KONDER, Leandro. Em Torno de Marx[1]

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    em torno de marx

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    Karl Marx como Prometeu acorrentado. Na mitologia grega, Zeus castigouo tit por ter roubado o fogo dos deuses a fim de entreg-lo aos homens:acorrentado a uma coluna, tinha seu fgado devorado todos os dias por

    uma guia; durante a noite, o rgo se regenerava para, no dia seguinte,a tortura se repetir. Na alegoria, Marx est acorrentado a uma prensa,e seu fgado devorado pela guia smbolo da Prssia, representando

    a repetida censura sofrida, em especial naGazeta Renana,fechada pelo governo prussiano em 1843.

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    EM TORNO DE MARX

    Leandro Konder

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    Copyright Leandro Konder, 2010Copyright desta edio Boitempo Editorial, 2010

    Coordenao editorial Ivana Jinkings Editora-assistenteBibiana Leme Assistncia editorial Ana Lotufo, Elisa Andrade Buzzo

    e Gustavo Assano Preparao Mariana Echalar Capa David Amiel Diagramao Acqua Estdio Grfico Produo Ana Lotufo Valverde e Paula Pires

    CIP BRASIL. CATALOGAO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

    K85e

    Konder, Leandro, 1936- Em torno de Marx / Leandro Konder. - So Paulo : Boitempo, 2010.

    (Marxismo e literatura)

    ISBN 978-85-7559-167-3

    1. Marx, Karl, 1818-1883. 2. Filosoa marxista. 3. Socialismo. 4. Comunismo.5. Socialismo - Brasil. I. Ttulo. II. Srie.

    10-6009. CDD: 335.4 CDU: 330.8518.11.10 01.12.10 022948

    vedada, nos termos da lei, a reproduo de qualquerparte deste livro sem a expressa autorizao da editora.

    Este livro atende s normas do novo acordo ortogrfico.

    1 edio: dezembro de 20101 reimpresso: novembro de 2011

    BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Editores Associados Ltda.

    Rua Pereira Leite, 37305442-000 So Paulo SP

    Tel./fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869editor@boitempoeditorial.com.brwww.boitempoeditorial.com.br

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    Sumrio

    ADVERTNCIA PRELIMINAR: DIFICULDADES NO CAMPO DE BATALHA 7

    Primeira parte EM TORNO DE MARX

    MARX: O HOMEM E A OBRA REVISITADOS ............................................... 11MARX E A MORAL .................................................................................................. 21MARX E A RELIGIO ............................................................................................ 25MARX E A MORTE .................................................................................................. 29MARX NA HISTRIA E A HISTRIA EM MARX .................................. 35MARX E A DIALTICA ......................................................................................... 51

    Segunda parte A HERANA DE MARX

    THEODOR ADORNO ........................................................................................... 55

    WALTER BENJAMIN ............................................................................................. 63

    HERBERT MARCUSE ............................................................................................. 73

    JEAN-PAUL SARTRE .............................................................................................. 87

    GYRGY LUKCS ................................................................................................... 95

    ANTONIO GRAMSCI ........................................................................................... 105

    Terceira parte O MARXISMO NO BRASIL

    OS MARXISTAS BRASILEIROS: PRIMEIROS MILITANTES ...................... 117

    A FALA DA DIREITA NO BRASIL: DE 1936 A 1944 ....................................... 125

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    NOTA Muitas das citaes foram inseridas com base em antigas anotaes do autor. Por esse motivo,podem s vezes carecer de referncias bibliogrficas completas. Todos os esforos foram feitospara complementar tais referncias, porm nem sempre isso foi possvel.

    Tambm procuramos incluir informaes adicionais sobre pessoas mencionadas pelo autor, comoo nome completo e as datas de nascimento e morte (quando era o caso). Quando, porm, nohavia uma fonte segura para garantir a veracidade desses dados, optamos por no os inserir.

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    ADVERTNCIA PRELIMINAR: DIFICULDADES NO CAMPO DE BATALHA

    Ao longo do ltimo sculo (ltimo, claro, no sentido de mais recente),a nossa vida sofreu modificaes impressionantes. Em ritmo vertiginoso, oscomputadores transformaram as condies de trabalho de um nmero crescen-

    te de pessoas. A indstria cultural adquiriu uma influncia enorme, atravsda manipulao do entretenimento.O passado pode nos ajudar, enriquecendo nosso quadro de referncias. Mas

    pode tambm nos atrapalhar, induzindo-nos a preservar ideias j superadas.Neste livro, buscou-se pensar as consequncias da crise no campo do pen-

    samento de esquerda, cujo expoente pela maior influncia histrica que temexercido nos ltimos 180 anos o filsofo socialista Karl Marx (1818-1883)Sobre ele, j existem numerosas bibliotecas. O leitor tem todo o direito de in-dagar o que pretende ser este volume que surge ocupando novo espao nas pra-teleiras. Qual a ideia original que ele traz?

    Em termos simples, a ideia a seguinte: Marx se tornou uma celebridadepor suas intervenes polmicas no campo da histria, na crtica da economiapoltica, na anlise das lutas de classes e na mudana das relaes de produoUm aspecto de sua contribuio construo do conhecimento na cultura doOcidente, porm, ficou subaproveitado: a dimenso filosfica.

    Houve um inevitvel prejuzo no alcance de conceitos polticos, econ-micos e histricos apoiados em concepes tericas mais especificamentefilosficas que no haviam assimilado toda a importncia das ideias deMarx sobre o homem (sujeito da prxis) e a histria (que abrangia tudo). Osujeito transforma a si mesmo e transforma historicamente o mundo. Essemovimento jamais apreendido por cientistas que pregam a pseudoneutrali-dade metodolgica.

    Os cientistas erram. No s eles: todos ns erramos. E errando e corrigin-do o erro que se aprende. Na esperana de diminuir seus erros, os homens apren-

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    dem a pensar mais criticamente e, por extenso, mais autocriticamente. O exer-ccio do dilogo abre espao para conhecimentos novos e ajuda a evitar que sepercam conhecimentos desmistificadores.

    Relembrar velhos mestres tarefa da cultura viva. Este volume abre espaoa reflexes sobre Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969), Herbert Marcu-se (1898-1979), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Walter Benjamin (1892-1940),Gyrgy Lukcs (1885-1971) e Antonio Gramsci (1891-1937). No para quesejam imitados, bvio, mas para que sejam digeridos de maneira a dar vidanova filosofia. No presente caso, filosofia de Marx.

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    p r i m e i r a p a r t eem torno de marx

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    Documento que ordena a expulso de Marx de Paris, aps manifestaopopular de 13 de junho de 1849, que cobrava do presidentee da Assembleia Legislativa respeito constituio de 1848.

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    MARX: O HOMEM E A OBRA REVISITADOS

    O pensamento de Marx est sendo submetido a uma severa reviso. Os queusam as ideias do mestre, ou simpatizam com elas, vm manifestando certa per-plexidade. O marxismo morreu? Se ainda est vivo, onde se acham seus centros

    de elaborao terica mais influentes?Por mais brilhante que tenha sido poca de sua criao no sculo XIX,por mais notvel que tenha sido sua marca no sculo XX, o marxismo se res-sente das graves derrotas que tem sofrido neste incio do sculo XXI. Desde ocomeo da sua interveno no movimento operrio europeu, o marxismo vemtendo uma trajetria acidentada.

    Marx deixou claro que no gostava do nome marxismo, via-o com m von-tade. E a m vontade se justificou quando, aps sua morte e sem que FriedrichEngels (1820-1895) pudesse impedir, o termo passou a circular com grandedesenvoltura, designando um conjunto de ideias que vinha de Marx mas arti-culava-se de maneira peculiar.

    No fim do sculo XIX, Karl Kautsky (1854-1938), com o prestgio e opoder de quem era reconhecido simultaneamente como maior terico marxis-ta e secretrio-geral do primeiro partido de massas na histria do Ocidente, oPartido Social-Democrata da Alemanha, contribuiu de maneira decisiva para aadoo de um conjunto de textos de Marx que foram preparados para ser lidos,estudados e traduzidos na ao pelos militantes.

    Marx, como sabemos, escreveu muito. A edio MEW (Marx-Engels-Werke)tem 45 volumes*1. Pouqussimas pessoas tinham condies de ler tudo que eleescreveu. Por isso, Kautsky teve enorme sucesso quando selecionou os textoque lhe pareciam ser, de fato, os mais importantes. As ideias de Marx foram

    * Karl Marx e Friedrich Engels,Werke (Berlim, Institut fr Marxismus-Leninismus, Dietz,1956-1968). (N. E.)

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    organizadas como uma doutrina, algumas foram descontextualizadas, ou-tras sofreram uma simplificao excessiva, justificada em nome da urgnciada ao.

    A reduo do aspecto filosfico do pensamento de Marx s frmulas teri-co-polticas dificultava aos leitores o entendimento dos conceitos que o pen-sador alemo criava. Alis, esta uma diferena a ser levada em conta: Marxcriava seus conceitos; os leitores da verso doutrinria do marxismo kautskianoencontravam as ideias feitas e, em alguns casos, pr-digeridas.

    No seria justo ignorarmos os mritos de Kautsky. Mas, quando se conver-teu ao marxismo, era adepto da teoria darwinista e constatou, dizia ele, queno fora preciso mudar nada. A dialtica, na poca, era difcil de ser assimilada,e Kautsky, apesar de sua erudio, no parece t-la entendido. No era umafalha pessoal: era consequncia da formao filosfica escancaradamente con-servadora proporcionada s pessoas.

    Outra dificuldade precisa ser lembrada. Alguns dos escritos imprescindveisao estudo especfico da filosofia de Marx s foram publicados aps sua morte,ocorrida em 1883. A ideologia alem *2 foi publicada em 1932, assim como asTeses sobre Feuerbach**3 (Engels publicou-as antes, mas num texto que con-tinha palavras diferentes das de Marx). Os Manuscritos econmico-filosficos*** 4 de 1844 tambm foram publicados em 1932. E osGrundrisse (um esboo doque seriaO capital**** 5) foram publicados em 1939, porm s circularam maisamplamente no fim da Segunda Guerra Mundial, a partir de 1945. Mesmoleitores crticos que pudessem entender a densa argumentao de Marx nopoderiam ler manuscritos no publicados.

    Os prejuzos decorrentes dessa situao foram enormes. Do ngulo de Marx,era previsvel que os intelectuais conservadores detestassemO capital , sem sedar ao trabalho de apontar e condenar nele elementos insuficientes (at gosta-riam de saber se o livro tinha mais deficincias). Do ngulo dos trabalhadorese de seus aliados, empenhados em derrotar a burguesia e acabar com o capita-lismo, as armas de luta deviam incorporar os avanos do conhecimento.

    * So Paulo, Boitempo, 2007. (N. E.)

    ** Em A ideologia alem , cit. (N. E.)*** So Paulo, Boitempo, 2004. (N. E.)**** 22. ed., Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2008. (N. E.)

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    A ao transformadora tem de ser rigorosa, precisa, oportuna. Para isso, aprxis necessita da teoria. E nem toda teoria boa. Grandes construes teri-cas j sofreram derrotas considerveis em batalhas travadas contra ideias improvisadas e frgeis. Por qu? Porque os combates histricos so decididos noplano da atuao das foras materiais.

    Os conceitos, as imagens, as opes podem promover o enraizamento deconvices nos indivduos, a paixo pode arrebat-los; mas, quando se pemem movimento, eles so inapelavelmente indivduos de carne e osso, corposciosos de sua corporeidade.

    Um segundo movimento de fisionomia revolucionria, mas vocao re-formista acompanhou a criao da Unio Sovitica e as atividades dos parti-dos comunistas: o marxismo-leninismo. Os estragos que causou teoria foramainda maiores do que aqueles da corrente liderada por Kautsky.

    Diante de uma bateria de conceitos esgarados, era possvel sustentar quese estava realizando um grande esforo no sentido de se aproximar do modeloda sociedade sem Estado, que seria o comunismo. O sucessor de VladimirIlitch Lenin (1870-1924), Josef Stalin (1879-1953), em face das evidnciasde que o Estado sovitico se fortalecia cada vez mais em vez de desaparececomo Marx queria chegou a sustentar que o crescimento do Estado era ummomento dialeticamente necessrio de seu desaparecimento.

    A dialtica, da qual Stalin tinha conhecimentos superficiais, trabalha com adinmica das contradies e est obrigada a respeit-las para poder efetivamentsuper-las. No perodo em que Stalin comandou a URSS e o movimento comu-nista internacional, o marxismo-leninismo tinha uma relao invivel com ascontradies: ora as ignorava, negava que tivessem importncia, ora atribua seucarter dialtico a contradies lgico-formais, ora reduzia eventos histricos meros resultados de determinada causa (a histria regida pela relao de causa efeito passa a ser consequncia natural de uma causa anterior).

    Stalin era um poltico esperto. Como no tinha talento para a teoria, apoioutendncias tericas que adulteravam o marxismo e reduziu certos temas tericos quase banalidades. Em sua abordagem do conceito de ideologia (emO 18 debrumrio* 6, por exemplo, Marx examina os vnculos entre a cultura e as opes po-

    * So Paulo, Boitempo, no prelo. (N. E.)

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    lticas das classes sociais), o dirigente comunista russo tendia a reduzir as ideias condies sociais que as condicionavam, vendo nelas os efeitos de uma causa; as-sim, ele via em Georg Friedrich Hegel (1770-1831) no o gnio da dialtica, cujaleitura Marx e Lenin recomendavam, mas um mero filsofo reacionrio alemo.

    Mais grave que a pobreza do nvel dos comentrios de Stalin sobre ques-tes tericas foi a represso sistemtica adotada na URSS. Enquanto Marx,libertariamente, concebia o comunismo como uma sociedade sem Estado,Stalin expurgava milhares de cidados, entre os quais dois teros do comitcentral de seu partido. uma cruel ironia da histria que para a opinio p-blica o marxismo esteja mais identificado com o ditador russo do que com ofilsofo alemo.

    Se, de um lado, havia marxistas que pretendiam ser fiis filosofia do pensa-dor revolucionrio, mas nunca chegaram a ter nas massas uma nfima parcela darepercusso do marxismo oficial dos soviticos, de outro lado, o imenso pesodo Estado sovitico, seu poder militar e sua vitria contra Adolf Hitler (1889--1945) possibilitaram a cooptao de numerosos intelectuais e artistas rebeldes.

    Em diferentes momentos e graus, aproximaram-se do movimento comu-nista pintores como Pablo Picasso (1881-1973), Di Cavalcanti (1897-1976),Candido Portinari (1903-1962), cineastas como Charles Chaplin (1889-1977),Luchino Visconti (1906-1976), Jean Renoir (1894-1979), Ettore Scola (1931),cientistas como Paul Langevin (1872-1946), John Burdon Haldane (1892--1964), Henri Wallon (1879-1962), Jean-Frdric Curie (1900-1958) e Irne Joliot-Curie (1897-1956), arquitetos como Oscar Niemeyer (1907), escritorescomo Bertolt Brecht (1898-1956), Paul Eluard (1895-1952), Louis Aragon(1897-1982) e tantos outros. (A lista poderia se alongar ainda mais. Sem maioresforo de memria: Andr Gide (1869-1951), Henri Barbusse (1873-1931), Andr Malraux (1901-1976), Andr Breton (1896-1966), Jorge Semprun(1923), John Steinbeck (1902-1968), Alejo Carpentier (1904-1980), GabrielGarca-Mrquez (1927), Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir (1908-1986), Jos Saramago (1922-2010), Erskine Caldwell (1903-1987), Theodore Drei-ser (1871-1945), Italo Calvino (1923-1985), Jorge Amado (1912-2001), Gra-ciliano Ramos (1832-1953), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987),Oswald de Andrade (1890-1954), Howard Fast (1914-2003), Dashiell Ham-mett (1894-1961), Lillian Hellman (1905-1984), Arthur Miller (1915-2005),

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    Vasco Pratolini (1913-1991), Roger Vailland (1907-1965), Pier Paolo Paso-lini (1922-1975), Garca Lorca (1898-1936), John dos Passos (1896-1970)e Pablo Neruda (1904-1973). O que ter levado tantos e to importantescriadores culturais a assumir posies de simpatia pela URSS ou de apoioaos comunistas?

    Cada caso um caso. Cada um travava, alm dos combates na esfera pbli-ca, suas batalhas na solido da esfera privada. Uns achavam que por caminhostortuosos, afinal, talvez a sociedade chegasse a organizar os homens para umavida mais livre e mais justa. Outros se horrorizavam com o dio e o cinismodos anticomunistas.

    Por mais que tenham lamentado o fim da URSS, que deixou o mundo in-teiro s voltas com a poltica agressiva e a prepotncia dos norte-americanoshouve alguns marxistas rebeldes que confessadamente sentiram certo alviocom a imprevista derrocada do Estado fundado por Lenin. Ampliava-se assimo espao em que se podia fazer a desejvel releitura de Marx, rediscuti-lo, reavali-lo. Os personagens dessa histria do marxismo, que se destacaram pelaqualidade de seu pensamento, so bastante conhecidos, e pagaram um preomuito alto por sua independncia. O italiano Gramsci, o hngaro Lukcs eo alemo Adorno so autores de obras de leitura imprescindvel. Benjamintambm escreveu textos ousados, importantes, mas outros nomes poderiam seracrescentados aqui: Palmiro Togliatti (1893-1964), Ernst Bloch (1885-1977),Mikhail Bakhtin (1895-1975) etc.

    Uma recuperao da criatividade e do vigor crtico do pensamento radicalde Marx depende dessa espcie de ensasta, de autores capazes de fazer comentrios instigantes, provocadores. Podemos imaginar as surpresas, os sustos eas alegrias que nos seriam proporcionados por novos Gramscis, Lukacses, Adornos, Benjamins. E por que no? por novos Antonios Candidos, Chi-cos de Oliveiras, Robertos Schwarzes, Sartres, Karels Kosikes, Paulos AranteMichaels Lwys, Carlos Nelsons Coutinhos e outros.

    Essa imagem, contudo, incompleta, por isso permanece utpica. O pen-samento de Marx precisa aproveitar as contribuies desses tericos batalhadores, sem dvida, pois so elas que o mantm vivo; mas, para ser coerente comsua concepo da histria, para ressurgir com toda a sua fora no campo debatalha, ele precisa encontrar nos movimentos sociais seu exrcito, seus por

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    tadores materiais, aos quais ele leva sua perspectiva revolucionria. E tratar dedesenvolv-la em sintonia com a experincia que aqueles homens esto viven-do. o encontro da ao com a teoria aquilo que Marx chamou de prxis .

    A prxis o conceito central da filosofia de Marx, o que est mais vivo nela. a matriz de uma concepo original da histria, uma concepo que, sendomaterialista, reconhece o poder do sujeito de tomar iniciativas, fazer esco-lhas. Por isso, precisa de uma tica. Depende de valores que lhe permitamempenhar-se em projetos de transformao do mundo, na criao de umtipo melhor de sociedade, num futuro pelo qual valha a pena lutar. So osvalores vale a pena que fazem um operrio politizado levantar da camade madrugada para participar de uma greve.

    Desde que Marx analisou criticamente o capital, quer dizer, o modo deproduo capitalista, o sistema se modificou bastante, e muitas coisas escritasno livro esto envelhecidas ou superadas. As formas de interveno do Estadona economia se sofisticaram, a produo cultural cresceu uma enormidade etornou-se capaz de uma influncia que no tempo de Marx era inimaginvel. Aburguesia promoveu um vertiginoso desenvolvimento das foras produtivas, osavanos tecnolgicos so espantosos. O que devemos concluir, ento, queessa anlise crtica do capitalismo est morta?

    So legtimas as dvidas na resposta a essa pergunta. De um lado, podemospinar afirmaes improcedentes no texto de Marx. De outro, do sculo XIXat o incio do sculo XXI, nenhum dos grandes problemas apontados pelofilsofo foi resolvido pelo capitalismo. O capital, na medida em que passou afuncionar como o centro da vida social, continua extraindo mais-valia dostrabalhadores. O mercado joga todos contra todos, cultivando um esprito ul-tracompetitivo, ferindo a sensibilidade das pessoas, endurecendo seu corao.

    O prprio avano tecnolgico vertiginoso, tal como feito, em estreita as-sociao com o lucro (gosto de lembrar que o termo vem do latimlucru, quedeu origem tanto a lucro como a logro), privilegia nos investimentos asatividades mais lucrativas e gera uma taxa alta, permanente, de desemprego.

    Posto sob o controle da sociedade, o mercado pode lhe prestar servios rele-vantes como indicador de tendncias que exigem ateno e requerem providn-cias; transformado pela burguesia em centro da vida social, assume caractersticasinumanas, patolgicas, com graves consequncias e perversos efeitos colaterais

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    O mesmo se pode observar na atual interveno do Estado na sociedade.Chamando a ateno para a radical ineliminvel estranheza que existe narelao do Estado com a sociedade, Marx repele as tentativas de setores queconcebem a histria poltica como um processo que se esgotaria quando alcan-asse o nvel ideal de um Estado bom. No se trata absolutamente de subes-timar as imprescindveis lutas por reformas, os combates por mudanas demo-cratizadoras parciais nessa instituio chamada Estado. Trata-se apenas de serrealista: aproveitar as batalhas e escaramuas da guerra que a burguesia nos impe, sem alimentar iluses a respeito dos limites daquilo que os adeptos doEstado bom insistem em apresentar como alvo suficiente para o esforo dosocialistas sensatos.

    O que, ento, est realmente morto no pensamento de Marx? Seus escritospolticos, embora contenham alguns pontos agudssimos, constituem s ve-zes abordagens insatisfatrias de fenmenos que viriam a revelar-se bem maicomplexos do que ele supunha. Na Europa do tempo do Manifesto Comunista* 7 (1848), no havia partidos de massa nem sindicatos de massa. Excepcional-mente, a poltica conseguia sensibilizar milhares de pessoas; passaria, no scul XX, a sensibilizar milhes.

    Nos desdobramentos da dinmica da industrializao, Marx chegou a pre-ver uma polarizao que resultaria na contraposio entre as duas classes decisivas: a burguesia e o proletariado. Equivocou-se. Mais tarde, ele prprio, depassagem, previu nas sociedades industriais uma proliferao de classes e grupos sem se dar ao trabalho de fazer uma autocrtica.

    Em sua constante busca de universalidade, Marx, em seus ltimos anos, pas-sou a ler muito sobre sociedades abrangidas pelo capitalismo, porm no facil-mente assimilveis pelo capitalismo clssico: China, ndia, Arglia. Mas oque observou no modificou sua concepo da histria. No plano dos senti-mentos pessoais, na nica vez em que saiu da Europa, foi Arglia e detestoua viagem.

    Uma enciclopdia norte-americana encomendou a Marx um longo verbetesobre Simon Bolvar (1783-1830) e ele aceitou a incumbncia. Redigiu umtexto ruim, baseado em informantes facciosos que, contrariados por Bolvar,

    * So Paulo, Boitempo, 1998. (N. E.)

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    empenharam-se em caluni-lo e ridiculariz-lo. Marx no nos ajuda em nada acompreender a relao de Bolvar com os povos cuja luta pela independnciaeste liderou.

    Os tericos que atualmente se movem no mbito da controvrsia entre ossocialistas e os defensores do capitalismo reconhecem que devem muito a Marx,porm sabem que em alguns momentos a discusso envolve questes que ne-cessitam de novos enfoques, novas ferramentas. Alguns se dedicam alegremen-te a salientar impropriedades nos escritos do pensador revolucionrio e pra-ticam o que j mereceu a designao de catar piolhos em couro de elefante.

    O que pedimos a Marx? O que esperamos encontrar em seus escritos? Demaneira geral, o que prevalece hoje, nas respostas a essas duas perguntas, tem aver com nossa preocupao com a liberdade. O que entendemos por liberdadenas condies atuais, no Brasil e no mundo? A liberdade, tal como vivida porindivduos cada vez mais autnomos, sempre prejudicada pelos movimentosque se insurgem contra a desigualdade social? At quando os valores ticos, ques se realizam de modo significativo em ligao com autnticas comunidadeshumanas, conseguiro resistir ao bombardeio de cinismo e egocentrismo sofri-

    do por nossas sociedades pulverizadas? At quando a burguesia chorar suaincapacidade de impingir sociedade os valores quantitativos leia-se: o di-nheiro na funo de valores qualitativos essenciais? E at quando os domi-nantes insistiro nas tentativas de convencer os dominados de que o valor detroca mais importante que o valor de uso?

    A concepo do homem em Marx clara: o homem o sujeito da prxis,que existe transformando o mundo e a si mesmo. um ser que inventa a si

    mesmo, por isso s vezes nos surpreende e escapa. Na confuso criada hojeem dia pelo capitalismo, os indivduos se libertam de grilhes envelhecidos,mas assumem outros vnculos, novos grilhes, que tambm os aprisionam.Bertolt Brecht, em sua Me coragem e seus filhos *8, pe em cena uma mulherdo povo que descobre que pode fazer da guerra um bom negcio, porm aguerra vai lhe matando os filhos. No foi por acaso que Brecht disse certa vezque Marx era o espectador ideal de suas peas.

    * EmTeatro completo (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1999), v. 6. (N. E.)

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    De p, Friedrich Engels e Karl Marx.Sentadas, as filhas de Marx: Jenny, Eleanor e Laura.

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    H, mais do que nunca, um conceito de Marx que corresponde a essa de-manda de conhecimentos construdos em condies muito problemticas eaponta para possibilidades animadoras em nosso esforo para segurar com fir-meza as duas extremidades da corrente: a prxis.

    A prxis surge quando o sujeito humano se contrape ao objeto e comea adesenvolver um longo trabalho de subordinao dos movimentos da realidadeobjetiva aos seus projetos. uma atividade que precisa da teoria para, auto-criticamente, proporcionar ao sujeito o poder de fundamentar suas decises esuperar seus erros ou insuficincias.

    Ela d conta da canalizao das energias criadoras do sujeito na direo quelhe imposta pelo desafio concreto da realidade objetiva. Com a ajuda do con-ceito, o conhecimento pode lutar para evitar os riscos fatais tanto do subjetivis-mo como do objetivismo (ou do determinismo mecanicista e do fatalismo).

    O conceito de prxis custou a ter sua importncia plenamente reconheci-da. Mesmo entre os marxistas, havia clara preferncia por outros conceitos. Osdois textos nos quais Marx utilizou-o (as Teses sobre Feuerbach*1 e os Manus-critos de 1844 **2) s foram publicados na ntegra em 1932. Talvez esse atrasotenha favorecido a incompreenso.

    Nos 88 anos que se passaram, os conceitos que Marx usou em seus escritosde crtica da economia poltica, histria e crtica poltica cristalizaram, porassim dizer, uma imagem bem pouco filosfica do cientista (ou do profeta)Marx. No sendo reconhecido como filsofo, era difcil que seu conceito deprxis fosse compreendido em conexo com os outros conceitos filosficosde seu arsenal. Para se ter uma ideia da confuso terica na poca, foram feitastentativas heroicas de edio dos escritos de Marx que falavam de prxis emportugus, a palavra foi traduzida como prtica. Uma extremidade da corren-te (a prtica) era mantida bem segura; a outra, contudo, a teoria especificamenteimprescindvel ao caso, escapava.

    Sem o conceito de prxis criado por Marx, no sabemos se a reflexo sobreos problemas da crise dos valores conseguir se aprofundar. No sabemos sea reao enftica, drstica, dos moralistas, contrapondo-se ao ataque dos c-

    * Em Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alem , cit. (N. E.)** Karl Marx, Manuscritos econmico-filosficos , cit. (N. E.)

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    nicos (cuja retrica incua e cuja fora pattica), receber adeses e vir ter chance de vencer alguma batalha nessa guerra.

    A experincia histrica mostra que o moralismo, independentemente dasintenes daqueles que o cultivam, incuo. No atravs dele que se conse-guem fortalecer valores autenticamente humanos, desprezados pelos cnicos. Omoralismo reduz a questo moral a um problema de linguagem. Mas os olhosdos outros no se iludem: os ouvidos dos zeladores dos costumes (do ethos)podem se distrair ouvindo o discurso do cnico, porm o olhar vigilante dosdesconfiados investiga o tempo todo se o que os indivduos dizem confirma-do pelo que fazem.

    s vezes, muito difcil pegar o cnico em sua fala, seu discurso, sua ar-gumentao. Como no acredita no que diz, o cnico pode dizer qualquercoisa. O conceito de prxis nos adverte para a necessidade de observarmos aarticulao da fala com a ao, a articulao do discurso com a intervenotransformadora.

    Mesmo Merleau-Ponty (1908-1961), em seuHumanismo e terror *3, umlivro bastante crtico ao marxismo, admite que um dos mritos deste est nacobrana aos cientistas de uma postura de confronto entre o que se diz e o que

    se faz: o discurso e a ao.Se observarmos alguns dos personagens interrogados ou acareados na

    TV, vale a pena confrontar o que eles dizem com o que tm feito. Que alian-as polticas eles tm firmado? De qual grupo tm sido sujeitos e a qualgrupo tm se sujeitado? E, para finalizar, esto no bloco dos cnicos ou nodos moralistas?

    Benito Mussolini (1883-1945), um dos campees dos cnicos, dizia que

    havia aprendido com Marx que tudo ideologia, que a busca da verdade jamais superar o uso da ideologia como camuflagem necessria e que na poltica ela ajuda a disfarar o interesse particular por baixo de uma fachada misti-ficadora apresentada como interesse geral.

    Na perspectiva de Mussolini, no h espao para reconhecer ou criar valo-res. Na perspectiva de Marx, no h como viver humanamente sem valores. Oque se discute que valores eu adoto?. E como posso torn-los mais convincentes em meus argumentos?

    * Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968. (N. E.)

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    claro que na histria do marxismo aconteceram coisas constrangedo-ras, mais do que lamentveis. Em diversas ocasies, mecanismos perversosinterferiram nos pseudovalores recm-nascidos na reflexo dos indivduos e,com seus resultados pfios, contriburam para destruir novos valores, verda-deiros, que brotavam, ainda que confusamente, nos formigueiros humanosdas comunidades.

    Para Marx, os valores constituem um fundamento essencial da prxis. Aatividade prpria do homem aquela em que ele se humaniza (a prxis) teleolgica. E antecipadora, projetiva. Nada absolutamente garantido, nada imutvel. Os prprios fundamentos das opes que vo se fazendo ao longoda vida pedem muitas vezes reexames, revises.

    Na concepo de Marx, a ideologia est embutida na subjetividade. A pos-sibilidade da distoro ideolgica est contida na possibilidade de conhecer. Oque a ideologia falseia algo que contm, em geral, o embrio de um conhe-cimento. Assim, no tem sentido acusar a concepo da histria de Marx deamoralismo, ou de pragmatismo, como no tem sentido repetir a leituracnica e falsa do conceito de ideologia de Marx feita por Mussolini, para quemno h conhecimento e tudo ideologia.

    Exatamente porque a ideologia uma distoro do conhecimento que podeestar se efetivando a qualquer momento e em qualquer lugar, a crtica e a supe-rao das distores dependem da teoria.

    De fato, dependem da prxis, isto , da atividade de expanso dos sujeitoshumanos, do que eles fazem, das suas escolhas, das decises que tomam, dasaes que empreendem. Em determinadas situaes, a prtica precisa de teoriapara enxergar alm das limitaes que a ideologia lhe impe.

    Se tivermos a imprescindvel persistncia, travando as batalhas que a vidanos desafia a enfrentar, verificaremos que podemos vencer qualquer batalhacontra a distoro ideolgica, mas no podemos, na comemorao de algumabatalha vencida, declarar a guerra ganha.

    Quanto mais nos convencssemos de termos vencido a guerra e eliminadoa ideologia, maior seria a probabilidade de ela aproveitar nossas iluses triun-falistas, que entram em contradio com o esforo constante de superao dodespedaamento do real.

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    esclarece que no est de acordo com todas as posies que vm sendo adotadaspelo Isl, sobretudo no que se refere fabricao de bombas atmicas pelo Ir.)

    Convm, entretanto, no nos afastarmos de nosso roteiro, que precisa dizer,aqui, algo especfico sobre o pensamento de Marx a respeito da religio.

    E a religio de fato a autoconscincia e o sentimento de si do homem,que ou no se encontrou ainda ou voltou a se perder.1 O Estado e a sociedadeproduzem a religio. A religio, do ponto de vista do ateu Marx, uma cons-cincia absurda do mundo.

    A religio a realizao fantstica da natureza humana, porque a naturezahumana no tem realizao verdadeira. A misriareligiosa constitui ao mesmotempo aexpresso da misria real e o protesto contra a misria real. A religio o suspiro da criatura oprimida, o nimo de um mundo sem corao e aalma de situaes sem alma. Depois de ter exposto essa convico no ensaiosobre a filosofia do direito de Hegel, em 1844, Marx ainda acrescentou: A re-ligio opio do povo2. Essa ltima frase ficou clebre.

    Marx se desentendeu com os irmos Edgar Bauer (1820-1886) e BrunoBauer (1809-1882) num bar, em Berlim, quando eles insistiram que a liberta-o da humanidade s poderia vir depois da libertao dos judeus.

    Depois de ter ido para Paris, em meio agitao poltica que assustou aburguesia europeia, Marx se deu conta da profundidade das divergncias quetinha com alguns autores que chegara a conhecer e com quem batia papo, co-mo Ludwig Feuerbach (1804-1872), Pierre Proudhon (1809-1865), MosesHess (1812-1875) e Arnold Ruge (1802-1880). A nica amizade baseada naadmirao mtua que Marx conseguiu preservar foi com Engels.

    As categorias e os conceitos que Marx criou em seus estudos de histria

    com frequncia foram mal compreendidos e criaram a oportunidade para queseu materialismo histrico fosse usado como um p de cabra que legitima-va os movimentos do adversrio, recorrendo a um fio condutor que, na melhordas hipteses, revelava algo j sabido.

    Outro efeito colateral da aplicao da receita de seus interlocutores hostisdecorria do carter determinista que era atribudo concepo da histria do

    1 Crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo, em Karl Marx,Crtica da filosofia dodireito de Hegel (So Paulo, Boitempo, 2005), p. 145.

    2 Idem.

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    filsofo socialista. O determinismo instaurava para a necessidade um domnioto poderoso que no havia sada para a liberdade. Por mais que quisessem, ossujeitos humanos no conseguiam ter espao para ser efetivamente livres: sua

    iniciativas j nasciam sob a dependncia da necessidade.Marx, no entanto, foi taxativo: O reino da liberdade s comea mesmoonde cessa o trabalho imposto pela carncia e pela necessidade exterior. Ele seacha, portanto, pela prpria natureza das coisas, fora da esfera da produomaterial propriamente dita3.

    Quando olhamos em volta, vemos objetos (as mercadorias) em movimen-to, porm no enxergamos o movimento dos sujeitos que se ocultam por trs

    dos objetos, no mercado. Isso resultado da alienao. Para neutralizar as con-sequncias da alienao, no plano religioso, precisamos reconhecer que a alienao religiosa se realiza como tal no mbito da conscincia do sujeito, e aalienao econmica diretamente alienao da vida real. Marx achava quea luta contra a alienao econmica devia preceder politicamente a luta pelasuperao da alienao religiosa.

    Chocado com o contraste ente o cristianismo e o movimento operrio,

    Marx fustigou os cristos, afirmando que seus princpios sociais tinham apro-vado a escravido e a servido medieval, assim como a diviso da sociedade eclasses (limitando-se a formular o voto piedoso de que a classe dominante fosse caridosa). E ia alm: condenava os princpios sociais do cristianismo porqutranspunham para o cu a reparao das infmias cometidas na Terra e expu-nham aqueles que Deus mais amava aos maiores sofrimentos.

    Os princpios sociais do cristianismo pregam a covardia, o autodesprezo, a hu-

    mildade, a submisso; em suma, todas as qualidades da canalha. O proletariado,que se recusa a ser tratado como canalha, precisa muito mais de sua coragem, deseu respeito por si mesmo, de seu orgulho e de seu gosto pela independncia doque do seu po.4

    Na histria da filosofia, o espao dos ateus vasto e complexo. Constam dagaleria nomes como Epicuro (341 a.C.-271 a.C.) e Lucrcio (94 a.C.-50 a.C.),Helvtius (1715-1771) e La Mettrie (1709-1751). Marx e Engels integram esse

    3 Karl Marx,O capital , cit., v. 3, p. 31.4 Karl Marx e Friedrich Engels,Werke , cit., v. 4, p. 200.

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    grupo. E eram ateus preocupados com a possibilidade de serem mal compreen-didos e vistos como perseguidores de crentes. Em 1874, antes da RevoluoRussa de 1917, Engels dizia, em clara oposio proftica ao que se faria nacriao da URSS, trinta anos mais tarde: Isto [porm] certo: o nico servioque, hoje em dia, ainda se pode fazer a Deus o de declarar o atesmo um ar-tigo de f compulsrio5.

    E Marx, emO capital , argumenta que, enquanto as pessoas tiverem ideias esentimentos religiosos, significa que o mundo ainda funciona de maneira aproduzir consequncias que procuram se expressar por meio dos crentes. Noh por que os perseguir. Eles no so a causa, mas a manifestao da f. O fil-sofo assegura que, quando a sociedade se mostrar no cotidiano racional e trans-parente, a necessidade da religio desaparecer.

    Movido por seu mpeto polmico, Marx antev uma sociedade racional etransparente e uma situao que promover o desaparecimento da religio.No podemos deixar de assinalar nossa estranheza diante dessas proclamaesperemptrias na boca de um pensador que se empenhava em evitar que suasformulaes ficassem excessivamente impregnadas de ideias deterministas.

    O desafio que atravessa o caminho dos pensadores dialticos que se movemnos horizontes de Marx e Hegel o da universalidade. Como pensar algo que sempre mais abrangente do que nossa realidade e nosso pensamento?

    5 Programa dos refugiados blanquistas da Comuna, em Karl Marx e Friedrich Engels,Obrasescolhidas (Lisboa, Edies Avante, 1982). Disponvel em: .

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    MARX E A MORTE

    Em grande medida, sou como sou, tenho a personalidade que tenho, emfuno de uma descoberta que fiz muito cedo: a da inevitabilidade e da impor-tncia da morte. Percebi que a morte um problema gravssimo, o mais grave

    de todos. E, a meu ver, no tem soluo. A morte a nica certeza racional que nos imediatamente acessvel. uma certeza perturbadora, porque nos traz a conscincia de que a contradioentre o singular, que somos ns, e o universal, a que aspiramos, resulta inexo-ravelmente na eliminao do polo em que ns indivduos nos encontramos.

    A sensao da finitude muito penosa. Da a intensificao da busca doque perdura, do que vai alm das limitaes de nossa condio humana atual. A busca da transcendncia pode ser feita em duas direes distintas: a do futu-ro e a do alm. Pode ser mstica ou utpica. Pode apontar na direo de umoutro mundo ou na direo deste nosso mundo, mas inteiramente transforma-do e redimido.

    A diferena no grande. Nosso mundo, inteiramente transformado e re-dimido, j no nosso mundo. O futuro, na exata medida que no o presen-te, distingue-se deste e vai alm dele. Com as condies atuais de vida, temosalguma familiaridade. O futuro, entretanto, terra incgnita, regio nunca antesdesbravada.

    O alm da transcendncia religiosa o alm dos msticos sinaliza o queainda no aconteceu e, no entanto, sempre acontecer: a morte, a alma liber-tando-se do corpo (alguns acreditam na reencarnao). Sempre alguma coisaque est por vir. E a crena do religioso no outro mundo tambm, inevitavel-mente, crena em algo que revelar toda a fora da sua verdade no futuro.

    Mas h outras reaes diante da inexorabilidade com que se apresenta a nsa questo da morte. A mais comum : No quero pensar nisso. No vejo porque algum teria razo de ser inconformado com a sua finitude. Nascemos,

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    vivemos e morremos. Isso tudo. E natural. uma reao legtima. Paga-se,entretanto, na moeda da automistificao, um preo alto por ela.

    Os epicuristas diziam que, enquanto a morte no chega para mim, ela um

    problema dos outros, dos que esto morrendo. E, quando ela me alcanar, noser meu problema, justamente porque eu no existirei mais. Mas a frase atri-buda a Epicuro s seria razovel se dispusssemos de dois pressupostos:

    1. Se fssemos capazes de permanecer imunes a qualquer envolvimentoafetivo com a morte dos outros.

    2. Se fssemos capazes de ignorar a presena da morte, antes de sua ocor-rncia, no processo da vida, nas mazelas do corpo, na experincia vivida

    na nossa fragilidade individual.Na falta de tais pressupostos, o tema volta a se impor nossa reflexo. E esta

    acaba se tornando uma das caractersticas mais marcantes da ideologia conser-vadora dominante na poca atual: embora constantemente desafiados pela vidaa pensar na morte, esquivamo-nos a encar-la, evitamos falar sobre ela.

    O ambiente espiritual chamado ps-moderno, como parte de um movi-mento de aceitao do carter fragmentrio do real, facilita a desqualificaodo tema.

    A morte a nica certeza racional imediatamente acessvel a todos e a cadaum de ns. E uma certeza racional negativa. O que sabemos sobre ela? Sabe-mos que dela ningum escapa. Trata-se, obviamente, de um saber amargo. Po-rm, necessrio. O reconhecimento dos limites do nosso saber sobre a mortenos impe uma reviso permanente do nosso saber sobre a vida. Em linguagemhegeliana, poderamos dizer que vida e morte so conceitos de determinaoreflexiva.

    Por sua abrangncia, os dois conceitos no comportam uma abordagem fi-losfica que se disponha a ignorar a interdependncia que contraditoriamen-te os une. E, por sua desafiadora unidade, no comportam um procedimen-to analtico que se limite a parti-los, e reparti-los, reduzindo-os a pedaos queno compem um todo. A morte, porm, um todo, que abrange a totalidadedos vivos.

    Os seres humanos manifestam, com frequncia, grande dificuldade parapensar a respeito da morte. A morte, claro, apresenta-se inexoravelmente em

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    todas as vidas. impossvel escamote-la. Os seres humanos, entretanto, recorrem de maneira consciente ou inconsciente a todos os meios para atenuar apresena dela, incorporando-a a rituais que procuram enfraquecer-lhe o im-pacto. Nesses rituais, quem morre sempre o outro.

    No h dvida de que o outro, no caso, algum com quem me identifico.Ento, de certo modo, o outro sou eu. Bem observado o rito, acaba sendo enfa-tizada a maior ou menor distncia entre a vida (a minha) e a morte (a alheia).

    Por mais forte que possa ser, em determinados momentos, nossa capacidadede estranhar o outro, o diferente, aprendemos a conviver com ele. Nossa iden-tidade passa pela assimilao da alteridade. Ento, procuro no outro o caminhopara solucionar meu problema: o de conferir sentido vida (a minha) e morte(a alheia). Saint-Exupry (1900-1944), famoso escritor francs, dizia que quemd um sentido vida d um sentido morte. compreensvel que a inspiraohumanista dessa frase tenha sido acolhida com simpatia por tantos leitores.

    De fato, os seres humanos buscam, ao se associar, encontrar um sentidopara sua existncia individual. J houve um tempo em que se acreditava que osanacoretas, msticos que se isolavam no deserto, davam sentido sua vida,porque na solido estavam mais perto de Deus. Hoje, a proposta dos anacore-

    tas no seduz praticamente ningum.Vivemos todos em comunidades de vrios tipos e naturezas. Muitos procu-

    ram articular seus projetos pessoais com comunidades que vo desde a famliae o grupo dos amigos diletos at a nao e a humanidade, passando pela igrejapelo partido, pelo sindicato, pela torcida no futebol, pela escola de samba etc. nessas comunidades que a despeito das diferenas de opes os indiv-duos tentam se apoiar para se aferrar vida e diminuir o medo da morte.

    nelas que buscamos fortalecer os elementos de convico, as armas capazes dnos permitir enfrentar nossa agonia (agonia em grego combate; agonia, por-tanto, o combate final).

    A famlia e o grupo dos amigos diletos so comunidades pequenas, constitu-das de pessoas to mortais quanto eu, seres finitos que talvez eu veja faleceantes de mim. A igreja (em grego,ekklesia , assembleia de fiis) acena com aimortalidade da alma num mundo em que crescem as dvidas a respeito daprpria existncia da alma.

    As torcidas no futebol e as escolas de samba, pela prpria natureza do entu-siasmo que suscitam, so simpticos paliativos de uso estritamente particular e

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    limites assumidamente restritos, derivados de uma renncia ambio da uni-versalidade. De maneira geral, essas (e outras) formas de comunidade perma-necem ligadas s circunstncias, a situaes singulares.

    Isso vale tambm para a nao. Independentemente de sua extenso territo-rial, da riqueza de sua histria, da vitalidade de sua cultura, a nao sempre umacomunidade particular que, ao ampliar seus horizontes, se universaliza sem setornar, contudo, ela mesma, universal. A nao pressupe, contraditoriamente,um compromisso de se pensar universal no seu projeto mas se conceber relativanas comunidades que a integram. Esta contradio inviabiliza o compromissoda nao com a religio e a independncia das pessoas que a compem.

    O que nos resta, ento, a comunidade humana, a humanidade em seusentido mais amplo. Todos pertencemos universalidade do gnero humano,porm no a realizamos automaticamente, de maneira espontnea, em qual-quer coisa que venhamos a fazer. Ao contrrio dos cachorros, que em suasaes efetivam sempre aquilo que poderamos chamar de cachorridade, nspodemos agir (e, de fato, s vezes agimos) contra nossa espcie, desrespeitandoo que convm humanidade.

    Essa peculiaridade amplia o campo de nossas opes possveis, expande a

    esfera de nossa liberdade, mas faz com que paguemos um preo muito alto:na medida em que podemos agir contra o interesse biolgico de nossa pr-pria espcie, ficamos impossibilitados de nos identificar com ela to plenamen-te a ponto de cancelar o negativo de nossa extino pessoal por meio da con-vico de que estaremos vivos na espcie que nos continua.

    O jovem Marx, em seus Manuscritos econmico-filosficosde 1844, reconhe-ceu o problema: Amorte aparece como uma dura vitria do gnero sobre o

    indivduodeterminado1

    . Como de seu feitio, o pensamento de Marx se re-cusa a permanecer na esfera do reconhecimento da questo e tenta sempreenfrentar o desafio de solucion-la. Mais tarde, em 1859, num texto que escre-veu para apresentar suaContribuio crtica da economia poltica , o futuroautor deO capital assegurava que os homens no formulam problemas que elesmesmos no possam resolver.

    Se, tal como a morte lhe aparece, ela parece ser uma dura vitria da singu-laridade do indivduo, porque este ainda no compreendeu plenamente que

    1 Karl Marx, Manuscritos econmico-filosficos , cit., p. 108.

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    ele no se reduz a sua singularidade e ainda no percebeu com clareza quesua pertinncia para a espcie est interiorizada, est dentro dele, no lhe externa.

    A direo em que Marx se move , sem dvida, interessante. Se cada um dens um indivduo social real, como dizia o filsofo em 1844, podemosadmitir que a organizao da vida em termos que nos permitam assumir maisconcretamente as atividades que contribuam para o movimento infinito dognero humano pode vir a ter como consequncia atenuar a frustrao que nos imposta por nossa finitude.

    Alguns aspectos da proposta, entretanto, permanecem questionveis. Com-preende-se que Marx tenha sublinhado em sua concepo da histria o papeldos sujeitos materiais e a importncia da iniciativa desses sujeitos na transformao revolucionria da sociedade. Compreende-se que tenha enfatizado ofortalecimento da conscincia de classe entre os trabalhadores, esforando-separa que estes se unissem em uma comunidade (o partido) capaz de lhes trazero prenncio da comunidade humana universal (o comunismo). Tais ideiascontriburam para evitar que as derrotas, as ondas de desnimo e de resignaoreduzissem a classe operria passividade.

    Ao mesmo tempo, contudo, na medida em que idealiza sua representaoda comunidade humana, atribuindo-lhe foradamente uma aura de universa-lidade e ignorando suas particularidades, essa linha de pensamento, que vemde Hegel e retomada por Marx, pode ser utilizada para estimular procedi-mentos fanticos.

    Esses procedimentos so em geral pouco srios, ou mesmo cmicos, como o caso da adeso das torcidas a times de futebol ou escolas de samba. No o entusiasmo dos torcedores que constitui em si o problema digno de serquestionado, e sim o fato de alguns deles fazerem de suas opes elementos didentidade.

    Mais grave, certamente, o caso do sujeito que cultiva preconceitos xen-fobos, hostiliza os estrangeiros, em nome de um patriotismo proclamadocom veemncia, porm comprometido com uma comunidade nacional vibran-te e oca.

    Na impossibilidade de me transferir integralmente para o gnero humano,observo-o em sua magnfica universalidade. Cabe-me lev-lo sempre em con

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    siderao, aprendendo com ele e tentando ampliar o espao de meus saberesto limitados. Sei, contudo, que, para mim, melhor do que procurar consolopara minha drstica finitude, assumir francamente a dimenso trgica da vi-so do mundo que Marx se recusa a adotar.

    Uma viso trgica do mundo, na linha de pensamento de Hegel e Marx,seria insuficiente para mobilizar a massa dos trabalhadores. Proporcionar-lhesindicaes a respeito da caminhada em direo ao poder ser sempre aos olhosdeles fazer msica para seus ouvidos. Mais do que qualquer outro discurso,essa argumentao politizada aquela que eles querem ouvir.

    Em todo caso, sabemos que nem tudo que o proletariado quer escutar lhefaz bem; e sabemos que algumas coisas que no quer ouvir podem lhe trazerbenefcios importantes.

    No casual que um filsofo tcheco, Karel Kosk (1936-2003), movendo-sena esteira de Marx, tenha escrito um ensaio intitulado O sculo de Grete Sam-sa*2, no qual discorre sobre o sculo XX e faz observaes extremamente insti-gantes sobre a fico literria de Franz Kafka (1883-1924) (a Grete Samsa dottulo do ensaio a irm de Gregor Samsa, aquele indivduo que, depois de umanoite maldormida, acordou em sua cama transformado num imenso inseto).

    Kosik acusa a ideologia dominante do sculo XX de ter encampado e difun-dido critrios comprometidos com a desvalorizao do trgico. Segundo ele, agenialidade de Kafka estaria em sua capacidade de explorar o caminho este-ticamente mais fecundo na representao dos problemas contemporneos: ogrotesco.

    A recuperao da dimenso trgica nas condies em que existimos amplia-ria nossos horizontes e contribuiria para os marxistas superarem esquematiza-es simplificadoras e representaes artificialmente suavizadoras da realidade

    * O sculo de Grete Samsa: sobre a possibilidade ou a impossibilidade do Trgico no nosso tempo (Riode Janeiro, Instituto de Letras da UERJ, 1995 Coleo A Teoria Prtica Ajuda). (N. E.)

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    Os hegelianos cometem um erro que no est na constatao da ciso in-terna da sociedade burguesa, mas no fato de, tendo enxergado um problema,conformarem-se com ele em vez de buscar uma soluo. Eles querem ser livres

    mas no assumem resolutamente esse querer. Seu dilema o do bandido FranoisVidocq (1775-1857): Ou voc carcereiro ou encarcerado4. Marx, admi-rador de Honor de Balzac (1799-1850), leu os dois romances nos quaisVidocq aparece como personagem:O pai Goriot e Iluses perdidas .

    Juntos, Marx e Engels escreveram alguns livros: A sagrada famlia *, queera o nome que designava debochadamente o grupo berlinense autonomea-do crticos crticos. A ideologia alem continuava a bater nos crticos

    crticos e na esperteza com que os membros do grupo usavam conceitosimportantes, porm mal-empregados, como novo e velho, pois estavatrabalhando seriamente com esses conceitos e os berlinenses manipula-vam-nos sem qualquer rigor.

    Para Marx, na Histria, era preciso ir s ltimas consequncias no exame docondicionamento dos sujeitos pelo objeto, mas ele tambm no abria mo dapresena ativa do sujeito na transformao do objeto. O mais profundo no

    pensamento de Hegel, escreveu Marx, est no fato de que ele percebe a cisoda sociedade poltica burguesa como uma contradio; o equvoco est no fatode que ele se contenta com a aparncia de uma soluo para o problema5.

    Na ocasio da publicao de A sagrada famlia , Marx ficou irritado comvrios aspectos maliciosos da reao dos crticos crticos ao livro. Tambmno gostou de alguns excessos nos textos dos hegelianos que faziam certa humanizao de conceitos gerais. Acusou Bruno Bauer de falar da Verdade

    como umautomaton (hoje, ele diria rob). A lgica da propriedade privadaconvergia com a da alienao. A propriedade privada aliena no s a individualidade dos seres humanos, mas tambm a das coisas, dizia Marx 6.

    4 Balzac inspirou-se em Vidocq para criar seu personagem Vautrin, que tambm era bandido e to talentoso que o romancista no conseguia faz-lo fracassar; por isso, encaminhou-opara ser absorvido pela polcia, ocupando, como seu modelo, um alto cargo no aparelho derepresso.

    * So Paulo, Boitempo, 2003. (N. E.)5 Karl Marx e Friedrich Engels,Werke , cit., v. 1, p. 279.6 Ibidem, v. 2, p. 212.

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    Marx sustentava que o trabalhador explorado e submetido presso damais-valia era uma chave para compreender o papel da alienao, interferindonas atividades humanas e na construo do conhecimento. A sociedade no

    elimina a cooperao, porm seu carter hipercompetitivo torna difcil conver-gir e completar-se na convergncia. Diviso social do trabalho e propriedadeprivada so expresses idnticas, de acordo com Marx 7.

    As tenses internas na sociedade agravam a alienao, na medida em queincorporam o Estado s condies em que as pessoas vivem. O Estado, segun-do Marx, uma comunidade ilusria8: ele manipula as pessoas e lhes pro-porciona sucedneos de encontros humanos e aes conjuntas de sentido liber-

    trio. A alienao torna-se mais aguda, e aquilo que os seres humanos criam,em vez de ser dominado por eles, ergue-se como um poder estranho no cami-nho de seus criadores.

    Na luta para vencer as unilateralidades decorrentes da alienao, precisoenxergar o todo. Marx critica o ensino separado das disciplinas que nos pro-porcionam contato com aspectos vivos da realidade, mas mantendo-os isoladosuns dos outros. Quando se estuda geografia, economia, poltica, direito, reli-

    gio ou histria, tropea-se inevitavelmente na necessidade de compreender asarticulaes desses diversos campos, uns com os outros9. A alienao um dos conceitos fundamentais da filosofia de Marx. Consta

    de A ideologia alem , que s veio a ser publicada em 1932. Embora Engels te-nha publicado ainda no fim do sculo XIX as Teses sobre Feuerbach comoapndice de seu livroLudwig Feuerbach e o fim da filosofia clssica alem *, no surpreendente que grande nmero de marxistas, ao longo do sculo XX,

    tenha tido dificuldade de conhecer a alienao. Com a demora na publicaode A ideologia alem e dos Manuscritos de 1844 , Marx ficou sujeito a julgamen-tos tericos arbitrrios e precipitados.

    Na representao usual da Histria, frequente que apaream explicaesde conflitos baseadas na ideia de que grupos humanos tomaram coisas uns

    7 Ibidem, v. 3, p. 32.8 Ibidem, v. 3, p. 34.9 Ibidem, v. 3, p. 569.* 3. ed., Lisboa, Estampa, 1975. (N. E.)

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    dos outros. Os brbaros, por exemplo, tomaram o Imprio Romano. Marx sediverte com essa interpretao e pergunta se, esgotadas as coisas tomveisno seria necessrio que se comeasse a produzir outras.

    Na perspectiva de Marx, de fato, a Histria tem sido o processo de modi-ficao nas condies de trabalho dos seres humanos. E, para fazer as mu-danas que consideram necessrias, os seres humanos precisam pensar e agihistoricamente.

    Marx, com certeza, ultrapassava os limites da anlise conjuntural e abriacaminho para uma genuna histria social, isto , para o exame aprofundado datransformao estrutural das sociedades. O historiador Fernand Braudel (1902--1985) reconheceu que Marx foi pioneiro na anlise crtica da longa duraoe criou novos parmetros para a compreenso dos movimentos mais lentos quetambm compem decisivamente o processo histrico. Braudel admitiu: Ognio de Marx, o segredo de seu poder prolongado, est em que ele foi o primei-ro a fabricar verdadeiros modelos sociais, a partir da longa durao histrica10.

    Entre as instituies que necessitavam de estudos adequados ao desafio dalonga durao inclua-se o cristianismo. Quando jovem, Marx escreveu sobreos cristos, criticando-os duramente por suas posies polticas reacionriasporm esforando-se para pens-los tanto no plano de suas convices imedia-tas como no do projeto adotado havia tantos sculos.

    O pai de Marx era judeu; contudo, para escapar do risco de perseguies (os pogroms antissemitas no eram raros na regio), converteu-se ao cristianismo.Embora a converso fosse mais pragmtica que sincera, o menino Karl teve deestudar a doutrina crist.

    O jovem Marx escreveu (e a frase ficou famosa): A religio o pio dopovo*. Escreveu tambm que ela era o suspiro da criatura esmagada numuniverso espiritual sem esprito; era a conscincia e o sentimento do homemque ainda no se encontrou ou ento j tornou a se perder; era o corao deum mundo sem corao. Mas essas imagens no tiveram a mesma recepoda primeira. Em sua maioria, os intelectuais socialistas eram contrrios reli-

    10

    Fernand Braudel,crits sur lhistoire (Paris, Flammarion, 1969), p. 81.* Crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo, em Karl Marx,Crtica da filosofia dodireito de Hegel , cit., p. 145.

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    gio, especialmente ao cristianismo. Em alguns casos, manifestavam tendn-cias intolerantes. Em Marx, isso no acontecia. Ele estava convencido de que,enquanto correspondesse a uma necessidade histrica que sensibilizava os cren-tes, a crena no desapareceria. Por isso, a propaganda contra a religio eraintil e resultava em confuso11.

    Nas condies histricas da segunda metade do sculo XIX, a Igreja se mo-bilizava no mbito do movimento operrio, disputando a hegemonia com ossocialistas. Marx se impacientava com essa tentativa de conquista da hege-monia. Escreveu, ento, um artigo que continha elementos de uma polmicaspera com os cristos: Os princpios sociais do cristianismo pregam a covar-dia, o autodesprezo, a auto-humilhao, a submisso, a falta de fibra, em suma,todas as qualidades da corja. E ainda: Os princpios sociais do cristianismoso solertes e o proletariado revolucionrio12. Quando se pensa no que fo-ram os pontificados de Gregrio XVI (1502-1585) e Pio IX (1792-1878), com-preende-se facilmente a exaltao do pensador socialista.

    EmO capital , l-se: O reflexo religioso do mundo real s pode desaparecerquando as condies das atividades prticas cotidianas dos homens manifes-tarem no dia a dia relaes transparentes e racionais entre os seres humanos edeles com a natureza13.

    Para Marx, a opo por desdobramentos futuros da interveno humana nasmudanas sociais um elemento essencial da relao entre o ser humano e ahistria propriamente dita. o movimento da histria que permite ao homemenxergar as contradies, descrev-las, inserir-se nelas e tambm empenhar-se emsuper-las. Do contrrio, o homem permaneceria contemplativo, sem atuaoprpria, acumpliciado com os interesses conservadores. Por isso, o compromissocom a luta pelo comunismo uma parte decisiva do pensamento de Marx.

    No entanto, o conceito de comunismo traz para o estudo da obra de Marxtoda uma srie de complicaes ligadas s tendncias socialistas libertrias(que como os anarquistas se chamavam)14. Para Marx, o comunismo seria a

    11 Karl Marx e Friedrich Engels,Werke,cit., v. 1, p. 378.12 Ibidem, v. 4, p. 200.13 Ibidem, v. 23, p. 4.14 Os anarquistas falavam de si mesmos como socialistas libertrios, referindo-se ao pensamen-

    to de Marx como expresso de um socialismo autoritrio.

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    sociedade sem Estado, portanto sem polcia. Nela, afinal, desapareceriam asdesigualdades sexuais que permitem a explorao das mulheres pelos homensNela, a cidade e o campo seriam harmnicos, complementares. Desaparece-riam as fronteiras.

    No comunismo, o sujeito poderia ser pintor de manh, cientista na hora doalmoo, bailarino tardinha e filsofo noite. Essa imagem, to animadora,foi saudada pelos anarquistas. Marx e Engels, porm, advertiram que isso noviria com suavidade e fluncia: dependeria de uma longa histria, que no ofe-recia garantias.

    A concepo da histria elaborada por Marx passou no teste decisivo, quefoi sua aplicao ao tempo presente. Dois livros, As lutas de classes na Frana de1848 a 1850 eO 18 de brumrio de Lus Bonaparte , analisam as condies emque surgiu o fenmeno do bonapartismo, mostram como cada grupo se dispu-nha a tomar o poder e como diversas classes sociais distintas se impuseram umdesgaste considervel no conflito entre elas.

    Assim, dois partidos cristos (orleanistas e legitimistas), um partido bur-gus, um partido de banqueiros e um partido do lumpemproletariado (in-cluindo gigols e prostitutas) prepararam para um aventureiro ridculo (Na-poleo III) as condies em que ele pde assumir o poder com amplo apoioda sociedade, tal como ela se encontrava naquele momento. Os socialistas,que tambm estavam mergulhados na confuso, ficaram perplexos. E um li-beral, o escritor Victor Hugo (1802-1885), ficou to furioso contra Luiz Bo-naparte que, como observou Marx, atribuindo ao ditador carter demonaco,acabou por favorecer a reputao imerecida de perspiccia e inteligncia queNapoleo III queria cultivar.

    Marx e Engels tinham respeito e apreo por alguns de seus precursores.Inicialmente, Marx manifestou simpatia por Proudhon. Disse que lhe deu al-gumas aulas sobre dialtica. Proudhon replicou, publicando um livro no qualdivergia de Marx em vrios pontos. Marx se aborreceu com ele e redigiu spressas e em francs (para ser lido pelo mesmo pblico que havia lidoFilosofiada misria *, ttulo da obra de Proudhon) A misria da filosofia **.

    * So Paulo, cone, 2003. (N. E.)** So Paulo, Centauro, 2003. (N. E.)

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    A posio terica de Proudhon que teve maior repercusso foi a tese de quea propriedade um roubo. Quando Proudhon morreu, em 1865, Marx re-plicou-a com o argumento de que s se podia pensar o roubo quando a pro-priedade j existia. Curiosamente, em alguns crculos, a tese de Proudhon foiatribuda a Marx.

    Com Feuerbach, as relaes de Marx foram mais complicadas. Feuerbachera um filsofo mais importante que os demais da chamada esquerda hegelia-na. Ideias dele, contudo, desempenharam papel extremamente importante nopensamento de Marx. Feuerbach ajudou-o, no incio, a se debruar com maiorateno sobre a subjetividade humana e a se perguntar em que e de que formaos homens, seres subjetivos e condicionados pela realidade objetiva, podiam serconcretamente livres.

    Depois de sua estimulante posio inicial, Feuerbach se retraiu e passou adefender um ponto de vista vacilante, que lhe valeu a crtica que Marx lhe fazna tese I das duas pginas ad Feuerbach.

    A principal divergncia filosfica entre Marx e Feuerbach estava na posiodiferente que cada um dos dois assumiu em face da questo do alcance da ma-terialidade do sujeito humano. Feuerbach achava que o sujeito e seu corpoeram regidos pelas mesmas leis implacveis que regem o mundo. Embora pos-sa haver uma grande diversidade de sentimentos num mesmo indivduo, asconcluses podem legitimamente classificar os sentimentos em uma das duastendncias que aparentavam nos guiar: tudo casual, tudo livre-arbtrio. Ou,ento, tudo est prescrito e tudo obedece ao destino (maktub)15.

    Os socialistas que apareceram aps a derrota dos jacobinos na RevoluoFrancesa assumiram posies filosficas e polticas bastante diversas. Graco Babeuf (1760-1797), decepcionado com o movimento revolucionrio, sustenta-va que outras cabeas deveriam ter sido decepadas pela guilhotina. Robert Owen(1771-1858), ingls, achava possvel uma sada positiva e relativamente pacfi-ca para os problemas derivados da desigualdade, e que os cientistas poderiamabordar onde a revoluo falhara. Henri de Saint-Simon (1760-1825), francs,organizava os recm-convertidos cristos para cobrarem reformas administrati-

    15 Maktub uma palavra de origem rabe que designa o fatalismo, uma forma extremada dedeterminismo. Quando algo acontece, porque j estava programado no Alm.

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    vas modernizadoras. E Charles Fourier (1772-1837), tambm francs, desilu-dido com a Revoluo Francesa, passou a concentrar suas esperanas na construo de um falanstrio, um prdio no qual um grupo pioneiro mostraria humanidade que a vida podia ser melhor e a sociedade podia ser mais justa 16.

    Marx assumia um ponto de vista bastante sutil: por um lado, reiterava suacondio de revolucionrio; por outro, procurava conduzir os radicais flexi-bilidade e ao realismo das negociaes imprescindveis na ao poltica. Esscombinao era difcil de ser mantida. Mesmo divergindo de Fourier, Engels oapreciava muito por sua criatividade e chegou a dizer que o pensador francsera to forte na dialtica quanto Hegel.

    A perspectiva de Marx era visceralmente hostil a algumas cabeas quentesda poltica de seu tempo. Em alguns casos, realmente se encolerizava. Irritou-semuito com as posies de Wilhelm Weitling (1808-1871), que, como agitadorsocialista, preconizava a libertao de todos os presos que estavam cumprindopena nas penitencirias, alegando que passariam espontaneamente da condiode criminosos de genunos revolucionrios. O advogado Ferdinand Lassalle(1825-1864), que pregava reformas moderadas, caracterizava a situao hist-rica da Europa como o confronto entre a classe operria e todas as outras clas-ses, que constituam uma massa reacionria mobilizada contra os trabalhado-res. Marx tambm se aborreceu com essa viso paranoica.

    Em meio a tantas desavenas, no deixa de ser historicamente significativoque Marx tenha mantido sempre uma atitude de admirao e respeito por Auguste Blanqui (1805-1881), o revolucionrio francs que passou a maiorparte da vida na cadeia. Blanqui foi precursor da teoria do partido tido comopartido revolucionrio centralizado, no estilo leninista, que viria a ser elabora-

    da no sculo XX.Engels, falando certa vez por ele e sempre implicitamente por Marx, entrou

    em polmica com crticos que se identificavam com os princpios do socialis-mo libertrio e da crtica ao autoritarismo; disse-lhes que estavam atribuindoimportncia excessiva questo da autoridade. E acrescentou que uma revolu-o a coisa mais autoritria que existe!

    16 Fourier procurou esclarecer todos os elementos constitutivos do falanstrio, pois acreditavaque o projeto era essencial para a reanimao do socialismo, j que o fracasso da RevoluoFrancesa teria desmoralizado o caminho revolucionrio.

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    Num tom irritado e melanclico, Bruno Bauer despediu-se de Marx. Alm das inseguranas do exilado, Marx nem sempre tinha dinheiro para aalimentao da famlia. A solido de se ver rejeitado pela sociedade em quevivia era penosa. Numa crise financeira, o casal Marx resolveu vender obje-tos que pudessem lhe trazer algum dinheiro; levou para a casa de penhoresum presente caro que a esposa havia recebido da famlia, um servio deloua de jantar. O funcionrio do local achou Marx suspeito e denun-ciou-o polcia. Ficou preso at o dia seguinte, quando Jenny localizou-o elibertou-o.

    Marx no queria entrar em conflito com a Inglaterra, pas onde viveu maisde metade da vida. O Estado ingls, no entanto, colocou-o sob vigilncia emandou segui-lo. Um inspetor encarregado de espion-lo fez um relatrio quemuitos anos depois foi publicado. O agente policial fez meno ao ambientecordial da casa, cultura do homem de cincia e ao excesso de fumaa de ci-garros. O relatrio deixa transparecer certa admirao do policial ignorantepelo intelectual17.

    Essa qualidade de terico, detentor de saberes obscuros, pe-nos em con-tato com um par de categorias utilizado por Marx em seu trabalho: a basee a superestrutura. Alguns crticos sugerem que esse conceito em duplicata mais uma imagem que uma ideia desenvolvida. Marx se preocupava com oque se passava no campo da cultura. A superestrutura deveria contribuirpara manter as criaes culturais em ligao forte com a base (a estruturaeconmica). Contudo, a criao cultural no podia se deixar atrelar aos mo-vimentos da economia poltica.

    Um esquema mecanicista de interpretao recproca da base e da superes-trutura mostrava cotidianamente ao filsofo que o maior prejuzo acarretadoao movimento socialista pela ligao demasiado estreita entre os dois polos erao desperdcio no uso de instrumentos dialticos para esclarecer o que se passa-va historicamente.

    Marx insistia em explicar sua concepo da histria:Na produo social de sua vida, os homens contraem determinadas relaes neces-srias e independentes de sua vontade, relaes de produo, que correspondem a

    17 Yvonne Kapp,Eleanor..., cit.

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    determinada fase de desenvolvimento de suas foras produtivas materiais. O con- junto dessas relaes de produo forma a estrutura econmica da sociedade, abase real sobre a qual se eleva a superestrutura jurdica e poltica, e qual corres-pondem determinadas formas de conscincia social. O modo de produo da vida

    material condiciona o processo da vida social, poltica e espiritual, em geral.18

    Esse um trecho do prefcio de 1859 Para a crtica da economia pol-tica , livro que antecipava alguns temas e ideias deO capital . E Marx aindaprosseguia:

    No a conscincia do homem que determina o seu ser, mas, ao contrrio, o seuser social que determina a sua conscincia. Ao chegar a uma determinada fase dedesenvolvimento, as foras produtivas materiais da sociedade se chocam com as

    relaes de produo existentes, ou, o que no seno a sua expresso jurdica, comas relaes de propriedade dentro das quais se desenvolveram at ali. De formas dedesenvolvimento das foras produtivas, essas relaes se convertem em obstculosa elas. Abre-se, assim, uma poca de revoluo social. Ao mudar a base econmicarevoluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura erigidasobre ela.19

    Em concluso, um conselho aos historiadores: A anatomia da sociedadecivil precisa ser procurada na economia poltica.

    Como todos os pensadores engajados, Marx se esforava por incorporar expresso de suas convices elementos de smbolos que ajudassem o pensamento a absorver tanto a teoria abstrata como a experincia sensvel concretadas pessoas capazes de construir um legtimo movimento de massas. No entan-to, advertia contra infiltraes nostlgicas e escrevia: A revoluo do scul XIX deixou que os mortos enterrassem seus mortos20.

    Mesmo se libertando das iluses da nostalgia, a elaborao de smbolos sedefrontava com a necessidade de recriar movimentos subjetivos ligados a im-passes e conflitos decorrentes da modernizao do cotidiano nas construes enas grandes mudanas na sensibilidade das pessoas no final do sculo XIX.

    Com a agitao de 1848, apareceram, no meio dos proletrios inquietos, jovens que no tinham experincia, porm protestavam. Marx, apontado co-

    18 Karl Marx,Para a crtica da economia poltica (So Paulo, Abril Cultural, 1965, Os Pensadores).19 Idem.20 Idem.

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    mo chefe de um partido, no se reconhecia nas ideias que lhe eram atribudas,sobretudo no concordava com a acusao de convocar demagogicamente ostrabalhadores. Dizia:

    Vocs tm pela frente quinze, vinte, cinquenta anos de guerras civis e lutas po-pulares, no s para modificar as atuais condies de trabalho, mas tambm paratransformar sua prpria pessoa e se capacitar para o exerccio do poder poltico.Vocs declaram: precisamos tomar o poder imediatamente, ou ento vamospara casa dormir.21

    Revoluo no se improvisa. Marx era um revolucionrio que tinha plenaconscincia das dificuldades existentes num processo de preparao para arevoluo. Mesmo assim, quando discutiu com outros socialistas, cobraram

    dele que fosse mais preciso na caracterizao da sociedade do futuro. A revistaPositivista foi a que lhe fez crticas mais acerbas. Marx respondeu recusando aproposta ambiciosa de preparar receitas para os caldeires do futuro22.

    Prever o futuro, como Marx sabia, sempre uma aventura delirante. Apesarde se recusar a ela, sentia-se solitrio nessa recusa, j que entre os revolucion-rios, tanto como entre os reformistas, eram frequentes os casos em que se ce-dia tentao.

    O que o filsofo revolucionrio podia fazer e fez era elaborar uma teoriacoerente e consistente, capaz de apoiar a ao sem se enfeudar nela, e procuran-do preservar seu poder de critic-la.

    O conceito de prxis mostrou ser realmente imprescindvel na articulaoda teoria com a prtica, abarcando tanto a criatividade da ao humanaquanto a fora da realidade objetiva. O ponto de partida era a prtica, masno a prtica em geral, como se l nos filsofos que representam o pragmatis-

    mo. A prtica essencial aquela que articula as pessoas e a sociedade. Para corrigias distores da ideologia, necessrio o aprofundamento decisivo da prxis23.Os seres humanos que pretendem superar a unilateralidade e as limitaes

    da ideologia so desafiados a combater a alienao. A Histria, tal como feitapor ns, o campo de batalha por excelncia do confronto entre a liberdade ea necessidade.

    21 Karl Marx e Friedrich Engels,Werke , cit., v. 8, p. 412.22 Ibidem, v. 23, p. 25.23 Ibidem, v. 8, p. 42.

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    O capital , o livro mais ambicioso de Marx, no esgotava seu projeto revolu-cionrio; era apenas a batalha preliminar que indicava por quais caminhos aclasse dos trabalhadores deveria avanar para destruir as bases do sistema criad

    pela burguesia, o modo de produo capitalista.O franco reconhecimento de que os fatos e os movimentos histricos nocabiam na rgida ordem constituda pela chamada razo no significava umacapitulao diante do irracionalismo, j que, por uma questo de mtodo, ono racional poderia sempre vir a ser superado e absorvido por uma nova razoE esta no podia se fechar diante do aparentemente irracional. Como Marx es-creveu a Ludwig Kugelmann (1828-1902), a histria teria uma natureza mui-

    to mstica se os acasos no desempenhassem nela nenhum papel24

    . A mistura dos valores da vida pblica e da vida privada aumentava as difi-culdades. Mesmo uma personalidade fortssima como Marx s vezes tropeavnas armadilhas da ideologia. Os estudantes gostam de ouvir o relato da atitudeintolerante de Marx em face do surgimento da relao amorosa de Laura, suafilha, com Paul Lafargue25.

    Marx mandou uma carta para o candidato a genro, advertindo-o de que

    devia assumir um ar modesto e mesmo tmido na presena de sua amada,um comportamento compatvel com o meridiano de Londres. Dizia-lhe queno invocasse seu temperamentocrole e evitasse demonstraes de umafamiliaridade precoce. Reclamava por no ter recebido informaes a respeito da famlia do jovem e deixava transparecer francamente sua irritao como fato de Lafargue, como estudante, ainda no ter se explicado a respeito desuas economias.

    Marx, exilado na Inglaterra, sem dinheiro (sustentado pelo amigo Engels),conseguia a duras penas evitar delrios otimistas. Houve um momento, porm,em que se entregou ao entusiasmo de seus companheiros e, numa carta a En-gels, datada de 8 de outubro de 1858, previu: No continente, a revoluo iminente e logo assumir um carter socialista26. Era, contudo, uma previsoequivocada.

    24 Ibidem, v. 33, p. 209.25 Yvonne Kapp,Eleanor..., cit.26 Karl Marx e Friedrich Engels,Carteggio (Roma, Rinascita, 1951).

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    Quando sua mulher morreu, Marx saiu pela primeira vez da Europa e foi Arglia, onde passou poucos dias. De volta Inglaterra, passou por Paris, ondediscutiu com seus dois genros. Achou que ambos divergiam dele, que Lafargue

    era o ltimo bakuninista e Pierre Longuet (1839-1903) era o ltimo lassa-liano. Marx se aborreceu com ambos, sobretudo porque se declaravam mar-xistas. Foi ento que, em outra carta a Engels, escrita em 11 de novembro de1882, o filsofo disse: O que sei que no sou marxista27.

    A partir de certo ponto, Marx comea a usufruir do merecido prestgioque lhe valia a dedicao de tantos anos ao socialismo. Sua relao com osdirigentes de outras tendncias no era fcil. Os saint-simonianos consideravamos marxistas expresses de ideias rudes. Os fourieristas muitas vezes viam-noscomo sabotadores do falanstrio. Os owenistas ingleses consideravam-nos me-tafsicos. A relao com os tericos no era isenta de problemas, porm a re-lao prtica com os outros grupos polticos e seus dirigentes era ainda maiscomplicada.

    At mesmo o prestgio conquistado e o aparecimento de movimentos deadeso a suas ideias provocavam aumento e radicalizao das crticas que lheeram feitas. Os anarquistas, em especial, tinham enormes desconfianas a res-peito da metodologia dos marxistas e faziam poltica em constante conflitocom os socialistas influenciados por Marx. J o lder dos socialistas libert-rios, Bakunin, oscilou entre a admirao e o dio por Marx.

    Sem interromper os estudos preparatrios paraO capital , e continuando aescrever artigos para jornais, Marx mantinha intensa atividade poltica em tor-no da criao da Associao Internacional dos Trabalhadores, que viria a serchamada de Primeira Internacional28.

    A Primeira Internacional durou at 1872. Seus dirigentes, entre eles Marx,chegaram a pensar em transferi-la para os Estados Unidos. Marx tinha umaenorme admirao por Abraham Lincoln (1809-1865). No adiantaria nada,a Internacional estava perdida. As novas condies sociais, econmicas e cul-turais no lhe davam espao para atuar na Europa, sob a onda de represso que

    27 Idem,Werke , cit., v. 22, p. 69.28 Franco Andreucci, A difuso e a vulgarizao do marxismo, em Eric Hobsbawm (org.),Histria do marxismo, cit., v. 2, p. 15-73.

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    se seguiu derrota da Comuna de Paris, em 1871. No fim do sculo XIX, asituao j estava mudando. E uma nova organizao substituiu, com vanta-gem, a Primeira pela Segunda Internacional, fundada em 1892.

    Marx no a viu, porque morreu em 1883. Engels ainda estava vivo e teveparticipao destacada no evento. Os anarquistas se mobilizaram contra o fil-sofo, atribuindo-lhe a responsabilidade pela excluso dos libertrios da Pri-meira Internacional e agora tambm da Segunda 29.

    Nas condies do fim do sculo XIX, a chamadabelle poque , criaram-se osprimeiros partidos de massa da histria poltica do Ocidente e foi conquista-do, entre seus pontos decisivos, o sufrgio universal, que abria espao para ummovimento de massas fortalecido.

    As contradies sociais e as lutas de classe se tornaram mais sofisticadas complexas, mas no desapareceram. As batalhas da cultura ganharam uma im-portncia maior que a obtida no passado. A chamada indstria cultural, quetratava os bens da cultura como quaisquer outras mercadorias, comeou a ga-nhar muito dinheiro com a produo editorial e farejou os lucros monumen-tais que desejava faturar com o cinema, sendo inventado ento.

    Os adversrios polticos fustigavam Marx constantemente e ele retrucavacom fria. Nas cartas que escrevia para Engels, apareciam sempre expressedrsticas, adjetivos irritadssimos. Referindo-se a Giuseppe Garibaldi (1807--1882), o heri italiano, classificou-o de asno; Mikhail Bakunin (1814-1876)foi descrito como uma massa monstruosa de carne e banha; e Karl Liebk-necht (1871-1919), que era um amigo fiel e dedicado, empenhado em fazerem Berlim o que achava que Marx e Engels queriam, foi chamado de bufoe imbecil30.

    Pouco antes de morrer, j doente, Marx escreveu a Engels uma carta, datadade 10 de outubro de 1882, em que fala mal do genro, fazendo uma refernciainfeliz e surpreendentemente preconceituosa ao bravo Lafargue: [...] o mto-do dele com sua feia ascendncia negra o faz perder o senso de pudor e resvalano ridculo31.

    29 Idem.30 Karl Marx e Friedrich Engels,Carteggio, cit.31 Idem. Paul Lafargue fez grande sucesso com o livroO direito preguia (2. ed., So Paulo,

    Hucitec/ Unesp, 2000).

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    O fato de nos defrontarmos com os excessos e exploses de raiva da corres-pondncia no significa que os talentos e mritos de Marx estejam sendo nega-dos. Atravs de toda a sua trajetria de lutas pela igualdade e pela liberdade,Marx se tornou uma figura cuja grandeza dificilmente poderia ser negada.

    Embora no tenha escrito nenhum ensaio sobre problemas especficos dacultura, Karl tinha uma formao cultural extremamente sofisticada. Aprovei-tou muito bem a escola em Trier e a temporada em Berlim. Sua cultura literriaera impressionante. Imagino qual pode ter sido sua emoo ao ler aOdisseia deHomero32. Podemos imagin-lo diante da cena em que o grego Ulisses, na di-reo de seu navio, v aproximar-se a zona em que as sereias, com seu canto,atraam os homens, enlouqueciam-nos e faziam-nos morrer.

    Ulisses, que no admitia ser excludo de nada, resolveu tornar-se o nicomortal a ouvir o canto das sereias e no morrer. Mandou que seus marinheirosamarrassem-no firmemente ao mastro da embarcao e tapassem os pr-prios ouvidos com cera. Recomendou, alm disso, que, acontecesse o queacontecesse, por mais que esbravejasse, no o desamarrassem.

    Marx, ao longo de sua caminhada, identificou-se bastante com o Odisseu.Talvez possamos sublinhar e at desenvolver essa identificao observando queUlisses precisou lutar em Troia durante dez anos e, na volta para casa, em suanavegao at taca, levou outros dez anos, porque caiu em desgraa em facede um deus, Posidon, que era ningum menos que o deus do mar. Desse mo-do, Ulisses podia ensinar a Marx como sobreviver a muitos naufrgios e conti-nuar a participar da guerra pela liberdade e pela justia.

    Ainda h outro ponto de contato entre o Ulisses de Homero e Karl Marx.Capturado com seus homens por um gigantesco ciclope, que lhe perguntacomo ele se chama, o heri grego responde: Ningum. Depois, aproveitan-do o sono do inimigo, fura-lhe o nico olho. O gigante informa a seus parcei-ros que ningum era o responsvel pela desgraa. Ulisses inseriu-se na hist-ria para poder vencer uma batalha desigual. A histria permite at reviravoltascomo essa.

    32 Paul Lafargue et al.,Souvenirs sur Marx et Engels (Moscou, ditions du Progrs, 1982).

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    MARX E A DIALTICA*

    Nunca conheci uma pessoa desprovida de sensode humor que tenha entendido a lgica de Hegel.

    Bertolt Brecht

    Se formos verificar, constataremos que a dialtica no tem boa reputao.Meu saudoso amigo Jos Guilherme Merquior (1941-1991), de cujo talento con-servador todos nos beneficivamos, j chamava a dialtica de dama de costumes fceis. Nos ltimos anos, ao que tudo indica, esto aumentando as dificul-dades para os admiradores da dama. Seus ndices de aprovao no Ibope sopfios. O simples som de seu nome provoca tdio ou irritao, quando no riso.

    Na Grcia, Herclito (540 a.C.-470 a.C.), tido como seu pai criador, des-creveu-a em fragmentos inesquecveis, mas nunca a chamou pelo nome. Pla-to (428 a.C.-348 a.C.), que tinha alguma intimidade com ela, imps-lhe umrespeito especial nas relaes com seu irmo, o dilogo. (Em tempo, dialticaderiva do prefixodia , que indica reciprocidade, e do verbolegein ou do subs-tantivologos , como no caso de dilogo, significam razo).

    Depois dos gregos, a dialtica foi chutada para escanteio, teve suas dimen-ses reduzidas s de uma lgica menor. Sintomaticamente, comeou a recupe-rar suas foras no Renascimento. Foi com o alemo Hegel, entretanto, que se

    deu seu retorno glorioso arena dos gladiadores.Hegel sustentava que, se todas as coisas e todos os seres so diferentes, singulares, porque eles existem em movimento, transformando-se em algo queainda no so e entrando em coliso com o outro. J ouo o leitor perguntar:Quem esse outro?. E respondo: outro, em grego, eraalter . Na medida emque dialogvamos, ns nos altervamos, nos realizvamos na diferena.

    Esse era o ponto de partida da dialtica em Hegel. E em Marx? Como quea dama entrava em cena?

    * A primeira verso deste texto foi publicada em Jornal do Brasil , Rio de Janeiro, 12 set. 2009. (N. E.)

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    Com Hegel, Marx aprendeu que nas coisas essenciais, nas contradies de-cisivas, o conhecimento nunca era neutro ou meramente pragmtico. Ossujeitos humanos ao se esforarem para alcanar seus objetivos particulares,ao se empenharem em satisfazer seus desejos pessoais ou os anseios de sua classe ou de seu grupo fazem histria.

    Marx extrai dessa concluso, do fazer histria, uma opo clara e consequentepelo fazer poltica. Precisamos da atividade at para pensar e agir: uma atividadecapaz de refletir (reflectere , debruar-se outra vez), de transformar a si mesma e seinventar. Transformar o mundo e transformar a si mesmo, como queria Marx.

    Ao entrar no campo da poltica, a dama triplicou imediatamente o nme-ro de seus desafetos. Atriburam-lhe pecados muito feios. Comearam poracus-la de devassido, quer dizer, de relativismo. A tentativa de relativizar tu-do resulta sempre em fracasso. O relativista o sujeito que, ao declarar quetudo relativo, destri seu prprio pensamento: Se tudo relativo, o princ-pio de que tudo relativo tambm relativo.

    Depois, disseram que ela forava a modificao de todos os contatos huma-nos, das convergncias e at dos encontros amorosos em contradies. Acon-selharam-na a deter-se na observao generosa dos afetos, das amizades e dascolaboraes desinteressadas. Um jovem ex-comunista sugeriu que esquecsse-mos a utopia, fizssemos algo positivo no presente. Com prudncia e modstia. A dama respondeu que as relaes humanas, por serem entre indivduos sem-pre diferentes, no podiam deixar de ser contraditrias, por mais apaixona-dos que eles possam ser. O amor no nega a contradio. Ao contrrio, procuraextrair dela novas energias.

    A dama ouve pacientemente as crticas que lhe fazem. Uma nica vez avi reclamar: apesar das diferenas observou msticos e dialticos tm suasconcepes da infinitude. Gostaria de ouvir o que os msticos teriam a dizera respeito da infinitude em geral e da pacincia infinita em particular.

    Embora seja uma campe da pacincia, a dama separou-se de seu marido, omaterialismo dialtico (em solteiro, materialismo vulgar.). Evitou queixa