuposição filosófica deque só pode haver uma verdade, e de que estaverdade só pode ser expressa de uma forma;todavia, a tarefa de descobri-la deve serabandonada à livre discussão. (Na medida em queeste processo de transição dentro da própriademocracia burguesa é afetado, ele já foi descritopela análise histórica.)

Filosoficamente, o defeito desta posição consisteem sua inaptidão para responder, de maneiraorgânica, pela unidade do ser e da significação —problema que inevitavelmente aparece dentro dequalquer sistema. Além disso, adotar esta posiçãosignifica apresentar-se filosoficamenteaproblemático, e excluir do alcance da pesquisahistórico-social precisamente as questões maisessenciais de uma Sociologia do Conhecimento,tais como o problema da transmutação de

Page 46: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 46/198

categorias e das mudanças na hierarquia dasesferas de valor, como também o que indaga se apresente suposição de "esferas de valor" isoladas efechadas não corresponde simplesmente a uma

hipostasia de um estado de coisas transitório eespecificamente moderno. O único caminho emque os adeptos desta posição filosófica poderiamtentar resolver problemas de Sociologia da Cultura,e particularmente do pensamento, consiste emexaminar o substrato material em que as esferasde valor formais são atualizadas.Esta abordagem, contudo, não poderia vir a serfrutífera. Pois, se a separação entre "forma" e"matéria" se fizer tão aguda e absoluta assim, amatéria é, por assim dizer, abandonada à suaprópria sorte. Eis também por que esta escola nãopoderia produzir nenhuma filosofia material dahistória. Além do mais, se a "forma" é tãoagudamente separada da atualização material,todos os produtos culturais das épocas passadasdevem ser observados, inevitavelmente, emtermos de uma "forma de validade"contemporânea. Desde que ela é somente

"matéria" que muda, há somente uma "arte", uma"religião" etc., e ela, no essencial, é sempre amesma que hoje. Essa escola negligencia o fatosegundo o qual — para usar a sua terminologia —a "forma de validade", atualizada numdeterminado tempo, é influenciada pelo substratomaterial em mudança, de tal modo que umatransformação na esfera material provoca umatransformação na esfera da "validade" formal. A"arte" não foi sempre "arte" na acepção definida

Page 47: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 47/198

pela escola de l'art pour l'art, como se é tentado aadmitir; e, semelhantemente, dependendo docontexto existencial em que emerge, uma idéianem sempre representa "pensamento" e

"cognição" no mesmo sentido em que ocorre como pensamento matemático e científico, como afilosofia da validade o afirmaria, tomandoinconscientemente a "forma de validade" dopensamento científico como se fosse a de todo opensamento como tal.

3. A Sociologia do Conhecimento Vista daPosição da Fenomenologia Moderna (MaxScheler)

Depois deste breve levantamento dascontribuições do positivismo e da filosofia da

validade formal (neokantismo) ao problema daSociologia do Conhecimento, voltamo-nos agorapara um confronto entre duas outras escolas — afenomenologia moderna e o historicismo — quenos permitirá pela primeira vez defrontarmo-noseficazmente com os problemas decisivos que estãoenvolvidos em prover uma base sólida para umaSociologia do Conhecimento e da Cognição.Em nossa comparação das duas escolas,adotaremos a posição do historicismo na formapela qual cremos ser uma doutrina válida, eanalisaremos a abordagem fenomenológica apartir desse enfoque. Da mesma maneira que hádiversas variantes de historicismo, é possívelderivar muitas conclusões diferentes daspremissas fenomenológicas; contudo, na

Page 48: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 48/198

Page 49: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 49/198

católicos de "atemporalidade", "eternidade", comnovos argumentos. Traçando-se uma linhaextremamente definida entre o conhecimento"fatual" e o "essencial", fenomenologia oferece

evidência concreta que justifica o dualismo católicodo eterno e do temporal — e prepara o terrenopara a construção de uma metafísica não-formal,intuicionista.A fenomenologia assevera que é possível seaprender supratemporalmente verdades válidasem "intuição essencial" (Wesensschau). Contudo,de fato observam-se divergências consideráveisentre as intuições alcançadas por diferentes mem-bros da escola. Essas divergências podem serexplicadas pelo fato de que as intuições daessência são sempre dependentes do passadohistórico do sujeito. Dentre as análisesfenomenológicas, as mais impressionantes sãoaquelas baseadas nos valores católicos tradicionais— nossa civilização, afinal de contas, é largamenteum produto dessa tradição. Deve-se enfatizar, noque diz respeito a Scheler, que êle já se dissocioude um certo número de dogmas. Todavia, isso é

menos importante no presente contexto do que ofato de que ainda está profundamente ligado aotipo de pensamento formal exibido pelocatolicismo.O principal ponto acerca de Scheler e de seu novoensaio é que ele tem uma afinidade muito maiorcom a realidade atual, e leva muito mais a sério aobrigação de contar com os novosdesenvolvimentos culturais, do que a maioriadaqueles que interpretam o mundo em termos da

Page 50: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 50/198

tradição católica. Como filósofo de atitude mentalsensível e inquieta, impaciente com limitações eformalismo rígido, não se satisfaz com uma linhatraçada de uma vez por todas entre a eternidade e

a temporalidade; sente-se impelido a explicar osnovos fatores culturais emergentes no mundo. Aafinidade com o presente, implantada emmodalidades de pensamento e experiênciaconservadores, produz tensões extravagantes naestrutura de seus argumentos, de tal maneira queo leitor teme constantemente a explosão doedifício inteiro ante seus olhos, com as pedras daconstrução voando em todas as direções. Já queestamos dando ênfase precisamente aosproblemas complexos inerentes à interação devárias posições, interessamo-nos primordialmentena maneira pela qual um representante modernode uma fase intelectual e emocional mais antigavem dominar os novos fatores da realidade cultural— uma configuração de real significação simbólica.Pois a riqueza essencial do processo do mundohistórico-social brota largamente da possibilidadede "anacronismos" tais como este — tentativas de

interpretar fatores do mundo atual na base depremissas que pertencem a um estágio de pen-samento passado. Há, contudo, uma tendênciaparticular no tratamento do problema por Scheler,porque ele não só procura incorporar novos fatoresa um velho quadro de referência como até tentaapresentar a posição de "historicismo" e"sociologismo" em termos de uma filosofia deatemporalidade.

Page 51: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 51/198

Deliberadamente limitaremos a nossa discussão aesse lado estrutural da teoria de Scheler, eselecionaremos dentre a riqueza desnorteante de,seus insights apenas os pontos que são relevantes

ao nosso problema de diversas "posições"intelectuais. Não estamos interessados emdetectar erros ou inexatidões, mas somente emtraçar a linha da determinação histórica que fezesse tipo de pensamento fatalmente o que é.A principal característica do ensaio de Scheler é —como acima foi declarado — a grande extensãoabrangida por sua argumentação: ele tentaanalisar o sociológico do ponto de vista daatemporalidade, o dinâmico a partir de um sistemaestático. Encontramos na sua teoria todos ospontos enumerados na nossa descrição da"constelação" subjacente à emergência de umaSociologia do Conhecimento: a) pensamentoconcebido como sendo relativo ao ser; b )realidade social como o sistema de referência emrelação ao qual o pensamento é consideradorelativo; c) uma visão global da totalidadehistórica. Mais ainda, poderemos também observar

em Scheler a "modificação" de uma tendênciaoriginal de "desmascarar" para uma Sociologiaimparcial; isto não é surpreendente, uma vez queesta mudança está mais ainda na linha de umaatitude conservadora do que oposicional. Aquestão que queremos examinar é em que medidauma abordagem estática sistematizante pode fazer

justiça ao dinâmico e sociológico — isto é, se umafilosofia "atemporal" pode tratar adequadamente

Page 52: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 52/198

esses problemas que surgem da situaçãointelectual presente.Scheler, de acordo com o qual a Sociologia doConhecimento tem até hoje sido tratada somente

de um ponto de vista positivista, propõe abordaresse problema de outro ponto de vista, "o qualrejeita as doutrinas epistemológicas do positivismoe as conclusões delas deduzidas, e vê noconhecimento metafísico tanto um postulado"eterno" da Razão quanto uma possibilidadeprática" (Prefácio, p. vi). Para ele a Sociologia doConhecimento é parte da Sociologia Cultural quepor sua vez é parte da Sociologia — esta sendodividida em Sociologia "Real" e "Cultural". Aprimeira examina fatores "reais" dos processoshistóricos, especialmente "impulsos", tais comosexual, a fome e o desejo de poder, enquanto asegunda lida com fatores "culturais". A Sociologiacomo um todo, não obstante, tem a tarefa de"descobrir os tipos e as leis funcionais dainteração" desses fatores, e especialmente deestabelecer uma "lei de sucessão" de tais tipos deinteração. Desse modo temos aqui, como em todas

as Sociologías da Cultura, a distinção entre "infra-estrutura" e "superestrutura", mas com a diferençaespecífica (que caracteriza a posição de Scheler)de que a ) a "infra-estrutura" consiste em fatorespsicológicos (impulsos) antes do que em fatoressócio-econômicos, e b ) há uma linha bastante de-finida traçada entre as duas esferas, em contrastecom a variante neo-hegeliana do marxismo.Segundo esta última visão, a relação da "infra-estrutura" para a "superestrutura" é aquela do

Page 53: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 53/198

todo com a parte; ambos formam uma unidadeinseparável, já que uma certa configuração "ideal"pode apenas emergir em conjunção com uma certaconfiguração "real" e vice-versa; uma certa

"configuração real" também só é possível quandofatores "ideais" mostram uma determinadaconfiguração. Scheler, contudo, não é capaz deconstruir uma teoria histórica desse tipo, já quebaseia sua "Sociologia Cultural" sobre uma teoriados impulsos e da mente do homem em geral. Essateoria busca determinar as característicasatemporais do homem e explicar qualquer situaçãohistórica concreta como um complexo de taiscaracterísticas. Também deixa de estabelecer umaafinidade mais estreita com o historicismo quandoexamina duma maneira "generalizante" ainteração dos fatores "reais" e "culturais" —tomando isso para mostrar uma lei geral de su-cessão, em vez de uma seqüência de fasestemporais concretas, singulares. Embora Schelerse esforce muito para formular uma "lei" dapossível gênese dinâmica das coisas inseridasnuma ordem de "eficácia temporal" (p. 8), é claro

que tais "leis" só podem resultar da aplicação dascategorias generalizantes da ciência natural. EstaSociologia é apenas consistente quando tenta — àmaneira da Ciência Natural — estabelecer regras,tipos e leis do processo social.Nesta altura, gostaríamos de chamar a atençãopara a diferença fundamental entre os tipos deSociologia que são possíveis hoje. Uma continua atradição da Ciência Natural com seu objetivo deestabelecer leis gerais (a Sociologia ocidental é

Page 54: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 54/198

deste tipo); a outra se prende à tradição daFilosofia da História (Troeltsch, Max Weber). Para oprimeiro tipo, todo individuo histórico é meramenteum complexo de propriedades gerais,

imutavelmente recorrentes, e o "resto" que não éreduzível a essas propriedades é negligenciado. Osegundo tipo, por outro lado, caminha na direçãooposta. Considera as individualidades históricas,compreendendo não só personalidades, masqualquer constelação histórica na suasingularidade como o objetivo apropriado parainvestigação. O indivíduo, de acordo com essa con-cepção, não pode ser determinado por umacombinação de características desenvolvidasabstratamente, imutáveis; ao contrário, ohistoriador deve e pode penetrar o cerne psíquicoe mental de um indivíduo singular diretamente,sem mediação de propriedades gerais, e depoispassar a determinar todas as características efatores parciais individualmente. É assim queprocedemos à apreensão da fisionomia de umaface humana; não combinamos característicasgerais (olhos, boca etc.), pois a coisa mais

importante é apreender o centro de expressãosingular, e caracterizar os olhos, boca e outrostraços à luz desse insight central. A escola emquestão assevera que esse métodoespontaneamente empregado na vida diária temsua aplicação na ciência também, e de fato temsido inconscientemente usado pelos cientistas; já étempo, então, de fixar o caráter metodológicodesse tipo de conhecimento. Pois não é o caso deque o "centro de expressão", a fisionomia

Page 55: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 55/198

particular de uma situação, a linha evolucionáriasingular exibida por uma seqüência deacontecimentos, possa ser apreendida só porintuição e não possa ser comunicada ou objetivada

cientificamente. Todos esses insights detotalidades podem ser traduzidos em conheci-mento científico controlável, e o atualrenascimento de modos de pensamento histórico-filosóficos pode ser explicado na nossa opinião pelodesejo de achar um método de comunicação doque é singular no processo histórico. Na Sociologiada Cultura é feita a tentativa de analisar situaçõeshistóricas singulares em termos de combinaçõessingulares de propriedades e de fatores sujeitos aum processo constante de transformação —constelações que em si próprias são fases numprocesso genético cuja "direção" geral pode serdeterminada.Scheler, êle próprio, parece ter consciência do fatode que uma Sociologia baseada em uma doutrinageneralizante da essência do homem já se tornoualgo altamente problemático, uma vez que asessências gerais devem sempre aparecer vazias

em comparação com os fenômenos mentaisconcretos, históricos (uma das razões por que elespodem ser definidamente separados). Dessamaneira, ele enfatiza (p. 13) que a mente existesomente numa multiplicidade concreta de grupos eculturas infinitamente variados, de tal maneira queé fútil falar de uma "unidade da natureza humana"como um pressuposto da História e da Sociologia.Isso significa, todavia, que não podemos esperarqualquer esclarecimento fundamental da teoria

Page 56: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 56/198

das essências, uma vez que agora é admitido queela só pode produzir o esboço formal mais geraldas leis dos atos intencionais. Scheler, na verdade,coloca-se dessa forma na proximidade imediata do

kantismo e da filosofia formal em geral.Mas por que essa rejeição sumária da tese da"unidade da natureza humana", depois de opróprio Scheler propor basear a Sociologia sobreuma doutrina tão altamente geral da essência dohomem? A resposta de que a unidadesupratemporal do homem (a ser tratada numateoria geral do impulso e da mente) refere-se àessência "homem", enquanto a "multiplicidadeconcreta" meramente lida com o fato "homem" —esta resposta, embora esperada, não nos podesatisfazer. A uma mente humana existindo e sedesenvolvendo apenas numa multiplicidadeconcreta, somente uma essência dinâmica"homem" pode corresponder; na nossa opinião,não se pode pensar duma maneira historicista empesquisa fatual e permanecer estático na análiseessencial. Se devemos, não obstante, apegarmo-nos a tal doutrina "essencialista" da mente

humana e dos atos intencionais, inspirados poraspirações "supra-temporais", então permanece oproblema de como se pode atingir a realidadehistórica concreta a partir dessa posição. O caráterquestionável de formalização e generalizaçãoestática não é eliminado por se restringir essemodo de pensamento às "essências".Generalização e formalização são, em nossaopinião, procedimentos "técnicos" válidos etambém têm seus usos em Sociologia, uma vez

Page 57: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 57/198

que podem ser empregados para controlar amultiplicidade de dados; para o pensamentoconcreto, contudo — para o pensamento acerca doconcreto — servem simplesmente como um

trampolim. Não leva a formalização de fato àdistorção, sempre que encarada do ponto de vistado concreto? Afinal, uma forma é o que é somentequando em conjunção com a matéria concreta(histórica) que ela enforma; muda e cresce juntocom a mudança e o crescimento da matéria.Aqueles que se ocupam em formalização ilimitadaapenas se deixam guiar — precisamente nosentido da distinção feita por Scheler — pormodelos e relações estruturais prevalecentes nomundo morto, mecanizado, de meras "coisas", e osesquemas assim obtidos obscurecem a naturezapeculiar dos viventes.Conseqüentemente, estamos nesta altura empresença de um profundo conflito. Por um lado,Scheler propõe uma doutrina da essência"atemporal" do homem; por outro, ele temconsciência da, e se sente responsável em relaçãoà, singularidade dos objetos históricos. Esse

conflito é possivelmente a experiênciafundamental de nosso tempo (pelo menos dentroda tradição cultural da Alemanha).Outra tese bem característica da doutrina deScheler diz respeito à "lei da ordem de eficácia dosfatores reais e ideais", já aludida. A interação dosdois fatores é descrita da seguinte maneira: amente é um fator de "determinação", não de"realização". Isto é, os trabalhos que podem sercriados por uma cultura são determinados só pela

Page 58: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 58/198

mente, em virtude de sua estrutura interior; mas oque de fato é criado depende da combinaçãoparticular de fatores reais que predominam nomomento. Assim, a função dos fatores reais é fazer

uma seleção dentre as possibilidades tornadasdisponíveis pela mente. Através dessa funçãoseletiva, os fatores reais controlam os fatoresideais. Tanto os fatores ideais como reaisexistentes num dado momento são, todavia,inteiramente impotentes face aos fatores reais queestão em processo de emergência. Constelaçõesde poder em política, relações de controle deprodução na economia, seguem seu caminhodeterminado de maneira similar a robots; estãosujeitos a "uma causação evolucionária cega aqualquer significado" (p. 10). A mente humanapode no máximo bloquear ou suspender obloqueio, mas nunca alterá-las.O frutífero nessa maneira de olhar o problema éque o fato do caráter peculiar fenomenológico eestrutural do mental — que o monismo materialistanecessariamente descuida — é bem visto aqui.

Todavia, sua unilateralidade, na nossa opinião,

consiste em que Scheler não vai além da afirmaçãode uma separação fenomenológica do "real" e do"mental". Como resultado disso, a separação e aimanência abstrata do "mental" permaneceminatacadas, mesmo quando por fim se faz umatentativa de se efetuar uma síntese, esclarecer orelacionamento mútuo entre as duas esferas eresponder a questões referentes à sua gênese.A fim de ilustrar a diferença entre a posição deScheler e a representada por nós, mencionaremos

Page 59: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 59/198

um exemplo mostrando as duas concepções dorelacionamento mútuo entre o concreto e opossível, o real e o mental. Uma dessasconcepções — em direção à qual Scheler parece

inclinar-se em certa medida — é expressa por umdos personagens numa peça de Lessing que dizque Rafael se tornaria um tão grande artista aindaque tivesse nascido sem mãos, uma vez que avisão artística importa mais que a realizaçãovisível. Para uma tal teoria, colocada na tradiçãoplatônica, na qual idéias e modelos são conside-rados como preexistentes, a realização é algosecundário. E permanece secundário mesmo naversão mais moderada dessa concepção deScheler. Obviamente aludindo ao exemplo hápouco mencionado, Scheler diz: "Rafael precisa deum pincel; suas idéias e sonhos artísticos não ocriam. Precisa de patronos política e socialmentepoderosos que o contratem para glorificar seusideais. Doutro modo seu gênio não se poderealizar" (p. 10). Scheler enfatiza explicitamenteque não tem em mente nenhuma influênciaessencial dos fatores reais, em decorrência do que

eles determinariam em parte a substância dostrabalhos. Essa concepção — que, em suaessência, dá ouvidos ao platonismo — contrastacom outra especificamente enraizada na atitudemoderna face à vida. Essa concepção modernaestá expressa, por exemplo, na estética de K.Fiedler. Podemos parafrasear a teoria de Fiedler,algo livremente, da seguinte maneira: nem opróprio processo criativo nem a obra como umcomplexo de significado deve ser analisado

Page 60: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 60/198

pressupondo-se que o artista vê antes de começara trabalhar modelos ante os olhos de sua mente eque ele meramente os copia a posteriori tão bemquanto pode. A verdade é que a obra e sua idéia

passam a existir durante o processo da criação. Todo "fator real", toda linha já desenhada, todomovimento da mão, não somente determinamaqueles que lhe seguirão, mas também criamnovas possibilidades não-sonhadas de antemão.

Todos os fatores reais, tais como a estrutura damão humana e os gestos, a textura particular domaterial, a constituição orgânica e psíquica do ar-tista são a fonte de significado nesse processo. Suacontribuição para o trabalho não é sem efeito parao significado "imanente" que ele exprime.Portanto, não deveríamos meramente dizer que oartista deve existir como um homem — e comoeste homem em particular — a fim de que umapossibilidade absoluta do mundo ideal possa tomarforma (ser realizada) no mundo espaço-temporal.O que devemos dizer é que a existência do artista— determinada como esta existência particular —é, em si mesma, uma condido sine qua non do

significado e da idéia corporificada nos trabalhosespecíficos. Esta nova maneira de interpretar acorrelação entre "idéia" e "realidade" é tambémum componente essencial de nossa concepção dopapel dos "fatores reais" na criação cultural.Para nós, também, há uma separaçãofenomenológica entre Ser e Significado; mas essadualidade fenomenológica não mais pode serconsiderada como fundamental quando passamosa examinar ambos os termos como partes de uma

Page 61: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 61/198

totalidade genética dinâmica — um problema queseguramente tem significado também dentro dosistema de Scheler. Quando alcançamos a"existência" como uma unidade última na qual

todas as diferenças fenomenológicas sãocanceladas, "Ser" e "Significado" aparecem comoesferas parciais hipostatizadas, as quais são emúltima instância as "emanações" de uma e mesmaVida. Para qualquer filosofia ou teoria da cultura oude Sociologia (ou como quer que se possa resolverchamar a síntese última em questão) que buscatranscender à imanência abstrata dos váriosprodutos culturais e analisá-los como parteintegrante do processo global da vida, a dualidadefenomenológica não pode ser mais do que umdispositivo provisório. Neste momento não se deveobjetar que o historiador entregue à pesquisa posi-tiva não esteja interessado nessas questõesmetafísicas, já que não precisa ir além daseparação fenomenológica das esferas do "Ser" edo "Significado", quando tenta fornecer um relatohistórico da evolução imanente das idéias. Essaobjeção aparece simplesmente de uma ilusão

positivista que nos impede de perceber quãoprofundamente o cientista supostamente puro estáenvolvido em metafísica sempre que dáinterpretações, estabelece relações históricas,determina "tendências" históricas ou coloca fatores"reais" em correlação com fatores "ideais". Quandose tenta explicar uma obra em termos de fatos navida de um artista, ou das correntes culturais deum período, e assim por diante, eleinevitavelmente substitui o "significado" imanente

Page 62: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 62/198

das obras na estrutura global do processo vital,pois privou as obras de seu caráter como unidadescontidas em si mesmas e preocupou-se em vezdisso com a experiência central determinante da

maneira de viver e da criatividade cultural de umaépoca. Temos que reconhecer, à luz do que foi dito acima,que há algo de verdadeiro na concepçãomaterialista da história, de acordo com a qual é oSer, a realidade, que cria o setor ideal. O erro domaterialismo consiste meramente na suametafísica errônea que equaciona o "Ser", ou a"realidade", com a matéria. Todavia, na medida emque nega o conceito do "ideal" como algoabsolutamente contido em si mesmo, como algoque é de algum modo preexistente, ou sedesenvolve dentro de si mesmo, baseado apenasem uma lógica de significado imanente ou provê àrealidade histórica ou a qualquer outro tipo de rea-lidade do estímulo necessário que torna a auto-realização possível — na medida em que nega esseconceito de "ideal", o materialismo está certo. Enão se pode superar esse dualismo idealista se se

procede como Scheler, que combina sua teoriaidealista com uma doutrina de "impotência domental", uma tese que reflete simplesmente atransformação que o pensamento conservadoralemão sofreu durante a última fase de seu de-senvolvimento. O pensamento conservador naAlemanha afastou-se cada vez mais de suasorigens humanísticas desde o princípio datendência para a "Realpolitik" e para a política depoder, e ao mesmo tempo restringiu-se cada vez

Page 63: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 63/198

mais em presença das realidades sociais recém-emergentes que não favoreciam aspiraçõesconservadoras. Ê interessante observar que asclasses em ascensão — cujas aspirações são

apoiadas pelos "fatores reais" dominantes em cadaépoca — consideram esses fatores comoessenciais, enquanto os conservadores, emborapossam reconhecer a importância dos fatoresreais, podem caracterizar seu papel e suasignificação apenas como negativos.Numa palavra, assim que abandonamos aconcepção platonizante, a diferençafenomenológica entre os fatores reais e ideais ficasubordinada à unidade genética do processohistórico, e nos remeteremos ao ponto de origemonde um fator real é convertido em um dadomental. De um ponto de vista meramentefenomenológico (definido como o que não implicanada além da descrição exata do que é dado,desprezando aqueles aspectos que estãorelacionados com sua gênese) essa "conversão" doreal no mental não pode ser apreendida, já que deacordo com essa visão a lacuna entre o simples

"Ser" destituído de significado, por um lado, e o"Significado", por outro, não pode ser preenchida. Já que, não obstante, como sujeitos queinterpretam, somos seres humanos existentes etemos a experiência imediata de nossa"existência" na qual fatores reais são convertidosem dados mentais, somos capazes de levar nossainvestigação até o ponto em que as duas esferasdo ideal e do mental se encontram. Ademais, noque toca a essa conversão, deve ser notado que

Page 64: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 64/198

muitos fatores classificados como "reais" não sãode forma alguma destituídos de significado epuramente "materiais". Por exemplo, tende-se,com freqüência, a considerar dados econômicos e

geográficos como pertencendo integralmente àesfera "material e natural". Não devíamosesquecer, todavia — para tomar apenas o primeiroexemplo mencionado, o da economia — que só afisiologia do impulso da fome pertence à simples"natureza", mas que esse substrato fisiológico seconstitui em elemento do processo históricoapenas na medida em que entra nas configuraçõesmentais, por exemplo, por assumir a forma de umaordem econômica ou outra forma institucional. Issonão deve ser mal compreendido Não queremosnegar o papel fundamental dos impulsos — e, demodo nenhum, pomos em discussão que aeconomia pudes^ se existir sem o impulso dafome; mas se algo é uma condição necessária paraoutra coisa, não precisa ser incondicionalmen teequacionado com ela. O que nos importa é que asvárias formas de instituições econômicas nãopoderiam ser explicadas pelo impulso da fome

como tal. O impulso como tal permaneceessencialmente imutável ao longo do tempo,enquanto as instituições econômicas sofremconstantes mudanças, e a história se interessaexclusivamente por essas mudanças institucionais.O excesso acima e além do substrato puramentefisiológico, que, sozinho, transforma o instinto emum fator histórico, já é a "mente". Por conseguinte,não basta dizer que a economia não existiria sem amente; deve-se acrescentar que é este elemento

Page 65: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 65/198

Page 66: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 66/198

superestrutura debaixo da pressão direta de umainfra-estrutura puramente "natural", mas sim:aquilo que vagamente se sente como sendo"natureza" se converte nas várias configurações

mentais da infra-estrutura, e dessa maneira dáforma, primeiro, aos homens como seresexistentes, e depois à realidade cultural como umtodo (em analogia com a concepção de Fiedler dopapel co-determinante dos fatores reais).O que relutamos em aceitar é, antes de tudo, aintrodução da dimensão "natural" da infra-estrutura, como uma entidade supra-temporal,imutável, em termos da qual o processo históricodeve, em parte, ser explicado. Pois um fator causaldesse tipo somente poderia originar combinaçõesde elementos que, de outra forma, são imutáveis.Certamente, Scheler fala de "mudanças naestrutura dos impulsos", mas estas podem serinterpretadas no seu sistema somente comodeslocamentos relativos, isto é, merasmodificações quantitativas; assim, ele sugere queé o "desejo de poder" que predomina em ummomento, o "instinto racial" noutro etc. Na nossa

opinião, contudo, fatores "naturais" desse tipoapenas podem ser usados como um princípiodinâmico de explicação do processo histórico sesupusermos que sofrem mudanças qualitativas nocurso da história. Uma tal suposição, de fato,torna-se plausível se nos lembrarmos de que o"natural" nos vários níveis de suas transformações"mentais" desempenha um papel históricodiferente cada vez. Em que momento e de queforma o chamado "desejo de poder" se pode

Page 67: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 67/198

manifestar — se é que de fato o faz — dependetambém da constelação cultural total com que asvárias gerações se defrontam durante o processode amadurecimento. Também ligado a isto, não há

nenhum "desejo de poder", como tal, eternamenteidêntico a si próprio, o qual simplesmente é maisou menos reprimido, mas a expressão idêntica"desejo de poder" cobre uma grande variedade de"intenções de vontade" estruturadas eexperimentadas de maneira diferente, tendo cadavez diferentes objetos como seus correlatos.

Também relutamos em aceitar a colocação de ummundo mental com uma lógica imanente designificado em face do qual o mundo histórico comseus "fatores reais" desempenha apenas um papelseletivo.

Também concebemos a relação dentro do"possível" e do "atual" duma maneira diversa da deScheler. Para nós, também, há a cada momentoaquilo que é atual, cercado por um horizonte depossibilidades; esse horizonte, não obstante, não éo abstratamente "possível como tal", mas contémsimplesmente aquilo que é possível em uma dadasituação como resultado de certa constelação defatores. Esse "horizonte", por sua vez, émeramente o ponto de partida de um novoprocesso conduzindo a novas atualizações; istosempre envolve o papel completamente novo ecriador do momento e da situação singular. Para

nossa concepção do mundo, então, não é o abstra-tamente possível que é o mais elevado; a tônica devalor continua sobre o emergente e o atual. O real

Page 68: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 68/198

Page 69: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 69/198

inteligível de significado de um conjunto de obrasatuais, acabadas.

Discutimos a concepção de Scheler da relaçãoentre infra-estrutura e superestruturapormenorizadamente e demos um relato completode nossa posição contrária, a fim de mostrar queaté pressuposições na aparência puramenteformais de pesquisa histórica dependem de umponto de vista social e de valoração; quisemosdemonstrar pormenorizadamente que tambémneste campo o processo de cognição, longe deperceber passo a passo problemas que já lá seencontram em forma "preexistente", aborda porlados diferentes problemas derivados daexperiência vital de certos grupos pertencentes àmesma sociedade. Tudo o que distingue a visão

estática da dinâmica é, de certa forma, relacionadocom este ponto central — o da relação entre oideal e o real. Uma vez que, para Scheler, aessência última é algo preexistente, pairandosobre a história, o processo histórico nunca podealcançar essencialidade e substancialidade reaisem seu sistema, no qual as entidades estáticas,livremente flutuantes, não são realmente"constituídas", história não é o mesmo problemadas "posições" na teoria do historicismo. Todohistoricismo prega uma determinação dopensamento pela "posição" do pensador, mas taisteorias historicistas podem ter uma inclinação

conservadora ou progressista, dependendo se sãoconcebidas de uma posição "retrospectiva" ou instatu nascendi.), mas meramente "realizadas",

Page 70: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 70/198

pelo processo histórico. Tal dualismo agudo nuncapode levar a uma real filosofia da historia; e o fatode que as decisões metodológicas são tambémligadas a orientações metafísicas e "vitais", em

nenhum lugar está mais claramente visível do queaqui. Pois agora podemos compreender por queScheler decidiu em favor de um tipo generalizantede Sociologia, quando teve que enfrentar a escolhade qual Sociologia se deve fazer hoje — seproceder de acordo com o método generalizanteou procurar uma renovação na base de tradiçõeshistórico-filosóficas. Certamente, o caso de Schelernão é tão simples assim. Como vimos, apareceuma tensão, no sistema de Scheler, devido ao fatode que, embora sua doutrina básica seja de valoreseternos, ele ainda reconhece o dinâmico comoparticularizado em várias "posições" e quer

justificá-lo em termos da doutrina básica. Tanto olargo alcance de seu plano como a justaposiçãonão-resolvida dos elementos estáticos e dinâmicosna sua doutrina podem ser bem vistos a partir daseguinte passagem, na qual Scheler diz quepretende "pendurar", por assim dizer, o reino dos

valores e idéias absolutos, correspondendo à idéiaessencial do homem, muito mais alto do que todosos sistemas fatuais de valores se haviam dadoconta, até então, na história. "Assim, abandonamoscomo totalmente relativos, como histórica esociologicamente dependentes das posiçõesparticulares, toda ordenação de bens, objetivos,normas nas sociedades humanas, expressos porética, religião, lei, arte etc., e retemos nada alémda idéia do eterno Logos, cujos segredos

Page 71: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 71/198

transcendentes não podem ser explorados naforma de uma história metafísica por nenhumanação, nenhuma civilização, nem qualquer outodas as épocas culturais que emergiram até

agora, mas só por todos juntos, incluindo todos osfuturos — por cooperação temporal e espacial deinsubstituíveis, porque individuais, sujeitosculturais singulares trabalhando juntos em plenasolidariedade" (p. 14).As tensões reveladas por esta passagem ilustram aluta interna entre a doutrina da eternidade deScheler e a consciência histórica do presente; oimportante, do nosso ponto de vista, é que Schelertenta incorporar em seu sistema não só teses denaturezas diferentes como também pressuposiçõessistemáticas de caráter diferente. Para ohistoricista, não existem entidades fora doprocesso histórico; elas passam a existir e serealizam dentro dele, e tornam-se inteligíveisexclusivamente através dele. O homem temacesso a entidades que criam história e dominamas várias épocas, porque, vivendo na história, estáexistencialmente ligado a ela. A história é o

caminho — para o historicista, o único caminho —para a compreensão das entidades que nelaaparecem geneticamente. Mas o abismo entre otemporal e o eterno, que o sistema de Schelersupõe, afeta decisivamente sua teoria dainterpretação da história. As entidades reais sãosupra-históricas; por conseguinte, contrariamenteao que Scheler diz, a história não pode contribuircom nada de relevante para a exploração dessasentidades, ou, se há uma contribuição que a

Page 72: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 72/198

história, como é concebida por Scheler, pode dar,ela só pode ser algo limitado.A história é, no seu sistema, como um mar dechamas rodeando as entidades eternas. As chamas

podem aumentar ou diminuir; podem aproximar-sedas entidades ou delas se afastar, e o ritmo de seumovimento, imposto pelo destino, é envolto emmistério; tudo o que sabemos é que algunsperíodos se aproximam mais das entidades do queoutros. Fanáticos pela Idade Média, cuja teoria dahistória é baseada no romantismo atual,asseveram que a Idade Média marcou a maioraproximação das entidades eternas, e especificamo ponto culminante dentro da Idade Média emvários momentos, dependendo da natureza desuas próprias experiências subjetivas. Schelermarca um certo progresso além dessa estreitaglorificação de uma época histórica, enquantomantém que cada período e cada civilização temuma "idéia missionária" específica, implicando umaestreita afinidade com um certo conjunto deentidades, que é diferente em cada caso. Mas eleainda adere essencialmente à concepção estática

das entidades, pois, a seu ver, as entidadeseternas permanecem dissociadas do fluxo da vidahistórica, sua substância é de natureza diferenteda da história. Tudo o que Scheler admite é umprincípio de "acesso": algumas entidades eternassão primordialmente acessíveis a um grupocultural apenas, outras a outro. "Síntese"histórica, então, consiste em uma combinação detodas as essências descobertas no decurso dahistória. Essa maneira de olhar as coisas, contudo,

Page 73: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 73/198

implica certos "saltos" abruptos que não podemser enquadrados na nossa experiênciafundamental. A teoria de Scheler contém dois detais "saltos". Ele admite que os sistemas concretos

de normas são histórica e sociologicamente de-terminados, e que a cada momento o homem estásituado dentro da história, mas para ele isto tudose aplica apenas enquanto não estamos lidandocom uma compreensão dessas "entidades" cujarealização é a "missão" da humanidade. No quetoca a essas entidades, o homem históricorepentinamente se torna num conquistador datemporalidade e adquire uma capacidade super-humana de sacudir longe toda determinação elimitação histórica. Isso é um "salto" na teoria deScheler. Mas também podemos fazer outrapergunta. Como poderemos saber, analisando ahistória, quais das entidades proclamadas pelasdiversas civilizações eram entidades reais,verdadeiras? Por que critérios podemos julgar queuma certa civilização era bastante madura pararealizar a "missão" da humanidade no que dizrespeito a uma ou outra entidade? Se realmente

desejamos consignar tais papéis a todas ascivilizações e épocas passadas, é claro que não nosbasta ter um conhecimento válido, objetivo, denossas próprias entidades; devemos ter poderesintuitivos super-humanos, supra-históricos, paraidentificar todas as entidades, ou, pelo menos,aquelas que emergiram, até agora, no curso dahistória. Dessa maneira, o historiador das idéias,ao desempenhar sua intuição essencial, devetranscender à temporalidade duas vezes: uma vez

Page 74: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 74/198

quando identifica as entidades eternas designadaspara sua própria época, e uma segunda vezquando interpreta o passado, tentando separar ogenuíno do falso, a essência real da mera

aparência subjetiva. Todavia, isso redunda napostulação de uma absoluta intuição de essências— pelo menos de todas as essências até aquidescobertas — a cada momento da história; oupelo menos a postulação do caráter absoluto domomento presente. Mas, então, a idéia de uma"missão" coletiva de todas as épocas e civilizações,que teria fornecido um ponto de partida para umaFilosofia da História, perde-se de novo; o processohistórico como tal é abandonado comoinapelavelmente relativo, e toda significaçãoabsoluta é concentrada dentro do segundo "salto"para além da temporalidade. Scheler tentaincorporar idéias historicistas dentro de sua teoriada atemporalidade, e até adota a idéia de visão"perspectivista". Mas sua concepção estática daeternidade nunca se concilia com a "posição" dehistoricismo que ele tenta combinar com ela.

Para qualquer pessoa cuja experiência metafísicafundamental é de um tal caráter (estático), aSociologia do Conhecimento — como tambémtodas as outras esferas da cultura — tem que setornar algo totalmente secundário. Em conseqüên-cia, a tarefa real de uma Sociologia do Pensamento— que na nossa opinião consiste em descobrir a

linha geral de desenvolvimento seguindo a gênesedas várias "posições" — nunca é formulada porScheler.

Page 75: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 75/198

Mais uma objeção deve ser feita à doutrina dasessências de Scheler. Ele esquece que qualquercompreensão e interpretação de essências (e,portanto, das essências também de épocas

passadas) é possível apenas de uma formaperspectivista. Tanto o que nos é acessível dasintuições essenciais de épocas passadas, quantocomo elas se tornaram acessíveis para nós, de-pende de nossa própria posição.Cada "elemento de significação" (se podemos falarde tal coisa isoladamente) é determinado por todoo contexto de significação e, em última instância,pela base vital que lhe dá origem; isso é uminsight que devemos ao historicismo. Assim, umato de compreensão consiste em incorporar um"elemento de significação" estranho ao nossopróprio contexto de significação, cancelando suasrelações funcionais originais e introduzindo-odentro de nosso próprio padrão de função. Essa é amaneira pela qual procedemos para determinarnão só os fatos, mas também os "significados"intencionalmente atribuídos de épocas passadas.Seria um preconceito "tecnicista" supor que

poderíamos integrar dados mentais (significados)em uma totalidade por acrescentar um pedaço aoutro. Não seria difícil convencer Scheler que essamaneira de ver é correta, já que ele mesmodistingue vários tipos de conhecimento e váriostipos de progresso cognitivo (p. 23). Umconhecimento "aditivo" de essências inteligíveisseria possível apenas se o conhecimento essencialfosse do tipo do conhecimento tecnicista,"cumulativo" (como Scheler o chama). De acordo

Page 76: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 76/198

Page 77: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 77/198

antes da descoberta do conceito correto prescritopelo padrão axiomático do sistema. A par disso,temos em Filosofia, como também nas CiênciasHistórico-Culturais, estreitamente a elas

relacionado, o fenômeno de uma mudança designificado intrinsecamente necessária. Todos osconceitos nesses campos, inevitavelmente, mudamseu significado no decurso do tempo — e istoprecisamente porque eles continuamente entramem novos sistemas dependentes de novosconjuntos de axiomas. (Podemos, por exemplo,considerar a maneira, pela qual cada conceito de"idéia" alterou seu significado: o que significoupara cada época pode ser compreendidoretrocedendo-se aos sistemas totais nas estruturasdos quais o conceito era definido.) Se observamosa linha de evolução histórica nesses campos, comotambém as relações mútuas dos significados quese sucederam, então podemos observar não havernenhum "progresso" em direção a um sistemaúnico, um significado exclusivamente correto deconceitos, mas antes o fenômeno da "sublimação"(Aufheben), Esta "sublimação" consiste no fato de

que nestes campos todo sistema mais recente emais "elevado" incorpora os sistemas mais antigos,as relações funcionais, e também os conceitosindividuais pertencentes a esses sistemas.Contudo, quando isto se dá, os princípios maisantigos de sistematização que são refletidos nosvários conceitos se cancelam e os "elementos"tomados dos sistemas mais antigos são rein-terpretados em termos de um sistema maiselevado e global, isto é, "sublimado". Só podemos

Page 78: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 78/198

fazer diferença entre os dois tipos de pensamento(científico e histórico-filosófico) prestando atençãoa essa diferença fundamental na maneira de cons-truir o sistema; esta é a única maneira de se

reconhecer tal diferença. Uma síntese históricagenuína não pode consistir em uma adição não-perspectivista de fenômenos que aparecem su-cessivamente, mas somente em uma tentativasempre renovada de incorporar as entidadestomadas ao passado a um novo sistema. Aevolução atual e historicamente observável dopensamento na Filosofia (como também nasCiências Culturais a ela relacionadas) mostra umpadrão que contrasta, como vimos, com o padrãoda evolução nas Ciências Naturais — descrevemoseste padrão antes como "dialético", e Scheleragora propõe designá-lo como "crescimentocultural através de entrelaçamento e incorporaçãode estruturas mentais existentes na novaestrutura" (p. 24). Contudo, o essencial —independentemente de diferenças terminológicas— é que no caso em consideração o pensamentohumano é organizado em torno de um novo centro

em cada época, e mesmo que o homem "sublime"(no sentido hegeliano de Aufheben) seusconceitos mais antigos através de suaincorporação em sistemas sempre novos, istoimplica uma mudança no significado, tornandouma síntese aditiva impossível. Uma vez que seadmita que o conhecimento filosófico éessencialmente determinado e limitado a uma civi-lização específica, não é mais possível supor nadaa não ser um sistema dinâmico nessa esfera de

Page 79: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 79/198

pensamento, pois de outro modo estaríamoslidando com conceitos de um tipo estrutural emtermos de uma estrutura diferente. Concedendo-seisto, só o perspectivismo seria possível, isto é, a

teoria de que os vários significados essenciaisnascem junto com as épocas às quais elespertencem; esses significados essenciaispertencem a essências que têm rua própriaexistência num sentido absoluto, mas o estudiosode história somente os pode compreender de umamaneira perspectivista, olhando-os de uma posiçãoque é, ela mesma, um produto da história.Contudo, esse tipo de perspectivismo de formaalguma refuta-se a si próprio, contrariamente aoque Scheler diz na sua crítica de nossa maneira dever (pp. 115 e segs.), porque — pelo menos nanossa opinião — tanto as várias épocas, como asessências que surgem nelas, têm sua própriaexistência a despeito de qualquer conhecimentodelas que se possa alcançar subseqüentemente.Como dissemos na passagem de nosso ensaioacerca do historicismo citada por Scheler: "Oobjeto de consideração histórica (o conteúdo, por

assim dizer, de uma época) permanece idêntico"em si mesmo", mas às condições essenciais desua cognoscibilidade pertence o fato de que ele sópode ser apreendido de posições histórico-intelectuais diferentes — ou, em outras palavras,que só podemos divisar vários "aspectos" dele" (p.105). As palavras em itálico desta sentençaindicam bastante claramente que não é nossaintenção usar o perspectivismo como um meio dedissolver o ser real in se dos objetos da

Page 80: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 80/198

investigação histórica; sem dúvida, isto seriaacertadamente entendido por Scheler como umamaneira de ver que se refuta a si mesma. Então, aessência e a existência "atual" do helenismo não

se dissolvem nas várias "perspectivas" abertas porgerações sucessivas de erudição histórica. É, defato, "dada" como uma "coisa em si mesma",abordada de vários lados, por assim dizer, porinterpretações diferentes. Justifica-se nossacolocação dessa existência real do objeto in se,porque mesmo embora nenhuma prespectivaúnica possa fazer-lhe completa justiça, ele ainda édado como um controle que podemos usar paranão admitir caracterizações arbitrárias.Mencionemos um exemplo pelo qual podemosilustrar de maneira mais clara o significado doperspectivismo: a consciência humana só podeperceber uma paisagem como paisagem de váriasperspectivas; e apesar disso a paisagem não sedissolve nas várias representações pictóricaspossíveis. Cada um dos possíveis quadros tem umacontrapartida "real" e pode ser controlada dasoutros perspectivas a exatidão de cada uma delas.

Contudo, isto implica que a história só é visível dedentro da história e não pode ser interpretadaatravés de um "salto" para além da história por seocupar uma posição estática fora da história. Aposição historicista, que começa com o relativismo,eventualmente alcança uma posiçãoqualitativamente absoluta, porque na sua formafinal coloca a própria história como o Absoluto; sóisto torna possível às várias posições, queprimeiramente parecem ser anárquicas, se

Page 81: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 81/198

ordenarem como partes componentes de umprocesso global significativo.De fato, se considerarmos uma épocarelativamente fechada da história, tal como o

período do início do capitalismo até a emergênciados sistemas capitalistas plenamentedesenvolvidos, podemos perceber a direçãosignificativa para a qual a linha dodesenvolvimento aponta. Podemos entãointerpretar todas as "posições" sociológicas eoutras "posições" teóricas pertencentes àquelaépoca em termos dessa qualidade de ser dirigida aum objetivo inerente. Certamente, cada teoriaproclamava sua validade absoluta quando pelaprimeira vez proposta; todavia, estamos numaposição de estimar sua potencialidade e verdaderelativa. As teorias frutíferas passadas são

justificadas mesmo em retrospectiva, porquepodem sobreviver como problemas e componentesdo sistema mais global em termos do qualpensamos hoje. Ao mesmo tempo, entretanto, elassão relativizadas, porque podem sobreviversomente como parte de um sistema mais global.

Não queremos negar que o historicismo encontredificuldades — e elas surgem precisamente nesteponto. Porque enquanto podemos ver o significado,a direção ao objetivo do desenvolvimento global,no que toca aos períodos fechados, não podemosver um tal significado de objetivo para o nossopróprio período. Como o futuro é sempre um se-gredo, podemos tão somente fazer conjeturasacerca do padrão total de significado do qual onosso presente é uma parte; e, já que não

Page 82: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 82/198

podemos ir além de conjeturas, é bastantecompreensível que cada corrente de pensamentosuponha que o significado do objetivo no presenteé idêntico às tendências contemporâneas com que

cada corrente porventura se identifique. Assim, osignificado do objetivo futuro da totalidade dahistória será visto de maneira diferente de acordocom o ponto particular que cada grupo ocupe noprocesso total; a história da filosofia de um autorprogressista diferirá da de um conservador, eassim por diante.Se persistirmos nessa linha de pensamento,podemos até concluir que épocas tais como as queacabamos de descrever como relativamentefechadas e por conseguinte transparentes quantoao seu significado de objetivo (como o início docapitalismo) poderiam até certo ponto perder suadefinição de significado e tornar-se problemáticasse estivessem inseridas em padrões genéticosmais globais. Disso se segue que cada teoriahistórica pertence essencialmente a uma dadaposição; mas isto não significa — ponto este quequeremos enfatizar — concretismo total, a

"fatualidade persistente" dos dados e dos signifi-cados essenciais é dissolvida em diversasperspectivas. Cada um de nós se refere aosmesmos dados e essências. Naturalmente, comovimos no nosso capítulo introdutório, um deter-minado movimento pode descobrir apenas umalimitada extensão de fatos — aqueles que estãodentro da esfera de sua reflexão — mas desde queestes fatos se tenham tornado visíveis, somostodos obrigados a levá-los em conta. Ademais,

Page 83: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 83/198

compreendemos, olhando as coisas de nossaperspectiva, a possibilidade e a necessidade deoutras perspectivas; e não importa qual seja anossa perspectiva, todos experimentamos a

"persistência" controladora dos dados; assim, cadaum tem todas as razões para supor que nosmovemos em um meio de realidade, e por issopodemos negar todo ilusionismo.Pode-se perguntar neste ponto por que não noscontentamos com um simples registro desses fatosque nós próprios reconhecemos como persistentes— como o positivismo quereria; por que nãoeliminamos essas "totalidades de significado" e osacréscimos à simples fatualidade, somente osquais podem levar ao perspectivismo, como umresíduo metafísico que não constitui preocupaçãoda ciência positiva. Nossa resposta é a de que háalgo peculiar acerca da "persistência", da "positivi-dade" de tais "fatos". Eles são "persistentes" nosentido de que constituem um controle quepodemos usar para eliminar construçõesarbitrárias. Mas não são "persistentes" no sentidode que podem ser apreendidos fora de qualquer

sistema, em isolamento, sem referência asignificados. Ao contrário, só podemos apreendê-los dentro do quadro de referência de um sig-nificado, e eles mostrarão um aspecto diferente,dependendo do padrão de significado dentro doqual são apreendidos. Termos tais como"capitalismo", "proletariado" etc., mudam seu sig-nificado, de acordo com o sistema dentro do qualsão usados, e "dados" históricos só se tornam"fatos" históricos por estarem inseridos dentro de

Page 84: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 84/198

um processo evolucionário como "partes" ou"estágios".Aquela época despreocupada e segura de simesma do positivismo, na qual era possível supor

que se podia asseverar "fatos" sem qualificá-los, jánão existe mais; isto só podia ser suposto porquese passava por cima do fato da história positivistada cultura ingenuamente tomar apenas umsistema de significados, uma metafísica particular,como sendo absolutamente válida, emborasomente pensadores daquela época pudessemaceitá-los como não-problemáticos. O positivismopodia esconder com sucesso de si mesmo seupróprio quadro de referência de significadosapenas porque cultivava nada mais do que apesquisa especializada num ou noutro campo;nessas circunstâncias ninguém podia notar o fatodos pressupostos metafísicos serem baseadossobre uma visão global e sobre uma Filosofia daHistória tanto quanto os das escolas não-positivistas. Nós, por outro lado, já podemos verque pelo menos as Ciências Culturais e Históricaspressupõem metafísica, isto é, um incremento que

torna aspectos parciais em totalidades; e na nossaopinião é muito mais frutífero reconhecer esseestado de coisas do que ignorá-lo.Contudo, como foi afirmado acima, isto nãosignifica que não sejamos afetados por aquelesaspectos do positivismo que são "genuínos", emvirtude dos quais êle marcou um real progresso nahistória do pensamento. Toda metafísica queemerge após a supremacia do positivismo terá queincorporar e "sublimar" de alguma forma esses

Page 85: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 85/198

elementos "genuínos" do positivismo. Estecomponente "genuíno", contudo, não é oriundo daposição epistemológica e metodológica dopositivismo, mas, por mais paradoxal que possa

parecer, de sua intenção metafísica, do sentimentovital do qual é expressão teórica. O estilopositivista de pensamento marca na história dasdisciplinas teóricas a mesma transição gradualque, no campo da política, é designada pelo termo"Realpolitik", e no da arte, pelo termo "realismo" —uma transição que deixou sua marca tanto sobre opensamento conservador quanto o progressista.Estes termos sugerem que certas esferas da vida(e.g., economia) ocupam cada vez mais o centroda experiência e fornecem as categoriasfundamentais em termos das quais todas as outrasesferas são vivenciadas. A transição em questãosignifica que, na nossa experiência, a ênfaseontológica se situa sobre o "mundano", a"imanência", mais do que a "transcendência".Procuramos a origem de todos os conceitos"transcendentes" apenas nessa experiência"imanente". Deve-se notar, contudo, que essa

antítese entre "imanência" e "transcendência" éela própria ainda expressa na terminologia davelha atitude vital e, por conseguinte, não podefazer completa justiça ao que é essencialmentenovo e genuíno no positivismo.O que chamamos o respeito positivista pelarealidade empírica representa um segundoprincipio positivista que, eremos, permanece válidopara o nosso pensar. Esse respeito pela realidadeempírica (que, todavia, não mais significa para nós

Page 86: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 86/198

a crença em uma interpretação não-metafísica dosfatos mentais) consiste em não se poder conceberas entidades metafísicas fora de um contatoessencial com aquele reino da experiência que

representa para nós a realidade última do mundo.Esta é a principal razão pela qual não podemosaceitar nenhum "salto" para além da realidade —nem mesmo em conexão com a construção de umreino preexistente da verdade e da validade. Nãoreivindicamos ser capazes de fazer quaisquerdeduções referentes à estrutura da verdade e davalidade, exceto da transformação empiricamentecomprovada da estrutura das várias esferas depensamento, tal como encontradas dentro dahistória. Todos os tipos essenciais das novasmetafísicas sofrem a marca desse processo detransformação que resulta em uma elevaçãoconstante e segura da posição ontológica do "ima-nente" e "histórico". Possivelmente foi Hegel quemdeu o mais fundamental passo em direção aoverdadeiro positivismo quando identificou a"essência", o "absoluto", com o processo históricoe ligou o destino do absoluto ao da evolução do

mundo. Ainda que as suas proposiçõespormenorizadas não possam ser aceitas, suaposição geral é a mais próxima de nossaorientação imediata.Concordamos plenamente com Scheler em que ametafísica não foi e não pode ser eliminada danossa concepção de mundo, e que categoriasmetafísicas são indispensáveis para ainterpretação do mundo histórico e intelectual.

Também concordamos que o conhecimento fatual

Page 87: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 87/198

e o conhecimento essencial representam duasdiferentes formas de conhecimento, mas nãoadmitimos uma separação abrupta dos dois — oque pensamos é antes que o conhecimento

essencial apenas vai mais longe e mais fundo namesma direção tomada pelo conhecimento fatual.Parece-nos que uma passagem do conhecimentofatual empírico para a intuição de essência se estáprocessando continuamente. Esse dualismo de"fato" e "essência" é completamente paralelo aoda Ciência Histórica e da Filosofia da História. Háuma tendência geral de se fazer uma separaçãodefinida entre estas duas disciplinas; mas, nanossa opinião, a maneira de ver correta é que umaboa parte da "Filosofia da História" já estáentranhada nos vários conceitos que usamos aocaracterizar fatos particulares — conceitos estesque desempenham um papel considerável nadeterminação do conteúdo da ciência "empírica".Somos de certa maneira guiados por um "plano",um "quadro de referência inteligível" da históriasempre que colocamos dentro de um contexto ofato particular aparentemente mais isolado.

Supor tal continuidade e interpenetração dessesdois tipos de conhecimento não significa, contudo,negar que são diferentes, qualitativa ehierarquicamente. O que objetamos é sim-plesmente o "salto" entre os dois mundos quesepara completamente suas respectivas estruturas— uma concepção obviamente inspirada pela idéiade conhecimento baseado em revelação.Não nos devia surpreender que na tentativa decaracterizar a posição da qual pode ser construída

Page 88: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 88/198

uma Sociologia do Conhecimento, tivéssemos quechegar a tais pormenores, discutindo pressupostosfilosóficos, sistemáticos. Afinal, o problema com oqual nos defrontamos é precisamente quão longe o

tratamento científico empírico de um problema éinfluenciado pela posição filosófica, pela metafísicado investigador.O confronto das divergências entre a nossaconcepção da Sociologia do Conhecimento e a deScheler pode ter esclarecido que ambos nospreocupamos com a mesma tarefa, isto é, a tarefaimplicada no fato de se poder interpretar osprodutos mentais não apenas diretamente quantoao seu conteúdo, mas também indiretamente emtermos de sua dependência da realidade eespecialmente da função social que desempenha.Este é o fato que nos coloca a incumbência dedesenvolver uma Sociologia do Conhecimento e daCultura. Esta tarefa está sendo atacada de váriasposições filosóficas, todas as quais podem seratribuídas a uma posição social definida. Uma vezque o ponto de vista filosófico de Scheler postulaum sistema de verdades supra-temporal, imutável

(uma posição que, na prática, sempre resulta emse reivindicar validade eterna para nossa própriaperspectiva histórica e sociologicamentedeterminada), ele é compelido a introduzir a"contingência" dos fatores sociológicos como umartifício posterior dentro de seu quadro de refe-rência imóvel e supra-temporal. Mas é impossívelincorporar os fatores históricos e sociológicosorganicamente dentro do nosso sistema, se estaabordagem "de cima" é adotada. Um abismo

Page 89: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 89/198

intransponível separará então a história do supra-temporal.Seguimos na direção oposta: para nós, o que édado de imediato é a mudança dinâmica de

posições, o elemento histórico. Queremosconcentrar nossa atenção sobre isto e explorarqualquer oportunidade que se ofereça para superaro relativismo. Isto implica, como tarefa inicial paraa Sociologia do Conhecimento, prestar contas asmais exatas possíveis das posições intelectuaisque coexistem num dado momento, e de retraçarseu desenvolvimento histórico, pois até asposições individuais como tais não são "estáticas",permanecendo imutáveis do começo ao fim; aocontrário, o fluxo inexorável do processo históricotraz dados sempre novos à superfície, que pedeminterpretação e podem levar a uma desintegraçãoou modificação dos sistemas previamenteexistentes. Mais longe ainda, um dos aspectosimportantes da evolução das posições intelectuaisé a contribuição que elas trazem ao processoevolucionário global dentro da sociedade. Épossível mostrar, em retrospectiva, de que

maneira cada uma das utopias, e também cadauma das imagens da história passada ajudaram amoldar a época na qual emergiram. Existe umconteúdo de verdade determinado exis-tencialmente no pensamento humano a cadaestágio de seu desenvolvimento; isto consiste em,a cada momento, fazer-se uma tentativa paraaumentar a "racionalidade" no mundo sócio-intelectual de uma maneira específica, na direçãoimposta pelo próximo passo evolutivo. A tarefa

Page 90: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 90/198

seguinte dessa Sociologia da Cognição (comodeveria ser chamada de direito) consiste emestudar e explicar esse papel funcional dopensamento social e existencial nos vários estágios

do processo real. A suposição metafísica aquiimplicada (e queremos enfatizar que nossa teoriarealmente pressupõe tal suposição) é que oprocesso global dentro do qual as várias posiçõesintelectuais emergem é um processo significativo.Posições e conteúdos não se sucedem de umamaneira totalmente aleatória, já que são parte deum processo global significativo. Todo o problemada verdade "absoluta" coincidirá, então, com o danatureza desse significado unitário do processocomo um todo; a dúvida é quão longe somoscapazes de apreender o objetivo evolucionário que

pode ser visto num dado momento. Já indicamosuma resposta para essa dúvida: na medida em queuma época já está terminada — naturalmentepode-se dizer terminada apenas no sentido re-lativo, como o dissemos — na medida em que seapresenta como uma Gestalt acabada, podemosespecificar o papel funcional dos padrões de

pensamento relativo ao objetivo ao qual o processoevolucionário se tem orientado. No que toca a pro-cessos em desdobramento, contudo, o objetivoainda não é dado; e não pode ser dito existir in seou de alguma maneira pré-existente. A esterespeito, estamos totalmente in statu nascendi enada vemos a não ser o choque de aspiraçõesantagônicas. Nossa própria posição intelectual estálocalizada dentro de uma dessas colocações rivais;conseqüentemente, só podemos ter uma visão

Page 91: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 91/198

parcial e perspectivista do que se está des-dobrando e também do passado, na medida emque a interpretação do passado depende dainterpretação do processo em desenvolvimento.

Que isto não leva necessariamente a um ilusio-nismo, à negação da realidade do processohistórico, já foi enfatizado. Estamos prontos aadmitir que uma doutrina absolutista no velhosentido não pode ser desenvolvida a partir dessaspremissas sem um "salto" e uma hipostatização denossa própria posição. Mas, então, não podemosnem mesmo visar tal posição absolutista que, aocabo, nada mais é do que a hipostatização dopadrão estrutural de uma concepção estática daverdade. Na nossa opinião, só se pode ainda crernuma "verdade in se" estática enquanto se deixarde reconhecer que não é um sistema único queestá sendo gradualmente construído no processohistórico-cultural como no caso do sistema da Ciên-cia Matemática e Natural. Dentro do processohistórico, o pensamento constantemente tomacomo ponto de partida idéias centrais novas esempre mais amplas. A própria idéia de um

"diálogo sublime" dos espíritos de todas as idades,como Scheler concebe, só pode ocorrer, mesmocomo uma fantasia utópica, a alguém que creia emum sistema de verdades. Uma vez que sereconheça que um "diálogo" desse tipo não podeter lugar dessa maneira simples, se por nenhumaoutra razão ao menos porque toda palavra tem umsignificado diferente em culturas diferentes, comoresultado de sua função existencial ser diferenteem cada caso — uma vez que nos tenhamos capa-

Page 92: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 92/198

Page 93: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 93/198

Page 94: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 94/198

especialmente da dele mesmo, faria a teoria deScheler auto-contraditória, tal reconhecimento nãosó não leva a uma contradição interna na nossateoria e Sociologia do Conhecimento, mas também

constitui para ela uma instância confirmatória. Já que a soma global do conhecimento existentenum dado momento nasce em dependência muitoestreita do processo social real, enquanto o próprioprocesso se aproxima da totalidade através daantítese e da confusão, não é surpreendente quesó pudéssemos descobrir diretamente correntesintelectuais parciais postas umas às outras e sódefinir a totalidade como a soma destas correntesparciais antagônicas. "Onde várias filosofiasemergem simultaneamente", diz Hegel, "temosque nos contentar com aspectos distintos que,reunidos, constituem a totalidade subjacente atodas, e é somente por causa da sua parcialidadeque só podemos ver numa a refutação da outra.Ademais, elas não só especulam acerca depormenores, mas cada um propõe um novoprincípio; é isto que temos de encontrar.""Até aqui, em toda esta discussão, tentamos

focalizar nossa atenção sobre os princípios últimosmais amplos cujas divergências mútuas nãorepresentam "especulação acerca de detalhes",mas ilustram as soluções conflitantes do problemaparticular que se nos apresenta, e que podem seralcançadas de posições de fato atualmenteexistentes. Nossa próxima tarefa é mostrar comoos problemas de uma Sociologia do Conhecimentopodem ser tratados da posição dinâmica querepresentamos.

Page 95: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 95/198

4. A Sociologia do Conhecimento a Partir daPosição Dinâmica

Pensamos que a constelação presente é favorávelao desenvolvimento de uma Sociologia doConhecimento, porque os insights esporádicos naestrutura social do conhecimento obtidos noperíodo inicial têm-se multiplicado rapidamentenos tempos modernos, e alcançaram agora umestágio em que um tratamento sistemático, aoinvés de esporádico e casual, se torna possível. Eprecisamente porque esta "casualidade" estáagora sendo mais e mais superada, centra-se cadavez mais atenção nas premissas filosóficassubjacentes aos achados de detalhe — premissasaté agora não diretamente exploradas. No momen-

to, até eruditos dedicados a estudos especializadosestão conscientes dessa tendência para fechar ocírculo sistematicamente. O ensaio de Scheler évalioso principalmente porque apresenta um planoglobal, um esboço abrangendo várias disciplinas; ebeneficiou-se do fato do autor ser filósofo e aomesmo tempo sociólogo. O trabalho no campo daSociologia do Conhecimento só pode ser frutíferose as premissas filosóficas e metafísicas de cadaautor forem abertamente reconhecidas, e se osautores possuírem a habilidade de observar opensamento tanto "de dentro", em termos de suaestrutura lógica, quanto "de fora", em termos de

seu condicionamento e função sociais.Agora tentaremos indicar como uma Sociologia doConhecimento sistemática pode ser desenvolvida

Page 96: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 96/198

baseando-se numa concepção dinâmica. Jáesboçamos os princípios básicos de nossaabordagem; o que resta fazer é analisar tambémos problemas metodológicos relevantes.

Se adotarmos uma concepção dinâmica deverdade e de conhecimento, o problema central deuma Sociologia do Conhecimento será o da gênesesocialmente condicionada das várias posições queenglobam os padrões de pensamento disponíveisem cada época determinada. Todo o esforço seráconcentrado sobre este ponto único, porque amudança e crescimento interno das váriasposições contêm para nós toda a substância dopensamento. A análise sociológica do pensamento,procedida até aqui apenas de maneirafragmentária e casual, agora se torna o objeto deum programa científico global que permite umadivisão do trabalho, já que foi decidido examinar-seo produto intelectual de cada período e descobrirem que posições e premissas sistemáticas sebaseava o pensamento em cada caso. Isto, o

primeiro problema maior de uma Sociologia doConhecimento, pode ser atacado conjuntamente

com o trabalho feito no campo da "história dasidéias", o qual tem sido extremamente frutíferotanto no que diz respeito aos métodos como noque toca aos resultados. Em vários campos(político, filosófico, econômico, estético, moral etc.)a história das idéias mostra-nos uma variedadeextrema de elementos de pensamento cambiantes;mas esses esforços atingirão sua culminância, aplena realização de seu significado, apenas quandotivermos notícia não só acerca de conteúdos

Page 97: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 97/198

mutáveis de pensamento, mas também acerca das premissas sistemáticas, freqüentemente apenasimplícitas, sobre as quais uma determinada idéiase baseou em sua forma original — para ser mais

tarde modificada a fim de satisfazer a um conjuntodiferente de premissas, e assim sobreviver sobnovas condições. Isto é: a história das idéias sópode alcançar seu objetivo, que é dar conta doprocesso inteiro da história intelectual de umaforma sistemática, se for suplementada por umaanálise estrutural histórica dos vários centros desistematização que se sucedem de formadinâmica. Realmente vemos um início desse tipode análise (e. g., em trabalhos fazendo distinçãoentre o "romantismo" ou o "iluminismo" comoclimas vitais diferentes dando origem amodalidades diferentes de pensamento); e apenasse levaria essas idéias às suas últimasconseqüências lógicas se se fizesse um esforçosistemático para desnudar os axiomas últimossubjacentes ao pensamento "romântico" e"iluminista" respectivamente, e definir o tipo desistema a que pertencem esses padrões de

pensamento com a maior precisão lógica emetodológica possível hoje em dia. Isto significariaapenas que se utilizaria para análise histórica aprecisão lógica que é característica do nossotempo. Já neste ponto, contudo, temosoportunidade de apontar uma limitação da históriadas idéias — sua análise é feita em termos de"épocas". De um ponto de vista sociológico, tantoas "nações" como as "épocas" são muito poucodiferenciadas para servir como base de referência

Page 98: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 98/198

à descrição do processo histórico. O historiadorsabe que uma certa época somente parecerádominada por apenas uma corrente intelectual,quando temos uma visão perfunctória dela.

Penetrando mais fundo no pormenor histórico,veremos cada época dividida entre várias cor-rentes; pode acontecer, no máximo, que umadestas correntes alcance dominância e relegue asoutras a um segundo plano. Nenhuma corrente é

jamais completamente eliminada; mesmo quandouma está vitoriosa, todas as outras que pertencema um ou outro setor social continuarão a existir emsegundo plano, prontas para reemergir e sereconstituir num nível mais alto quando for tempoazado. É bastante pensar no ritmo peculiar comque fases "racionalísticas" e "românticas" constan-temente se sucederam durante o mais recenteperíodo da história européia, para noscapacitarmos de que estamos lidando aqui comramos separados da evolução, que, não obstante,estão relacionados entre si por alguma lei superior.Contudo, não é suficiente reconhecer estaevolução em ramos separados; também devemos

levar em consideração a maneira pela qual ascorrentes principais sempre se ajustam entre si.Ambos os problemas têm que ser trabalhados poruma história de idéias sistemática, como primeirocapítulo de uma Sociologia do Pensamento. Poisnão se pode fazer vista grossa, por exemplo, aofato de que toda vez que o romantismo faz umnovo avanço sempre leva em consideração ostatus do pensamento racionalista dominante esimultaneamente existente; não só as duas escolas

Page 99: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 99/198

aprendem uma da outra como até tentam elaboraruma síntese ainda mais ampla, para dominar anova situação.Não obstante, se não fôssemos mais longe, nunca

produziríamos uma Sociologia do Conhecimento.Por mais sistemática que seja, uma análisepuramente imanente da gênese das posiçõesintelectuais ainda não passa de uma história deidéias. Esse trabalho sistemático preliminar nahistória de idéias só pode levar a uma Sociologiado Conhecimento quando examina o problema decomo as várias posições intelectuais e "estilos depensamento" estão enraizados numa realidadehistórico-social subjacente. Também em relação aisso, na nossa opinião seria um erro considerar arealidade, a realidade social, como uma correnteunitária. Se dentro da história das idéias é umprocedimento muito indiferenciado tomar asépocas como unidade, é um erro igualmentegrande conceber a realidade subjacente aoprocesso ideológico como uma unidade homogê-nea. Afinal, não se pode duvidar que qualquer tipomais elevado de sociedade é composto de vários

estratos diferentes, da mesma maneira que a vidaintelectual mostra uma variedade de correntes; nanossa própria sociedade, a estratificação pode sermelhor descrita como estratificação de classe. E adinâmica global da sociedade é uma resultante detodos os impulsos parciais emanados dessesestratos. A primeira tarefa, então, será descobrir sehá uma correlação entre as posições intelectuaisvistas em imanência e as correntes sociais(posições sociais). A descoberta dessa correlação é

Page 100: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 100/198

a primeira tarefa específica da Sociologia doConhecimento. A descrição imanente da gênesedas posições intelectuais pode ainda serconsiderada como a continuação do trabalho do

historiador de idéias; a história da estratificaçãosocial pode ainda ser vista como parte da históriasocial. Mas a combinação desses dois campos deinvestigação introduz uma abordagemespecificamente sociológica. Contudo, éimportante precisamente neste ponto eliminar onaturalismo, como também aquelas atitudesrelacionadas à intenção polêmica original daSociologia. Embora o problema esboçado acimatenha sido primeiramente formulado em termos dafilosofia marxista da história, devemos, ao estudá-lo, ter o cuidado de renunciar a toda metafísicamaterialista e de excluir (ou reduzir ao elementode verdade nelas contido) todas as consideraçõespropagandísticas. Primeiramente, até a maissuperficial vista de olhos nos dados históricosmostrará que é impossível identificar qualquerdeterminada posição intelectual com umdeterminado estrato ou classe — como se, por

exemplo, o proletariado tivesse uma ciênciaprópria, desenvolvida num espaço intelectualfechado, e a burguesia outra, nitidamenteseparada da primeira. Esse grosseiro exageropropagandístico pode conduzir tão somente a umasuper simplificação incorreta da história; porconseguinte, temos que suspender a crença aténos assegurarmos de quanto de verdade elacontém (pois contém, de fato, certo elemento deverdade).

Page 101: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 101/198

Até o exame imanente das várias posiçõesintelectuais e cognitivas, como é feito por umahistória de idéias sistemática, mostra que elas nãopairam no ar ou se desenvolvem e se ramificam

puramente de dentro, mas devem ser postas emcorrelação com certas tendências incorporadaspelos estratos sociais. De início, este "pôr emcorrelação" apresentará certa dificuldade para ossociólogos. A época naturalista do marxismo re-conhecia apenas uma possível correlação entre arealidade social e os fenômenos intelectuais: asaber, a de uma atitude intelectual ser ditada porum interesse material. É porque a fase inicial dapesquisa ideológica era somente motivada por um"desmascaramento", que ser "ditado por uminteresse" era a única forma de condicionamentosocial de idéias reconhecida. Não negamos quecertas posições intelectuais podem ser adotadas epromovidas porque são úteis, seja para propagar,seja para esconder interesses de grupos; eadmitimos que só pode ser desejável desmascarartais atitudes. Contudo, esta motivação porinteresse não é a única correlação que pode existir

entre um grupo social e suas posições intelectuais.A pesquisa ideológica socialista é parcial, porqueconcentra primordialmente a atenção sobre aforma de condicionamento social das idéias que érepresentada pela motivação de interesse.Se a categoria de "interesse" é reconhecida comoa única "relação existencial" implicada em idéias,seremos forçados ou a restringir a análisesociológica àquelas partes da superestrutura quemanifestamente mostram "cobertura" ideológica

Page 102: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 102/198

de interesse ou, se sem embargo desejarmosanalisar toda a superestrutura em termos de suadependência da realidade social, teremos quedefinir o termo "interesse" tão amplamente que êle

perderá seu sentido original. Na nossa opinião,nenhum dos dois caminhos conduz ao objetivo. Sequeremos ampliar a pesquisa ideológicatransformando-a numa Sociologia do Co-nhecimento, e combiná-la com o trabalhocontemporâneo executado no campo da históriadas idéias, a primeira tarefa é superar aparcialidade de reconhecer na motivação porinteresse a única forma de condicionamento socialde idéias. Isto pode ser facilmente levado a efeitoatravés de uma demonstração fenomenológica dofato da motivação por interesse ser apenas umadas muitas formas possíveis pelas quais a adoçãode certas atitudes por uma psique pode sercondicionada pela experiência social. Assim, podeacontecer que professemos certa teoria econômicaou certas idéias políticas porque estão emharmonia com nossos interesses. Masseguramente nenhum interesse imediato está

envolvido na escolha de um certo estilo artístico oude pensamento; não obstante, essas entidadestambém não pairam no ar, mas são desenvolvidaspor certos grupos como resultados de fatoreshistórico-sociais. No caso de idéias mantidas porinteresse direto, podemos falar de "interesse";para designar a relação mais indireta entre osujeito e aquelas outras idéias podemos usar aexpressão paralela "comprometimento". De fato, éuma das características mais marcantes da história

Page 103: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 103/198

que um determinado sistema econômico estejasempre inserido, pelo menos quanto à sua origem,em determinado universo intelectual, de talmaneira que os que buscam uma determinada

ordem econômica também buscam uma visãointelectual a ela correlata. Quando um grupo estádiretamente interessado em um sistemaeconômico está indiretamente "comprometido"com as demais formas intelectuais, artísticas,filosóficas etc., que lhe correspondem. Dessamaneira, o "comprometimento" indireto comdeterminadas formas mentais é a categoria maisglobal no campo do condicionamento social dasidéias.A motivação por interesse surge, então, como casoparcial quando comparado com a categoria geralde "compromisso", e é a esta que devemosrecorrer na maioria dos casos quando queremosprecisar a relação entre os "estilos depensamento" e as "posições intelectuais", por umlado, e a realidade social, por outro. Enquanto ométodo do marxismo "vulgar" consiste em associardiretamente até os produtos mais esotéricos e

espirituais da mente com interesses econômicos ede poder de uma certa classe, a pesquisasociológica que visa à elucidação da configuraçãototal da vida intelectual não emulará esta abor-dagem grosseira; contudo, ansiosa para salvar oelemento de verdade da filosofia marxista dahistória, ela reexaminará cada passo postulado poresse método. Ter-se-á um começo no sentido detal revisão se houver a decisão de só se usar acategoria de motivação por interesse quando

Page 104: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 104/198

realmente se puder ver os interesses em ação, enão onde um mero "compromisso" com umaWeltanschauung existir. Neste ponto podemoslançar mão do nosso próprio método sociológico

que nos ajudará a reconhecer esta aplicaçãoexclusiva da categoria de interesse comodeterminada ela mesma por uma certa constelaçãohistórica, caracterizada pela predominância daabordagem da Economia clássica. Se, contudo, acategoria do interesse for elevada ao grau de umprincípio absoluto, o resultado só poderá ser a re-dução do papel da Sociologia ao de reconstruir ohomo economicus, embora, com efeito, aSociologia deva examinar o homem como um todo.Assim, não podemos atribuir a um grupo um estilode pensamento, uma obra de arte etc., como opróprio dele, baseado em uma análise deinteresse. Podemos, não obstante, mostrar que umdeterminado estilo de pensamento, uma posiçãointelectual, é englobado por um sistema de atitu-des que, por sua vez, pode ser visto como estandorelacionado a um determinado sistema econômicoe de poder; podemos, então, perguntar quais os

grupos sociais que estão "interessados" naemergência e manutenção desse sistemaeconômico e social e ao mesmo tempo"comprometidos" com a visão de mundocorrespondente.Assim, a construção de uma Sociologia doConhecimento só pode ser empreendida tomando-se um caminho indireto através do conceito desistema total de uma visão de mundo (através daSociologia Cultural). Não podemos relacionar

Page 105: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 105/198

diretamente uma posição intelectual com umaclasse social; o que podemos fazer é descobrir acorrelação entre o "estilo de pensamento"subjacente a uma dada posição e a "motivação

intelectual" de um certo grupo social.Se examinarmos a história do conhecimento e dopensamento tendo em mente tais dúvidas,buscando compreender como está inserida nahistória do processo real, social, então acharemosa cada momento não só grupos antagônicos a secombater como também um conflito de"postulados sobre o mundo" (Weltwollungen)opostos. No processo histórico, não são apenasinteresses que combatem interesses, maspostulados sobre o mundo lutam com postuladossobre o mundo. Este fato é sociologicamenterelevante, porque estes vários "postulados sobre omundo" (dos quais os diversos estilos de pensa-mento são meros aspectos parciais) não seconfrontam de uma maneira arbitrária,desestruturada; antes, cada postulado está ligadoa um certo grupo e se desenvolve dentro do pensa-mento daquele grupo. A cada momento, é apenas

um estrato que está interessado em manter osistema social e econômico existente e portanto seapega ao estilo de pensamento correspondente; hásempre outros estratos cujo ambiente espiritual éum ou outro estágio passado de evolução, e aindaoutros, apenas surgindo, que sendo novos, aindanão se tornaram autônomos e, portanto, colocamsua fé no futuro. Uma vez que os diferentesestratos estão "interessados em" e "comprometi-dos com" diferentes ordens e postulados sobre o

Page 106: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 106/198

mundo, sendo algumas coisas do passado e outrosestando apenas emergindo, é óbvio que osconflitos de valor permeiam todos os estágios daevolução histórica.

Pode-se demonstrar melhor que um "estilo depensamento" pode estar associado à emergênciade um determinado estrato social pelo fato doracionalismo moderno (como repetidamenteindicamos) estar ligado aos postulados sobre omundo e às aspirações intelectuais da burguesiaascendente, de posteriormente correntescontrárias aliarem-se ao irracionalismo, e de umaconexão semelhante existir entre o romantismo eas aspirações conservadoras. Partindo de taisinsights, podemos fazer análises de correlaçõesentre os estilos de pensamento e os estratossociais — contudo, estas só serão frutíferas se asatribuições não forem feitas num sentido estático— e. g., por identificação do racionalismo compensamento progressista e do irracionalismo comreacionário, em toda constelação que se possaconceber. O que devemos lembrar é que nem oracionalismo nem o irracionalismo (particularmente

nas suas formas atuais) são tipos eternos detendências intelectuais, e que um certo estrato nãoé sempre progressista e conservador, respecti-vamente, no mesmo sentido. "Conservador" e"progressista" são atributos relativos; se um certoestrato é progressista, conservador, ou, pior ainda,reacionário, sempre depende da direção na qual oprocesso social se está movendo. Na medida emque a orientação fundamental do progressoeconômico e intelectual progride, estratos que

Page 107: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 107/198

começaram sendo progressistas se podem tomarconservadores depois de terem realizado suaambição; estratos que num dado momentodesempenhavam um papel principal subitamente

podem-se sentir impelidos a fazer oposição àorientação dominante.Portanto, é importante, já nesta altura, evitarinterpretar tais conceitos relativos comocaracterísticas eternas; mas devemos fazer aindaoutra distinção se queremos fazer justiça à enormevariedade da realidade histórica. Aoestabelecermos correlações entre os produtos damente e os estratos sociais, devemos distinguirentre estratificação intelectual e social. Podemosdefinir os estratos sociais de acordo com oconceito marxista de classe, em termos de seupapel no processo de produção. Mas é impossível,na nossa opinião, estabelecer um paralelismohistórico entre as posições intelectuais e osestratos sociais assim definidos. A diferenciação nomundo da mente é grande demais para permitir aidentificação de cada corrente, cada posição, comuma determinada classe. 1 Por conseguinte, temos

que introduzir um conceito intermediário paraefetuar a correlação entre o conceito de "classe",definido em termos de papéis no processo deprodução, e o de "posição intelectual". Esteconceito intermediário é o de "estratosintelectuais". Com "estrato intelectual" queremosdizer um grupo de pessoas pertencentes a umadeterminada unidade social e partilhando de1 Em Wirtschaft und Gesellschaft, Max Weber procura fazer um relato completo da grandevariedade da estratificação social.

Page 108: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 108/198

determinado "postulado sobre o mundo" (do qualpodemos mencionar, como partes, o sistemaeconômico, o sistema filosófico, o estilo artístico"postulado" por eles) 2 que num dado momento

estão "comprometidos" com um determinado estilode pensamento teórico e de atividade econômica. 3

Devemos primeiro identificar os vários "postuladossobre o mundo", sistemas de Weltanschauung, ase combaterem, e procurar os grupos sociais queadvogam cada um; só quando esses "estratosintelectuais" são especificados, podemos perguntarque "estratos sociais" a eles correspondem. Assim,é possível especificar os grupos de pessoas que,num dado momento, estão unidas numa visão"conservadora", e partilham de um conjunto deidéias comuns que atravessam um processoincessante de transformação; o sociólogo dacultura, contudo, não se deve contentar emabordar esse assunto de seu ponto de vistadoutrinal, mas deve também se perguntar que"classes sociais" compõem tal "estrato intelectual".Só podemos compreender a transformação dasvárias ideologias baseados nas mudanças da

composição social do estrato intelectual corres-pondente a elas. O mesmo se aplica, obviamente,aos tipos de Weltanschauung progressistas. Oproletariado (para mostrar o reverso da correlaçãocom que estamos lidando) constitui uma classe;mas esta classe social está dividida quanto aos

2 Esta "postulação" não é um "querer" refletidamente consciente, mas uma orientação latentinconsciente, análoga ao "motivo de arte"{Kunstwollen) de A. Riegl.3 Num contexto puramente econômico, W. Sombart define "classe social" de maneira análoga; Sozialismus und Soziale Bewegung, 8.a edição, p. 1.

Page 109: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 109/198

"postulados sobre o mundo" de seus membros,como é claramente mostrado pelo fato doproletariado se filiar a vários partidos políticosdiferentes. O único ponto de interesse para o

sociólogo é este: que tipos de postuladosprogressistas do mundo existem num dadomomento, quais são os estratos intelectuaisprogressistas adeptos deles, e que estratos sociaisdentro do proletariado pertencem a estes váriosestratos intelectuais?A função peculiar desse conceito intermediário, ode "estrato intelectual", é tornar possível umacoordenação de configurações intelectuais comgrupos sociais, sem tirar a nitidez da diferenciaçãomais interna, seja do mundo da mente, seja darealidade social. Além disso, temos que levar emconsideração o fato de que em nenhum momentoda história um estrato produz, por assim dizer, noar, como algo puramente inventado. Tanto osgrupos conservadores como os progressistas devários tipos herdam ideologias que de algumaforma existiram no passado. Grupos conservadoresrecaem sobre atitudes, métodos de pensamento e

idéias de épocas remotas e adaptam-nos às novassituações; mas os grupos recém-emersos tambémtomam inicialmente idéias e métodos já existentes,de tal maneira que um corte transversal dasideologias rivais a se combaterem numdeterminado momento também representa umcorte transversal através do passado histórico dasociedade em questão. Se, contudo, focalizamosnossa atenção exclusivamente sobre este aspectode "herança" do assunto, e tentamos reduzir a êle

Page 110: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 110/198

a relação total entre realidade social e o processointelectual, obteremos um tipo completamenteerrôneo de historicismo. Se olhamos o processo deevolução intelectual e o papel dos estratos sociais

deste processo unicamente por esse ponto devista, de fato parecerá que nada aconteceu excetoo desdobramento das potencialidades de antemãodadas. Contudo, é meramente uma peculiaridadeda concepção conservadora do historicismo inter-pretar-se a natureza contínua de todos osprocessos históricos como implicando que tudotenha sua origem em algo temporalmenteprecedente. A variante progressista do historicismoolha o processo da evolução do ângulo do statusnascendi.Só esta perspectiva permite ver que até motivos easpectos simplesmente retirados de umpredecessor sempre se transformam em algodiferente devido a esta própria passagem, apenasporque seu patrono é diferente, e os relaciona auma situação diferente. Ou, colocando maissucintamente: a mudança de função de uma idéiasempre implica uma mudança de significado — isto

sendo um dos argumentos mais essenciais emfavor da proposição da história ser um meio criadorde significados e não apenas um meio passivo noqual significados preexistentes, contidos em simesmos, realizam-se. Dessa maneira, devemosacrescentar à nossa lista de categorias esteconceito central de toda Sociologia da Cultura e doPensamento, o de "mudança de função"; pois que,sem isto, não poderíamos produzir nada mais doque uma simples história de idéias.

Page 111: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 111/198

Todavia, distinguiremos dois tipos de mudança defunção: uma imanente e. uma sociológica. Falemosde uma mudança imanente de função (no reino dopensamento, para mencionar apenas um dos

campos em que este fenômeno pode ocorrer),quando um conceito passa de um sistema deidéias para outro. Termos como "ego", "dinheiro","romantismo" etc., significam algo diferente, deacordo com o sistema dentro dos quais são usados.Com mudança sociológica de função, entretanto,queremos dizer a mudança no significado de umconceito ocorrida quando este conceito é adotadopor um grupo que vive num meio social diferente,de tal maneira que a significação vital do conceitose torna diferente. Cada idéia adquire umsignificado novo quando é aplicada a uma novasituação de vida. Quando novos estratosencampam sistemas de idéias oriundos de outrosestratos, sempre se pode demonstrar que asmesmas palavras significam algo diferente para osnovos patronos, porque estes últimos pensam emtermos de aspirações e configurações existenciaisdiferentes. Esta mudança social de função é,

então, como foi afirmado acima, também umamudança de significado. Embora seja verdade quediferentes estratos sociais, que cultivam o mesmocampo cultural, partilhem das mesmas idéias"germinais" (esta sendo a razão pela qual épossível a compreensão de um estrato para outro),a realidade social em desenvolvimento introduzalgo incalculável, criativamente novo no processointelectual, porque as novas situaçõesimprevisíveis, que emergem dentro da realidade,

Page 112: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 112/198

constituem novas bases de referência existenciaispara idéias familiares. Os estratos sociaisdesempenham um papel criador precisamenteporque introduzem novas intenções, novas

direções de intencionalidade, novos postuladossobre o mundo, dentro do já desenvolvido quadrode referência das idéias dos estratos mais velhos,que então os apropriam, e assim sujeitam suaherança a uma mudança produtiva de função.Estratos sociais diferentes, então, não "produzemsistemas diferentes de idéias" (Weltanschauung)num sentido grosseiro, materialista — de quefalsas ideologias podem ser "manufaturadas" —eles os "produzem", antes, no sentido de quegrupos sociais emergentes dentro do processosocial estão sempre em posição de projetar novasdireções daquela "intencionalidade", daquelatensão vital, que acompanha toda a vida. A razãopor que é tão importante no estudo das mudanças"imanentes" da função de uma determinada idéia(a passagem de uma unidade de significado paraum novo sistema) observar também as tensões easpirações vitais que atuam por trás do

pensamento teórico, e que introduzemantagonismos na vida da sociedade como um todo— a razão pela qual é tão importante estudar essastensões reais é ser extremamente provável queuma mudança imanente de função seja precedidapor uma sociológica, ou seja, que alterações narealidade social sejam a causa subjacente dealterações nos sistemas teóricos.Se abordamos a tarefa de uma Sociologia doConhecimento com essas premissas em mente, ela

Page 113: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 113/198

se apresentará da seguinte forma: a tarefaprincipal consiste em especificar, para cada cortetransversal do processo histórico, as váriasposições intelectuais sistemáticas nas quais o

pensamento dos grupos e indivíduos criativos foibaseado. Uma vez feito isto, contudo, essasdiferentes tendências do pensamento nãodeveriam ser confrontadas como posições numdebate meramente teórico, mas dever-se-iaexplorar suas raízes vitais, não-teóricas. Para fazeristo, primeiramente temos que descobrir aspremissas metafísicas subjacentes às váriasposições sistemáticas; depois devemos perguntarquais dos "postulados sobre o mundo" coexistentesnuma dada época são os correlatos de umdeterminado estilo de pensamento. Quando essascorrespondências ficarem estabelecidas, teremosidentificado os estratos intelectuais que secombatem. A tarefa propriamente sociológica,contudo, começa apenas depois de feita estaanálise "imanente" — ela consiste em descobrir osestratos sociais que compõem os estratosintelectuais em questão. É apenas em termos do

papel desses últimos estratos dentro do processoglobal, em termos de suas atitudes em relação ànova realidade emergente, que podemos definir asaspirações fundamentais e os postulados sobre omundo existentes num determinado momento, quepodem absorver idéias e métodos já existentes eos sujeitar a uma mudança de função — para nãofalar nas formas recém-criadas. Tais mudanças defunção não são de modo algum misteriosas; épossível determiná-las com exatidão suficiente

Page 114: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 114/198

através da combinação de métodos sociológicoscom os da história das idéias. Podemos, porexemplo, retornar à origem histórica e sociológicade uma idéia e então, seguindo sua própria

evolução, determinar, por assim dizer, o "ângulode refração" cada vez que sofre uma mudança defunção, pela especificação do novo centrosistemático ao qual a idéia se torna ligada, e simul-taneamente perguntar que mudanças existenciaisno contexto real são espelhadas pela mudança designificado.Como exemplo bastante familiar, podemosmencionar a mudança da função do métododialético — o leitmouv da presente discussão. Adialética foi claramente formulada pela primeiravez por Hegel dentro do quadro de referência deum postulado sobre o mundo conservador (nãodiscutiremos a história inicial do método). QuandoMarx o encampou, modificou-o em vários aspectos.Queremos mencionar só duas dessas revisões.Primeiramente, "colocou-se a dialética sobre seuspróprios pés", ou seja, foi retirada de seu contextoidealista e reinterpretada em termos da realidade

social. Em segundo lugar, o termo final dadinâmica histórica tornou-se o futuro em vez dopresente. Ambas as modificações, querepresentam uma mudança de significado nométodo, podem ser explicadas pela "mudança dafunção" provocada pelo impacto das aspiraçõesvitais do proletariado que Marx tornou suas.Podemos explicar os novos traços do sistema porrelembrar que a vida do proletariado gira em tornode problemas econômicos, e que sua tensão vital é

Page 115: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 115/198

dirigida para o futuro. Por outro lado, o sistema deHegel também, pode-se demonstrar, foideterminado sociologicamente. O fato de nestesistema a fase terminal do dinamismo da história

ser o presente espelha o sucesso alcançado poruma classe que, tendo-se tornado autônoma, quermeramente conservar o que já realizou.Se definimos a Sociologia do Conhecimento comouma disciplina que explora a dependênciafuncional de cada posição intelectual da realidadediferenciada do grupo social que lhe estásubjacente, e que se coloca a tarefa de retraçar aevolução das várias posições, então parece que ocomeço frutífero, efetuado pelo historicismo, deveapontar a direção em que são possíveis maioresprogressos. Tendo indicado as premissas sis-temáticas que caracterizam o historicismo comoponto de partida para uma Sociologia doConhecimento, passamos a sugerir alguns poucosproblemas metodológicos implicados por estaabordagem. Ao mesmo tempo, todavia, tambémquisemos mostrar o método em operação, e porisso descrevemos as principais "posições" das

quais se pode empreender a elaboração de umaSociologia do Conhecimento, na presenteconstelação. Pensamos que uma tal análise dasituação presente do problema, em termos dascategorias da Sociologia do Conhecimento, con-tribuiria para dar a esta disciplina uma noção maisclara de si mesma.

SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

Page 116: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 116/198

ROBERT K. MERTONTradução de S ÉRGIO SANTEIRO

A última geração viu surgir um novo campo

especial de estudos sociológicos: a Sociologia doConhecimento (Wissenssoziologie). O termo"conhecimento" deve aqui ser tomado em seusentido mais amplo, uma vez que tais estudos setêm referido a praticamente toda uma gama deprodutos culturais (idéias, ideologias, crenças

jurídicas e éticas, filosofia, ciência, tecnologia).Entretanto, qualquer que seja o conceito de "co-nhecimento", a orientação central desta novadisciplina permanece a mesma: as relações entre oconhecimento e os demais fatores existenciais deuma sociedade ou de uma cultura. Mesmo que talformulação do objeto central possa parecer genéri-ca e imprecisa, uma definição mais específica nãocompreenderia os diversos enfoques que se lhetem aplicado.

Torna-se, portanto, evidente que a Sociologia doConhecimento se prende a problemas que vêmsendo discutidos há muito tempo, tanto que

encontrou em Ernst Gruenwald seu primeirohistoriador. 4 Contudo, é outro o nosso interessecom respeito aos vários antecedentes de teoriascorrentes. Na verdade, poucas são as observaçõesatuais que não tenham sido anteriormenteregistradas, ainda que por mera alusão. Dizia-se a

4 O presente artigo não tratará desses antecedentes. Ernst Gruenwald apresenta um esboço de se primeiros desenvolvimentos, pelo menos desde a assim chamada Era das Luzes em Das Problemder Soziologie des Wissens (Viena-Leipzig: Wilhelm Braumueller, 1934). Para um levantamentorecente, ver H. Otto Dahlke, "The Sociology of Knowledge", H. E. Barnes e F. B. Becker, orgContemporary Social Theory (Nova York: Appleton-Century, 1940), pp. 64-89.

Page 117: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 117/198

Henrique IV "Teu desejo, Henrique, gerou talpensamento", uns poucos anos antes de Baconescrever "A compreensão humana não é apenasluz, ela está impregnada de vontade e de

sentimento; daí derivam as ciências que sepoderiam chamar 'ciências como se gostaria". ENietzsche tinha deixado uma série de aforismossobre os modos pelos quais as "necessidades"determinam as "perspectivas" segundo as quaisinterpretamos o mundo, de forma que mesmo aspercepções sensoriais se permeiam de juízos devalor. A pré-história da Sociologia do Co-nhecimento (Wissenssoziologie) vem assimconcordar com Whitehead: "aproximar-se de umateoria verdadeira e captar-lhe a aplicação exatasão duas coisas bastante diferentes, como nos temdemonstrado a história da ciência. Tudo o queexiste de importante já foi dito por alguém que,entretanto, não o descobriu".

Além de todo o problema de suas origenshistóricas e intelectuais, existe ainda a indagaçãodos fundamentos do interesse que a Sociologia doConhecimento tem despertado em nossos dias.Como é bem sabido, tem-se cultivado a Sociologiado Conhecimento como disciplina distintaespecialmente na Alemanha e na França, ao passoque os sociólogos americanos somente nas últimasdécadas têm devotado uma atenção cada vezmaior aos problemas desta área. O maior número

de publicações e de teses de doutorado, provadecisiva de seu reconhecimento no consenso

Page 118: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 118/198

acadêmico, evidencia em parte esse aumento deinteresse.A explicação imediata, e obviamente inadequada,desse fenômeno seria encontrada no fato de que

os sociólogos recém-chegados aos Estados Unidosé que trouxeram o pensamento sociológicoeuropeu. Para sermos exatos, eles se alinhavamrealmente entre os estudiosos daWissenssoziologie. Entretanto, isto apenas explicaa disponibilidade dessas concepções entre nós enão, como também não poderia ser explicado porqualquer outro meio de difusão cultural, a suaaceitação efetiva.A Sociologia do Conhecimento encontrou acolhidano pensamento americano por apresentarproblemas, conceitos e teorias que mais e maissão pertinentes à situação social contemporâneados Estados Unidos, situação que vem adquirindocertas características daquelas sociedadeseuropéias onde inicialmente se desenvolveu estaSociologia.A Sociologia do Conhecimento torna-se pertinentenum determinado complexo de condições sociais e

culturais.5

Devido à intensificação dos conflitossociais, as diferenças entre as atitudes, valores emodos de pensar dos grupos vão-se acentuando, aponto de a orientação comum que os reunia ante-riormente ser obscurecida por diferençasincompatíveis. Não se trata apenas da formação devários universos de pensamento, mas de que a

5 Ver Karl Mannheim, Ideology and Utopia (Nova York: Har-court, Brace, 1936), pp. 5-12; 45. P.A. Sorokin,Social and Cultural Dynamics (Nova York: American Book Co., 1937), II, pp. 412-413.

Page 119: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 119/198

simples existência de qualquer um deles desafia avalidade e a legitimidade dos demais. Acoexistência de tais perspectivas e interpretaçõesconflituosas na mesma sociedade conduz a uma

ativa e recíproca desconfiança entre os grupos.Num ambiente de desconfiança já não se vaiindagar do conteúdo das crenças e das afirmaçõescom provas relevantes; introduz-se uma perguntainteiramente nova: como se explica a permanênciade tais pontos de vista? O pensamento se tornafuncional; passa a ser interpretado em termos desuas raízes e funções psicológicas, econômicas,sociais ou raciais. Em geral, tal recurso se aplica acasos em que as declarações se apresentem comopouco dignas de crédito, ostensivamenteimprováveis, absurdas, tendenciosas, de tal formaque já não interessa mais examinar as provascontra ou a favor dos argumentos, bastandodescobrir as razões que as motivaram. 6 Essasdeclarações adulteradas são "explicadas por" ou"imputadas a" interesses particulares, motivosinconscientes, perspectivas destorcidas, posiçãosocial etc. Conseqüentemente, ao nível do senso

comum isto leva a ataques recíprocos àintegridade dos opositores, enquanto os maissistemáticos procedem a mútuas "análises ideo-lógicas". Os ataques e análises alimentam essa

6 Freud observou essa tendência a preferirmos buscar as "origens" de afirmações, que nos pareceverdadeiramente absurdas, a testar sua validade. Suponhamos que alguém sustente que o centroterra é feito de doce. "Nossa objeção intelectual se manifestará através de umadistração da

atenção; ao invés de considerar a suposição, se o centro da terra é ou não é feito de doce, perguntaremos que tipo de homem deve ser este, para meter semelhante idéia na cabeça . . . "Sigmund Freud, New Introductory Lectures (Nova York: W. W. Norton, 1933), p. 49. No nívelsocial, uma radical diferença de perspectivas entre vários grupos sociais provoca não só ataquesad hominem, mas também "explicações funcionais".

Page 120: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 120/198

atmosfera de insegurança coletiva, e são por elaalimentados.Nesse contexto social, toda uma série deinterpretações do homem e da cultura, partilhando

certos pressupostos comuns, encontra largaexpressão. Apesar de diferirem entre si sob outrosaspectos, não só a análise ideológica e a Sociologiado Conhecimento como também a Psicanálise, omarxismo, a semântica, a análise da propaganda,a doutrina de Pareto e até certo ponto a análisefuncional, todas possuem uma concepção se-melhante do papel das idéias. De um lado sesituam a verbalização e as idéias (ideologias,racionalizações, expressões emotivas, distorções,folklore, derivações), consideradas como ex-pressivas, derivativas ou frustradoras (de si ou deoutras), todas relacionadas funcionalmente aalgum substrato. De outro lado se encontram ossubstratos como são diversamente conceituados(relações de produção, posição social, impulsosbásicos, conflitos psicológicos, interesses esentimentos, relações interpessoais e resíduos). Eao longo de tudo isso sobressai o tema básico da

determinação inconsciente das idéias pelossubstratos; a ênfase na distinção entre real eilusório, entre realidade e aparência na esfera dopensamento, crença e comportamento do homem.E qualquer que seja a intenção de quem as faz, asanálises tendem a se dotar de uma qualidadecorrosiva: tendem a acusar, secularizar, ironizar,satirizar, alienar, desvalorizar o conteúdointrínseco à crença ou ponto de vista firmados.Basta considerar o que sugerem os termos usados

Page 121: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 121/198

nesses textos para referir crenças, idéias epensamentos: mentiras vitais, mitos, ilusões,derivações, folklore, racionalizações, ideologias,fachadas verbais, pseudo-razões etc.

A característica comum a todos esses esquemas éa prática de rejeição do valor aparente dasafirmativas, crenças, sistemas de idéias,reexaminando-os em novo contexto que fornece o"significado efetivo". As afirmações, normalmenteconsideradas por seu conteúdo manifesto, são"desmistificadas", qualquer que seja a intenção doanalista, no confronto de seu conteúdo com ascaracterísticas de quem as enuncia, ou da so-ciedade em que vive. O iconoclasta profissional, odesmistifica-dor treinado, o analista ideológico eseus respectivos sistemas de pensamentoprosperam numa sociedade onde grandes gruposde pessoas se vêm distanciando de valorescomuns, onde universos distintos de pensamentose interligam por desconfianças mútuas. Asanálises ideológicas têm sistematizado a ausênciade fé nos símbolos consagrados; daí derivam suapertinência e popularidade. O analista ideológico,

mais do que formar um séquito, "dirige-se" a umséquito que "entende" suas análises, pois estasestão de acordo com suas experiências préviasnão-analisadas. 7

7 O conceito de pertinência foi proposto pelos precursores marxistas da Sociologia doConhecimento. "As conclusões teóricas dos comunistas não se baseiam absolutamente nas idéias

princípios inventados ou descobertos por tal ou qual reformador universal. Elas simplesmenteexprimem, em termos gerais, as relações de fato que surgem da luta de classes existente, domovimento histórico que se desenvolve sob nossos próprios olhos..." Karl Marx e Friedrich EngeThe Com-munist Manifesto, em Karl Marx,Selected Works (Moscou: Coopera-tive PublishingSociety, 1935), I, p. 219.

Page 122: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 122/198

A sociedade onde a desconfiança mútua se traduzpor expressões populares tais como "quanto eleganha nisso?"; onde "charlatanice" e "tarimba" hámais de um século são consideradas vernáculo, e

"desbancar" o vem sendo há já uns dezesseteanos; onde a publicidade e a propagandaoriginaram uma ativa resistência a se aceitarargumentos apenas pelo que são; onde ocomportamento pseudo-comunitário, utilizadocomo dispositivo para se ascender nas escalaspolítica e econômica, compõe um livro de amplatiragem: como fazer "amigos" que possam serinfluenciados; onde as relações sociais cada vezmais são instrumentalizadas de forma que oindivíduo passa a ver os outros procurando, antesde mais nada, manipulá-lo e explorá-lo; onde ocrescente cinismo afasta o indivíduo das relaçõesgrupais significativas, e até certo ponto o tornaestranho a si mesmo; onde a incerteza em relaçãoa seus próprios motivos se expressa na fraseindecisa "Isto talvez seja racionalização minha,mas..."; onde as defesas contra o trauma provo-cado por desilusões podem levar a um estado de

desilusão permanente, que consiste em reduzir asexpectativas baseadas na integridade dos outros,menosprezando a priori seus motivos ecapacidades; em tal sociedade a análise ideológicasistemática e uma Sociologia do Conhecimentoderivada dessa análise encontram sólidas basessociais. Os estudiosos americanos prontamentecaptaram e assimilaram os esquemas analíticos,que possibilitavam uma ordenação do caos de

Page 123: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 123/198

conflito cultural, valores e pontos de vistaantagônicos, com que deparavam.A "revolução de Copérnico" nessa área de estudosconsistiu na hipótese segundo a qual os fatores

históricos e sociais não condicionam apenas erros,ilusões e crenças ilegítimas, mas tambémcondicionam a própria descoberta da verdade.Enquanto se cristalizasse a atenção nosdeterminantes sociais da ideologia, da ilusão, domito e das normas morais, a Sociologia doConhecimento não poderia emergir. Era mais doque claro que, para justificar falhas ou opiniõessem fundamento, se teria de lançar mão de fatoresnão-teóricos, de explicações específicas, uma vezque a realidade do objeto não poderia justificarerros. No caso de um conhecimento verificado ouassegurado, entretanto, já se admitia há muitotempo sua justificação em termos da relaçãoobjeto-intérprete. A Sociologia do Conhecimentosurge com a hipótese fundamental de que seresponsabilizasse a sociedade mesmo pelas"verdades", cujas relações com a sociedadehistórica de que emergiam tinham de ser

estabelecidas.Esboçar rapidamente apenas as principaiscorrentes da Sociologia do Conhecimento seriaapresentar nenhuma e violentar a todas. Adiversidade das formulações de Marx, Scheler eDurkheim; a variedade de problemas que vãodesde a determinação social dos sistemas decategoria às ideologias políticas de classe; asenormes diferenças de envergadura dosproblemas, desde a classificação exaustiva de

Page 124: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 124/198

categorias na história intelectual à localizaçãosocial do pensamento de estudiosos negros nasúltimas décadas; as várias delimitações apostas amatéria, desde uma epistemologia sociológica

globalizadora até relações empíricas entredeterminadas estruturas sociais e idéias corres-pondentes; a proliferação de conceitos — idéias,sistemas de crença, conhecimento positivo,pensamento, sistemas de verdade, superestruturasetc.; os diversos métodos de validação — desdeatribuições plausíveis, mas não-registradas, àsmeticulosas análises históricas e estatísticas — àluz de tudo isso, torna-se necessário sacrificar osdetalhes pelo conjunto num esforço de, ao mesmotempo e em poucas páginas, tratar do instrumentalanalítico e de estudos empíricos.Será necessário adotar um esquema de análisepara podermos comparar o grande número deestudos dedicados a esta matéria. O paradigmaseguinte pretende ser um passo nessa direção.

Trata-se, na verdade, de uma classificação parciale, espera-se, temporária, que breve desaparecerána medida em que der lugar a um modelo analítico

mais exato e aperfeiçoado. Contudo, ele jápossibilita uma base para um levantamento dasdescobertas já feitas, a indicação de resultadoscontraditórios, opostos e consistentes, aexplicitação do instrumental conceptualatualmente em uso, a determinação da naturezade problemas que têm ocupado os estudiosos, aavaliação do material que tem sido recolhido, aindicação das lacunas e falhas características nostipos de interpretação existentes. Uma teoria ple-

Page 125: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 125/198

namente desenvolvida de Sociologia doConhecimento permite a colocação dos seguintespontos:

PARADIGMA PARA A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

1— Onde se situam as bases existenciais dosprodutos mentais?

a. bases sociais: posição social, classe, geração,papel ocupacional, modo de produção, estruturasde grupo (universidade, burocracia, academias,seitas, partido político), "situação histórica",interesses, sociedade, filiação étnica, mobilidadesocial, estrutura de poder, processos sociais(competição, conflito etc.)b. bases culturais: valores, ethos, "clima de

opinião", Volkgeist, Zeitgeist, tipo de cultura,mentalidade cultural, visão do mundo(Weltanschauuqgen) etc.

2 — Quais são os produtos mentaissubmetidos à análise sociológica?

a. esferas de: crenças morais, ideologias, idéias,categorias de pensamento, filosofia, crençasreligiosas, normas sociais, ciências positivas,tecnologia etc.b. aspectos analisados: sua seleção (focos deatenção), nível de abstração, pressupostos (o que

é considerado como "dado" e o que é considerado"problemático"), conteúdos conceptuais, modelos

Page 126: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 126/198

de verificação, objetivos da atividade intelectualetc.

3— Como se acham os produtos mentais

relacionados às bases existenciais?a. relações causais ou funcionais: determinação,causa, correspondência, condição necessária,condicionamento, interdependência funcional,interação, dependência etc.b. relações simbólicas, expressivas ou orgânicas:consistência, harmonia, coerência, unidade,congruência, compatibilidade (e antônimos);expressão, percepção, expressão simbólica,Strukturzusammenhang, identidades estruturais,conexões internas, analogias estilísticas,integração lógico-significativa, identidade de

significado etc.c. termos ambíguos para designar as relações:correspondência, reflexos, ligados a, em estreitaconexão com etc.

4— POR QUÊ? funções latentes e manifestasatribuídas a estes produtos mentaisexistencialmente condicionados.a. para manter poder, promover estabilidade, faci-litar orientação ou exploração, ocultar relaçõessociais efetivas, fornecer motivações, canalizarcomportamentos, desviar críticas, desviar

hostilidades, tranqüilizar, controlar a natureza,coordenar relações sociais etc.

Page 127: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 127/198

Page 128: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 128/198

Mannheim, Durkheim e Sorokin. Os trabalhosatuais adotam uma ou outra dessas teorias, oramodificando-lhes a aplicação, ora se lhesantepondo. Decidimos omitir outras fontes de

estudo, próprias ao pensamento americano, comoo pragmatismo, visto não terem ainda sidoformuladas em termos da Sociologia doConhecimento nem mesmo submetidas a pesquisade alguma envergadura.Onde se situam as bases existenciais? Todas asabordagens do assunto convergem em que existeuma base existencial, na medida em que opensamento não pode ser imanentemente de-terminado, e que um ou outro de seus aspectospode ser derivado de fatores extra-cognitivos. Estaconvergência é apenas formal, desenvolvendo-seposteriormente em uma enorme variedade deteorias explicando a natureza da base existencial.Sob este aspecto, como sob outros, o marxismoocupa o centro do debate. Sem entrar no problemaexegético da identificação exata do "marxismo" —somente lembramos a citação de Marx "je ne puis

pas un marxiste" — vamos buscar suas

formulações nos escritos de Marx e de Engels.Quaisquer que sejam as mudanças ocorridas nodesenvolvimento de sua teoria durante oscinqüenta anos de trabalho, permaneceu constantea tese de que as "relações de produção"constituem o "fundamento real" da superestruturade idéias. "O modo de produção na vida materialdetermina o caráter geral dos processos sociais,políticos e intelectuais. Não é a consciência dohomem que determina sua existência, mas ao

Page 129: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 129/198

contrário sua existência social é que determina suaconsciência". 8

Procurando funcionalizar as idéias, isto é,relacionar as idéias dos indivíduos com sua basesociológica, Marx vai situá-las dentro da estruturade classes. Pretende não que as demais influênciassejam inoperantes, mas que a classe é odeterminante primordial, sendo assim o maisfecundo ponto de partida para a análise. Esteraciocínio se acha explicitado no primeiro prefácio

do Capital: "...aqui, os indivíduos são tratados namedida em que personificam categoriaseconômicas, em que encarnam relações einteresses específicos de classe". Abstraindo asdemais variáveis e tomando os homens pelospapéis econômicos e de classe que desempenham,Marx considera que tais papéis são osdeterminantes primordiais, deixando aberta aquestão: até que ponto verdadeiramente atuamem um dado caso de pensamento ecomportamento. Com efeito, uma linha dedesenvolvimento do marxismo, desde a Ideologia

Alemã aos últimos escritos de Engels, consiste nadefinição (e delimitação) do alcance em que asrelações de produção efetivamente condicionam oconhecimento e as formas do pensamento.Entretanto, tanto Marx quanto Engels,repetidamente e com insistência crescente,enfatizam que ideologias de um estrato social dado

não provêm tão só das pessoas que se achamobjetivamente inseridas nesse estrato. Já no

8(Chicago: C. H. Kerr, 1904), pp. 11-12.

Page 130: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 130/198

Manifesto Comunista, Marx e Engels indicavamque, quando a classe dominante se aproxima daderrocada, "uma pequena parte... se une à classerevolucionária... Assim como no passado uma

pequena parte da nobreza passou-se para aburguesia, agora uma parte da burguesia se passapara o proletariado, e em particular os ideólogosburgueses, que se elevaram ao nível dacompreensão teórica do movimento histórico comoum todo".As ideologias podem ser socialmente enquadradaspela análise de seus pressupostos e perspectivas,e pela determinação do enfoque de problemas: sobo ponto de vista de tal ou qual classe. Opensamento não pode ser enquadrado mecânica esimplesmente estabelecendo a posição de classede quem o emite. Ele deve ser atribuído à classepara a qual é "apropriado", à classe cuja situaçãosocial com seus conflitos de classe, aspirações,temores, limitações e possibilidades objetivas numdado contexto histórico-social é por ele expressa. Amais explícita formulação de Marx aparece noseguinte texto:

Não se deve formar a idéia bitolada de que apequena burguesia tem por princípio impor uminteresse egoísta de classe. Antes, ela pensa queas condições específicas de sua emancipação sãoas condições gerais, únicas capazes de salvar asociedade moderna e de evitar a eclosão da luta

de classes. Tampouco se deve imaginar que osrepresentantes democráticos são todos unscomerciantes ou que estão cheios de entusiasmo

Page 131: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 131/198

pelo comércio. No tocante à sua educação e posição individual, eles podem estar tão distantesentre si como o céu da terra. O que os faz representantes da pequena burguesia é o fato de

não transpor em espírito os limites que osburgueses não transpõem em suas atividades, oque, conseqüentemente, os conduz aos mesmosproblemas e soluções teóricos a que os pequenosburgueses são conduzidos na prática pelos in-teresses materiais e pela posição social. Em geral,é esta a relação que liga os representantes

políticos e literários de uma classe à classe querepresentam. 9

Contudo, se não pudermos inferir as idéias daposição objetiva da classe de seus expositores,resta-nos uma larga margem de indeterminação.Constitui-se então um novo problema em resolverpor que alguns se identificam com a classe social aque efetivamente pertencem, expressando suaaparência característica de estrato, enquantooutros adotam pressupostos que não os "de seupróprio" estrato. Uma descrição empírica do fatonão é substituto adequado para sua explicação

teórica.Quando trata das bases existenciais doconhecimento, Max Scheler tem a característica deopor suas próprias hipóteses àsdemais teorias emvoga. 10 Distingue Sociologia Cultural do que9 Karl Marx, Der Achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte (Hamburgo: 1885), p. 36. (Os itálicos foramacrescentados pelo autor do artigo.)

10Este enunciado baseia-se na mais elaborada formulação de Scheler, "Probleme einer Soziologie dWissens", no seu livro Die Wissens-formem und die Gesellschaft (Leipzig: Der Neue-Geist Verlag, 1926), pp. 1-229. Esse ensaio é uma versão revista e melhorada de outro ensaio em seu livroVersuche zu einer Soziologiedes Wissens (Munique: Duncker und Humblot, 1924), pp. 5-146. Para outras análises sobre Scheler, ver P. A.Schillp, "The Formal Problems of Scheler's Sociology of Knowledge",The Philosophical Review, 36: pp. 101-

Page 132: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 132/198

chama Sociologia de Fatores Reais(Realsoziologie). Os dados culturais têm o caráterde "ideal", pertencem ao domínio das idéias evalores: os "fatores reais" são orientados no

sentido de proceder a mudanças na realidadenatural ou social. Os primeiros são definidos porfins ideais ou intenções; os últimos derivam deuma "estrutura de impulsos" (Triebstruktur, porexemplo, sexo, fome, poder). Scheler considera umerro básico de todas as teorias naturalistaspretender que fatores reais — seja raça,geopolítica, estrutura de poder político ou relaçõesde produção econômica — determinem fatalmenteo mundo das idéias expressivas. Da mesma forma,rejeita todas as concepções ideológicas,espiritualistas e personalistas que erram porconsiderar a história das condições existenciaiscomo um desdobramento unilinear dasmanifestações do espírito. Atribui completaautonomia e uma determinada ordenação aosfatores reais, apesar de sustentarinconsistentemente que seu desenvolvimento éguiado e dirigido por idéias imbuídas de valor, que

nele se imiscuíram. As idéias por si só não dispõeminicialmente de eficácia social alguma. Quantomais "pura" fôr uma idéia, tanto menor será aforça com que atua no dinamismo social. As idéiasnão se efetivam, não se corporificam emdesenvolvimentos culturais, a menos que se asliguem a interesses, impulsos, emoções outendências coletivas e sua incorporação em estru-120, março, 1927; Howard Becker e H. O. Dahlke, "Max Scheler's Sociology of Knowledge", Philosophy and

Phenomenological and Research, 2: pp. 310-322, março, 1942.

Page 133: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 133/198

turas institucionais. 11 Só então passam a exerceralguma influência atuante. É sob este aspecto quese justificam as teorias naturalistas (por exemplo,o marxismo). Caso as idéias não se vinculem ao

desenvolvimento imanente de fatores reais, estãofadadas a se tornarem utopias estéreis.Outro erro das teorias naturalistas, prossegueScheler, consiste em tomar ao longo de toda ahistória a mesma variável independente. Há, nodecorrer da história, não uma variávelindependente constante, mas uma determinadaseqüência em que os fatores primordiais seapresentam, sucessão que pode ser resumidanuma "lei de três fases". Na fase inicial, asinstituições de parentesco e laços sangüíneosconstituem a variável independente, que maistarde passa a ser a estrutura do poder político, efinalmente as condições econômicas. Portanto, nãohá constância no primado efetivo dos fatoresexistenciais, havendo antes uma variabilidadeordenada. Desse modo, Scheler procurourelativizar a própria noção de determinanteshistóricos. 12 Pretende não apenas ter confirmado

por indução sua "lei das três fases", mas havê-ladeduzido de uma teoria dos impulsos humanos.Sua interpretação de fatores reais (Real-faktorem)— raça e parentesco, estrutura de poder, fatoresde produção, aspectos qualitativos e quantitativosda população, fatores geográficos e geopolíticos —

11Scheler, Die Wissensformem.. . , pp. 7, 32.1212 lbid., pp. 25-45. Deve-se notar que Marx já havia há muito tempo rejeitado uma concepção similar dalterações nas variáveis independentes de que se havia feito ponto de partida para um ataque à suaCritique of

Political Econorny; ver Capital, I, p. 94n.

Page 134: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 134/198

dificilmente constitui uma categoria bem definida.Pouco significa subscrever a tão diversoselementos uma mesma rubrica e, de fato, nemseus estudos empíricos, nem os de seus discípulos,

aproveitaram essa coleção de "fatores". Sugerindouma variação nos fatores existenciaissignificativos, apesar de não ser na seqüênciaordenada que ele não chegou a estabelecer,Scheler caminhou na direção que a pesquisasubseqüente seguiu.Assim, Mannheim parte inicialmente de Marx,alargando sua concepção das bases existenciais.Considerando como dado o fato de se filiar oindivíduo a vários grupos, torna-se preciso saberqual desses grupos é o primordial para que seestabeleçam perspectivas, modelos depensamento, definição dos dados etc. Nãopretende que a posição de classe seja por si só odeterminante último, no que difere do "marxismodogmático". De acordo com Mannheim, um grupoorganicamente integrado vê na história ummovimento contínuo no sentido da realização deseus fins, ao passo que um grupo socialmente

desvinculado e débilmente integrado partilha umaintuição histórica que enfatiza o casual e oimponderável. Somente pelo estudo da variedadena formação dos grupos — gerações, grupos destatus, grupos ocupacionais — e seus modos depensar característicospode ser encontrada umabase existencial que corresponda à grande

Page 135: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 135/198

variedade de perspectivas e conhecimentoexistentes. 13

A posição de Durkheim é, em essência, a mesma,ainda que ele represente uma tradição diversa. No

recente estudo que realizou em colaboração comMauss sobre as formas primitivas de classificação,Durkheim defende que a gênese das categorias depensamento se encontra na estrutura e inter-relações dos grupos, e que variam de acordo comas mudanças na organização social. 14 Tentandoestabelecer as origens sociais das categorias,Durkheim postula que os indivíduos se acham maisdireta e inclusivamente orientados pelos grupos deque participam do que pela natureza. Asexperiências originais mais significativas seconstituem sob a mediação de relações sociais,que imprimem suas características no pensamentoe no saber. 15 Assim, em seu estudo de formasprimitivas de pensamento, Durkheim trata darecorrência periódica de atividades sociais(cerimônias, festas, ritos), da estrutura do clã e dasconfigurações espaciais na reunião do grupo comosendo bases existenciais do pensamento. Ainda,

aplicando as formulações de Durkheim aopensamento da antiga China, Granet estabelece a

13Karl Mannheim, Ideology and Utopia (Nova York: Harcourt, Brace, 1936), pp. 247-8. Tendo em vista asrecentes e profundas análises da obra de Mannheim, não a trataremos extensamente neste artigo. Para apreciado autor, ver R. K. Merton, "Karl Mannheim and the Sociology of Knowledge", Journal of Liberal Religion, 2:125-147, 1941.14Emile Durkheim e Marcel Mauss, "De quelques formes primitives de classification", L'Année Sociologique,6: 1-72, 1901-02. " . . . as idéias, mesmo as tão abstratas quanto as de tempo e de espaço, estão, a cada insta

de sua história, em estreita relação com a organização social correspondente". Como indicou Marcel Granet, eartigo contém algumas páginas sobre o pensamento chinês, consideradas pelos especialistas como o marcouma nova época nos estudos da civilização chinesa.15 Emile Durkheim,The Elementary Forms of the Religious Life (Londres: Allen & Unwin, 1915), pp. 443-4;ver também Hans Kelsen,Society and Nature (University of Chicago Press, 1943), p. 30.

Page 136: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 136/198

organização feudal e a alternância rítmica de umavida ora concentrada, ora dispersa, comocondições às típicas noções de tempo e de espaçoque dominam a cultura chinesa. 16

Sorokin se opõe aos autores antecedentes aoelaborar sua teoria idealista e emanacionista, quededuz todos os aspectos do conhecimento não deuma base social existencial, mas davariação de"mentalidades culturais". Essas mentalidades par-tem de "premissas maiores": assim, a mentalidadeideacional concebe a realidade como "um Ser não-material e eterno"; considera as necessidadescomo essencialmente espirituais e como sendomeios para sua satisfação plena "a minimizaçãoauto-imposta ou a eliminação da maior parte dasnecessidades físicas". 17 Ao contrário, a mentalidade"sensorial" limita a realidade àquilo que ossentidos possam perceber, preocupa-se fun-damentalmente com as necessidades físicas, àsquais procura satisfazer ao máximo, modificando omundo exterior, ao invés de modificar a si. Oprincipal tipo intermediário é o de mentalidadeidealista que apresenta um virtual equilíbrio entre

os tipos anteriores. De acordo com Sorokin, ossistemas de verdade e de conhecimento derivamdessas "mentalidades", isto é, das premissasmaiores de cada cultura. Neste ponto deparamoscom o emanacionismo inerente à posição idealista:torna-se simplesmente tautológico dizer comSorokin que "numa sociedade e cultura sensoriais

16 Marcel Granet, La pensée chinoise (Paris: La Renaissance du Livre, 1934), e.g., pp. 84-104.17is Ibid., I, p. 73.

Page 137: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 137/198

tem que ser dominante o sistema de verdadefundado no testemunho dos órgãos dos sentidos".Afinal, a mentalidade sensorial se caracteriza

justamente por ser aquela que concebe "a

realidade como aquilo que se apresenta aos órgãosdos sentidos". 18

Além do mais, tais formulações emanacionistasevitam as questões fundamentais levantadas poroutras abordagens da análise das condiçõesexistenciais do conhecimento. Assim Sorokinconsidera que a impossibilidade do "sistema deverdade" sensorial (empirismo) dominarcompletamente a cultura sensorial constitui umaprova da "não-integração total" dessa cultura. Talatitude equivale a renunciar à pesquisa das basesdo conflito entre os sistemas de pensamentocaracterísticos ao nosso mundo contemporâneo. Eo mesmo acontece com outras categorias e"princípios" do conhecimento, a que Sorokin tentaaplicar uma formulação sociológica. Constata, porexemplo, que em nossa cultura "sensorial" o"materialismo" está menos disseminado do que o"idealismo", o "temporalismo" e o "eternalismo"

estão quase igualmente difundidos, e o mesmo sedá com o "realismo" e o "nominalismo", o"singularismo" e o "universalismo" etc. Uma vezque a mesma cultura admite tanta diversidade,caracterizá-la como "sensorial" não possibilita aindicação dos grupos aos quais correspondem taisou quais modos de pensar. Sorokin não se prendeuà exploração sistemática da variação de bases

18is Ibid., I, p. 73.

Page 138: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 138/198

existenciais no interior de uma mesma sociedadeou cultura, ele se limitou a assinalar as tendências"dominantes" e as estendeu à cultura como umtodo. 19 Abstraindo as diferenças de perspectiva

intelectual próprias às classes sociais e a outrosgrupos, nossa sociedade contemporânea éconsiderada como um perfeito exemplo de "culturasensorial". De acordo com suas próprias premissas,o método de Sorokin é especialmente apropriadopara uma caracterização global das culturas, sendoimpróprio para a análise das conexões que ligam opensamento a suas várias condições existenciaisdentro de uma mesma sociedade.

Quais São os Produtos Mentais

Submetidos à Análise Sociológica?Basta um exame dos mais breves para se perceberquão vasto é o conceito de "conhecimento", queengloba todos os tipos de afirmações e todos osmodos de pensar, desde as crenças populares àciência positiva. O "conhecimento" tem sido muitasvezes assimilado ao termo "cultura": de forma quenão apenas as Ciências Exatas como também asconvicções éticas, os postulados epistemológicos,as constatações de fato, os juízos sintéticos; ascategorias de pensamento, as crenças políticas, asdoutrinas escatológicas, as normas morais, os

19 Encontra-se uma "exceção" a esse tratamento do assunto no contraste que estabelece entre a tendêncdominante do "clero e da aristocracia religiosa proprietária de terras virem a ser as classes dirigentes na cultideacional, e a tendência da burguesia capitalista, daintelligentsia, dos profissionais liberais, e dos funcionáriosleigos virem a ser as classes dirigentes na cultura sensorial...", Ill, pp. 250.

Page 139: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 139/198

postulados ontológicos, e as observações de fatosempíricos, todos são mais ou menosindiscriminadamente considerados como"existencialmente condicionados". 20 O problema é

saber se todas as "idéias" adotam a mesmarelação com a base sociológica, ou se é precisodistinguir as esferas de conhecimento, exatamentepor ser essa relação variável em função dosdiversos tipos de "idéias". Geralmente tem havidouma ambigüidade sistemática no que diz respeitoa esse problema.Somente em seus últimos escritos Engels aceitaque a noção de superestrutura ideológica incluiuma variedade de "formas ideológicas" quediferem significativamente entre si, isto é, que nãosão igual e semelhantemente condicionadas pelabase material. O fato de Marx não tersistematizado 21 o problema explica boa parte daimprecisão inicial sobre o que se deveria incluir nasuperestrutura e como se achavam relacionadasaos modos de produção as diferentes esferas"ideológicas". Coube a Engels a tarefa deesclarecer este ponto. Trabalhando o termo

genérico "ideologia", Engels deu um certo grau deautonomia à lei. Tão logo se faz necessária uma nova divisão dotrabalho criando os advogados profissionais, abre-se uma nova esfera independente que, apesar de

2029 Cf. Merton,op. ext., 133-135; Kurt H. Wolff, "The Sociology of Knowledge: Emphasis on an Empirical

Attitude", Philosophy of Science, 10: 104-123, 1943; Talcott Parsons, "The Role of Ideas in Social Action", American Sociological Review, 3: 652-64, 1938.2121 Certamente este é o fundamento em que se apoia a observação de Scheler: "Uma tese particular dinterpretação econômica da história consiste em subordinar as leis do desenvolvimento delodo o conhecimentoàs leis do desenvolvimento das ideologias". Die Wissensformen . . . . 21.

Page 140: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 140/198

depender da produção e do comércio, ainda possuisua capacidade própria de reagir a essas esferas.No Estado moderno, o Direito não correspondeapenas a uma situação econômica geral de que é a

expressão, mas representa também umaexpressão consistente em si mesma, que não podeparecer muito inconsistente devido a contradiçõesinternas. Para que isto se efetive, torna-se precisoque o Direito ultrapasse o estado de reflexo fiel dascondições econômicas. E quanto mais isso serealiza, tanto menos acontece que um código

jurídico venha a ser a expressão brutal e grosseirada dominação de uma classe — o que já seria umaofensa à "idéia de justiça". 22

Se isso é o que se passa com o Direito, sujeitoainda a ação próxima e opressora da economia,com maior razão deverá acontecer com as demaisesferas da "superestrutura ideológica". O lastropreexistente de conhecimentos e de crençasexerce a pressão fundamental sobre a filosofia, areligião e a ciência, enquanto a influência dosfatores econômicos se efetua apenas por viasindiretas e em "última instância". Nesses campos,

torna-se impossível "deduzir" o conteúdo e odesenvolvimento das crenças e do conhecimentomeramente de uma análise da situação histórica:O desenvolvimento político, jurídico, filosófico,religioso, literário, artístico etc. funda-se sobre odesenvolvimento econômico. Entretanto, todasessas esferas reagem entre si e em relação à baseeconômica. Não é que a posição econômica seja a

22 Engels, em carta a Conrad Schmidt, a 27 de outubro de 1890, em Marx,Selected Works, I, p. 385.

Page 141: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 141/198

única causa atuante, enquanto tudo o mais selimite a efeitos passivos. O que existe é umainteração das esferas sobre a base da necessidadeeconômica que, em última análise, predomina

sempre.Se admitimos que a base econômica predomina"em última análise", estamos admitindo um certograu de independência no desenvolvimento dasesferas ideológicas. De fato, Engels assinala:Quanto mais a esfera específica que estudamos seafasta da esfera econômica e se aproxima daesfera de pura ideologia abstrata, tanto maior seráo número de acidentes (desvios do comportamento"esperado") que iremos encontrar em seudesenvolvimento, tanto mais sua curva tenderá acorrer em ziguezague. 23

Finalmente, temos uma noção ainda mais restritado status sociológico das Ciências Naturais. Marxestabelece uma distinção marcada entre CiênciaNatural e esferas "ideológicas", numa passagem jábastante conhecida.Com a mudança da fundação econômica toda aimensa superestrutura sofre uma transformação

mais ou menos rápida. Para se considerar taistransformações, deve-se distinguir a transformaçãomaterial das condições econômicas de produção,que podem ser determinadas com a precisão daCiência Natural, das transformações legais,políticas, religiosas, estéticas ou filosóficas — emsuma, as formas ideológicas através das quais os2323 Ibid., I, 393; cf. Engels Feuerbach (Chicago: C. H. Kerr, 1903), pp. 117 e segs. "Ê sabido que certos períodos de grande desenvolvimento artístico não possuemrelação direta nem com o desenvolvimento geral dasociedade nem com a base material e a estrutura fundamental de sua organização". Marx, Introdução, AContribution to the Critique of Politicai Economy, pp. 309-10.

Page 142: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 142/198

homens se tornam conscientes deste conflito enele se empenham. 24

Dessa forma, as Ciências Naturais e a EconomiaPolítica, que se podem igualar em precisão,

recebem um status diverso do atribuído àideologia. O conteúdo conceptual das CiênciasNaturais não é atribuído a uma base econômica, aque entretanto se acham sujeitas suas"finalidades" e "materiais":O que seria da Ciência Natural se não fossem aindústria e o comércio? Mesmo a mais pura ciênciarecebe seus objetivos materiais unicamente docomércio, da indústria, da atividade sensível doshomens. 25

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Engels vê aaparição do materialismo histórico de Marx comotendo sido determinada ela mesma por uma"necessidade" que transparece nos pontos de vistasemelhantes defendidos por historiadores fran-ceses e ingleses da época, e na descobertaindependente de Morgan da mesma concepção. 26

24Marx, A Contribution to the Critique of Politicai Economy, p. 12.2525 Marx e Engels,The German Ideology, p. 36 (os itálicos foram acrescentados pelo autor do artigo). Ver ainda Engels,Socialism: Utopian and Scientific (Chicago: C. H. Kerr, 1910, pp. 24-25, onde as necessidades deuma classe média em ascensão são utilizadas para explicar a renovação por que passou a ciência. A afirmaçãoque "só" o comércio e a indústria podem fornecer-lhes aplicações é típica da maneira extremista com que primeiros escritos marxistas postulam as ligações entre a ciência e as bases materiais sem, no entanto, havêtestado. Não se pode aceitar termos tais como "determinação" apenas pelo que significam; sendo característque venham empregados demaneira vaga. Nem Marx, nem Engels, precisaramaté que ponto existem aquelas relações entre as atividadesintelectuais e as bases materiais.26 Engels, em Marx,Selected Works, I, p. 393. Apresentar a ocorrência independente de descobertas einvenções paralelas como "prova" de que o conhecimento é determinado pela sociedade constitui um dos mrepetidos temas do século XIX. Já em 1828, havia Macaulay, no seu ensaio sobre Dryden, observado a respeda descoberta do cálculo, levada a efeito por Newton e Leibniz: "Com efeito, a Ciência Matemática atingiu ponto que, se nenhum dos dois houvesse existido, o princípio seria, uns poucos anos mais tarde, inevitavelmedescoberto por um terceiro". E cita outros casos do mesmo tipo. Os manufatures da época vitoriana partilhavdo ponto de vista de Marx e Engels. Esta tese, que se baseia na existência independente de invençõsemelhantes, tem sido especialmente desenvolvida em nossos dias por Dorothy Thomas, Ogburn e pVierkandt.

Page 143: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 143/198

Page 144: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 144/198

Page 145: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 145/198

Essas concepções de mundo constituemorganismos em crescimento e se desenvolvemapenas em longos períodos de tempo. As teoriasmal as afetam. Scheler sustenta, sem provas

suficientes, que somente a mistura de raças outalvez a "mistura" de idiomas e de culturas poderátrazer-lhes modificações essenciais. Sobre essasconcepções de mundo, que apenas se modificamlentamente, erguem-se as formas deconhecimento mais artificiais que se podem gruparem sete classes, de acordo comseu grau deartificialidade: 1) mito e lenda; 2) conhecimentoimplícito próprio ao linguajar popular; 3)conhecimento religioso (desde a vaga intuiçãoemocional até o dogma cristalizado de uma igreja);4) tipos fundamentais de conhecimento místico; 5)conhecimento filosófico-metafísico; 6)conhecimento positivo de Matemáticas, deCiências Naturais e de Ciências Culturais; 7)conhecimento tecnológico. 33 Quanto mais artificiaisos tipos de conhecimento, tanto mais rapidamentese modificam. É lógico, diz Scheler, que as religiõesmudam muitíssimo mais devagar do que as várias

metafísicas, e estas se mantêm por períodos maislongos do que os resultados das Ciências Positivas,os quais mudam de hora em hora.Essa hipótese de ritmos de mudança se assemelhaem alguns pontos à tese de Alfred Weber segundoa qual "a mudança civilizacional" é mais rápida quea mudança cultural, e também se parece com ahipótese de Ogburn de que os fatores "materiais se

3333 I b i d . , p. 62.

Page 146: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 146/198

modificam mais rapidamente do que os não-materiais". Além de seus defeitos próprios, ahipótese de Scheler participa das omissões dasdemais teses mencionadas. Scheler não indica

claramente em parte alguma o que seu princípiode classificação de tipos de conhecimento — achamada "artificialidade" — representa de fato. Porque conceber, por exemplo, o "conhecimentomístico" como sendo mais "artificial" do que osdogmas religiosos? Scheler absolutamente nãoexamina em que implica a afirmação de que umtipo de conhecimento "muda mais rapidamente"do que outro. Vejamos a curiosa equação queestabelece entre os novos "resultados" científicos eos sistemas metafísicos; como comparar o grau demodificação que sofreu o neokantismo com asmodificações da teoria biológica ocorridas nomesmo período? Scheler audaciosamente asseveraa existência de uma variação de sete graus nosritmos de mudança o que, naturalmente, nãoconfirma através de estudos empíricos. Já sesabendo das dificuldades que se encontram emverificar hipóteses muito mais simples, não se vê

absolutamente o que uma hipótese complicadadesse tipo pode oferecer.Apenas alguns tipos de conhecimento sãoconsiderados por Scheler como sociologicamentedeterminados. Baseando-se em alguns postulados,que não precisamos examinar, Scheler afirma:É indiscutível o caráter sociológico de todo oconhecimento e formas de pensamento, intuição eapreensão. Ainda que o conteúdo, e menos ainda avalidade objetiva de todo o conhecimento, não

Page 147: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 147/198

sejam determinados pelas perspectivas deinteresses sociais que os guiam, tal, entretanto,não é o caso da seleção de objetos doconhecimento. Além disso, as "formas" dos

processos mentais através dos quais se adquire oconhecimento estão sempre e necessariamente co-determinadas sociologicamente, vale dizer por suaestrutura social. 34

Já que explicar consiste em acrescentar o que érelativamente novo ao que é antigo e familiar, e jáque a sociedade é "mais bem conhecida" do quequalquer outra coisa, 35 seria de esperar que osmodos de pensar e de intuir, e em geral aclassificação das coisas passíveis de seremconhecidas, fossem co-determinados (mitbedingt)pela divisão e classificação dos grupos quecompõem a sociedade.Scheler rejeita vivamente todas as formas desociologismo. Procura escapar de um relativismoradical recorrendo a um dualismo metafísico. Apelaao domínio das "essências atemporais" que, emvários graus, participam do conteúdo dos juízos;trata-se de um reino inteiramente diverso daquele

de realidade histórica e social que determina o atodos juízos. De acordo com o hábil resumo feito porMandelbaum sobre esta visão:O reino das essências é para Scheler um reino depossibilidades das quais escolhemos um ou outrosetor limitado, presos que somos ao tempo e ànossos interesses. A escolha do setor que nós,

3434 Ibid., p. 55.35 Ver a mesma concepção por Dürkheim, citada na nota 14 deste trabalho.

Page 148: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 148/198

Page 149: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 149/198

verificar o conhecimento tradicional é proibida porser considerada blasfêmia, uma vez que admite adúvida. Numa sociedade desse tipo, a lógica e omodo de pensar consagrados são as de uma ars

demonstrandi e não as de uma ars inveniendi. Osmétodos ontológicos e dogmáticos prevalecemsobre os epistemológicos e críticos. O realismoconceptual sobrepõe-se no modo de pensar aonominalismo que iremos encontrar no gruposocietal (Gesellschaft). O sistema de categoriasadotado é o organicista e não o mecanicista. 37

Durkheim submete a gênese social das categoriaslógicas à investigação sociológica, baseando suahipótese em três tipos de provas: A ) A variaçãocultural das categorias e leis da lógica "prova queelas dependem de fatores históricos e portantosociais". 38 B ) Uma vez que conceitos sãointegrados ao linguajar adquirido pelo indivíduo(esta observação permanece válidapara aterminologia dos cientistas), e que alguns dessestermos conceptuais se referem a coisas jamaisvividas por nós, enquanto indivíduos, é claro queeles são produto da sociedade. 39 C ) A aceitação ou

rejeição dos conceitos não é determinadameramente por sua validade "objetiva", mastambém por sua adequação a outras crençasdominantes. 40

37 Scheler, Die Wissensformen. . . , pp. 22-23; comparar com a caracterização análoga de "escolas sagradas"de pensamento, apresentada por Florian Znaniecki,The Social Role of the Man of Knowledge (Nova York:

Columbia University Press, 1940), capítulo 3.38 Durkheim, Elementary Forms..., 12, 18, 439.39 Ibid., pp.433-435.4040, p.438.

Page 150: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 150/198

Contudo Durkheim não adere a um tipo derelativismo que somente admita critérioscompetitivos de validade. A origem social dascategorias não as torna inteiramente arbitrárias no

seu relacionamento à natureza. Elas são, em grausvariados, adequadas a seu objeto. Entretanto,como as estruturas sociais variam (e com elas osistema de categorias), existem certos elementos"subjetivos" nas construções lógicas correntes emuma sociedade. Tais elementos subjetivos "devemser progressivamente eliminados, à medida quemais nos quisermos aproximar da realidade". Talfato se dá em determinadas condições sociais.Com a extensão dos contatos interculturais, com adifusão da intercomunicação de pessoasprovenientes de sociedades diferentes, com aprópria expansão da sociedade, rompe-se o quadrode referências local. "As coisas não se conformammais aos moldes sociais em que foramanteriormente classificadas; precisam serreorganizadas, atendendo-se aos princípios quelhes são próprios. A organização lógica se separada organização social, tornando-se autônoma. O

legítimo pensamento humano não é um fatoprimitivo, e sim o produto da história. . . 41 Emespecial, aquelas concepções sujeitas à críticacientífica metódica atingem um maior grau deadequação objetiva. A objetividade é vista comoemergindo do social.Através de toda a sua obra Durkheim permite queuma epistemologia dúbia se interpenetre com uma

4141 Ibid., pp. 444-445, 437.

Page 151: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 151/198

análise substantiva das raízes sociais dasdesignações concretas das unidades, temporais,espaciais etc. Não nos precisamos unir àtradicional exaltação das "categorias" como

entidades separadas e conhecidas a priori, paraobservarmos que Durkheim não se referia a elas esim às divisões convencionais de tempo e espaço.Êle assinalou, de passagem, que os contrastesexistentes a este respeito não nos deveriam levara "negligenciar as semelhanças, as quais não sãomenos essenciais que as diferenças". Se foi opioneiro em relacionar variações no sistema deconceitos a variações na organização social,Durkheim não conseguiu, entretanto, estabelecer aorigem social das "categorias".Granet, como Durkheim, atribui grandeimportância à linguagem por ser o meio deconformar e fixar os conceitos e modos de pensardominantes. Demonstrou no seu estudo como alíngua chinesa não se presta a exprimir conceitos,analisar idéias ou desenvolver doutrinasdiscursivas. O chinês permaneceu irredutível àprecisão formal. A palavra chinesa não cristaliza

um conceito a um grau definido de abstração egeneralidade, mas evoca um complexo indefinidode imagens particulares. Assim, não existe umapalavra que signifique "velho", existe um grandenúmero de palavras que "descrevem aspectosdiversos da velhice": k'i, aqueles que necessitamde uma alimentação mais rica; k'ao, aqueles querespiram com dificuldade, e assim por diante.Essas evocações concretas impõem uma multidãode outras imagens, igualmente concretas,

Page 152: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 152/198

representando todos os detalhes da vida dosvelhos: aqueles que devem ser isentos do serviçomilitar; aqueles para quem se deve ter pronto todoo material funerário; aqueles que têm o direito de

sair à rua com um bastão; etc. Essas são apenasalgumas das imagens evocadas pela palavra k'ique, em geral, corresponde a uma noção queengloba as pessoas de sessenta a setenta anos. Aspalavras e as frases possuem sempre um caráteremblemático, dotado de imagens.Assim como a linguagem é concreta e evocativa,as idéias mais gerais do pensamento antigo chinêssão todas concretas, não podendo ser comparadasa nossas idéias abstratas. Nem o tempo e o espaçosão definidos por noções abstratas. O tempo sedesdobra em ciclos e é redondo, enquanto oespaço é quadrado; os muros das cidades, campose terrenos devem formar quadrados. Os campos,edifícios e cidades devem ser orientados damaneira mais conveniente, escolhida pelo cheferitual. As técnicas de divisão e ordenação doespaço — agrimensura, urbanismo, arquitetura,geografia política — e as especulações

geométricas que ensejam são todas ligadas a umconjunto de regras sociais. Como tais regrasdependem de assembléias periódicas, elasreafirmam e reforçam os símbolos que represen-tam o espaço. As técnicas mencionadas acimasimbolizam a forma quadrada do espaço, seucaráter heterogêneo e hierárquico; esta é uma

Page 153: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 153/198

concepção de espaço que só poderia ter surgidonuma sociedade feudal. 42

Apesar de ter Granet estabelecido os fundamentos

sociais das designações concretas de tempo eespaço, não se tornou evidente que trabalhe comdados comparáveis aos conceitos ocidentais. Eleanalisa as representações mágicas, tradicionais ourituais, e estabelece uma comparação implícitacom nossos conceitos positivos, técnicos oucientíficos. Mas os chineses não vivem seu dia-a-dia supondo que o "tempo é redondo" e o "espaçoé quadrado". Assim, a defasagem entre as esferasde pensamento e de atuação torna duvidosa umadivisão radical em "sistemas de categorias", umavez que não existem denominadores comuns depensamento e de conceituação. Granet

demonstrou as diferenças qualitativas entresistemas conceptuais de alguns contextos, masnão as de contextos passíveis de sofreremcomparação como, por exemplo, seria o das ativi-dades técnicas. Suas pesquisas evidenciam aexistência de variedade nos focos de interesseintelectual das duas esferas, e de diferençasfundamentais nos pontos de vista que se manifes-tam no interior da esfera ritualista, deixandoaberto o problema da existência de obstáculosintransponíveis entre as demais esferas. Dessaforma, transparece em Granet a mesma falácia dateoria de Lévy-Bruhl, a de uma mentalidadeprimitiva "pré-lógica". Como está demonstrado notrabalho de Malinowski e Rivers, não existem tais424 2 Ibid., pp. 87-95.

Page 154: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 154/198

Page 155: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 155/198

representá-los". 47 Usando sua própria termi-nologia, Sorokin adotou a posição científicacaracterística a um "sistema sensorial de verdade".Mas, ao expor sua própria posição epistemológica,

vai adotar uma concepção "integralista" daverdade, que procura combinar os critériosempíricos e lógicos à "intuição" ou "experiênciamística" de caráter "supra-sensível, supra-racional,e metalógico".Afirma, então, ser possível a integração dessesdiferentes "sistemas de verdade". Com o intuito de

justificar a "verdade da fé" — único critério capazde o desviar do emprego de critérios usados pelostrabalhos científicos correntes — pretende que a"intuição" desempenha um papel importante como

jonte de descobertas científicas. Mas será que istoresolve o problema? Não se trata das origens

psicológicas das conclusões válidas, mas doscritérios e métodos de validação. Quais os critériosa serem adotados por Sorokin quando as intuições"supra-sensoriais" não concordassem com osresultados da observação empírica? A solução dodilema, a julgar por seus trabalhos, e não pelos

comentários que fez à sua obra, seria sua opçãopela aceitação dos fatos e abandono da intuição. Oque todas estas considerações sugerem é queSorokin examina sob a etiqueta geral de "verdade"tipos de juízos bem distintos e não comparáveis:não se pode dizer que a análise de uma pintura aóleo, levada a efeito por um químico, seja, ou não,contrária a um juízo estético da mesma pintura; damesma forma, os "sistemas de verdade" deSorokin se referem a diferentes espécies de juízo.

Page 156: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 156/198

Ele mesmo vem a reconhecer tal fato quandoassinala que "os sistemas de verdade, cada qualem seu legítimo campo de competência, nos dãoum conhecimento autêntico dos aspectos da

realidade, que a eles correspondem". Qualquer queseja a sua atitude pessoal em relação à intuição,ele não consegue introduzi-la em sua Sociologiacomo um critério (somente como fonte) de conclu-sões cientificamente válidas.

Relações entre o Conhecimento e a BaseExistencial

Malgrado ocupar o núcleo de toda teoria daSociologia do Conhecimento, o tratamento que temsido dado a este problema não o abordadiretamente, senão por implicação. Todavia, cada

tipo de relação conhecimento-sociedade pressupõetoda uma teoria de métodos sociológicos e decausalidade social. As teorias mais aceitas têmlidado com um ou ambos dos dois principais tiposde relacionamento: relação causal ou funcional; erelação simbólica, orgânica ou significativa. 43

Marx e Engels evidentemente só se preocuparamcom algumas espécies de relações causais entre abase econômica e as idéias, nomeando-asalternadamente com os termos "determinação,correspondência, reflexo, conseqüência,dependência" etc. Falavam ainda de uma relaçãode "interesse" ou de "necessidade"; quando, a um

43 As distinções entre estes tipos de relações vêm há muito tempo sendo estudadas pelo pensamentsociológico europeu. Nos Estados Unidos, a mais elaborada colocação do problema é a de Sorokin,Social and Cultural Dynamics, e.g., I, capítulos 1-2.

Page 157: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 157/198

dado momento do desenvolvimento histórico, osestratos têm necessidades (supostas), conclui-seque exista uma pressão decisiva no sentido dedesenvolver idéias e conhecimentos apropriados. A

insuficiência dessas diversas formulações vematormentando aqueles que, hoje em dia, se ins-piram na tradição marxista. 44

Já que, como havíamos visto, Marx sustentava queo pensamento não é um mero "reflexo" da posiçãoobjetiva das classes, ressurge o problema daatribuição do pensamento a uma determinadabase. As interpretações marxistas dominantes, quese ocupam desse problema, envolvem uma teoriada história capaz de determinar se, para um dadoestrato da sociedade, a ideologia "corresponde àsituação": o que iria exigir uma construção

hipotética daquilo que os homens pensariam e perceberiam, caso fossem capazes decompreender a situação históricaadequadamente. 45 Mas tal discernimento dasituação não precisa ser efetivamente muitodifundido dentro de determinados estratos sociais,o que leva ao problema da "falsa consciência":como triunfam ideologias que não estão emconformidade nem com os interesses de umaclasse nem com a situação social.O Manifesto contém uma explicação empíricaparcial dessa "falsa consciência": a burguesia

4461 Cf. os comentários de Hans Speier, "The Social Determination of Ideas",Social Research, 5: 182-205,1938; C. Wright Mills, "Language, Logic and Culture", American Sociological Review, 4: 670-680, 1939.45 Cf. a formulação por Mannheim, Ideology and Utopia, pp. 175 e segs.; Georg Lukács,Geschite uns

Klassenbewusstsein (Berlim: 1923), pp. 61 e segs.; Arthur Child, "The Problem of Imputation in the Sociologof Knowledge", Ethics, 51: 200-219, 1941.

Page 158: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 158/198

controla o conteúdo da cultura, e assim difundedoutrinas e padrões estranhos aos interesses doproletariado. 46 Ou, em termos mais gerais, "asidéias dominantes em cada época são sempre as

idéias da classe dirigente". Esta é, entretanto, umaexplicação parcial; corresponde no máximo à falsaconsciência da classe subordinada. Talvezexplicasse, por exemplo, o fato indicado por Marxde que mesmo onde o camponês proprietário "porsua situção pertence ao proletariado, ele nãoacredita que pertença". Mas isto não seriapertinente para se explicar a falsa consciência daprópria classe dirigente.Ainda que não esteja claramente formulado,aparece na teoria marxista outro tema referente àfalsa consciência de classe. É a noção de ideologia,como sendo uma expressão involuntária e

inconsciente de "motivos reais", constituídos comointeresses objetivos de classes sociais.Sublinhando-se assim, mais uma vez, a naturezainconsciente das ideologias:A ideologia é um processo conscientementeefetuado por aquele que se diz pensador, mas é

guiado por falsa consciência. Os verdadeirosmotivos que o impelem permanecem des-conhecidos para ele, ou então não seria umprocesso ideológico. Advém daí que ele imaginamotivos falsos ou ilusórios. 47

4643 Marx e Engels,The German Ideology, p. 39. "Na medida em que (a burguesia) domina como classe e

determina a dimensão e o movimento de uma época, torna-se evidente por si mesmo que o faça em todaextensão, isto é, que domine também como pensadores, como produtores de idéias, e que regulamente produção e a distribuição de idéias de sua época. . . "47Engels, em carta a Mehring, a 14 de julho de 1893, em Marx,Selected Works, I, pp. 388-9; Cf. Marx, Der

Achtzehnte Brumaire, p. 33;Critique of Political Economy, p. 12.

Page 159: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 159/198

A ambigüidade do termo "correspondência" paradefinir a relação entre a base material e a idéia sópoderá ser negligenciada pelo apologistaentusiasta. As ideologias são interpretadas como

"deformações da situação social",48

como simples"expressões" de condições materiais, 49 e comosuporte motivacional para se proceder a reaismudanças na sociedade, sejam ou não"destorcidas". 50 Quando reconhece nas crenças"ilusórias" motivos para a ação, o marxismo atribuiuma certa independência às ideologias no conjuntodo processo histórico. Elas já não se reduzem aepifenómenos. Gozam de uma certa autonomia. Apartir de então se desenvolve a teoria da interaçãode fatores, que atribui também à superestrutura,ainda que em relação com a base material, umcerto grau de independência. Engelsexplicitamente reconhece a inadequação dasformulações anteriores, ao menos sob doisaspectos: A ) Tanto ele quanto Marx haviamexagerado o papel do fator econômico,subestimando o papel da interação recíproca, 51 eB ) haviam "negligenciado" o lado formal — a

maneira segundo a qual as idéias sedesenvolvem. 52

48BB Marx, Der Achtzehnte Brumaire, p. 39, no trecho onde diz que osMontagnards democráticos iludiram asi próprios.49 Engels,Socialism: Utopian and Scientific, pp. 26-27. Cf. Engels, Feuerbach, pp. 122-23. "O fracasso noextermínio da heresia protestantecorrespondeu à invencibilidade da burguesia ascendente. . . Nesta ocasião ocalvinismo mostrou ser o verdadeiro disfarce religioso adotado pelos interesses da burguesia da época..."

50 Marx reconhece a importância motivacional representada pelas "ilusões" da burguesia em ascensão, Der Achtzehnte Brumaire, p. 8.51 Engels, em carta a Joseph Bloch, a 21 de setembro de 1890, em Marx,Selected Works, I, p. 383.526»Engels, em carta a Mehring, a 14 de julho de 1893,ibid., I, 390.

Page 160: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 160/198

As colocações de Marx-Engels estabeleciam aligação entre as idéias e a infra-estruturaeconômica, na medida em que esta constitui omarco limitando a extensão de idéias socialmente

eficazes; as idéias que não convierem a nenhumadas classes sociais em conflito poderão aparecer,mas serão pouco conseqüentes. As condiçõeseconômicas são necessárias, mas não suficientes,para a emergência e difusão de idéias queexpressem os interesses, ou as perspectivas, ouambos, de estratos sociais distintos. As condiçõeseconômicas não exercem um determinismo estritosobre as idéias, mas constituem predisposiçãodefinida. Podemos predizer a partir das condiçõeseconômicas que tipos de idéias exercerãoinfluência controladora numa direção que possaser eficaz. "Os homens fazem sua história, mas nãocomo gostariam de fazê-la; não a fazem dentro decircunstâncias que escolheram, mas dentro dasque se acham dadas e transmitidas do passado". E,no fazer a história, as idéias e ideologiasdesempenham um papel definido: basta considerara noção de religião como "o ópio das massas"; ou

então a importância que Marx e Engels deram a sefazer o proletariado "consciente" de seus "própriosinteresses". Já que não existe fatalismo nodesenvolvimento da estrutura social total, masapenas o desenvolvimento de condiçõeseconômicas que tornam possível e provável aexecução de certas linhas de mudança, ossistemas de idéias podem desempenhar um papeldecisivo na escolha de uma alternativa, que"corresponda" a um real equilíbrio de forças, ao

Page 161: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 161/198

invés de optar por outra que, dirigindo-se emsentido contrário ao da situação de poderexistente, está destinada a ser instável, precária etemporária. Existe uma compulsão última advinda

do desenvolvimento econômico, mas suaorientação não é a tal ponto detalhada que impeçaa total ocorrência de variação nas idéias.A teoria marxista da história supõe que, cedo outarde, os sistemas de idéias que não concordam oucom a estrutura de poder existente, ou com aemergente, tenderão a ser alijados em benefíciodaqueles que mais exatamente exprimem o novoequilíbrio. É esta a visão expressa por Engels nasua metáfora de "curso em ziguezague" deideologia abstrata: pode haver um desviotemporário das ideologias de um eixo compatívelcomas relações sociais de produção existentes,mas tal desvio será, em última instância, retificado.É por isso que a análise marxista da ideologia estásempre preocupada com a situação histórica"total", a fim de poder justificar tanto ostemporários desvios de idéias como sua posterioracomodação às pressões econômicas. E é também

por isso que a análise marxista tem possibilidadede assumir um excessivo índice de "flexibilidade",a ponto de poder "explicar" qualquer desenvolvimento como aberração ou desviotemporário; "anacronismos" e "retardamentos"tornam-se etiquetas que permitem desfazer-se decrenças existentes incompatíveis com asexpectativas teóricas; a noção de "acidente"fornece um meio fácil de "preservar" a teoria

Page 162: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 162/198

contra fatos que desafiariam sua validade. 53 Assimque uma teoria inclui conceitos tais como"retardamentos", "empurrões", "anacronismos","acidentes", "independência parcial", e

"dependência última", passa a ser tão flexível evaga que se pode aplicá-la a não importa queconfigurações de dados. Neste caso, como no devárias outras teorias referentes à Sociologia doConhecimento, deve-se colocar uma questão nointuito de determinar a autenticidade de umateoria: como invalidar uma teoria? Em uma dadasituação histórica, quais os fatos a contradizê-la ea destituí-la de fundamento? A menos que seresponda diretamente a esta pergunta, a menosque a teoria não contenha afirmações passíveis deserem contraditas por dados especificamentedefinidos, ela permanece uma pseudoteoriacompatível com qualquer conjunto de dados.Apesar de ter-se adiantado no que tange amétodos de pesquisa efetivos na Sociologia doConhecimento substantiva, Mannheim não logrouestabelecer de maneira apreciável as relações dopensamento com a sociedade. 54 Como ele próprio

deixou indicado, fica, depois de analisada, umaestrutura de pensamento, o problema de atribuí-laa grupos definidos. Para tanto é preciso nãoapenas uma investigação empírica sobre os gruposou estratos que substancialmente pensam em taistermos, mas também a interpretação das causas

53 Cf. Max Weber,Gesammelte Aufsaetze zur Wissenschaftslehre, pp. 166-170.54 Não se vai poder, neste trabalho, tratar desse aspecto da obra de Mannheim; cf. Merton, "Karl Mannheand the Sociology of Knowledge",loc. cit., pp. 135-139; ver ainda Mills, "Language, Logicand Culture",loc.cit.

Page 163: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 163/198

Page 164: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 164/198

servem de agentes seletivos, alargando ouretraindo o domínio em que as idéias virtuaispossam vir a ser efetivamente expressas. Osfatores existenciais não "criam" nem

"determinam" o conteúdo das idéias; não fazemmais do que representar a diferença entre o queseja ato e o que seja potência; eles impedem,retardam ou aceleram a atualização de idéiaspotenciais. Usando uma imagem semelhante aodemônio hipotético de Clerk Maxwell, Scheierdeclara: "de um modo particular e numa ordemdefinida, os fatores existenciais abrem e fechamas comportas às correntes de idéias". De acordocom Scheier, tal formulação que atribui aos fatoresexistenciais a função de escolher num mundoinclusivo de idéias constitui um sólido ponto deconvergência entre teóricos como Dilthey,

Troelstch, Max Weber e ele próprio.Scheler igualmente usa o conceito de "identidadesestruturais" ao se referir a postulados comuns aoconhecimento e crença, de um lado, e à estruturasocial, política e econômica, do outro. Assim, odesenvolvimento do pensamento mecanicista no

século XVI, que veio a dominar o pensamentoorganicista anterior, é inseparável do novoindividualismo, da preponderância incipiente damáquina sobre o instrumento manual, dadissolução incipiente da comunidade(Gemeinschaft) em sociedade (Gesellschaft), daprodução para um mercado, e da crescenteaceitação do princípio de concorrência no ethos dasociedade ocidental etc. A concepção da pesquisacientífica como sendo um interminável processo

Page 165: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 165/198

de se acumular conhecimentos para aplicaçãoprática quando a ocasião se apresenta, e o totaldivórcio dessa ciência da teologia e da filosofianão seriam possíveis sem a destruição simultânea

de uma economia natural de satisfação denecessidades, e sem a aparição do princípio deaquisição infinita que caracteriza o capitalismomoderno.Examinando tais identidades estruturais, Schelernão atribui primazia nem à esfera sócio-econômicanem à do conhecimento. Antes, tanto uma quantoa outra são determinadas pela estrutura impulsivade uma elite penetrada pelo ethos socialdominante — tese a que Scheler atribui umasignificância toda especial. Assim, a tecnologiamoderna não seria uma simples aplicação de umaciência pura, fundada na observação, na lógica ena Matemática. Seria muito mais o produto de umaorientação no sentido de controlar a natureza, quedefiniria tanto os propósitos como a estruturaconceptual do pensamento científico. Essaorientação é em grande parte implícita e não deveser confundida com os motivos pessoais dos

cientistas.Com essa concepção de identidade estrutural,Scheler se aproxima da noção de integraçãocultural ou Sinnzusamment da identidadeestrutural corresponde ao "sistema culturalsignificativo" de Sorokin, que implica a "identidadedos princípios fundamentais e valores quepermeiam todas as suas partes", e que se opõe ao

Page 166: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 166/198

"sistema causal" que implica a interdependênciadas partes. 56

Tendo construído sua tipologia de culturas, Sorokinse dedica à investigação dos critérios de verdade,

ontologia, metafísica, produção científica etecnológica, descobrindo uma tendência marcanteà sua integração significativa com a culturapredominante.Sorokin corajosamente se entregou ao problemade determinar a extensão a que tal integração seconforma, tendo que reconhecer, apesar de seusvirulentos comentários a propósito dos estatísticosde nossa época sensorial, a necessidade de afe-rição estatística para se estudar a "extensão" ou"grau" de integração necessária. A essereconhecimento segue-se a organização de índicesnuméricos dos diversos escritos e autores de cadaperíodo, a classificação em categorias apropriadas,estabelecendo assim a freqüência relativa (einfluência) dos vários sistemas de pensamento.Qualquer que seja a avaliação técnica sobre avalidez e a fidedignidade dessas estatísticasculturais, Sorokin guarda o mérito de ter visto o

problema do grau e intensidade de integração,negligenciado por numerosos investigadores de"culturas integradas" ou Sinnzusammenhaegen.Acresce o fato de que suas conclusões empíricasforam largamente baseadas em tais estatísticas. 57

56 Sorokin,Social and Cultural Dynamics, IV, capítulo 1:I, capítulo 1.57 Apesar das estatísticas ocuparem em suas pesquisas empíricas um lugar especial, Sorokin adota a srespeito uma atitude ambivalente, que lembra aquela que se atribui a Newton a respeito da experimentação: nvê nelas mais do que um processo de tornar suas conclusões já realizadas "inteligíveis e convincentes pargrande público". É de se notar que Sorokin acolhe a observação segundo a qual as suas estatísticas nada msão do que uma concessão à mentalidade sensorial dominante, e já que "eles estão pedindo, vamos dá-laSorokin,Sociocultural Causality, Space, Time, p. 95n. A ambivalência de Sorokin se origina no seu esforço de

Page 167: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 167/198

E suas conclusões evidenciam que sua abordagemprovê mais à colocação do problema das conexõesentre as bases existenciais e o conhecimento doque à sua solução. Tomemos um exemplo. O

"empirismo" é definido como o sistema sensorialde verdade típico. Os últimos cinco séculos, e emespecial o século XIX, constituem a "culturasensorial par excellence! 58 Contudo, mesmo nesseoceano de cultura sensorial os índices estatísticosde Sorokin assinalam apenas 53% de escritosrelevantes no campo do "empirismo". E nosprimeiros séculos dessa cultura sensorial — fins doséculo XVI à metade do XVIII — os índices doempirismo permanecem bastante abaixo dos níveisdo racionalismo (que presumivelmente mais se ligaa uma cultura idealista do que à sensorial). Oobjeto dessas considerações não é o de colocar emquestão a coincidência entre as conclusões deSorokin e seu material estatístico: não se querperguntar por que nos séculos XVI e XVIIIpredominava um "sistema sensorial de verdade",tendo em vista os dados recolhidos. Antes, tentaindicar que mesmo de acordo com as premissas de

Sorokin, caracterizações globais de culturashistóricas constituem apenas um primeiro passo, aser seguido por análises dos desvios em relação às"tendências centrais" de cada cultura. Já que seintroduziu a noção de grau de integração, não sepode encarar a existência de tipos deconhecimento não-integrados às tendênciasdominantes como meros "amontoados" ouintegrar sistemas de verdade" distintos.58 Sorokin,Social and Cultural Dynamics, II, p. 51.

Page 168: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 168/198

"contingências". Suas bases sociais têm de serestabelecidas, o que, entretanto, uma teoriaemanacionista não providência.Uma noção fundamental para se diferenciar

generalizações do pensamento e conhecimento detoda uma sociedade ou cultura é a de "audiência","público", ou o que Znaniecki chama de "círculosocial". A orientação dos pensadores não se res-tringe a seus dados, ou a sociedade total, mas asegmentos específicos daquela sociedade comsuas exigências especiais, critérios de avaliação,de pensamento "significativo", de problemaspertinentes. É através da antecipação dasexigências e expectativas de audiênciasdeterminadas, passíveis de serem localizadas naestrutura social, que os pensadores organizam seupróprio trabalho, definem seus dados, colocamproblemas. Quanto mais uma sociedade sediversifica, tanto maior diversidade de audiênciascomporta, tanto maior a variedade dos focos deinteresse científico, de formulações conceptuais,de processos de verificação de supostosconhecimentos. O estabelecimento de liames entre

cada um desses públicos, tipológicamentedefinidos, e sua posição social correspondentetornarão possível, através daWissenssoziologische, a compreensão dasvariações e conflitos de pensamento dentro deuma sociedade, problema que vemnecessariamente sendo negligenciado por todateoria emanacionista. Assim, os cientistas que naFrança e na Inglaterra no século XVII seorganizavam em sociedades científicas recém-

Page 169: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 169/198

formadas se dirigiam a públicos bastante di-ferentes daqueles dos sábios que permaneceramnas universidades tradicionais. A orientação deseus esforços no sentido de uma explicação "clara,

sóbria e empírica" de certos problemas técnicos ecientíficos se distinguia consideravelmente dotrabalho especulativo, não-experimental, daquelesque estavam nas universidades. Pesquisar taisvariações em públicos concretos, explorar seuscritérios distintivos de conhecimento válido esignificativo, relacionando-os à sua posição no con-texto social, e examinando-lhes os processos sócio-psicológicos de obtenção de determinados modosde pensar constituem o encaminhamento que faráa pesquisa em Sociologia do Conhecimento passardo plano da imputação geral ao de análises em-píricas verificáveis.A exposição precedente se refere à substânciafundamental das teorias correntes. Limitações deespaço nos obrigam a considerar brevementeoutro aspecto dessas teorias, assinalado em nossoparadigma: funções atribuídas aos vários tipos deprodutos mentais.

Funções Atribuídas aos Produtos MentaisExistencialmente Condicionados

As teorias analisadas não se restringem a formular"explicações causais" do conhecimento,adiantando "funções sociais" destinadas aresponder seja por sua persistência, seja por suamodificação. Se bem que valha a pena, não

Page 170: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 170/198

poderemos proceder neste trabalho a um estudodetalhado dessas análises funcionais.O traço mais característico da imputação marxistade função é o de atribuir essas funções a estratos

distintos da sociedade, ao invés de à sociedadecomo um todo. E isto se aplica tanto aopensamento ideológico como à Ciência Natural. Nasociedade capitalista, a ciência e a tecnologia, quedela procedem, transformam-se em mais uminstrumento de controle nas mãos da classedominante. Dentro dessa mesma perspectiva, aoindagar dos "determinantes econômicos" dodesenvolvimento científico, os marxistas têm-selimitado a assinalar que os resultados científicospossibilitam a satisfação de algumas necessidadeseconômicas ou tecnológicas. Mas o fato de umateoria científica encontrar aplicações práticas nãoimplica que as necessidades estivessemsignificativamente envolvidas na obtenção dessesresultados. As funções hiperbólicas esperaram doisséculos por uma aplicação prática, enquanto oestudo de seções cônicas levou dois milênios antesde ser aplicado na ciência e na tecnologia.

Podemos concluir que as "necessidades" satisfeitaspela sua aplicação posterior tenham orientado ointeresse dos matemáticos para esses domínios,tendo por assim dizer havido uma influênciaretroativa ao curso de dois ou vinte séculos? Antesque se possa estabelecer o papel desempenhadopelas necessidades na determinação da temáticada pesquisa científica, faz-se necessário uminquérito pormenorizado a respeito das relaçõesque ligam o surgimento das necessidades, seu

Page 171: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 171/198

reconhecimento pelos cientistas ou por aquelesque selecionam os problemas, e as conseqüênciasoriginadas por esse reconhecimento. 59

Além de pretender que as categorias emergem do

social, Durkheim indica também suas funçõessociais. Todavia, sua análise funcional visa, antesda elucidação de um sistema de categoriasespecífico em uma sociedade dada, a própriaexistência de qualquer sistema comum a umasociedade. É indispensável a existência de ummesmo conjunto de categorias que permita aintercomunicação e a coordenação das atividadesdos homens. O que os aprioristas vêem como acompulsão da maneira natural e inevitável de seentender as coisas é, na realidade, apenas aexpressão da "autoridade mesma da sociedade,substanciada em determinadas maneiras depensar, que são condições indispensáveis a todaatividade comum". Tem que haver um certomínimo de "conformidade lógica" se se pretendemanter atividades sociais conjuntas; um conjuntocomum de categorias é uma necessidadefuncional. Esta colocação foi desenvolvida

posteriormente por Sorokin, que indica as váriasfunções servidas por diferentes sistemas de espaçoe tempo sociais.

Outros Problemas e Estudos Recentes.

59 Comparar com B. Hessen,op. cit., R. K. Merton,Science, Technology and Society in 17th Century England (Bruges: Osiris History of Science Monographs, 1938), capítulos 7-10; J. D. Bernal,The Social Function o f Science (Nova York: The Macmillan Co., 1939); J. G. Crowther,The Social Relations o f Science (Nova York:The Macmillan Co., 1941).

Page 172: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 172/198

O que acima vai exposto demonstra a necessidadede novas investigações dada a diversidade dosproblemas.Scheler indicava a considerável influência que a

organização social da atividade intelectual exercesobre o caráter de conhecimento que desenvolve.Um dos primeiros a se dedicar a este problema nosEstados Unidos, Veblen apresentou umimpressionista e cáustico estudo das pressões queconformam a vida universitária americana. Já maissistematizado, o trabalho de Wilson se ateve aosmétodos e critérios de ingresso no magistério, àsatribuições de status e aos mecanismos decontrole atuando sobre os professores, tendoassim formado sólidas bases para estudoscomparativos posteriores. Através de uma tipologiados papéis diversos desempenhados pelos es-tudiosos, Znaniecki desenvolveu uma série dehipóteses relacionando esses papéis aos tipos deconhecimento; os tipos de conhecimento às basesem que os cientistas são julgados pelos membrosda sociedade; as definições de papel às atitudesem relação ao conhecimento prático e teórico;

etc.60

Ainda há muito que estudar no que se refereaos critérios de identificação de classe dosintelectuais, à sua alienação dos estratos do-minantes ou dos estratos subordinados de umapopulação, à participação ou ausência empesquisas que permeiam implicações valorativasimediatas que desafiam os arranjos institucionais

60 Florian Znaniecki,Social Role o f the Man o f Knowledge (Nova York: Columbia University Press, 1940).

Page 173: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 173/198

existentes opostos a fins culturais, 61 as pressõesfavorecendo o tecnicismo e indo contra"pensamentos perigosos", à burocratização dosintelectuais como processo de transformar

problemas políticos em problemas administrativos,às áreas da vida social em que se requerconhecimento especializado e positivo, e àquelasem que a sabedoria do homem simples éconsiderada suficiente; em suma, a mudança depapéis do intelectual e a relação dessasmodificações com a estrutura, conteúdo einfluência de seu trabalho necessitam de atençãocrescente, uma vez que as transformações naorganização social mais e mais sujeitam ointelectual a exigências contraditórias. 62 Cada vezmais se admite que a influência da estrutura socialsobre a ciência não se reduz a concentrar aatenção dos cientistas em determinados camposde pesquisa. Além dos estudos a que já nosreferimos, outros têm-se preocupado com asformas de que se reveste a interferência docontexto social e cultural na formulação conceptualde problemas científicos. A teoria da seleção,

elaborada por Darwin, plasmou-se no conceitoentão dominante de concorrência econômica que,por sua vez, assumiu uma função ideológica apartir de seu postulado de uma "identidade natural61 Em seu tratado An American Dilemma (Nova York: Harper and Bros., 1944), Gunnar Myrdal aponta,repetidas vezes, as "avaliações veladas" dos cientistas sociais americanos que estudam o negro americano, eefeitos de tais avaliações na formulação de "problemas científicos" nesta área de pesquisa.62 Mannheim se refere a uma monografia inédita sobre o intelectual; poder-se-á encontrar bibliografias geraem seus livros e no artigo de Roberto Michel: "Intelectuais", Encyclopedia o f the Social Sciences. Entre osartigos recentes encontram-se os de C. W. Mills, "The Social Role of the Intellectual", Politics, I, abril de 1944;R. K. Merton, "Role of the Intellectual in Public Policy", apresentado ante a reunião anual da SociedaSociológica Americana, em dezembro de 1943; Arthur Koestler, "The Intelligentsia", Horizon, 9: 162-175.1944.

Page 174: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 174/198

de interesses". 63 Ao fazer uma observação meioirônica a respeito das características nacionais dosestudos referentes ao treinamento de animais,Russell orienta um novo tipo de estudos: as

relações entre a cultura nacional e as formulaçõesconcetuais. Da mesma forma, Fromm tem tentadomostrar que o "liberalismo consciente" de Freudimplica a rejeição tácita dos impulsos consideradospela sociedade burguesa como tabus, e que opróprio Freud, pela proeminência que concede aopai, era um típico representante de uma sociedadeque exige obediência e sujeição. 64

Da mesma forma tem sido demonstrado que anoção de causação múltipla é de especialconveniência para o professor que goza de umarelativa estabilidade, que se atém ao status quo doqual provêm sua dignidade e subsistência, que seinclina à conciliação e vê sempre algo de válido emtodos os pontos de vista, tendendo assim para umataxonomía que, relevando a multiplicidade dosfatores e a complexidade dos problemas, o eximede tomar partido. 65 Tem-se ligado a orientações po-líticas opostas a ênfase na "natureza" e no

"aprendizado" como determinantes fundamentaisdo ser humano. Os que enfatizam o caráterhereditário alinham-se no campo político entre osconservadores, ao passo que os defensores daprimazia do ambiente tendem a se engajar nos

63 Erich Fromm, "Die gesellschaftliche Bendingtheit der psychoa-nalytischen Therapie", Zeitschrift fuer Sozialforschung, 4: 365-97, 1935.64 Erich Fromm, "Die gesellschaftliche Bendingtheit der psychoa-nalytischen Therapie", Zeitschrift fuer Sozialforschung, 4: 365-97, 1935.65LewisS. Feuer, "The Economic Factor in History",Science and Society, 4: 174-175, 1940.

Page 175: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 175/198

Page 176: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 176/198

O curso atual dos acontecimentos históricos vemdesfazendo toda inclinação a se considerarinteiramente autônomo o desenvolvimento daciência e da tecnologia, a se considerar que esse

desenvolvimento se realizasse independente daestrutura social. Estudos vêm demonstrando queum controle social cada vez mais visível, e que àsvezes cede lugar a sanções, condiciona a pesquisae invenção científicas. Entre eles se situa o deStern 69 que ainda estabelece o que corresponde emmedicina a resistência à mudança. As mudançasfundamentais na organização social na Alemanhaforneceram uma espécie de teste experimental daestreita dependência que existe entre a orientaçãoe amplitude do trabalho científico, a estrutura depoder e as perspectivas culturais correspondentes.E os estudos que demonstram como se colocarama ciência e a tecnologia a serviço de exigênciassociais e econômicas tornam evidentes aslimitações de qualquer pretensão a se fazer daciência e da tecnologia "a base" sobre a qual sedeve "ajustar" a estrutura social. 70

Não nos seria possível, sem extravasar dos limites

do presente trabalho, prosseguir desenvolvendo aconsiderável lista de problemas, que vêm sendo

69Bernhard J. Stern, "Resistances to the Adoption of Technological Innovations", em National ResourcCommittee,Technological Trends and National Policy (Washington U. S. Government Printing Office, 1937), pp. 39-66; "Restraints upon the Utilization of Inventions",The Annals, 200: 1-19, 1938, e para mais referênciasver Walton Hamilton, Patents and Free Enterprise (TNEC Monograph, n.° 31, 1941).70 Hartshorne,German Universities and National Socialism; R. K. Merton, "Science and Social Order",

Philosophy o f Science, 5: 321-337, 1938.71 Tal fato é mais notável em tempos de guerra; ver as observações de Sorokin, segundo as quais os centros poder militar tenderiam a ser os centros de desenvolvimento tecnológico e científico(Dynamics, IV, 249-51); cf.I. B. Cohen e Bernard Barber,Science and War (ms.); R. K. Merton, "Science and Military Technique",Scientific Monthly, 41: 542-545, 1935; Berna!,op. cit.; Julian Huxley,Science and Social Needs (Nova York:Harper and Bros., 1935).

Page 177: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 177/198

Page 178: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 178/198

demais restrita e rudimentar. A verdade é que doconhecimento da "posição social" de um pensadornão se pode deduzir a veracidade ou falsidade desuas afirmações. Neste sentido rudimentar, a

Sociologia do Conhecimento éepistemologicamente inconseqüente. Mas oassunto é mais complexo; as conseqüências sãomenos diretas.

Um exame analítico das posições negativasreferentes àsconseqüências epistemológicas da Sociologia doConhecimento e uma solução do assunto geral aoqual ela provavelmente se refere progredirãoobliquamente e incluirão respostas às seguintesperguntas:1) Qual o caráter, a origem e a função genérica

das formas, critérios de verdade e modelos deverificação epistemológicos?2) Exatamente onde, em que conjunturas e emque tipos de investigação podem os fatores sociaisentrar como determinantes do conhecimento?É claro que a "veracidade" e a "objetividade"apenas têm aplicação e sentido em termos dealgum modelo ou sistema de verificação, aceitos.Aquele que sustenta a irrelevância das condiçõessociais para a veracidade das proposições deveestabelecer as condições das quais, em seuentender, a veracidade depende. Deve especificarcom exatidão o que existe no pensamento que os

fatores sociológicos não possam explicar e em quese baseiam a validez e a veracidade. Os queadotam a posição negativa devem estabelecer o

Page 179: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 179/198

que são estes critérios de veracidade e validez,como se originam e como funcionam. Têm sociaisé concebido como se não levasse consigonenhuma crítica ou reformulação legítimas dos

critérios "tradicionais" de validez e veracidade.Hans Speier, ao relatar crença semelhante, fala da"intromissão" da Sociologia no domínio filosófico efaz uma distinção entre pensamento "promocional"e "teórico"; este último, concebido como tendosomente a "verdade" como seu objetivo, não deveser analisado sociologicamente. Junto comGrünwald, Speier diz: "A validez de um julgamentonão depende de sua gênese". Assim, devido aconsiderações epistemológicas, Schelting e Speierlimitariam o objeto e as implicações da Sociologiado Conhecimento. R. K. Merton aparentementeaceita essa posição negativa em "The Sociology of Knowledge", Isis, XXVII, n.° 3, (75), 502-3. R. Bain eR. M. Mac Iver, em trabalhos lidos em Atlantic City,1937, também mostram que não vêem conse-qüência epistemológica alguma da Sociedade doConhecimento. G. H. Sabine toma esta posição em"Logic and Social Studies", Philosophical Review,

XLVIII (1930), 173-74.Fritz Mauthner dirigiu um exame sociológicovigoroso, embora breve, destes cânones,sugerindo que a difusão dos estudos da gramáticae dos fatores da cultura tradicional indianainfluenciaram sua formulação e persistência.Dewey ofereceu uma teoria empiricamentebaseada na qual encara essa lógica culturalmentecomo formuladora das categorias de linguagemprevalentes na sociedade grega. Mostrou também

Page 180: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 180/198

o funcionamento das classes e os conseqüentesfatores estético-sociais nesses critérios de valideze as condições sob as quais eles aparecem.O paradigma oficial e monopolístico de validação e

veracidade aceitos pela escolástica medieval eracertamente influenciado por fatores tais como "aposição hierarquicamente centralizada da eliteintelectual com seu poder tanto político quantointelectual e sua memória, fé e normas dialéticasde recrutamento estritas. Também pelo fato deque, em virtude dessa organização social de váriosséculos, os lógica utens e o esquema de percepçãode cada pensador eram comuns a grandes setoresda elite".Será que a posição em questão lembra algumasdas formulações epistemológicas mais recentes,digamos, as dos séculos XVII e XVIII? Mannheimsugeriu judiciosamente que estas eramcondicionadas pelo status revolucionário da classemédia, particularmente por seu caráter"individualista". E. Conze sugeriu com acerto as"Origens burguesas do nominalismo". Certamentea epistemologia protestante de Descartes abre-se

à investigação sociológica. E os cânones deverificação "utilitários" e "experimentais" foramcom certeza impulsionados pelo ethos social dopuritanismo do século XVII.

Tem havido e há diversos cânones e critérios devalidez e veracidade e estes critérios, dos quais

dependem as determinações de veracidade dasproposições, estão em sua permanência emudança legitimamente abertos à relativização

Page 181: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 181/198

histórico-social. 72 Além do mais, estamos lidandocom teorias sociológicas referentes ao caráter eemergência de alguns deles. Os critérios oumodelos de observação e verificação não são

transcendentais. Não se derivam, em sua purezateórica, de um céu grego, embora a "escolha" e ouso de uma parte deles possam ser assim

justificados. Nem são parte de um equipamento"mental" apriorístico ou inato, concebido para serintrinsecamente lógico. 73

Ao contrário: a diversidade histórica de taismodelos corrobora a visão de Dewey do que elessão gerados e se derivam de investigações feitasem tempo e sociedades determinadas. A tese deDewey sobre o caráter e a situação histórica dasformulações lógicas e epistemológicas 74 nosfornece explicação empírica para os dadoshistóricos. Durante quarenta anos, êle sustentouque os modelos de verificação sobre os quais sebaseiam as imputações de veracidade são formasderivadas de investigações existentes e não têmsentido quando delas separados. "A investigação(a lógica, e. g.) é a. causa cognoscendi das formas

lógicas, a investigação primária é a causa essendidas formas que a investigação sobre ainvestigação descobre". 75 Um exame cuidadosorevela que não existe desacordo fundamental72 Em acréscimo aos estudos citados acima, ver Sorokin, que isola e utiliza várias formas diferentes dvalidação como pontos-chave para estudo.Social and Cultural Dynamics (Nova York, 1937), vol. II.73 E. g., Hans Speier fala de uma "propriedade da natureza humana que permite ao homem a busca verdade" ("The Social Determination of Ideas",op. cit., pp. 186-193). Para uma visão oposta, ver abaixo;também A. Goldenwiser's Robots or Gods? (Nova York, 1931), p. 53.74 Logic: the Theory o f Inquiry (Nova York, 1938), cap. I; "Philosophy", Research in Social Science, ed. W.Gee, p. 251. Ver também H. Reichenbach, Experience and Prediction (Chicago, 1938), cap. I.75 Dewey, "Logic", p. 4.

Page 182: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 182/198

entre as concepções de Dewey e Mannheim sobreo caráter e a origem genéricos das formasepistemológicas. "A abordagem indireta darealidade", nos diz Mannheim, "através da história

social será, no fim, mais útil que uma abordagemlógica direta". A visão de Mannheim coincide com oprograma seguido por Dewey desde 1903, quandoêle abandona as preocupações tradicionais, emtorno da relação ubíqua do pensamento em geralcom uma realidade em sentido lato, por um exameespecífico do contexto, posição e efeito de um tipode investigação.

Em termos das normas em cujas bases as idéiassão aceitas ou rejeitadas, C. S. Peirce analisouquatro segmentos da história intelectual ocidental.Seu trabalho comparativo e quase-sociológico foi

uma etapa preliminar de sua própria aceitação deum modelo de observação e verificação que êlemesmo analisou e generalizou a partir de umaciência de laboratório. Mas nem todos ospensadores, nem mesmo filósofos, procederam à"escolha" de que modelo de verificação deveriaguiar seu pensamento de maneira tão consciente eexaustiva como Peirce. A "aceitação" (o uso) e a"rejeição" de modelos de verificação por cadapensador e pelas elites é outra situação na qual,fatores extralógicos, possivelmente sociológicos,podem introduzir-se e ter conseqüência para avalidez do pensamento de uma elite.

O modelo "total, absoluto e universal" de"ideologia" mannheiniano, no qual a posição socialinflui sobre a "estrutura da consciência em sua

Page 183: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 183/198

totalidade", incluindo tanto a forma como oconteúdo, pode ser interpretado como significandoesta relativização histórico-social de um modelo deveracidade ou a influência de uma "posição social"

sobre a "escolha" de um modelo em detrimento deoutro. As afirmações de Mannheim nãocontradizem esse enunciado mais explícito eanalítico.Aqueles que argumentam que as investigaçõessociológicas do pensamento não têmconseqüências para a veracidade ou validezdaquele pensamento compreendem mal a fonte eo caráter dos critérios dos quais a veracidade e avalidez dependem sempre. Esquecem também ofato de que esses próprios critérios e as aceitaçõese rejeições seletivas de um ou outro pelas váriaselites são passíveis de influência cultural einvestigação sociológica. Aparentemente elespressupõem, sem avaliar as possibilidades, que,dependa a validez do que depender, ela não podeser examinada empírica e sociologicamente. Estavisão é corroborada por uma teoria pouco definidado conhecimento e da mente, que impede a

análise desses aspectos ou conjunturas nosprocessos de conhecimento nos quais fatoresextra-lógicos possam introduzir-se e tornar-serelevantes para a veracidade dos resultados. Poisseu ataque é, com freqüência, dirigido contra avisão de que a validez de um julgamento dependede sua gênese, e inclinam-se a interpretar"gênese" em termos de uma motivação individualpara o pensamento.

Page 184: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 184/198

É verdade que o modelo corrente de pensamento"científico", retirado principalmente dasinvestigações físicas pós-renascentistas, distingueentre a veracidade dos resultados e os motivos e

condições sociais de uma investigação. Isto porqueeste paradigma exige que as afirmações sejamverificadas através de certas operações que nãodependem dos motivos ou da posição social dequem as faz. A posição social não afetadiretamente a veracidade das proposiçõestestadas por este modelo de verificação. Mas asposições sociais podem muito bem afetar o fato deque este ou algum outro modelo seja ou não usadopor tipos de pensadores hoje ou em outro período.De maneira alguma este modelo particular deverificação foi usado por todos os pensadores emtodos os tempos. Na verdade, muitos não oaceitam atualmente. Muitos cientistas sociaiscontemporâneos apenas conhecem nominalmenteeste modelo da ciência física e seu "uso" é limitadoao emprego de alguns termos esparsos em seusescritos. Este modelo particular não existiu e nãopoderia ter existido antes da total ascensão da

ciência física na Europa ocidental, pois se derivadesse tipo de investigação.Mas até mesmo em investigações que satisfazemesse paradigma, os motivos ou posições sociais dopensador não exaurem os aspectos dasinvestigações que se relacionam a fatores sociais.Qualquer padrão de observação ou verificaçãopode em si mesmo ser socialmente relativizado, ea "seleção" e o uso de qualquer modelo (comotambém o seu padrão de difusão específica entre

Page 185: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 185/198

as mais variadas elites) estão abertos à explicaçãosociológica. Podem-se mencionar dois outrosaspectos das investigações que estão abertos apossíveis influências histórico-sociais e que podem

influenciar os critérios e, conseqüentemente, averacidade e validez dos resultados:

i) As categorias das quais dependem todas asinvestigações e exposições estão relacionadas asituações sociais, a determinantes culturais. Muitosinvestigadores indicaram de que maneira osconceitos, como sub-rogados de contextossocietais, podem dar forma a investigações que,aparentemente, são desarraigadas e socialmentelivres. A detecção dos significados societalmentecondicionados dos termos de que depende umainvestigação pode ser vista como uma crítica à

garantia dos resultados desta. Nos termos de C. W.Morris, a dimensão pragmática (que inclui asociológica) do processo da linguagem ébasicamente relacionada com a semântica e asintática. O que é considerado problemático equais os conceitos disponíveis e usados podemestar interligados em determinadas investigações.Deve-se notar que, dentro da perspectivasociológica, os problemas que causam a reflexãopodem ser encarados de numerosos ângulos comoligações entre intelecto e cultura. Focalizar aseleção de problemas em termos de valoresmotivacionais é apenas uma, a mais rudimentar

forma de conexão.ii) Estreitamente ligada a tal visão de categoriasestá a

Page 186: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 186/198

teoria social da percepção. Ao adquirir umvocabulário técnicocom seus termos eclassificações, o pensador está adquirindo como sefora um par de lentes coloridas. Ele vê um mundo

de objetos que são tecnicamente tintos epadronizados. Uma linguagem especializadaconstitui verdadeira forma apriorística depercepção e cognição, que é certamente relevantepara os resultados da investigação. Asepistemologías têm discrepado amplamentequanto às maneiras pelas quais os elementos em-píricos entrariam no conhecimento. Mas, por maisvariada que tenha sido a incorporação deelementos empíricos, ao olhar o mundo paraverificação, seus conceitos condicionaram aquiloque viram. Diferentes elites técnicas possuemdiferentes capacidades perceptuais. A verificaçãoempírica não pode ser uma simples e positivistaoperação reflexa. Assim, as dimensõesobservacionais de qualquer modelo de verificaçãosão influenciadas pela linguagem seletiva de seususuários. E esta linguagem não deixa de ter umamarca histórico-social. As implicações dessa visão

social da percepção para as teorias simples decorrespondência da verdade, e. g., são óbvias. Ofracasso em reconhecer tais embricamentos nainvestigação, relevantes para a "veracidade","objetividade" e "imparcialidade" dos resultadosda investigação, acarreta limitação arbitrária doobjeto legítimo de uma Sociologia doConhecimento empírica.Um argumento há muito usado contra todas asformas de relativismo manifesta-se

Page 187: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 187/198

freqüentemente em discussões 76 do problemaseguinte: ou a própria afirmação e argumento dorelativista são relativos, caso em que êle não tembase para negar ou afirmar a veracidade do

pensamento alheio, ou seu argumento e afirmaçãosão incondicionalmente verídicos e, portanto, orelativismo é contraditório em si mesmo. 77 Esteargumento pode ser colocado em formaestritamente lógica:

a) O pensamento é função de fatoresculturais (donde sua "validade imparcial","objetiva", é destruída). b) A Sociologia do Conhecimento é umtipo de pensamento.c) Portanto, a Sociologia doConhecimento é função de fatores culturais (donde

não pode ser “objetiva", "válida"). O próprioMannheim documentou empiricamente a ligaçãodos itens abc. Indicou as condições culturais epolíticas da Sociologia do Conhecimento. São aspremissas colocadas após os "donde" e seuspressupostos que precisamos examinar.Estes argumentos anti-relacionísticosaparentemente ignoram o caráter e o status dasformas epistemológicas (ver i e ii acima).Pressupõem a existência de uma verdade absolutaque não tenha nenhuma ligação com a

76 E. g.( von Schelting, American Sociological Review, p. 667. Deixo em aberto a questão sobre se a

formulação de von Schelting expressa adequadamente ou não a posição de Mannheim. Preocupo-me não comdefesa ou avaliação da obra de Mannheim ou de von Scheltingin toto, mas apenas com este único ponto. Emgeral, contudo, acho o "rela-cionismo" de Mannheim(Ideology and Utopia, esp. pp. 253, 269-70) bastantesustentável. A posição é logicamente imperfeita e insatisfatória apenas do ponto de vista absolutista.77 Cf. a formulação e hábil dissecção de E. Vivas deste argumento( o p . ci/., p. 443).

Page 188: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 188/198

investigação; e apenas são significativos do pontode vista de um absolutista. As imputações dosociólogo do conhecimento podem ser testadascom referência ao modelo de verificação

generalizado, e. g., por Peirce e Dewey. Suaveracidade está, então, em termos deste modelo.Mesmo que se admita que este modelo não énenhuma garantia absoluta, parece o maisprovável de que dispomos no momento. (Naprática, se quisermos difundir nosso pensamentoentre os pensadores profissionais de hoje,precisamos colocá-lo nestes termos.) Os critériossão, por si mesmos, coisas em desenvolvimento.Uma precondição para "corrigir" este modelo parauso futuro é usá-lo conscienciosamente agora. [Alógica da] investigação sobre investigação é . . .um processo circular que não depende de nadaque seja estranho à investigação. 23As afirmações do sociólogo do conhecimentofogem ao "dilema do absolutista" porque se podemreferir a um grau de veracidade e porque podemincluir as condições nas quais são verídicas.Apenas as afirmações condicionais são passíveis

de ser transladadas de uma perspectiva a outra. Asafirmações podem ser apropriadamente colocadascomo probabilidades, como mais ou menosverazes. E somente dessa maneira podemos dizerque a investigação científica é autocorrigível. O so-ciólogo também pode, sem contradição, apontarfatores sociais condicionantes do fracasso em usareste modelo particular.Mannheim afirma, muito corretamente, que novoscritérios para a ciência social podem emergir das

Page 189: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 189/198

investigações da Sociologia do Conhecimento. Issoé inteiramente possível. Elaborarei este ponto maisabaixo. Basta aqui ter consciência de que "os cri-térios tradicionais" emergem da análise lógica dos

tipos "tradicionais" de investigação. A tentativa derestringir o objeto e as implicações da Sociologiado Conhecimento para salvaguardar suasafirmações está mal situada e não se adequa àsmodernas teorias do conhecimento.Outra tentativa semelhante é proposta pelos quequerem limitar a Sociologia do Conhecimento àinvestigação das tentativas conscientes de umpatrocinador para encontrar um público; dascondições sociais de tipos de patrocinador; demeios para difundir idéias persuasivas de valoresetc.. .. Deste ponto de vista, a Sociologia doConhecimento pode não ter nenhuma relevânciaou objeto epistemológico porque pode estudarexaustivamente apenas um tipo "promocional" depensamento. Enquanto examina o "pensamentoteórico" ("cuja finalidade é . . . apenas a verdade"),ela está aparentemente limitada ao exame da"seleção de certos problemas". Em acréscimo à

motivação individual existe uma segundadiferenciação entre os dois tipos de pensamento: opúblico do filósofo teórico são "as eternas fileirasdos que buscam a verdade". Nenhuma dessas di-ferenciações é suficientemente analítica. Anenhuma adiantaria dizer-se que se constituem em"qualidades de pensamento" diferentes. Consideroesse público do pensador teórico como osmembros de uma elite técnica, genericamentedelimitada como: a ) os que lêem sua obra ou o

Page 190: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 190/198

que êle pensa que a lêem; ou seja, os queparticipam com maior ou menor relevância em seuuniverso discursivo; b ) são pessoas acostumadasa pôr emdúvida, a criticar e a fixar suas crenças, i.

e., a pensar,26

de forma tal que satisfaçam ascondições de algum modelo de pensamento, decujas formas estejam mais ou menos conscientes eempenhadas em seguir. Este é o significado dotermo "buscar a verdade". Assim analisadosociologicamente, o pensamento dos "filósofos" eteóricos certamente se constitui em dados para osociólogo do conhecimento. A existência mesmade tal grupo é sociologicamente significativa. Asorigens e conseqüências de tais grupos emcontextos variegados têm recebido pouca atençãoexplícita. Já mostrei como a "seleção" dos critériose os próprios critérios estão abertos à investigaçãosociológica, como as categorias da exposiçãotécnica, os problemas enfrentados e os esquemasperceptuais podem influenciar a direção e asformas validadoras do pensamento. 78

Além do mais, o fato de um pensador desejar ouser motivado a atingir a verdade não garante ouimplica que suas afirmações sejam ou nãoverdadeiras. Muito menos que êle ou elas estejamabertos à relativização social. "Verdadeiro é umadjetivo aplicado às proposições que satisfazem asformas de um modelo de verificação aceito. No

78 O fracasso de Speier em reconhecer estes pontos como abertos à influência social é provavelmencondicionado por uma preocupação exclusiva com um tipo de mecanismo sócio-psicológico vinculandoideação à cultura. Em seu artigo, êle aceita apenas "a necessidade", "o problema" e "os interesses" do pensad"As relações entre idéias e realidade social estão... constituídas por entre as necessidades" ("SociDetermination of Ideas",op. cit-, p. 183). Ver meu "Language, Logic and Culture",op. cit., no qual esta visão écriticada e outros modos de relação são propostos.

Page 191: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 191/198

modelo atualmente dominante entre ospensadores seculares, profissionais, a verificação éindependente da motivação individual para pensar,seja este a "verdade" ou a "persuasão". Não vejo

em que estaremos justificados nesta etapa dapesquisa para diferençar tipos de pensamento emtermos de motivação epistemológica. Estas nãosão as espécies de tipos que precisamos e quepodemos usar numa dissecação. Pois seria precisouma análise sócio-psicológica de um pensador paradeterminar se ele estava realmente, ou acreditavaestar, visando a verdade, i. e., seguindo outentando seguir um modelo de verificação. Poder-se-ia identificar com propriedade o pensamentoteórico apenas em termos de um modelo deverificação dado. Em pesquisa, não podemosprodutivamente impor o "nosso" ao de pensadorespassados. Tem havido vários modelos nopensamento ocidental, e já mostrei que estãoabertos à relativização histórico-social.

Não existe em nossa era uma forma comum devalidação à qual, todos submetam suasafirmações. Esta condição epistemológicaapresenta uma oportunidade para estudarcomparativamente as diversas normas em si, suafunção e gênese. Em face da diversidade econfusão epistemológicas, parece tolice considerarnosso trabalho como irrelevante à luz de um con-

junto arbitrário de normas derivadas de uma gama

particular de investigações ou conglomerados decrenças miscelâneas.

Page 192: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 192/198

Mas as tarefas para os sociólogos do conhecimentoderivadas dessas afirmações não estão bemdefinidas. Precisam ser indicadas maisprecisamente. É claro que, como mostrou Wirth,

aspiramos a contribuir para a "elaboração sócio-psicológica da própria teoria do conhecimento".Estou preocupado aqui em mostrar a utilidadedeste trabalho para os sociólogos, i. e., a funçãometodológica da Sociologia do Conhecimento.O sociólogo do conhecimento não precisacontentar-se com o exame e a relativização fatuaisdos aspectos dos processos cognoscitivos. Pois talexperiência o coloca estrategicamente, em umabase comparativa e contextual, para uma constru-ção metodológica positiva. Precisamos aqui ter emmente a identificação de Dewey entreepistemologia e metodologia. Essa ocorrênciaacarreta a crença de que a derivação de normasde algum tipo de investigação (mesmo se este temamplo prestígio, e. g., "a ciência física") não é o fimda epistemologia. Em sua "função epistemológica",a Sociologia do Conhecimento é especificamentepropedêutica para a construção de uma meto-

dologia consistente para as Ciências Sociais.79

SeMannheim tivesse acertadamente reconhecido talcoisa, teria evitado ambigüidades e falsascolocações em sua obra. Mas, de maneira geral,Mannheim como epistemológico se preocupa emdetectare corrigir as limitações das investigaçõespolítico-sociais. Em sua análise dos Métodos deRice, ele abstrai algumas das noções e formas que79 L. Wirth indicou com acerto que uma incipiente Sociologia do Conhecimento com freqüência tem sido u produto inexplorado das discussões metodológicas. (Prefácio a Mannheim,op. cit., pp. xvu-XXIII.)

Page 193: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 193/198

controlam as investigações dos sociólogosamericanos e alemães, critica cada estilo à luz dooutro, de maneira suplementar, e traçasucintamente um elo entre os dois e um modelo de

pesquisa geral que, a seu ver, a investigação socialdeve seguir, se deseja resultar em conhecimentoseguro.

Von Schelting incorretamente afirma queMannheim não "postula a possibilidade de umavalidez objetiva para as realizaçõescognoscitivas". 80 De fato, Mannheim não se detémna mera suposição. Continua, como metodólogo

judicioso, a tentar formulações de critérios para ainvestigação social nos termos das formas vigentesde pensamento social como empiricamentedefinidas pela lógica e por uma Sociologia

contextual do conhecimento. Se Mannheim não foibem sucedido em sua tentativa de enunciarcritérios judiciosos para as investigações sociais,tal não se deve a falsas concepções do caráter dasformas epistemológicas nem a uma "inconsistênciaepistemológica".O desejo de tratar problemas politicamenteimportantes sem ser vítima de distorções foi oresponsável pelo desenvolvimento da. . .Wissenssoziologie na Alemanha. Este novo ramode pesquisa, destinado a ser um órgão deautocontrole crítico, já foi bem sucedido aodetectar e submeter a controle importantes fontes

de erro.

80 Op. cit., p. 667.

Page 194: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 194/198

Isto certamente indica um sentido genérico darelevância epistemológica da Sociologia doConhecimento. O sociólogo do conhecimento secongrega ao logicista vigoroso e ao metodólogo

social na construção crítica de métodos mais judiciosos para a pesquisa social.Entre os assuntos específicos que ele podeproblematizar com êxito estão os que se referemaos métodos respectivos das investigações físicase sociais. Há os que, em nome da ciência, impõemas formas de procedimento da primeira sobre aúltima em bruto; e há investigadores sociais quenão querem ter nada a ver com a Ciência Física. Osociólogo do conhecimento, baseado em umacompreensão comparativa, pode não só estabe-lecer origens sociais para as duas posiçõesextremadas, mas, construtivamente, implementara alteração planejada de certas formas físicas quese julgam adequadas para conseguir umatransferência produtiva.O "experimento" como forma de verificação é umexemplo em pauta. Dewey, e.g. , abstraiu estaforma da investigação física e tentou generalizá-la

por toda a "investigação qua investigação". Suasobras são informadas pelo fracasso em vercompleta e claramente as dificuldades eambigüidades associadas com o paradigma físicoda investigação e, em particular, o "experimento",quando aplicado aos dados sociais. O "experi-mento" em uma situação societal temcaracterísticas e problemas peculiares que o"experimento" em laboratório não possui. Porexemplo, o "controle" e a manipulação necessários

Page 195: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 195/198

ao trabalho "experimental", tal como ocorre naCiência Física, freqüentemente assume dimensõespolíticas e valorativas, o que não ocorre com oexperimento no contexto de laboratório. E a

"reconstituição" de um objeto, que, de acordo comDewey, se faz necessária antes que possafuncionar como um objeto do conhecimento,envolve muitas controvérsias. Para citarmos amenor, a tentativa de transladar esta técnica delaboratório para os dados sociais precipita osproblemas políticos e metodológicos com queDewey e seus discípulos não se preocuparamfrontalmente.

A inadequação neste e em outros pontos sugereque há necessidade de analisar as pesquisassociais em seu contexto cultural e intelectual e

tentar articular as regras incipientes nelesimplícitas. Dessa maneira, poderemosempiricamente suplantar as afirmaçõesapriorísticas de que há ou não, deveria haver ounão, qualquer diferença essencial entre ainvestigação social e a Ciência Física. Tal análisepermitiria ainda formulações explícitas e refinadasdos problemas peculiares à investigação social.Problemas de "valor" derivam-se daí e frustram ainvestigação social. Para ilustrarmos um aspectodo problema: como os problemas de pesquisaatualmente estudados pelos cientistas sociaisenvolvem valorações e como tais tramas

condicionam, se é que de alguma forma o fazem, a

Page 196: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 196/198

veracidade dos resultados? 81 As questões de valornão devem ser encaradas überhaupt. Colocadascomo emaranhados na pesquisa social, asquestões de valor tornam-se específicas e

genuínas. Precisam ser respondidas por análisessociológicas das disciplinas e problemasespecíficos nelas levantados. Nem só o conteúdodos valores na investigação social deve serdetectado, mas também como eles se insinuam econdicionam a direção, perfeição e garantia dosresultados da pesquisa, se é que de fato as con-dicionam. Dessa forma, podemos ganhar umaposição da qual estaremos aptos a formular regrasde evidência que evitarão que exortaçõesinformem nossos trabalhos. Tais exames con-textuais permitirão definições precisas de assuntosque são vagos no momento.

Talvez o problema metodológico central dasCiências Sociais seja derivado do reconhecimentode que freqüentemente existe uma disparidadeentre os tipos motores sociais e linguísticos docomportamento. Entretanto, o sociólogo doconhecimento está explicitamente preocupado

com investigações fatuais dos componentesverbais e da ação, com o "senso comum", e. g., asarticulações das várias culturas. Neste campo, umdos problemas é a determinação de disparidadesdiferenciais existentes entre sistemas decomportamento manifestos e o que é dito pelosatores em diferentes contextos culturais. Taisinvestigações sistemáticas teriam conseqüências8181 Cf. T. Parsons,Structure o f Social Action (Nova York, 1937, pp. 593, 601), referências e discussão do"Wertbeziehung" de Max Weber.

Page 197: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 197/198

para a construção das técnicas de investigação.Deveriam capacitar o metodólogo a construir emseus métodos margens de erro padronizadas,taxas diversas de desconto para os diferentes con-

textos. Deveriam mostrar (para vários tipos deação cultural, sujeitos e modos de verbalização)quanto e em que direção se orientarãoprovavelmente as disparidades entre língua eação. Dessa forma, as investigações fatuais devemfornecer uma base para as regras de controle eorientação da evidência e inferência. 82 Devido àsua posição acadêmica predominante na So-ciologia americana, a teorização sistemática seespecializou em livros-texto para estudantes, nãopara pesquisa. Que efeito tem tido isto no modelode pesquisa que os sociólogos têm procurado paraverificação de seu trabalho e, daí, em sua vali-dade?O ideal de intimidade de contato ao qual Cooleypraticamente assimilou a concepção de sociedade,com a conseqüente distorção e parcialidade, temsuas raízes em certas tradições culturaisamericanas e em uma compensação pela atual

despersonalização e caráter secundário da vida emuma ordem urbano-industrial.A ênfase sobre o processo contínuo como categoriacentral na Sociologia americana contribuiu talvezpara o esquecimento dos deslocamentos

82 Aqui os sociólogos podem coletar sugestões da historiografia crítica, que tenta situar (cultural biográficamente), os observadores dos fatos sociais (e. g., os papas romanos) visando descontar, com proprdade, suas observações registradas. Este método está consciente das diferenças das ocorrências societconforme são vistas ou escritas pelos relatores colocados diversamente. Ver A. Small,Origins o f Sociology,esp. pp. 48, 84-5 e 98; H. E. Barnes, A History o f Historical Writings (Norman, Okla., 1937), cap. X. 38T-V.Smith, Beyond Conscience (Nova York, 1934), e. g.: "A distância social é [considerada] um terrível destino...imoral à luz de nossa tradição cristã" (p. 111).

Page 198: Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

8/6/2019 Karl Mannheim Sociologia de o Conhecimento

http://slidepdf.com/reader/full/karl-mannheim-sociologia-de-o-conhecimento 198/198

revolucionários na "mudança social". Visõesseguras, baseadas em fatores múltiplos comocausação histórica, são muito convenientes parauma visão "liberal-democrática" da mudança social

politicamente implementada. Causas pluralísticassão mais fáceis de ser conduzidas a um ponto emque nenhuma ação é possível; a manipulaçãorevolucionária exige crença em uma causamonística.

Estes são os itens fragmentários mais à mão que osociólogo do conhecimento está em condição deexaminar A auto-colocação pormenorizada da