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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
KASSIA NOBRE DOS SANTOS
EM BUSCA DA CREDIBILIDADE PERDIDA: A REDE DE INVESTIGAÇÃO
JORNALÍSTICA NA ERA DAS FAKE NEWS
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
SÃO PAULO
2018
Kassia Nobre dos Santos
EM BUSCA DA CREDIBILIDADE PERDIDA: A REDE DE INVESTIGAÇÃO
JORNALÍSTICA NA ERA DAS FAKE NEWS
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutor em
Comunicação e Semiótica sob a orientação da Profª. Drª
Cecília de Almeida Salles.
São Paulo
2018
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
________________________________________
________________________________________
Ao meu querido Vicente
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES)
88887.160.692/2017_00
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais Everaldo Gomes dos Santos e Maria Lúcia Nobre dos Santos pelo total
apoio aos meus estudos.
À minha orientadora Cecília Almeida Salles por sua teoria crítica dos processos criativos
e por sua dedicação à minha pesquisa.
Ao Diogo Cronemberger pela revisão crítica do texto e pelo apoio essencial durante o
processo.
Aos jornalistas Bernardo Esteves, Paula Scarpin, Carol Pires, Malu Gaspar e Cristina
Tardáguila pelos depoimentos.
À CAPES pela concessão da bolsa de estudos que permitiu a realização desta pesquisa.
RESUMO
As redes sociais enalteceram a cultura participativa da sociedade em assuntos de interesse
coletivo, algo positivo porque promoveu a diversidade de vozes e decentralizou o poder
da grande mídia como única porta-voz da informação. Ao mesmo tempo, a revolução
digital foi a responsável pela pós-verdade e o fenômeno das notícias falsas (fake news),
que abalou o conceito de verdade, já que opiniões e fatos se confundem porque circulam
no mesmo espaço digital. Diante desse cenário, pilares fundamentais da profissão de
jornalista – a apuração aprofundada e a checagem - foram resgatados e valorizados a partir
da criação de novos modelos de trabalho. A partir da discussão do jornalismo sob a
perspectiva de seus processos de produção, o objetivo desta pesquisa é propor uma
reflexão sobre os modos de ação dos jornalistas da revista piauí e da agência Lupa,
procurando compreender os procedimentos por eles utilizados na construção da
reportagem e da checagem. A revista piauí está há mais de dez anos no mercado editorial
brasileiro e é exemplo para outros modelos recentes na produção de grandes reportagens.
Já a agência Lupa foi a primeira agência de fact-checking do Brasil. Os apontamentos
teóricos para a análise estão na teoria crítica dos processos criativos (Salles, 2008; 2011;
2016; 2017). Os instrumentos de análise são os “documentos de processos”, que são
registros materiais do processo criador. No caso da presente pesquisa foram realizadas
entrevistas com os jornalistas da revista piauí e com a criadora da agência Lupa para o
entendimento de seus processos criativos. A partir desses dados, foi criada a rede de
investigação jornalística com os respectivos pontos de análise: o tempo de criação; a
narratividade; a transparência e a correção do erro. Desta forma, a tese defendida é que
há um campo de experimentação a ser explorado pelo jornalista para atuar na crise da
profissão e retomar a credibilidade perdida. Além disso, a partir do combate à
desinformação, o jornalismo pode recuperar uma das suas principais funções que é o
fortalecimento da democracia.
Palavras-chave: Investigação jornalística; Pós-verdade; Revista piauí; Agência Lupa.
ABSTRACT
The social networks have praised the participative culture of society regarding to subjects
of collective interest, something positive because it has been promoting the diversity of
voices and decentralizing the power from the mainstream media as the unique advocate
of information. At the same time, the digital revolution was the responsible for post-truth
also fake news, which both have disrupted the concept of truth, once opinions and facts
mix each other because they are on the same digital area. In this scenario, fundamental
principles due to the profession of journalism - detailed verification and check - have been
rescued and valued from the begining of new ways of work. From the discussion of
journalism under the perspective of its processes of production, the goal of this research
is based on proposing a reflection towards the manners of acting of journalists of revista
Piauí (Piauí Magazine) and agência Lupa (Lupa Agency), willing to understand the
procedures which are used by them focused on the report creation as well as the check.
The Piauí magazine has been in Brazilian market for over ten years and it is an example
for other actual models regarding to the big report construction. The Lupa agency was the
first agency of fact-checking in Brazil. The theoretical basis for this analysis are the
critical theory of creative processes (Salles, 2008; 2011; 2016; 2017). The analytical tools
are the “documents of processes” which are material records from creative process. For
the actual research, some interviews were conducted with journalists of Piauí magazine
as well as the creator of Lupa agency in order to understand their creative processes. From
these datas, a journalistic research network was created containing the following
analytical issues: the narrative, the transparence and the error correction. Consequently,
the present thesis is based on the fact there is an experimental field to be explored by
journalist in order to act toward the crisis of this profession in addition to reclaim the lost
credibility. Moreover, from the combat of misinformation, the journalism is able to
recover one of its main role which is the reinforcement of the democracy.
Key words: journalistic investigation, post-truth; Piauí Magazine, Lupa Agency.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 09
2 ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A CREDIBILIDADE DA
INFORMAÇÃO .............................................................................................
15
2.1 A objetividade é credibilidade: o surgimento dos jornais ............................. 15
2.2 A apuração é credibilidade: a produção da reportagem no Brasil ................. 20
2.3 A voz participativa é credibilidade: a internet e as redes sociais ................... 25
3 A ERA DA PÓS-VERDADE E FAKE NEWS ........................................... 32
3.1 O fenômeno da pós-verdade ......................................................................... 32
3.2 O colapso da confiança na imprensa ............................................................. 37
3.3 As agências de notícias falsas ....................................................................... 41
3.4 O jornalismo e as notícias falsas ................................................................... 43
4 A REDE DE INVESTIGAÇÃO JORNALÍSTICA DO PROJETO PIAUÍ 48
4.1 A rede de investigação da revista piauí ........................................................ 48
4.2 A revista piauí .............................................................................................. 50
4.3 A piauí no cenário do jornalismo brasileiro ................................................. 53
4.4 Nó 1: Tempo de investigação ....................................................................... 57
4.4.1 Velocidade como fetiche no jornalismo ..................................................... 58
4.4.2 A charrete da piauí ..................................................................................... 60
4.4.3 O caminho da reportagem .......................................................................... 64
4.4.4 A importância do acaso .............................................................................. 66
4.4.5 A especialidade do repórter ........................................................................ 70
4.4.6 O ato comunicativo .................................................................................... 73
4.5 Nó 2: A narratividade ................................................................................... 75
4.5.1 A narrativa literária .................................................................................... 75
4.5.2 A narrativa cinematográfica ....................................................................... 77
4.5.3 Narratividade no jornalismo ....................................................................... 78
4.5.4 Narratividade na revista piauí ..................................................................... 80
5 A REDE DE CHECAGEM DA AGÊNCIA LUPA ..................................... 89
5.1 A checagem nos EUA ................................................................................... 89
5.2 Oportunidades diante da crise ....................................................................... 91
5.3 A checagem no Brasil ................................................................................... 92
5.3.1 Novas iniciativas ........................................................................................ 93
5.3.2 A checagem e as redes sociais .................................................................... 95
5.4 A agência Lupa ............................................................................................. 99
5.4.1 Lupa Educação ........................................................................................... 102
5.4.2 Aprimoramento do debate público ............................................................. 103
5.5 A rede de criação da Agência Lupa .............................................................. 103
5.6 Nó 3 A transparência .................................................................................... 104
5.6.1 A transparência da metodologia ................................................................. 104
5.6.2 A checagem de opinião .............................................................................. 105
5.6.3 A checagem além do declaratório .............................................................. 106
5.6.4 As etiquetas ................................................................................................ 108
5.6.5 Transparência das fontes ............................................................................ 109
5.6.6 Transparência do financiamento ................................................................ 110
5.6.7 Apartidarismo ............................................................................................ 111
5.7 Nó 4: A correção do erro .............................................................................. 113
5.7.1 O erro na checagem .................................................................................... 114
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 117
REFERÊNCIAS .................................................................................................. 122
ANEXOS .............................................................................................................. 127
Anexo 1 .................................................................................................................. 127
Anexo 2 .................................................................................................................. 128
Anexo 3 .................................................................................................................. 129
Anexo 4 .................................................................................................................. 130
Anexo 5 .................................................................................................................. 131
9
1. INTRODUÇÃO
Em agosto de 2018, o Sesc São Paulo e a Revista Cult realizaram o seminário
“Jornalismo: as novas configurações do quarto poder”1, que reuniu profissionais da
imprensa e acadêmicos para discussões em torno de uma pergunta principal: o jornalismo
está em crise? Ou seria o modelo de negócio do jornalismo que está em crise? Na mesma
semana, o Grupo Abril, maior editora de revistas do país, pedia a recuperação judicial
com dívida de R$ 1,6 bilhão e declarou o fechamento de publicações e a demissão de
jornalistas.
A situação da editora foi simbólica entre os participantes do seminário para falar
da crise econômica do mercado e a necessidade de novas práticas para a profissão. Aliado
à situação da Abril está o número expressivo de demissões em massa de veículos
tradicionais e alternativos do Brasil que foi registrado no site “A conta dos Passaralhos2”
da agência independente de jornalismo “Volt Data Lab”, que apresentou um panorama
sobre demissões de jornalistas nas redações brasileiras desde 2012. O site mostra que, até
o mês de agosto de 2018, ocorreu o total de 2.327 demissões de jornalistas em redações
desde 2012. Além disso, 7.817 demissões aconteceram em empresas de mídia.
Relacionada com a crise financeira está a crise de credibilidade do jornalismo.
Como será visto no segundo capítulo deste trabalho, o jornalismo conquistou a
confiabilidade junto ao público de diferentes formas com o passar do tempo, da criação
dos jornais até as redes sociais. Essa confiança sempre foi a moeda de troca com o leitor.
Inicialmente, os jornais representavam (ou acreditavam representar) o espelho da
realidade, por isso, a objetividade tornou-se sinônimo de credibilidade. Com isso, nasceu
a figura do repórter e da investigação da realidade. A reportagem é o elo do leitor com os
acontecimentos e o jornalista seu porta-voz.
Com a internet e as redes sociais, a credibilidade passa ser a voz participativa. É
o que diz o teórico Clay Shirky (2008; 2011) que estuda, justamente, as transformações
na sociedade após o advento das novas tecnologias no nosso cotidiano. Assim, a
veracidade da informação passa a ser daquele que conta a sua história e daquele que
presenciou um acontecimento e o narrou. A consequência disso é que a sociedade passa
a questionar o papel do jornalismo e a necessidade de uma mediação dos fatos.
1 O seminário ocorreu nos dias 15, 16 e 17 de agosto de 2018, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. 2 Disponível em <http://passaralhos.voltdata.info/index.html. Acesso em 29>. Ago. 2018.
10
Além da democratização da comunicação, as redes sociais geram um excesso de
narrativas. Atualmente, tais narrativas estão em “bolhas” ideológicas. Ou seja, inseridas
nesse contexto, as pessoas fortalecem suas crenças e ideologias a partir de uma rede
virtual com o pensamento único que não dialoga com o diferente.
A discussão do terceiro capítulo será, justamente, sobre a pós-verdade, o
fenômeno em que as narrativas paralelas (versões) ganham mais relevância do que os
fatos. O teórico Matthew D’Ancona (2017) discutiu sobre as consequências do declínio
da verdade na sociedade atual. Como fica o jornalismo diante desta nova realidade? Ele
sobreviverá a mais uma crise?
Pensando nisso, a tese da presente pesquisa é que, sim, o jornalismo está em
crise, mas devido a essa instabilidade, pilares fundamentais da profissão – a apuração
aprofundada e a checagem - foram resgatados e valorizados a partir da criação de novos
modelos de trabalho e, consequentemente, novos modelos de negócio.
O exemplo animador é a situação atual do jornal The New York Times, que teve o
aumento de suas assinaturas digitais desde a eleição de Donald Trump. O chamado The
Trump bump (efeito Trump) provocou o aumento da fidelização do público leitor de
jornal, em uma diferente plataforma.
Só talvez Trump tenha ajudado a acabar com a era pós-verdade que ele
provavelmente criou e esteja inadvertidamente ajudando a catalisar o
renascimento do jornalismo de qualidade em uma era dominada pelo tipo de
discurso incontrolado no Twitter tão virtuosamente feito pioneiro pelo
presidente eleito (THE GUARDIAN, 2017, ARQUIVO ELETRÔNICO3).
No Brasil, o jornalismo vê surgir novos formatos, especialmente em 2015, ano de
criação das agências de checagem Lupa4 e Aos Fatos5. Além da criação do jornal Nexo6
e a explosão do jornalismo de dados nos anos seguintes. Podem-se citar também o
Intercept Brasil7, a Agência Pública8 e o programa GregNews9.
3 Disponível em <https://www.theguardian.com/us-news/2017/jan/17/the-trump-bump-when-a-diss-from-
donald-is-good-for-business>. Acesso em 04. Set.2018. 4 Objeto de pesquisa deste trabalho. 5 Plataforma multimídia de checagem de fatos. Disponível em: <https://aosfatos.org/>. Acesso em 29.Ago.
2018. 6 Jornal digital com o objetivo de trazer contexto às notícias e ampliar os dados e as estatísticas. Disponível
em <https://www.nexojornal.com.br/>. Acesso em 29. Ago. 2018. 7 The Intercept é uma publicação da First Look Media. Lançada em 2013, é uma empresa multimídia
dedicada a apoiar vozes independentes em jornalismo investigativo. Disponível em
<https://theintercept.com/brasil/>. Acesso em 31.08.2018. 8 Agência de jornalismo investigativo e independente fundada em 2011. Disponível em
<https://apublica.org/>. Acesso em 31. Ago. 2018. 9 Criado em 2017, programa satírico e investigativo que vai ao ar na HBO Brasil. Disponível em
<https://www.youtube.com/channel/UCX2M7xn-jMmq4KfX25TCTCA>. Acesso em 31. Ago. 2018.
11
Todas essas iniciativas têm a investigação jornalística como motriz fundamental.
Ou seja, a crise resgatou o jornalismo investigativo em diferentes plataformas e reafirmou
o verdadeiro papel do jornalista em um cenário em que qualquer pessoa pode informar.
A crise resgatou o papel de investigar. Como afirmou Graves (2016, p. 11) ao analisar o
surgimento e expansão das agências de checagem nos Estados Unidos:
As organizações estudadas aqui [as agências de checagem] nasceram em um
setor em crise, atormentado por desafios econômicos, tecnológicos e
profissionais, testemunhas e produtos do que tem sido chamado “colapso em
câmera lenta do modelo de trabalho industrial no jornalismo”. [...] Os
verificadores de fatos praticam uma espécie de jornalismo neste momento, mas
também afirmam revitalizar o que é vital para o auto entendimento do campo.
Para entender melhor o ato de investigar, a presente pesquisa tem como proposta
discutir o jornalismo sob a perspectiva de seus processos de produção, uma reflexão
inserida na crítica dos processos criativos (SALLES, 2008; 2011; 2016; 2017).
O livro Jornalismo Expandido: práticas, sujeitos e relatos entrelaçados (SALLES,
2016), traz o artigo “O processo de produção jornalística em debate”, no qual Salles
propõe a discussão sobre o fazer jornalístico:
Assim jornalistas\pesquisadores, em meio à efervescência dos diálogos
interdisciplinares, discutem as especificidades do fazer jornalístico. Ao mesmo
tempo, eles se expõem às reflexões sobre a experimentação contemporânea no
âmbito das diferentes mídias diante das crises, como da crítica da arte e do
próprio jornalismo no contexto das mídias digitais e suas diversas plataformas
(SALLES, 2016, p. 64).
Salles seleciona alguns aspectos teóricos inseridos na crítica dos processos
criativos para se pensar o fazer jornalístico: o conceito de criação, a complexidade dos
trabalhos em equipe e a necessidade de experimentação.
Segundo Salles (2011), a criação é um gesto contínuo e está presente em todas as
etapas da produção. Sendo assim, não existe um momento específico da criação. O insight
criativo está, na verdade, dissolvido em todas as fases vencidas (ou não) pelo agente
criador. Desta forma, no jornalismo, as marcas da criação estariam presentes nas
primeiras ideias sobre a pauta, no momento da apuração, na construção do texto, na edição
e na escolha da versão para a publicação.
Pode-se afirmar que o jornalismo por sua própria natureza é um trabalho em
equipe em busca de um projeto comum. “Os processos em equipe se dão na interação de
indivíduos (sujeitos em rede de interações múltiplas), em meio a colaborações, comandos
e hierarquias. Daí o aumento da complexidade da rede responsável pelas ações em
equipe” (SALLES, 2016, p. 68).
12
Já a experimentação do repórter é um lugar para a análise dos erros e acertos do
processo da reportagem. Segundo Cremilda Medina (2003, p. 98), nenhum projeto de
comunicação que se pretende inovador, digno das expectativas da transformação social,
pode se eximir da condição de uma oficina experimental. Salles (2016, p. 75) discute
sobre a possibilidade de o jornalismo buscar a experimentação como forma de inovar o
que já foi estabelecido e determinado como notícia:
Como se vê, os grandes desafios do jornalismo, acirrados em meio à crise
econômica, se dão no enfrentamento de intenso abalo de certezas de seus
modos de produção que, por muito tempo, não foram questionadas; daí a
constatação da necessidade de experimentação, ou seja, levantamento de novas
hipóteses que viabilizem a entrada de outras possibilidades jornalísticas [...].
Seria necessidade de sujeitos que exploram brechas em nome da sobrevivência
do jornalismo.
O termo “brecha” é usado por Morin e retomado em Salles para explicar a
emergência de um desvio inovador.
Salles (2016, p. 66) destaca ainda três aspectos do conceito de criação que
merecem maior atenção: projeto, ato comunicativo e a introdução de ideias novas.
Projeto, nesse contexto, seriam princípios direcionadores, de natureza ética e
estética, presentes nas práticas das produções, relacionados a um trabalho
específico, assim como à postura geral daquele jornalista, artista ou
publicitário. São princípios relativos à singularidade do sujeito que produz.
Desta forma, o trabalho analisará nos capítulos quarto e quinto o projeto piauí para
entender os princípios direcionadores dos modelos investigativos: a revista piauí e a
agência Lupa. A revista piauí está há mais de dez anos no mercado editorial brasileiro e
é exemplo para outros modelos recentes na produção de grandes reportagens. Já a agência
Lupa foi a primeira agência de fact-checking do Brasil. Desta forma, é importante a
investigação dos bastidores desses modelos jornalísticos.
A análise do projeto piauí discutirá ainda o aspecto comunicativo das tendências
dos processos de criação:
O aspecto comunicativo das tendências dos processos de criação, por sua vez,
abre espaço para a discussão sobre as interações com os outros, em sentido
bastante amplo, envolvendo não só as relações culturais, mas também uma
grande diversidade de diálogos de natureza inter e intrapessoais do jornalista,
no caso aqui enfocado, com ele mesmo, com sua equipe e, especialmente, com
futuros leitores (SALLES, 2016, p. 66).
Ainda conforme Salles (2016, p. 67), a entrada de ideias novas propõe um conceito
de criação no contexto de interconexões e não isolamento, que também sustentam o
13
conceito de rede10. As interações da rede são responsáveis pela proliferação de novas
possibilidades: ideias se expandem, percepções são exploradas, acasos e erros geram
novos caminhos etc.
A análise da crítica de processo só é possível com a presença dos documentos de
processo, o corpus da presente pesquisa. Os “documentos de processo são registros
materiais do processo criador. São retratos temporais de uma construção que agem como
índices do percurso criativo” (SALLES, 2011, p. 26).
Os documentos de processo foram os depoimentos dados para a presente pesquisa
sobre o “modo de fazer” dos repórteres da revista piauí: Bernardo Esteves11, Carol Pires,
Malu Gaspar e Paula Scarpin. Além do depoimento da criadora da Agência Lupa, Cristina
Tardáguila. As falas foram essenciais para o entendimento da experimentação dos agentes
criativos no processo de criação – do surgimento de pauta até a publicação - da grande
reportagem e da checagem.
A partir dos documentos de processo, os nós de interação da rede12 de criação
foram nomeados. Salles (2017, p. 117), explica que as interconexões geram os picos ou
nós da rede, elementos de interação ligados entre si, que se manifestam como os eixos
direcionadores da pesquisa.
A rede da revista piauí tem o tempo de criação e a narratividade como tópicos
de análise. Todos os repórteres da revista destacaram a importância do tempo da
investigação e o “jeito piauí” de contar a história que seria o uso da narração e de suas
implicações, como a descrição de cenas e personagens. O termo narratividade foi
escolhido para abranger as narrativas literárias e cinematográficas, referências citadas
pelos repórteres na construção da grande reportagem.
Já a agência Lupa representou uma reconfiguração da checagem, um dos pilares
do jornalismo moderno, nos tempos atuais. Os nós de interação foram representados pela
transparência da metodologia de checagem, das fontes que são usadas e do
apartidarismo; e pela correção do erro. Além do depoimento de Tardáguila, a pesquisa
analisou checagens realizadas pela agência e abordou o cenário atual do fact-checking
brasileiro.
10 Anexo 1. 11 Bernardes Esteves também disponibilizou anotações do seu “diário de bordo”. Ou seja, as anotações que
realizou para uma das reportagens analisadas. 12 Anexo 2.
14
Já as considerações finais discutirão sobre a importância do diálogo e o papel do
jornalismo para que isso aconteça em uma sociedade democrática. Assim, a pesquisa
mostrará a importância do entendimento da realidade em sua complexidade com a
abertura para o diálogo com o outro para o fortalecimento da democracia e do combate
às dicotomias e aos radicalismos.
Desta forma, pode-se concluir que o cenário atual do jornalismo tem uma
perspectiva de mudanças e buscas por outras hipóteses jornalísticas ou as “brechas”
citadas por Morin (1998) e Salles (2016). A cena atual está longe da ideia da chamada
morte do jornalismo. Como afirmou Ricardo Kotscho, um dos participantes do seminário
descrito no início, ao ser questionado sobre o fim da reportagem: “Há trinta anos, fui
convidado junto com José Hamilton Ribeiro para uma palestra com o tema ‘A reportagem
morreu?’”. Ou seja, o jornalismo está bem vivo e com novos modelos e novas
possibilidades para reportar a realidade.
15
2. ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A CREDIBILIDADE DA INFORMAÇÃO
Este capítulo propõe um panorama sobre as diferentes formas que o jornalismo,
desde o surgimento dos jornais até os dias de hoje, busca se credenciar diante do público
para ser o porta-voz da informação.
Se antes o jornalismo era uma voz hegemônica para informar sobre os
acontecimentos, a profissão precisou se reinventar para acompanhar a pluralidade de
vozes que ganhou força na era digital. Essa mesma voz antes passiva começa a questionar
o verdadeiro papel do jornalismo na sociedade. Entender os acordos de confiança entre o
jornalista e seu público durante o passar do tempo e os motivos dos abalos desse pacto
atualmente é fundamental para a discussão principal desta tese sobre os caminhos
necessários para a retomada da credibilidade perdida.
2.1 A objetividade é credibilidade: o surgimento dos jornais
A natureza do jornalismo está no medo. O medo do desconhecido, que leva o
homem a querer exatamente o contrário, ou seja, conhecer (Felipe Pena).
Do manuscrito aos algoritmos, das letteri d’avisi13 à internet, a sociedade de ontem
e de hoje busca a informação para enfrentar o medo do desconhecido. A partir da invenção
de Gutenberg14, surgem os jornais e a informação escrita passa a ser mediada pela
imprensa:
[...] a impressão é realmente a verdadeira revolução da história do jornalismo.
Na onda da emergente indústria do livro, surge uma nova, que cresce entre os
restos de papel e as folhas soltas que dão origem a pequenas publicações
periódicas. Nasce a imprensa, mas é preciso saber que espaço ela vai ocupar.
Esse espaço e o público, que também vai passar por uma série de
transformações (PENA, 2005, p. 28).
13 Os comerciantes da cidade de Veneza, nordeste da Itália, recebiam as letteri d’avisi, que, ao ganhar
periodicidade, transformaram-se nas gazetas, o embrião dos jornais conforme os conhecemos. As gazetas
vêm do italiano gazzette, a moeda utilizada em Veneza no século XVI. Veneza foi o centro informativo
mais importante da Europa na Idade Média. As informações que circulavam esporadicamente eram
manuscritas e se consolidaram nos séculos XIV e XV durante o desenvolvimento do comércio e da vida
urbana. As notícias eram vinculadas ao interesse mercantil, com informes sobre colheitas, chegada de
navios, cotações de produtos e relatos de guerras (PENA, 2005, p. 28 e 34). 14 O alemão Johann Gutenberg inventou, no século XV, a máquina de invenção tipográfica que provocou
uma verdadeira revolução no terreno da escrita e da leitura. A imprensa foi um tipo de dispositivo capaz de
reproduzir palavras, frases, textos ou mesmo livros inteiros através de caracteres ou tipos móveis.
Disponível em <https://brasilescola.uol.com.br/historiag/invencao-imprensa.htm> Acesso em
10.mai.2018.
16
Os primeiros jornais surgem no começo do século XVII, na Alemanha, nos Países
Baixos e na Inglaterra. As primeiras publicações jornalísticas são herdeiras das gazetas
venezianas. Kunczik (2001, p. 22) relata que os primeiros jornalistas foram
correspondentes dos príncipes governantes, das cidades-imperiais e das cidades-estados
na Europa central. Os primeiros jornais a aparecerem com regularidade foram na
Alemanha e datam do ano de 1609. Pouco depois apareceram jornais na Holanda (1618),
França (1620), Inglaterra (1620) e Itália (1636).
Nelson Werneck Sodré (1983) relata que a história da imprensa é a própria história
do desenvolvimento da sociedade capitalista. Ou seja, os jornais são frutos de um
momento histórico que fortaleceu os ideais capitalistas na sociedade urbana da Europa a
partir do século XVI.
Com a ascensão da burguesia, os jornais passam a ser de pequenos grupos
burgueses e não de domínio apenas dos príncipes governantes. A consolidação de um
modelo de vida urbana e, consequentemente, de um público leitor fortalece a permanência
da imprensa e, consequentemente, o controle da informação por esses grupos.
Ciro Marcondes Filho classifica esse período como o “primeiro jornalismo”, de
1789 à metade do século 19. O autor explica que o saber e a informação passam a circular
e são os jornalistas que irão abastecer esse mercado.
O autor explica também que é a época de ebulição do jornalismo político-literário,
em que as páginas impressas são ressonantes às plataformas de políticos. É na mesma
época que o jornal se profissionaliza e surge a redação como um setor específico. “Os
jornais são escritos com fins pedagógicos e de formação política. É também característica
do período a imprensa partidária, na qual os próprios jornalistas eram políticos e o jornal,
seu porta-voz” (MARCONDES FILHO, 2000, p. 12).
Marcondes Filhos (2000, p. 13) classifica como o “segundo jornalismo” quando o
jornal passa a ser considerado uma grande empresa capitalista que surge a partir da
inovação tecnológica da metade do século 19.
A atividade que se iniciara com as discussões político-literárias aquecidas,
emocionais, relativamente anárquicas, começava agora a se constituir como
grande empresa capitalista: todo o romantismo da primeira fase será
substituído por uma máquina de produção de notícias e de lucros com os
jornais populares e sensacionalistas.
Assim, o desenvolvimento industrial acelera o comércio das notícias e a circulação
dos jornais na Europa e nos Estados Unidos:
17
A corrida para a revolução nas técnicas de imprensa, iniciada na Inglaterra,
quando o Times, em 1814, utilizou a máquina a vapor na sua impressão, seria
por isso ganha pelos Estados Unidos em pouco tempo. Era o ponto de partida
para a produção em massa que permitiria reduzir o custo e acelerava
extraordinariamente a circulação. [...] Em toda a área capitalista do mundo,
essas transformações se alastraram rapidamente: nos Estados Unidos, na
primeira metade do século XIX, Benjamin Day utilizaria um método já
amplamente dominante na Inglaterra, ao desligar o seu jornal Sun da
subordinação passiva e doutrinária aos agrupamentos partidários, para dar
realce às notícias (WERNECK SODRÉ, 1983, p. 3).
A principal característica do “segundo jornalismo” é que a transformação
tecnológica (modernização das máquinas) exige da empresa jornalística a capacidade
financeira de autosustentação:
A gradual implantação da imprensa como negócio, iniciada após 1830 na
Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, impõe-se plenamente por volta de
1875. A grande mudança que se realiza nesse tipo de atividade noticiosa é a
inversão da importância e da preocupação quanto ao caráter de sua mercadoria:
seu valor de troca – a venda de espaços publicitários para assegurar a
sustentação e a sobrevivência econômica – passa a ser prioritário em relação
ao seu valor de uso, a parte puramente redacional-noticiosa dos jornais. A
tendência – como se verá até o final do século 20 – é a de fazer do jornal
progressivamente um amontoado de comunicações publicitárias permeado de
notícias (WERNECK SODRÉ, 1983, p. 14).
Para garantir o alto investimento de capital, a imprensa difunde características da
atividade jornalística que seriam os seus pilares até hoje: a busca pela notícia, o “furo”, o
caráter de atualidade, a aparência de neutralidade e o caráter libertário e independente.
O pesquisador Luiz Costa Pereira Júnior evidencia que a ideia de veracidade e,
consequentemente, de objetividade da notícia seria determinante para a construção da
credibilidade diante do público, necessária para garantir a sobrevivência da imprensa no
mundo industrial.
O desenvolvimento do jornalismo evidencia a credibilidade como condição de
indústria. Para não afastar leitores, jornais tendem a atenuar posições, mascarar
preferências, criar parâmetros equilibrados de julgamento, tornar-se confiáveis
testemunhas dos fatos. A objetividade começa a virar bem valioso a negociar.
É então que a indústria assume o que se poderia chamar de estratégia de
sobrevivência conceitual. Instaura características de objetividade que virariam
pilares na imprensa (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 53).
Assim, os periódicos passam a ser um porta-voz dos fatos do cotidiano dos
leitores. É o início da produção jornalística que busca a credibilidade entre os seus leitores
por meio da objetividade. Porém, Pena (2005) reitera que as estratégias de mercado aos
poucos substituem o espaço das causas públicas e dos valores éticos, conforme a imprensa
vai se constituindo em um produto industrial. “Se a natureza do jornalismo está no medo,
sua origem como veículo está no lucro. Em seu código genético não encontramos um
serviço público, mas sim um comércio de notícias” (PENA, 2005, p. 33).
18
Segundo Marcondes Filhos, o desenvolvimento e crescimento das empresas
jornalísticas desembocam na constituição do “terceiro jornalismo”, no século 20.
Segundo Medina (1988, p. 19), a formação da grande indústria da informação cujo
símbolo são as agências de notícia e as cadeias jornalísticas exigiu a profissionalização
do oficio de jornalista, no final do século XIX e na primeira metade do século XX.
Na obra A objetividade jornalística, Luiz Amaral (1996) escreve que a separação
entre notícia e comentário representou o aumento das vendas diárias e,
consequentemente, o aumento do faturamento dos jornais.
Até um certo ponto, os jornais se tornaram menos parciais, mais verazes e
credíveis e, portanto, de mais fácil comercialização. Estava aberto o caminho
para o surgimento de grandes e sólidas empresas, dos enormes conglomerados
que constituem, hoje em dia, os impérios jornalísticos (AMARAL, 1996, p.
35).
O autor afirma ainda que a noção de objetividade está presente a cada fase do
processo jornalístico, embora, desde a sua incorporação, tenha sido confrontada com o
seu contrário, a subjetividade. Até porque cada processo jornalístico (apurar, escrever,
editar e publicar) é resultado da escolha de alguém ou de um grupo. O que pressupõe uma
escolha subjetiva, mesmo que nela se busque a objetividade. “A questão é saber se é
possível, e em que grau, o ser humano descrever as coisas como elas realmente são.
Independentemente da relação que temos com elas. É saber se, de fato, a objetividade é
um caminho para a verdade e a realidade” (AMARAL, 1996, p. 18).
Amaral lembra ainda que “[o]s nossos atos são influenciados, quando não
determinados, por nossa maneira própria de ver. [...] O ser humano vê o mundo por meio
de uma espécie de filtro e com base nessa apreciação constrói a sua realidade”
(AMARAL, 1996, p. 18). O que permite o questionamento se é possível uma total isenção
na construção jornalística.
Pereira Júnior (2010, p. 35) acrescenta ainda que esta estratégia da imprensa, a
escolha pela objetividade, representa uma constante busca da relação de confiança entre
o jornal e o leitor. O repórter passa a ser a testemunha dos fatos e o leitor espera que o
jornalista “veja” a realidade em seu lugar para traduzir tudo com fidelidade. A veracidade
do jornal é a moeda de troca pela fidelidade do leitor.
Uma relação de confiança substitui, assim, a confiança no real. O referencial
só se torna aceitável porque um pacto de confiabilidade foi constituído entre o
jornalismo e seu público. Todo o trabalho jornalístico passa então a ser
sancionado menos por um princípio técnico in natura, a certeza de que bastaria
seguir determinados procedimentos profissionais para dar conta de um
incidente noticiável. A condição de sua existência começa a flertar com esse
princípio tão falível que é a honestidade na apuração de cada pista, na redação
19
de cada texto, na edição de cada reportagem. [...] Um atributo ético preenche
o vácuo técnico (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 36).
A partir disso, a ação de noticiar sempre estaria interligada ao “fato” que muitas
vezes é confundido com “verdade” para evidenciar ainda mais a busca da credibilidade
desta produção. “A notícia é um relato integral de um fato que já eclodiu no organismo
social” (MARQUES DE MELO, 2003, p. 66). “A notícia se define no jornalismo
moderno como o relato de uma série de fatos a partir do aspecto mais importante ou
interessante” (LAGE, 2002, p. 16).
Assim, existe uma regra estabelecida entre os profissionais responsáveis pela
produção da notícia que foi explicitada por Charaudeau (2013, p. 74): “Toda informação
que pudesse ser percebida pela instância de recepção como algo fabricado, mesmo não
sendo falsa, levantaria suspeitas e teria como consequência desacreditar o seu
responsável”.
Percebe-se, mais uma vez, que a credibilidade do jornalista estaria associada à
descrição do fato como ele é e ao entendimento do público de que o fato é a verdade. A
partir desta concepção, o profissional busca apurar e checar os fatos para transformá-los
em notícia.
O número incalculável de acontecimentos suscetíveis de se tornarem
informação [...] obriga a instância midiática a dotar-se de meios que lhe
permitam abranger o máximo de acontecimentos, selecioná-los e verificá-los.
É na escolha dos critérios que regem tais atividades que se põe em jogo a
imagem de cada organismo de informação (CHARAUDEAU, 2013, p. 74).
Pereira Júnior explicita bem os métodos de checagem do jornalista ao afirmar que
apurar é “encontrar evidências soterradas em camada de versões, procurar certezas em
situações de incerteza” (2010, p. 71). Sendo assim, o trabalho do jornalista exige uma
disciplina de verificação da veracidade das informações, que são de natureza subjetiva
porque são constituídas pela versão de alguém, que é explicitada por meio de entrevistas
e relatos. Além da subjetividade da informação, a investigação jornalística esbarra em
diferentes problemas que são habituais na produção das redações:
Investigar é caro, demanda tempo e esforço. Amarga os ventos sazonais da
redução de postos de trabalho, das Redações enxutas e da carga horária
exaustiva, resultados de uma lógica de investimentos sistematicamente voltada
para a modernização tecnológica e a infraestrutura e nem sempre para
produção de conteúdo qualificado. [...] Sofre as tentações da era da internet,
com o acesso fácil a dados sem que se faça investigação (PEREIRA JÚNIOR,
2010, p. 75).
A dicotomia objetividade e subjetividade é pauta ainda hoje nas discussões sobre
a profissão. Apesar de não haver consenso entre os teóricos e profissionais, a presente
20
pesquisa reitera o que diz Felipe Pena ao afirmar que é preciso levar em conta a
subjetividade/complexidade na construção de um fato:
A objetividade é definida em oposição à subjetividade, o que é um grande erro,
pois ela surge não para negá-la, mas sim por reconhecer a sua inevitabilidade.
Seu verdadeiro significado está ligado à ideia de que os fatos são construídos
de forma tão complexa que não se pode cultuá-los como a expressão absoluta
da realidade. Pelo contrário, é preciso desconfiar desses fatos e criar um
método que assegure algum rigor científico ao reportá-los (PENA, 2005, p.
50).
Uma das principais evidências dessa complexidade é o fato de a principal fonte
de informação do jornalista ter a origem em um depoimento de um indivíduo ou de um
grupo. Se buscar a objetividade em uma notícia é difícil, na reportagem (ampliação da
notícia) é um trabalho ainda mais árduo. Segundo Sodré e Ferrari (1986), a reportagem é
um desdobramento da notícia, mas com foco no “quem” e no “o quê” entre as perguntas
clássicas do jornalismo: quem, o quê, como, quando, onde, por quê. Ou seja, muito mais
que o alongamento da notícia, o essencial da reportagem está no interesse humano.
O interesse pelo humano na reportagem assemelha-se à caracterização da
personagem no romance e, consequentemente, da natureza humana, por meio da
descrição física, moral e psicológica do ente da narrativa e, neste sentido, a reportagem
possibilita ao jornalista utilizar recursos da literatura para humanizar o seu relato.
Assim, com a produção de reportagens humanizadas surge uma nova
problematização no processo de produção jornalístico e, consequentemente, na
credibilidade da imprensa: a ficcionalização da realidade.
2.2 A apuração é credibilidade: a produção da reportagem no Brasil
No Brasil, a figura do repórter surgiu no final do século XIX e início do XX. João
do Rio15 é considerado o primeiro repórter investigativo do Brasil. Ele escrevia para a
Gazeta de Notícias (1875). Cremilda Medina (1988, p. 57) afirma que João do Rio
desenvolveu uma característica primária do jornalismo moderno – buscar informações na
rua. “Repórter que vai à rua e constrói sobre o momento e a história dos fatos presentes.
Da união destes dois conceitos nasce a definição moderna de jornalismo. E João do Rio,
15 Paulo Barreto, pseudônimo literário João do Rio, nasceu no Rio de Janeiro, em 1881. Jornalista, cronista,
contista e teatrólogo. Publicou dezessete livros, entre eles, A alma encantadora das ruas (1908). Trabalhou
em diversos jornais do Rio de Janeiro e fundou o diário A Pátria. Disponível em
<http://www.academia.org.br/academicos/paulo-barreto-pseudonimo-joao-do-rio/biografia>
Acesso em Fev. 2017.
21
se não é original na história da imprensa, pelo menos no Brasil inicia esse processo”
(MEDINA, 1988, p. 58).
Segundo Cristiane Costa (2005), só no início do século XX que o jornalismo
brasileiro abre espaço para a reportagem e a entrevista. É esse modelo de reportagem de
campo que marca o nascimento do jornalismo moderno.
Uma das principais inovações que ele [João do Rio] trouxe para a nossa
imprensa foi a de transformar a crônica em reportagem [...] Sua inovação foi
apostar num jornalismo investigativo e de comportamento, em que crônica e
reportagem se misturam, como nas histórias narradas em A alma encantadora
das ruas (2005, p. 41-42).
Nesta obra (1908), João do Rio observou o cotidiano da cidade e coletou
informações entrevistando fontes. O jornalista descreve pessoas simples, profissionais da
rua da cidade, como os trapeiros, ciganos, apanhadores de papel, caçadores, selistas, etc.
Todos esses pobres seres vivos tristes vivem do cisco, do que cai nas sarjetas,
dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são os heróis da utilidade, os que
apanham o inútil para viver, os inconscientes aplicadores à vida das cidades
daquele axioma de Lavoisier: nada se perde na natureza. A polícia não os
prende, e, na boêmia das ruas, os desgraçados são ainda explorados pelos
adelos, pelos ferros-velhos, pelos proprietários das fábricas... (JOÃO DO RIO,
2007, p. 51).
Medina (1988, p. 60) afirma que João do Rio observou os costumes e situações
sociais que são descritos no jornalismo atual. Com isso, sua contribuição para a
reportagem seria a observação da realidade; a coleta de informações por meio das
entrevistas com fontes específicas ou anônimas; a ampliação da informação como
aprofundamento do contexto, da humanização e da reconstituição histórica. Além do
tratamento estilístico, como a descrição dos ambientes e o ritmo narrativo. Assim,
segundo Costa (2005), o método de apuração de João do Rio já era de um repórter
moderno.
Outro destaque daquela época é o escritor Euclides da Cunha16, que colaborava
para o jornal O Estado de S. Paulo, criado em 1875.
A convite de Júlio de Mesquita, Euclides da Cunha aceita realizar reportagem
sobre Canudos, e parte na comitiva militar do Ministro da Guerra, Marechal
Bittencourt, em direção ao sertão baiano. Durante a viagem empreendida,
enquanto passava por Salvador, Alagoinhas, Queimadas, Monte Santo até
chegar finalmente a Canudos, o escritor envia ao Estado a série de 22
reportagens que integram o “Diário de Uma Expedição”, republicadas no
jornal entre 1952 e 1953. É em Canudos que começa a escrever as primeiras
notas de sua obra-prima Os Sertões (1902), cujas primeiras amostras públicas
16 Euclides Rodrigues da Cunha nasceu em Cantagalo, 20 de janeiro de 1866. Foi escritor, sociólogo,
repórter jornalístico, historiador e engenheiro brasileiro. Disponível em
<http://www.euclidesdacunha.org.br/abl_minisites/cgi/cgilua.exe/sys/startc2ed.html?UserActiveTemplate
=euclidesdacunha&sid=44 >. Acesso em Abr. 2018.
22
aparecem no Estado, ainda em 1898, sob o título “Excerto de um livro Inédito”.
Nos anos seguintes, enquanto supervisionava a reconstrução de uma ponte em
São José do Rio Pardo, onde passou a morar com a esposa Ana Emília Solon
Ribeiro e os filhos, continuava colaborando para o Estado, publicando a série
“As secas do Norte”, além de outros artigos, e redigindo Os Sertões. O livro é
recebido com entusiasmo pelos críticos literários da época, e a primeira edição
se esgota em algumas semanas (ESTADÃO, ARQUIVO ELETRÔNICO17).
Os Sertões (1902) é um clássico brasileiro que narra a realidade do sertanejo do
início do século XX. É dele a frase imponente: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”.
Nos anos de 1910, surgem as revistas Kosmos, O Malho, Fon-Fon, Careta, Tico-
Tico, Tagarela. Já nos anos de 1920, destaque para a criação da Revista O Cruzeiro
(1928):
“O Cruzeiro” chegou ao público em 10 de novembro de 1928 prometendo
modernizar o jornalismo brasileiro. Fundada por Carlos Malheiros Dias e
publicada pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, investiu em
fotojornalismo, grandes reportagens e num padrão gráfico considerado
moderno para a época. Foi a mais influente revista do país na primeira metade
do século XX. Em suas páginas, os leitores se atualizavam sobre cinema,
esportes, saúde, moda e gastronomia. [...] As charges e a cobertura dos fatos
políticos também marcaram época. A edição sobre a morte de Getúlio Vargas,
em agosto de 1954, teve uma tiragem recorde de 720 mil exemplares, numa
época em que as vendas de um periódico raramente chegavam aos 100 mil.
Nos anos 60, porém, a revista entrou em declínio, tanto por causa do
surgimento de novas publicações quanto pela má gestão do empreendimento.
Sua última edição circulou em julho de 1975 (O GLOBO, 2013, ARQUIVO
ELETRÔNICO).18
Nos anos de 1940, destaque para a revista Diretrizes (1938), veículo de oposição
ao governo de Getúlio Vargas. Nomes de peso colaboravam com o periódico: os autores
Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos e os jornalistas Rubem Braga,
Carlos Lacerda, Joel Silveira e Moacir Werneck de Castro. Na década seguinte, ênfase
para a revista Manchete (1952):
Os Estados Unidos tinham a "Time" e a França, a "Paris Match". No Brasil,
Adolpho Bloch, dono da Bloch Editores, resolveu lançar a revista ''Manchete''
em 26 de abril de 1952, que se tornaria o título de maior sucesso de sua editora.
Um ótimo slogan - ''Aconteceu, virou manchete'' - precedeu o lançamento e
acompanhou por décadas a revista que chegou a ter tiragem de milhões de
exemplares nos anos 80. [...] Essencialmente carioca, numa época em que o
Rio era capital do Brasil e irradiava notícias e cultura para o país, a ''Manchete'',
com foco no fotojornalismo, chegou ao mercado das revistas semanais
ilustradas com qualidade gráfica superior à da sua principal concorrente, ''O
Cruzeiro''. [...] A nova publicação passou a atrair anunciantes interessados em
divulgar seus produtos em cores, quando a recém-inaugurada televisão
veiculava imagens em preto e branco. A revista contava com colunistas de
peso, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Fernando
17 Disponível em <http://acervo.estadao.com.br/noticias/personalidades,euclides-da-cunha,942,0.htm>.
Acesso em Jul. 2017. 18 Disponível em <http://acervo.oglobo.globo.com/rio-de-historias/com-cruzeiro-chega-as-bancas-
moderno-jornalismo-brasileiro-8883281>. Acesso em Jul. 2017.
23
Sabino. [...] Com a falência do Grupo Bloch Editores, em 2000, a revista
''Manchete'' deixou de circular. [...] Posteriormente, ela foi comprada pelo
empresário Marcos Dvoskin e relançada em 2002 com o nome ''Manchete
Editora'', sem periodicidade fixa e apenas com edições especiais (O GLOBO,
2017, ARQUIVO ELETRÔNICO19).
Segundo Cristiane Costa (2005), os jornais brasileiros foram influenciados pelo
movimento americano New Journalism, que contou com jornalistas como Gay Talese,
Hunter Thompson e Truman Capote escrevendo suas reportagens utilizando técnicas do
romance realista, nos anos de 1960. “Se a experimentação formal já era permitida no
espaço exíguo da crônica assinada, passou a ser autorizada nos suplementos culturais, nas
reportagens de comportamento e, dependendo do jornal, até nas matérias de polícia”
(COSTA, 2005, p. 269).
Tom Wolfe, um dos integrantes do movimento literário, evidencia a influência da
literatura realista na produção das reportagens do grupo:
Se se acompanha de perto o progresso do Novo Jornalismo ao longo dos anos
60, vê-se acontecer uma coisa interessante: os jornalistas aprendendo do nada
técnicas do realismo – especialmente do tipo que se encontra em Fielding,
Smollett, Balzac, Dickens e Gogol. Por meio da expectativa e erro, por
“instinto” mais que pela teoria, os jornalistas começam a descobrir os recursos
que deram ao romance realista seu poder único, conhecido entre outras coisas
como seu ‘imediatismo’, sua ‘realidade concreta’, seu ‘envolvimento
emocional’, sua qualidade ‘absorvente’ ou ‘fascinante’ (WOLFE, 2005, p. 53).
Os veículos que se destacaram no âmbito dessa busca foram o O Jornal da Tarde,
do Grupo Estado, e a revista Realidade, da Editora Abril. Segundo Medina (1988, p. 116),
O Jornal da Tarde tinha como traço predominante o processo narrativo dos fatos
jornalísticos. Ou seja, havia muito mais preocupação do periódico em narrar do que relatar
fatos ou tipos.
O Jornal da Tarde marcou sua imagem nesta forma de angular o fato
jornalístico, daí as figuras reais, de caráter informativo, aparecerem como
personagens de ficção e o relato dos fatos se transformar numa narrativa cena
por cena das situações vividas por estes tipos. A força emotiva substitui a força
objetiva, cronológica, do acontecer, [...] A linha de humanização se define em
fazer viver para compreender e tratar de, acima de tudo, emocionar (MEDINA,
1988, p. 116).
O Jornal da Tarde circulou na imprensa brasileira por 46 anos. A última edição do
periódico foi em outubro de 2012. Os motivos do fim foram a redução de gastos do Grupo
Estado e o investimento na plataforma digital.
Já a revista Realidade circulou durante o período do Golpe de Estado no Brasil, a
partir de 1964. Apesar do pouco tempo nas bancas, a revista foi representativa para o
19 Disponível em <http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/dos-anos-50-aos-2000-revista-manchete-
imprimiu-sua-marca-ao-jornalismo-21204604>. Acesso em 13. jul. 2017.
24
jornalismo brasileiro, investindo na construção de reportagens que revelavam temas tabus
para a época, como a própria ditadura militar, o divórcio, a liberdade sexual, etc.
Mesmo com a resistência de uma década, o clima de repressão política provocou
várias reformas estruturais na revista que resultaram no seu fim, em 1976.
Realidade abre-se para o Brasil e para o mundo com uma proposta de cobertura
ambiciosa. Realiza mês a mês, em suas edições, a construção somativa de um
novo mapa da realidade contemporânea [...] Realidade ajuda o leitor a
descobrir o Brasil em suas múltiplas facetas nos diversos campos da atividade
econômica, da produção artística, da existência social, do comportamento
humano [...] Realidade não se prende ao fato do dia-a-dia, propõe sair da
ocorrência para a permanência. Seus temas não são os fatos isolados imediatos,
mas a situação. O contexto em que esses fatos se dão (PEREIRA LIMA, 2009,
p. 224-226).
Nos anos de 1980, os Estados Unidos, berço do movimento New Journalism,
vivenciaram uma crise da credibilidade da imprensa a partir de uma série de denúncias
de que jornalistas estariam produzindo reportagens inspiradas na literatura realista, mas
com histórias inventadas, ou seja, os jornalistas estariam criando fatos e personagens para
compor uma reportagem.
Na época, o jornalista John Hersey, autor do livro Hiroshima e ícone do New
Journalism, criticou essa farsa jornalística em um ensaio, reiterando que há uma regra
sagrada no jornalismo: o repórter não pode inventar.
O primeiro caso diagnosticado de reportagens com fatos inventados foi o da
repórter Janet Cooke, jornalista do The Washington Post, em reportagem intitulada
“Jimmy’s World”, sobre o cotidiano de um garoto de oito anos viciado em heroína.
A jornalista poderia ter ganho o Pulitzer de ficção, mas, em vez disso, foi
execrada. O affair Janet Cooke repercutiu em todo o mundo, por ter destruído
um dos pilares do jornalismo contemporâneo: o compromisso com o real.
Apesar de exemplarmente condenada pelos colegas e pela opinião pública,
casos semelhantes pipocaram na imprensa americana, ameaçando tornarem-se
epidêmicos (COSTA, 2005, p. 275).
Costa (2005, p. 283) relata ainda que para preservar as fronteiras entre fato e
ficção, vários órgãos de imprensa, como a revista New Yorker, acionaram departamentos
de fact-cheking20 para averiguar a veracidade das informações de suas reportagens. A
autora revela que até Truman Capote, um dos principais ícones do New Journalism, e sua
grande reportagem que depois se tornou o livro A sangue frio, passaram pelo crivo da
checagem.
Embora de forma não sistemática, o fact-cheking começou a ser aplicado em
1965, quando a New Yorker publicou a série de Truman Capote. [...] Um
20 O fact-checking é um dos principais temas do presente trabalho e será retomado adiante.
25
checador profissional foi enviado ao interior do estado de Kansas, onde o
escritor pesquisou durante seis anos o assassinato de um fazendeiro e sua
família, e voltou impressionado com o rigor no levantamento de dados (Costa,
2005, p. 283).
A partir dos anos 80, as grandes reportagens perdem espaço nos jornais e revistas
para reportagens menores. Ou seja, rápidas e com menor custo. Segundo Costa (2005), a
imprensa passa por um enxugamento dos custos e não quer mais pagar por gastos como
viagens e salários de um profissional caro que pode levar semanas para pesquisar, apurar,
estruturar e escrever uma reportagem. “Abalada pela crise de credibilidade que a onda de
reportagens fraudulentas e o próprio questionamento sobre o conceito de verdade
produziram, a imprensa se vê ainda atacada em outro flanco: seu papel de mediadora entre
o público e o real” (COSTA, 2005, p. 287).
Por volta dos anos 70, o jornalismo vivencia o “terceiro jornalismo” que segundo
Marcondes Filho, representa a era tecnológica. Para o autor, a nova fase mudará o papel
histórico do jornalista como um “contador de histórias” (repórter) e como um “explicador
do mundo” (analista e comentarista). As informações passam a ser fornecidas aos jornais
por agentes empresariais e públicos (assessorias de imprensa) e que se misturam e se
confundem com a informação jornalística.
Depois, a substituição do agente humano jornalista pelos sistemas de
comunicação eletrônica, pelas redes, pelas formas interativas de criação,
fornecimento e difusão de informações. São várias fontes igualmente
tecnológicas, que recolhem material de todos os lados e produzem notícias
(MARCONDES FILHO, 2000, p. 30).
O autor comenta que a informática muda a lógica do sistema de informação. Desta
forma, a forma de comunicação nunca mais será a mesma e o jornalismo precisou se
reinventar.
2.3 A voz participativa é credibilidade: a internet e as redes sociais
A chegada de computadores, internet e aparelhos celulares revolucionou a forma
de comunicação da sociedade e, consequentemente, transformou o trabalho da imprensa.
Segundo o teórico Michael Kunczik (2001, p. 207), parecia óbvio que a introdução dos
sistemas eletrônicos nas salas de redação afetaria o trabalho do jornalista. Mas,
inicialmente, a introdução das técnicas eletrônicas deixou quase intacta a atividade
jornalística.
Os profissionais ainda não saberiam dimensionar o impacto da era digital na
produção da notícia. A preocupação da época seria com o processamento e
26
armazenamento do texto que passaria a ser de forma eletrônica. Essa discussão está na
obra Conceitos de jornalismo, que teve a primeira edição em 1997.
Em relação às novas tecnologias, comprovou-se que a boa vontade para
trabalhar com elas dependia da facilidade do manuseio. Grande parte da
resistência foi eliminada através da experiência prática com as novas técnicas
[...] Em geral, os jornalistas não consideravam a nova tecnologia como uma
ameaça à qualidade de seus trabalhos jornalísticos (KUNCZIK, 2001, p. 215).
Porém, apesar da relação inicial amistosa entre o jornalismo e as novas
tecnologias, Kunczik (2001, p. 217) já advertia na época que os futuros jornalistas
deveriam, mais do que nunca, tomar consciência dos critérios de seleção de notícias. Os
jornalistas deveriam saber que a investigação eletrônica implicaria também na
dependência das informações produzidas por outros, provenientes quase sempre de fontes
desconhecidas. “Pois uma coisa é certa: a tecnologia não é boa nem má, mas também não
é neutra (Lei de Kranzberg)” (KUNCZIK, 2001, p. 218).
Provavelmente, Kunczik já estaria adiantando a verdadeira transformação que as
novas tecnologias provocariam na noção do que seria “notícia”. A principal delas é a
democratização da produção e circulação da informação, o que aconteceria mais tarde. Se
antes a imprensa tradicional – jornal impresso, televisão e rádio – exercia um controle
sobre o que poderia ou não ganhar status de notícia, com a era digital e o surgimento das
ferramentas de mídias sociais, a criação e o compartilhamento de informação passaram a
ser possíveis para qualquer pessoa online.
Um exemplo da revolução que as novas tecnologias provocaram no jornal
impresso foi apresentado no documentário “Primeira Página: Por dentro do New York
Times21”. No documentário, especialistas em comunicação analisaram a transição do
analógico para o digital e as suas consequências como a queda de 30% do faturamento
dos jornais americanos com publicidade, em 2009. Mais a queda de 17% em 2008.
Além disso, o documentário aborda que a imprensa tradicional, segundo o
professor de Novas Mídias da New York University, Clay Shirky, perdeu a exclusividade
de porta-voz da informação. Ou seja, a imprensa ganhou concorrentes desafiadores,
pessoas ou organizações que usam a plataforma digital para informar.
Uma delas é a organização WikiLeaks22, citada no documentário. O editor do
NYT, Bruce Headlam, reflete sobre a competição dos jornais com a organização. Para
21 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ogdbquO9xb4>. Acesso em 07. Mar.2018. 22 WikiLeaks é uma organização transnacional sem fins lucrativos que publica, em sua página na internet,
documentos, fotos e informações confidenciais, vazadas de governos ou empresas.
27
ele, a situação é uma colisão de dois mundos: o mundo velho, fechado, de especialistas e
informações confidenciais; e o novo mundo, que quer que tudo seja público. O velho e o
novo representa ainda uma analogia com o embate impresso X digital.
O teórico Jeff Jarvis, autor do livro What Would Google Do? (2009), também
comenta no documentário sobre a revolução da mídia e é categórico ao afirmar que o
modelo antigo do jornal está morrendo. Porém, a notícia não. Ela é muito mais barata
agora, porque podemos divulgar de novas formas, operar em plataformas
economicamente acessíveis e em redes.
O documentário chega ao fim de forma um pouco pessimista com a informação
que o NYT foi forçado a demitir 100 pessoas na redação devido à nova realidade digital,
porém o filme enxerga uma luz ao final do túnel quando também mostra o momento em
que o editor chefe, Bill Keller, anuncia que o jornal venceu, apesar da crise, o prêmio
Pulitzer de 2010.
No Brasil, o tema das transformações decorrentes do modelo digital nas principais
redações do país é recorrente nas discussões de congressos e seminários. Em 2018, a 13ª
edição do Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)
retomou o assunto na mesa “As mutações no comando nas redações”, com Daniela
Pinheiro (Revista Época), Sérgio Dávila (Folha de S. Paulo), Alan Grip (O Globo) e
Marcelo Beraba (Estadão).
Todos os participantes falaram sobre a revolução digital nas redações e suas
consequências para o jornalismo, desde as dificuldades na adaptação do digital até a
demissão de profissionais e o surgimento do “jornalista multitarefa”, aquele que além de
escrever matérias, precisa abastecer as redes digitais com fotos, vídeos, etc.
Os diretores reforçaram a necessidade do investimento em conteúdo de qualidade
para competir com as informações nas redes e para garantir a fidelidade do público. Ao
mesmo tempo isso é visto como um desafio diante das redações cada vez mais esvaziadas
devido às demissões.
Marcelo Beraba afirmou que o principal desafio é, justamente, fazer jornalismo
de qualidade com equipes cada vez menores e, em geral, mais jovens e menos experientes.
Já Sérgio Dávila afirmou que, em 2010, eram 480 jornalistas na redação da Folha. Hoje,
são 310. Porém, a equipe de repórteres especiais permanece com 20 profissionais.
O digital proporcionou mudanças estruturais nas redações. Dávila afirmou, por
exemplo, que, em 2010, as redações da Folha online e Folha imprensa competiam entre
si. A interação desses dois mundos tornou-se realidade a partir da unificação das marcas
28
e restruturação das editorias clássicas da Folha, com a inclusão do Núcleo de Inteligência
da Folha, que transforma dados em histórias, e o Núcleo de circulação e audiência, além
da TV Folha, que conta com vídeos.
O repórter passa a monitorar diferentes mídias, não apenas o impresso. As
mudanças refletiram na audiência que, segundo Dávila, 70% da audiência online da Folha
vem do móbile, porém, dos 35 milhões de leitores só 1% paga o conteúdo.
A busca de assinantes digitais é o novo desafio do jornal O Globo, explica Alan
Grip. O jornal tem um novo modelo de negócio cujo principal objetivo é ser sustentado
pelas assinaturas e não mais pelos anunciantes. Com isso, o jornal investe em conteúdo
de qualidade que, segundo Grip, é o que gera novas assinaturas.
A nova era digital proporcionou a criação de um novo projeto gráfico e editorial
que unificou as redações da revista Época e dos jornais O Globo e Valor Econômico,
explicou Daniela Pinheiro. Agora, o assinante recebe os três produtos em casa.
São inegáveis as transformações que o digital acarretou na forma como
consumimos notícias. Na obra Cultura da convergência (2012), Henry Jenkins classifica
as mídias tradicionais como “passivas” e as mídias atuais como “participativas e
interativas”, porém elas interagem no que o autor denomina como “cultura da
convergência”: “cultura da convergência, onde as velhas e as novas mídias colidem, onde
mídia corporativa e mídia alternativa se cruzam, onde o poder do produto de mídia e o
poder do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis” (JENKINS, 2012, p. 29).
Para o autor, novas e antigas mídias interagem de forma cada vez mais complexa
e produtores e consumidores de mídia tornam-se participantes que interagem de acordo
com um novo conjunto de regras, que nenhum de nós entende por completo.
Porém, é certo que “nem todos os participantes são criados iguais. Corporações –
e mesmo indivíduos dentro das corporações da mídia – ainda exercem maior poder do
que qualquer consumidor individual ou mesmo um conjunto de consumidores”
(JENKINS, 2012, p. 30). O que permite afirmar que ainda não existe a democratização
da mídia por completo. Mesmo assim, Jenkins acredita que a “inteligência coletiva pode
ser vista como uma fonte alternativa de poder midiático” (2012, p. 30).
Essa fonte alternativa surge em um momento histórico apontado pelo autor em
que nossos vínculos com antigas formas de comunidade social estão se rompendo e nossas
alianças com Estados-nações estão sendo redefinidas. As novas formas de comunidade
que surgiram são definidas por afiliações voluntárias, temporárias e são reafirmadas
29
através de investimento emocionais e empreendimento intelectuais comuns (JENKINS,
2012, p. 57).
Com o crescimento e fortalecimento dessas comunidades digitais, a informação
que circula nesse meio ganha relevância e, a partir disso, surge a preocupação sobre a sua
veracidade. “Mas as comunidades devem realizar um atento escrutínio de qualquer
informação que fará parte de seu conhecimento compartilhado, já que informações
errôneas podem levar a concepções cada vez mais errôneas” (JENKINS, 2012, p. 57). Ou
seja, o autor estaria prevendo a situação atual de descontrole de compartilhamento de
informação falsas por grupos virtuais.
Jenkins afirma que a sociedade ainda está aprendendo como exercer o poder da
comunicação individual ou coletiva. Por isso, não há garantias de que usaremos esse
poder com mais responsabilidade do que os Estados-nação ou as corporações. “Parte do
que precisamos fazer é descobrir como – e por que – grupos com diferentes formações,
projetos, pontos de vistas e conhecimentos podem se ouvir e trabalhar juntos pelo bem
comum. Temos muito a aprender” (2012, p. 328).
O autor afirma ainda a importância do fim da concentração do poder na mídia. Ele
reitera que a concentração é ruim porque coloca as indústrias acima das demandas dos
consumidores e reduz a diversidade de vozes. Jenkins argumenta, por fim, que uma
cultura midiática participativa é um objetivo pelo qual vale a pena a luta.
A cultura da convergência é altamente produtiva: expandir os potenciais para
a participação representa a maior oportunidade para a diversidade cultural. [...]
Os consumidores terão mais poder na cultura de convergência – mas somente
se reconhecerem e utilizarem esse poder tanto como consumidores quanto
como cidadão, como plenos participantes de nossa cultura (2012, p. 343).
O teórico Clay Shirky (2008; 2011) – o mesmo que participa do documentário
sobre o NYT – estuda, justamente, as transformações na sociedade após o advento das
novas tecnologias.
Na época em que a população on-line era pequena, a maioria das pessoas que
você conhecia na vida diária não fazia parte dela. Agora que computadores e
telefones cada vez mais computadorizados foram amplamente adotados, toda
a noção de ciberespaço está começando a desaparecer. Nossas ferramentas de
mídia social não são uma alternativa para a vida real, são parte dela. E,
sobretudo, tornaram-se cada vez mais os instrumentos coordenadores de
eventos no mundo físico (SHIRKY, 2011, p. 37).
Para o autor, diante das redes sociais, a sociedade resgatou a cultura de um
comportamento mais participativo. Encontros locais, eventos e performances ou o
30
simples hábito de criar algo com outras pessoas em mente e então compartilhá-lo
representa um eco de um antigo modelo com uma roupagem tecnológica.
Estamos vivendo em meio a um extraordinário aumento de nossa capacidade
de compartilhar, de cooperar uns com os outros e de empreender ações
coletivas, tudo isso fora da estrutura de instituições e organizações tradicionais
[...] Ao facilitar a formação espontânea de grupos e a contribuição individual
para os esforços em grupo sem exigência de gestão formal (e os custos
operacionais que a acompanham), essas ferramentas alteraram de maneira
radical os antigos limites de tamanho, sofisticação e alcance do esforço não
supervisionado. [...] Como seria de se esperar, quando o desejo é grande e os
custos são mínimos, o número desses grupos dispara, e os tipos de efeito que
eles provocam no mundo estão se espalhando (SHIRKY, 2008, p. 24).
Esse fenômeno abalou a estrutura consolidada da imprensa, justamente, pela perda
do controle das informações que se tornam notícia. Só seria notícia o que o editor-chefe
de algum veículo priorizasse, por exemplo. Com as redes sociais, um conteúdo publicado
por um amador pode gerar inúmeros compartilhamentos e interações e alavancar o mesmo
status. A partir disso, surgiu o que Shirky (2008) intitula de “amadorização em massa” da
comunicação.
A mudança não consiste na substituição de um tipo de instituição noticiosa
por outro; está na definição de notícia: esta deixa de ser uma prerrogativa
institucional para ser parte de um ecossistema de comunicações, ocupado por
uma mistura de organizações formais, coletivos informais e indivíduos. (2008,
p. 60).
O teórico questiona o papel da sociedade diante desta revolução. Para ele, já é
certo que os antigos limites da mídia tradicional foram reduzidos radicalmente, como já
é certo que a democratização da informação permite a mobilização social por uma causa
ou por alguém.
Qualquer acontecimento humano, por mais improvável que seja, vê sua
probabilidade crescer numa multidão [...] Novos mecanismos de comunicação
estão agregando nossa capacidade individual de criar e compartilhar em níveis
inéditos. [...] Como cada vez mais produzimos e compartilhamos mídia,
precisamos reaprender o que cada palavra pode significar. [...] Nossa
capacidade de equilibrar consumo, produção e compartilhamento, nossa
habilidade de nos conectarmos uns aos outros, estão transformando o conceito
de mídia, de um determinado setor da economia em mecanismo barato e
globalmente disponível para o compartilhamento organizado (SHIRKY, 2011,
p. 29).
Porém, Shirky (2011) questiona: “Quem define que tipo de causa é certo?”. Pode-
se acrescentar também: Quem define o que é verdade e o que não é? Até porque, com
inúmeros produtores de conteúdo, uma versão pode ganhar status de fato ou verdade, o
que torna as redes sociais um ambiente favorável para a difusão de informações nutridas
por opiniões que ganham relevância de fatos e, posteriormente, de notícias. A
31
consequência seria o surgimento de um novo fenômeno mundial provocado pelo digital,
a pós-verdade, que será discutido a seguir.
32
3 A ERA DA PÓS-VERDADE E FAKE NEWS
Neste capítulo, a discussão será sobre a pós-verdade e o fenômeno das notícias
falsas (fake news). É certo que a desinformação existe há muito mais tempo na sociedade,
porém o que a pesquisa pretende analisar é a desinformação como resultado e
consequência da revolução digital.
Como foi visto no capítulo anterior, as redes digitais enalteceram a cultura
participativa da sociedade em assuntos de interesse coletivo, algo positivo porque
promoveu a diversidade de vozes e decentralizou o poder da grande mídia como única
porta-voz da informação. Porém, o fenômeno abalou o conceito de verdade, já que
opiniões e fatos se confundem porque circulam no mesmo espaço digital, o que gera as
notícias falsas. Analisar esse cenário é entender como o jornalismo pode atuar para
combater essa desinformação.
3.1 O fenômeno da pós-verdade
O entendimento humano não se compõe de luz pura, pois é sujeito à
influência da vontade e das emoções, donde se pode gerar conhecimento
fantasioso; o homem se inclina a ter por verdade aquilo que prefere (Francis
Bacon).
Para Noah Harari (2018), os humanos sempre viveram na pós-verdade. Segundo
o autor, o Homo sapiens é uma espécie da pós-verdade, cujo poder depende de criar
ficções e acreditar nelas.
Somos os únicos mamíferos capazes de cooperar com vários estranhos porque
somente nós somos capazes de inventar narrativas ficcionais, espalhá‑las e
convencer milhões de outros a acreditar nelas. Enquanto todos acreditarmos
nas mesmas ficções, todos nós obedecemos às mesmas leis e, portanto,
cooperamos efetivamente (2018, p. 290).
O autor afirma que mitos serviram desde a idade da pedra para unir coletivos
humanos. A religião é um exemplo: “Temos zero evidência científica de que Eva foi
tentada pela serpente, que as almas dos infiéis ardem no inferno depois que morrem, mas
bilhões de pessoas têm acreditado nessas narrativas durante milhares de anos” (HARARI,
2018, p. 290).
33
O autor explica ainda que cada nação cria sua própria mitologia nacional e
movimentos como o comunismo, fascismo e o liberalismo modelaram elaborados credos
para reforçar ideias e pensamentos:
Diz‑se que Joseph Goebbels, o maestro da propaganda nazista, e talvez o mais
realizado mago da mídia da era moderna, explicou seu método sucintamente
declarando que “uma mentira dita uma vez continua uma mentira, mas uma
mentira dita mil vezes torna‑se verdade” [...] A máquina de propaganda
soviética foi igualmente ágil com a verdade, reescrevendo a história de tudo,
desde guerras inteiras até fotografias individuais [...] Além de religiões e de
ideologias, empresas comerciais também se apoiam em ficção e fake news.
Divulgar uma marca envolve recontar a mesma narrativa ficcional várias
vezes, até as pessoas ficarem convencidas de sua veracidade (HARARI, 2018,
p. 294).
Ao trazer o jornalismo à tona, Eugênio Bucci (2018, p. 23) afirma que a mentira nua e
crua não escapa à profissão:
A mentira de imprensa é tão antiga quanto a imprensa. Quando olhamos os
jornais da virada do século XVIII para o século XIX na Europa e nos Estados
Unidos, vemos um festival de calúnias e xingamentos sem nenhum
compromisso com o equilíbrio, a ponderação e a objetividade. Os diários que
conquistaram na prática a liberdade de imprensa primavam pela violência da
linguagem e mentiam à vontade. A qualidade jornalística, não custa lembrar,
só veio como consequência do exercício da liberdade, não o contrário.
Noah Harari (2018) afirma que as histórias falsas têm uma vantagem intrínseca
em relação à verdade quando se trata de unir pessoas. Foi exatamente o que aconteceu
quando notícias falsas que circularam nas redes sociais impulsionaram grupos a favor da
saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit23, em 2016. Além do triunfo de Donald
Trump24, o candidato que manteve um discurso mentiroso durante a campanha
presidencial dos Estados Unidos, no mesmo ano.
23 A campanha a favor da saída do Reino Unido da União Europeia triunfou com slogans que eram
comprovadamente não verdadeiros ou enganosos. Como a informação falsa que afirmava que a
permanência custava 350 milhões de libras por semana aos cofres públicos e que o dinheiro após a eventual
saída do bloco seria destinado ao serviço público de saúde. Disponível em
<http://www.bbc.com/portuguese/internacional-3799816>. Acesso em 16. Mai. 2018. 24 Pesquisa de cientistas políticos americanos analisou qual foi o impacto das fake news sobre o eleitor dos
EUA. A partir dos resultados, os cientistas políticos observaram que um número considerável de eleitores,
27%, leu pelo menos uma notícia falsa no período analisado. Nesse universo, os pesquisadores
identificaram que os usuários simpatizantes de Trump eram mais propensos a visitar sites identificados
como disseminadores de fake news. Os pesquisadores afirmam ainda que leitores de notícias falsas têm
bom conhecimento de assuntos relacionados à política. Portanto, afirmam os autores, é impreciso associar
o consumo desse tipo de informação a uma suposta ignorância sobre política. O que é possível afirmar é
que as fake news têm mais aderência entre eleitores com posicionamentos políticos mais extremados. Artigo
sobre a pesquisa disponível em <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/01/14/Qual-o-impacto-
das-fake-news-sobre-o-eleitor-dos-EUA-segundo-este-estudo>. Acesso em 16.Mai. 2018.
34
O tema impulsionou ainda o dicionário de Oxford a eleger a “pós-verdade” como
a principal palavra do ano de 2016. O dicionário assim definiu a pós-verdade25: adjetivo
que se relaciona a ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência
em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais (Tradução
nossa).
Para Chistian Dunker, um dos autores da obra Ética e Pós-verdade (2017), a pós-
verdade seria uma espécie de segunda onda do pós-modernismo, em que havia o
relativismo cultural da verdade:
A versão contemporânea da pós-verdade retoma, de maneira modificada,
vários aspectos pré-modernos da verdade, ou seja, uma verdade inflacionada
de subjetividade, mas sem nenhum sujeito. Uma verdade que é moralmente
potente, mas que não produz transformações éticas relevantes. Uma verdade
que se confunde com os processos sociológicos de individualização, com as
prerrogativas estéticas do gosto e com a força política das religiões (DUNKER,
2017, p. 18).
Para Matthew D’Ancona, autor do livro Pós-verdade: a nova guerra contra os
fatos em tempos de fake news (2018), os principais autores do pós-modernismo
questionaram a noção de realidade objetiva e desgastaram a noção de verdade:
Os filósofos pós-modernos preferiam entender a linguagem e a cultura como
“constructos sociais”; ou seja, fenômenos políticos que refletiam a distribuição
de poder através de classe, raça, gênero e sexualidade, em vez de ideais
abstratos de filosofia clássica. E se tudo é um “constructo social”, então, quem
vai dizer o que é falso? O que impedirá o fornecedor de “notícia falsa” de
afirmar ser um obstinado digital combatendo a “hegemonia” perversa da
grande mídia? (D’ANCONA, 2018, p. 85).
Dunker (2017) chama atenção ainda para a ascendência de um novo tipo de
irracionalismo que conseguiu recolocar na pauta temas como: o criacionismo contra o
darwinismo, a relatividade da “hipótese” do aquecimento global, a suspeita sobre a
indução e o autismo por vacinas e tantas outras teorias mais ou menos conspiratórias
diluídas por um novo estado da conversa em escala global, facultado de modo inédito
pelas redes sociais.
Dunker (2017) afirma que o nascimento da pós-verdade poderia ter sido em 2011
quando, diante do ataque às torres gêmeas de Nova York, a verdade das armas químicas
que justificaram o ataque ao Iraque mostrou-se como ficção. Assim, o relativismo cultural
da verdade foi subitamente invertido pelo real da guerra ao terror.
25 Adjective relating to or denoting circumstances in which objective facts are less influential in shaping
public opinion than appeals to emotion and personal belief.
35
Porém, a pós-verdade é investigada, principalmente, por meio do declínio do valor
da verdade na situação do Reino Unido (devido ao Brexit) e dos Estados Unidos (devido
à vitória de Trump). No artigo “Pós-política e corrosão da verdade”, Eugênio Bucci
afirma que “as democracias mais estáveis do planeta estariam ingressando numa era em
que os relatos sobre os acontecimentos perderam referência na verdade factual (ou
“verdade de facto”, ou, ainda, a verdade que se extrai da verificação honesta e do relato
fidedigno dos fatos e dos acontecimentos)” (2018, p. 22).
Desta forma, além de entender os contextos que permitiram a efervescência da
pós-verdade nesses países é possível fazer uma analogia com a realidade atual brasileira.
Até porque, como explica D’Ancona (2018, p. 38), o desmoronamento do valor da
verdade é uma tendência global.
Todas as sociedades possuem suas lendas fundadoras que as unem, moldam
seus limites morais e habitam seus sonhos futuros. Desde a Revolução
Científica e o Iluminismo, porém, essas narrativas coletivas competiram com
a racionalidade, o pluralismo e a prioridade da verdade como base para a
organização social. O que é novo é a extensão pela qual, no novo cenário da
digitalização e interconexão global, a emoção está recuperando sua primazia,
e a verdade, batendo em retirada.
Ainda segundo D’Ancona, a pós-verdade está relacionada com a degradação do
valor central do jornalismo – a verdade, porém a “verdade factual”. Eugênio Bucci (2018)
cita o termo “verdade factual” da filósofa Hannah Arendt para diferenciar o sentido da
“verdade” jornalística de outras verdades, como a filosófica por exemplo. Além disso,
Hannah ressalta que a verdade factual é frágil e mais vulnerável a falsificações e
manipulações.
D’Ancona (2018) afirma que o Brexit representou a política da pós-verdade em
seu estado mais puro: o triunfo do visceral sobre o racional, do enganosamente simples
sobre o honestamente complexo. Enquanto a chapa a favor da permanência apresentava
fatos e estatísticas que demostravam, por meio de números, as consequências negativas
para o Reino Unido caso se retirasse da União Europeia (950 mil empregos a menos;
queda do salário mínimo, etc.), a campanha a favor da saída priorizou a conexão emotiva
com as pessoas e apostou em promessas frágeis que criavam falsas expectativas nos
eleitores.
O que os partidários do Brexit entenderam envolveu a necessidade de
simplicidade e ressonância emocional: uma narrativa que dava significado
visceral a uma decisão que talvez parecesse técnica e abstrata. Como Dominic
Cummings, diretor de campanha do Vote Leave, favorável ao Brexit, sustentou
na época: o argumento a favor da saída tinha de ser claro e se apegar a
ressentimentos específicos do público (D’ANCONA, 2018, p. 27).
36
A prova da fragilidade das promessas foi a mudança do discurso da chapa
vencedora após o resultado do referendo a favor da saída do Reino Unido:
A rapidez com que os defensores do Brexit mudaram de posição a respeito
das promessas que tinham vencido foi de tirar o fôlego. No programa
jornalístico Newsnight, da BBC, um dia após o referendo, Daniel Hannan,
membro do Parlamento Europeu pelo Partido Conservador inglês, negou que
seu partido houvesse prometido ou insinuado que se daria uma redução drástica
na quantidade de imigrantes. “Nunca dissemos que aconteceria algum declínio
radical”, ele disse, para surpresa de Evan Davis, apresentador do programa
(D’ANCONA, 2018, p. 28).
Pode-se afirmar que não há nada de novo em um cenário onde políticos mentem
e enganam seus eleitores para conseguir votos. No entanto, explica Matthew: “a novidade
não é a desonestidade dos políticos, mas a resposta do público a isso. A indignação dá
lugar à indiferença e, por fim, à conivência” (D’ANCONA, 2018, p. 34).
Uma pesquisa realizada logo após o referendo mostra essa conivência dos ingleses
com as propostas obscuras vencedoras. De acordo com o instituto Opinium, em pesquisa
publicada em janeiro de 2017, 52% dos eleitores acreditavam que o Reino Unido tomou
a decisão correta ao sair da União Europeia.
Como foi visto, a eleição de Donald Trump, político republicano, também é
significativa para entender o fenômeno da pós-verdade. De acordo com o site Politifact,
que checa a informação e é ganhador do Prêmio Pulitzer, 69% das declarações de Donald
Trump durante a campanha presidencial foram “predominantemente falsas”, ou “falsas”
ou “mentirosas”. Para Trump, a história importava mais do que o fato e foi esse princípio
que norteou a sua campanha à Casa Branca, em 2016.
Em vez de alimentar à força o eleitorado com um inventário de fatos e detalhes
de seu currículo, ele bramiu uma narrativa que impôs, até certo ponto, uma
ordem bruta sobre as complexidades mutáveis da vida moderna. Ele foi
explicitamente desagregador ao prometer a proibição da imigração de
muçulmanos, um muro ao longo da fronteira com o México, um retorno ao
protecionismo econômico. No entanto, esse foi o ponto: oferecer à grande
massa de eleitores brancos uma série de inimigos contra quem eles poderiam
se unir, uma história na qual seriam capazes de desempenhar um papel e um
plano mítico de “Tornar a América Novamente Grande”. O efeito foi narcótico,
em vez de racional: melhor uma narrativa fantasiosa que parecia boa do que
nenhuma (D’ANCONA, 2018, p. 26).
Assim, não havia fatos na campanha de Trump, mas sim “fatos alternativos” e,
desta forma, o magnata foi eleito o 45º presidente dos Estados Unidos.
37
No Brasil, pesquisa26 publicada pela Fundação Friedrich Ebert – Brasil mostrou o
crescimento das novas direitas brasileiras, especialmente da extrema direita mais
antidemocrática, simbolizada no pensamento do deputado Jair Bolsonaro, candidato à
presidência do país nas eleições de 2018. Assim como Trump, o discurso de Bolsonaro
elegeu inimigos contra quem os brasileiros poderiam se unir. No caso, o candidato seria
a figura que combateria o “mal” que assola os brasileiros.
O contexto para o crescimento seria a junção de crises econômicas e políticas,
aliado com a centralidade cada vez maior da internet, que produz novos padrões de
sociabilidade e comportamento político. “As formas de organização online e seu impacto
radical na democracia, até com efeitos não esperados e muito desconcertantes como o
fenômeno das fake news ou boatos virtuais [...] para influenciar as preferências políticas
do eleitor” (SOLANO, 2018, p. 6).
Além de um discurso de ódio contra negros e minorias, comum ao presidente
americano, Bolsonaro apresenta sua própria interpretação da realidade. Ou seja, é um
exemplo do discurso da pós-verdade. Em entrevista27 para o programa Roda Viva, da TV
Cultura, em agosto de 2018, o presidenciável negou a existência do período histórico da
escravidão ao ser questionado sobre a dívida histórica que os países possuem com os
negros. “Se for ver a história realmente, os portugueses nem pisavam na África, eram os
próprios negros que entregavam os escravos”, afirmou, durante a entrevista.
3.2 O colapso da confiança na imprensa
Os sites conspirativos e a mídia social tratam com desdém os jornais
impressos ou a grande mídia, considerando-os a voz desacreditada de uma
ordem “globalista”; uma “elite liberal”, cujo tempo já passou
(Matthew D’Ancona).
Os políticos apoiadores do Brexit triunfaram com informações falsas porque
também contaram com uma crescente suspeita da população de que fontes tradicionais de
autoridades e informação eram duvidosas. “Esse colapso da confiança é a base social da
26 Disponível em <http://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/14508.pdf> Acesso em 13. Ago. 2018. 27 Disponível em <https://exame.abril.com.br/brasil/no-roda-viva-bolsonaro-questiona-escravidao-e-
cotas/>. Acesso em 13. Ago. 2018.
38
era da pós-verdade: todo o resto flui dessa fonte única e deletéria” (D’ANCONA, 2018,
p. 42).
Para D’Ancona, as dificuldades financeiras da mídia impressa na era digital,
juntamente com escândalos envolvendo meios de comunicação, colocaram em perigo a
confiança do público no jornalismo. O autor cita a controversa história sobre grampos
telefônicos ilegais que forçaram o fechamento do tabloide News of the World, na Grã-
Bretanha28, e os crimes sexuais do apresentador de TV e rádio da rede BBC, Jimmy
Savile29.
Já nos Estados Unidos, a revelação pelo New York Times de que um de seus
jornalistas, Jayson Blair, falsificara ou plagiara o conteúdo de 673 artigos ao longo de
quatro anos, reforçaram a descrença do público com os jornais. “Sem dúvida, não é por
acaso que o presidente Trump twitta rotineiramente que o New York Times está
“falhando”: ele sabe em quais organizações midiáticas mirar” (D’ANCONA, 2018, p.
45).
Trump ataca constantemente a grande imprensa americana ao acusar os jornalistas
de propagarem notícias falsas. Principalmente se as notícias são sobre as incongruências
do seu governo. Com isso, o presidente reforça a desconfiança dos americanos com o
jornalismo e propicia um ambiente fértil para as suas declarações infundadas. Para
D’Ancona, o presidente dos EUA escolhe sua própria verdade e define a verdade
investigada por jornalistas como fake news.
A questão não é determinar a verdade por meio de um processo de avaliação
racional e conclusiva. Você escolhe sua própria verdade, como se escolhesse
comida de um bufê. Também seleciona sua própria mentira, de modo não
menos arbitrário. Em um caso clássico de algo que os psicólogos chamam de
“espelhamento”, Trump – notório em sua campanha por suas mentiras –
começou a acusar seus críticos da mídia de espalhar “notícias falsas”
(D’ANCONA, 2018, p. 57).
No Brasil, Eugênio Bucci (2000) pontua momentos históricos em que a
credibilidade da mídia brasileira também foi posta em xeque pela sociedade. Segundo o
autor, a cobertura jornalística da Rede Globo distorceu e omitiu informações de
mobilizações populares ocorridas durante a campanha das diretas de 1984, das eleições
presidenciais de 1989 e pelo impeachment do presidente da república em 1992.
28Disponível em
<https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2011/07/110707_entenda_news_of_the_world_mm>. Acesso
em 15. Jun. 2018. 29 Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/06/140626_savile_abusos_fl>. Acesso
em 15. Jun. 2018.
39
O jornalismo da Rede Globo ignorou e, com isso, forçou os seus
telespectadores a ignorar – inúmeras passeatas e atos públicos que tomavam
conta do espaço público nacional. [...] A Globo foi a única? Não. Mas a sua
liderança impõe a ela o ônus de ser caso exemplar, sobretudo nos erros
(BUCCI, 2000, p. 30-31).
Durante as jornadas de junho de 201330 e, posteriormente, durante o impeachment
da presidente da república Dilma Rousseff31 em 2016, o Brasil viveu uma grande
instabilidade política que reverberou na insatisfação da população com a grande
imprensa. Parte da população defendia o impeachment da presidente que teria cometido
“pedaladas fiscais” (prática de adiar o repasse a bancos públicos de recursos a serem
distribuídos em programas governamentais).
O outro lado defendia que as “pedaladas” não seriam comprovação de
responsabilidade criminal e que o impeachment seria um golpe. Assim, os veículos que
apoiaram o impeachment de forma oficial ou não foram chamados de golpistas. O que
evidencia, mais uma vez, a perda da confiança na grande imprensa pelo público. Além
disso, a instabilidade política diante dos acontecimentos acima proporcionou um terreno
fértil para a era da pós-verdade no Brasil.
O portal brasileiro “Observatório da imprensa” foi um dos pioneiros na discussão
sobre o tema no Brasil, antes mesmo que a discussão sobre fake news se tornasse quase
rotina nos principais jornais brasileiros (isso aconteceu principalmente em 2018). No
Brasil, um dos pioneiros que realizaram uma reflexão crítica sobre o assunto foi o teórico
Carlos Castilho, que publicou artigos sobre o tema. No artigo intitulado “A desinformação
como estratégia política desafia o jornalismo”, o autor comenta sobre a campanha de
Trump para chegar à Casa Branca que foi movida por notícias falsas:
Desinformação é o processo pelo qual uma notícia falsa, parcialmente falsa,
conceitos distorcidos ou fatos fora de seu contexto são sistematicamente
difundidos por personalidades públicas e pela imprensa gerando a percepção
de que são informações confiáveis entre os consumidores de informações. Não
é um processo novo, pois sempre existiu na política, nos negócios e na
diplomacia como uma forma de tentar mudar a forma como as pessoas veem
personalidades, fatos, dados e eventos. Quem mais se aproximou do fenômeno
atual foi o chefe da propaganda nazista Joseph Goebbels que eternizou a frase:
“uma mentira repetida milhares de vezes vira uma verdade”. Donald Trump
vem seguindo este preceito ao pé da letra, tanto que nas semanas anteriores às
eleições norte-americanas do dia 8 de novembro [2016], a sua assessoria de
comunicação inundou a internet com 8,9 milhões de micro mensagens na rede
30 Disponível em <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/06/17/O-que-foram-afinal-as-Jornadas-
de-Junho-de-2013.-E-no-que-elas-deram>. Acesso em 15. Jun. 2018. 31 Disponível em <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/08/31/dilma-rousseff-perde-o-
mandato-de-presidente-da-republica-mas-mantem-direitos-politicos>. Acesso em 15. Jun. 2018.
40
Twitter, mais da metade das quais produzidas por robôs eletrônicos e 55%
delas disseminavam notícias falsas favoráveis ao então candidato republicano
(CASTILHO, 2016, ARQUIVO ELETRÔNICO32).
Em outro artigo, intitulado “Apertem os cintos: estamos entrando na era da pós-verdade”,
Castilho apresenta discussões pertinentes sobre o tema, além de provocar reflexões caras
e urgentes aos profissionais da imprensa:
A pós-verdade coloca para nós jornalistas o desafio de repensar a credibilidade
e os parâmetros profissionais para avaliar dados, fatos e eventos. Não é uma
casualidade o fato da credibilidade da imprensa, em países como os Estados
Unidos, estar hoje num dos pontos mais baixos de sua história. O leitor está
cada vez mais confuso e desconfiado em relação à imprensa. É uma resistência
intuitiva ao fenômeno da complexidade informativa gerada pela internet
(CASTILHO, 2016, ARQUIVO ELETRÔNICO33).
Mais para frente, o tema passa a ser debatido também pela imprensa brasileira,
enquanto casos de fake news se espalham pelo mundo. Destaque para a entrevista do
estudioso dos meios de comunicação, Gabriel Priolli, para a revista Carta Capital34 ao
comentar o caso do soterramento de uma criança chamada Sofia, após um terremoto no
México.
A imprensa tradicional mexicana divulgou o caso intensamente na busca por
audiência e as redes sociais amplificaram a notícia, mas depois se tornou público que
Sofia não existia e que a notícia seria falsa. Segundo Priolli, as notícias falsas podem ser
consideradas um fenômeno que precede a invenção da internet, porém, é certo que ganhou
forças e rapidez nas redes sociais, um produto da era digital:
Notícias falsas são tão antigas quanto a própria imprensa, que as publica por
equívoco ou mesmo intencionalmente, por algum interesse extra-jornalístico.
Não há dúvida de que a internet, em particular as redes sociais, elevou o
problema à enésima potência, na medida em que a sua lógica de monetização
dos conteúdos publicados se dá pelo volume de "cliques", o que levou à criação
de sites ou perfis dedicados exclusivamente a mentir ou distorcer informações.
Mas se a questão é a paternidade das fake news, ou no mínimo a antecedência,
a mídia tradicional está centenas de anos à frente da internet (PRIOLLI, 2017,
ARQUIVO ELETRÔNICO35).
Priolli (2017) reafirma a ideia de que a internet provocou um abalo na
credibilidade de grandes instituições e a mídia é uma delas:
32 Disponível em <http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/desinformacao-como-
estrategia-politica/>. Acesso em 09. Mar. 2018. 33 Disponível em <http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/apertem-os-cintos-
estamos-entrando-na-era-da-pos-verdade/> Acesso em nov. 2016. 34 Disponível em <https://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/midia-tradicional-a-mae-das-fake-
news>. Acesso em 17. Mai. 2018. 35 Disponível em <https://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/midia-tradicional-a-mae-das-fake-
news>. Acesso em 26.set.2017.
41
O entendimento mais geral é de que as instituições que se encarregavam de
formar consensos na sociedade, como escolas, ciência, justiça e mídia, foram
abaladas pelas novas dinâmicas sociais da era digital e enfrentam uma
desconfiança crescente. De outro lado, os algoritmos da internet não expõem
mais os indivíduos ao contraditório, soterrando-os em versões sempre
coincidentes dos fatos. Tudo isso, somado, produz incerteza e angústia no
cidadão comum, que o levariam a se aferrar às convicções mais arraigadas, em
busca de chão firme para pisar nesse mundo cada vez mais "líquido".
A citação “os algoritmos da internet não expõem mais os indivíduos ao
contraditório” representa as “bolhas”, ou seja, grupos online que compactuam com a
mesma forma de pensar e permanecem sem dialogar com o diferente. Com a quebra da
credibilidade da imprensa, as informações que circulam nas “bolhas” são fortalecidas e
ganham o status de verdade.
A teórica Pollyana Ferrari discute, justamente, como devemos enfrentar esse
problema com o livro Como sair das bolhas (2018). A autora afirma que os principais
estruturantes da informação do mundo analógico, colapsaram com as plataformas digitais,
transferindo poder e, ao mesmo tempo, responsabilidades informacionais aos indivíduos.
A sociedade do fluxo informacional, a velocidade das redes sociais, dos
aplicativos, tudo nos deixa inquietos, e a inquietude só causa prejuízos:
compartilhamos o que não lemos, aceitamos a sedução como verdade, pois ela
nos conforta no momento de angústia. [...] Quando paramos de duvidar? E
passamos a aceitar todas as declarações que recebemos? A emoção anda
presidindo a razão nesta era da pós-verdade tornando-se porta escancarada para
fake news e outras aberrações midiáticas (FERRARI, 2018, p. 47 e 51).
Um agravante na formação das “bolhas” é o surgimento das agências
especializadas na produção de notícias falsas com o objetivo de circular nesses espaços
online.
3.3 Agências de notícias falsas
a partir de 2013, várias agências de fake news começam a surgir em
diversos países aproveitando a facilidade de se produzir conteúdo sem
checagem, com baixo custo editorial, ou seja, sem investimentos em
redações, equipes de checagem, editores e, ainda, abusando de bots36,
algoritmos (softwares de inteligência artificial) criados para espalhar fake
news (pollyana ferrari)
36 Segundo a Universidade de Oxford, mais da metade do tráfego da internet é feito por bots, programas
que simulam ações humanas repetidas vezes e de maneira padrão. São capazes de fazer um tema se
transformar em tendência, atacar uma figura pública, espalhar um boato e, inclusive, ser importante arma
política. Disponível em <http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2018/02/fake-news-estudo-revela-como-
nasce-e-se-espalha-uma-noticia-falsa-na-web.html>. Acesso em 16. Mai. 2018.
42
Mais do que a emissão de opiniões na rede, a era da pós-verdade possibilitou o
surgimento de agências de notícias falsas. Ou seja, grupos que usam a plataforma digital
para divulgar notícias com informações inverídicas. O autor Matthew D’Ancona
denomina como “indústria da desinformação” as empresas que surgiram nos últimos anos
e que fazem propaganda enganosa.
Da mesma forma que a pós-verdade não é simplesmente outro nome para
mentira, essa indústria não tem nada a ver com as ações de lobby e as relações
corporativas legítimas. [...] Bem diferente é a difusão sistemática de mentiras
por organizações de fachada que atuam a favor de grupos de interesse que
desejam suprimir a informação precisa ou impedir que outros grupos ajam
contra eles. Como o jornalista investigativo Ari Rabin – Havt afirma: “Essas
mentiras são parte de um ataque coordenado e estratégico, planejado para
esconder a verdade, confundir o público e criar controvérsia onde nenhuma
antes existia” (D’ANCONA, 2018, p. 46).
D’Ancona relata ainda que a ascensão dessa indústria está relacionada com a
revolução digital devido ao fato que a internet representa um meio barato e rápido de
publicação, como Clay Shirky já havia observado em seu A cultura da participação
(2011).
No Brasil, o jornal Folha de S. Paulo e a revista Época publicaram reportagens
que revelaram como as agências de notícias falsas funcionam no Brasil. A reportagem de
Fabio Victor para a Folha mostrou o tamanho da visibilidade desses portais que consegue
ser maior do que a de veículos tradicionais, como é o caso do portal “Pensa Brasil37”.
Sites lucram com a venda de anúncios. Quanto maior a audiência da página,
mais ela ganhará com publicidade. Segundo a empresa comScore, que mede
audiência digital, o Pensa Brasil teve em dezembro passado 701 mil visitantes
únicos, com média de três páginas vistas por visita (ou seja, 2,1 milhões de
páginas vistas/mês). Jornal mineiro mais acessado na web, o "Estado de
Minas" teve no mesmo mês 2 milhões de visitantes únicos e 16 milhões de
páginas vistas (VICTOR, 2017, ARQUIVO ELETRÔNICO38).
Com o título “O Exército de pinóquios”39, da jornalista Helena Borges, a revista
Época mostrou como operam dez dos maiores sites de notícias falsas do país, pagos até
com verba de gabinete para disseminar boatos. Entre eles, o portal “Gospel Prime”, um
site evangélico40 com média de quase 2,8 milhões de leitores ao mês.
37 https://pensabrasil.com/ 38 Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/02/1859808-como-funciona-a-
engrenagem-das-noticias-falsas-no-brasil.sht>. Acesso em 16. Mai. 2018. 39 Disponível em <https://epoca.globo.com/amp/brasil/noticia/2018/04/o-exercito-de-
pinoquios.html?__twitter_impression=true>. Acesso em 17. Mai. 2018. 40 A relação entre religiões fundamentalistas e o compartilhamento de notícias falsas foi tema de uma
pesquisa que mostrou que pessoas que são dogmáticas ou religiosas são mais propensas a acreditar em
43
O Movimento Brasil Livre (MBL)41 é outro exemplo de grupo que propaga
notícias falsas na internet. O movimento é formado por jovens que usam a internet como
ferramenta para a mobilização popular. Inicialmente, o grupo organizou manifestações
contra a reeleição da presidente Dilma Rousseff, em 2014. Hoje em dia, costuma se
posicionar sobre diversos assuntos políticos, religiosos, culturais e sociais.
Um levantamento42 feito pela Associação dos Especialistas em Políticas Públicas
de São Paulo (AEPPSP) identificou os maiores sites de notícias do Brasil que disseminam
informações falsas, não-checadas ou boatos pela internet. Segundo a pesquisa, os sites
com mais notícias falsas compartilhadas são o “JornaLivre” e o “Ceticismo Político”, que
contam com a página do MBL como seu principal canal de distribuição.
O levantamento mostrou ainda características em comum dos sites que
disseminam notícias falsas: foram registrados com domínio .com ou .org (sem o .br no
final), o que dificulta a identificação de seus responsáveis com a mesma transparência
proporcionada ou permitida pelos registros no Brasil. Não possuem qualquer página
identificando seus administradores, corpo editorial ou jornalistas. Quando existe, a página
'Quem Somos' não diz nada que permita identificar as pessoas responsáveis pelo site e
seu conteúdo. As "notícias" não são assinadas e são cheias de opiniões — cujos autores
tão pouco são identificados — e discursos de ódio (haters). Os sites com notícias falsas
possuem nomes parecidos com os de outros sites jornalísticos ou blogs autorais já bastante
difundidos. Seus layouts deliberadamente poluídos e confusos fazem com que pareçam
grandes sites de notícias, o que confere a eles credibilidade para usuários mais leigos. São
repletos de propagandas (ads do Google), o que significa que a cada nova visualização o
dono do site recebe alguns centavos (estamos falando de páginas cujos conteúdos são
compartilhados dezenas ou centenas de milhares de vezes por dia no Facebook).
3.4 O jornalismo e as notícias falsas.
A solução seria reduzir o ritmo, gastar mais tempo na verificação e
contextualização das informações para evitar que o fenômeno das fake news
notícias falsas. Disponível em <http://www.niemanlab.org/2018/05/people-who-are-delusional-dogmatic-
or-religious-fundamentalists-are-more-likely-to-believe-fake-news/>. Acesso em 30.mai.2018. 41 Disponível em <http://mbl.org.br/>. Acesso em 30. Mai. 2018. 42 Disponível em <https://www.issoenoticia.com.br/artigo/projeto-da-usp-lista-10-maiores-sites-de-falsas-
noticias-no-brasil)>. Acesso em 26.set.2017.
44
assuma proporções catastróficas comprometendo ainda mais a credibilidade
da imprensa (José Castilho).
Com a era digital em que cada um pode ser um produtor de conteúdo, as pessoas
parecem não precisar mais de um veículo que informe\forme sobre os acontecimentos
políticos, econômicos e sociais. Assim, as redes passam a ser uma das principais formas
de receber e transmitir informações. Neste mundo, como afirma abaixo Clay Shirky
(2008, p. 72-75), é difícil separar o que é privado, público, opinião ou fato:
A paisagem da mídia transformou-se, porque comunicação pessoal e
publicação, antes funções separadas, agora se confundem. Um resultado é a
ruptura do velho padrão de separação profissional entre o bom e o medíocre
antes da publicação; agora essa filtragem é cada vez mais social e acontece a
posteriori. [...] Muita coisa criada a cada dia é apenas a matéria comum da vida
– mexerico, breves informações, pensamentos em voz alta -, mas agora isso é
feito no mesmo meio que material profissionalmente produzido.
Com tantas opções disponíveis, o que poderia ser considerado uma “liberdade
intelectual”, na verdade, se torna um terreno fértil para a chegada de novos líderes para
tomar o espaço vago da imprensa descredibilizada.
A pós-verdade possibilitou diferentes reflexões sobre o ato de fazer jornalismo,
principalmente sobre a credibilidade e a veracidade das informações jornalísticas diante
das inúmeras versões, opiniões e notícias falsas disponíveis nas redes sociais.
No Brasil, pesquisa43 de 2017 mostra que 80% dos brasileiros acreditam nas
informações que veem ou leem na internet (Google) e nas redes sociais Facebook e
Twitter. Além das informações que circulam no aplicativo de conversa Whatsapp. A
plataforma é uma das mais usadas para a difusão de notícias falsas. Em consequência
disso, em 2017, o aplicativo publicou um guia44 para ajudar os usuários a se protegerem
do conteúdo falso.
Um caso brasileiro emblemático sobre o compartilhamento de notícias falsas no
aplicativo Whatsapp foi após o assassinato45 da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle
Franco (PSOL). A morte da vereadora dividiu a opinião pública brasileira. De um lado,
partidos políticos esquerdistas afirmavam que a vereadora foi assassinada devido às suas
lutas a favor dos direitos humanos em comunidades dominadas por traficantes e
43 O instituto de pesquisa MDA ouviu 2002 pessoas entre os dias 7 e 11 de fevereiro de 2017, em 138
municípios do país. A margem de erro da pesquisa é de 2,2 pontos percentuais, para mais ou para menos.
A pesquisa foi divulgada no dia 15 de fevereiro de 2017. Disponível em:
<http://www.valor.com.br/empresas/4870574/no-brasil-80-acreditam-no-que-leem-nas-redes-
sociais-diz-pesquisa>. Acesso em 30. Mai. 2018. 44 Anexo 3. 45 Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/15/politica/1521126920_282592.html>. Acesso
em 30. Mai. 2018.
45
milicianos. Já grupos direitistas afirmavam que a vereadora seria mais uma vítima da
violência do Rio de Janeiro.
No meio da discussão acalorada nas redes, informações falsas sobre Marielle
tentaram associar a vereadora ao tráfico. Assim, textos circularam afirmando que a vítima
seria ex-mulher do traficante Marcinho VP. Uma pesquisa46 inédita feita pela
Universidade de São Paulo (USP) mostrou que metade dos boatos que circularam no
Whatsapp sobre a vereadora carioca foi em grupos de família. Os boatos sobre Marielle
começaram a ser espalhados pelo Whatsapp na mesma noite em que ela foi assassinada.
Nos dias seguintes, foram parar nas redes sociais Twitter e Facebook.
Neste mar de informações sem credibilidade, o jornalismo é pautado, muitas
vezes, para desmentir os boatos. Não foi diferente no caso Marielle. Os jornais e as
agências de checagem produziram matérias negando o envolvimento da vereadora com o
traficante e outras mentiras sobre a vereadora. Antes mesmo deste caso, o jornalismo
produziu matérias47 para mostrar boatos que iniciaram na internet, ganharam repercussão
e precisaram ser desmentidos. Mentiras disfarçadas de notícias como: “Governo vai
confiscar as poupanças da Caixa Econômica Federal”, “Bolsa Família será cancelado pelo
governo” ou “Enem será cancelado”.
Entretanto, o jornalismo não tem a função de apenas noticiar sobre os boatos ou
ser porta-voz das autoridades públicas para desmenti-los. É preciso ir além para combater
esta corrente de informações inverídicas.
Diante da pós-verdade, o ato de repensar a credibilidade e os parâmetros
profissionais para avaliar dados, fatos e eventos torna-se imprescindível para a
sobrevivência do jornalismo, o que torna necessária ainda a discussão sobre o modo de
produção jornalístico, incluindo a etapa da investigação e apuração dos fatos.
É o que propõe a presente pesquisa ao analisar a forma como jornalistas
investigam a realidade diante da complexidade dos fatos e do emaranhado de versões
existentes. Como investigar a verdade no mundo da pós-verdade? Eis o verdadeiro desafio
jornalístico.
Inicialmente, a pesquisa tinha o objetivo de analisar o processo de criação da
revista piauí para compreender a produção da reportagem no Brasil. Entretanto, com o
surgimento da Agência Lupa e com a discussão efervescente e atual sobre a pós-verdade
46 Disponível em <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43797257>. Acesso em 30. Mai. 2018. 47 Disponível em <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2015/03/04/veja-5-boatos-que-
sairam-da-internet-e-geraram-resposta-das-autoridades.htm>. Acesso em 06. Jul. 2017.
46
e as notícias falsas, o trabalho ganhou novo sentido e ampliou seu horizonte para discutir
o papel da reportagem e da checagem como antídotos da desinformação.
Desta forma, é oportuno observar que o fenômeno da pós-verdade trouxe à tona a
necessidade de refletir criticamente sobre a prática jornalística e rememorou a antiga crise
que o campo vive diante da inclusão sem volta das novas tecnologias na comunicação.
Agora se vê diante da necessidade de rever seus modos de produção para enfrentar
as chamadas “fake news”, produtos da pós-verdade, e ainda reportar a complexidade do
mundo com veracidade.
Para isso, é necessário voltar um pouco atrás na história do jornalismo e reviver
algumas tradições esquecidas com a chegada das novas tecnologias. Um exemplo seria
uma apuração mais consistente e demorada, que priorize a explicação, contextualização
e reflexão da notícia, o chamado “Jornalismo Lento” ou “Slow News” ou “Slow
Journalism”. Há uma tendência no campo jornalístico para isso, como é o caso da revista
piauí, objeto de estudo deste trabalho, porém ainda existe resistência das empresas que
preferem o imediatismo da notícia, modelo de negócio já padronizado nas redações.
No artigo “”O jornalismo lento’ como alternativa à ‘montanha russa’ noticiosa48”,
Castilho problematiza esta escolha das empresas de comunicação e a justifica como
“estratégia política de controle da opinião pública” (Castilho, 2016), já que esta urgência
reduziria a capacidade do público de lidar com questões complexas e aumentaria a
predisposição a tomar como verdade incontestável o que é publicado na imprensa.
Voltando ao debate sobre fake news, no artigo intitulado “Das ‘fake news’ ao
fenômeno ‘Slow News’49”, Castilho expõe a relação entre a iminência da pós-verdade e
a necessidade de uma mudança de comportamento da cultura jornalística. O autor propõe
a diminuição do imediatismo da notícia que impossibilita a checagem de dados, fatos e
eventos. “A solução seria reduzir o ritmo, gastar mais tempo na verificação e
contextualização das informações para evitar que o fenômeno das fake news (jargão
americano) assuma proporções catastróficas comprometendo ainda mais a credibilidade
da imprensa” (CASTILHO, 2017).
48 Disponível em <http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/o-jornalismo-lento-como-
opcao/>. Acesso em Jul. 2016. 49 Disponível em <http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/das-fake-news-as-slow-
news/>. Acesso em Jan. 2017.
47
A seguir, a pesquisa analisará a rede de investigação da revista piauí e da agência
Lupa para evidenciar, justamente, o processo de criação da apuração e checagem
jornalística.
48
4. A REDE DE INVESTIGAÇÃO JORNALÍSTICA DO PROJETO PIAUÍ
Após a exposição do fenômeno da pós-verdade e das notícias falsas no capítulo
anterior, neste capítulo será apresentada a rede de criação da revista piauí com o objetivo
de entender os procedimentos usados pelos repórteres da revista para a produção da
grande reportagem.
O intuito é discutir o jornalismo sob a perspectiva de seus processos de produção
e, principalmente, compreender e analisar os requisitos propostos pela revista na fase da
apuração e da construção do texto. No próximo capítulo, a análise será dos procedimentos
usados pela agência Lupa para a realização da checagem.
4.1 A rede de investigação da revista piauí
Entender o processo criador do repórter – do surgimento da pauta até a publicação
da reportagem – pode ser um caminho para desvendar a produção jornalística e entender
o processo de investigação da realidade. Para analisar a rede de investigação da revista
piauí e da agência Lupa, o presente trabalho utilizará a crítica dos processo criativos
(SALLES, 2008; 2011; 2015).
É uma investigação que vê a obra de arte [objeto da pesquisa] a partir de sua
construção, acompanhando seu planejamento, execução e crescimento, com o
objetivo de melhor compreensão do processo de sistemas responsáveis pela
geração da obra. Essa crítica refaz, com o material que possui, a construção da
obra e descreve os mecanismos que sustentam essa produção. [...] Um artefato
artístico surge ao longo de um processo complexo de apropriações,
transformações e ajustes. O crítico procura entrar na complexidade desse
processo. A grande questão que impulsiona esses estudos é compreender a
tessitura desse movimento (SALLES, 2011, p. 22).
Salles (2015) também discutiu o jornalismo sob a perspectiva de seus processos
de produção no artigo O processo de produção jornalística em debate. O presente
trabalho seguirá essa perspectiva para mostrar o jornalismo como construção e, por isso,
um modo de fazer mutável e em permanente diálogo com o outro (seja a fonte, seja o
editor, seja o leitor). Além de um projeto passível à incerteza, ao erro e ao acaso.
Salles (2016) discute sobre a possibilidade de o jornalismo buscar a
experimentação como forma de inovar o que já foi estabelecido e determinado como
notícia. A experimentação do repórter seria o lugar para a análise dos erros e acertos do
processo da reportagem.
Como se vê, os grandes desafios do jornalismo, acirrados em meio à crise
econômica, se dão no enfrentamento de intenso abalo de certezas de seus
49
modos de produção que, por muito tempo, não foram questionadas; daí a
constatação da necessidade de experimentação, ou seja, levantamento de novas
hipóteses que viabilizem a entrada de outras possibilidades jornalísticas [...]
Seria necessidade de sujeitos que exploram brechas em nome da sobrevivência
do jornalismo (2016, p. 75).
Ainda Segundo Salles (2011), a criação é um gesto contínuo e está presente em
todas as etapas da produção. Sendo assim, não existe um momento específico da criação.
O “insight criativo” está, na verdade, dissolvido em todas as fases vencidas (ou não) pelo
agente criador. Desta forma, no jornalismo, as marcas da criação estariam presentes nas
primeiras ideias sobre a pauta, no momento da apuração, na construção do texto, na edição
e na escolha da versão para a publicação.
Os instrumentos de análise são chamados pela autora de “documentos de
processos que são registros materiais do processo criador. São retratos temporais de uma
construção que agem como índices do percurso criativo” (SALLES, 2011, p. 26). No caso
da presente pesquisa serão analisadas as entrevistas dos jornalistas da revista piauí e da
agência Lupa, além de reportagens e checagens. No momento da conversa, cada repórter
da revista escolheu duas reportagens para relatar sobre o processo criativo na construção
das mesmas. O mesmo aconteceu com a criadora da Agência Lupa que pode relatar sobre
a produção da checagem.
Um dos aspectos do conceito de criação apontado por Salles (2011) é o projeto
poético. Segundo a autora, em toda prática criadora há fios condutores relacionados à
produção de uma obra que, por sua vez, atam a obra daquele criador, como um todo.
Posteriormente, Salles (2016, p. 66) retirou a expressão “poético” para ampliar o
conceito para outros processos de criação, incluindo o jornalístico.
Projeto, nesse contexto, seriam princípios direcionadores, de natureza ética e
estética, presentes nas práticas das produções, relacionados a um trabalho
específico, assim como à postura geral daquele jornalista, artista ou
publicitário. São princípios relativos à singularidade do sujeito que produz.
Assim, o presente trabalho analisará o projeto piauí que inclui a revista piauí e a
agência Lupa. A escolha é devida à sua logística de produção que evidencia uma
preocupação com a apuração jornalística e, consequentemente, com a divulgação da
informação.
No cenário em que os produtores midiáticos priorizam a rapidez e a aceleração da
produção da notícia, o projeto piauí busca o apuro extensivo das informações,
característica fundamental para combater a desinformação. A revista piauí é um exemplo
do modelo “Slow Journalism”, já que os jornalistas têm, em média, dois meses para a
50
produção de uma grande reportagem. Os repórteres usam este tempo para a apuração da
informação (entrevistas, pesquisas e viagens) e a produção do texto. O que será visto com
mais detalhes neste capítulo.
Como exemplo, em entrevista cedida para esta pesquisa, o repórter Bernardo
Esteves usa o termo “panorama exaustivo” para representar o trabalho de apuração das
reportagens da revista. Na piauí, não existe uma regra estabelecida, mas o resultado
sempre é uma grande reportagem (com a média de 20 páginas). Já na agência Lupa, a
checagem da informação é o diferencial oferecido ao público. É a partir dela que as pautas
são construídas e apresentadas ao leitor.
Para compreender cada etapa do processo, a análise será feita por meio da rede de
criação. Pierre Musso (2013) define a rede como uma estrutura composta de elementos
em interação; estes elementos são os picos ou nós da rede, ligados entre si por caminhos
ou ligações. Salles (2017, p. 117) acopla o conceito de interação presente na rede em toda
discussão do processo de criação:
A criação como rede por ser descrita como um processo contínuo de
interconexões, com tendências vagas, gerando nós de interação, cuja
variabilidade obedece a princípios direcionadores. Esse processo contínuo,
sem ponto inicial nem final, é um movimento falível, sustentado pela lógica da
incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para a
introdução de ideias novas.
A autora explica que as interconexões nos colocam no campo relacional. Desta
forma, toda ação está relacionada a outras ações de igual relevância, sendo assim um
percurso não linear e sem hierarquias. As interconexões geram os picos ou nós da rede,
elementos de interação ligados entre si, que se manifestam como os eixos direcionadores.
No caso da rede da revista piauí, o trabalho apresentará os seguintes nós: tempo de
investigação e narratividade.
4.2 A revista piauí
Para quem tem um parafuso a mais (slogan da revista piauí).
A revista piauí está no mercado jornalístico há mais de dez anos. A sua estreia foi
na Festa Literária de Paraty (Flip), em agosto de 2006, em uma edição número zero, que
51
circulou pela feira de literatura. O que sinaliza a relação do periódico com a narrativa
literária, já que as reportagens da revista são grandes narrativas de não ficção50.
A primeira publicação disponível nas bancas foi em outubro do mesmo ano. A
edição nº 1 contou com a colaboração dos jornalistas Vanessa Bárbara, Marcos Sá Corrêa,
Luiz MakLouf Carvalho, Dorrit Harazim e Mario Sérgio Conti. Além do cartunista
Angeli, do poeta Francisco Alvim e do próprio João Moreira Salles, o publisher da revista.
Na época desta pesquisa, entre os anos de 2016-2018, a equipe da revista era
formada pelos repórteres Consuelo Dieguez, Daniela Pinheiro, Bernardo Esteves, Malu
Gaspar, Paula Scarpin, Julia Duailibi, Tiago Coelho e João Brizzi. A publicação conta
ainda com colaboradores. O diretor de redação era o jornalista Fernando de Barros e Silva.
A edição era de responsabilidade de João Moreira Salles, Maria Emilia Bender, Rafael
Cariello e Armando Antenore. Além da revisora Luiza Barbara e da checadora de
apuração Luiza Miguez.
Em 2018, último ano da pesquisa, houve mudança no quadro de profissionais da
revista. A composição atual teria como Diretor de redação, Fernando de Barros e Silva, e
como editores João Moreira Salles, Maria Emília, Armando Antenore e Alcino Leite
Neto. O editor da piauí digital é José Roberto de Toledo. Os repórteres são: Allan de
Abreu, Alejandro Chacoff, Bernardo Esteves, Consuelo Dieguez, Fabio Victor Pimentel,
Malu Gaspar, Paula Scarpin, Roberto Kaz e Tiago Coelho. A checadora é Luiza Miguez
e os revisores são Luiza Barbara, Katia Regina e Rodrigo Rosa. Além do assistente de
revisão, Carlos Alberto Santos. A secretária de redação é Raquel Freire. Ainda há a
equipe da piauí digital: Camila Zarur, Kellen Moraes, Luigi Mazza, Vitor Hugo
Brandalise e Yasmin Santos.
Em comemoração aos seus dez anos de existência, em 2016, a revista publicou,
pela Companhia das Letras, o livro Tempos Instáveis51: o mundo, o Brasil e o jornalismo
em 21 reportagens da piauí. No prefácio da coletânea, o diretor da redação, Fernando de
Barros e Silva, contou um pouco da história da revista e relatou as peculiaridades que
permitiram a sua permanência no mercado jornalístico brasileiro. Segundo o diretor da
redação, a revista nasceu na contramão da era digital e na possível morte do jornalismo
impresso:
50 A narratividade da revista piauí representa um nó da rede que será apresentado adiante. 51 A obra reuniu reportagens com temas que representaram o país e o mundo nos últimos dez anos, tempo
de vida da revista. A Operação Lava Jato, que mudou os rumos da política brasileira nos últimos tempos; a
tragédia de Mariana, o maior desastre ambiental da história do país; o atraso das obras de transposição do
rio São Francisco; entre outros.
52
A piauí surgiu em outubro de 2006 como uma planta improvável, ou algo
exótica, na paisagem das publicações brasileiras. Já existia o consenso de que
o jornalismo impresso era uma atividade condenada - se não à morte imediata,
a um estrangulamento progressivo que o levaria a um triste fim.[...] Sob a
tirania do online e das redes sociais, o tempo da notícia passou a ser medido
em minutos, segundos, caracteres. [...] Na dinâmica entrópica da nuvem
digital, elementos que devem nortear o exercício do jornalismo profissional,
como o rigor da apuração, a hierarquia entre as notícias, o respeito às nuances
e à complexidade dos fatos, para não falar do compromisso com a busca da
verdade, parecem estar sob ameaça permanente, ou, pior, não ter mais
importância. Foi no ambiente de adensamento dessa nuvem que a piauí veio à
luz (BARROS E SILVA, 2016, p. 7).
Fernando chama a atenção na citação acima para atributos do jornalismo que,
segundo ele, foram esquecidos pelo jornalismo da era digital. Seriam eles: o rigor da
apuração, o respeito à complexidade dos fatos e a busca da verdade. A explosão das
notícias falsas no Brasil ainda não era uma realidade na época desta publicação. Porém,
percebe-se que a internet já era um ambiente propício para a desinformação.
Mesmo indo na contramão dos tempos, a revista piauí tem o seu perfil consolidado
no jornalismo brasileiro e também leitores fiéis. Em uma entrevista de 201752, João
Moreira Salles afirmou que a piauí possui um número de leitores que surpreende a ele
próprio:
Ela é uma revista que tem um teto, não é para 1 milhão de leitores. Mas ela
também não é uma revista para 5 mil leitores. Quando criei a piauí, fui
conversar com pessoas do meio, já que eu vinha do cinema, para ver um pouco
qual era a viabilidade de uma revista dessas. Me lembro de ter falado com duas
pessoas muito influentes no meio, que tocam importantes publicações. Uma
me disse que a revista, se tudo desse certo, teria 15 mil leitores, a outra me
falou em 5 mil leitores, que seria o tamanho dela em um mercado como o do
Brasil. A piauí tem muito mais do que isso, deve ter cerca de 100 mil leitores.
Ela tem perto de 25 mil assinantes, que são muito fiéis. Nossa taxa de retenção
(indicador que mede o percentual da base de clientes que se mantêm fiéis à
revista) é uma das mais altas da indústria, se não for a mais alta. As pessoas
que assinam a piauí continuam com a assinatura. Já em banca depende do que
a revista traz em determinado número, mas vende algo entre 12 mil e 17 mil
exemplares. Se você multiplicar isso por 1,8 ou 1,9 leitor por exemplar, você
chega a quase 100 mil leitores. Isso é bastante bom em termos de Brasil, que
não é um país essencialmente letrado (MOREIRA SALLES, 2017).
Segundo a auditoria do Instituto Verificador de Comunicação (IVC), a revista
piauí possui a tiragem de 55.600 exemplares e 24.016 assinaturas e 13.063 vendas
avulsas. Com o total de circulação paga de 37.079 exemplares.
52 Disponível em <https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2017/01/joao-moreira-salles-a-
gente-conta-o-mundo-as-pessoas-que-facam-com-ele-o-que-quiserem-depois-9326084.html>. Acesso em
Jan. 2017.
53
O atrativo da revista é o diálogo com a narrativa literária e cinematográfica, o que
será visto adiante, mas que não abre mão de uma apuração minuciosa das informações e
uma edição concisa. Algo que pode fidelizar o público em busca de boas histórias
verídicas. Tais especificidades da piauí foram destacadas pelo diretor da redação como o
carro-chefe da revista na citação abaixo:
À medida que a reportagem de fôlego foi se tornando mercadoria de luxo nas
redações, a charrete da piauí, à primeira vista tão na contramão do curso do
mundo, de certa forma reinventou a roda. A aposta na apuração paciente e
minuciosa, que requer coleta exaustiva das informações, contato demorado
com as personagens e capacidade de observação [...] representou um oásis no
semiárido da imprensa brasileira. Em boa medida, o resultado se deve também
ao processo de edição, mais intenso e mais invasivo do que costuma ser em
outros veículos. Mas editar, neste caso, significa tornar o texto mais claro e
mais preciso, a prosa mais fluente e a leitura mais agradável. Editar não se
confunde com editorializar, intervir na narrativa para que ela sirva a propósitos
políticos, obscuros ou explícitos, e não jornalísticos, como se tornou comum
em publicações do país, de forma caricata (BARROS E SILVA, 2016, p. 10).
A apuração paciente e minuciosa com coleta exaustiva das informações, contato
demorado com as fontes e capacidade de observação representam a identidade da revista
e são características essenciais para o enfrentamento das fakes news e da pós-verdade.
Além da investigação exaustiva, a proposta da piauí, desde o seu início, é
reconstituição dos assuntos já conhecidos. Ou seja, pautas que já tiveram grande impacto
na opinião pública, mas que foram esquecidas ou pouco exploradas pela imprensa. Apesar
de abordar um assunto velho, a reportagem traz a novidade (um furo) porque conta,
justamente, com uma apuração paciente que diversos veículos não possuem.
Nem todas as reportagens, portanto, contêm furos no sentido estrito, mas todas
estão cheias de novidades. As novidades derivam, em primeiro lugar, do
acúmulo de detalhes que haviam sido ignorados ou eram desconhecidos até
então; derivam, ainda, da capacidade de tornar inteligível, por meio de uma
narrativa coesa, com começo, meio e fim, uma história que os demais veículos,
premidos por urgências de toda sorte, apresentam em pedaços, em flashes ou
capítulos desconexos. O êxito de uma reportagem à moda piauiense, seja um
perfil ou não, depende, quase sempre, do vaivém entre as descrições das peças
e o funcionamento da engrenagem, da alternância entre a observação da árvore
e a capacidade de enxergar a floresta, de certa tensão que se sustenta no tempo
entre o particular e o geral, o miúdo e o abrangente (BARROS E SILVA, 2016,
p. 11).
4.3 A piauí no cenário do jornalismo brasileiro
Segundo o diretor da redação da piauí, os perfis políticos foram os responsáveis
por retirar a piauí de sua condição inicial de semiclandestinidade. Nomes como Fernando
Henrique Cardoso, Dilma Rousseff, Michel Temer, Eduardo Paes, Aécio Neves, João
54
Dória, entre outros, foram personagens de perfis da revista. No meio jornalístico, além
dos perfis, a forma de trabalhar da piauí foi o que mais chamou a atenção dos profissionais
da imprensa:
“Havia, na experiência piauiense, duas características cobiçadas e cada vez mais
raras: tempo para apurar e espaço para escrever. Além, claro, de independência editorial,
sem o que não se faz nada que valha a pena em jornalismo” (BARROS E SILVA, 2016,
p. 10).
Segundo Moreira Salles (2017), a revista chama a atenção ainda dos futuros
jornalistas e das universidades de comunicação: “O número de alunos de jornalismo no
Brasil que têm a piauí como modelo do que gostariam de fazer é muito grande. Tem muita
monografia e tese sobre a revista. Acho que isso tem uma certa relevância, sabe? Estou
feliz com a piauí do jeito que ela é”.
A revista é tema de várias pesquisas no campo da comunicação, especificamente
no jornalismo. No Portal de Livre Acesso à Produção em Ciências da Comunicação53 há
trabalhos que identificam marcas literárias na revista; outros que analisam o projeto
gráfico das capas. Os estudos revelam, de certa forma, a irreverência da revista no
jornalismo brasileiro. Além da qualidade da narrativa e da apuração jornalística. Já a
presente pesquisa buscou entender o processo de criação da grande reportagem a partir
da análise dos bastidores da produção dos repórteres da revista.
Para João Moreira Salles (2017), independente da plataforma papel ou digital, o
importante é manter o perfil de apuração extensiva que caracteriza a revista:
A New Yorker tem uma vida eletrônica muito importante hoje em dia, por
exemplo. Com o DNA já consolidado, a New Yorker pode mudar para o meio
eletrônico sem alterar suas características. Acho que isso vale também para a
piauí. Foi importante para a piauí nascer como papel, mas isso não significa
que ela precise continuar para sempre como papel, porque já tem uma cultura
instalada de fazer as reportagens como a gente faz, com tempo para os
repórteres apurarem as informações e escreverem.
A revista The New Yorker é uma das principais referências da piauí. Ela é uma
leitura habitual de seus repórteres e, muitas vezes, citada por eles como exemplo de uma
boa prática do jornalismo. A publicação americana foi a responsável pelo lançamento de
jornalistas como Truman Capote (A sangue frio) e John Hersey (Hiroshima). Autores do
movimento americano dos anos 60, New Journalism, em que os repórteres produziam
textos inspirados na Literatura Realista.
53 Disponível no site da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom).
55
O New Journalism, um dos pontos altos da interação entre o jornalismo e a
literatura, foi influenciado pelo movimento literário Realismo, que predominou a partir
da segunda metade do século XIX. O Realismo tinha como característica principal a ideia
de criação literária inspirada em fatos reais e o rompimento de ideais do movimento
literário Romantismo, que tinha a imaginação do autor como principal fonte de criação.
Outra característica da literatura realista é o afastamento da caracterização da figura do
herói e a busca por pessoas comuns, o que aproximou o movimento literário ao
jornalismo, já que muitos autores de ficção procuraram sua inspiração no cotidiano.
[...] no século XIX, a transição do movimento literário romântico para o
realista, que desejava mostrar o ser humano não em sua versão idealizada, mas
imerso na vida como ela é, incita os escritores do período a mergulharem no
cotidiano para trazerem elementos para sua obra ficcional. Nesse contexto, os
protagonistas deixam de ser heróis para surgir como pessoas comuns, com
altos e baixos, problemas e soluções. A adúltera Emma, protagonista de
Madame Bovary, do francês Gustave Flaubert (1821-1880), inaugura o
movimento, numa transição tão forte do romantismo que levou seu autor a
julgamento por ter ofendido os costumes da época (MARTINEZ, 2009, p. 74).
Também no século XIX, o movimento literário Naturalismo valorizou a realidade
e suas figuras humanas. “À maneira do cientista, o escritor naturalista deveria trabalhar
como se realiza uma experiência: depois de observada a vida social, dispor personagens
em um campo de ação no qual suas relações demonstrem a validade dos fenômenos
observados na vida concreta” (BULHÕES, 2007, p 65). Autores como Gustave Flaubert
e Émile Zola são os grandes representantes do Realismo e Naturalismo respectivamente.
Bulhões (2007) observa que as atribuições dos realistas e naturalistas ao se inspirar
na realidade para compor suas criações eram parecidas com a atividade jornalística de
reportar o dia a dia. Algo como sair às ruas, visitar os locais que dão os episódios da
narrativa, conhecer os espaços que serão descritos, contemplar os rostos de homens e
mulheres e sentir os cheiros dos ambientes.
O movimento contrário também aconteceu. O jornalismo pôde observar nos
romances realistas, técnicas literárias que ajudavam na descrição fiel da realidade. Como
verificou Lima (2009, p. 181), o romance do Realismo do século XIX exercia o papel de
reprodução do real, algo à semelhança do que faria a reportagem mais tarde.
Essa influência do romance realista no jornalismo vai culminar no New
Journalism. Tom Wolfe (2005, p. 53), um dos representantes, evidencia a influência do
movimento literário na composição de reportagens que marcaram o Novo Jornalismo:
Se se acompanha de perto o progresso do Novo Jornalismo ao longo dos anos
60, vê-se acontecer uma coisa interessante: os jornalistas aprendendo do nada
técnicas do realismo – especialmente do tipo que se encontra em Fielding,
Smollett, Balzac, Dickens e Gogol. Por meio da expectativa e erro, por
56
“instinto” mais que pela teoria, os jornalistas começam a descobrir os recursos
que deram ao romance realista seu poder único, conhecido entre outras coisas
como seu ‘imediatismo’, sua ‘realidade concreta’, seu ‘envolvimento
emocional’, sua qualidade ‘absorvente’ ou ‘fascinante’.
As marcas da literatura realista identificadas por Tom Wolfe nas reportagens
produzidas por seus contemporâneos eram a construção cena a cena, ou seja, contar a
história passando de cena a cena e recorrendo o mínimo possível à narrativa histórica. O
registro do diálogo completo dos envolvidos na história da reportagem e o uso do “ponto
de vista da terceira pessoa”, que o autor explica como uma técnica que apresenta cada
pessoa em cena ao leitor por intermédio dos olhos de uma personagem particular (o
narrador observador em terceira pessoa).
Outro recurso apontado foi a descrição de gestos, hábitos, maneiras, costumes,
estilos e outras características das pessoas na reportagem para o conhecimento “total” da
pessoa descrita, como propõem autores de ficção (WOLFE, 2005, p. 53-55),
oportunizando, portanto, mais uma vez, a fonte alçar-se à condição de personagem.
Por meio das técnicas inspiradas na literatura realista, os jornalistas relatavam
intimidades das pessoas, ação permitida apenas aos romancistas, como a descrição de
sonhos, alegrias e tristezas. Ou seja, um lado da natureza humana que era retratado apenas
na ficção. Gay Talese, representante do Novo Jornalismo, descreve o seu processo de
criação, evidenciando alguns dos recursos apontados por Tom Wolfe. O autor escreve no
prefácio da obra Fama e anonimato (TALESE, 2009, p. 10):
Eu procuro seguir os objetos de minha reportagem de forma discreta,
observando-os em situações reveladoras, atentando para suas reações e para as
reações dos outros diante deles. Tento apreender a cena em sua inteireza, o
diálogo e o clima, a tensão o drama, o conflito, e então em geral a escrevo do
ponto de vista da pessoa retratada, às vezes revelando o que esses indivíduos
pensam durante os momentos que descrevo.
No trecho abaixo sobre o cantor Frank Sinatra – Frank Sinatra está resfriado – que
Talese escreveu para a revista Esquire, o jornalista constrói um texto descrevendo cena a
cena e compondo características psicológicas de Sinatra:
Frank Sinatra, segurando um copo de bourbon numa mão e um cigarro na
outra, estava num canto escuro do balcão entre duas loiras atraentes, mas já um
tanto passadas, que esperavam ouvir alguma palavra dele. Mas ele não dizia
nada; passara boa parte da noite calado; só que agora, naquele clube particular
em Beverly Hills, parecia ainda mais distante, fitando, através da fumaça e da
meia-luz, um largo salão depois do balcão, onde dezenas de jovens casais se
espremiam em volta de pequenas mesas ou dançavam no meio da pista ao som
trepidante do folk-rock que vinha do estéreo (2009, p. 257).
A expressão “parecia ainda mais distante” é uma marca textual para uma
caracterização psicológica, algo permitido, em tese, aos ficcionistas para escrever sobre
57
pensamentos e sentimentos não externalizados pelas suas personagens. Tom Wolfe
levantou a questão da capacidade de o autor escrevendo não ficção, “penetrar
acuradamente os pensamentos de outra pessoa” (WOLFE, 2005, p. 55). Talese responde
que essa capacidade “depende da cooperação total da pessoa sobre a qual se escreve, mas
se o escritor goza de sua confiança, é possível, por meio de entrevistas, fazendo as
perguntas certas nas horas certas, apreender e reportar o que se passa na mente de outras
pessoas” (TALESE, 2009, p. 10).
Outras marcas da literatura são identificadas no texto de Talese sobre Frank
Sinatra. Na descrição física do cantor: “como sempre, estava vestido de forma impecável.
Colete, terno, Oxford cinza de corte tradicional, mas forrado com uma seda vistosa; os
sapatos, ingleses, pareciam estar engraxados até o solado” (TALESE, 2009, p. 260). Em
outro trecho, uma descrição moral:
O mesmo Sinatra [...] de uma hora para outra [pôde] explodir numa
terrível fúria de intolerância se alguns de seus chapas cometer algum pequeno
deslize no cumprimento de uma tarefa. Por exemplo, quando um de seus
homens lhe trouxe um cachorro-quente com ketchup, que, como se sabe,
Sinatra abomina, ele jogou o frasco no homem, cobrindo-o de ketchup (2009,
p. 265).
Voltando para a influência da The New Yorker na revista piauí, segundo João
Moreira Salles, a piauí surgiu de um desejo dele de acompanhar reportagens semelhantes
às de The New Yorker, em português. Para Salles, havia uma lacuna no cenário brasileiro
deste tipo de publicação. Outra inspiração para a criação da piauí é a revista peruana
Etiqueta Negra.
A edição peruana é semelhante à brasileira no formato e na publicação de
reportagens de fôlego. Na entrevista para esta pesquisa, a repórter Carol Pires comentou
que a revista peruana serviu de inspiração para Dorrit Harazim e Mario Sergio Conti, um
dos primeiros colaboradores da piauí, na criação do modelo da revista.
4.4 Nó 01: Tempo de investigação
Durante a conversa com os repórteres da revista sobre seus processos criativos,
todos eles ressaltaram a importância do tempo para a produção da reportagem. Por isso,
tornou-se essencial discutir sobre o fator tempo no jornalismo.
O tempo da investigação jornalística é o período pelo qual o jornalista cumpre as
etapas do processo de produção da notícia, o que inclui a apuração da informação e a
construção do texto. Antes da análise do modo de produção da revista piauí, é preciso
58
compreender a lógica da velocidade no jornalismo e a rapidez como um dos pilares da
profissão.
4.4.1 Velocidade como fetiche do jornalismo
Vivemos num tempo maluco em que a informação é tão rápida que exige
explicação instantânea e tão superficial que qualquer explicação serve (Luiz
Fernando Veríssimo).
Segundo o teórico Nelson Traquina (2013, p. 35), o fator tempo condiciona todo
o processo de produção das notícias, porque o jornalismo é marcado por horas de
fechamento. O autor afirma que, enquanto o valor da “objetividade” continua a provocar
imensa polêmica, o valor do imediatismo reina incontestável, ainda mais com a
emergência do cibermedia.
As notícias são vistas como um “bem altamente perecível”, valorizando assim
a velocidade. O imediatismo age como medida de combate à deterioração do
valor da informação. Os membros da comunidade jornalística querem as
notícias tão “quentes” quanto possível, de preferência “em primeira mão”.
Notícias “frias” são notícias “velhas”, que deixaram de ser notícia
(TRAQUINA, 2013, p. 35).
Para a teórica Sylvia Moretzsohn (2002), a velocidade é um fetiche no jornalismo
porque “chegar na frente” torna-se mais importante do que “dizer a verdade” e a estrutura
industrial da empresa jornalística está montada para atender a essa lógica, até porque,
como já foi dito neste trabalho, o jornalismo acompanhou o desenvolvimento do sistema
capitalista cuja premissa é “tempo é dinheiro”.
A velocidade é um fetiche, no sentido marxista, segundo o qual o produto do
trabalho, tão logo assume a forma de mercadoria, passa a ter “vida própria”, a
valer por si, escondendo a relação social que lhe deu origem. No jornalismo,
passa a ser o principal “valor notícia”: antes de tudo, importa chegar na frente
do concorrente, e alimentar o sistema com dados novos, num continuum
vertiginoso a pautar o trabalho nas grandes redações, que, além dos tradicionais
produtos impressos diários, oferecem simultaneamente serviços de informação
em “tempo real” (MORETZSOHN, 2002, p. 12).
O “dizer a verdade” pode ser entendido como a compreensão da complexidade
dos fatos do cotidiano e isso, devido à lógica da rapidez, nunca foi prioridade para o
jornalismo mesmo antes da era digital. O jornalismo impresso sempre teve como lema a
“informação em primeira mão”, o que para a autora é uma atitude irracional:
59
A verdade costuma ficar submetida à necessidade da veiculação de notícias em
primeira mão, trazendo como resultado, frequentemente, a divulgação de
informações falsas ou apenas parcialmente verdadeiras, com consequências às
vezes catastróficas. Hoje, na era do “tempo real”, essa contradição atinge
níveis que apontam para uma aparente irracionalidade no processo de produção
da notícia. Afinal, que sentido haveria em investir na última palavra em
tecnologia se o que interessa não é a qualidade da informação, mas sim “chegar
mais rápido que o concorrente”? (MORETZSOHN, 2002, p. 11).
Para a autora (2002, p. 128), o jornalismo aposta em “prognósticos” como valor
de atualidade e não respeita as regras que exigem um distanciamento e, portanto, uma
desaceleração para a apuração rigorosa da notícia. Além disso, para sustentar a lógica da
notícia transmitida instantaneamente, o jornalismo não se preocupa com a necessidade de
veicular a informação correta e contextualizada.
Evidentemente, há diferenças de ritmo, conforme o tipo de veículo para o qual
se trabalha, mas o importante será perceber como a lógica do “tempo real”
afeta a prática do jornalismo como um todo, radicalizando a “corrida contra o
tempo” que sempre marcou a profissão. Mais ainda: que as exigências do
mercado financeiro, e de quem nele atua, passam a ser o relógio do noticiário
em geral (2002, p. 130).
A partir do depoimento de Mariana Mainenti Gomes, repórter do portal
Investnews54, da Gazeta Mercantil, reproduzido por Moretzsohn (2002, p. 131), é possível
entender o funcionamento das redações com a premissa da rapidez:
A orientação para o repórter é nunca ficar com a informação “parada”: ao
receber uma notícia, deve automaticamente repassá-la. O repórter pode ir atrás
dos detalhes depois, mas antes, deve divulgar o material que acabou de receber.
É muito frequente, no entanto, que isto [a busca de detalhes, e mesmo a
checagem] não aconteça. Para se apurar uma notícia é preciso um mínimo de
tempo – muitas vezes o volume de releases, balanços de empresas e
documentos que chegam à mesa do repórter, e cuja divulgação tem de ser feita
o mais rapidamente possível, não permite a apuração de mais detalhes sobre a
notícia divulgada inicialmente.
Desta forma, a consequência de um jornalismo rápido é uma apuração imprecisa
e passível ao erro. O que é confirmado pela repórter:
Erros (...) são mais passíveis de acontecer no veículo on line porque a pressão
imediata sobre o repórter é maior do que no impresso: pensa-se duas vezes
antes de dar um telefonema para checar uma informação (...) porque sabe-se
que a consequência desse cuidado será instantaneamente refletida na tela do
assinante, em forma de um “vazio” de notícias. [...] No raro o resultado era um
material incompleto, fragmentado, baseado em um jornalismo declaratório e
oficialesco, pela falta de tempo para se checar e aprofundar informações
(MORETZSOHN, 2002, p. 132 e 135).
54 Criada em novembro de 2000, a InvestNews foi considerada a maior distribuidora de conteúdo editorial
sobre economia e negócios da América Latina. A empresa saiu do mercado em junho de 2009 e era
especializada na cobertura da infraestrutura do negócio das empresas brasileiras.
60
Ainda segundo a autora, o fetiche da velocidade provoca um processo de
simplificação do mundo operado todos os dias pela imprensa. Ela afirma que os conflitos
da sociedade poderiam ser explorados em sua complexidade, no entanto, os temas são
simplificados a partir dos estereótipos (bandidos versus cidadão do bem, por exemplo), o
que reproduz o senso comum.
Para Moretzsohn (2002), a valorização da informação instantânea põe em xeque
o próprio sentido de mediação exercida pelo jornalismo. Na época, a autora ainda não
vivenciara a explosão das redes sociais e das notícias falsas. Seria, justamente, na
atualidade que a discussão sobre a mediação do jornalista ganharia força. A partir do
momento em que as redes sociais dão voz para qualquer pessoa qual seria a necessidade
de um jornalista como porta-voz da sociedade?
A mediação jornalística ganha um novo sentido quando todos têm um lugar de
fala e há informação demais ou até mesmo a desinformação. A partir deste novo cenário,
é necessário investigar a realidade com mais tenacidade e, consequentemente, sem o
fetiche da velocidade. Acompanhar o ritmo frenético das redes é analisar o mundo de
maneira rasa e, muitas vezes, equivocada.
Para Salles (2011, p. 40), o tempo de criação é um ato permanente que não é
vinculado ao tempo de relógio e a criação é resultado de um estado de total adesão do
criador. É certo que o jornalista tem o tempo limite, um deadline, para a entrega de um
produto. Porém, é perceptível que o tempo tornou-se um inimigo da profissão e não um
aliado. Por isso, o primeiro aspecto a ser analisado na revista piauí é o fator tempo. A
partir dele, desencadeiam-se outros fatores que serão vistos adiante, como o acaso e a
continuidade.
4.4.2 A charrete da piauí
À medida que a reportagem de fôlego foi se tornando mercadoria de luxo nas
redações, a charrete da piauí, à primeira vista tão na contramão do curso do
mundo, de certa forma reinventou a roda. A aposta na apuração paciente e
minuciosa, que requer coleta exaustiva das informações, contato demorado
com as personagens e capacidade de observação [...] representou um oásis
no semiárido da imprensa brasileira (Fernando de Barros e Silva).
O jornalista Bernardo Esteves escreve sobre Ciência e Meio Ambiente na revista
há oito anos. Anteriormente, ele foi editor do jornal de ciência Ciência Hoje Online e
61
repórter da revista Superinteressante. É doutor em Histórias das Ciências pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Para esta análise, Esteves escolheu as reportagens “Os seixos da discórdia”,
publicada na edição nº 88, de janeiro de 2014. O texto é sobre a descoberta arqueológica
no Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, que mudaria a história da ocupação da
América. A segunda publicação é “O colecionador”, publicada na edição nº 108, de
setembro de 2015. A reportagem conta a história do entomólogo Vitor Becker, que possui
a maior coleção de mariposas do Brasil, com 300 mil exemplares, no centro de pesquisa
que ele construiu na Serra Bonita, no sul da Bahia, área preservada da Mata Atlântica.
Para a produção de cada reportagem, o jornalista teve dois meses. Porém, o tempo
pode variar. A piauí já teve matéria com o tempo de apuração de duas semanas e outra
que durou um ano. Mas em média, as matérias têm o mínimo de dois meses entre o
começo da apuração e a publicação.
Durante este tempo, o jornalista pesquisa sobre a pauta (ler livros sobre o assunto)
e entrevista pessoas. A entrevista será pessoalmente, principalmente, se a reportagem for
um “perfil55”, gênero muito apreciado pela revista. Os repórteres usam o programa Skype
(conversa online) ou o telefone para entrevistas complementares.
Depois da ideia inicial da pauta proposta pelo repórter ou editor, o repórter
levanta o tipo de personagem que pretende falar para marcar a entrevista. Se
for um perfil, entra em contato com a figura para saber se ele se dispõe a ser
perfilado. Até porque nem todo mundo fica à vontade com esta ideia.
Geralmente, a gente faz perfil com acesso ao perfilado (ESTEVES, 2015).
A reportagem “O Colecionador”56 é um exemplo de um perfil:
A pauta foi uma sugestão do João Moreira Salles que tomou conhecimento da
existência dele [Vitor Becker]. Eu acho um cara fascinante. Digno de um perfil.
Um cara muito pouco conhecido e eu nunca tinha ouvido falar dele. A piauí
costuma jogar luz em personagens não conhecidos. É um caso típico. João
falou dele e eu entrei em contato, vi o site da reserva dele, liguei e conversei.
E achei que tinha uma história boa que valeria a pena. E aí marquei uma visita
(ESTEVES, 2015).
Bernardo Esteves teve a oportunidade de permanecer uma semana na Bahia para
a realização da entrevista com Vitor Becker. A partir disso, pôde conhecer melhor não só
o perfilado, mas o ambiente que o cerca, o que é essencial para a construção de uma
55 Autor do livro Perfis e como escrevê-los (2003), Sérgio Vilas Boas descreve o perfil como a possibilidade
de o jornalista focalizar apenas alguns momentos da vida de uma pessoa. Para o autor, o que se deve ter em
vista no perfil é a pessoa e a experiência humana. 56 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-colecionador/>. Acesso em 07. Ago. 2018.
62
narrativa aprofundada57, principal proposta da revista. O repórter relata que não
conseguiu observar o ambiente tão bem como queria porque foi em uma época chuvosa.
Tive um azar porque fui em julho, tempo chuvoso. Lá também é uma pousada
e parte dos hóspedes são ecoturistas e vão lá para fazer trilha e observação da
mata. Então pouca coisa aconteceu. Não fiquei caminhando que era uma coisa
que eu esperava fazer. É um perfil que eu acho pouco movimentado
(ESTEVES, 2015).
A partir do relato de Victor Becker, o repórter ouviu vinte pessoas, incluindo
amigos e outros pesquisadores de mariposa e borboleta do Brasil. A maioria das
entrevistas foi por telefone ou Skype. Além de encontros presenciais com pesquisadores
estrangeiros que colaboraram com Becker. O repórter foi ao Museu Nacional (Rio de
Janeiro) para verificar como a coleção de mariposas e borboletas era guardada após o
perfilado afirmar que não queria que a sua coleção pessoal fosse doada a esse museu após
a sua morte. Viajou ainda para São Paulo para conhecer a coleção do Museu de Zoologia
da Universidade de São Paulo (USP) e para entender o processo de captação de recurso
público para manter uma coleção como a de Becker.
A partir do percurso de Bernardo Esteves percebe-se que houve a checagem\
comprovação do que foi dito pela fonte, no caso o entomólogo. Ou seja, não basta a fala
do perfilado. É preciso confirmar (checar) ou contrastar o que foi dito. Isso torna a
apuração da reportagem extensa e, consequentemente, há a necessidade de um intervalo
de tempo expressivo para isso. A checagem do declaratório, geralmente, não é uma
preocupação dos veículos. Até porque isso demanda tempo e dinheiro.
Sobre o fator “dinheiro”, no caso específico da piauí, conforme declarações de seu
Publisher, o cineasta João Moreira Salles, os anúncios não bastam para sustentá-la.
Entretanto, a revista segue circulando e mantém seu padrão de alto custo – com apurações
que demandam viagens nacionais e internacionais – graças à sua fonte de financiamento
privilegiada:
João Moreira Salles integra uma das famílias mais ricas do Brasil – em 2013
foi avaliada como a mais rica –, proprietária do Itaú Unibanco, além de ter
participação em outros empreendimentos milionários, como a Companhia
Brasileira de Metalurgia &Mineração (CBMM). [...] piauí, portanto, usufrui
de condições excepcionais em termos de subsídio financeiro. Enquanto um dos
principais requisitos para a sobrevivência no campo jornalístico é a conquista
de capital econômico, a revista não precisa, necessariamente, disputá-lo. Há o
interesse de que ela se sustente – os anúncios publicitários estão presentes em
suas páginas, como em qualquer outra publicação – e há também a busca por
mais leitores e anunciantes. Entretanto, enquanto essas fontes não bastam, a
revista segue sendo subsidiada com o aporte financeiro de Salles (CANIÇALI,
2015, p. 9).
57 A narratividade é um nó da rede que será visto posteriormente.
63
Além do jornalismo, é comum o apoio financeiro em outras áreas do
conhecimento. É o que explica Salles (2017) ao discutir o contexto de restrições e
possibilidades no que se diz a respeito às questões financeiras na arte e na ciência. A
autora cita Palermo (2007, p. 227-228) que narrou sobre a doação para o Instituto de
Pesquisa Social de Frankfurt:
Primeiro ponto a ser destacado é a independência econômica de que gozava.
Sua fundação aconteceu graças à disponibilidade de um rico mecenas,
Hermann Weil, que com uma respeitável doação tornou possível a existência
de uma instituição autônoma nos objetivos e modalidades do seu trabalho;
disponibilidade obviamente devida ao fato de se encontrar, entre os três
fundadores do Instituto, seu filho Felix (PALERMO apud SALLES, 2017, p.
181).
Já na ciência, a autora cita Gentili e De Masi (2007, p. 76) que afirma que a
Estação Zoológica de Nápoles tinha quase todos os seus projetos eram financiados por
diversos governos e entidades científicas.
No artigo “Arte ou indústria?”, Jean Renoir problematiza a questão “Os filmes são
uma arte ou uma indústria?”. O autor afirma que essa pergunta lhe é feita frequentemente
e explica que a classificação em uma ou em outra é complexa, justamente, porque uma
não anula a outra. O pensamento dicotômico entre arte e indústria vem de uma ideia
imaculada da arte sem um investimento industrial, ou seja, financeiro. É essa a discussão
proposta por Salles ao mostrar os exemplos de grandes projetos artísticos e científicos
que têm como pano de fundo um apoio financeiro. Assim como os projetos jornalísticos.
Assim, para responder a tal questionamento, Renoir mostra que não devemos
dividir o mundo em classificações definidas. O que podemos deduzir que a resposta de
Renoir para a questão é “arte ou indústria” é que há indústria na arte e há arte na indústria.
Com isso quero dizer que dividia o mundo e a vida que o anima em rodelinhas
e quadradinhos dentro dos quais arrumava os seres e as coisas, os sentimentos
e as percepções. [...] Não me vinha à ideia que o sapateiro pudesse ter o gênio
da música e que o poeta pudesse ser um magnífico perito em investir dinheiro
na Bolsa (RENOIR, 1991, p. 143).
Voltando para a revista piauí, o resultado desse investimento financeiro e temporal
é uma abordagem mais ampla sobre a pauta, com a possibilidade de escutar mais pessoas
sobre o mesmo assunto, é uma narrativa que pode explicar com mais detalhes as nuances
da realidade ao leitor. Com a checagem do declaratório, o jornalismo se aproxima do fato
como ele é ou da “verdade factual”. Além de conseguir mostrar o contexto da declaração,
o que também é raro no jornalismo de hoje. Ao contar sobre o seu processo de produção,
64
Bernardo Esteves falou sobre o impacto desta percepção aprofundada para o jornalismo
no qual atua e a importância do tempo para conseguir realizar isso:
No jornalismo tradicional você tem uma declaração que aparece desprovida de
qualquer contexto. Fulano disse isso. E às vezes você explica para o leitor o
que você perguntou para o seu entrevistado e que ambiente ele estava e quem
mais estava em volta. Ou seja, que circunstâncias eram aquelas. Isso qualifica
um pouco o que ele diz. Ajuda a atenuar, a aguçar, ajuda a qualificar melhor.
Acho que é um jornalismo que ajuda a dar contexto. Tenta valorizar o relato,
tenta valorizar os recursos e tem um lado bem sensorial das matérias. Cores,
cheiros, sons. Na área que eu cubro, acho isso fundamental. O jornalismo
diário é muito baseado em resultados e não explica direito os passos pelos quais
os pesquisadores passaram para chegar àquelas conclusões. Quando você tem
tempo e espaço para escrever sobre isso, você pode dar este contexto.
Mostrar os bastidores da produção de conhecimento. Isso é rico para entender
como funciona a ciência e de onde vem as convicções do cientista. Isso
qualifica melhor o texto jornalístico. Não dá para você fazer isso no noticiário
diário. Isso é algo reflexivo, que exige você parar e pensar na construção da
narrativa. Você pode injetar doses disso no jornalismo diário. Essas
características são bem-vindas em qualquer jornalismo. Seria adorável poder
juntar todas estas características, mas entendo que não há tempo para sentar e
pensar. Em alguns casos, é bem mais complicado (ESTEVES, 2015. Grifo
nosso).
Sem o fetiche da velocidade, os jornalistas da piauí podem se debruçar sobre o
texto para a construção da narrativa por dias. Esteves demora, em média, duas semanas
para o processo da escrita que inclui ainda um momento de reler as anotações e as
transcrições das gravações que realizou durante a apuração. Além da releitura dos
fichamentos dos livros e artigos que leu sobre o assunto da pauta. Após esse processo, o
repórter realiza uma triagem do material para, então, fazer um mapa estrutural da
reportagem e parte para a construção do texto. Após este período, o texto segue para a
edição, mas poderá voltar para o repórter para que faça mudanças.
Às vezes, eu preciso refazer alguma coisa. Varia de caso para caso. Texto vai
e volta com alguns pedidos ou não. Varia muito de quem edita. “Isso aqui não
está claro”. “Desenvolva mais”. “Não entendi”. “Aqui ficou confuso”
“Melhora este parágrafo”. Alguém que leu com cuidado e sugere “Se você
descrevesse este cara com mais detalhe”. É uma edição\ colaboração. Às vezes,
as sugestões são pertinentes. Outras vezes, não. Outras vezes, você pode
querer contestar (ESTEVES, 2015).
Bernardo comenta ainda que “No fundo você entroniza isso. Você passa a olhar
para a sua matéria-prima como histórias que podemos contar. [...] Boas histórias e
circunstâncias que permitam que elas sejam contadas do jeito que a gente gosta de contar”
((ESTEVES, 2015).
4.4.3 O caminho da reportagem
65
Cada repórter entrega a reportagem pronta para um editor. Além de João Moreira
Salles, a revista possui mais três editores. Após a edição (em que poderá haver diálogo
entre o repórter e o editor, como foi visto na fala de Bernardo Esteves), o texto é enviado
para três profissionais: a secretária de redação, um revisor e um checador. O revisor
preocupa-se com o cumprimento das regras gramaticais e do manual de redação
jornalística. Já o checador irá confirmar todas as informações para que o texto ganhe
precisão. Na entrevista com a repórter Paula Scarpin, ela explicou a importância do papel
do checador na revista:
O papel do checador é duvidar de toda informação que o repórter escreve. Ele
refaz a pesquisa duvidando dos dados do repórter. É importante que ele duvide.
Por exemplo: Uma matéria com o nadador Cesar Ciello. Ele mede tanto, pesa
tanto, ele usa um maiô da marca tal. Será que Ciello tem 23 anos quando a
matéria vai sair. Ou ele terá 24? A checagem vai confirmar todas estas
informações. Quantas fontes a repórter usou para ter certeza disso? Tem que
ter precisão. E, geralmente, é isso mesmo porque o repórter sabe muita coisa
sobre o assunto (SCARPIN, 2016).
Enquanto isso, o departamento de arte está com um rascunho do texto procurando
imagens para ilustrar. Depois do texto revisado e checado, a secretária de redação
consolida as três versões (a sua leitura, a do revisor e a do checador). Ela devolve com as
marcas de revisão e checagem para o repórter e para o editor. Eles releem tudo, fazem
eventuais alterações pedidas pela checagem, e enviam novamente para a secretária de
redação uma versão final.
A partir disso, a reportagem pode ser lida online. Logo depois, o texto vai para
diagramação. Depois de diagramado, já no tamanho real da página de papel, com a
imagem aprovada, o texto é lido em papel por mais dois revisores (não os mesmos que já
leram antes). O editor responsável ainda aprova o material para depois ser enviado para
a gráfica.
O caminho da reportagem mostra a preocupação da revista com a precisão dos
fatos. O processo é lento e passa por muitas pessoas (trabalho em equipe), o que demanda
tempo. É possível afirmar que a qualidade do produto, no caso a revista, é diretamente
proporcional ao tempo de maturação dos processos jornalísticos de apuração, escrita,
edição, revisão e checagem. Não se pode afirmar que a revista nunca errou ou nunca irá
errar, até porque o jornalismo é um trabalho subjetivo e passível ao erro. Porém, o número
de imprecisões certamente é menor do que em veículos em que não há o processo de
checagem e que não tem o tempo como aliado.
66
4.4.4 A importância do acaso
Como foi visto, o tempo faz a diferença na hora da apuração porque o repórter
terá a possibilidade de entrevistar mais pessoas e checar as informações. Além disso, o
tempo pode abrir brechas para o acaso, como foi o caso da construção do perfil do ex-
presidente do Uruguai, Pepe Mujica, feito pela repórter Carol Pires, publicado na revista
na edição 73, de outubro de 2012, com o título “El Viejo Tupamaro58”. Carol trabalhou
na piauí de 2012 a 2016. Atualmente, é colaboradora do New York Times en Español e
redatora do programa Greg News, na HBO.
Durante a entrevista para a presente pesquisa, Carol afirmou que o repórter ao
apurar precisa “deixar espaço para ser surpreendido” o que seria o mesmo que afirmar
que o repórter pode perceber a importância do acaso.
Eu fiz contatos prévios, como sempre faço antes de viajar, com a assessoria do
Mujica, com a mulher dele, a senadora Lucía Topolansky, mais alguns
políticos aliados e adversários, jornalistas, e cientistas políticos. É o básico.
Uma vez no local da apuração, esses contatos prévios vão te sugerindo novas
entrevistas, te apresentando a outras pessoas interessantes para a composição
do seu perfil, então é bom deixar espaço para ser surpreendido. Conheci
amigos, inclusive um amigo de infância do Mujica, num dia que havia
reservado para andar pelo bairro onde ele mora (PIRES, 2015).
Salles (2011, p. 42) explica que “aceitar a intervenção do imprevisto implica em
compreender que o artista poderia ter feito aquela obra de modo diferente daquele que
fez. Admite-se, assim, que outras obras teriam sido possíveis”. Assim como no jornalismo
quando uma informação transmitida ao público poderia ser totalmente diferente devido
ao tempo que o repórter teve para investigá-la.
Carol afirma que a ideia inicial era um perfil bem-humorado como ela achava que
era o ex-presidente:
[M]as o que eu encontrei foi um presidente velho, de um país envelhecido,
perdendo seus amigos. Acho que achei um trunfo em meio à adversidade. O
texto tem um tom melancólico e algo de ensaístico por trás da reportagem, que
também usa o Mujica para explicar o Uruguai. Gosto muito desse perfil
(PIRES, 2015).
O acaso fez com que a repórter construísse o perfil do ex-presidente em meio a
mortes de idosos próximos a Mujica, o que permitiu que realizasse um comparativo com
a situação do próprio país:
Sua única irmã havia morrido na quarta-feira. Era a caçula, tinha 71 anos. Uma
semana depois, no dia 15 de agosto, ele era esperado no Hipódromo Nacional
de Maroñas, em Montevidéu, e estava atrasado. Pepe Mujica, presidente do
58 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/el-viejo-tupamaro/>. Acesso em 07. Ago. 2018.
67
Uruguai, soube, logo que acordou, da morte da mãe de um companheiro de
militância política e decidiu encontrá-lo antes da agenda oficial. Pela segunda
vez em sete dias ia a um velório (PIRES, ARQUIVO ELETRÕNICO59, 2012).
Logo em seguida, a reportagem descreve a situação política do Uruguai:
O país, além de ser menor que o Rio Grande do Sul, tem população pequena
(há dez anos mantém-se na faixa de 3 milhões) e envelhecida. São 19% os que
têm mais de 60 anos (no Brasil são 11%). Soma-se ao cenário a alta emigração
de jovens, em busca de empregos no exterior. Os quadros políticos do Uruguai
também carecem de renovação. As principais figuras da oposição hoje são ex-
presidentes ou herdeiros de famílias que se revezavam no poder antes de a
Frente Ampla chegar à Presidência, em 2005 (PIRES, ARQUIVO
ELETRÕNICO, 2012).
Já a repórter Paula Scarpin escolheu duas reportagens cujos personagens
principais são frutos do acaso. Justamente por não sofrer a pressão do relógio, os
repórteres da piauí podem aprofundar as histórias e, consequentemente, descobrir fatos
novos e interessantes para a reportagem. Segundo Salles (2008, p. 132), “erro e acaso
interagem com o processo que está em curso, propondo problemas que provocam a
necessidade de solução. [...] Estamos falando de importantes desencadeadores do
mecanismo de raciocínio responsável pela introdução de ideias novas”.
Paula é repórter da piauí desde 2007 e escolheu para a análise as reportagens “A
miss de nariz sútil”, publicada na edição nº 33, de junho de 2009, e “No país dos caubóis”,
publicada na edição nº 109, de outubro de 2015. A primeira reportagem apresenta a
história de jovens que enfrentam procedimentos cirúrgicos arriscados em busca de um
padrão de beleza exigido por concursos, como o Miss Brasil. O segundo texto mostra os
bastidores da festa do Peão de Boiadeiro de Barretos, interior de São Paulo, uma das
principais competições de rodeio do país.
Na construção da reportagem “A miss de nariz sútil”60, Paula tinha, inicialmente,
um tema vago e amplo. “Por que você não faz um apanhado do concurso de miss? Algo
meio retrô. Hoje em dia, a maioria das meninas quer ser modelo. Por que miss?”, disse a
sua colega de redação na época, a jornalista Daniela Pinheiro. A partir desta ideia, Paula
iniciou sua pesquisa ainda sem uma pauta definida, ainda tateando as pistas sobre o
assunto.
Após algumas pesquisas, ela decidiu que sua pauta seria sobre a história do
surgimento do concurso no Brasil. Descobriu que quem inventou o concurso de miss
universo foi uma marca de maiô chamada catalina. E por acaso, o único lugar que
59 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/el-viejo-tupamaro/>. Acesso em 02. Ago. 2018. 60 Disponível em <http://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-miss-do-nariz-sutil/>. Acesso em 07. Ago. 2018.
68
produzia catalina no mundo era o Brasil e era em Petrópolis. A repórter decidiu então
fazer a trajetória da miss Petrópolis.
Porém, como não corria contra o relógio, Paula pôde explorar mais o assunto e
passou a participar de fóruns na internet sobre concursos de miss. A partir disso, ela
encontrou outros personagens interessantes para a sua pauta:
Na piauí, a gente fica muito tempo mergulhada no assunto e comecei a
descobrir fóruns na internet de missólogos, pessoas que se interessam por miss.
Na verdade, este termo é usado em dois sentidos diferentes. Um cara que
prepara a miss (entende tudo do concurso e sabe esteticamente como deve ser
uma miss) e os caras que se interessam muito sobre o assunto. [...] O assunto
que só se falava nestes fóruns era sobre a miss Rio Grande do Sul. Ela é eleita
quase um ano antes do Miss Brasil para poder ficar um ano só se preparando
para o concurso. No fórum, falava como a miss Rio Grande do Sul tinha
mudado tragicamente desde que ela tinha sido eleita. Eu comecei a procurar
fotos dela no Google e vi que mudaram muito o nariz dela. Ela virou outra
pessoa. O nome dela é Bruna Felizberto e o seu preparador era o Evandro Razi
(SCARPIN, 2016).
Paula queria conversar com Bruna Felizberto, mas não sabia direito como
encontrá-la. Devido à cirurgia que mudou o seu nariz, a miss estava reclusa e não dava
entrevistas. Como as reportagens da revista são longas, além da trajetória da miss
Petrópolis [a repórter não tinha desistido desta pauta], a jornalista decidiu entrevistar
cirurgiões plásticos para entender melhor sobre a recorrência da procura desses
profissionais por parte das garotas que querem se tornar misses. Muitos estavam no Rio
Grande do Sul e foi para lá que a repórter foi:
Eu marquei com vários cirurgiões plásticos que eu sabia que estavam operando
miss. E assim que eu cheguei ao Rio Grande do Sul, eu deixei minhas coisas
no hotel e fui entrevistar um cirurgião plástico. Fui falar com eles antes de falar
com os missólogos. E eu cheguei à sala de espera e ela [Bruna Felizberto]
estava lá. [...] Quando entrei e a vi na sala de espera, eu nem sentei porque me
deu tanto nervoso. Eu entrei no banheiro e mandei uma mensagem para uma
amiga minha: você não vai acreditar quem está aqui? Na hora que eu sai do
banheiro, ela tinha ido para a consulta e estava a mãe dela. Aí eu comecei a
falar com ela. Estou fazendo uma reportagem para a revista piauí, que ela não
conhecia (SCARPIN, 2016).
Pode-se afirmar que o acaso mudou o percurso da criação da reportagem. A
repórter encontra a personagem ao acaso e decide contar a sua história. A pauta mudaria
a partir daquele encontro inesperado.
Mudou minha pauta complemente porque a minha pauta agora era a Bruna.
Essa era a história. Eu contei a história do concurso miss universo, a história
do catalina, mas eu precisava de um fio condutor. E eu tendo esta história que
envolve a indústria das plásticas. Essa história era ouro. Quando eu parti para
esta pauta jamais eu imaginaria que teria uma história tão legal. E até hoje ela
é uma das minhas matérias que mais deu repercussão. Assim que a gente
publicou, a matéria passou uma semana na Folha online porque era uma
história muito interessante (SCARPIN, 2016).
69
Com a mudança da pauta, Paula construiu uma reportagem que foi além e
apresentou uma realidade assustadora que seria a obsessão dos missólogos por cirurgia
plástica:
Seguidor da metodologia venezuelana, o missólogo não acredita em beleza
natural. Na minha frente, apontou para uma candidata cujos traços finos
lembravam um pouco Ieda Maria Vargas, gaúcha que trouxe o primeiro título
de Miss Universo para o Brasil, em 1963, e sentenciou: “Essa é linda, mas eu
demolia e transformava num monumento.” (SCARPIN, 2009).
Já na reportagem “No país dos caubóis”61, a repórter tinha o desafio de escrever
sobre o universo do rodeio. Paula conta que essa era uma realidade que não conhecia e a
única referência que tinha era o fato de que o irmão de um dos editores da revista era
assessor de imprensa do cantor sertanejo Michel Teló.
Era um universo que eu não entendo nada, comecei do zero. Adoro isso de não
saber nada. A sugestão veio do editor: liga para meu irmão e pede para ele te
dar um panorama. Liguei para o Miguel e perguntei o que ele poderia falar
sobre o universo do rodeio. Falei que era a primeira conversa que estou tendo
e que não sabia de nada. Ele falou que entendia super pouco. Ele é carioca,
além de tudo. Ou seja, não era deste universo, mas entrou por motivos de
trabalho. Ele falou que conhecia um cara que era locutor e tinha amigos do
meio sertanejo. Ele é de Barretos e entende tudo deste meio. Só que ele faz a
abertura de show e pode ser um cara que pode te ajudar (SCARPIN, 2016).
A repórter entra em contato com o locutor sem saber que ele seria o personagem
principal da sua história. Inicialmente, ele seria apenas a fonte que apresentaria o universo
do rodeio para a jornalista. Na primeira conversa que teve pessoalmente com o locutor, a
repórter percebeu que ele poderia ser um ótimo personagem para a reportagem.
Para contar a história “No país dos caubóis”, Paula Scarpin pôde acompanhar o
locutor por dois meses e, assim, conheceu a rotina e os bastidores da festa de peão de
Barretos. O fato de o repórter poder permanecer por muito tempo com o personagem de
uma reportagem é algo inusitado no jornalismo. Tanto que, muitas vezes, o repórter
precisa explicar o seu modo de trabalho para a fonte para que não ocorra nenhum
constrangimento ou mal-entendido:
As pessoas não estão acostumadas com o tipo de jornalismo que a piauí faz e
a gente fica muito tempo junto. Então a pessoa confunde, ela acha que é sua
amiga. Raramente, eu faço uma única entrevista com uma pessoa. Com o
Cuiabano [o locutor], de repente, estava oito horas com ele. Só nós dois. Cria
uma certa intimidade. E ele achou que eu era amiga dele. Nestas situações, eu
sinto que é o meu dever alertar. [...] Falei que ele era o personagem principal
da matéria, sim. E que tem uma série de implicações. Eu não sou sua assessora
de imprensa. Eu não vou falar só a sua versão da história. [...] Era muito difícil
lembrar o tempo todo para o Cuiabano que a gente não era amigo. Ele saía do
rodeio e vinha discutir a performance dele comigo. Fiquei na festa do peão
direto. Com ele e com a mãe dele. Após a matéria, ele continua me ligando e
61 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/no-pais-dos-caubois/>. Acesso em 07. Ago. 2018.
70
disse que o pessoal do New York Times estava atrás dele. Porque a piauí acaba
pautando porque são assuntos que não estão no radar. Quando chegou a revista
para ele, ele falou que leu três vezes. A primeira vez, ele odiou. Ficou com
muita raiva de mim. Não gostou da abertura da reportagem porque mostrou ele
frágil, ele doente. A segunda vez, ele entendeu e a terceira, ele adorou
(SCARPIN, 2016).
Paula construiu a reportagem sobre o mundo do rodeio a partir da vivência com o
personagem.
Era início de julho, o auge da temporada, e Cuiabanno Lima, o mais requisitado
locutor de rodeios do país, vinha numa maratona de 22 eventos nos últimos
trinta dias. Longe das atenções do Brasil litorâneo, as festas em que os peões
competem para ver quem consegue se equilibrar com mais destreza sobre um
touro ou um cavalo bravo galvanizam as cidades do interior – além das
competições de montaria, reúnem tradições circenses, manifestações religiosas
e apresentações de cantores sertanejos. Entre março e novembro, período em
que é quase impossível conseguir um espaço na agenda de Cuiabanno,
acontecem cerca de 1 800 rodeios numa área que vai do Paraná a Rondônia, de
Mato Grosso do Sul a Minas Gerais. Em muitas cidades, a competição de
montaria, associada a alguma festa local, é o principal evento do ano
(SCARPIN, 2015, ARQUIVO ELETRÔNICO62).
Mais uma vez, o tempo de produção influencia no resultado da reportagem. A
partir da vivência de muitos dias no rodeio, a repórter consegue descrever detalhadamente
sobre o universo sem o conhecimento prévio sobre o assunto.
4.4.5 A especialidade do repórter
Pode-se afirmar que o repórter produzirá um texto com mais detalhes e com mais
semelhanças com o real a partir de uma vivência (tempo) considerável com as fontes e o
ambiente da pauta. Isso irá acontecer mesmo que o profissional não tenha uma
especialidade no assunto. É o caso de Paula Scarpin, que afirma que, geralmente, os
repórteres da piauí têm uma especialidade, mas ela não tem nenhuma. “Um editor falou
que eu era especialista em gente. Eu gosto de assunto que tenho que mergulhar em um
universo que quanto mais diferente de mim, melhor” (SCARPIN, 2016).
Ao contrário de ser generalista - o adjetivo que geralmente é destinado aos
jornalistas que escrevem sobre tudo, mas não são especialistas em nada - o repórter da
piauí é especializado no que escreve. Seja porque realizou cursos acadêmicos sobre o
assunto, como Bernardo Esteves que é doutor em Histórias da Ciência e escreve sobre o
tema, seja porque tem um tempo e uma experiência expressiva no meio jornalístico, como
62 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/no-pais-dos-caubois/>. Acesso em 28. Set. 2018.
71
é o caso de Malu Gaspar, seja porque realiza uma imersão profunda no assunto, como é
o caso de Paula Scarpin.
Por exemplo, rodeio. A primeira coisa que eu vejo é a biblioteca da USP para
saber tudo o que se escreveu sobre o assunto. Fiz uma matéria sobre a
transposição do Rio São Francisco, então eu baixei várias teses, imprimi tudo
e grifei muita coisa. Eu sou assim (2016).
A pauta da segunda reportagem escolhida por Bernardo Esteves para esta pesquisa
surgiu, justamente, do acompanhamento do repórter de temas relacionados à Ciência,
como o início da ocupação da América. O jornalista afirma que desejava escrever sobre
o tema há muito tempo, mas esperava um fator novo para isso. Até que foi publicado um
artigo importante com dados novos, em abril de 2013. Neste momento, Esteves pôde
propor a sugestão de pauta para a revista.
As matérias grandes da piauí a gente pode sempre tentar dar um panorama
exaustivo, mostrar a matéria por muitos ângulos. Uma coisa é uma matéria de
jornal com 4, 5 mil toques. Você não consegue contar esta história toda que é
cheia de meandros. Então eu pensei que agora era a hora. Tem este artigo como
gancho.
Bernardo pôde acompanhar a história por trás do artigo cientifico publicado. Ou
seja, pôde, literalmente, traduzir a Ciência para o jornalismo.
Lourdeau conduziu as escavações do sítio da Toca da Tira Peia, uma área
escavada de 25 metros quadrados e 2,5 metros de profundidade. A densidade
de achados arqueológicos não foi grande: entre 2008 a 2011, saíram dali apenas
113 peças interpretadas como artefatos indiscutíveis. Os resultados começaram
a ser publicados no ano passado no Journal of Archaeological Science, revista
americana mais prestigiosa da área. O trabalho concluiu que alguns artefatos
encontrados têm pelo menos 22 mil anos. Se o resultado for aceito pela
comunidade de arqueólogos, será o mais antigo indício da presença humana no
continente americano (ESTEVES, ARQUIVO ELETRÔNICO63, 2014).
A familiaridade com o tema fez o repórter aprofundar a discussão da reportagem.
Conversou com diferentes especialistas que o fizeram criar o “panorama exaustivo” sobre
a temática. Além de visitar o local das escavações na Serra da Capivara, no Piauí, o
jornalista conversou pessoalmente e por Skype com diferentes pesquisadores e participou
de uma conferência que reuniu centenas de pesquisadores. Alguns se tornaram seus
personagens.
Tive a sorte que neste momento [momento da apuração] estava acontecendo,
dali a um mês, um congresso e todos os personagens estariam lá. E, sobretudo,
os críticos norte-americanos que nem sempre são ouvidos nas matérias
brasileiras, mas elas deveriam porque este material sempre era contestado, mas
pouquíssimas vezes, alguém ligava ou passava email para estes caras. E eles
estavam todos reunidos lá no congresso. Eu convenci meu chefe a pagar as
despesas e foi muito rico para a matéria (ESTEVES, 2015).
63 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/os-seixos-da-discordia/>. Aceso em 02. Ago.
2018.
72
Já a repórter Malu Gaspar costuma acompanhar os temas políticos na piauí. A sua
carreira iniciou como repórter de cidades da Folha de S. Paulo em São Paulo. Ela foi
correspondente do jornal nos Estados Unidos aos 25 anos e depois repórter da sucursal
de Brasília. Em Brasília, passou a trabalhar para a revista Veja como repórter em 2000.
Como repórter, sempre se interessou por coberturas desafiadoras, em que a tônica
fosse oferecer informações exclusivas a partir de investigações apuradas, fosse o assunto
uma grande epidemia (como a de sarampo, em 1997), um movimento político (a onda de
invasões dos sem-terra, no início dos anos 2000) ou um crime do colarinho branco (como
as investigações sobre o dinheiro desviado da prefeitura de São Paulo pelo ex-prefeito
Paulo Maluf, ou o escândalo do desvio de dinheiro do TRT paulista).
Tornou-se chefe da sucursal da revista Exame no Rio de Janeiro, em 2005, onde
se especializou na cobertura econômica. Foi editora da revista Veja no Rio de Janeiro, de
2010 a 2015. Escreveu o livro-reportagem Tudo ou Nada (Record, 2014), que conta a
história da trajetória do empresário Eike Batista. Para a presente análise, escolheu a
reportagem “Em águas profundas”, publicada na edição 107, agosto de 2015, e o perfil
“O delator”, publicado na edição 117, junho de 2016.
Com toda a sua bagagem profissional, Malu se dedica na piauí a um tema
especifico. A operação Lava Jato. Para ela, esse é o diferencial da revista. Além do fato
de ter tempo para uma grande investigação. A repórter já permaneceu por quatro meses
na produção de uma reportagem.
É muito prazeroso estar na piauí porque você tem tempo. Você pode ir e voltar
no assunto. Aos poucos você vai percebendo que é um barato fazer matérias
aprofundadas. Porque quando a matéria sair, as pessoas vão entender melhor
as coisas. Porém, é difícil você estar cobrindo um assunto como a Lava Jato
com matérias de três em três meses: você tem que escolher bem o seu alvo.
Você escolhe um cara que depois não dá nada. Qual é a graça? Tudo isso é
delicado e impõe desafios (GASPAR, 2016).
Para a construção do perfil “O delator”, Malu afirma que foi essencial o contato
permanente da repórter com a fonte, no caso o ex-senador Delcídio do Amaral. A repórter
pôde assistir junto de Delcídio à transmissão da sessão da Câmara que aprovou o
impeachment da presidente Dilma Rousseff. Delcídio, que era líder do governo petista,
realizou uma delação premiada que envolve a presidente Dilma em esquema de
corrupção.
Desde que cheguei à piauí, eu estava atrás de delatores. Fiz contato com vários
advogados e amigos de delatores [da Operação Lava Jato]. Ninguém topava.
73
Já conhecia o Delcídio desde 2003. Trabalhei em Brasília e cobria pela Veja o
Congresso. Ele virou a minha fonte. Mesmo quando foi para o Rio, mantive
conversas com ele. [...] Aí propus pra ele: eu quero que o Senhor me conte
porque decidiu delatar. Eu fiz duas entrevistas com ele e aconteceu o
impeachment [da presidente Dilma Rousseff]. A ideia foi do Fernando [diretor
da revista] de acompanhar Delcídio durante a sessão do impeachment. E foi
incrível. Depois de sete horas que eu passei com ele, eu pensei: “Essa é a
matéria”. Esse cara olhando para o impeachment e pensando: “Eu ajudei”. E
bebendo e revendo a vida e chorando. É ele e a decisão dele se confrontando
no meio de um fato histórico (GASPAR, 2016).
A trajetória da repórter abriu portas para que ela conseguisse uma entrevista
exclusiva que se tornou um perfil revelador, devido às frases de desabafo de Delcídio que
estão por todo o texto. Algo que é incomum no jornalismo tradicional que costuma
publicar frases oficiais que, geralmente, são produzidas por assessorias de imprensa e
repassadas por porta-vozes.
De repente, como quem se dá conta da gravidade do momento [votação do
impeachment de Dilma Rousseff na Câmara de Deputados], Delcídio inclinou
o corpo para a frente e, com os olhos ainda fixos na tevê, apoiou os cotovelos
sobre os joelhos, passou as mãos no rosto, olhou para mim de soslaio e
confessou estar ansioso: “Sabe o que é? Querendo ou não, eu sou protagonista
nessa confusão aí. Eu ajudei a enterrar” (GASPAR, 2016, ARQUIVO
ELETRÔNICO).
Em outro momento da reportagem, Delcídio declara sua indignação ao Partido dos
Trabalhadores (PT) que não prestou solidariedade a sua prisão: “Você não imagina a
decepção que eu tive. Arrumei dinheiro, nomeação, fiz favores para dois terços do
Senado. E de repente nego estava ali me xingando. Foi duro” (GASPAR, 2016, ARQUIVO
ELETRÔNICO). A partir dessas e de outras falas, percebe-se que o contato mais pessoal da
repórter com o entrevistado permitiu que a reportagem fosse mais descritiva e contasse
com depoimentos menos formais e mais elucidativos.
4.4.6 O ato comunicativo
Para Fuentes (1989 apud Salles, 2011), o processo de criação mostra-se, também,
como uma tendência para o outro. Está em sua própria essência a necessidade de seu
produto ser compartilhado. No jornalismo, esta necessidade torna-se um fim. O
jornalismo é compartilhamento de informação.
Segundo Salles, o ato comunicativo se dá por diálogos do autor com o outro na
tentativa de uma produção assertiva com o seu diálogo interno. Este outro poderá ser
alguém próximo. Um confidente, por exemplo. Na literatura, há as trocas de cartas de
74
Mário de Andrade com outros escritores, por exemplo. Isso também é usual no
jornalismo. Bernardo Esteves costuma compartilhar o seu processo de produção com
outros jornalistas. Além do diálogo com o editor, as suas ideias são debatidas
informalmente com os colegas de redação:
Conversar com as pessoas, com os colegas de redação sobre a matéria. Nas
conversas de bar, perguntam no que estou trabalhando. Às vezes, só de contar
o que eu estou fazendo, já me ajuda a por ordem nas ideias e na tentativa de
falar para uma pessoa que nunca ouviu falar sobre aquilo já deixa as coisas
claras. Aí que você vai entendendo que não pode falar isso antes daquilo. Você
tem os nós, os pontos (ESTEVES, 2015).
Paula Scarpin relata que costuma expressar para os amigos as primeiras
impressões que teve durante a apuração por meio de conversar pelo aplicativo Whatsapp.
Assim, pode recuperar depois as informações para compor as descrições da reportagem.
Tenho que prestar atenção porque sei que vou descrever tudo aquilo. É difícil
porque, por exemplo, nesta reportagem sobre o rodeio, eu fiquei muito tempo
com o Cuiabano e fui naturalizando as coisas. Às vezes, eu fico lendo o que eu
falava para as pessoas no começo. Por exemplo, eu precisava ficar quatro horas
no rodeio e eu estou sempre no Whatsapp. Eu sempre estou conversando com
os meus amigos e vou contando as coisas. Então, eu procuro este histórico de
conversas para ver o que no começo estava me impressionando. Porque tem
uma hora, por exemplo, no rodeio tem muitos fogos de artificio. No final, eu
já não estava mais ligando para aquilo. Mas no primeiro rodeio que eu fui, eu
prestei atenção nisso. Então, para uma pessoa que não sabe é muito importante
dizer. (SCARPIN, 2016).
Assim, por meio do diálogo com os amigos, a reportagem contou com a descrição sobre
a queima de fogos:
Festa do Peão de Barretos deste ano começou no dia 19 de agosto, com a
tradicional queima de fogos. A partir do dia 20 o público já ocupava o Parque
do Peão. Quem chega pela entrada principal dá de cara com uma estátua de
caubói que tem 27 metros de altura e é tratada por toda a população local pela
alcunha de “Jeromão”, por ter sido construída numa das gestões do atual
presidente e organizador do evento, Jerônimo Muzetti (SCARPIN, 2015).
Já Malu Gaspar afirma que quando aparecem dúvidas durante o processo de
construção da reportagem costuma usar a estratégia de chamar o editor para uma conversa
ou para tomar um café. Ela acredita que a equipe da revista é formada por pessoas com
muita experiência que, assim como ela, já passaram por vários veículos. Por isso, há uma
troca de conhecimento e diálogo entre eles, porém respeitando a autonomia de cada
profissional.
É, justamente, desta troca de informações com o outro que surgem novas ideias
para a construção da reportagem.
A entrada de novas ideias propõe um conceito de criação no contexto de
interconexões e não isolamento, que também sustentam o conceito de rede. As
interações da rede são responsáveis pela proliferação de novas possibilidades:
75
ideias se expandem, percepções são exploradas, acasos e erros geram novos
caminhos, etc. (SALLES, 2015, p. 6).
A experimentação do repórter nos momentos de criação é um lugar para uma
possível análise dos erros e acertos do processo da elaboração da reportagem. Ao
experimentar, o jornalista busca novos caminhos que se distanciam de um padrão ou
formato pré-estabelecido. No caso da piauí, esta ruptura é feita quando o jornalista se
propõe a narrar.
Durante as entrevistas para o presente trabalho, os repórteres relataram a
influência das narrativas literária e cinematográfica para a composição de suas
reportagens. Desta forma, o próximo nó será sobre a narratividade.
4.5 Nó 02: A narratividade
A narrativa em si representa um modo de ordenamento da experiência humana, de
construção da realidade, e é a partir da personagem que isso se concretiza. É o que explica
Piccinin (2012, p. 68) ao afirmar que o olhar mais imediato sobre a narrativa é aquele que
a vê como a história resultante da sucessão de eventos e estado de coisas mediado por
personagens. Na perspectiva de Gai (2009), tem-se a necessidade de narrar para
compreender a experiência que se vivencia, ou seja, é por meio da narrativa que se forma
a visão dos fatos e do mundo:
Aquele que narra transforma uma experiência em linguagem, atividade que,
por sua vez, leva à compreensão e ao entendimento da experiência em si.
Mesmo o simples relato pressupõe a experiência, seja em relação ao fato
propriamente dito, seja em relação à constituição psicológica ou mental de
quem narra. É de acordo com esses dispositivos vivenciais que resultará a visão
do fato, e também do mundo, apresentada pela narrativa (GAI, 2009, p. 137).
É através da narrativa que se constitui e atribui sentido às situações do cotidiano,
de maneira que “narrar é organizar sistematicamente algo que já está lá” (PICCININ,
2009, p. 61). Para Genette (1976, p. 23-27), a narrativa sempre está relacionada a um
acontecimento real ou fictício realizado por uma pessoa ou uma personagem.
4.5.1 A narrativa literária
A narrativa literária, como sinônimo de texto narrativo, “pode ser sustentada pela
linguagem articulada, oral ou escrita, [...] está presente no mito, na lenda, na fábula, no
conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia” (BARTHES,
1972, p. 19). Pode-se ir além e afirmar que “a narrativa está presente em todos os tempos,
76
em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história
da humanidade. Não há em parte alguma, povo algum sem narrativa” (BARTHES, 1972,
p. 19).
Assim, é característica da literatura, ao usar o modo narrativo, criar histórias,
dramas envolventes, relatos históricos críveis, embora não necessariamente verdadeiros.
Então, “entendemos por narrativa todo discurso que nos apresenta uma história
imaginária como se fosse real, constituída por uma pluralidade de personagens, cujos
episódios de vida se entrelaçam num tempo e num espaço determinados” (D’ONOFRIO,
1995, p. 53). A narrativa, dessa maneira, localiza a experiência humana no tempo e no
espaço. As grandes obras de ficção que transformam a narrativa em uma forma de arte
chegam muito perto de revelar “puramente” a estrutura profunda do modo narrativo em
expressão (BRUNER, 2002, p 14-16).
O crítico literário Antonio Candido (1998) afirma que os recursos utilizados pelo
escritor de ficção são compostos pela energia da sua imaginação e por sua linguagem
poética. Ele afirma que há sim referências no real, mas que elas são transfiguradas pela
imaginação do autor:
É perfeitamente possível que haja referência indireta a vivências reais [no texto
literário]; estas, porém, foram transfiguradas pela energia da imaginação e da
linguagem poética que visam a uma expressão ‘mais verdadeira’, mais
definitiva e mais absoluta do que outros textos (CANDIDO, 1998, p. 14).
O mesmo já tinha sido apontado por Forster (1974, p. 34-35) ao afirmar que “um
romance é baseado nos fatos “+ ou – X”, sendo a incógnita o temperamento do
romancista, e essa incógnita sempre modifica o efeito dos fatos e, algumas vezes, os
transforma inteiramente”.
O escritor Émile Zola é referência de como um autor pode se utilizar de uma
observação profunda da realidade para compor a sua obra. O romancista, por exemplo,
recolhe os elementos do seu romance mediante o estudo e a observação direta e
intencional da realidade, de modo a conhecer com exatidão as condições de trabalho, os
anseios e os dramas das suas personagens (AGUIAR E SILVA, 1974, p. 239). Ao
observar a realidade, o autor literário acaba por analisá-la intencionalmente o que
representa uma atitude de espírito comum a todo romancista:
[...] todo aquele que sente dentro de si a vocação de escrever romances, sabe
como o seu olhar sobre o mundo e sobre os homens jamais é distraído,
prescrutando sempre por detrás dos rostos, dos gestos e dos hábitos, a vida
secreta das almas, imaginando cenas e aventura com as pessoas com que
convive, com que viaja, etc. Do cabedal das suas observações e das suas
77
experiências, hão-de nascer e alimentar-se as personagens e as situações
romanescas (AGUIAR E SILVA, 1974, p. 239).
O fato de as personagens estarem situadas em acontecimentos observados pelos
romancistas, ação que se entrecruza com a história narrada, proporciona um caráter
dinâmico à obra. O romance apresenta personagens situadas num determinado contexto,
em certo lugar e em certa época, mantendo entre si mútuas relações de harmonia, de
conflito etc. (AGUIAR E SILVA, 1974, p. 240).
4.5.2 A narrativa cinematográfica
Para Bill Nichols todo filme é um documentário. Na verdade, segundo o autor,
existem dois tipos de filme: documentários de satisfação de desejos e documentários de
representação social. O primeiro é o que chamamos normalmente de ficção e o segundo
de não ficção. Esse último se aproxima do jornalismo devido à capacidade de ambos
transmitirem uma impressão de autenticidade.
Esses filmes [documentários de representação social] representam de forma
tangível aspectos de um mundo que já ocupamos e compartilhamos. Tornam
visível e audível, de maneira distinta, a matéria de que é feita a realidade social,
de acordo com a seleção e a organização realizadas pelo cineasta. Expressam
nossa compreensão sobre o que a realidade foi, é e o que poderá vir a ser
(NICHOLS, 2013, p. 26).
Ainda segundo Nichols, os filmes de não ficção oferecem-nos um retrato ou uma
representação reconhecível do mundo pela capacidade de registrar situações e
acontecimentos com fidelidade. Ao mesmo tempo, encontramos histórias que nos
permitem ver o mundo de uma nova maneira.
Os documentários mostram aspectos ou representações auditivas e visuais de
uma parte do mundo histórico. Eles significam ou representam os pontos de
vista de indivíduos, grupos e instituições. [...] Quanto desses aspectos da
representação entra em cena varia de filme para filme, mas a ideia de
representação é fundamental para o documentário (2013, p. 30).
Documentário também é um relato narrativo. Nichols afirma que a estrutura de
muitos filmes de não ficção faz uso tanto de técnicas narrativas como da retórica. “A
narrativa aperfeiçoa a ideia de fim, voltando-se para os problemas e dilemas propostos no
início, resolvendo-os” (2013, 127).
78
Arlindo Machado afirma que muito embora a literatura e o cinema suportem uma
base narrativa aparentemente comum, no cinema não se “conta” propriamente uma
história:
“Contar” implica uma relação de anterioridade do fato narrado, de que o
narrador se faz porta-voz em um momento posterior [...] Ora, a narrativa
cinematográfica é sempre vivida pelo espectador como um presente virtual.
Num certo sentido, não há passado no cinema: quando as luzes se apagam e o
filme começa a ser projetado, a história começa “de fato” a suceder diante dos
nossos olhos, [...] nós estamos “lá” como testemunhas e tudo é imediato
(MACHADO, 2007, p. 19).
Para Arlindo Machado, uma “instância narradora” só pode existir na estrutura do
filme como uma lacuna, para que o espectador ocupe o seu lugar. “Assim, qualquer que
seja a instituição do sujeito que se põe em circulação no cinema, ela deve poder colocar
o espectador no centro de processo de significação” (2007, p. 20). Evidencia-se, assim, a
importância do receptor na construção da narrativa fílmica.
Ainda conforme Machado (2007), a ideia de um “narrador” não comanda apenas
a orientação da câmera, mas os processos de montagem e sonorização de um filme,
posicionando o espectador numa certa relação com o mundo representado. Ou seja, a
narrativa cinematográfica tem diferentes recursos para a construção do chamado “ponto
de vista” da história. Tais técnicas também podem ser apreendidas na narrativa
jornalística, como na edição de um texto, por exemplo.
4.5.3 Narratividade no jornalismo
As narrativas jornalísticas também são construídas a partir de recursos literários ou
cinematográficos em suas estruturas. Sodré (2009, p. 144) afirma que isso acontece
quando o jornalista se comporta como um narrador e dá cores de aventura romanesca ao
seu relato para captar ainda mais a atenção do leitor.
Para entender como o jornalista se comporta enquanto narrador é necessário
observar as características do narrador apontadas Benjamin (1987) e do narrador
midiático evidenciadas por Sodré (2009) e por Santiago (2012). Para Benjamin (1987, p.
198-199), a principal característica do narrador clássico é a capacidade de sua narrativa
intercambiar experiências com o receptor, de maneira que o ato de narrar advenha da
experiência do narrador.
Para o autor, não há narrativa sem a experiência, então, o narrador
necessariamente precisa experimentar algo para contar uma história. Assim, Benjamin
79
(1987) aponta para dois tipos de narradores, fundamentalmente. O narrador como um
viajante que experimentou diferentes realidades e voltou para contar sobre elas e aquele
sujeito experiente que conhece as histórias e as tradições de seu povo e se propõe a narrá-
las.
Já o narrador midiático se distancia da ideia benjaminiana porque não narra sobre
suas experiências, mas colhe informações de terceiros para construir sua narrativa. A
principal diferença defendida por Benjamin entre narrar (narrador benjaminiano) e
informar (narrador midiático) é que os fatos em uma informação já chegam
acompanhados de uma explicação. Já na narrativa, o leitor é livre para interpretar a
história como quiser, e, com isso, o episódio narrado ganha uma amplitude que não existe
na informação (BENJAMIN, 1987, p. 203).
Assim, o narrador midiático é, na verdade, um grande observador da vivência dos
outros. A partir dela, constrói a sua narrativa. “A figura do narrador [midiático] passa a
ser basicamente a de quem se interessa pelo outro (e não por si) e se afirma pelo olhar
que lança ao seu redor, acompanhando seres, fatos e incidentes (e não por um olhar
introspectivo que cata experiências vividas no passado)” (SANTIAGO, 2012, p. 42-44).
Ao passo que o narrador clássico introduz suas experiências na narrativa, o midiático se
afasta (muitas vezes se esconde) da narração para enaltecer a voz da pessoa observada. A
“sabedoria” da narrativa midiática não advém do narrador, e sim da ação daquele que é
observado. A sua essência não deixa de ser a experiência, mas ela não é vivida, e sim
observada.
Se falta à ação representada o respaldo da experiência, esta, por sua vez, passa
a ser vinculada ao olhar. A experiência do olhar. O narrador que olha é a
contradição e a redenção da palavra na era da imagem. Ele olha para que seu
olhar se recubra de palavra, constituindo uma narrativa (SANTIAGO, 2012, p.
51).
Assim, na narrativa midiática, é evidenciada a figura daquele que é observado,
pois é a partir do olhar sobre ele que será construída a narrativa. Mostra-se, então, a figura
da pessoa que será entrevistada para a composição do texto jornalístico. Ou seja, o
narrador midiático enaltece a figura da pessoa, e, para isso, ele se junta ao leitor como
dois observadores da ação.
Na reportagem, há espaço para a ação dramática e descrições de ambientes e
pessoas, características que se assemelham à narrativa literária. Segundo Sodré e Ferrari
(1986), a reportagem é um desdobramento da notícia, mas com foco no “quem” e no “o
quê” entre as perguntas clássicas do jornalismo: quem, o quê, como, quando, onde, por
80
quê. Ou seja, muito mais do que alongar a notícia, o essencial da reportagem está no
interesse humano.
Nas condições de sofrimento de um indivíduo, filtradas pelas impressões de
um outro indivíduo, projetavam-se as dificuldades de uma nação em luta pela
vida. A humanização do relato, pois, é tanto maior quanto mais passa pelo
caráter impressionista do narrador. Diretamente ligada à emotividade, a
humanização se acentuará na medida em que o relato for feito por alguém que
não só testemunha a ação, mas também participa dos fatos. O repórter é aquele
“que está presente”, servindo de ponte (e, portanto, diminuindo a distância)
entre o leitor e o acontecimento. Mesmo não sendo feita em primeira pessoa, a
narrativa deverá carregar em seu discurso um tom impressionista que favoreça
essa aproximação (SODRÉ; FERRARI, 1986, p. 15).
A reportagem necessita, então, de características como a predominância da forma
narrativa; a humanização do relato; o texto de natureza impressionista e mantendo ao
mesmo tempo a busca pela objetividade dos fatos narrados. Neste caso, o sentido da
palavra objetividade é sinônimo de precisão: “[R]esultado do uso competente de um
conjunto de técnicas (de observação e captação) que servem aos fundamentos da
linguagem jornalística, para que nela seja preservada a natureza asseverativa, sua
principal característica” (CHAPARRO, 2007, p. 13).
4.5.4 Narratividade na revista piauí
O texto narrativo é a marca da revista piauí. A narratividade do texto determina a
forma como os repórteres apuram os fatos. Ou seja, a oportunidade que eles têm de
experimentar, como afirma Salles, novas formas de reportar sobre os acontecimentos.
Sobre o processo de apuração de um texto narrativo, a repórter Paula Scarpin
explica que “Quando eu saio para a rua para fazer uma apuração, é outra coisa. É o olhar,
é o interesse. O produto é tão diferente, mas o trabalho é mais diferente ainda”
(SCARPIN, 2016).
Na presente pesquisa, os jornalistas foram questionados como seria o momento
da apuração para a construção de um texto narrativo. Todos eles afirmaram que a
apuração precisa ser diferenciada e que o olhar do repórter estará atento para detalhes
que, muitas vezes, são despercebidos pelo jornalista que não escreve textos narrativos.
Tais detalhes auxiliam o repórter na construção da história da reportagem e,
consequentemente, organizam melhor os fatos para o leitor. Até porque, como foi visto
anteriormente, a narrativa tem o poder de organizar a realidade. Porém estes detalhes
81
precisam ser checados porque não há espaço para a imprecisão e, muito menos, para a
ficção.
A jornalista Eliane Brum é referência no jornalismo brasileiro quando o assunto é
a construção de reportagens narrativas. Durante suas passagens no jornal Zero Hora, de
Porto Alegre, e na revista Época, de São Paulo, escreveu diversas reportagens premiadas
que ganharam o formato dos livros-reportagem A vida que ninguém vê (2006), que reuniu
reportagens publicadas no jornal gaúcho, e O olho da rua (2008), que contou com
reportagens da revista Época. Sempre quando a repórter é questionada sobre o processo
de construção das suas reportagens, afirma que o trabalho de apuração delas é redobrado
justamente devido aos detalhes que narra. Ela costuma usar o termo “bom jornalismo”
para este tipo de apuração:
O bom jornalismo é aquele que se faz apurando todos os detalhes, atravessando
a rua e mudando de ângulo várias vezes, sempre aberto para o espanto. Aquele
que se ouve um pássaro cantar vai descobrir que pássaro era aquele, se diz que
fazia sol no dia em que aconteceu um crime é porque checou com três sites de
meteorologia diferentes para ter certeza de não errar, além de ouvir várias
pessoas apenas sobre este detalhe específico. É na precisão dos detalhes, na
quantidade de nuances, na reprodução do ritmo e da fala e no respeito pelas
palavras do outro que a reportagem se faz substantiva e comprova sua
qualidade e relevância. Na reportagem, não há milagre, e o talento para
escrever não salva ninguém da preguiça. O cara pode ser um prêmio Nobel da
literatura que, se apurou mal, vai escrever um texto ruim. E, sim, o bom
jornalismo se aplica a tudo o que é da vida (BRUM; ARQUIVO
ELETRÔNICO64, 2014).
Questionado sobre o tipo de jornalismo que a revista piauí apresenta ao leitor, o
repórter Bernardo Esteves prefere denominar como Jornalismo Narrativo:
Jornalismo narrativo é que a gente gosta de fazer. Tem um lema, inspirado no
jornalismo americano que tem esta frase: ‘Show, don’t tell’. Descreva e deixe
o leitor chegar a uma conclusão. Eu narro, não dito regras. É uma tradição
muito legal do jornalismo narrativo. A gente [piauí] não inventou. Tem uma
raiz comum do que muitos chamam de jornalismo literário. Acho o termo um
pouco datado. O termo jornalismo narrativo é mais aberto e mais abrangente.
Utilizar recursos da narração. Contar uma história. Eu estou falando de
construir personagens, construir tensão [...] Você vai conduzindo a narrativa
para um certo ponto. Aí depois você corta e vai para uma cena diferente. Você
pode pensar na estrutura da coisa em larga escala. A possibilidade de alternar
espaço, tempo e personagens. Posso construir os antagonismos. São recursos
interessantes que no jornalismo convencional aparecem bem mais palidamente
(ESTEVES, 2015).
O pensar narrativo antecede a construção do texto em si. O repórter vai para a
pauta com a clareza de que é preciso contar uma história. Bernardo explica que, assim, a
narrativa já vai ganhando formato, em alguns casos, no momento das conversas com as
64 Disponível em <https://jornalismoliterarioblog.wordpress.com/2014/02/11/entrevista-com-eliane-brum-
jornalismo-literario/>. Acesso em 07. Ago. 2018.
82
fontes (a apuração) e, principalmente, antes de escrever a reportagem. Sobre isso, o
repórter comenta: “No meu roteiro de entrevista tem sempre uma pergunta assim: ‘Me
conta uma vez que’. Se é um perfil, eu pergunto para o perfilado: ‘Me conta a história do
dia em que você estava naquele lugar’. Sempre isso” (ESTEVES, 2015).
As experimentações do repórter Bernardo Esteves podem ser vistas já no seu
diário de bordo65 da entrevista para a reportagem “O colecionador”. Ou seja, o olhar
diferenciado para a construção da narrativa está, como já foi visto, em todos os momentos
da criação. O repórter inicia as anotações com percepções sobre o entomólogo Vitor
Becker.
Assim, ele escreve: “Na risada, o movimento do queixo é levemente
dessincronizado com o som” (ESTEVES, 2015). Logo em seguida, uma descrição do
vestuário de Becker: “calça social, camisa polo e casaco”. Há ainda descrições do
ambiente na hora da entrevista: “Lá fora, uma bruma branca espaça impedia que
enxergássemos alguns metros adiante”. E: “A mata permeava pela bruma que ganhava
ares meio artísticos”. Todas estas observações não são usuais no jornalismo e podem
trazer um diferencial para o texto. Desta forma, as descrições são uma marca do
jornalismo narrativo e elas servem para auxiliar o autor a contar a história, possibilitando
o leitor uma nova lente para o real ali representado.
Outro exemplo é o início da reportagem “Os seixos da discórdia”, em que
Bernardo narra o momento em que o arqueólogo Antoine Lourdeau encontra os seixos,
fator que originou a produção do artigo cientifico e que motivou a reportagem. O repórter
não estava na cena, mas o momento foi recuperado na fala do pesquisador em uma
conversa com o repórter. Por não estar presente, Bernardo explica que não deu muitos
detalhes da cena que narrou:
Pedi para ele [O arqueólogo francês Antoine Lourdeau] descrever a hora em
que achou a pedra e que ele ganhou o dia. Eu não estava lá. Eu estava com ele
em uma mesa de restaurante. Ele evocando isso. Eu até narro como se ele
estivesse no campo, mas não dou detalhes porque eu não estava lá com ele. Aí
depois eu digo na reportagem que ele estava me contando isso num encontro
urbano (ESTEVES, 2015).
Assim ficou a abertura da reportagem:
O arqueólogo francês Antoine Lourdeau escavava um sítio na Serra da
Capivara, no sul do Piauí, quando se deparou com um seixo grande. Só
conseguia ver uma face da pedra. Tinha tamanho e formato ideais para ser
empunhada pela mão de um adulto. Suspeitou que tivesse sido transformada
para ser usada como ferramenta, talvez para produzir um gume. Pegou um
65 Anexo 4.
83
pincel e uma colher de pedreiro para desenterrar o objeto delicadamente. Pouco
a pouco, revelou o outro lado do seixo onde, de fato, havia várias lascas
retiradas. Lourdeau não teve dúvida. “Era um instrumento maravilhoso, um
trabalho muito fino”, contou. “Ganhei o dia.” [...] Num restaurante próximo à
praia de Boa Viagem, no Recife, o francês explicou (ESTEVES, 2014).
Nos rascunhos disponibilizados por ele para a pesquisa, anotações que
antecederam a reportagem “O colecionador”, perceber-se que Bernardo pensou a
construção da reportagem narrativamente. O repórter escreveu títulos numerados que
apresentam situações da história e informações que serão desenvolvidas em cada
parágrafo. Exemplo: 1. VB [Vitor Becker] mostra a coleção aos australianos. Assim,
Bernardo inicia o texto desta forma: “No final de junho, um casal de australianos
acompanhado do filho visitou o entomólogo Vitor Becker em sua propriedade na Serra
Bonita, ao sul da Bahia, numa área preservada da Mata Atlântica” (ESTEVES, 2015, p.
38).
O rascunho de Bernardo66 é formado por vários blocos que sinalizam para uma
sequência dos parágrafos que vão aparecer na reportagem, dando uma ideia de possível
controle sobre o tempo da narrativa e, ao mesmo tempo, um sentido de mobilidade, já que
ele poderá escolher qual o fato que se tornará a primeira cena (abertura) ou a última
(fechamento) da reportagem.
Entretanto, como a narrativa é jornalística e não literária, por exemplo, é ainda
necessário um texto objetivo, no sentindo de clareza. Com isso, o repórter não tem total
liberdade para sequenciar sua história. Como se o leitor de jornal não fosse tão
compreensível como o da literatura para uma narrativa que não requer explicações. O
relato de Bernardo sobre a escolha da abertura da reportagem “O colecionador” mostra,
justamente, esta restrição que o repórter tem ao escrever.
A estrutura desta matéria [O colecionador] ficou menos clara para mim. Tinha
esta cena que era da visita da coleção [de mariposas] que acabou abrindo a
matéria. Que era boa, mas eu não estava muito empolgado com ela. Eu achava
que eu podia abrir com a cena que eu usei no final. Ele falando do Adoniram
Barbosa. Eu não abri porque precisava explicar muita coisa. Precisava explicar
como é que pega mariposa. Tinha muito pré-requisito. Precisava de um
exemplo bom do que eu falei genericamente. A cena é sugestiva, mas depois
eu tenho que explicar um monte de coisa que vai travar. Quem é esse cara.
Quem está fazendo isso. Eu não cheguei a começar o texto com esta versão.
De cara, eu vi que funcionaria melhor de outra forma (ESTEVES, 2015).
Ao observamos a reportagem publicada, a citação de Adoniran Barbosa: “As
mariposas quando chega o frio\Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra si isquentá” foi
66 Anexo 5.
84
utilizada já no final do texto quando o jornalista já havia, em um parágrafo anterior,
explicado sobre o procedimento de coletar mariposas.
Há, assim, uma preocupação do repórter de como sua narrativa deve ser construída
para o melhor entendimento do leitor. Bernardo afirma que a estrutura do texto é
premeditada para que o repórter, além da informação, possa emitir sensações ao leitor,
como o suspense ou momentos de tensão. Algo que a narratividade permite.
Às vezes, eu antecipo para dar uma recarga na voltagem da reportagem quando
sinto que a narrativa está meio arrastada. Um bloco que estaria mais adiante,
eu antecipo. A hora de montar isso no texto parece muito com a montagem de
um documentário. São blocos que às vezes são intercambiados. Você sente que
tem um momento que está mais agitado, dependendo da matéria, você pode
antecipá-lo no texto. Uso dois ou três dias para pensar a estrutura. Eu não
começo a escrever antes de terminar a apuração. Eu começo a fazer um mapa.
Eu não gosto de escrever sem ter este mapa. Como se eu escrevesse uma frase
para cada parágrafo do texto. Eu vou escrevendo e vou rabiscando para ter uma
ideia de que eu estou progredindo (ESTEVES, 2015).
No texto “O colecionador”, Bernardo explica que a história não lhe possibilitou muitos
momentos de tensão narrativa:
Foi mais difícil criar tensão. O momento de maior tensão foi um cara que
aparece afirmando que ele usou recursos públicos para fazer a coleção dele.
Isso aparecia mais adiante no texto e eu antecipei para dar um choque e para
trazer um pouco de desconforto. Mostrar que não é todo mundo que gosta deste
cara. Olha só o cara super colecionador de mariposas, super ativista ambiental.
Mas tem uma ciumeira acadêmica. Gente que estuda a mesma coisa e fica
mordido (ESTEVES, 2015).
O repórter explica que os recursos narrativos servem para trazer o leitor para a
cena. São detalhes não verbais que revelam tanto ou mais que as declarações. Porém,
Bernardo adverte que esses detalhes devem compor o texto na medida em que fazem o
texto andar para frente. Ou seja, na medida em que revelam e trazem algum elemento
relevante para o entendimento da história.
Preciso ficar de olho. Às vezes, o cara está falando, falando, e o assunto não
está tão interessante, e eu começo a anotar cenas e detalhes do ambiente. Se
ele está vestindo de alguma forma que revele o caráter dele. Se ele está muito
desleixado, deslocado. Detalhes do escritório, da paisagem. Se ele fala muito
pausado. Se ele demora. Detalhes que vão ser mais difíceis resgatar das
gravações, que se você não anotar ali na hora, passam (ESTEVES, 2015).
Já Carol Pires relatou para a presente pesquisa que escreveu a reportagem “O
casamento do ano”, publicada na edição 86, de novembro de 2013, imaginando-a como
um roteiro cinematográfico. Pautada por seu editor para escrever um perfil sobre a criação
do partido político Rede, teve que mudar de foco quando o Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) negou o registro do partido.
85
Então, no meio da apuração, tive que embicar a reportagem para outro lado. O
resultado foi uma reportagem que eu escrevi imaginando ser um roteiro: o que
aconteceu naquelas horas que ela levou para tomar a decisão de se filiar ao
PSB e ser vice do Campos. Lembrando que ela corria contra o tempo porque
para se candidatar no ano seguinte os políticos devem estar filiados ao partido
pelo qual serão candidatos pelo menos um ano antes do pleito. E entre o dia
que a criação da Rede foi rejeitada e esse prazo faltava pouquíssimo tempo,
uns 3 dias, se me lembro bem (PIRES, 2015).
Pode-se conferir que a reportagem tem características semelhantes ao roteiro com
as descrições da cena e com diálogos:
Marina Silva estava sentada em uma mesa nos fundos do restaurante do seu
hotel, na Vila Olímpia, bairro rico de São Paulo, embrulhada em um xale
vermelho-alaranjado. A manhã estava clara, mas fazia frio na cidade na última
terça-feira de outubro. Marina conversava com o deputado Walter Feldman,
como ela recém-filiado ao PSB, quando seu assessor de imprensa se
aproximou. “O Estadão hoje pôs vocês dois na capa”, avisou. Os dois eram
Marina Silva e o governador de Pernambuco, Eduardo Campos. “Você está de
língua de fora”, completou o assessor.– Humm… de língua pra fora? –
perguntou Marina, espaçando as sílabas. – É simpático… a foto mais famosa
do Einstein é de língua pra fora – contemporizou Feldman. – Bem, agora a
gente tem que ter cuidado até para respirar – ela disse. O assessor Nilson de
Oliveira riu discretamente e disse que Marina havia ficado com cara de marota
na foto. – Mas eu não sou uma pessoa marota – ela rebateu, acentuando o “não”
(PIRES, 2013, ARQUIVO ELETRÔNICO67).
Além da construção do texto em si, a edição também tem marcas da narrativa
cinematográfica até porque um dos editores é o cineasta João Moreira Salles. É o que
narra Bernardo Esteves sobre a edição da reportagem “O colecionador”:
Ele [João Moreira Salles] é um documentarista, antes de ser um jornalista.
Então ele tem muito esta consciência da estrutura. Às vezes temos um papo até
antes de escrever a matéria, na hora de pensar a estrutura. Ou depois. Ele é um
editor que gosta bastante de dar sugestões desse tipo. Exemplo: este bloco que
você colocou na página seis vai funcionar muito melhor se você trouxer para a
página dois. Ou antecipa isso daqui. Ou retarda isso daqui ou desenvolve isso.
[...] Nas mariposas [A reportagem “O colecionador”] foi mais sugerido. A
gente conversava, eu refazia o texto em função do que ele tinha dito.
Rabiscava. Ele leu umas três ou quatro versões [...] Nas conversas com o editor,
você mexe e corta. O texto da mariposa saiu com 25 mil toques a menos. Devo
ter mandado com 70 mil e ele saiu com 45. Mas eu já sabia. (PIRES, 2013,
ARQUIVO ELETRÔNICO).
Não só a edição, mas todo o processo demonstra que o principal direcionador da piauí é
contar uma história, assim como o documentário ou o romance literário.
Para Malu Gaspar, a criação do texto narrativo é a parte literária da produção da
reportagem da piauí:
Vou começar com a melhor cena para que o leitor grude no meu texto e não
largue. É a parte mais literária. Não é da informação mais importante para a
67 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-casamento-do-ano/>. Acesso em 29. Set. 2018.
86
menos importante. É a história. Você precisa contar aquela história da melhor
maneira possível. É um propósito diferente da Veja, da Folha. Você quer que
o cara leia até o final e são matérias enormes. Nem sempre a gente consegue,
mas o objetivo é esse. Se você coletar um monte de declaração vai ficar
maçante e talvez não revele o que você precisa revelar (GASPAR, 2016).
Assim, a jornalista faz algo incomum no jornalismo tradicional e inicia a
reportagem “Em águas profundas” com um diálogo de um depoimento da CPI da
Petrobras que desencadeou na Operação Lava Jato.
O senhor acha que vocês estão acima da lei, que podem fazer o que bem
entendem, desde que paguem propina a agentes públicos?” A primeira
pergunta endereçada ao depoente que comparecia à Comissão Parlamentar de
Inquérito da Petrobras na tarde de 27 de maio caiu no vazio. Sentado num dos
cantos da longa mesa da comissão, junto aos dois advogados que o
acompanhavam, o empresário Carlos Eduardo Schahin limitou-se a responder
o que havia ensaiado: “Por orientação dos nossos advogados, eu vou ficar em
silêncio.” Seria assim diante de todas as outras indagações que lhe seriam feitas
(GASPAR, 2015, ARQUIVO ELETRÔNICO68, Grifo nosso).
O diálogo do depoimento tem uma pergunta forte que serviu para chamar a
atenção do leitor para o conteúdo da reportagem, assim tornou-se uma boa abertura para
o texto. Além disso, a passagem mostra que o empresário Schahin silenciou diante da
Comissão, mas quatro semanas depois, como mostra a reportagem, decidiu conceder uma
entrevista para Malu Gaspar e contou sobre aquele momento:
“Eu tenho 70 anos, comecei aos 22. Trabalho feito um condenado, para chegar
ao final da vida e ser chamado para uma CPI da Petrobras...E aqueles ladrões
me chamam de quadrilheiro! Perguntaram se eu não tinha vergonha de chegar
em casa e encarar minha mulher e meus filhos sendo um mau-caráter, um cara
sujo, um sem-vergonha que joga contra o Brasil. E eu ali dizendo que não tinha
nada a declarar. Foi uma humilhação”, disse arregalando os olhos azuis
(GASPAR, 2015, ARQUIVO ELETRÔNICO).
Durante a entrevista para o presente trabalho, Malu Gaspar relata que essa
reportagem foi a sua primeira para a revista piauí e que precisava trazer algo novo para o
cenário do noticiário sobre a operação Lava-Jato. A repórter apostou em uma pauta sobre
os bastidores dos acontecimentos:
A gente conseguiu costurar as histórias de personagens mais ou menos
conhecidos, mas que não estavam muito bem situados no noticiário. Como que
se dá o submundo da política em meio a uma CPI. Eram informações cruas que
mostram como as coisas realmente acontecem. No geral, diante do repórter a
pessoa não vai falar isso. Eu lido com pessoas complicadas. Eu falo para a
pessoa: “Eu quero contar a sua história. Sua história é importante devido ao
contexto político”. O cara vê na entrevista uma utilidade para ele (GASPAR,
2016).
68 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/em-aguas-profundas/>. Acesso em 26. Set. 2018.
87
Como foi visto, Malu tem a formação no jornalismo tradicional com passagem
pelos principais veículos do país. Por isso, o olhar diferenciado para um texto narrativo
foi um aprendizado. A partir da produção do seu primeiro livro-reportagem Tudo ou nada
(Record, 2014), aprofundou a sua leitura de outros livros do gênero, o que representou
um aprendizado que usa até hoje na revista piauí. Ela cita os autores Gay Talese e José
Hamilton Ribeiro como grandes referências para a construção de narrativas jornalísticas:
Eu não tinha este olhar. [...] Eu não tinha muito isso de prestar atenção aos
detalhes. Várias vezes o editor da Veja questionava que estava faltando um
pouco de cor nos meus textos. No jornal você não tem tempo. Você nem presta
atenção nisso e essa foi a minha formação. Fiquei seis anos na Folha e fiz
algumas matérias um pouco mais elaboradas. Já na Veja já tinha uma exigência
maior de escrever mais. Eu comecei a aprender a fazer isso. Quando fui
escrever o livro, eu li muito livros de reportagens. Gay Talese e José Hamilton
são mestres em colocar você dentro da cena. Exercício que fez toda a diferença
para eu estar na piauí. E depois quando você chega com calma e sabe que o
seu resultado precisa ser esse, você fica de olho. Eu anoto a cena, não anoto o
que o cara está falando. Isso eu gravo (GASPAR, 2016).
Malu acrescenta que as descrições são essenciais no texto narrativo. Elas ajudam
a contar a história e, muitas vezes, revelam a impressão do repórter sobre a cena. Elas
precisam ser reveladoras porque senão correm o risco de se tornarem decorativas. A
repórter dá como exemplo as descrições usadas no perfil “O delator”.
Na tela, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, explicava aos deputados a
dinâmica da votação. Delcídio mantinha a postura aparentemente relaxada,
mas seu semblante estava tenso. Por vezes o olhar ficava estático, grudado na
tevê, mas ele não parecia prestar atenção. Talvez fosse cansaço, visível pelas
olheiras profundas. Mas também podia ser incredulidade (GASPAR,
ARQUIVO ELETRÔNICO69, 2016).
Sobre a descrição acima, Malu afirma que teve um pouco de interpretação do que
presenciava. Como se tentasse imaginar o que se passava na cabeça do perfilado. Ao
mesmo tempo, por conhecer bem o personagem e a história, Malu se sentiu à vontade
para isso.
Para Carol Pires a apuração do texto narrativo torna-se orgânica para o repórter
com o tempo e com a experiência. Porém, notar este tipo de detalhe pode ser uma
armadilha quando a descrição representar informações irrelevantes para a reportagem.
Não tem que detalhar cada comida posta na mesa a não ser que aquilo fosse
um banquete e o cara só quis comer cream cracker, ou se, ao contrário, o cara
fosse um glutão, um extravagante, e defendesse a causa dos descamisados. A
roupa importa se é excêntrica ou se alguém está overdressed fora de ocasião.
Eu fiz um perfil curto sobre o Dr Rey fazendo campanha de rolex e terno Gucci
na 25 de março. Nesse caso achei que valia dizer. A Marina usa uns colares
indígenas que para ela têm significados metafísicos. Então explica um pouco
da personalidade dela. O Mujica de sandália na cúpula do MERCOSUL, vale.
69 Disponível em <http://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-delator-delcidio-do-amaral/>. Acesso em 07.
Ago. 2018.
88
Mas pouco importa se o senador fulano de tal estava com a gravata verde ou
vermelha quando te disse que é a favor ou contra o impeachment do presidente
(PIRES, 2015).
Carol Pires usa procedimentos literários na hora de escrever uma reportagem
narrativa. Ela conta que toma emprestadas dos grandes ficcionistas as técnicas narrativas
para aplicar a informação real que coleta ao longo da apuração. Assim como Santiago
(2012) descreveu o narrador midiático. Além disso, acompanha jornalistas que, assim
como ela, escrevem textos narrativos.
Como fonte de inspiração, eu gosto muito dos livros do García Márquez porque
são escritos com a cabeça dele de repórter. E leio muita crónica (não confundir
com a crônica que conhecemos no Brasil). Crónica é como os latino-
americanos de língua espanhola chamam o jornalismo narrativo. O Juan
Villoro, escritor mexicano, define a crónica como um ornitorrinco, um animal
estranho que mais parece uma junção de distintas partes de vários animais. A
crónica é isso, uma reportagem com pedaços de entrevista crua, com técnica
de literatura, alma de ensaio. [...] Também tento acompanhar todas as revistas
narrativas do continente – Etiqueta Negra no Peru (de onde a Dorrit Harazim
e o Mario Sergio Conti se inspiraram para criar o modelo da piauí), Gatopardo
do México, e várias outras, como a Esquire latino-americana e a Rolling Stone
argentina. Hoje os jornalistas narrativos não devem em nada à ficção. Como
eu escrevo muito sobre política e é um tema árido para escrever em formato
narrativo, também fico bem atenta ao que escreve o Jon Lee Anderson, a
Larissa McFarquar, o Philip Gourevitch e o David Remnick, todos da New
Yorker (PIRES, 2015).
Entender alguns dos procedimentos recorrentes nos relatos dos jornalistas, a partir
da perspectiva de refletir sobre a produção jornalística a partir da prática dos próprios
jornalistas, é compreender também a construção do jornalismo narrativo e todas as suas
implicações para o leitor. A narrativa carrega em si a capacidade de compreensão do
mundo. Mas não só isso. O entendimento das diversas facetas de um mundo em sua
complexidade.
A partir da passibilidade de ter o tempo como aliado e por meio da experimentação
do repórter, o jornalismo pretende encarar o desafio de decodificar esta complexidade.
No próximo capítulo, a partir da rede de criação da agência Lupa, será apresentada uma
nova frente: a checagem. Algo que já foi visto como essencial na reportagem, mas agora
como um produto fim.
89
5. A REDE DE CHECAGEM DA AGÊNCIA LUPA
A discussão proposta por este capítulo será sobre a rede de checagem da Agência
Lupa e o combate à desinformação. Será observado também como a imprensa brasileira
reagiu diante do fenômeno da pós-verdade. O tema é contemporâneo e a discussão é
atualizada frequentemente a partir das criações de projetos e iniciativas de combate às
notícias falsas no Brasil e em outros países.
Porém, as iniciativas pioneiras no Brasil foram influenciadas pelo movimento de
checagem de outros países antes mesmo do início do período classificado como o da pós-
verdade. No Brasil, a checagem como produto final surge nas eleições de 2014 com o
objetivo de averiguar as declarações dos presidenciáveis. Só alguns anos depois é que o
movimento ganha força e lugar nas principais redações brasileiras na tentativa de
combater as notícias falsas e a desinformação.
5.1 A checagem nos EUA
A checagem é um dos pilares do jornalismo moderno. As redações costumavam
com mais frequência do que hoje empregar profissionais para a checagem interna das
matérias produzidas por repórteres. Com o crescimento do jornalismo online e o fetiche
da velocidade, o checador perdeu espaço nas redações. Como foi visto no capítulo
anterior, a revista piauí, objeto deste estudo, é um exemplo de veículo que ainda mantém
esta dinâmica da checagem interna.
Segundo Lucas Graves (2016, p. 7), em seu livro Deciding what’s true: the rise
of political fact-checking in American Journalism (2016), as referências aos revisores
aparecem pela primeira vez em periódicos norte-americanos no início do século XIX. Os
departamentos de verificação de fatos surgiram em revistas americanas nos anos de 1920
e 1930. Graves relata ainda que as rotinas de checagem interna respondem ao imperativo
de eliminar a mentira, não chamar a atenção para isso. Diferente das agências de
checagem, objeto deste estudo, que fazem exatamente o oposto, dão destaque para a
mentira.
Com o tempo, após quase o abandono da prática de checagem nas redações,
grupos de jornalistas resgataram o conceito e passaram a usar a checagem como um
produto, ou seja, o diferencial na produção da notícia. Lucas Graves afirma que grupos
90
de fact-checking inventaram um novo estilo de notícias políticas, que busca revitalizar a
tradição da “busca pela verdade” no jornalismo, fazendo com que figuras públicas
prestem contas do que dizem. Na prática, os jornalistas passaram a classificar como falsas
ou não as declarações de pessoas públicas, principalmente, políticos.
Se os verificadores de fatos fazem alguma diferença real no discurso público é
frequentemente debatido. Mas seu sucesso na construção de uma nova
instituição jornalística não pode ser negado. Praticamente todas as
organizações nacionais de notícias nos Estados Unidos oferecem algum tipo
de checagem política de fatos hoje (GRAVES, 2016, p. 6).
Ainda segundo o autor, a partir da criação das principais agências de checagem,
dezenas de mídias americanas, sites independentes ou com recursos de um jornal, se
especializaram no novo gênero. A maioria delas tornou-se estabelecida a partir de 2010.
Desde então, as redações em todo o país abraçaram a checagem. As principais redes de
transmissão da televisão americana (ABC, CBS, NBC e CNN, Fox e MSNBC) oferecem
regularmente verificações dos fatos no ar. A Associated The New York Times, uma das
maiores empresas de comunicação dos Estados Unidos e dona do New York Times, Boston
Globe, entre outros, investiu pesadamente no novo gênero e oferece checagem para as
campanhas políticas.
Os novos verificadores de fatos investigam alegações que estão nas notícias e
publicam os resultados como uma nova história. O movimento de checagem
de fatos pede aos repórteres políticos que façam algo que pode ser bastante
inconveniente para eles: desafiar figuras públicas ao divulgar seus erros,
exageros e enganos. Ele pede que eles intervenham em debates políticos
acalorados e decidam quem tem os fatos do lado deles. “Depois de ser treinado
durante anos para não tomar partido, agora você terá que escolher o lado certo”,
instrui um manual de treinamento para jornalistas novatos no gênero
(GRAVES, 2016, p. 8).
Graves (2016, p.28) relata que o primeiro site com jornalistas profissionais
dedicados ao fact-checking nos Estados Unidos foi o FactCheck.org, lançado em 2003.
É uma organização sem fins lucrativos, fundada pelo veterano repórter político Brooks
Jackson e pela acadêmica de comunicações Kathleen Hall Jamieson.
Jackson havia começado a produzir segmentos de checagem de fatos como
correspondente político uma década antes na CNN. [...] Um site foi concebido
como um projeto para a eleição de 2004, mas se mostrou inesperadamente
popular e se tornou um empreendimento anual. [...] Hoje uma equipe editorial
de seis pessoas, assistida por estagiários de graduação, produz cerca de cinco
checagens por semana. Estas muitas vezes investigam múltiplas reclamações
relacionadas a uma controvérsia política atual. [...] Ao contrário de muitos
colegas mais novos, o FactCheck.org não usa um sistema de classificação ou
medidor para avaliar a verdade das alegações políticas, mas suas verificações
descrevem o engano político em linguagem contundente e, muitas vezes,
fornecem vereditos nitidamente redigidos (GRAVES, 2016, p. 29).
91
A partir de 2014, o grupo passa a se especializar na checagem do declaratório de
“grandes atores políticos dos EUA”, ou seja, funcionários do governo, candidatos
eleitorais e organizações partidárias. No entanto, também investiga rumores online e
temas relacionados à política. O site não oferece publicidade e dependeu inicialmente do
apoio da Fundação Annenberg, fundação familiar que fornece financiamento e apoio a
organizações sem fins lucrativos nos Estados Unidos e em todo o mundo.
Em 2010, o grupo começou a aceitar doações privadas, porém o site não recebe
dinheiro de corporações, sindicatos ou grupos de lobistas. Como será pontuado adiante,
a transparência na obtenção de recursos é um dos pilares das agências de checagem. O
FactCheck.org possui vários prêmios de jornalismo e já foi indicado para o Prêmio
Pulitzer, a principal honraria do jornalismo norte-americano.
Atualmente, a checagem política de fatos tornou-se um marco na divulgação de
notícias profissionais nos Estados Unidos. A eleição de Donald Trump, em 2016, foi um
impulsionador da checagem e o grupo opera não apenas durante as eleições, investigando
alegações questionáveis onde quer que surjam, de mensagens do Facebook a discursos
no plenário do Congresso.
Cada vez mais, os verificadores de fatos têm suas próprias regras, rotinas e
instruem um manual de treinamento para jornalistas novatos, elaboram suas
próprias conferências e promovem incansavelmente seu estilo de jornalismo.
“A checagem de fatos não é uma novidade. É um lugar para ficar”, declarou o
editor da PolitiFact na primeira cúpula global de “fact-checking de 2014”
(GRAVES, 2016, p. 8).
Criada em 2007, a PolitiFact recebeu o Prêmio Pulitzer por sua cobertura da
campanha presidencial em 2008. A iniciativa é um projeto conjunto do jornal St.
Petersburg Times (atualmente, Tampa Bay Times) e da empresa Congressional
Quarterly, mídia que produz publicações sobre o Congresso americano. Tanto o Times
quanto o PolitiFact operam como veículos de mídia comerciais, apoiados por anúncios.
5.2 Oportunidades diante da crise
Graves (2016, p. 10) relata que os profissionais do fact-checking buscam
reportagens políticas mais assertivas e que esse novo estilo de jornalismo oferece uma
janela para mudanças no ecossistema de notícias, já que, segundo as agências de
checagem, os jornalistas não controlam mais o acesso à esfera pública e perderam a
92
capacidade de decidir as novidades. Para os checadores, o trabalho da checagem tem a
função de revitalizar o campo jornalístico.
As organizações estudadas aqui [as agências de checagem] nasceram em um
setor em crise, atormentado por desafios econômicos, tecnológicos e
profissionais, testemunhas e produtos do que tem sido chamado “colapso em
câmera lenta do modelo de trabalho industrial no jornalismo”. [...] Os
verificadores de fatos praticam uma espécie de jornalismo neste momento, mas
também afirmam revitalizar o que é vital para o auto entendimento do campo
(GRAVES, 2016, p. 11).
Mais uma vez, Graves (2016, p. 13) afirma que a iniciativa do fact-checking faz
parte de um grupo alternativo ao mainstream da mídia atual. Porém, a autoridade dos fact-
checking depende, em parte, da rede de meios de comunicação convencional que os citam.
Ação semelhante também acontece com a Agência Lupa, como será visto adiante, já que
ela vende checagem para a mídia tradicional.
Outra questão apresentada por Graves é que os checadores operam em uma zona
difícil entre exatidão e verdade. Principalmente na política, em que a mentira é uma ação
rotineira. Assim, o ato de checar declarações atrai os jornalistas para fora do solo de fatos
concretos e os direciona para um território mais confuso de avaliação, interpretação e
opinião. Daí a importância da checagem para diferenciar os fatos e os valores. No caso, a
importância do fact-checking em uma época de pós-verdade.
O mundo do trabalho jornalístico que emerge aqui oferece poucas evidências
para a existência de fatos incontestáveis ou verdade absoluta. Isso não
significa, no entanto, que o objetivo do jornalismo em separar os fatos dos
valores seja inútil. Pelo contrário, o trabalho dos verificadores de fatos não
partidários atesta todos os dias o valor de um compromisso prático com a
objetividade. [...] Uma investigação justa e honesta nos aproxima do
significado da verdade (GRAVES, 2016, p. 14).
Assim, o fact-checking denota cada vez mais a um gênero de “análise de notícias”,
que envolve um conjunto de regras mais ou menos padronizado para pesquisa e
apresentação. Alguns checadores atuam com as declarações de figuras políticas, enquanto
outros se concentram em erros da imprensa.
5.3 A checagem no Brasil
No Brasil, as agências de checagem ganharam força a partir de 2014, com o
surgimento dos blogs “Preto no Branco”, do jornal O Globo, e “Truco!”, iniciativa da
93
Agência Pública70. Eles tinham o mesmo objetivo das agências americanas e da argentina
Chequeado, o primeiro site da América Latina dedicado a checagem dos discursos
políticos. No caso, as brasileiras verificaram as declarações dos candidatos à presidência
do Brasil, em 2014.
Em 2015, o cenário ainda era tímido para a checagem no Brasil, quando surgiram
a agência Lupa, criada pela idealizadora do blog “Preto no Branco”, e a agência Aos
Fatos. Lupa e Aos Fatos fazem parte da rede internacional de checadores, The
International Fact-Checking Network (IFCN), com sede nos Estados Unidos. O grupo
costuma debater os rumos e os desafios da checagem. Segundo a IFCN, existem, hoje em
dia, cerca de 140 plataformas de checagem no mundo associadas à rede.
A partir desta rede, os checadores costumam seguir princípios éticos de
comportamento. São eles: a transparência plena da sua metodologia, ou seja, detalhar para
o público a forma como a checagem é realizada; a transparência plena do seu
financiamento; apartidarismo; comprometimento com a correção, caso haja um erro na
checagem; e transparência na informação das fontes.
5.3.1 Novas iniciativas
Nos últimos anos, novas iniciativas de checagem surgiram no Brasil e no mundo.
Um levantamento71 publicado pelo Duke Reporters’ Lab indica que há 114 times de
checagem atuando em 47 países. Na primeira vez que a entidade fez um censo da
categoria – em abril de 2014 – havia apenas 44 plataformas de checagem ativas em todo
o mundo.
Os Estados Unidos é o país com mais projetos de checagem em funcionamento –
contribuiu para o boom do setor em 2016, ano de eleição presidencial. Atualmente, são
43 plataformas de checagem. A América e a Europa são os continentes com mais
checadores. A maioria deles não tem qualquer vínculo com outros meios de comunicação.
São ONGs ou iniciativas de fact-checking ligadas a universidades.
No Brasil, diante do cenário de desinformação crescente, os veículos da imprensa
tradicional criaram núcleos de checagem ou aderiram a projetos colaborativos de
70 A Agência Pública é uma agência de jornalismo investigativo e independente. Foi fundada em 2011 pelas
repórteres Marina Amaral, Natalia Viana e Tatiana Merlino. Atualmente é dirigida por Marina Amaral e
Natalia Viana. 71 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2017/03/02/checagem-de-fatos-em-alta-114-
plataformas-estao-ativas-em-47-paises/>. Acesso em 23. Ago. 2018.
94
checagem. Como foi visto, o objetivo das primeiras agências foi averiguar os discursos
de agentes públicos. Já as novas iniciativas têm uma abordagem diferente que seria checar
as informações que circulam pelas redes sociais (Facebook, Whatsapp e Twitter). Assim,
principalmente no ano de 2018, uma verdadeira onda de checagem se espalhou pelos
principais meios de comunicação brasileiros. O presente trabalho apresentará em seguida
algumas dessas novas iniciativas.
O jornal Estado de São Paulo criou em 2018 o blog “Estadão Verifica”, iniciativa
produzida por jornalistas do Estadão que fazem checagem de fatos e desmonte de boatos.
Assim como o site UOL, que criou o “UOL Confere”, em 2017, com o mesmo objetivo.
Já o jornal Folha de S. Paulo, sob o nome “Folha Informações”, passou a publicar
checagem de informações recebidas de leitores por meio do aplicativo Whatsapp ou por
e-mail.
O portal G1 lançou uma seção de fact-checking chamada “É ou não é”. Trata-se
de uma editoria para analisar falas de políticos e outras personalidades públicas e também
para checar sistematicamente as notícias e informações espalhadas pelas redes sociais e
sites. Porém, a seção foi desativada em 2018 para dar espaço ao projeto “Fato ou Fake”,
da empresa Globo. Além do G1, participam da apuração equipes da Época, O Globo,
Extra, Valor, CBN, GloboNews e TV Globo. A proposta é que jornalistas façam um
monitoramento diário para identificar postagens e conteúdos suspeitos muito
compartilhados nas redes sociais, especialmente o Whatsapp.
Ainda em 2018, o projeto de verificação colaborativo “Comprova” reuniu
jornalistas de 24 veículos de comunicação brasileiros para descobrir e investigar
informações enganosas, inventadas e falsas durante a campanha presidencial de 2018.
Liderada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e pelo projeto
americano First Draft News da Universidade de Harvard, a ação tem o objetivo de
combater a desinformação no ambiente digital.
As redações que fazem parte desta coalizão são: AFP, Band News, Band TV,
Canal Futura, Correio do Povo, Exame, Folha de S.Paulo, GaúchaZH, Gazeta Online,
Gazeta do Povo, Jornal do Commercio, Metro Brasil, Nexo Jornal, Nova Escola, NSC
Comunicação, O Estado de S. Paulo, O Povo, Poder360, Rádio Band News FM, Rádio
Bandeirantes, revista Piauí, SBT, UOL e Veja.
95
O “Comprova” vem atuando antes mesmo das eleições de 2018. Os internautas
podem enviar informações sobre as eleições para serem checadas pelo grupo. As
checagens são publicadas nas redes sociais e na página do projeto72.
Pode-se afirmar que é positivo o fato de os principais veículos da imprensa
tradicional estarem preocupados com a checagem e realizarem mobilizações para isso,
principalmente em um ano de disputa eleitoral em um país polarizado politicamente como
o Brasil. Mas com as mesmas características do jornalismo que busca objetividade em
um campo marcado pela subjetividade e tendências ideológicas.
Porém, é interessante perceber que não são exigidos das empresas de mídia
tradicional princípios éticos de comportamento estabelecidos por redes internacionais de
checagem, como a transparência plena do seu financiamento e o apartidarismo, por
exemplo. Diferentemente das agências independentes como a Lupa e o Aos Fatos que
fazem parte da rede internacional de checadores, The International Fact-Checking
Network (IFCN) e precisam cumprir essas regras.
5.3.2 A checagem e as redes sociais
Como foi observado anteriormente, as notícias falsas têm como principal via de
compartilhamento as redes sociais. O Facebook é considerado um dos principais vetores
de notícias falsas da internet. A plataforma, então, buscou, nos últimos anos, atuar para
combater as chamadas fake news.
Em 2016, o Facebook iniciou uma parceria com agências de checagem de fatos
de 14 países, inclusive o Brasil. Aqui, a colaboração foi com as agências Lupa e Aos
Fatos, por elas fazerem parte da rede internacional de checadores, The International Fact-
Checking Network (IFCN). A partir de 2018, as duas agências têm acesso às notícias
denunciadas como falsas no ambiente do Facebook e foram encarregadas de fazerem a
checagem da veracidade do conteúdo. Modelo semelhante ao que a plataforma adota nos
Estados Unidos, onde garante ter diminuído em 80% a distribuição de notícias falsas.
Segundo o Facebook, o objetivo da iniciativa é que as páginas que publicam
quantidades significativas de fake news tenham seu alcance reduzido. Os administradores
dessas páginas ou autores de postagens consideradas falsas serão notificados da
verificação e do resultado da análise de autenticidade de conteúdo.
72 Disponível em <https://projetocomprova.com.br/>.
96
Porém, o projeto do Facebook sofreu rejeição logo quando começou a funcionar
no Brasil. Grupos que se autodenominam liberais ou grupos de direita promoveram
ataques contra os profissionais das agências Lupa e Aos Fatos. Os profissionais foram
acusados de serem incapazes de fazer uma checagem isenta por serem “esquerdistas”. Ou
seja, apresentarem um viés político da esquerda.
Alguns jornalistas foram agredidos nas redes sociais, receberam ameaças e
intimidações, tiveram a vida pessoal e até mesmo informações sobre familiares expostas
no mundo virtual. O Facebook respondeu às críticas e se manifestou em defesa dos
profissionais da checagem:
O Facebook é um espaço para todas as ideias, mas não para a disseminação de
notícias falsas. Nossos parceiros são certificados pela International Fact-
Checking Network (IFCN), uma organização apartidária, cujo selo garante que
os verificadores estão comprometidos com a imparcialidade e a transparência
de suas fontes de informação e metodologia de checagem (FACEBOOK,
ARQUIVO ELETRÔNICO73, 2018)
No mesmo ano, a plataforma anunciou em comunicado que desativou 196 páginas
e 87 contas acusadas de fazer parte de uma rede digital de desinformação, no Brasil.
Segundo o Facebook, a iniciativa é parte dos esforços para reprimir perfis enganosos antes
das eleições de outubro de 2018. O Movimento Brasil Livre (MBL), um dos principais
vetores de disseminação de notícias falsas (como já foi visto neste trabalho) foi um dos
principais afetados pela medida e classificou como censura a atitude da plataforma.
Grupos de esquerda também criticaram a atitude do Facebook e das agências de
checagem que retiram do ar páginas com conteúdos falsos. O site brasil247, portal que se
denomina progressista, também teve seu conteúdo classificado como “falso” e foi
advertido pelo Facebook por isso. Como defesa, produziu uma matéria com o título “O
submundo das ‘agências de checagem’: dinheiro dos bancos e conflito de interesses74”,
em que acusa a agência Lupa. Segundo o texto, ela “está integrada aos interesses de
grandes grupos financeiros\mineradores como pertence à mesma empresa de um veículo
de comunicação que deveria acompanhar!”. A referência é ao investimento na agência
por parte de João Moreira Salles e à hospedagem do site da Lupa na página do grupo
UOL-Folha. Em entrevista, a criadora da Agência Lupa, Cristina Tardáguila, explica que
73 Disponível em <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2018/06/19/rejeicao-a-
checagem-de-fatos-no-brasil-surpreende-facebook.htm>. Acesso em 23. Ago. 2018.
74 Disponível em <https://www.brasil247.com/pt/247/midiatech/358354/O-submundo-das-
%E2%80%98ag%C3%AAncias-de-checagem%E2%80%99-dinheiro-dos-bancos-e-conflito-de-
interesses.htm> Acesso em 27. Ago. 2018.
97
não há relação entre a agência Lupa e o portal de notícias e o jornal e a transparência
financeira da agência, um dos pré-requisitos do IFCN, será detalhado mais adiante.
Esse é um ponto muito importante de ser explicado. A Lupa é uma empresa da
qual eu sou dona, meu marido tem uma parte muito pequena da agência.
Estamos no site da piauí por uma questão financeira. No momento de lançar a
Lupa era muito custoso construir um site do zero. Como eu trabalhei cinco
anos na piauí antes do O Globo - ajudei a montar o site da piauí -, perguntei se
não poderia ficar encubada no site da revista por um tempo. A Lupa fica
encubada no site da piauí apesar de serem empresas, redações e estruturas
administrativas diferentes. Não tenho ideia do que a piauí está fazendo e a piauí
não tem ideia do que eu estou fazendo. [...] Eu alugo o espaço dentro do site
da piauí. Por conta disso, a Agência Lupa está dentro do site da Folha e do
UOL, mesmo sendo empresas completamente diferentes, com redações
diferentes. Não há qualquer elo. É apenas um espaço por economia de recurso
(TARDÁGUILA, 2018, ARQUIVO ELETRÔNICO).75
Sobre a acusação de censura, Tardáguila afirmou que a medida do Facebook foi
uma espécie de penalização para os distribuidores de notícias falsas:
O que é importantíssimo destacar é que não existe nenhum tipo de censura ou
retirada de conteúdo identificado como falso. O que existe é uma espécie de
penalização com a redução de entrega de conteúdos considerados falsos no
Facebook. O que para quem efetivamente defende ou luta contra a
desinformação deveria receber como algo bem visto, porque de nada serve um
conteúdo de má qualidade atrapalhando o seu feed de notícias
(TARDÁGUILA, 2018, ARQUIVO ELETRÔNICO).
Como foi visto, depois da ação do Facebook, as agências de checagem receberam
críticas de grupos da direita e da esquerda, o que reafirma o apartidarismo da checagem.
O Facebook lançou ainda o curso online e gratuito contra desinformação e notícia
falsa. O chamado “Vaza, Falsiane” é voltado principalmente para jovens e docentes da
educação básica e de cursos universitários, mas está aberto ao público em geral. O projeto
tem o objetivo de ampliar as ferramentas de que as pessoas dispõem a fim de analisar de
forma consciente as informações que consomem e também tem o objetivo de
conscientizar sobre a responsabilidade ao publicar e compartilhar conteúdos. “Vaza,
Falsiane” é uma iniciativa dos professores de jornalismo Ivan Paganotti (Fiam-Faam),
Leornardo Sakamoto (PUC-SP) e Rodrigo Ratier (Faculdade Casper Líbero). O curso
reúne 11 vídeos, 16 testes online, quatro galerias de imagens e um farto material didático.
A plataforma Facebook, em uma parceria com a agência Aos Fatos, investiu ainda
no primeiro “robô checador” que usa inteligência artificial para o Messenger (aplicativo
de mensagens instantâneas do Facebook) chamado “Fátima76”. Assim, quando o usuário
75 Disponível em <https://www.jornalopcao.com.br/entrevistas/nao-temos-como-monitorar-a-proliferacao-
de-informacao-falsa-que-circula-pelo-whatsapp-127684/>. Acesso em 24. Ago. 2018. 76 Disponível em <https://aosfatos.org/noticias/aos-fatos-e-facebook-unem-se-para-desenvolver-robo-
checadora/>. Acesso em 23. Ago.2018.
98
entra na página do Aos Fatos no Facebook pode usar o Messenger para conversar com o
robô Fátima para auxiliá-lo no processo de verificação de conteúdo online. A seguinte
mensagem aparece para o usuário: Olá! Eu sou a Fátima, a robô checadora do Aos Fatos.
Estou aqui para ajudar. Você quer checar uma notícia, um boato do WhatsApp, um vídeo
ou uma imagem?
De maneira diferente, o robô também atende aos usuários da rede social Twitter.
Quando o usuário compartilha uma notícia falsa, o robô Fátima responde que o conteúdo
é falso.
Em seguida, o Facebook realizou parceria com a Agência Lupa e criou o “projeto
Lupe!77”, o também robô checador capaz de ajudar eleitores brasileiros a checar
informações em tempo real na página da Lupa no Facebook. No “Lupe!”, o usuário
poderá fazer buscas de checagens por candidatos (à Presidência e governos de SP, RJ e
DF), por partidos, temas e por determinados períodos de tempo. Na busca por assuntos,
deverá digitar uma palavra-chave e aguardar que o bot confronte esse termo com todo o
acervo de checagens da Lupa.
Até o final desta pesquisa, o aplicativo Whatsapp apresentou medidas tímidas de
combate à desinformação, que teria o sentido de ajudar os usuários a identificar conteúdo
suspeito. Uma delas é que, agora, sempre que alguém encaminha alguma foto, link ou
mensagem, o receptor desse conteúdo é avisado de que aquilo foi encaminhado e não foi
originalmente digitado pela pessoa que enviou. O objetivo é fazer com que a pessoa
desconfie daquilo que recebeu.
Outra mudança anunciada pelo aplicativo foi limitar o encaminhamento de
mensagens aos usuários. Assim, a restrição aplicada determina que uma mesma
mensagem somente poderá ser compartilhada a no máximo cinco chats por vez. Até então,
os usuários tinham a possibilidade de encaminhar mensagens a 250 contatos
simultaneamente.
A falta de medidas assertivas do Whatsapp é problemática se considerarmos que
as agências de checagem não conseguem monitorar o aplicativo. Em entrevista, a criadora
da Agência Lupa, Cristina Tardáguila, afirmou que sua equipe não consegue monitorar
as informações vindas do aplicativo e isso é um problema grave:
Esse é o maior desafio, anos luz à frente dos outros problemas que envolvem
a divulgação e compartilhamento de informação falsa. Temos, na redação da
Lupa, algumas ferramentas, pelas quais conseguimos monitorar o que está se
77 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/08/15/lupe-chatbot-assistente-facebook/>.
Acesso em 23. Ago. 2018.
99
destacando em termos de popularidade no Twitter, no Facebook e no Google.
São ferramentas que conseguem monitorar a velocidade do avanço de uma
mentira. No WhatsApp não existe essa possibilidade. Não temos como
monitorar a proliferação de uma informação falsa, de um áudio falso ou de
qualquer conteúdo que circula pelo WhatsApp. Isso é um problema enorme!
Nós debatemos muito sobre o Twitter, Facebook e Google, quando na verdade
o maior problema nas eleições deste ano no Brasil será o WhatsApp. [...]
Vamos ver se conseguiremos que o WhatsApp colabore de alguma forma
(TARDÁGUILA, ARQUIVO ELETRÔNICO78, 2018).
Apesar de medidas tímidas, o Whatsapp anunciou, em 2018, uma iniciativa
interessante para combater as notícias falsas. A empresa vai oferecer bolsas de estudos
para que pesquisadores se dediquem a entender o fenômeno. A princípio a empresa vai
oferecer 20 bolsas no valor de US$ 50 mil. A partir das conclusões das pesquisas, o
Whatsapp pretende testar novos recursos para minimizar a circulação de boatos na
plataforma. Até o final do presente trabalho, a plataforma não havia anunciado as
pesquisas em questão.
Já a rede social Twitter divulgou, em 2018, medidas para evitar fake news nas
eleições do mesmo ano. Um dos focos foi a verificação de contas de candidatos e partidos,
de modo a coibir perfis falsos que possam divulgar informações e causar confusão nos
eleitores. Além dessa verificação, a própria rede social organizou sessões de perguntas e
respostas com os candidatos, com o intuito de facilitar o contato direto entre os candidatos
e seus eleitores.
5.4 A agência Lupa
A agência Lupa se autodenomina a primeira agência de fact-checking do Brasil.
A Lupa é uma agência de notícias. Vende suas reportagens (checagens) para publicação
em outros meios de comunicação. Repete o que fazem agências internacionais como
Reuters, AFP, EFE ou Bloomberg, por exemplo.
Em dois anos de trabalho, a agência publicou mais de 700 postagens e, nelas,
analisou o grau de veracidade de mais de 2.100 frases. Até agosto de 2018, havia feito
mais de 80 colunas semanais no jornal Folha de S.Paulo e comentado na rádio CBN –
78 Disponível em <https://www.jornalopcao.com.br/entrevistas/nao-temos-como-monitorar-a-proliferacao-
de-informacao-falsa-que-circula-pelo-whatsapp-127684/>. Acesso em 24. Ago. 2018.
100
em entradas ao vivo – nada menos do que 500 afirmações feitas por políticos e
poderosos.
O jornal Folha de S.Paulo, a revista Época e os portais Yahoo! e Metrópoles, do
Distrito Federal, são clientes fixos da Lupa e têm direito a publicar ao menos uma coluna
com material inédito por semana. Além deles, nos últimos dois anos, a agência levou seu
trabalho á rádio CBN e a uma série de jornais: Correio (BA), Gazeta do Povo (PR), O
Liberal (SP), A Crítica (AM), Correio Braziliense (DF) e O Tempo (MG). Além disso, a
checagem foi testada em diferentes formatos para o site Catraca Livre e para o canal de
TV GloboNews.
Em 2015, a Lupa começou com quatro pessoas. Hoje tem 15 funcionários. A
agência disponibiliza as checagens no site e nas redes sociais Facebook e Twitter. Além
de coluna semanal na Folha de S. Paulo, na rádio CBN, na revista Época, no site
Metrópoles, em Brasília (DF), fora algumas colaborações esporádicas em outros meios.
A sua história é tão recente quanto o uso do termo checagem no jornalismo
brasileiro. A Lupa surgiu após o bem-sucedido blog “Preto no Branco”, no site do jornal
O Globo. A jornalista Cristina Tardáguila, criadora da agência, foi quem sugeriu a ideia
para o jornal carioca do blog “Preto no Branco”, que averiguou os discursos políticos dos
candidatos à presidência do país, em 2014.
Tardáguila conheceu o trabalho de checagem em 2013, quando era subeditora de
política do O Globo. O primeiro contato foi em um evento da Fundação Gabriel García
Márquez79, em que o site de checagem argentino Chequeado disputou o prêmio García
Márquez de Jornalismo, na categoria de inovação, com o trabalho de checagem do
discurso da ex-presidente Cristina Kirchner nas eleições argentinas.
Eu lembro que na plateia fiquei muito emocionada com a apresentação do
projeto no prêmio. Eu pensei que o Brasil passaria por uma eleição presidencial
em 2014 e vivíamos na mesma polarização que a Argentina estava. O Brasil
precisa de uma negócio desse. Sugeri para O Globo que a gente fizesse um
blog idêntico ao Chequeado para ser aplicado nas eleições presidenciais de
2014. E esse é o “Preto no Branco”. Ele efetivamente existiu de agosto a
outubro. É o primeiro blog de fact-checking do Brasil (TARDÁGUILA, 2016).
O “Preto no Branco” representou um diferencial na cobertura do O Globo nas
eleições de 2014. Segundo Tardáguila, o blog realizou 370 checagens nos quase noventa
dias de campanha presidencial. O resultado desta apuração mostrou que mais de 50% das
79 A Fundação Gabriel García Márquez para o Novo Jornalismo Ibero-Americano (FNPI) incentiva novas
práticas jornalísticas sob a inspiração dos ideais do escritor e jornalista Gabriel García Márquez. Disponível
em <http://www.fnpi.org/>. Acesso em 07. fev. 2017.
101
informações divulgadas pelos candidatos tinham problemas. Elas foram consideradas
exageradas, insustentáveis e até falsas. Para divulgar esses dados, o blog usou as redes
sociais do jornal O Globo, Twitter e Facebook.
No final das eleições, o pessoal das mídias sociais do O Globo me procurou
com o relatório de como é que tinha sido a performance. Eles estavam muito
chocados e disseram que na história da conta (e é uma conta que divulga todas
as histórias do país) dos 20 twitters mais compartilhados e favoritados, 15 eram
do “Preto no Branco” [...] Ali eu tive certeza absoluta de que o “Preto no
Branco” foi um conteúdo muito importante nas eleições [...] Eu juntei a
sensação que tive que era um produto que despertava a curiosidade do grande
público com o fato de que os pequenos jornais tinham o interesse de comprar
isso. Aí começa a nascer a ideia da Lupa (TARDÁGUILA, 2016).
A experiência de Tardáguila é extensa. Além do jornal O Globo, a jornalista
trabalhou na agência de notícia espanhola (EFE); publicou o livro-reportagem A arte do
descaso (2016), uma narrativa jornalística sobre o roubo de obras de arte do Museu da
Chácara do Céu, no Rio de Janeiro, e atuou, durante cinco anos, na revista piauí.
Foi a partir de uma conversa informal com o publisher da revista, João Moreira
Salles, que surgiu a parceria entre a piauí e a jornalista para a criação da agência Lupa.
Cristina já havia proposto ao jornal O Globo a ampliação do blog “Preto no Branco”. A
ideia era passar a checar outras editorias, além da de política.
No final de 2014, teve um encontro de checadores na Argentina. Eu fui para lá
achando que eu estava “abafando” com a cobertura política do O Globo. E vi
que os caras estavam anos luz na frente. Eles não fazem só política, fazem
saúde, fazem cidades, ciência. Eu voltei para o Brasil muito encantada com o
que vi na América Latina e nos EUA (TARDÁGUILA, 2016).
Com a crise econômica, o jornal carioca não investiu na ideia de Tardáguila. O
projeto de uma agência de checagem estava na gaveta até a conversa com João Moreira
Salles:
O João Moreira Salles me perguntou o que tinha acontecido com o “Preto no
Branco”. Ele falou que era um produto maravilhoso que tinha dado certo. Aí
eu tive um estalo e falei “vamos fazer na piauí”. Ele respondeu: “Não! A piauí
é diferente disso. A piauí tem apurações que demoram três meses, com um
texto de 50 mil toques. E você é imediatez, é o Twitter”. Eu falei que seria uma
agência, não a piauí, mas é algo correlato à piauí. A gente burilou durante
vários meses a ideia de uma agência. Aí nasce a Lupa (TARDÁGUILA, 2016).
A recém-criada agência é independente da revista piauí. Segundo Tardáguila, não
existe interferência editorial, administrativa ou jurídica nas decisões da Lupa. O que é em
comum com a revista é o financiamento de Moreira Salles e o publicador (o site).
Além da editora, Cristina Tardáguila, a equipe da Lupa é formada pelo repórter
Chico Marés, que trabalhou na Gazeta do Povo e é mestre em Jornalismo Interativo pela
City, University of London; pela jornalista Clara Becker, que mora em Buenos Aires e é
102
coautora dos livros The Football Crónicas e Los Malos; pela economista Claudia Strack,
responsável pelo setor administrativo e financeiro da agência; pelo gerente de marketing
Douglas Silveira; pela jornalista Flávia Campuzano, que possui MBA em Marketing pela
FGV e é responsável pela área de novos negócios; pelo repórter Leandro Resende, que
trabalhou no Vasco da Gama, no jornal O Dia e na rádio CBN; pela jornalista Natalia
Leal, que possui MBA em gestão de pessoas pela FGV e foi repórter e editora no jornal
Zero Hora e chefe de reportagem no Diário Catarinense; a estagiária Nathália Afonso;
Pauline Mendel que é responsável pelas mídias sociais; Rafhael Kapa, que é jornalista e
professor, foi repórter da Lupa entre 2015 e 2016 e hoje ministra as oficinas de checagem
no projeto Lupa Educação; Plínio Lopes, que é repórter e já trabalhou na rádio BandNews
FM e tem experiência em jornalismo de dados; Carolina Lima, que é analista de mídias
sociais e Fernanda da Escóssia, que é ombudsman (ouvidora) da Lupa durante as eleições
de 2018 e trabalhou em O Povo, Folha de S. Paulo e O Globo e leciona no IBMEC Rio.
5.4.1 Lupa Educação
Com o objetivo de popularizar a verificação de fatos, a agência Lupa criou, em
2017, o programa Lupa Educação. Trata-se de uma iniciativa que tem por objetivo
capacitar pessoas no uso das técnicas de checagem. “Não importa a idade e a formação
acadêmica. Qualquer um pode ser um checador”, afirma o site do projeto.
Segundo a agência Lupa, o programa consiste em palestras e oficinas realizadas
pelos jornalistas da Lupa fora da redação, em empresas e instituições de ensino situadas
no Rio de Janeiro e em outros estados. Quem participa desses encontros conhece os
bastidores da produção da Lupa e pode aprender a checar conteúdos específicos.
O programa Lupa Educação sai do papel depois de seis meses de estudo e
planejamento estratégico e vem se alinhar com perfeição ao movimento
internacional de capacitação e treinamento em checagem levado a cabo por
diversas entidades internacionais. Entre elas, destacam-se a International Fact-
Checking Network (IFCN), que reúne mais de 100 plataformas de checagem
em todo o mundo – diversas delas com braços de treinamento, e os projetos
First Draft News e Google Trust Project, que envolvem meios de
comunicação, universidades e empresas digitais interessados em elevar a
credibilidade em meio digital (AGÊNCIA LUPA, ARQUIVO
ELETRÔNICO80, 2017).
80 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2017/03/28/lupa-educacao/>. Acesso em 24. Ago.
2018.
103
O projeto Lupa Educação já realizou diversas palestras pelo país. Ofereceu
oficinas em instituições de ensino como a Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), o Ibmec, a Facha, o IESB e a PUC-Rio.
Além de colégios de ensino médio e faculdades, o Lupa Educação abrange o
treinamento em redações de veículos de comunicação. O projeto já passou pela Veja.com
e a Rede Globo. Assim, há um treinamento tanto para profissionais da área quanto para
não-jornalistas.
5.4.2 Aprimoramento do debate público
O diretor de redação da revista piauí, Fernando Barros e Silva, é um dos
conselheiros consultivos da Lupa. Em um depoimento sobre a agência, Fernando lembra
que a checagem é parte de qualquer boa reportagem e que todo repórter é ou deveria ser
também um checador. Entretanto, a atenção a esse aspecto na atividade jornalística
sempre foi insuficiente:
Num momento em que a própria reportagem se vê atrofiada, a ideia de que a
checagem precisa ser minuciosa, exaustiva e, mais do que isso, que deve estar
introjetada na cultura e nas engrenagens das redações - tende a se transformar
em mais um item decorativo dos manuais de boas intenções da profissão. É por
isso que eu vejo na Lupa uma iniciativa muito oportuna. Não apenas para
revelar as meias verdades do poder, em sentido amplo, mas como um
instrumento de inspeção do próprio jornalismo e das nossas insuficiências
crônicas (BARROS E SILVA, ARQUIVO ELETRÔNICO)81
Um dos principais objetivos da agência de checagem é contribuir para aprimorar
o debate público. Desta forma, tem atuado nas principais discussões do país. As
abordagens são em temas variados.
Geralmente, são as pautas do cotidiano, política, saúde, comportamento, etc. Com
a expansão da forma de comunicar da população, reflexo do surgimento das redes sociais,
o debate está em todos os lugares e em todos os assuntos, o que remete à discussão da
pós-verdade e das notícias falsas.
A Lupa enxerga isso e pretende participar deste debate com a checagem das
informações. “Focar na boa informação que pode contribuir para melhorar a vida do
cidadão. Consequentemente, você melhora a qualidade do debate. O debate fica menos
burro e menos apaixonado [...] A checagem vem para contribuir sempre”
(TARDÁGUILA, 2016).
81 Disponível em: <http://piaui.folha.uol.com.br/lupa/nossos-apoiadores/. Acesso em Dez. 2016.
104
5.5 A rede de criação da Agência Lupa
Após a apresentação da Agência Lupa, o presente trabalho analisará a rede de
criação e os respectivos nós (Salles). Como já citado, a Agência Lupa faz parte da rede
internacional de checadores, The International Fact-Checking Network (IFCN) e segue
princípios éticos de comportamento. Os nós da rede de criação são, justamente, essas
diretrizes porque elas são o diferencial e são essenciais para uma informação de
qualidade. O primeiro nó analisado é a transparência, que inclui a metodologia da
checagem, das fontes, do financiamento da empresa e o apartidarismo. O segundo nó é o
erro no processo de produção da checagem e sua correção.
5.6 Nó 3: A transparência
5.6.1. A transparência da metodologia
A transparência da metodologia da prática jornalística pode servir para combater
as notícias falsas. Foi o que aconteceu na Universidade de Harvard que desenvolveu o
projeto Frontline82, uma ação que visa à transparência da investigação jornalística,
fornecendo acesso ao material fonte original. Assim, a iniciativa vem disponibilizando
online as transcrições completas de suas entrevistas e os vídeos sem edição. A equipe usa
o software de código aberto para tornar os vídeos pesquisáveis por texto, para que os
espectadores possam encontrar facilmente imagens sobre assuntos específicos.
A ação americana é semelhante á uma das principais diretrizes das agências de
checagem, a transparência da metodologia. A metodologia de checagem da agência pode
se acessada no site da Lupa83, no item “como fazemos nossa checagem”. Ou seja, o
público pode entender a forma como a checagem é realizada. A Lupa segue uma
metodologia de trabalho própria, desenvolvida com base nas plataformas de fact-checking
implantadas na argentina Chequeado e na americana Politifact.
Nós somos totalmente transparentes com relação à nossa metodologia de
trabalho, à nossa fonte de financiamento, com relação às fontes que usamos
nas nossas reportagens. Temos e aplicamos a nossa política de correção pública
sempre que identificamos um eventual erro. E somos auditados com relação ao
nosso apartidarismo. Todos os anos, temos que mandar um monte de
82 Disponível em <https://niemanreports.org/articles/can-extreme-transparency-fight-fake-news-and-
create-more-trust-with-readers/>. Acesso em 02. Out. 2018. 83 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2015/10/15/como-fazemos-nossas-checagens/>.
Acesso em 24. Ago.2018.
105
documento para a IFCN para provar que nós executamos esses cinco pontos.
Com isso, recebemos um selo de membro verificado da IFCN. É um selo verde
que aparece no site da Lupa para atestar a qualidade do nosso produto
(TARDÁGUILA, 2018, ARQUIVO ELETRÔNICO84)
Conforme informado no site da agência, a metodologia da Lupa tem oito passos e
começa com a observação diária do que é dito por políticos, líderes sociais e celebridades,
em jornais, revistas, rádios, programas de TV e na internet. Suas afirmações são a matéria-
prima das checagens produzidas pela agência.
Ao selecionar a declaração em que pretende trabalhar, a equipe da Lupa adota três
critérios de relevância. Dá preferência a afirmações feitas por personalidades de destaque
nacional, a assuntos de interesse público (que afetem o maior número de pessoas possível)
e/ou que tenham ganhado destaque na imprensa ou na internet recentemente. Preocupa-
se com “quem fala”, “o que fala” e “que barulho faz”.
5.6.2 A checagem de opiniões
A Lupa afirma em sua metodologia que não checa opiniões, não faz previsões de
futuro, não aponta tendências, não avalia conceitos amplos. Mas, o que é observado no
cenário brasileiro é justamente a opinião (ou posicionamento político ou ideológico) que
se confunde com o fato, a chamada pós-verdade. Essa realidade se torna um desafio para
as agências de checagem.
Ao mesmo tempo em que se afirma que não se checa opinião, as agências não se
abstêm de verificar declarações compartilhadas na internet carregadas de opinião. Porém,
mesmo checando tais declarações polêmicas, que em muitos casos são pedidos dos
leitores, a Lupa reafirma a sua metodologia de não checar opinião e afirma que verifica
apenas declarações passíveis de checagem. Um exemplo foi a checagem “Comitê da ONU
e Lula: imprecisões e verdades, no mar de opiniões ‘inchecáveis85’”, em que averiguou
declarações de pessoas ou grupos públicos sobre o assunto. Já no início do texto afirma
que a agência analisou as declarações passíveis de checagem:
A metodologia de checagem da Lupa é clara: não são “checáveis” frases que
contenham opiniões, conceitos amplos e/ou previsões de futuro. Desde a
última sexta-feira (17), quando o Comitê de Direitos Humanos da Organização
das Nações Unidas (ONU) emitiu um comunicado sobre o ex-presidente Luiz
84 Disponível em <https://www.jornalopcao.com.br/entrevistas/nao-temos-como-monitorar-a-proliferacao-
de-informacao-falsa-que-circula-pelo-whatsapp-127684/>. Acesso em 27. Ago. 2018. 85 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/08/23/lula-onu-comite/>. Acesso em 24. Ago.
2018.
106
Inácio Lula da Silva, muito do que se falou sobre o assunto se encaixava em
ao menos um desses quesitos – impossibilitando a verificação. Para além disso,
abaixo você encontra uma série de frases que a Lupa avaliou e, sob os
parâmetros da metodologia da agência, considerou passíveis de checagem
(AGÊNCIA LUPA, ARQUIVO ELETRÔNICO, 2018).
Assim, foi classificado como “Falso” o que declarou o Movimento Democracia
Participativo no Facebook que afirmava: “Um dos membros desse comitê [de Direitos
Humanos da ONU] é um brasileiro petista, Paulo Sérgio Pinheiro”. A conclusão da
checagem afirma que:
O diplomata Paulo Sérgio Pinheiro não é membro do Comitê de Direitos
Humanos da ONU. O comitê tem 18 membros, nenhum deles é brasileiro.
Desde sua criação, em 1977, nenhum brasileiro foi eleito para o órgão. O nome
de Pinheiro tampouco consta na atual relação de filiados do PT. Pinheiro tem
uma longa carreira em instituições nacionais e internacionais. Atualmente, é
presidente da comissão independente internacional de investigação sobre a
República Árabe da Síria, ligada ao Conselho de Direitos Humanos ONU –
que não tem ligação com o Comitê de Direitos Humanos da ONU. Antes disso,
ele foi Secretário de Estado de Direitos Humanos entre 2001 e 2002, integrante
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos (OEA) entre 2004 e 2011, como relator dos direitos das crianças,
e coordenador da Comissão Nacional da Verdade. Apesar de não ser membro
do comitê, Pinheiro concedeu entrevista à Folha de S. Paulo na qual diz que o
Brasil é obrigado a seguir suas recomendações. “O Brasil ratificou tratado
internacional, tem que cumprir, não tem conversa. Esse governo que está aí
poderia ter denunciado a ratificação, mas não fez”, disse. Ele qualificou o
processo contra Lula como um “coquetel de ilegalidades”. A Lupa enviou um
email ao endereço informado na página de Facebook do Movimento
Democracia Participativa, que não havia retornado até a publicação desta
checagem (AGÊNCIA LUPA, ARQUIVO ELETRÔNICO, 2018).
A Lupa também avaliou como “Falso” o que declarou o senador do PT, Lindberg
Farias, que afirmou no Twitter: “ONU reconhece violações contra Lula”. A explicação
da checagem foi a seguinte:
No comunicado emitido pelo comitê da ONU no dia 17 de agosto, o texto é
claro. Diz que os pedidos apresentados pela entidade “não significam que o
comitê já tenha encontrado violações (dos direitos humanos)” no caso de Lula.
Textualmente em inglês: “This request does not mean that the Committee has
found a violation yet”. Procurado, Lindbergh não retornou (AGÊNCIA LUPA,
ARQUIVO ELETRÔNICO, 2018).
Percebe-se ainda que há uma busca de equilíbrio entre o número de declarações
checadas proferidas por figuras públicas com posicionamentos políticos e ideológicos da
direita e da esquerda. Esse equilíbrio reflete a preocupação da agência em reafirmar o seu
apartidarismo, tema que será retomado adiante.
5.6.3 Checagem além do declaratório
107
A agência também busca verificar a qualidade de produtos e serviços, além da
veracidade de anúncios publicitários, slogans e imagens. Um exemplo foi o
acompanhamento86 dos preços de diversos produtos em lojas online para checar se os
descontos da Black Friday (ação americana que foi reproduzida no Brasil) são realmente
verdadeiros. Com as perguntas “Teve desconto mesmo?” e “Em que produtos?”, a equipe
da Lupa analisou cerca de 50 itens postos à venda em oito lojas diferentes. Acompanhou
a evolução de seus preços e mostrou o resultado desse levantamento para o público.
Assim, o leitor pôde acompanhar que alguns produtos como computadores ou
eletrodomésticos não estavam realmente em promoção. Ou seja, a informação do site de
compra era falsa.
Voltando para a metodologia da checagem, uma vez decidida a declaração que
será checada, o repórter da Lupa faz um levantamento de “tudo” o que já foi publicado
sobre o assunto. Consulta jornais, revistas e sites. Depois, se debruça sobre bases de dados
oficiais e inicia o processo de garimpo de informações públicas. Na ausência delas ou
diante da necessidade de saber mais sobre o assunto a ser checado, o repórter da Lupa
recorre às Leis de Acesso à Informação e/ou às assessorias de imprensa. Ainda pode ir a
campo, levando consigo os meios tecnológicos que julgar necessários para a apuração:
foto, áudio ou vídeo.
Para concluir seu trabalho, o repórter pode recorrer à análise de especialistas para
contextualizar o assunto e evitar erros de interpretação de dados. Com tudo isso em mãos,
solicita posição oficial daquele que foi checado, dando-lhe tempo e ampla oportunidade
para se explicar. Ao cumprir os oito passos de sua metodologia, a Lupa entrega a seus
leitores um texto objetivo, repleto de links que o ajudarão a reconstituir o caminho
percorrido pelo checador e a entender suas conclusões. A agência acredita que é o leitor
quem checa o checador, dando-lhe todo o instrumental para isso.
Percebe-se que o processo de checagem descrito é semelhante à apuração
convencional do jornalismo. Tardáguila observa que a checagem é, na verdade, uma volta
ao jornalismo na sua essência: “As pessoas têm direito a ter informações fidedignas e
checáveis para poder se posicionar seja na sua vida pública ou privada. Isso é o serviço
do jornalismo na sua essência. A checagem é uma volta absurda à essência”
(TARDÁGUILA, 2016).
86 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2017/11/24/black-friday-2017/>. Acesso em 24.
Ago. 2018.
108
5.6.4 As etiquetas
Juntamente com o texto, as checagens são classificadas em etiquetas que sinalizam
a veracidade ou não da informação. São elas: Verdadeiro (A informação está
comprovadamente correta); Verdadeiro, mas (A informação está correta, mas o leitor
merece um detalhamento); Ainda é cedo para dizer (A informação pode vir a ser
verdadeira, ainda não é); Exagerado (A informação está no caminho correto, mas houve
exagero de mais de 10% e de menos de 100% frente ao total real); Subestimado (Os
dados reais são ainda mais graves dos que o mencionado. A informação foi minimizada
de 10% a 100%); Contraditório (A informação contradiz outra difundida pela mesma
fonte antes); Insustentável (Não há dados públicos que comprovem a informação); Falso
(A informação está comprovadamente incorreta); De olho (Etiqueta de monitoramento).
As etiquetas evidenciam que existem variáveis subjetivas no resultado de um
processo de checagem mesmo que ele busque a objetividade. Isso mostra a complexidade
do trabalho investigativo da realidade e a inconsistência de uma classificação dualista
entre verdadeiro ou falso. É preciso buscar uma análise que mostre os meandros que estão
entre estas duas alternativas. O que pode representar, muitas vezes, uma dissonância com
os leitores. Principalmente aqueles com pensamentos polarizados entre esquerda ou
direita, como é o caso do Brasil atual. Tardáguila comenta sobre essa discordância com
os leitores abaixo:
A Lupa usa oito etiquetas entre o verdadeiro pleno e o falso pleno em que a
gente tenta usá-las de forma a ser o mais claro possível com relação à nossa
conclusão. Óbvio que gera muito polêmica. Às vezes as pessoas discordam das
etiquetas, o que é ótimo, porque estão exercitando a sua cidadania. Só que
jornalismo não é matemática. Jornalismo não é física. As pessoas às vezes
exigem que o fact-checking tenha uma ciência. Na verdade tentamos ser o mais
objetivo possível dentro das humanas. Nem na física é possível ser objetivo.
Dependendo do olhar a partir de determinado fenômeno se vê uma coisa
diferente. Por isso que temos as etiquetas e as definições muito claras sobre
quando cada uma delas é empregada. É óbvio que isso gera polêmica. É óbvio
que gera chateação. Mas é do jogo. Nós checadores estamos acostumados com
isso (TARDÁGUILA, ARQUIVO ELETRÔNICO87, 2018).
A agência informa que não há nada que impeça a Lupa de criar novas etiquetas
nem de eliminar alguma existente. A partir do seu segundo aniversário (em novembro de
2017), a Lupa passou a publicar reportagens em que faz uma nova checagem das frases
87 Disponível em <https://www.jornalopcao.com.br/entrevistas/nao-temos-como-monitorar-a-proliferacao-
de-informacao-falsa-que-circula-pelo-whatsapp-127684/>. Acesso em 24. Ago. 2018.
109
etiquetadas como “de olho”. O intuito é ver se houve alguma evolução nas promessas
analisadas.
Um exemplo foi a checagem “E as promessas de Temer, Crivella, Alckmin, Pezão
e Doria?88”, em que a agência reavaliou algumas frases que receberam a etiqueta “De
olho” desses cinco políticos. No final das contas, a proposta era avaliar se algumas
promessas ditas saíram realmente do papel. Uma prática jornalística importante que não
é muito costumeira na imprensa tradicional.
O resultado da análise em 2017 mostrou que o governador Luiz Fernando Pezão
não cumprira a promessa que foi destaque na imprensa em 2014 para melhorar o sistema
de transporte do estado do Rio de Janeiro. O governador afirmou “Queremos comprar
mais quatro barcas novas para colocar na Ilha do Governador e melhorar o transporte ali”.
Assim, a análise da checagem foi a seguinte:
Em janeiro de 2016, quase dois anos depois dessa fala, a Lupa constatou que a
promessa de Pezão ainda não havia saído do papel e deu um “de olho” nessa
promessa. Naquele mês, dados da concessionária CCR Barcas indicavam que
o número de embarcações havia permanecido inalterado entre dezembro de
2014 e dezembro de 2015, com um total de 24 barcas na frota (sendo algumas
delas alugadas). De lá para cá, a crise fiscal do RJ se agravou e, atualmente,
segundo a concessionária, há 19 barcas em operação, razão pela qual a Lupa
decidiu trocar a etiqueta dessa frase de Pezão para Falso (AGÊNCIA LUPA,
2017, ARQUIVO ELETRÔNICO89).
5.6.5 Transparência das fontes
As fontes citadas nas checagens da Lupa são disponibilizadas para o leitor por
meio de links no próprio texto. Assim, é possível averiguar as informações que o
jornalista consultou para a produção da apuração. A checagem das promessas dos
políticos citada acima, por exemplo, possui vários links para a comprovação das fontes.
A checagem da fala de João Dória, na época prefeito de São Paulo, “Chegamos a
R$ 255 milhões em doações do setor privado para o município de São Paulo em 88 dias
de gestão”, classificada como a etiqueta “Exagerado”, possui sete links.
O primeiro link direciona o leitor para uma matéria do portal G1 com o título
“Iniciativa privada doou R$ 255 milhões à Prefeitura de SP, diz Dória”. Ou seja, a matéria
jornalística é resultado de uma declaração do prefeito, o que é muito comum no
88 Disponível em <http://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2017/11/16/e-as-promessas-de-temer-crivella-
alckmin-pezao-e-doria/>. Acesso em 24. Ago. 2018. 89 Disponível em <http://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2017/11/16/e-as-promessas-de-temer-crivella-
alckmin-pezao-e-doria/>. Acesso em 27. Ago. 2018.
110
jornalismo, o chamado “jornalismo declaratório”. Na matéria citada não há
questionamento deste valor declarado pelo gestor.
A Lupa explica que realizou uma checagem (segundo link) três dias depois da
declaração e classificou a fala com a etiqueta “De olho”, uma vez que, até aquele
momento, segundo o Portal da Transparência da cidade de São Paulo, o município havia
recebido 21 doações – doze delas sem valores claramente discriminados e 9 somando R$
4,2 milhões. Esse total ficava bem distante dos R$ 255 milhões mencionados pelo
prefeito.
A etiqueta da checagem mudou para “Exagerado” quando a Lupa voltou a
consultar a tabela mais atualizada do Portal de Transparência (terceiro link). A tabela
mostrou que, nos meses de janeiro, fevereiro e março, que compreendem os primeiros 88
dias de gestão de Doria, foram registradas 106 doações publicadas no Diário Oficial
(quarto link). A soma das doações concluídas nesses três meses é R$ 20,9 milhões. Ou
seja, cerca de 8% dos R$ 255 milhões mencionados pelo prefeito. A checagem
disponibiliza o quinto link com a tabela completa com todas as doações.
Em nota (sexto link), a prefeitura de São Paulo informou que registrou um total
de R$ 286,8 milhões, somatório de repasses apenas anunciados e de fato finalizados, no
dia 13 de abril – depois dos 88 dias mencionados por Dória. Segundo a prefeitura,
algumas doações anunciadas em fevereiro “só foram efetivadas, com publicação no
Diário Oficial, em março, abril, ou até mesmo maio.” De acordo com o Decreto Municipal
n.º 40.384, de 2001 (sétimo link), a administração municipal de São Paulo é obrigada a
manter registros atualizados dos seus projetos de parceria.
Os links das fontes disponibilizados mostram o caminho percorrido pelo
jornalista. A variedade de fontes consultadas para a checagem de apenas uma frase mostra
que o trabalho de apuração no jornalismo não é simples e rápido. É necessário tempo e,
muitas vezes, perspicácia do profissional para lidar com dados públicos. Porém, é
perceptível que é uma ação totalmente possível.
5.6.6 Transparência do financiamento
O modelo de negócio da Lupa está disponível no site da agência com o link “Como
a gente se financia”90. Lá, há informações sobre o apoio financeiro da Editora Alvinegra,
90 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2015/10/15/como-funciona-nosso-modelo-de-
negocios/>. Acesso em 27. Ago. 2018.
111
empresa fundada por João Moreira Salles para publicar a revista piauí, por cerca de três
anos. “Em contrapartida a esse repasse financeiro mensal, se compromete a publicar todas
suas checagens em seu próprio site (hospedado no portal da revista) e, assim, irrigar o
ambiente digital da publicação com novos leitores”, afirma a agência.
Outra linha de receita da Lupa é o programa Lupa Educação que oferece palestras
e workshops sobre fact-checking a estudantes e profissionais de qualquer formação.
Também faz treinamentos in-company (treinamento de colaboradores de empresas).
Em seu primeiro ano de existência, o Lupa Educação ofereceu nada menos do
que 24 workshops – uma média de dois por mês – e capacitou mais de 3 mil
pessoas em todo o país. Teve como clientes a Veja.com, a NSC e a TV Globo.
Entre as palestras e oficinas que ministrou, a maioria foi presencial, mas a Lupa
também foi convidada pelo Knight Center/Universidade do Texas a fazer um
MOOC, curso online que contou com o apoio do Google e da Associação
Nacional de Jornalistas (ANJ) e que reuniu 2.860 alunos (AGÊNCIA LUPA,
2018, ARQUIVO ELETRÔNICO).
O terceiro braço financeiro da agência são projetos associados a plataformas
digitais como o Facebook e o Google. O site informa que em dezembro de 2017, a Lupa
recebeu um repasse de aproximadamente R$ 90 mil do Google para realizar parte das
trilhas e os memes que estão disponíveis no site educativo www.fakeounews.org, uma
parceria da agência com o Canal Futura em favor da educação digital.
Já em 2 de abril de 2018, a Lupa anunciou o Projeto Lupe!, para construção de um
chatbot e a gravação de uma série de boletins audiovisuais com checagens focadas no
período eleitoral. O Lupe! teve um apoio financeiro do Facebook no valor de R$ 250 mil.
Em 10 de maio de 2018, a Lupa foi contratada e passou a integrar o time internacional do
Third Party Fact-checking Project, do Facebook, em que passa a checar diariamente o
grau de veracidade de conteúdos publicados na plataforma.
Em seu primeiro ano de vida (2016), somando os contratos comerciais
assinados com meios de comunicação do Brasil e os repasses feitos pela
Editora Alvinegra, a Lupa dispôs de um orçamento anual de aproximadamente
R$ 1 milhão. Em seu segundo ano de vida (2017), somando os contratos
comerciais e as oficinas ministradas, o orçamento foi de aproximadamente R$
1,4 milhão. Até agosto de 2018, a Lupa não havia recebido qualquer apoio
financeiro de ONGs, institutos, fundos ou entidades de cooperação nacional ou
internacional. Pelo segundo ano consecutivo, havia passado por uma rigorosa
auditoria internacional e sido reconhecida como um dos membros verificados
da International Fact-checking Network (IFCN) (AGÊNCIA LUPA, 2018,
ARQUIVO ELETRÔNICO).
5.6.7 Apartidarismo.
112
No artigo “Pós-política e corrosão da verdade”, Eugênio Bucci afirma que a
verdade factual dos jornais precisa está desvinculada da esfera política:
Trata-se de uma desvinculação categórica, uma cisão de método: uma coisa é
a esfera abrangida pela política; outra, bem distinta, é aquela em que os fatos
são apurados, investigados, pesquisados, narrados, historiados. Reside na
política o engenho especial de se apropriar dos fatos a partir de representações
ou relatos elaborados em outros domínios, inclusive no jornalismo, mas a
função de localizar e apontar a verdade, bem como a função de difundi-la, não
tem seu lugar no domínio político. A política se vale – e deve mesmo se valer
– da verdade factual, mas, para tanto, precisa ir buscá-la fora de seus domínios.
(BUCCI, 2018, p.25)
Na página da Lupa na internet há um link “Quais são os riscos do fact-checking”.
Um deles é “parecer partidário e pouco transparente”. Logo em seguida, a agência explica
que não apoia nem se associa a nenhum partido politico ou organização sindical. Afirma
ainda que checa o governo e oposição, em níveis federal, estadual e municipal.
Ao entrar na Lupa, os funcionários da agência assinam um termo jurídico em
que se comprometem a seguir os cinco princípios éticos da International Fact-
checking Network (IFCN), bem como a se abster de integrar partidos políticos
ou entidades político-partidárias. São também oficialmente desaconselhados a
manter qualquer posicionamento público frente a polêmicas envolvendo
política, economia ou sociedade (AGÊNCIA LUPA, 2018, ARQUIVO
ELETRÔNICO91).
Cristina Tardáguila afirma que a associação da Lupa com a marca piauí, já que
estão hospedadas no mesmo site, trouxe ganhos para a agência. “A marca piauí é muito
forte e foi muito bem construída ao longo de dez anos. A piauí nunca teve grandes erros.
Nem grandes vacilos. Aparentemente, não é classificada nem como esquerda e nem como
de direita. Isso para o fact-checking é fundamental” (TARDÁGUILA, 2016).
O apartidarismo foi fundamental para a cobertura da Lupa no impeachment da
presidente Dilma Rousseff, por exemplo, trabalho que foi um dos indicados ao Prêmio
Gabriel García Márquez de Jornalismo, da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano
(FNPI), na categoria inovação.
Durante a votação do impeachment no Congresso Nacional, entre abril e maio de
2016, a equipe de jornalismo da Lupa preparou dois “tuitaços” (postagens na rede social
Twitter) em tempo real para divulgar as ocorrências judiciais dos 513 deputados e dos 81
senadores que decidiram sobre o impeachment. Cada vez que um parlamentar declarava
o seu voto, a Lupa “twittava” sobre a incidência ou não de ocorrências judiciais.
91 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2015/10/15/os-riscos-do-fact-checking/>. Acesso em
28. Ago. 2018.
113
O resultado da checagem mostrou que 299 deputados têm ocorrências na Justiça
e\ou no Tribunal de Contas, com 76 condenados e ao menos 79 parlamentares alvos de
inquérito na Operação Lava Jato, totalizando 1.130 ocorrências. Sobre os senadores, o
total de 47 têm ocorrências na Justiça e\ou nos Tribunais de Contas, com 15 condenados
e ao menos 13 parlamentares alvos de inquérito na Operação Lava Jato, totalizando 277
ocorrências.
Segundo a Agência Lupa, o total de 593 tweets tiveram mais de 5 milhões de
visualizações e mais de 159 mil interações. As ações contaram com a participação de
influenciadores digitais, artistas, políticos e formadores de opinião. Além disso, os
“tuitaços” foram destaques na mídia como Folha de S. Paulo, O Globo, Estadão, entre
outras.
5.7 Nó 4: A correção do erro
É certo que o compromisso do jornalismo é com a veracidade da informação.
Assim, o erro é quase um tabu. Ou seja, os veículos preferem não falar sobre isso e a
retratação diante de uma desinformação é escassa e, muitas vezes, irrelevante aos olhos
do leitor.
Os grandes veículos, como a Folha de S. Paulo e o Estadão, dispõem de políticas
internas ou orientações editoriais para lidar com erros e providenciar suas retificações.
Porém, a falta de interesse em abordar o assunto está ligada ao fato de que, como foi visto,
os meios de comunicação têm a verdade como sinônimo de credibilidade e,
consequentemente, como moeda de troca com o público. Eugênio Bucci (2000) classifica
como “autossuficiência ética” a indisposição do jornalismo nacional para discutir ou
exercer autocrítica.
Entre os meios impressos, os jornais dispõem de seções onde identificam erros
cometidos em edições anteriores e anunciam suas correções. Entretanto, esse
processo nem sempre se mostra eficiente, seja porque não há uma política clara
de qualidade nos jornais, seja porque a percepção de erro dos profissionais não
é tão apurada. Um terceiro fator: pouco interessa a uma empresa dar tanta
transparência de seus deslizes diretamente aos seus clientes, no caso, os leitores
(CHRISTOFOLETTI; PRADO, 2007, p. 2).
E o que acontece quando um grupo responsável pelo monitoramento do erro
também erra? Cristina Tardáguila constata o óbvio na afirmação abaixo. Os jornalistas
também erram e não são os donos da verdade: “Os checadores são jornalistas que
trabalham para buscar o melhor dado possível naquele momento sobre determinado
assunto. Eles não são donos da verdade. São, obviamente, passíveis de erro”.
114
As agências de checagem têm um modo especifico de abordar o erro. Quando há
a constatação de um erro, a Lupa se compromete a alterar a checagem, dando destaque à
nova classificação, bem como divulga em suas redes sociais a correção do erro.
No fact-checking da Lupa, não se deleta o que foi ao ar. Corrige-se. Este é um dos pontos do código de ética da International Fact-checking Network (IFCN), rede mundial de checadores da qual a Lupa faz parte. Nos posts, a Lupa deixa entre parêntesis e em cinza (a informação errada). Em seguida, redige a correta. Se for necessária a troca de etiqueta, isso é publicamente informado no texto da correção. Todos os clientes da Lupa que tiverem republicado a informação incorreta são contratualmente obrigados a fazer correções. A agência também informa sobre seus erros de forma clara e ampla em suas redes sociais (AGÊNCIA LUPA, 2015, ARQUIVO ELETRÔNICO92).
5.7.1 O erro na checagem
O erro no jornalismo é danoso, porém a falha na checagem pode acarretar em
críticas até mais severas a um modo de trabalho que ainda é recente no cenário brasileiro.
Até porque o fact-checking ainda constrói sua credibilidade junto aos leitores.
A Lupa vivenciou um momento de instabilidade diante da opinião pública ao
checar informações sobre a entrega de um terço abençoado pelo Papa Francisco ao ex-
presidente Lula, que está preso na Polícia Federal, em Curitiba.
A Lupa recebeu diversos pedidos, via Facebook, para averiguar a frase “Papa
enviou terço a Lula”. Inicialmente, a informação recebeu a etiqueta de “Falsa”:
Durante a tarde do dia 12, o site Vatican News, agência de notícias mantida
pela Secretaria de Comunicação da Santa Sé, publicou uma nota negando que
o objeto religioso levado por Grabois tinha sido efetivamente enviado pelo
Papa a Lula. Segundo o texto, a visita do argentino tinha caráter
exclusivamente pessoal, e o objeto havia sido apenas abençoado pelo Pontífice.
O mesmo conteúdo foi distribuído pelas redes sociais da agência. Como se
tratava de uma fonte oficial do Vaticano, a Lupa e diversos outros checadores
do Brasil consideraram que a informação de que o terço teria sido enviado pelo
Papa era falsa (AGÊNCIA LUPA, 2018, ARQUIVO ELETRÔNICO93).
Logo após a publicação da análise da Lupa, o Vatican News modificou a nota que
foi usada como a principal fonte da checagem para justificar a etiqueta “Falsa”. A Lupa
precisou elaborar uma nota de esclarecimento sobre o assunto e modificou a etiqueta para
“De olho” para acompanhar os desdobramentos da história:
A Lupa procura contato com a Vatican News e o Vaticano. Espera um
posicionamento oficial sobre o ‘envio’ do terço do Papa a Lula – e não apenas
a bênção dele. Diante dessa espera, às 16h30 de hoje (13), optamos por alterar
92 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2015/10/15/na-lupa-ha-espaco-para-contestacoes-e-
correcoes/>. Acesso em 28. Ago. 2018. 93 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/06/13/esclarecimento-lupa-terco-lula/>.
Acesso em 28. Ago. 2018.
115
a etiqueta inicial aplicada, “falso”, para “de olho”. Trata-se da classificação
usada para monitoramentos. Assim sendo, esta passa a ser a classificação da
Lupa até que o Vaticano faça um esclarecimento oficial e definitivo sobre o
desejo do Pontífice em dar um terço ao ex-presidente (AGÊNCIA LUPA, 2018, ARQUIVO ELETRÔNICO).
Porém, mesmo explicando o ocorrido, a agência recebeu críticas por uma
checagem incorreta principalmente porque classificou como fake news as páginas no
Facebook que replicaram a notícia sobre o terço do site oficial do ex-presidente Lula.
Após a troca de etiquetas, a Lupa voltou atrás e desclassificou as páginas como notícias
falsas.
Como se pode ver, o terreno da checagem política é movediço. Principalmente
diante da polarização política em que o país se encontra, em que as discussões que
poderiam ser saudáveis ganham status de polêmica. Neste caso, a checagem sempre irá
desagradar um lado e alguém.
Diante deste cenário, entre agosto e novembro de 2018, a Lupa contou com uma
profissional exercendo a função de ombudsman durante a cobertura eleitoral de 2018, o
que evidencia uma marca do aspecto comunicativo exposto por Salles anteriormente.
O cargo de ombudsman é algo inédito em uma agência de checagem. Ou seja,
uma jornalista exclusivamente dedicada a ouvir a crítica dos
leitores/ouvintes/espectadores da agência e repassá-la à redação, de forma a aprimorar o
trabalho oferecido. A jornalista e professora universitária Fernanda da Escóssia foi a
escolhida para ocupar o cargo.
Com essa medida, mostramos que estamos abertos às críticas, que queremos
aprimorar nosso serviço e que, ao mesmo tempo, estamos dispostos a ser
avaliados de forma profissional. Poucos meios de comunicação do Brasil têm
a figura do ombudsman em seus quadros. No mundo do fact-checking, seremos
os primeiros. Isso mostra o tamanho do nosso comprometimento
(TARDÁGUILA, 2018, ARQUIVO ELETRÔNICO94).
A função da ombudsman foi ler todas as checagens feitas pela Lupa entre agosto
e novembro de 2018; acompanhar a postagem da agência nas redes sociais e avaliar sua
pertinência; produzir um relatório interno semanal sobre as manifestações dos leitores via
e-mail; publicar uma coluna semanal na seção “Ombudsman” do site da Lupa, com a
avaliação da cobertura feita pela agência; manter-se apartidária nas análises feitas,
seguindo o código de ética da IFCN; manter-se apartidária nas redes sociais durante o
período de contratação e defender a importância da checagem de fatos.
94 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/08/16/lupa-ombudsman-2018/. Acesso em 29.
Ago. 2018.
116
Desta forma, apesar do erro ser quase inerente ao trabalho subjetivo do jornalista,
a decisão de incluir uma profissional para realizar uma autocrítica do trabalho jornalístico
é positiva. Algo que atende ao que foi dito antes por Eugênio Bucci sobre a indisposição
do jornalismo nacional para discutir ou exercer autocrítica. Porém, ainda é cedo para
afirmar o impacto disso para a profissão e para os leitores imersos na era da pós-verdade.
Após a explanação sobre a agência Lupa e sobre as iniciativas do fact-checking
no Brasil e no mundo, é perceptível que há um movimento para atender às novas
perspectivas de atuação no campo jornalístico que incluem a checagem dos fatos. É um
novo que volta às origens e resgata o pilar da apuração. E, consequentemente, com isso o
jornalismo busca enfrentar a desinformação.
Porém, esse movimento ainda é tímido e tem como desafio conquistar a
credibilidade do público desacreditado com a imprensa e que está imerso em um ambiente
barulhento de informação em excesso.
Além disso, quando se fala em pós-verdade, estão em jogo as emoções e crenças
além do fato em si. Com isso, além de uma checagem de fatos, os grupos de checadores
se deparam com o chamado “viés da confirmação”, quando a pessoa acredita em uma
notícia falsa porque tem a necessidade de confirmar as suas próprias certezas. Para essas
pessoas não existirá checagem que prove o contrário.
Assim, nas considerações finais deste trabalho, haverá uma discussão sobre como
o jornalista pode dialogar com público temas caros à sociedade e à democracia.
117
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da rede de criação da revista piauí e da agência Lupa possibilitou uma
reflexão crítica que foi além dos objetos de pesquisa escolhidos. Ela proporcionou uma
reflexão sobre os desafios do jornalismo na atualidade a partir da prática da profissão. Ou
seja, a partir da investigação da construção da reportagem/checagem e não do produto
final.
A importância disso é o entendimento de que, muito além de reportar sobre os
acontecimentos do cotidiano, o jornalismo constrói e recupera a verdade factual (Bucci)
e o fato histórico. Porém, sustentar o fato está cada vez mais difícil em meio à existência
de uma verdadeira indústria da desinformação, como foi visto. A dificuldade reside no
fato de que, ao contrário da informação bem apurada, a desinformação é simples e barata,
o que permite que fake news sejam transformadas em memes, gifs ou vídeos
compartilhados nas redes sociais de forma incontrolável.
Porém, o que realmente dificulta o combate à desinformação é o que Morin (1998)
classifica como imprinting cultural que marca os humanos com o selo da cultura, primeiro
familiar e depois escolar, prosseguindo na universidade ou na profissão, que age como
um poder imperativo criador das crenças não contestadas e verdades absolutas.
O poder imperativo\proibitivo conjunto de paradigmas, crenças oficiais,
doutrinas reinantes, verdades estabelecidas, determinam os estereótipos
cognitivos, preconceitos, crenças estúpidas não contestadas, absurdos
triunfantes, rejeições de evidências em nome da evidência, e faz reinar, sob
todos os céus, os conformismos cognitivos e intelectuais (MORIN, 1998,
p.34).
Ambientada no imprinting cultural, a sociedade acredita com mais facilidade nas
notícias que reafirmam suas crenças e suas verdades estabelecidas mesmo que as
informações contidas nelas sejam comprovadamente falsas. É o chamado “viés da
confirmação” citado anteriormente. “As notícias falsas só existem porque as pessoas
precisam de notícias, verdadeiras ou não, para alimentar as próprias certezas” (FERRARI,
2018, p. 62).
Morin afirma ainda que o imprinting cultural “determina a desatenção seletiva,
que nos faz desconsiderar tudo aquilo que não concorde com as nossas crenças, e o
recalque eliminatório, que nos faz recusar toda informação inadequada às nossas
convicções, ou toda objeção vinda de fonte considerada má” (FERRARI, 2018, p. 35).
Isso pode ser semelhante ao que acontece com a checagem política que tem dificuldade
118
de penetração em ambientes com pensamentos extremistas direitistas ou esquerdistas. Ou
seja, as pessoas que estão ambientadas no imprinting não aceitam com facilidade as
checagens que revelam informações contrárias à sua crença.
Em seu livro Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano
autoritário brasileiro (2017), Márcia Tiburi (2017, p. 24) classifica como fascista alguém
que não se dispõe a escutar, que não fala para dialogar, mas apenas para mandar e
dominar.
O fascista não consegue relacionar-se com outras dimensões que ultrapassem
as verdades absolutas nas quais ele firmou seu modo de ser. Sua falta de
abertura, fácil de reconhecer no dia a dia, corresponde a um ponto de vista fixo
que lhe serve de certeza contra pessoas que não correspondem à sua visão de
mundo preestabelecida.
Para a autora, o país vivencia um autoritarismo na vida cotidiana em que é inviável
a abertura até a uma simples conversa. “Os indivíduos estão fechados em seus pequenos
universos previamente formados e informados de tudo o que supõem saber” (TIBURI,
2017, p. 27). Tiburi (2017, p. 37) aposta no diálogo como uma prática que deveria ser a
base de uma ética do dia a dia:
O diálogo é mais ainda [complicado] porque não nos ocupamos em prestar
atenção no que pode ser um diálogo, ele mesmo um modo de conversar cheio
de potências e que facilmente se cancela se não insistimos nele. Não o
experimentamos [o diálogo] na microfísica do cotidiano onde tanto poderia
nos ser dito acerca de uma potência de transformação em termos macrofísicos.
O diálogo entre o singular e o geral – entre o que somos (ou queremos ser) e o
que nos rodeia – nos faria bem. Precisaríamos pensar mais, isso é certo, mas
vivemos no vazio do pensamento, ao qual podemos acrescentar o vazio da ação
e o vazio do sentimento. O vazio é o estranho ethos de nossa época.
O diálogo também é apontado por Morin quando afirma que há falhas no
aparentemente implacável determinismo do imprinting. Ele aponta para três
possibilidades desse enfraquecimento: a existência de vida cultural e intelectual dialógica;
o calor cultural e a possibilidade de expressão de desvios ou brechas.
O autor afirma que a pluralidade e a diversidade dos pontos de vista são condições
para a dialógica cultural:
São, justamente, essas diversidades de ponto de vista que o imprinting inibe e
a normalização reprime. [...] Essas condições aparecem nas sociedades que
permitem o encontro, a comunicação e o debate de ideias. [...] O intercâmbio
das idéias produz o enfraquecimento dos dogmatismos e intolerâncias, o que
resulta no seu próprio crescimento. (MORIN, 1998, p. 38-39).
Morin ressalta ainda a necessidade do encontro de ideias antagônicas para a
criação de uma zona de turbulência que abre uma brecha no determinismo cultural.
119
Assim, as ideias contrárias podem estimular entre indivíduos e grupos interrogações,
insatisfações, dúvidas, reticências e busca.
Morin (1998, p. 40) afirma ainda que a dialógica cultural favorece o calor cultural
e juntos criam condições de autonomia de espírito:
Assim como o calor se tornou uma noção fundamental no devir físico, é preciso
dar-lhe um lugar de destaque no devir social e cultural, o que nos leva a
considerar, onde há “calor cultural”, não há um determinismo rígido, mas
condições instáveis e movediças. Do mesmo modo que o calor físico significa
intensidade\multiplicidade na agitação e nos encontros entre partículas, o
“calor cultural” pode significar intensidade\multiplicidade de trocas,
confrontos, polêmicas entre opiniões, idéias, concepções. E, se o frio físico
significa rigidez, imobilidade, invariância, vê-se então bem que o
abrandamento da rigidez e das invariâncias cognitivas só pode ser introduzido
pelo “calor cultural”.
As condições ditas acima por Morin favorecem o surgimento dos desvios ou
brechas e transformações nos determinismos que pesam sobre o conhecimento. “Basta
por vezes uma pequena brecha no determinismo, permitindo a emergência de um desvio
inovador ou provocado por um abcesso de crise, para criar as condições iniciais de uma
transformação que pode eventualmente tornar-se profunda” (1998, p. 44).
Pode-se afirmar que iniciativas como a revista piauí e a agência de checagem
Lupa, assim como outros modelos semelhantes, são brechas ou rupturas (MORIN, 1998)
no imprinting porque produzem narrativas jornalísticas complexas.
A complexidade permite, como afirma Morin (2003, p. 100), um caráter
multidimensional de qualquer realidade. Diferentemente da visão simplista e bipolar
comum ao jornalismo, como afirma Nelson Traquina (TRAQUINA, 2013, p. 45):
A maneira de ver dos membros da tribo jornalística privilegia uma visão
bipolar – o mundo é estruturado em polos opostos: o bem e o mal, o pró e o
contra etc. As regras de objetividade, bem como a vontade de simplificar e\ou
estruturar o acontecimento de forma dramática, explicam esta visão bipolar.
Na reportagem da piauí a complexidade é percebida quando o repórter mostra
diferentes ângulos de um fato ou diferentes facetas de um personagem com o objetivo de
entender a verdade factual com mais clareza.
Isso só é possível com uma investigação aprofundada e com a representação de
diferentes pontos de vistas e diferentes vozes sobre um assunto, o que possibilita a
construção de um diálogo e não apenas de um discurso no jornalismo.
A diferença entre discurso e diálogo importa aqui. No primeiro a escuta serve
à fala, no segundo, a fala serve à escuta. O diálogo não é a conversa entre
iguais, não é apenas uma fala complementar, uma conversa amistosa, mas a
prática real da escuta em que a dúvida, a pergunta, existe para abrir a si próprio
e abrir o outro (TIBURI, 2017, p. 47).
120
Para Cremilda Medina, a entrevista jornalística não pode ser tratada apenas como
uma técnica, mas como um diálogo em que haja uma interação humanizada entre o
entrevistador e o entrevistado:
Desenvolver a técnica da entrevista nas suas virtudes dialógicas não significa
uma atitude idealista. No cotidiano do homem contemporâneo há espaço para
o diálogo possível [...] Sua maior ou menor comunicação está diretamente
relacionada com a humanização do contato interativo: quando ambos
entrevistado e entrevistador saem alterados do encontro, a técnica foi
ultrapassada pela “intimidade” entre o EU e TU. Tanto um como outro se
modificaram, alguma coisa aconteceu que os perturbou, fez-se luz em certo
conceito ou comportamento, elucidou-se determinada autocompreensão ou
compreensão do mundo. Ou seja, realizou-se o Diálogo Possível (MEDINA,
1986, p. 7).
Percebe-se que o diálogo só é possível com um contato direto entre jornalista e
fonte. Como foi visto na rede de criação da revista piauí, é preciso tempo para uma
imersão do repórter junto ao entrevistado.
Assim, pode-se afirmar que os repórteres da piauí conseguem executar a dialogia
citada por Medina e por Tiburi. Nos relatos dos repórteres para o presente trabalho, é
nítido o envolvimento deles com as fontes. Como quando Malu Gaspar relata sobre a sua
relação com o perfilado Delcídio de Amaral ou quando Paula Scarpin fala sobre a
convivência com o locutor Cuiabano. Todos eles ressaltam o tempo de convivência com
as fontes como o diferencial para a produção da reportagem.
Ainda segundo Morin, a complexidade estaria não apenas nos desenvolvimentos
científicos como é comum de se pensar, mas estaria presente também no cotidiano e foi
captada muito bem pela narrativa literária. Como foi visto, a revista piauí tem como um
dos pilares, justamente, a narratividade.
Esta complexidade [do cotidiano] foi apreendida e descrita pelo romance do
século XIX e do início do século XX. Quando nessa mesma época a ciência
tenta eliminar o que é individual e singular, para só reter leis gerais e
identidades simples e fechadas, quando afasta mesmo o tempo da sua visão do
mundo, o romance, pelo contrário (Balzac em França e Dickens na Inglaterra),
mostra-nos seres singulares nos seus contextos e no seu tempo. Mostra que a
vida mais quotidiana é, de facto, uma vida onde cada um representa vários
papéis sociais, segundo o que é na sua casa, no seu trabalho, com amigos e
desconhecidos. Vê-se que cada ser tem uma multiplicidade de identidades,
uma multiplicidade de personalidades nele próprio, um mundo de fantasmas e
de sonhos que acompanha a sua vida. [...] tudo indica que não é
simplesmente a sociedade que é complexa, mas cada átomo do mundo
humano (MORIN, 2003, p. 83-84. Grifo meu).
Segundo Medina (2008, p. 26), o desafio de pensar o jornalismo como narrativa
complexa estaria na possibilidade de narrar sobre o cotidiano por meio de reportagens
que recuperam a experiência humana e trazem a cena viva em contraponto à abstração
121
das ideias.
Assim, o repórter observa o real através “da lente da complexidade, onde são
muitos os fatores interativos que compõem processual e dinamicamente a realidade”
(PEREIRA LIMA, 2014, p. 13). Para isso, ele “investiga o real e capta o significado da
rede de fatores e forças que configuram um momento e uma situação da realidade. [..] E
apresenta sua reprodução desse real de um modo narrativo peculiar” (PEREIRA LIMA,
2014, p. 13).
A complexidade está também na checagem. Como foi visto nas etiquetas da
agência Lupa, por exemplo, que mostram as variáveis de classificação de um fato. Ou
seja, o verdadeiro ou o falso possuem nuances que precisam ser explicadas e
contextualizadas para o leitor.
Até porque, segundo a teórica Pollyana Ferrari, a checagem está relacionada com
a complexidade da vida. “Checar fatos, sair das bolhas e ir contra padrões enlatados
podem nos salvar, pois a vida é bem mais rugosa [...] A vida é mais rizomática do que
cartesiana” (2018, p. 164).
Desta forma, após a construção da rede de criação da revista piauí e da Agência
Lupa, puderam-se identificar os componentes necessários para a construção de uma
narrativa complexa no jornalismo. Os nós de criação apontados durante o trabalho são as
condições para a complexidade em questão. Assim, é preciso deixar de lado o fetiche da
velocidade e apostar em apurações demoradas. Ao mesmo tempo, é necessária uma aposta
na experimentação (Salles) do repórter ao dialogar com as técnicas narrativas
emprestadas da literatura e do cinema para melhor reportar sobre o fato.
É indicada ainda a transparência da metodologia do trabalho do jornalista. Além
da transparência de suas fontes e apartidarismo para o fortalecimento da credibilidade
diante do público. Por fim, a reparação do erro e a autocrítica para melhorar o diálogo
com aqueles que consomem as notícias. Todas essas ferramentas podem fomentar uma
oposição às crenças e verdades estabelecidas ou estereótipos presentes nas notícias falsas
e no ambiente do imprinting cultural.
Desta forma, pode-se afirmar que a complexidade é bem-vinda no jornalismo
principalmente em uma sociedade polarizada (dualista) porque ela abre caminho para o
diálogo. A partir da construção de narrativas complexas, o jornalismo poderá combater a
desinformação e restabelecer o diálogo tão caro à democracia.
122
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127
ANEXOS
Anexo 1
128
Anexo 2
129
Anexo 3
130
Anexo 4
131
Anexo 5