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Direito e Ideologias
Desencontro axiológico das normas
O ESTUDO CONCEITUAL DO DIREITO, como será visto, sempre esteve muito ligado à discussão
sobre o conceito de ideologia, sendo que muitos autores veem no direito escrito a
ideologia jurídica oficial e no direito não escrito a ideologia das expectativas de mudança,
da utopia ou da esperança. Por outro lado, ainda conceitualmente, aqueles pensadores
que veem no direito escrito a ideologia oficial, veem-na como objeto da ciência do direito,
principalmente numa versão reducionista do grande pensador austríaco Hans Kelsen,
assim como identificam no direito não escrito, às ideologias ascendentes, objetos de
percepção intelectual muito mais próximos da sociologia do direito. Nessa linha,
advogados e juízes são meros agentes de implementação do direito escrito, enquanto
ideologia oficial, cabendo aos reformadores, numa dimensão mais ampla, aumentar esse
espectro, e à sociologia jurídica, a sua adaptação no tempo histórico.
Em contrapartida, as ideologias jurídicas oficiais, sempre traduzidas no ideário
profissional, por mais abrangentes que sejam nos seus objetivos, sofrem as restrições
impostas pelas disposições legislativas, reduzindo sempre a ação do advogado ao ideário
profissional, como estudaremos, traduzido sempre aos limites estatutários da advocacia e
do amplo leque das profissões jurídicas, deixando o seu impacto transformador à
sociologia jurídica e o alcance de eventuais interpretações à dogmática, enquanto leitura
exegética, ou ao direito escrito. Para alcançar resultados mais extensivos, numa obra de
natureza didática, fica imprescindível um estudo mais aberto sobre as ideologias e suas
consequentes relações com o direito, enquanto direito posto, objeto da ciência do direito,
que não propriamente trabalha com o extensivo conceito de direito como direito
pressuposto ou expectativa de direito, mais presidido pelo conceito de justiça do que pelo
conceito de lei. Neste capítulo, a nossa preocupação, no entanto, está voltada para as
relações que possam existir no processo de transformação das ideologias em direito e
para o papel perceptivo do direito (escrito) pela ciência do direito.
Conceito de ideologia
Para facilitar a compreensão evolutiva deste capítulo, dividiremos o quadro conceitual dos
estudos sobre ideologia (Mannheim, 1968:81-287) em duas grandes linhas: o conceito
intelectualista, que evolui a partir do reconhecimento das ideologias como disfarce
(argumentativo) sobre o real, e o conceito pragmático, que, apesar das críticas
intelectualistas, é visto como linguagem expressiva de interesses, sejam particulares,
sejam globais. No primeiro grupo figuram pensadores como Karl Marx e Karl Mannheim,
precursores incontestáveis da discussão; no segundo grupo, são apresentados pensadores
que evoluíram criticamente do pensamento marxista e assumiram posição mais realista,
aliás, imposta pelo quotidiano compreensivo que a linguagem marxista não conseguiu
sufocar para explicar sua própria postura.
Na primeira parte, devido à similaridade com o conceito de ideologia, concentraremos
nossos esforços no estudo do conceito intelectualista. Deixamos para a segunda parte o
estudo das dimensões pragmáticas do conceito de ideologia, com especial destaque para
a Escola de Frankfurt. Essa escola de pensamento e, muito especialmente o reconhecido
filósofo Max Horkheimer – que quebraram a rigidez marxista e a versão perceptiva de
Mannheim, o efetivo patrono do intelectualismo – abriram as possibilidades de se
reconhecer na ordem jurídica mecanismos que viabilizaram mudanças da ordem jurídica
dentro da ordem jurídica, linha de enfoque essencial num estudo sobre ideologia e
direito.
Dessa forma, na grande linha do conceito intelectualista, foi Michael Löwy que
efetivamente estudou o conceito de ideologia numa perspectiva de distinção do próprio
objeto, teoricamente, sem desconhecer suas diferentes variações. Ele chegou a afirmar
que “existem poucos conceitos na história da ciência social moderna que sejam tão
enigmáticos e polissêmicos como este de ideologia” (Löwy, 1987:9). Ideologia, ao mesmo
tempo em que é um termo simples e leve, porque fácil de manipular no quotidiano da
linguagem, é um termo carregado e complexo, porque traduz formas especialíssimas e
conflitivas de ver a vida: as relações humanas, nos seus diferentes níveis e desníveis, e o
poder na sua obscuridade cênica (e na cínica obscuridade) do Estado.
Essa posição se torna mais complexa à medida que, neste capítulo, procuramos
aplicadamente trabalhar o tema, principalmente no contexto evolutivo, não de
organizações ou lutas políticas abertas, como, por exemplo, nas disputas entre os partidos
políticos, quando ainda resguardavam propósitos ideológicos, mas de organizações
corporativas fechadas, engajadas em lutas políticas específicas, muitas vezes de interesse
profissional. Assim, mais que polissêmica e enigmática, a discussão aplicada do tema pode
adquirir, pragmaticamente, dimensões paradoxais e ambíguas. No caso específico deste
capítulo, mais grave ainda, porque o tema ideologia não se incorporou ao quotidiano dos
estudos jurídicos, e mais profundamente ao quotidiano da própria advocacia, por um
lado, e, enquanto prática aplicativa do direito, a situações concretas, por outro lado,
veem-na em altíssimo grau de rejeição, especial forma de se evitar a redução do conceito
de direito ao conceito (classista) de ideologia, que produziria efeitos dissociativos da
dinâmica interpretativa das decisões judiciais.
Karl Mannheim, sem fugir do conceito de que a ideologia seria um disfarce do real, a
identifica numa dimensão particular “que traduz uma postura cética em relação ao
discurso” e uma dimensão total que se refere à ideologia e a uma época de um grupo
histórico-social concreto. Ambas as posições, todavia, guardam um elemento comum, ou
seja, que o discurso ideológico tem significado e intenção reais. São disfarces retóricos
para alcançar objetivos (subjetivos) (Mannheim, 1968:81-287). Paradoxalmente, a posição
originária de Karl Marx, precursor da posição de Mannheim, evoluindo por caminhos
diferentes, não desenvolveu uma linha conceitual muito diferente, especialmente porque,
para ele, a ideologia é um discurso alienado da realidade, uma realidade que não é a sua
própria realidade, mas que procura fazer das ideias que permeiam o projeto das classes
dominantes as expectativas das classes dominadas.
Para a maioria dos pensadores marxistas clássicos, que não conviveram com o filtro da
Escola de Frankfurt, o processo de decisão judicial, teoricamente, é uma manifestação
coercitiva do Estado enquanto agente de aplicação ou ação repressiva dos valores
expressivos da classe politicamente dominante. Essa leitura, mais que uma simples leitura,
uma postura, compromete as demandas do advogado ao aparato instituído e as decisões
dos juízes, da mesma forma, a esse aparato, que, na prática, prioriza a legalidade posta e
despreza a dinâmica modificativa que predomina na legitimidade das relações.
Nesse sentido, à medida que o direito se confunde (se confundiria) com a ideologia, na
sua manifestação de direito subjetivo escrito (expressivo do interesse de poucos)
transmuda-se no direito subjetivo de todos, mas (como nem todos ou a grande maioria da
sociedade) não é titular de direito(s) subjetivo(s), como, por exemplo, o direito à
propriedade, o direito subjetivo daqueles que têm força legislativa ou decisória nada mais
é (seria) do que o dever (direito objetivo), ou seja, respeitar a propriedade daqueles que
não são titulares de direito(s) subjetivo(s). A estes cabe, de qualquer forma, respeitar a
razão escrita, o direito subjetivo escrito (a lei, os decretos ou, modernamente, as súmulas
de tribunais) sem o que ficam (ficariam) suscetíveis a penas e sanções.
Assim, o conceito marxista (originário) de ideologia está também determinado pelo
conceito de disfarce, de apresentação alienada da realidade como forma de controle e
dominação daqueles que não produzem os cânones ideológicos (Marx e Engels, 1984).
Todavia, numa paradoxal ironia da história, que nasceu não apenas da crítica marxista,
mas também do seu quotidiano discursivo, o conceito marxista de ideologia ficou
pragmaticamente assimilado como discurso propositivo de transformação social, como
conjunto de ideias expressivas dos interesses (prospectivos ou defensivos) de grupos,
classes ou categorias sociais dominadas na forma do direito escrito.
Por outro lado, permitindo uma posição mais confortável e infensa às sucessivas dúvidas
semióticas, historicamente antecedentes à própria discussão conceitual de Michael Löwy,
o conceito apareceu e evoluiu como um sistema de ideias e princípios que permite
compreender (e analisar) a dinâmica da vida social e política e, inclusive, fixar parâmetros
de ações estratégicas. Essa linha conceitual, todavia, não é exclusiva, permitindo
reconhecer que a ideologia pode, também, se definir como conhecimento
conscientemente perfunctório da realidade (e do seu inconsciente coletivo), ampliando
não apenas a capacidade de percepção do ambiente circunstancial, mas o próprio domínio
das circunstâncias.
Neste capítulo, o primeiro conceito de natureza intelectualista, todavia, perceptível com
mais facilidade, possivelmente atribuível na sua formatação a Karl Marx, não foi utilizado
na sua manifestação simples e leve, na linguagem de Michael Löwy, pelo próprio Karl
Marx, que procurou trabalhar não propriamente com sua aplicação direta, nascida dos
confrontos de opiniões políticas, mas como conceito que reconhecia na ideologia uma
percepção deformada, que desvirtuava as situações reais para manipular interesses de
baixa (ou nula) capacidade de compreensão da(s) realidade(s) como fenômeno total,
contribuindo para alienar e distorcer a dinâmica do objeto da própria investigação. Assim,
na percepção conceitual originária, para Karl Marx (e Friedrich Engels) ideologia é um
sistema de ideias e princípios que conduzem para uma visão (percepção) deformada da
realidade orientando estratégias e projetos divergentes da dinâmica (natural) da própria
história, no que com ele (Marx) concordará o próprio Karl Mannheim (1968:295).
Por isso mesmo, apesar das posições polares, ambos os autores reconhecem nas
ideologias uma leitura compreensiva da sociedade a serviço das classes dominantes,
interessadas em fomentar uma leitura desviante da vida social como estratégia de
durabilidade de seu próprio poder. É exatamente nesse sentido que as ideologias
transformadas formalmente em direito tanto para Marx, quanto para Mannheim, fazem
da ordem jurídica (posta) e de seu aparato funcional aplicativo instrumento de controle
social da perspectiva da ordem estabelecida, expressiva de interesses sociais dominantes,
o que não impede que nessa linha argumentativa intelectualmente se conviva com o
conceito de ideologia como pressuposto da contraordem, ou seja, aquela ideologia que
poderá se transformar em ordem ou, por força de leis modificativas, de emendas
constitucionais, de eventuais assembleias constituintes ou de revoluções vitoriosas.
É nessa linha argumentativa que o conceito marxista de ideologia, como saber de
dominação (posto) das classes dominantes, se confunde ou não consegue se desvencilhar
com o próprio conceito de ideologia, como saber de libertação (pressuposto) das classes
oprimidas, permitindo que, no tempo histórico, na dimensão de sua própria praxis, se
reconheça também como a teoria que identifica as contradições internas da classe
dominante e não apenas os seus nódulos vulneráveis, mas as próprias estratégias para
exponencializá-las. O que Karl Marx pretendeu, efetivamente, foi contrapor a leitura
ideológica da história e da sociedade como um conhecimento anticientífico, divergente,
por conseguinte, da epistemologia (científica) desenvolvida nos seus clássicos trabalhos.
Por outro lado, Marx negou também à ideologia (originariamente) a dimensão de teoria
do conhecimento, para reconhecer no materialismo dialético, se não a própria ciência, a
metodologia das ciências sociais, subtraindo-lhe a percepção deôntica, como ensinou e
instruiu Hans Kelsen, estudada e aprofundada neste livro, e jusnaturalista, como tantos
fizeram no passado, por uma percepção dialética (devir) da realidade material (ôntica) que
se desdobra historicamente nos tempos futuros como compreensão dos tempos
passados, o que a praxis marxista reconheceu como a própria ideologia (ou uma lógica
ideológica). O conceito de ideologia evoluía, por conseguinte, do mero reconhecimento de
ordenações de ideias para justificar a vida e a realidade (opressiva ou de classe) para se
transformar, diferentemente do que pretendeu a teoria classista, nos albores do
materialismo-dialético, num instrumento de compreensão, se não apenas da
transformação social, também da conservação institucional.
Essa especial postura permite que se veja no Estado a encarnação da ideologia da classe
dominante, alienada e deformante, que faz das leis (o direito escrito) um instrumento de
dominação e de controle das classes sociais dominadas, a que (dominados)
inconscientemente (classe em si) aderem e admitem a ordem de valores instituídos como
seus próprios valores. Essa situação não impede, todavia, que a classe dominada e/ou
frações das classes dominantes e, em muitas circunstâncias (ou quase sempre),
intelectuais e políticos, resistam à própria ordem de valores instituídos e reajam, se não à
própria ordem, à sua radicalização iníqua como manifestação propositiva de uma nova
ordem ideológica.
Essa, na verdade, é a dimensão ambígua do conceito marxista de ideologia:
originariamente como pretendeu Marx, seria um sistema de ideias destinado a impor a
compreensão intelectual e jurídica da sociedade, em parâmetros de dominação e,
consecutivamente, não como obra de Marx, mas dos marximos, num sistema eficaz de
posturas práticas, capaz de converter as expectativas de libertação em luta efetiva contra
a dominação, revertendo as origens históricas e simbólicas do conceito de ideologia. No
primeiro caso, identificava-se no direito escrito a sua manifestação sofisticada de
dominação inalcançável pela consciência simples e, no segundo caso, se não reconhece
apenas nas revoluções o único caminho de reversão da dominação da classe, pressupõe
mecanismos de direito escrito capazes de transformar a ordem legal democrática em
expressivo instrumento de legítimas modificações estruturais.
A postura do marxista, como demonstramos, evoluiu da radicalidade da gênese de suas
formulações para propostas mais abertas, não apenas na dimensão conceitual, mas
também na própria formulação metodológica, ideologicamente reconhecendo que a
síntese, o efeito final das contradições históricas entre grupos ideológicos divergentes que
metodologicamente se expressam entre a tese ideológica estabelecida e a antítese a
contra ordem da ordem estabelecida. Modernamente se reconhece que a radicalidade
desses conflitos entre tese e antítese, em que, por exemplo, a ideologia do grupo
dominado antítese (negação da afirmação) não necessariamente evolui para a “afirmação
da negação”, ou seja, a imposição institucional da ideologia rebelada. Dessa releitura, no
contraste entre tese e antítese, a síntese não necessariamente será (seria) a afirmação da
negação antítese, mas fica também em aberto a possibilidade da ordem “afirmação da
afirmação” se impor a contraordem. Nessas tantas circunstâncias, o Estado pode fazer da
ordem jurídica instrumento continuísta de dominação de classe, assim como a ordem
jurídica instituída pode evitar que a ação repressiva do Estado ultrapasse os limites da
própria legalidade, ou em circunstâncias especialíssimas, permita que a ordem modifique
a ordem. Admitindo-se apenas que em circunstância especialíssimas permita a imposição
da contraordem. O que se espera, todavia, é que no contexto das novas discussões sobre
ideologia, a ordem estabelecida incentive mecanismos de abertura que permitam que a
ordem modifique a ordem, num processo que distingue reforma de revolução, evitando o
caos entrópico, conforme veremos mais adiante neste livro.
Todavia, muitos foram os caminhos que permitiram uma formulação mais aberta do
conceito de ideologia, assim como outros tantos foram significativos para reconhecer no
Estado não apenas um agente repressivo das classes dominantes, mas também um agente
propositivo de mudança. As páginas que seguem procuram, exatamente, analisar os
diferentes veios que conduziram a uma mais harmoniosa convivência entre o radicalismo
originário do conceito marxista de ideologia e as suas modernas aberturas para o Estado
ou a ordem jurídica prospectiva.
Finalmente, apenas para uma visão concreta do que estamos levantando, a ação do
aparato judicial, advogados, juízes, promotores etc., é uma ação fechada, circunscrita à
ideologia jurídica, muitas vezes desviada de seus próprios objetivos por provimentos
judiciários internos que provocam desvio de sua própria missão, o que não impede nas
dimensões do moderno constitucionalismo, o desenvolvimento de um papel mais
extensivo dos agentes judiciários ao alcance de objetivos ideologicamente pressupostos.
Por outro lado, no contexto dos sistemas ideológicos abertos, o seu espaço de confronto é
a própria ideologia estabelecida enquanto ordem jurídica, implementada pelo Estado. Daí
a razão pela qual a nossa preocupação neste capítulo se inclina para o estudo das formas
possíveis de se superar esse paradoxal dilema entre a lei, como instrumento de
dominação jurídica, e as ideologias como propósitos; se não de desconstruir a ordem,
repensá-la como instrumento de segurança jurídica, não apenas de ideias, mas das
expectativas da sociedade civil.
Ideologia, repressão e direito
Nessa linha discursiva, muito embora sejam frágeis e dispersos os estudos marxistas sobre
o tema, a ordem jurídica (vulgarmente traduzida como direito) é reconhecida como
superestrutura (metáfora de efeito diminutivo que a descreve como simples reflexo do
mundo econômico real, a infraestrutura, termo que muitos afirmam, não foi usado por
Marx) destinada a reproduzir, articuladamente com os “aparelhos repressivos do Estado”
(exército, polícia, tribunais, prisões) a pluralidade dos aparelhos ideológicos (escolas,
igrejas, partidos, empresas, famílias, jornais etc.). Althusser (1983, p. 70 et seq.), que nos
seus estudos se aproxima do conceito pragmático de ideologia, formulou essa sistemática
que não propriamente faz uma indicação da ordem jurídica ou dos conteúdos
substantivos (ideológicos) impostos pelos “aparelhos ideológicos do estado” permitindo-
nos reconhecer que, na verdade, esses aparelhos ideológicos impõem, para resguardar a
estabilidade, uma determinada ideologia de classe expressa como religião, educação,
representação política, organização, comunicação etc., deixando aos tribunais, ao que se
presume, enquanto aparelho (repressivo) do Estado, a imposição da lei (conversão formal
restrita do direito).
Nesse sentido, a ordem jurídica seria, para Althusser, o efeito repressivo do tribunal, o
que parece um excesso ou demonstra mesmo o desprezo de amplas vertentes do
marxismo pelos estudos jurídicos, como também se dá o contrário. Neste capítulo, apesar
de suas limitações, estamos exatamente preocupados em reverter essa leitura, ou seja,
demonstrar que os institutos jurídicos (ideológicos) não apenas se definem como
“conteúdo repressivo”, mas, significativamente, também como conteúdos (valores) de
libertação, muitas vezes assimiláveis, independentemente de rupturas profundas do
Estado.
Claro que essa é uma discussão conceitual complexa e profunda, porque coloca os
advogados, não no seio da contradição, mas a serviço mesmo dos valores instituídos ou
como agentes da “afirmação” da ideologia do Estado. Todavia, modernamente, muitos
juristas têm questionado essa postura, se não como uma inconveniência hermenêutica,
como uma displicência perceptiva do também papel social do advogado, embora esse não
seja o objeto de seu quotidiano, mas, principalmente, da sociologia jurídica em
convivência epistemológica com a sociologia geral e com a ciência política ou mesmo com
a moderna filosofia do direito (Habermas, 1973:44-45; 87-90).
Essas disciplinas, quando premidas pelas variáveis marxistas, fazem uma relação direta
entre o direito instituído (a lei) e a ideologia, o que não é absolutamente verdadeiro: em
primeiro lugar, porque a lei é o direito filtrado que, dependendo de sua produção, em
algumas ocasiões, institui o espectro comezinho e perverso dos princípios, mas, em
outras, traduz o seu espectro mais aberto e magnânimo; em segundo lugar, porque a
dimensão fragílima ou grandiosa da lei está vinculada à funcionalidade democrática do
Estado. A estrutura democrática do Estado é que permitirá que as ideologias ou seus
especiais segmentos convertidos em lei traduzam as dimensões restritivas ou abrangentes
do direito.
Esses segmentos ou fragmentos ideológicos transformados em norma (lei geral) é que
permitem a evolução no quadro evolutivo da discussão sobre o conceito de ideologia à
imersão epistemológica que viabiliza uma abertura para se discutir não propriamente o
conceito de ideologia, mas de ideologia jurídica, enquanto transmutação do pensamento
ideológico geral em pensamento juridicamente assimilável. É exatamente essa
transmutação conceitual, em que o conceito de ideologia se enquadra na estrutura lógica
de reflexão jurídica, que torna possível abrir um novo leque de discussão para distinguir
não apenas esses dois conceitos, como faremos em adiante, mas para introduzir a
discussão sobre ideário profissional dos advogados. As ideologias que não têm aberturas
de alcance jurídico encontram profundas resistências, não apenas para influir na
formatação da ordem jurídica, mas também encontram profundas resistências no ideário
estatutário dos advogados porque elas podem converter a estrutura de ofícios
corporativos em estruturas de classe (ou de nação).
O pressuposto da ordem jurídica (a lei), por conseguinte, é o direito e o direito, no tempo
histórico, é uma ideologia específica, reduzida ao pragmatismo dos interesses, um
conjunto sistemático (específico) de ideias, no quadro (geral) das ideias, que muda e se
transmuda em função dos valores humanos essenciais. O compromisso do ideário
corporativo, muitas vezes instituído como prerrogativa ou dever do advogado, é como o
direito, enquanto pressuposto aberto da lei, e não como a lei, enquanto redução dos
valores essenciais do homem.
Portanto, sendo frágil a democracia, fica frágil o princípio (jurídico), fazendo com que as
órbitas positivas de alcance legal fiquem reduzidas (cada vez mais) a grupos privilegiados.
Por outro lado, todavia, sendo forte a democracia, as órbitas positivas de alcance dos
princípios instituídos se dilatam e restringem a força dos grupos privilegiados de poder
pelo poder ou de poder pela força econômica (ou prestígio social). É exatamente nesse
quadro que se define o papel dos advogados, não apenas como advogados isoladamente,
mas também, advogados no contexto da corporação estatutária.
A ordem jurídica frágil, comprimida pela sua própria natureza constitutiva, ou pela
imposição de forças (políticas) de exceção (ou de excepcionalidade), limita o alcance
aplicado do Direito (da ideologia jurídica), mas, sendo a ordem jurídica aberta, amplia-se
significativamente o alcance dos princípios que presidem a ideologia jurídica, favorecendo
a ideologia jurídica: o princípio de justiça, o princípio da liberdade, o princípio da isonomia
(mesmo no seu sentido amplificativo) e o princípio da equidade (evitando sua
transmutação em variantes da iniquidade), o princípio da inviolabilidade física e o
princípio da liberdade de consciência, incluindo-se o princípio do devido processo legal (o
direito de pedir), mesmo na ausência de suporte legal, como, aliás, até recentemente
aconteceu no Brasil.
Por conseguinte, se os limites de ação do advogado podem estar (são) restritos à
corporação, por força de seus compromissos com a própria ideologia jurídica, não o
impedem de reforçar o processo de descompressão dos princípios normativos instituídos
restritivamente. Esse processo pode acontecer no âmbito exclusivamente hermenêutico
dos tribunais ou mesmo através de procedimentos legislativos, mais abertos,
dependendo, é claro, da ordem constitucional vigente, ou através de processos políticos
de engajamento e mobilização mais visíveis, muitas vezes, contra a própria ordem
constitucional compressiva. Essa posição, todavia, só se tornou possível com a superação
do conceito marxista de ideologia ou, senão de sua superação, pela assimilação
coordenada do conceito enquanto conceito que traduz expectativas não apenas das
classes dominantes impostas aos dominados, mas também enquanto expectativas dos
dominados assimiláveis pela ordem instituída.
Escola de Frankfurt e pragmatismo ideológico
Antonio Gramsci, em especialíssimo contexto, e pensadores da Escola de Frankfurt, como
Horkheimer, Adorno, Benjamin, Habermas, bem como Herbert Marcuse e o já referido
Althusser, contribuíram decisivamente para abrir, se não alterar, as posturas referenciais
das ideologias, viabilizando, como anteriormente observamos, o conceito “pragmático” de
ideologia, que não é uma negação do intelectualismo, mas coloca-o como conceito de
ordem geral infenso ao determinismo classista. Por outro lado, fugindo do reducionismo
conceitual, ao mesmo tempo, tendo em vista suas posições, cria as condições teóricas
para a teoria do direito romper com o dogmatismo jurídico tradicional influenciado pelo
romanismo histórico.
Essa evolução ruptiva com a rigidez ideológica classista, que identifica a ordem jurídica
como instrumento de dominação de classe, abriu o conhecimento jurídico para a
sociologia jurídica, permitindo o reconhecimento das novas dimensões fáticas do direito e,
ao mesmo tempo, fragilizou a hermenêutica dogmática de forte influência romanista.
Essas duas novas variantes do conhecimento jurídico, combinadamente, contribuíram
para o fortalecimento de uma ideologia jurídica pragmática e pluralista e, também,
infensa aos radicalismos ortodoxos.
Nesse sentido, Karl Marx qualificou conceitualmente o objetivo da ideologia burguesa,
identificando-a como a percepção alienada da própria sociedade transmudada em direito
e deveres de todos. Mas Karl Mannheim, precursoramente contribuiu para esvaziar, se
não a radicalidade dessa concepção, para torná-la permeável como ato da consciência
projetiva ou construtiva. Essa especial formulação facilitou a reformatação conceitual
desenvolvida por Max Horkheimer, que desenvolveu uma concepção (positiva) de
ideologia como sistema profundo de ideias e valores que sobrevivem, prospectivamente,
recuperados do passado e inseridos em determinada época. Essa concepção contribuiu
decisivamente para o conceito de ideologia jurídica que estamos procurando adotar neste
capítulo, como instrumental pragmático apoiado em princípios ideais racionais de
reflexão. Essa leitura ideológica pragmática, em primeiro lugar, esvazia o classismo da
concepção intelectualista e, ao mesmo tempo, viabiliza a utilização conceitual da(s)
ideologia(s) como instrumento(s) aberto(s) à compreensão da sociedade e das leis,
permitindo reconhecer que a ideologia é uma forma de compreensão do mundo, e não
uma forma de compreensão da dominação de classes e de identificação de seus
instrumentos repressivos.
Em Horkheimer (1984), a ideologia perdeu o seu caráter classista, destinado apenas a
falsear a verdade, mistificar ou desmistificar situações, para viabilizar o exercício (muitas
vezes inconsciente) da dominação ou políticas (conscientes) de intervenção social, para se
transformar em um sistema coerente de ideias perceptíveis pela inteligência, não apenas
filosófica, mas politicamente sensível a determinados grupos, que não se confundem com
classes sociais, que a fazem ponta de lança de uma nova proposta ou (até) de nova ordem.
A superação da preocupação classista do caráter conceitual das ideologias facilitou a
implementação, não por grupos ou profissionais acima das classes, mas pela inteligência
“política” de valores essencialmente comprometidos com a sobrevivência da pessoa
humana, altamente resistente à sua degeneração pelo Estado (ou por ações de indivíduos
ou por grupos criminosos que possam enfrentar esses valores).
Esses valores humanos essenciais não são imutáveis, são históricos, mas, no contexto
dessas circunstâncias, são resfriados ou amplificados e, no tempo, sobrevivem como
sobrevive o próprio homem. O direito instituído, por conseguinte, a ideologia jurídica, é
uma forma de compreender o homem na sua subjetividade e nas suas relações
intersubjetivas, não apenas nos limites da lei, mesmo que essa lei, e é fato essa situação,
guarde em si mesma a sua própria e específica subjetividade. A ideologia jurídica poderá
se opor sempre a outro e alternativo sistema de ideias e valores, mais profundo que o
próprio direito subjetivo (instituído) de exigir (de terceiro) o cumprimento do dever: o
direito de lutar pelo direito, apesar do próprio direito instituído com base em novas
expectativas de valor, quase sempre imersas em novos e especiais fatos sociais.
Nesse sentido, os estudos de Jürgen Habermas, sobre ideologia e linguagem, quando
incentivam a dicotomia conceitual entre a (velha) “razão instrumental”, que na forma de
sua concepção (nunca desenvolvida, porque esse não era seu terreiro) seria o (velho)
direito (dogmático), e a (nova) “razão comunicativa”, abriu significativos espaços para a
compreensão etimológica das palavras e para a inteligência jurídica, incentivando uma
hermenêutica (de dúvida) desconstrutiva dos dogmas, para reencontrar, muitas vezes na
própria dogmática, o bom senso do “velho” “senso comum”, enquanto valores essenciais
do próprio homem. Para Habermas, “a razão instrumental se desenvolve em função das
necessidades do sistema, porém, a razão comunicativa pode se abrir para a
inesgotabilidade da vida”, inibindo as condições de o “sistema” conseguir legitimar formas
constrangedoramente antidemocráticas de desigualdades e de dominação (Habermas,
1973:44-45; 87-90), apesar das resistências e das condições circunstanciais.
Essa construção nos permite observar que, cada vez mais, a ordem jurídica não se
apresenta como a consciência “restrita” de uma classe (dominante), mas como, se não a
consciência “ampla” de todos, a consciência da luta pelos valores comuns (universais) a
todos os homens, abrindo extensos espaços para uma “razão” (ideológica) pragmática
que, apesar da ideologia jurídica instituída, pode, efetivamente, evoluir para ideologias
(jurídicas) alternativas à própria ordem. Essa evolução resulta sempre de fatores exógenos
à dogmática dominante, mas também e, quase sempre, de fatores endógenos, que
traduzem a decomposição pontual ou genérica da ideologia juridicamente instituída.
Walter Benjamin, no quadro das memoráveis contribuições da Escola de Frankfurt, se não
numa linha cronológica de evolução, trouxe nova colaboração para a discussão desse
tema, evoluindo, na sua leitura da questão ideológica, para sugerir a sua interconexão
com a ação, recuperando o conceito de praxis, um conceito marxista que se perdera no
intelectualismo, como engajamento político ideologicamente comprometido. Leandro
Konder (2002:95), recuperando o pensamento do emblemático pensador de Frankfurt,
observa:
Na introdução de seu livro sobre a Origem do Drama Barroco Alemão,
Benjamin explicava: as ideias se relacionavam uma com as outras como
constelação, sem o sangue da empiria, tornavam-se anêmicas, os
fenômenos, caso lhes faltasse a organização promovida pelas ideias,
dispersar-se-iam, perder-se-iam. Ao conceito cabia a função de viajar
constantemente de um polo ao outro, pondo as ideias em contato com
os fenômenos e os fenômenos em contato com as ideias [...].
Na compreensão desse tema, especialmente na sua percepção sistemática, não podemos
deixar de citar o livro de István Mészáros (2004:57) intitulado Poder da ideologia, não
somente pelo seu estudo sobre a natureza e necessidade da ideologia, vendo seu
potencial emancipador, como também procurando identificar o seu caráter construtivo.
Esse autor, entre todos os que tivemos oportunidade de consultar com maior
profundidade, mergulha com nítida clareza na questão das relações entre a ideologia e a
política, sem se esquecer do indispensável consenso entre as ideias e os mecanismos
institucionais de mudança. A recuperação histórica que faz do tema redimensiona a
discussão sobre as teorias de Adorno e Habermas, principalmente preocupada com a
mediação entre a praxis intelectual e a praxis política, encontrando nesta última o
caminho da realização das ideologias como projeto que subtrai magistralmente da leitura
crítica de obras e romances sobre a vida cotidiana dos homens.
A leitura de Mészáros (2004, p. 146 et seq.), da mesma forma lhe permite um estudo
comparado que não podemos desenvolver nesta obra, sobre a influência weberiana sobre
Raymond Aron, um dos grandes críticos das ideologias de esquerda como anti-ideologia,
que possuía uma concepção de democracia extremamente conservadora, influenciada
pela fórmula do bismarkismo alemão. O autor, todavia, introduz na discussão da questão
ideológica as posturas socialistas revolucionárias que marcaram autores como Rosa
Luxemburgo (Mészáros, 2004:376 e 389), no ponto de sua tragédia, assim como deixa
aberta a discussão sobre o “beco sem saída” do pensamento de Bernstein, que se perdeu
na discussão sobre a questão ideológica da reforma ou da revolução. São nesses autores,
todavia, que ele encontra, no conceito de solidariedade, a abertura para rediscutir o papel
do direito como instrumento de mudança e contribuição para a construção de uma nova
ordem aberta às posturas ideológicas radicais do início do século passado. Essa postura
(Mészáros, 2004:478) abre seu pensamento para a compreensão do conceito de “senso
comum”, não propriamente como queria Gramsci, entendendo-o “como elemento amorfo
da massa”, mas como ponto médio da praxis cotidiana construtiva da vida.
Ficava demonstrada, nessa leitura, característica ímpar das ideias jurídicas fecundarem o
fenômeno (empírico) fáctico (juridicamente relevante), evitando a anemia das ideias para
que o fenômeno evitasse a liberdade extrapolativa da ideia. A ideologia, como o mundo
das sombras (de Platão), estava mergulhada na “luz da vida”, encontrando, no direito, a
interconexão da convivência entre a ideologia e a(s) realidade(s) do(s) homem(s). Estava
aberto o caminho para se reconhecer no direito as vertentes nítidas da ideologia, assim
como, na ideologia, as dimensões ínsitas da ideologia jurídica, como conjunto de ideias
presididas por valores comuns comprometidos com a essência do homem. O direito,
enquanto conjunto de valores humanos essenciais, estava infiltrado nas ideologias, mas as
ideologias aprenderam a abrir caminhos no mundo (circunscrito) do direito, rompendo o
corpo hermético da dogmática, que fechara o direito (a lei) para o próprio direito (não
escrito), como compromisso com a dinâmica da vida social.
Nesse contexto, os estudos jurídicos encontraram os espaços para reconhecer, no seu
próprio ideário profissional, as aberturas de convivência ideológica, filtradas
imprescindivelmente pelos valores humanos essenciais, que o tempo histórico identificará
nas democracias o solo no qual viceja e o âmbito em que se realiza. Fora do contexto
jurídico discursivo, mas trazendo para o seu contexto, essas posições se fortaleceram
significativamente à medida que Antonio Gramsci, reconhecendo que as ideologias
arbitrárias devem ser desqualificadas, conceitua as ideologias historicamente orgânicas
como aquelas que reconhecem na realidade os valores universais imprescindíveis para a
sobrevivência do homem, independentemente de interesses especificamente particulares
de grupos ou classes (Gramsci, 1999-2002).
Finalmente, reforçando a conversão ideológica, Gramsci faz uma importante abertura
para reconhecer (também) na superestrutura certa unidade de valores históricos do
conhecimento aberto à criatividade do sujeito humano, permitindo-se reconhecer a sua
autonomia relativa, mas insuprimível, quando se tratar de preservar, não a lei, enquanto
consciência para si (não vinculada às necessidades do próprio homem) do poder político
instituído, ou de consciência em si (vinculada às necessidades do próprio homem) dos
excluídos, mas o direito, enquanto consciência instituída dos valores humanos essenciais,
muitas vezes, circunstancialmente subtraídos na formatação superestrutural da ordem
jurídica, mas implícitos em nova formatação na luta pelo direito, enquanto alternativa do
próprio direito instituído.
Ideologia, ideologia jurídica e ideário profissional
A correlação entre essas três variantes não tem sido objeto de estudos jurídicos
sistemáticos e poderíamos, inclusive, afirmar que, nem ao menos esparsamente, ou
pontualmente, esses temas se identificam entre os temas cotidianos da vida jurídica.
Todavia, quaisquer das três dimensões permeiam o cotidiano jurisdicional do exercício
profissional, não apenas em função do seu engajamento político, mas também em função
das determinantes dogmáticas do próprio exercício profissional. De qualquer forma, como
demonstramos anteriormente, as discussões sobre o conceito de ideologia são bastante
amplas, muito embora restritas no que se refere à relação ideologia e direito, exatamente
o espaço em que se define o conceito de ideologia jurídica, pressuposto não propriamente
dos padrões disciplinares da advocacia, mas do ideário profissional.
Nos itens anteriores, procuramos demonstrar que o conceito de ideologia historicamente
se desenvolve como um conceito intimamente vinculado às classes dominantes,
permeando as instâncias socializadoras e, inclusive, definindo os instrumentos repressivos
que possam coibir os desvios expectados pelo Estado classista. Por outro lado,
procuramos também mostrar que esse conceito originário de ideologia não propriamente
se fixou como uma única e exclusiva expressão dos processos de dominação, mas muitos
foram os estudiosos, principalmente aqueles que sucederam a Gramsci e a Escola de
Frankfurt, que procuraram encontrar, também no conceito de ideologia, os ideais de
esperança, demonstrando assim que esse conjunto coerente de ideias pode se prestar a
justificar os atos formativos e repressivos do Estado, mas pode também justificar as
expectativas de mudança social ou ruptura com a ordem estabelecida.
Exatamente nessa dimensão é que se definem os parâmetros da ideologia jurídica, porque
não se confundindo exatamente com o conceito de ideologia, ela filtra as variáveis
ideológicas que podem ser absorvidas ou suportadas pela ordem jurídica dominante,
muitas vezes, inclusive, como foi o caso brasileiro na definição dos direitos fundamentais
individuais e coletivos, rompendo com padrões matriciais tradicionais. É bem verdade que
a história brasileira não tem demonstrado a força ruptiva dessas ideologias jurídicas, mas
efetivamente demonstram que as ideologias da esperança penetram e permeiam, se não
absolutamente, a ideologia da ordem, permitindo-nos observar que é sempre provável
que a desordem da compreensão hermenêutica da ordem contribua para a construção de
aspectos prospectivos de uma nova ordem. A experiência brasileira, nesse sentido,
demonstra que os atos ruptivos são excepcionais e as expectativas de composição sempre
se impõem como realidade, criando as condições favoráveis à convivência das matrizes
essenciais da ordem com as mudanças sensíveis às próprias matrizes. Nesse contexto de
variantes que se define o ideário profissional do advogado, ou seja, o ideário profissional é
uma expressão estatutária que filtra da perspectiva exclusivamente profissional a
ideologia jurídica constitucionalmente definida pelos fatores reais de poder, o que
significa que as constituições não são normas puras, mas traduzem formas de composição
entre estruturas conservadoras e projetos de força prospectiva.
O ideário estatutário historicamente funciona como um instrumento conservador da
ordem, fazendo da advocacia uma profissão essencialmente vinculada à conservação do
status quo, o que não significa que manifestações isoladas ou pontuais da advocacia não
tenham força ruptiva da superfície das estruturas conservadoras. É exatamente nesse
momento que vamos identificar as flutuações do ideário corporativo, todavia, nunca se
comprometendo com o processo de ruptura institucional, mas quase sempre procurando
formas de viabilizar mudanças restauradoras das aberturas da ordem esbulhada que
evolui para projeções mais significativas de mudança. A experiência brasileira, nesse
sentido, demonstra que os atos ruptivos são excepcionais e as expectativas de
composição sempre se impõem como realidade, criando as condições favoráveis à
convivência das matrizes essenciais da ordem com as mudanças sensíveis às próprias
matrizes.
Muitos autores, principalmente os envolvidos nessa discussão temática, permitem
afirmar, e também já fizemos essa observação, que a própria confecção conceitual do
ideário guarda uma significativa conotação ideológica, ou seja, o ideário está impregnado
de ideais e ideias que se justificam e explicam, assim como é sempre conveniente
entender que o ideário corporativo é uma redução disciplinar da ideologia jurídica, assim
como a ideologia jurídica é uma redução pragmática, quase sempre eclética, da ideologia
geral. Assim, da mesma forma que a bibliografia clássica relaciona as ideologias (muitas
vezes) diretamente à posição de grupos sociais e classes na sociedade (ou mesmo no
processo produtivo), o ideário está sempre vinculado a categorias profissionais e, no seu
conjunto, sintoniza o contexto profissional geral com a ideologia jurídica instituída.
Neste capítulo, abordamos apenas o conceito de ideologia enquanto discussão sobre a
influência do flutuante fluxo (sempre mais presente na formulação de leis ou
regulamentos) das ideias e ideais expressivos ou não de grupos sociais, sem, contudo,
desconhecer que o ideário corporativo também será, possivelmente, uma tradução
eclética de outras experiências profissionais. Não podemos, propriamente, falar em
ideário puro como podemos falar em norma pura, mas é sempre possível reconhecer o
ecletismo estatutário das corporações em relação aos projetos ideológicos.
Este, por conseguinte, não é um estudo sobre ideias puras, mas um estudo que traduz o
contraditório das dificuldades argumentativas dos próprios advogados, muito
especialmente nos momentos de crises e mudanças, quando as ideologias efluem e o
ideário reflui ou, como não é de todo impossível na história, quando o ideário se
desprende da ordem instituída e incorpora ideologias e fluxos endógenos.
Nesse sentido, não é de todo improvável ou epistemologicamente desprezível afirmar
que, independentemente dos sistemas de ideias puras e coerentes, existe uma ideologia
jurídica que realiza, pragmaticamente, no contexto da ordem (ou da desordem), projetos
e prognósticos políticos suportáveis pelo ideário corporativo. No tempo, esse mesmo ideal
corporativo transmuda-se, absorvendo e acomodando as novas ideias que resistirão a
outros tantos e novos projetos, para se engajarem, novamente, em outras tantas
proposições. A ordem jurídica é a alma (a essência) do ideário profissional, mas é a
ideologia jurídica que define a hermenêutica de sua implementação enquanto ordem e
enquanto ideário. É exatamente nesse circuito epistemológico fechado que podem
ocorrer as anomias, as falhas do sistema, os curtos-circuitos que viabilizam o seu
(re)conhecimento ou a sua nova compreensão.
Na verdade, esse é o dilema dos sistemas fechados, mas ao mesmo tempo é o fenômeno
que permite a redução (política) das ideologias ao ideário profissional e a seu subsequente
desdobramento ideológico demonstrando que a ação dos grupos profissionais (e o
advogado, entre eles, se enquadra exemplarmente) está comprometida com o ideário
profissional, o que impede uma ação ideológica aberta, mas sedimenta um certo
pragmatismo ideológico (ideologia jurídica) que dificilmente rompe com os limites do
próprio ideário, exceto quando as aberturas são provocadas pelo próprio pragmatismo da
ideologia jurídica. Por essas razões, a ideologia dos advogados, quando se manifesta, se
mostra como uma ideologia pragmática, permeada pelos próprios valores éticos da
profissão, e rompê-los pode ser uma ruptura profissional com uma consequente
transmutação do grupo profissional em grupo político ou partidário, ou sindical.
Por conseguinte, enquanto podemos identificar a tomada da consciência política, como
reconhecimento da “missão” do advogado (do profissional), nas palavras de Rui Barbosa,
a ideologia jurídica se define como uma adesão a um sistema de ideias (jurídicas) voltadas
para a compreensão crítica ou defensiva da ordem a partir da própria ordem (vigente) ou
da sua capacidade de traduzir ideias (novas) ou fatos sociais (novos). Por isso, toda
hermenêutica jurídica é uma ideologia jurídica permeada sempre pelo pragmatismo
compreensivo da ordem jurídica e pelo discurso sobre a sua capacidade de traduzir ideias
e valores sociais emergentes ou decadentes na dimensão possível das resistências e
aberturas do ideário profissional.
Nesse sentido, uma mesma ideologia jurídica pode criticar uma determinada ordem, nos
seus diferentes matizes e nos seus fundamentos sociais ou superestruturais (Bastos,
2000), assim como, a partir dela, nada impede a proposição construtiva de uma nova
ordem, assim como essa postura ideológica não impede, todavia, que as mesmas ideias e
ideais que serviram à crítica e à construção da ordem prestem-se para defender a sua
conservação ou sobrevivência. As ideologias são sistemas de ideias que justificam e
explicam a ordem, assim como a criticam nos seus diferentes patamares ou no seu todo,
mas as ideologias jurídicas são construções hermenêuticas pragmáticas (e, por isso,
muitas vezes ecléticas), que, da mesma forma, prestam-se, principalmente no tempo
histórico, para a construção da (des)ordem ou (des)construção da ordem.
Finalmente, todas as profissões comprometidas com determinado ideário corporativo têm
os seus princípios específicos (muitas vezes, exclusivamente, éticos) inerentes à essência
(vida) da própria profissão, que, em geral, traduzem ideologias dominantes na perspectiva
de seu trabalho. Os advogados, todavia, têm um ideário mais complexo, exatamente
porque o objeto da própria profissão, a norma (o direito escrito) é (ou pode ser) uma
redução normativa da ideologia (geral) dominante ou o fato jurídico, enquanto realidade
normativa ou conhecimento do fato (juridicamente) relevante. Por isso, essa posição
sempre paradoxal: reconhecer na norma instituída os limites do próprio ideário e, no
ideário, o âmbito de alcance (abertura) modificativo (hermenêutico) da própria norma.
Esses limites e aberturas são a própria ideologia jurídica que flui e evolui no contexto das
circunstâncias políticas. É nesse sentido que os itens subsequentes deste capítulo evoluem
preliminarmente para demonstrar as fortes relações estruturais entre o ideário
profissional do advogado e o Estado de direito, por um lado, mas ao mesmo tempo,
procuramos nos itens subsequentes demonstrar as condições possíveis do ideário
profissional vigente, muitas vezes comprimido pelo Estado e, quem sabe, por isso mesmo,
encontrar as formas possíveis de contribuir para a abertura de espaços jurídicos que
permitam o rompimento de situações institucionais compressivas.
Origens do ideário dos advogados
A formação do ideário profissional dos advogados se desenvolveu a partir da criação do
Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) na forma do aviso de 7 de agosto de 1843,
promulgado, por determinação do imperador dom Pedro II, nos seguintes termos:
Sua Majestade, o Imperador, deferindo benignamente ao que
representam diversos advogados desta Corte, manda pela Secretaria de
Estado dos Negócios da Justiça, aprovar os estatutos dos advogados
brasileiros que os suplicantes fizeram subir à Sua Augusta presença, e
que com esta baixam assinados pelo Conselheiro Oficial-maior da mesma
Secretaria de Estado, com a cláusula porém de que será também
submetido a imperial aprovação o Regulamento Interno, de que foram os
referidos Estatutos. Palácio do Rio de Janeiro em 7 de agosto de 1843.
Honório Hermeto Carneiro Leão.
O regimento interno do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), de 15 de maio de 1844,
dispõe no seu art. 2º explicitamente: “O fim do Instituto é organizar a Ordem dos
Advogados em proveito geral da ciência e da jurisprudência”.
Historicamente, o estatuto do IAB, na sua promulgação, sofreu visível influência da
Associação do Contrato Constitutivo da Associação dos Advogados de Lisboa, mas na
avaliação geral de seus objetivos, principalmente na definição de seu ideário, sofreu
também grande influência do Estatuto da Advocacia de Paris, reformulado por Napoleão
Bonaparte e editado em 1810. O IAB, na sua orientação constitutiva, adotou a orientação
predominante na Associação dos Advogados de Lisboa, que não propriamente se
constituiu (se criou) como Ordem dos Advogados, mas em seu estatuto estava indicada a
ideia de se instalá-lo (no futuro) como Ordem dos Advogados, diversamente do estatuto
da Advocacia de Paris, que se reinstalara num contexto histórico divergente do seu
passado, mas como Ordem dos Advogados.
O art. 1º do estatuto da Associação dos Advogados de Lisboa dispunha semelhantemente
ao que viria acontecer na criação do IAB: “O objetivo da Associação é conseguir a
organização definitiva da Ordem dos Advogados, e auxiliarem seus associados
mutuamente, tanto para consultas, como para manutenção dos seus direitos”. Como
observamos no estatuto da Advocacia de Paris, muito embora sejam inegáveis as suas
históricas conexões de origem e compromisso com o absolutismo medieval, a
radicalização revolucionária francesa rompeu com suas práticas provocando os atos
também radicais de Napoleão Bonaparte, que chegou a suspender o Barreau para
posteriormente restaurá-lo na forma do estatuto da Advocacia de Paris de 1810, presidido
pelos ideais do liberalismo e de uma profunda revisão das práticas jurídicas, em relação
aos próprios padrões da advocacia romana, influenciado pelos estudos que evoluíram a
partir do Renascimento e do pensamento jurídico que sobreviveu na Lombardia.
O estatuto francês, que trazia no seu bojo a questão protetiva dos novos direitos civis,
ilustrou muitos debates no IAB, mas de significativa influência no Parlamento Imperial e
Republicano. Na verdade, todavia, o ideário estatutário da advocacia evoluiu, no Brasil,
preliminarmente, não dos propósitos ideológicos franceses, apesar de sua interveniente
presença, mas muito mais das disputas das elites brasileiras pela ocupação de espaços no
Estado, o que, por um lado, provocou uma vinculação do IAB à dinâmica do próprio
Estado Imperial (e Republicano), e por outro, uma hipertrofia do exercício da advocacia
como suporte público de demandas privadas do estamento burocrático do Estado, na
linguagem de Raymundo Faoro.
Essa situação permitiu que muitos bacharéis, por um lado, viessem a constituir a elite
política dos poderes de Estado, mas procurando assegurar, também, o exercício da
advocacia privada, em detrimento, por outro lado, do exercício profissional independente,
muitas vezes praticado por rábulas ou profissionais provisionados. Essa hipertrofia
funcional, entre o público e o privado, entre outras causas e fatores que estudaremos,
permitia o exercício cumulado de funções públicas relevantes por advogados privados,
assim como admitia que a advocacia fosse também exercida por servidores do Estado, o
que favoreceu o mais importante fenômeno da formação institucional brasileira: o Estado
patrimonialista.
Esse quadro circunstancial demonstra, por outro lado, que a criação da OAB, inclusive
como finalidade regimental precípua do IAB, mais do que um projeto imperial para
viabilizar a convivência entre os advogados, inclusive entre rábulas e provisionados, e esta
a causa geral das resistências à sua criação, foi um projeto de definição dos direitos e
deveres profissionais dos advogados como pressuposto de sua independência diante do
patriarcalismo do emergente Estado patrimonialista (de natureza imperial) e da necessária
proteção na luta pelos direitos civis de sua clientela, cujos efeitos disciplinares ficavam
suscetíveis à ação dos juízes dos tribunais. Com a proclamação da República, a situação
não se alterou, pelo contrário, ela foi mais radical que o Império no esvaziamento do
projeto corporativo dos advogados ao transformar o IAB em Instituto da Ordem dos
Advogados Brasileiros (IOAB), excluindo do regimento Imperial o objetivo estatutário de
se criar a Ordem dos Advogados.
Nesse sentido, assim dispunha os arts. 1º e 2º, respectivamente, do Estatuto do IOAB,
aprovados nas sessões de 27 de abril a 18 de maio de 1899, demonstrando que o
bacharelismo republicano, paradoxalmente, tanto quanto às práticas profissionais
provisionadas dos rábulas representavam as verdadeiras resistências à criação da OAB.
O Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros constituído em 7 de
agosto de 1843 e instalado um mês depois nesta capital, é uma
associação de advogados graduados em ciências jurídicas [...]. O IOAB
tem por fim o estudo do direito no seu mais amplo desenvolvimento, nas
suas aplicações práticas e comparação com os diversos ramos da
legislação estrangeira [...] (e) a assistência judiciária.
Estava desmontada, no formato republicano, a ideia de uma corporação disciplinar,
voltada para as questões, mesmo que sem eficácia efetiva referentes aos direitos e
prerrogativas dos advogados, incompatibilidades e impedimentos, e sobre o exercício da
ação disciplinar pelos próprios profissionais.
Esse fenômeno “vicioso” de evidente influência bacharelista estava marcado pelo
quotidiano de enfrentamentos entre rábulas e bacharéis, provocado, não propriamente,
por um Estado comprometido com a defesa dos direitos individuais, apesar da dimensão
exemplar da Constituição de 1824, guardadas as proporções do tempo histórico e a
Constituição de 1891, mas com a burocracia dos procedimentos judiciais, que constrangia
a hermenêutica discursiva das acusações e das defesas da clientela, bem como favorecia o
beletrismo inconsequente, retórico e vazio. Por essas razões, a formação do ideário
corporativo dos advogados nunca esteve permeada pelos grandes debates de ideias, mas,
dominantemente, pela definição do papel e das prerrogativas dos bacharéis no exercício
da advocacia em contraposição aos efeitos institucionais remanescentes da prestação de
serviços jurídicos pelos rábulas.
Nesse sentido, os próprios textos constitucionais, tanto do Império quanto da República,
que tão efetivamente estavam marcados pela proteção aos direitos individuais, muito
contribuíram para interromper o pleno exercício da advocacia. Não há como desconhecer,
por conseguinte, que o inc. XXV do art. 179 da Constituição Imperial e o §24 do art. 72, e o
§14 do art. 141 da primeira Constituição Republicana ao abolirem e limitarem as
corporações de ofício interferiram diretamente na questão formativa da organização
disciplinar do ofício de advogado. Assim dispunha o inc. XXV do art. 179 da Constituição
Imperial: “ficam abolidas as corporações de ofícios, seus juízes, escrivães e mestres”.
Semelhantemente, o §24 do art. 72, o mesmo que no seu caput e demais incisos tratava
da declaração de direitos e da proteção dos direitos individuais, dispunha que “é
garantido o livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e industrial”. Todavia, a
leitura desse texto, de formatação de ideário formatativo mais aberto, no seu
reconhecimento hermenêutico, ficou interpretada no cotidiano parlamentar e dos
próprios tribunais:
à luz da experiência argumentativa do próprio Parlamento Imperial,
demonstrando que, exatamente, não haviam maiores divergências entre
os grupos de resistência à criação da OAB no Império e na República.
Nesse sentido, foi exatamente a hermenêutica desses dispositivos que
inviabilizou a constituição de uma ordem dos advogados e, no correr do
tempo, no andamento dos projetos que tramitaram na Câmara dos
Deputados e no Senado Federal.
De qualquer forma, esses sucessivos anos de confrontos com o Estado Imperial e,
posteriormente, de contraposição e composições com a velha República não impediram
que a cada reforma dos estatutos do IAB (ou do IOAB) mais se ampliassem as definições
dos espaços de garantias da advocacia, muito embora tivesse esmaecido, no tempo
republicano, o objetivo de se criar a Ordem dos Advogados como instituição corporativa,
com evidentes efeitos sobre a formatação do ideário profissional. O Instituto, todavia, não
podemos desconhecer, através de seus presidentes ilustres, todos de alta representação
na vida política e intelectual do Império, e da República, postulavam no Parlamento, e nos
órgãos de Estado, pela criação da Ordem dos Advogados Brasileiros, mas não obtiveram
sucesso no seu empenho, muito embora, de qualquer modo, pelo menos em princípio,
procuraram transformar as ideias metropolitanas (européias) em ideais de projetos do
Império e da República, o que, de qualquer forma, foi uma grande abertura às influências
exógenas sobre o ideário da advocacia.
Nesse sentido, até o fim da primeira República, a história do exercício da advocacia no
Brasil é a história do confronto (e da convivência) entre os rábulas, provisionados pelo
Estado Imperial (Poder Moderador, Executivo e Judiciário) e pelo Estado republicano; e os
bacharéis, formados pelas escolas oficiais de direito ou aqueles que, originários das
faculdades livres, eram aprovados nos “exames de Estado” promovidos pelas faculdades
oficiais. Esses confrontos entre os rábulas provisionados e a ascendente advocacia de
bacharéis pela ocupação dos espaços institucionais e judiciais levaram à organização
corporativa dos advogados a evoluir mais em função dos enfrentamentos práticos da
profissão, do que, propriamente, sob a inspiração dos ideais iluministas e das conquistas
dos advogados franceses após a promulgação do Decreto de 1810, de Napoleão
Bonaparte, que restaura e reorganiza a velha corporação francesa dos advogados
(Barreau).
A luta dos advogados na França foi uma luta pelos ideais de liberdade e pela restauração
da Ordem dos Advogados de Paris, que havia sido suspensa imediatamente à Revolução
Francesa, sem que assumisse qualquer compromisso com os modelos econômicos
corporativistas absolutistas remanescentes. Todavia, no Brasil, a luta dos advogados pela
sua organização profissional e pela institucionalização dos ideais de liberdade foi rejeitada
pelas elites imperiais e pelas oligarquias republicanas como uma luta corporativista
inspirada nas corporações medievais de ofício, por força de esdrúxula e sucessiva
interpretação de dispositivos constitucionais sobre liberdade profissional e a imposição
restritiva de dispositivos regulamentares pelo Estado Imperial e pelo Estado Republicano.
Nesse contexto, a criação do IAB não evoluiu da luta por ideais profissionais abertos, mas
da luta pela ruptura das limitações que o Estado Imperial e República impunham ao
exercício da profissão, reduzindo-lhe o espaço profissional pelos próprios rábulas
provisionados, inclusive, nos âmbitos do Poder Judiciário, comprimido pelo Poder
Moderador, no Império, e pelo poder das oligarquias na República. Nesse paradoxal
contexto, o ideal da organização profissional foi transmudado em luta pela criação de uma
corporação de ofício contra a liberdade de exercício profissional, não restando aos
advogados se não a luta pela definição de seus direitos, prerrogativas e deveres, não
tanto, inicialmente, perante os poderes públicos, mas junto aos seus clientes e ao Poder
Judiciário, incipiente e acautelado diante do estado moderador (poder real) (Constant,
1988) e autoritário, e o subsequente poder oligárquico.
O contexto expositivo do tema permite identificar um leque de resistências à criação da
OAB de fundamento ideológico comprometido com as estruturas de dominação do Estado
Imperial e do Estado Republicano. Essas resistências à criação da OAB no Império e na
República podem ser identificadas em várias dimensões compreensivas que,
coordenadamente, explicam os fundamentos históricos das dificuldades encontradas para
não apenas criar a Ordem dos Advogados, mas definir o seu ideário não exclusivamente
restrito às dimensões das exigências profissionais específicas. Essas resistências,
basicamente, podem ser resumidas em quatro especiais tipos:
� resistência econômica;
� resistência política;
� resistência profissional;
� resistência jurídica.
A resistência econômica se manifestou através das elites agrárias, monocultoras e
exportadoras comprometidas com o sistema fundiário-escravista, no Império, e servil, na
República, contrários ao livre-comércio e às regras civis de organização da sociedade e da
propriedade comercial moderna. Por outro lado, as elites políticas tradicionais sempre
foram acentuadamente resistentes às interferências e cognições jurídicas voltadas para
abrir o sentido hermenêutico dos institutos políticos fechados, predefinidos, dominantes
na legislação metropolitana (portuguesa, especialmente as Ordenações), remanescentes e
comprometidos com um projeto de construir o Estado nacional como o Estado da realeza
nas suas relações com os políticos (e seus acordos), especialmente parlamentares.
Nesse contexto, estava sempre visível a resistência dos “profissionais” provisionados para
prestar serviços de advocacia, rábulas sempre envolvidos com a burocratização das
demandas e com questiúnculas “praxistas”, assim como com os interesses de grupos
associados a funcionários do Estado em alianças com bacharéis em direito que
controlavam o poder público para reproduzir os seus interesses atávicos. Coroava esses
níveis de resistência a hermenêutica jurídica a serviço dos interesses instituídos que,
interpretavam os dispositivos constitucionais para fazer do conhecimento da ordem
jurídica o conhecimento dos interesses dominantes. As críticas aos provisionados, todavia,
nem sempre eram assim tão radicais (Bastos, 2003).
Esse argumento (enquanto tal) se ressaltava, entre todos, especialmente, porque ele
desviava as questões centrais para uma discussão retórica e interpretativa, assim como
traduzia as resistências jurídicas à criação da Ordem dos Advogados como uma luta contra
a restauração do passado e preservação do presente que adviera com a formação do
Estado nacional, que o futuro criticará como o Estado agrarista exportador dos barões e
oligarcas. Na verdade, essas linhas de resistência traduziam os interesses do Estado
patrimonialista, cuja natureza híbrida não distinguia funções e posições do Estado com
funções e posições privadas, favorecendo e viabilizando o nepotismo e o tráfico de
influências como especiais formas de se incentivar as resistências econômicas e
profissionais conservadoras (Mercadante, 2003:185-239), fundamentos ideológicos da
resistência ao ideário corporativo aberto aos princípios essenciais do direito.
Para essas elites ou para suas específicas frações, o Estado no Brasil seria uma construção
jurídica, como todos os estados (coloniais), construído pelas metrópoles, que deve(ria) ser
politicamente (re)conhecido (desvendado) apenas pelos que dominavam o processo de
sua construção. Para as elites metropolitanas, e sua reprodução imperial, o Estado não é
uma construção política que deva ser juridicamente (re)conhecida (identificada),
diferentemente do Estado burguês francês, originário da Revolução, que foi (pelo menos
em tese) politicamente construído para ser juridicamente compreendido como Estado de
direito. Na verdade, esse (precursor) Estado de direito no Brasil evoluiu para um Estado
legalista e positivista, mas que, diferentemente do Estado nacional (brasileiro), tornou
imprescindível a contribuição jurídica dos advogados, como titulares do munus publico,
atores essenciais aos poderes públicos, não apenas isoladamente, mas também,
organizadamente, conforme o documento francês de 1810 (Bastos, 2003).
Os princípios jurídicos que presidem as relações éticas entre os advogados e o seu
comportamento na defesa dos seus constituintes, bem como as relações entre os
advogados e as autoridades de Estado, são a base compreensiva do Estado de direito,
diversamente do Estado autoritário, politicamente construído e/ou juridicamente
formalizado na Constituição Imperial do Brasil de 1824. Esses princípios, essenciais ao
Estado de direito, definem-se em uma vertente substantiva, comprometida,
originariamente, com a garantia e a defesa dos direitos individuais, sufocados durante o
período medieval, e numa dimensão organizativa, comprometida com a predefinição das
competências das autoridades estatais, constrangidas pelo absolutismo monárquico após
o período medieval e, antes das revoluções burguesas, pelos modelos políticos
centralistas.
O Estado imperial brasileiro era a exata tradução do Estado politicamente construído para
os políticos da realeza, enquanto o Estado republicano, de 1889-1891, transformou-se na
construção jurídica para os políticos governarem. Enquanto o primeiro estava influenciado
pelos contornos remanescentes do absolutismo, traduzidos de Poder Moderador, que se
reproduziu na história brasileira nos modelos políticos autocráticos, sempre resistentes ao
seu conhecimento hermenêutico, o segundo, embora juridicamente construído, estava
tomado pela oligárquica fundiária descendente do Império e resistente à compreensão
jurídica do funcionamento político. Em ambas as situações, se o advogado, enquanto
advogado, tinha um papel representativo, qualquer estrutura corporativa de advogados
provocaria o confronto entre o aparato ideológico do Estado de origens republicana e
liberal e as suas práticas políticas autocráticas, especialmente devido à natureza
autóctone do ideário profissional, mesmo que incipiente.
A exata compreensão do insucesso das lutas pelo ideário corporativo está diretamente
associada ao insucesso das lutas parlamentares pelos projetos de lei voltados para a
institucionalização do catálogo dos direitos e deveres da advocacia. Por outro lado, por
sua vez, estão diretamente relacionados à natureza patrimonialista e à força endógena
atávica dos seus autores, inicialmente comprometidos com o escravismo agrário
exportador e, no desdobramento republicano, com a hermenêutica oligárquica que
dificultava a construção efetiva do Estado de direito e a proteção dos direitos individuais.
As demandas institucionais e legislativas para a criação da OAB ficaram restritas no
período imperial e no período republicano à definição dos espaços corporativos e das
prerrogativas e deveres profissionais nos regimentos do IAB e/ou IOAB, que não
alcançaram, até 1930-33, dimensão legislativa e estatutária, como propunha o decreto de
criação do IAB, em 1843, esvaziado em 1888-89 com a criação do IOAB. No fundo, por
conseguinte, um especial conjunto de fatores políticos e institucionais entrecruzados
contribuiu para as sucessivas rejeições dos anteprojetos de criação da Ordem, deixando os
advogados cerceados nas suas prerrogativas, nos limites possíveis da restritivíssima ação
do IAB/IOAB que, por isso mesmo, não se transformou, nem criou a OAB.
Finalmente, a criação da Ordem dos Advogados nesse contexto não refletiu uma ação
política interventiva, nem muito menos parlamentar do IAB/IOAB, mas foi um ato da
Revolução de 1930 na forma do art. 17 do Decreto (revolucionário) nº 19.408, de 18 de
novembro de 1930, assinado por Getúlio Vargas, chefe do Governo Provisório, e por
Oswaldo Aranha, ministro da Justiça. Imediatamente à criação da OAB, sucedeu, sob a
coordenação do presidente da OAB, Levi Carneiro, ex-presidente do IOAB, a edição do
Decreto Regulamentar nº 20.784, de 14 de dezembro de 1931, alterado pelo Decreto nº
21.582, de 1º de julho de 1932; pelo Decreto nº 22.089, de 1º de novembro de 1932; e
pelo Decreto nº 22.266, de 28 de dezembro de 1932, que viabilizaram a
institucionalização do ideário profissional dos advogados, na forma de seus objetivos
disciplinares e de suas prerrogativas, a que imediatamente sucedeu a edição do primeiro
Código de Ética e Disciplina, em 25 de julho de 1934, após a promulgação da Constituição
de 16 de julho de 1934. Foi nesse especialíssimo contexto histórico, vencidas as barreiras
imprescindíveis ao exercício profissional da advocacia, que lançaram as bases de
frutificação futura o ideário da advocacia como compromisso com a ideologia jurídica
consagrada constitucionalmente.