Kropotkin a Lei e a Autoridade

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    1/22

    A lei e a Autoridade

    Piotr Kropotkin

    1886

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    2/22

    2

    Chega de leis! Chega de juzes! Liberdade, igualdade esimpatia prtica humana so as nicas barreiras

    eficientes que podemos opor aos instintos anti-sociais

    de alguns de ns.

    (Peter Kropotkin, Lei e Autoridade (1886),repr. in The Anarchist Reader, 117)

    Nome da Obra:A lei e a AutoridadeAutor: Piotr KropotkinTraduo e notas: Jlio CarrapatoDigitalizao e Reviso: Anonymous

    2011

    Esta obra foi licenciada com uma LicenaCreative Commons - Atribuio-Uso No-Comercial-Partilha nostermos da mesma licena 3.0 Unported.

    http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0/http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0/http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0/http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0/http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0/http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0/http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0/
  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    3/22

    3

    I

    Quando a ignorncia se instala no seio das sociedades e

    a desordem nos espritos, as leis tornam-se numerosas.

    Os homens tudo esperam da legislao e, constituindo

    cada lei nova um novo erro de contas, so levados a

    pedir-lhe incessantemente o que s pode vir deles

    prprios, da sua educao, do estado dos seus

    costumes. No com certeza um revolucionrio quem

    diz isto, nem sequer um reformador. um jurisconsulto,

    Dalloz1, autor da compilao das leis francesas

    conhecida pelo nome de Repertrio de Legislao. No

    entanto, estas linhas, ainda que escritas por um homemque era ele mesmo um fabricante e admirador de leis,

    representam perfeitamente o estado anormal das nossas

    sociedades.

    Dentro das fronteiras dos Estados actuais, uma lei nova considerada como um remdio para todos os

    males. Em vez de reformarem elas prprias o que mau ou est mal, as pessoas comeam por pedir

    uma lei que o modifique. Se a estrada entre duas aldeias estiver impraticvel, logo o campons dir que

    seria necessria uma lei sobre os caminhos vicinais. Se o guarda-florestal insultar algum,aproveitando-se do servilismo dos que lhe testemunham respeito - seria necessria uma lei, diz o

    ofendido, que prescrevesse aos guardas rurais que fossem mais educados. E se o comrcio e a

    agricultura no funcionarem capazmente? de uma lei protectora que temos falta - assim raciocinam

    o lavrador, o criador de gado, o especulador em cereais; at o revendedor de velhos trapos e farrapos

    pede uma lei que o proteja e ai e ao seu pequeno comrcio. E se o patro baixar os salrios ou aumentar

    o dia de trabalho? preciso uma lei que ponha ordem nisso tudo! - clamam os deputados ainda

    verdes, em vez de dizerem aos operrios que h outra maneira, bem mais eficaz, de pr ordem nisso

    tudo: retomar ao patro aquilo de que ele despojou geraes de operrios. Numa palavra, por todo o

    lado h uma lei: uma lei sobre as estradas, uma lei sobre as modas, uma lei sobre os ces raivosos, uma

    lei sobre a virtude, uma lei para opor um dique a todos os vcios, a todos os males, que no so mais

    1Dsir Dalloz ( 1795-1869), jurista francs, autor, com o irmo Armand, de um Repertrio de Legislao, Doutrina eJurisprudncia. Tambm compilou uma Colectnea Peridica de Jurisprudncia Geral.

    1 Piotr Alexievitch Kropotkin (Moscovo, 1842 Dmitrov,

    1921)

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    4/22

    4

    que o resultado da indolncia e da cobardia humanas!

    Todos estamos de tal maneira pervertidos por uma educao que desde tenra idade procura

    matar em ns o esprito de revolta e em ns desenvolve o de submisso autoridade; estamos de tal

    maneira pervertidos por esta existncia sob a frula da Lei que tudo regulamente: o nosso nascimento, a

    nossa educao, o nosso desenvolvimento, o nosso amor, as nossas amizades, que, se isto continuar,acabaremos por perder qualquer esprito de iniciativa, qualquer hbito de raciocinarmos pelas nossas

    prprias cabeas. As nossas sociedades parecem j no compreender mais que se possa viver de outra

    maneira, salvo sob o regime da lei, elaborada por um Governo representativo e aplicada por um

    punhado de governantes; e no prprio momento em que logram emancipar-se desse jugo, o primeiro

    cuidado que tm retom-lo imediatamente. o ano I da Liberdade nunca durou mais que um dia,

    porque, depois de o ter proclamado, logo no dia seguinte o oprimido se colocava de novo sob o jugo da

    Lei, da Autoridade.

    Efectivamente, j l vo milhares de anos que os que nos governam mais no fazem do que

    repetir em todos os tons: respeito lei, obedincia autoridade! O pai e a me criam os filhos nesse

    sentimento. A escola torna o mais firme; prova a sua necessidade, inculcando nas crianas pedacitos de

    falsa cincia, habilmente condizentes, da obedincia lei faz um culto; matrimonia o deus e a lei dos

    senhores numa nica e mesma divindade. O heri da histria que ela fabricou, o que obedece lei, o

    que a protege contra os revoltados.

    Mais tarde, assim que a criana entra na vida pblica, a sociedade e a literatura, batendo a cada

    dia que passa, a cada instante, como gota de gua mole que escava a pedra dura, continuam a inculcar-nos o mesmo preconceito. Os livros de histria, de cincia poltica, de economia social regurgitam esse

    respeito lei; chegou-se ao ponto de fazer as cincias fsicas darem o seu contributo e, introduzindo

    nessas cincias de observao uma linguagem falsa, tomada de emprstimo teologia e ao

    autoritarismo, conseguiu-se habilmente baralhar-nos a inteligncia, sempre em nome da manuteno do

    respeito pela lei. A imprensa executa a mesma tarefa fastidiosa e srdida; no h artigo nos jornais que

    no propague a obedincia lei, enquanto nesse prprio momento se constata na terceira pgina da

    publicao todos os dias a imbecilidade da lei e se mostra como ela arrastada na lama e na imundcie

    por aqueles que so encarregados da sua observncia. O servilismo diante da lei passou a ser uma

    virtude e eu chego mesmo a duvidar que haja um nico revolucionrio que no tenha comeado na

    tenra idade por ser defensor da lei contra o que geralmente se chama os abusos, consequncias

    inevitveis da prpria lei.

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    5/22

    5

    A arte faz coro com a pretensa cincia. O heri do escultor, do pintor e do msico cobre a Lei

    com o escuto protector e, com os olhos inflamados e as narinas abertas, est pronto para dar bordoada

    com o gldio em quem quer que ousasse nela tocar. So-lhe erigidos templos, so-lhe nomeados

    grandes sacerdotes, aos quais os prprios revolucionrios hesitam em tocar, e se a Revoluo vier

    varrer uma antiga instituio, ser ainda por intermdio de uma Lei que ela tentar consagrar a suaobra.

    Esse chorrilho de regras de conduta, que nos foram legadas pela escravatura, pela servido, pelo

    feudalismo e pela realeza, a que se chama Lei, substituiu esses monstros de pedra diante dos quais eram

    imoladas vtimas humanas e que o homem subjugado nem sequer se atrevia a aflorar com os olhos,

    com medo de ser fulminado por algum raio cado do cu.

    Foi sobretudo desde o advento da burguesia desde a grande Revoluo Francesa que se

    conseguiu estabelecer esse culto. Sob o antigo regime falava-se pouco de leis, a no ser pela pluma de

    Montesquieu, Rousseau, Voltaire, para op-las ao capricho real; era-se obrigado a obedecer real gana

    do monarca e dos seus lacaios, sob pena de se ser atirado para a masmorra ou enforcado. Mas, durante

    e depois da Revoluo, os advogados chegados ao poder fizeram o melhor que puderam para fortalecer

    esse princpio legalista sobre o qual deveriam estabelecer o seu reino. A burguesia aceitou-o logo de

    entrada, como ncora e bia de salvao, para opor um dique torrente popular. A padralhadaapressou-se a santific-la, para salvar a sua barca que naufragava nas vagas da torrente. O povo, por

    fim, aceitou-o como um progresso em relao arbitrariedade e violncia do passado.

    preciso uma pessoa transportar-se imaginariamente at ao sculo XVIII, para compreender a

    situao. preciso ter vertido lgrimas de sangue ao ouvir a narrativa das atrocidades cometidas nessa

    poca pelos nobres todo-poderosos contra os homens e as mulheres do povo, para compreender que

    influncia mgica estas palavras tentadoras: Igualdade diante da Lei, obedincia Lei, sem distino

    de nascimento ou de fortuna deviam exercer, h um sculo, sobre o esprito do campnio. Ele, que

    fora tratado at ento mais cruelmente que um animal, ele, que nunca tivera nenhum direito e nunca

    obtivera justia contra os actos mais revoltantes do nobre, a menos que se vingasse, matando-o, e fosse

    logo a seguir enforcado ele via-se reconhecido por esta mxima, pelo menos em teoria, pelo menos

    quanto aos direitos pessoais, como um igual do seu senhor. Fosse qual fosse esta lei, prometia pr sob a

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    6/22

    6

    sua alada em p de igualdade tanto o senhor como o campnio, proclamava a igualdade, diante do

    juiz, do pobre e do rico. Esta promessa era uma mentira, sabemo-lo hoje; mas para a poca era um

    progresso, uma homenagem prestada verdade. Por tal motivo, quando os salvadores da burguesia

    ameaada, os Robespierre e os Danton, baseando-se nos escritos dos filsofos da burguesia, os

    Rousseau e os Voltaire, proclamaram o respeito pela lei igual a todos - o povo, cujo mpetorevolucionrio j se esgotava frente a um inimigo cada vs mais solidamente organizado, aceitou o

    compromisso. Vergou a cerviz ao jugo da Lei, para se salvar da arbitrariedade do senhor.

    Desde ento, a burguesia no parou de explorar esta mxima que, associada a outro princpio, o

    do Governo representativo, resume a filosofia do sculo da burguesia, o sculo XIX. Ela pregou-a nas

    escolas, criou a sua cincia e as suas artes com este objectivo, infiltrou-a em tudo o que stio, como a

    devota inglesa que vos desliza sob a porta de casa os seus tratados religiosos. A burguesia trabalhou to

    bem que hoje vemos produzir-se este facto execrvel: no prprio dia do despertar do esprito crtico e

    fundibulrio, os homens, querendo ser livres, comeam a pedir aos seus amos que tenham a boa

    vontade de proteg-los, modificando as leis criadas por esses mesmos amos.

    Mas os tempos e os espritos entretanto mudaram de h um sculo a esta parte. Por todo o lado

    h revoltados que no querem mais obedecer lei, sem saber de onde ela vem, qual a sua utilidade, de

    onde vem a obrigao de lhe obedecer e o respeito que a rodeia. A revoluo que se aproxima umaRevoluo e no um simples motim, pelo facto de os revoltados dos nossos dias submeterem sua

    crtica todas as bases da sociedade, venerada at ao presente, e, antes de tudo o mais, esse dolo, esse

    feitioa Lei.

    Analisara a sua origem e a descobrem, ou um deus qualquer produto dos terrores do

    selvagem, estpido, mesquinho e mau, semelhana dos padres que reivindicam a sua origem

    sobrenatural -, ou o sangue, a conquista efectuada a ferro e fogo. Estudam o seu carcter e a

    encontram, como trao distintivo, a imobilidade, substituindo o desenvolvimento contnuo da

    humanidade. Perguntam como que a lei se mantm e vem as atrocidades do bizantinismo e as

    crueldades da Inquisio; as torturas da Idade Mdia, as carnes vivas cortadas em tiras pelo chicote do

    carrasco, as correntes, as grilhetas, a clava, a acha-de-armas ao servio da lei; os sombrios subterrneos

    das prises, os sofrimentos, os prantos e as maldies. E hojesempre o machado, a corda, o fuzil e as

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    7/22

    7

    masmorras; de um lado, o embrutecimento do preso reduzido ao estado de animal dentro da jaula, o

    envilecimento do seu ser moral, e do outro, o juiz desprovido de todos os sentimentos que constituem a

    melhor parte da natureza humana, vivendo como um visionrio num mundo de fices jurdicas,

    aplicando com volpia a guilhotina, sangrenta ou seca, sem que, louco, friamente cruel, suspeite sequer

    do abismo de degradao no qual caiu, em relao aos que condena.Vemos uma raa de fazedores de leis, legiferando sem saberem sobre que matria legiferam,

    votando hoje uma lei sobre saneamento bsico das cidades, sem terem a menor noo de higiene,

    regulamentando amanh o armamento de tropas, sem mesmo conhecerem uma espingarda, fazendo leis

    sobre o ensino e a educao, sem nunca terem sabido dar um ensinamento qualquer ou uma educao

    honesta aos seus filhos, legislando a torto e a direito, mas sem nunca esqueceram a coima que atingir o

    maltrapilho de p descalo, nem a priso e a condenao s galeras que golpearo homens mil vezes

    menos imorais do que so esses mesmos legisladores! Vemos por fim o carcereiro que caminha para a

    perda de todo e qualquer sentimento humano, o polcia adestrado como um co pistoleiro, o bufo

    admirando-se a si prprio, j que a delao se transformou em virtude e a corrupo foi edificada como

    um sistema; todos os vcios, todos os lados maus da natureza humana, se encontram favorecidos,

    cultivados, pelo triunfo da Lei.

    Vemos tudo isso e por isso que, em vez de repetirmos tolamente a velha frmula: Respeito

    pela lei, gritamos: Desprezo pela lei e pelos seus atributos! Substitumos as palavras cobardes

    obedincia lei pela expresso: Revolta contra todas as leis!

    Basta que se compare apenas os malefcios consumados em nome de cada lei com o que ela pdeproduzir de bom, que se pese o bem e o male logo se ver se temos ou no razo.

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    8/22

    8

    II

    A lei um produto relativamente moderno, porque a humanidade viveu sculos e sculos sem ter

    nenhuma lei escrita, nem sequer simplesmente grava em smbolos, nas pedras, entrada dos templos.

    Nessa poca, as relaes dos homens entre si eram reguladas por simples costumes, por hbitos, usos,que a constante repetio tornava venerveis e que cada um adquiria desde a infncia, como aprendia a

    procurar comida pela caa, a criao de animais ou a agricultura.

    Todas as sociedades humanas passaram por esta fase primitiva e at ao presente ainda uma

    grande parte da humanidade no tem nenhumas leis escritas. As populaes locais tm usos, costumes -

    um direito costumeiro, como dizem os juristas -, tm hbitos de sociabilidade, e isso basta para

    manter boas relaes entre os membros da aldeia, da tribo, da comunidade. Acontece o mesmo

    connosco, civilizados; basta que se saia das nossas grandes cidades, para se ver que as relaes mtuas

    dos habitantes ainda esto reguladas, no segundo a lei escrita dos legisladores, mas segundo os

    costumes antigos, geralmente aceites. Os camponeses da Rssia, da Itlia, da Espanha, e at mesmo de

    boa parte da Frana e da Inglaterra, no tm nenhuma ideia da lei escrita. Esta vem imiscuir-se na sua

    vida, s para regular as relaes deles com o Estado; quanto s relaes entre eles, algumas vezes

    muito complicadas, regulam-nas simplesmente segundo os antigos costumes. Outrora, tal acontecia

    com toda a humanidade.

    Quando se analisa os costumes dos povos primitivos, nota-se que h duas correntes bem distintas.

    Como o homem no vive solitariamente, elabora em si sentimentos, hbitos teis conservao

    da sociedade e propagao da espcie. Sem sentimentos de sociabilidade, sem prticas de

    solidariedade, a vida em comum teria sido absolutamente impossvel. No a lei que os estabelece:

    eles so anteriores a todas as leis. Tambm no a religio que os prescreve: eles so anteriores a

    qualquer religio, encontram-se em todos os animais que vivem em sociedades. Desenvolvem-se a si

    prprios, pela fora das coisas, como esses hbitos a que o homem chamou instintos nos animais:

    provm de uma evoluo til, necessria mesmo, ao manter a sociedade na luta pela existncia que ela

    prpria deve sustentar. Os selvagens acabam por no se comer mais entre si, porque acham que muito

    mais vantajoso uma pessoa dedicar-se a um cultivo qualquer, em vez de andar procura uma vez por

    ano do prazer de se alimentar da carne de um parente velho. No seio das tribos absolutamente

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    9/22

    9

    independentes e que no conhecem nem leis nem chefes, de que muitos viajantes nos pintaram os

    costumes, os membros do mesmo cl deixaram de andar facada, a propsito de cada discusso,

    porque o hbito da vida em sociedade acabou por desenvolver neles um certo sentimento de

    fraternidade e de solidariedade: preferem dirigir-se a terceiros, a fim de esvaziarem os seus diferendos.

    A hospitalidade dos povos primitivos, o respeito pela vida humana, o sentimento de reciprocidade, acompaixo pelos fracos, a bravura levada at ao sacrifcio de si mesmo na defesa do interesse de

    outrem, que se aprende primeiro a praticar para com as crianas e os amigos e mais tarde em relao

    aos membros da comunidadetodas estas qualidades se desenvolvem no homem anteriormente s leis,

    independentemente de qualquer religio, como em todos os animais sociveis. Estes sentimentos e

    estas prticas so o resultado inevitvel da vida em sociedade. Sem serem inerentes ao homem ( tal

    como dizem os padres e os metafsicos), estas qualidades so a consequncia da vida em comum.

    Mas, ao lado destes costumes, necessrios vida das sociedades e conservao da espcie,

    produzem-se nas associaes humanas outros desejos, outras paixes, donde, outros hbitos, outros

    costumes. O desejo de dominar os outros e de lhes impor a vontade prpria, o desejo de se apossar dos

    produtos do trabalho de uma tribo vizinha; o desejo de subjugar outros homens, a fim de algum se

    rodear de gozos e prazeres, sem a pessoa ser obrigada a trabalhar ela mesma, enquanto os escravos

    produzem o necessrio e proporcionam ao seu amo todos os prazeres e todas as volpias esses

    desejos pessoais, grosseiramente egostas, criam outra corrente de hbitos e costumes. Por um lado, o

    padre esse charlato que explora em proveito prprio a superstio e que, depois de se ter

    emancipado a si mesmo do medo do diabo, o propaga no meio dos outros; e, por outro lado, oguerreiro, esse arrasa-montes fanfarro que incita invaso e pilhagem dos vizinhos, a fim de voltar a

    casa carregado do produto do saque e seguido de escravos ambos, de mos dadas, conseguem impor

    s sociedades primitivas costumes vantajosos para eles e que tendem a perpetuar o seu domnio sobre

    as massas. Aproveitando-se da indolncia, do medo, da inrcia das multides e graas repetio

    constante dos mesmos actos, conseguem estabelecer com carcter permanente costumes que passam a

    ser o ponto de apoio da sua dominao.

    Para isso, exploram primeiro o esprito de rotina que est to desenvolvido no homem e que

    atinge um grau to impressionante nas crianas, nos povos selvagens, assim como nos animais. O

    homem, sobretudo quando supersticioso, tem sempre medo de mudar seja o que for ao que existe;

    geralmente venera o que antigo. Os vossos pais fizeram assim; assim viveram nos bons e maus

    momentos, educaram-vos, no foram infelizes, tratai de fazer o mesmo! - dizem os ancios aos

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    10/22

    10

    jovens, a partir do momento em que estes querem mudar qualquer coisa. O desconhecido assusta-os,

    preferem agarrar-se ao passado, mesmo que esse passado represente a misria, a opresso, a

    escravatura. Pode-se mesmo dizer que, quanto mais infeliz o homem for, mais receio tem de mudar o

    que quer que seja, com medo de se tornar ainda mais infeliz; preciso que um raio de esperana e

    algumas horas de bem-estar penetrem na sua triste choa, para que ele comece a querer mais e melhor,a criticar a antiga maneira de viver, a desejar uma mudana. Enquanto esta esperana no o penetrar,

    enquanto no se emancipar da tutela dos que se servem das suas supersties e temores, preferir ficar

    na mesma situao. Se os jovens quiserem mudar qualquer coisa, os velhos soltaro um grito de alarme

    contra os inovadores. Aquele selvagem preferiria deixar-se matar a transgredir o costume do seu pas,

    porque desde a infncia lhe disseram que a menor infraco aos costumes estabelecidos lhe traria

    desgraa, causaria a runa de toda a tribo. E ainda hoje, quantos polticos, economistas e pretensos

    revolucionrios agem sob a mesma impresso, agarrando-se a um passado que se vai embora! Quanto

    no tm outra preocupao seno procurar precedentes! Quantos fogosos inovadores no passam de

    simples copistas das revolues anteriores!

    Este esprito de rotina cuja origem vai beber na superstio, na indolncia, e na cobardia,

    constituiu em todos os tempos a fonte da fora dos opressores; e nas sociedades humanas primitivas foi

    habilmente explorado pelos padres e os chefes militares perpetuando os costumes, s para eles

    vantajosos, que eles conseguiam impor s tribos.

    Enquanto este esprito de conservantismo, habilmente explorado, bastava para garantir o

    esbulho da liberdade dos indivduos pelos chefes; enquanto as nicas desigualdades entre os homens

    eram as desigualdades naturais e estas no se encontravam ainda decuplicadas ou centuplicadas pela

    concentrao do poder e das riquezas ainda no se fazia sentir nenhuma necessidade da lei e do

    aparelho formidvel dos tribunais e das penas de priso sempre crescentes para imp-la.

    Mas quando a sociedade comeou a cindir-se cada vez mais em duas classes hostis uma que

    busca estabelecer a sua dominao e a outra que procura subtrair-se a ela -, ento a luta comeou a

    travar-se. O vencedor de hoje apressa-se a imobilizar o facto consumado, procura torn-lo indiscutvel,

    torn-lo santo e venervel por tudo o que os vencidos podem respeitar. A Lei faz a sua apario,

    sancionada pelo padre e tendo s ordens a clava do guerreiro. Trabalha para parar no tempo os

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    11/22

    11

    costumes vantajosos para a minoria dominadora e a Autoridade militar encarrega-se de lhe garantir

    total obedincia. O guerreiro encontra ao mesmo tempo nesta nova funo um instrumento para tornar

    mais firme o seu poder; no tem mais ao seu servio uma simples fora brutal: ele o defensor da Lei.

    Mas, se a Lei s apresentasse um amontoado de prescries unicamente favorveis aos

    dominadores, teria grande dificuldade para ser aceite, para se fazer obedecer. Ora bem, o legisladorsalta o obstculo e confunde num nico e mesmo cdigo as duas correntes de costumes de que

    acabmos de falar: as mximas que representam os princpios de moral e de solidariedade elaborados

    pela vida em comum e as ordens que devem para sempre consagrar a desigualdade. Os costumes que

    so absolutamente necessrios prpria existncia da sociedade, so habilmente misturados no Cdigo

    com as prticas impostas pelos dominadores, as quais tm pretenses ao mesmo respeito por parte da

    multido. No matars! - diz o Cdigo, que se apressa logo a acrescentar: Paga o dzimo ao padre.

    No roubars! - determina o Cdigo e imediatamente a seguir comina: O que no pagar impostos

    ter o brao cortado.

    Eis a Lei e este duplo carcter manteve-o ela at hoje. A sua origem ou est no desejo dos

    dominadores imobilizarem os costumes que eles mesmos tinham imposto para vantagem prpria.

    O seu carcter ou est na amlgama hbil dos costumes teis para a sociedade costumes que no

    tm necessidade de lei para ser respeitadoscom os outros costumes que s apresentam vantagens para

    os dominadores, que so prejudiciais para as massas e que s so mantidos pelo pavor dos suplcios.

    No mais do que o capital individual, nascido da fraude e da violncia e desenvolvido sob os

    auspcios da Autoridade, a Lei tem qualquer ttulo ao respeito dos homens. Nascida da violncia e dasuperstio, estabelecida no interesse do padre, do conquistador e do rico explorador, dever ser

    abolida por inteiro, no dia em que o povo quiser quebrar as grilhetas e as correntes que o amarram de

    ps e mos.

    Convencer-nos-emos disso ainda melhor, analisando no captulo seguinte o desenvolvimento

    ulterior da Lei, sob os auspcios da religio, da Autoridade e do regime parlamentar actual.

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    12/22

    12

    III

    Vimos como que a Lei nasceu dos costumes e usos estabelecidos e como representava desde o

    comeo uma mescla hbil de costumes sociveis, necessrios preservao da espcie humana, com

    outros costumes, impostos pelos que usavam a seu favor as supersties populares e o direito do maisforte. Esse duplo carcter da Lei determina o seu desenvolvimento ulterior em povos cada vez mais

    policiados. Mas enquanto o ncleo de costumes de sociabilidade inscritos na Lei no sofre seno uma

    modificao muito fraca e muito lenta ao longo dos sculos a outra parte das leis que se desenvolve,

    completamente em proveito das classes dominantes, totalmente em detrimento das classes oprimidas.

    justa se, de tempos a tempos, as classes dominantes deixam que lhes arranquem uma lei qualquer que

    representa, ou parece representar, uma certa garantia para os deserdados. Mas ento essa lei no faz

    mais do que ab-rogar uma lei precedente, feita para avantajar as classes dominadoras. As melhores

    leis, dizia Buckle, foram as que ab-rogaram leis precedentes. Mas que esforos terrveis no foi

    necessrio despender, que rios de sangue no foi preciso derramar, cada vez que se tratava de ab-rogar

    uma dessas instituies que servem para pr o povo a ferros. Para abolir os ltimos vestgios da

    servido da gleba e dos direitos feudais, para quebrar o poderio da camarilha real, foi preciso que a

    Frana passasse por quatro anos de revoluo e por vinte de guerras2. Para ab-rogar a mais pequena das

    leis inquas que nos foram legadas pelo passado, so precisas dezenas de anos de luta e as mais das

    vezes elas no desaparecem seno nos perodos revolucionrios.

    Os socialistas j fizeram inmeras vezes a histria da gnese do Capital. Contaram como ele nasceu das

    guerras e do saque, da escravatura, da servido da gleba, da fraude e da explorao moderna.

    Mostraram como que ele se alimentou do sangue do operrio e como pouco a pouco conquistou o

    mundo inteiro. Ainda est por fazer a mesma histria, no que respeita gnese e ao desenvolvimento

    da Lei. O esprito popular, tomando, como sempre, a dianteira em relao aos homens do gabinete de

    ministros, j est a fazer a filosofia dessa histria e a plantar os marcos essenciais do seu percurso.

    Feita para garantir os frutos da pilhagem, do aambarcamento e da explorao, a Lei seguiu as

    2O autor refere-se ao perodo de 1789-1794 e, depois, ao de 1794-1815, ano da queda definitiva de Napoleo, aps oregresso da sua permanncia forada na ilha de Elba e dos derradeiros Cem Dias.

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    13/22

    13

    mesmas fases de desenvolvimento do Capital: irm e irmo gmeos, eles caminham de mos dadas,

    alimentando-se ambos dos sofrimentos e das misrias da humanidade. A sua histria foi quase a mesma

    em todos os pases da Europa. Apenas os detalhes diferem; o fundo da questo permanece o mesmo e

    deitar uma vista de olhos ao desenvolvimento da Lei em Frana. Ou na Alemanha, conhecer nos

    traos essenciais as suas fases de desenvolvimento na maior parte das naes europeias.Nas origens, a lei consistia no pacto, ou contrato nacional. No Campo de Marte, as legies e o

    povo aceitavam o contrato; o Campo de Maio das comunas primitivas da Sua ainda uma recordao

    dessa poca, apesar de toda a alterao que sofreu, por causa da intromisso da civilizao burguesa e

    centralizadora. Certamente, esse contrato nem sempre era livremente consentido; o forte e o rico

    impunham j a prpria vontade nessa poca. Mas, pelo menos, encontravam um obstculo s suas

    tentativas de invaso da massa popular que amide tambm lhes fazia sentir a sua fora.

    medida que a Igreja, por um lado, e o senhor feudal, por outro, conseguem sujeitar o povo, o

    direito de legiferar escapa das mos da nao para passar para as dos privilegiados. A Igreja expande os

    seus poderes; apoiada pelas riquezas que se acumulam nos seus cofres, mete cada vez mais o bedelho

    na vida privada e, a pretexto de salvar almas, apropria-se do fruto do trabalho dos seus servos; cobra

    imposto a todas as classes, estende a sua jurisdio; multiplica os delitos e as penas e enriquece-se na

    proporo directa dos delitos cometidos, j que para os seus cofres-fortes que escorre o produto das

    multas. As leis no tm mais qualquer relao com os interesses nacionais: crer-se-ia que emanavam

    mais de um conclio de fanticos do que de um corpo de legisladores, observa um historiador do

    direito francs.Ao mesmo tempo, medida que o senhor, pelo seu lado, estende os seus poderes sobre os

    cultivadores dos campos e os artesos das cidades, tambm ele que passa a ser juiz e legislador. No

    sculo X, se monumentos de direito pblico h, no passam de tratados que regulam as obrigaes, as

    corveias, as faxinas e os tributos dos servos e dos vassalos do senhor. Os legisladores dessa poca so

    um punhado de salteadores que se multiplicam e organizam para a roubalheira que exercem contra um

    povo que se torna cada vez mais pacfico, medida que se dedica agricultura. Exploram em seu

    benefcio o sentimento justia inerente aos povos; para o efeito, armam-se em justiceiros, fazem da

    prpria aplicao dos princpios de justia uma fonte de rendimentos e formulam leis que serviro para

    manter a sua dominao.

    Mais tarde tais leis, reunidas por legistas e classificadas, serviro de fundamento aos cdigos

    modernos. E ainda se ousa falar em respeitar os cdigos, herana do padre e do baro!

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    14/22

    14

    A primeira revoluo, a revoluo das comunas medievais, no conseguiu mais que abolir parte

    dessas leis; porque as cartas das comunas libertas no so na maior parte dos casos seno um

    compromisso entre a legislao senhorial ou episcopal, e as novas relaes sociais, criadas no seio da

    comuna livre. E, no entanto, que diferena entre essas leis e as leis actuais! A Comuna no se arroga o

    direito de prender ningum e de guilhotinar

    3

    os cidados por qualquer razo de Estado: limita-se aexpulsar quem conspirar com os inimigos da Comuna e a arrasar a sua casa. Para a maior parte dos

    pretensos crimes e delitos, limita-se a impor multas; chega-se mesmo a ver, nas Comunas do sculo

    XII, esse princpio to justo, mas hoje esquecido, segundo o qual toda a Comuna responde pelas

    malfeitorias cometidas por cada um dos seus membros4. As sociedades de ento, considerando o crime

    como um acidente ou como uma infelicidade tal ainda at ao presente o caso da concepo do

    campons russoe no admitindo o princpio da vingana pessoal, pregado pela Bblia, entendiam que

    a culpa de cada m aco recaa sobre a sociedade inteira. Foi necessria toda a influncia da Igreja

    bizantina, que importava para o Ocidente a crueldade refinada dos dspotas do Oriente, para introduzir

    nos costumes dos Gauleses e dos Germanos a pena de morte e os suplcios horrveis que mais tarde

    foram infligidos aos que se considerava como criminosos; e tambm foi necessria toda a influncia do

    cdigo civil romano produto da podrido da Roma Imperial para introduzir essas noes de

    propriedade fundiria ilimitada que vieram derrubar os costumes comunalistas dos povos primitivos.

    Sabe-se que as Comunas livres no puderam aguentar-se; foram vtimas da realeza. E medida

    que o poder do rei adquiria uma fora nova, o direito de legislar passava cada vez mais para as mos de

    uma pequena scia de cortesos. O apelo nao s passa a ser feito para sancionar os impostosexigidos pelo rei. Parlamentos, convocados com dois sculos de intervalo, segundo a real gana e os

    caprichos da Corte, Conselhos extraordinrios, sesses de notveis onde os ministros mal ouvem

    as queixas dos sbditos do rei eis os novos legisladores. E mais tarde ainda, assim que todos os

    poderes esto concentrados numa nica pessoa que diz: O Estado sou eu5 - no segredo dos

    3 claro que Kropotkine bem sabia, autor como foi de um dos melhores livros de sempre sobre a Revoluo Francesa, AGrande Revoluo (1789-1793), que a guilhotina s seria proposta como forma de humanizar a pena de morte peloDr. Joseph Ignace Guillotin, em 10 de Outubro de 1789, a exemplo do que j se fazia em Itlia. Era uma forma de

    execuo mais rpida e limpa do que a forca, a roda, a golilha do pelourinho ou o esquartejamento. A primeiradecapitao legal teve lugar no dia 25 de Abril de 17924J se sabe que, em tese, a responsabilidade individual e no colectiva e que, como reza a caricatura, seria aberrante

    algum responder pelo crime cometido pelo vizinho; mas, como o homem, incluindo o autor material do crime , em boaparte, um produto da sociedade, no se pode apenas julgar o produto final, inocentando a engrenagem que o produziu.Alm disso, com esta auto-responsabilizao de todos, livremente assumida e no imposta, a todos se estendia demaneira no elitista a to badalada tica da responsabilidade...

    5Frase atribuda a Lus XIV (1638-1715), O Grande, O Rei Sol, j depois dele ter domesticado a nobreza e transferido aCorte para Versalhes, porque sempre desconfiara de Paris...

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    15/22

    15

    Conselhos do prncipe, segundo a fantasia de um ministro ou de um rei imbecil, que se fabricam os

    ditos aos quais os sbditos so obrigados a obedecer, sob pena de morte. Todas as garantias judicirias

    so abolidas; a nao serva do poder real e de um punhado de cortesos; as penas mais terrveis: a

    roda, a fogueira, o esfolamento, as torturas de todos os gneros e feitiosproduto da fantasia doente de

    monges e de loucos raivosos que ficam deliciados com os sofrimentos dos supliciados -, eis osprogressos que fazem a sua apario nesta poca.

    grande revoluo francesa que cabe a honra de ter comeado a demolio desta andaimaria de leis

    que nos foi legada pela feudalidade e a realeza. Mas, aps ter demolido algumas partes do velho

    edifcio, a Revoluo ps o poder de legiferar entre as mos da burguesia que, por sua vez, comeou a

    erguer nova andaimaria de leis destinadas a manter e a perpetuar a sua dominao sobre as massas. Nos

    seus parlamentos, legisla a perder de vista e montanhas de papelada acumulam-se a uma rapidez

    assustadora. Mas, no fundo, o que so todas estas leis?

    A maior parte s tem uma finalidade: proteger a propriedade individual, quer dizer, as riquezas

    adquiridas por meio da explorao do homem pelo homem, abrir novos campos de explorao ao

    Capital, sancionar as novas formas que a explorao incessantemente reveste, medida que o Capital

    aambarca novos ramos da vida humana: caminhos-de-ferro, telgrafos, luz elctrica, indstria

    qumica, expresso do pensamento humano pela literatura e pela cincia, etc. O resto das leis, no fundo,tem tambm sempre a mesma finalidade, quer dizer, a manuteno da mquina governamental, que

    serve para garantir ao capital a explorao e a monopolizao das riquezas produzidas. Magistratura,

    polcia, exrcito, instruo pblica, finanastudo serve o mesmo deus: o Capital; tudo isso tem um s

    fim: o de proteger e facilitar a explorao do trabalhador pelo capitalista. Analisai todas as leis feitas de

    h oitenta anos at hojeno encontrareis outra coisa. A proteco das pessoas, que se quer representar

    como a verdadeira misso da Lei, no ocupa seno um lugar quase imperceptvel no meio dessa tralha

    jurdica; porque, nas sociedades actuais, os ataques contra as pessoas, ditados directamente pelo dio e

    a brutalidade, tendem a desaparecer. Se se mata algum, hoje, para pilhar e raramente por vingana

    pessoal. E se esse gnero de crimes e delitos vai sempre diminuindo, no certamente graas

    legislao que o devemos: ao desenvolvimento humanitrio das nossas sociedades, aos nossos hbitos

    cada vez mais sociveis, e no s prescries das leis. Que se ab-rogue amanh todas as leis

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    16/22

    16

    concernentes proteco das pessoas, que se deixe amanh de instaurar processos judiciais por crimes

    contra as pessoas, e o nmero de atentados ditados pela vingana pessoa ou pela brutalidade no ter

    acrscimo de um nico.

    Talvez nos venham objectar que foram feitas desde h cinquenta anos um bom nmero de leis

    liberais. Mas analise-se essas leis e ver-se- que todas essas leis liberais no so mais que a ab-rogaodas leis que nos foram legadas pela barbrie dos sculos precedentes. Todas as leis liberais, todo o

    programa radical, resumem-se nestas palavras: abolio das leis tornadas incmodas para a prpria

    burguesia e regresso s liberdades das comunas do sculo XII estendidas a todos os cidados. A

    abolio da pena de morte, o jri para todos os crimes (o jri, mais liberal do que hoje, existia no

    sculo XII), a magistratura eleita, o direito de acusao dos funcionrios, a abolio dos exrcitos

    permanentes, a liberdade de reunio, a liberdade de ensino, tudo o que nos dizem ser uma inveno do

    liberalismo moderno, enfim, no passa de um regresso s liberdades que existiam, antes que a Igreja e o

    Rei tivessem estendido a mo sobre a humanidade.

    A proteco da explorao directa, pelas leis, sobre a propriedade, e indirecta, pela

    manuteno do estado -, eis portanto a essncia e a matria dos cdigos modernos e a preocupao dos

    dispendiosos mecanismos de legislao. Chegou o tempo, entretanto, de no perd-lo com fraseologia e

    de nos apercebermos do que so na realidade esses estratagemas. A lei que foi apresentada a princpiocomo uma recolha de costumes teis para a preservao da sociedade, no passa de um instrumento

    para a manuteno da explorao e da dominao dos ricos ociosos sobre as massas laboriosas. Hoje, a

    sua misso civilizadora nula; s tem uma verdadeira misso: a conservao da explorao.

    Aqui est o que nos diz a histria do desenvolvimento da Lei. a esse ttulo que somos

    chamados a respeit-la? Com certeza que no. No mais que o Capital, produto do assalto mo

    armada, ela tem direito ao nosso respeito. E o primeiro dever dos revolucionrios do sculo XIX ser

    fazer um auto-de-f de todas as leis existentes, do mesmo modo que o faro dos ttulos de propriedade.

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    17/22

    17

    IV

    Se estudarmos os milhes de leis que regem a humanidade, aperceber-nos-emos facilmente que podem

    ser subdivididas em trs grandes categorias: proteco da propriedade, proteco do Governo,

    proteco das pessoas. E, ao analisarmos essas trs categorias, chegar-se- em relao a cada uma delasa esta concluso lgica e necessria: inutilidade e nocividade da Lei.

    No que proteco da propriedade tange, os socialistas sabem sobejamente o que se passa. As

    leis sobre a propriedade no so feitas para garantir, nem ao indivduo, nem sociedade, o gozo dos

    produtos do trabalho de cada um. So feitas, pelo contrrio, para furtar ao produtor uma parte do que

    produz e para garantir a alguns a parte dos produtos que furtaram, quer aos produtores, quer

    sociedade inteira. Quando a lei estabelece os direitos do senhor Fulano de Tal sobre uma casa, por

    exemplo, estabelece o seu direito, no sobre uma choupana que ele mesmo tivesse construdo, nem

    sobre uma casa que ele tivesse erguido com a ajuda de alguns amigos alis, ningum lhe teria

    disputado tal direito, se assim fosse. A lei, pelo contrrio, estabelece os seus direitos sobre uma casa

    que no o produto do seu trabalho, para comear porque ele a fez construir por outros, a quem no

    pagou todo o valor de seu trabalho, e a seguir porque essa casa representa um valor social que ele, s,

    no pde produzir: a lei portanto estabelece os seus direitos sobre uma poro do que pertence a toda a

    gente e a ningum em particular. A mesma casa, construda mesmo no meio da Sibria, no teria o

    valor que tem dentro de uma grande cidade e o seu valor actual provm bem se sabedo trabalho de

    cerca de cinquenta geraes que construram a cidade, que a embelezaram, proveram de gua e de gs,de belas avenidas, de universidades, de teatros e de armazns, de caminhos-de-ferro e de estradas que

    irradiam em todas as direces. Donde, ao reconhecer os direitos do senhor Fulano de tal sobre uma

    casa em Paris, em Londres, em Rouen, a lei apropria-lheinjustamenteuma certa parte dos produtos

    do trabalho da humanidade inteira. E precisamente porque esta apropriao uma injustia gritante (

    todas as outras formas de propriedade tm o mesmo carcter) que foi necessrio criar todo um arsenal

    de leis e todo um exrcito de soldados, de polcias e de juzes para mant-lo, contra o bom senso e o

    sentimento de justia inerente humanidade.

    Ora bem, a metade das leis vigentes os cdigos civis de todos os pases no tem outra

    finalidade para alm de manter esta apropriao, este monoplio, em proveito de alguns, contra a

    humanidade inteira. Os trs quartos dos processos julgados pelos tribunais no passam de querelas que

    surgem entre monopolistas: dois ladres em disputa pelo saque. E boa parte das leis criminais tem

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    18/22

    18

    tambm o mesmo fim, j que estas tm como objectivo manter o operrio numa posio de

    subordinao ao patro, a fim de lhe acautelar a explorao daquele.

    Quanto a garantir ao produtor os frutos do seu trabalho, nem sequer h leis que se encarreguem

    disso. coisa to simples e to natural, to bem ancorada nos costumes e nos hbitos da humanidade,

    que a lei nem sequer sonhou com ela. O bandoleirismo declarado, de armas na mo, j no do nossosculo: um trabalhador tambm no vem nunca disputar a outro trabalhador os produtos do seu

    trabalho; se qualquer mal-entendido houver entre ambos, esvaziam-no de contedo sem recurso Lei,

    dirigindo-se a terceiros; e se algum vier exigir de outro uma certa parte do que produziu, s pode ser o

    proprietrio, que vem fazer o levantamento antecipado da sua parte de leo. Quanto humanidade em

    geral, respeita em todo o lado o direito de cada um ao que produziu, sem que para o efeito haja

    necessidade de leis especiais.

    Todas essas leis sobre a propriedade, que enchem os gordos volumes dos cdigos e de alegria os

    soldados, ao no terem outro fito para alm do da proteco da apropriao injusta dos produtos do

    trabalho da humanidade por certos monopolistas, no tm nenhuma razo de ser e os socialistas

    revolucionrios esto bem decididos a faz-las desaparecer, no dia da Revoluo. Podemos, com efeito,

    com toda a justia, fazer um auto-de-f completo de todas as leis relacionadas com os aqui nomeados

    direitos de propriedade, de todos os ttulos de propriedade, de todos os arquivos numa ou em

    poucas palavras, de tudo o que diz respeito a essa instituio que em breve ser considerada como uma

    ndoa humilhante na histria da humanidade, pela mesma razo que a escravatura e a servido dos

    sculos passados.

    O que acabmos de dizer sobre as leis respeitantes propriedade aplica-se completamente a esta outra

    segunda categoria de leis: as leis que servem para manter o Governo, ou leis constitucionais.

    Est-se mais uma vez perante um arsenal completo de leis, decretos, ordenaes, advertncias,

    etc., que servem para proteger as diversas formas de Governo representativo por delegao ou

    usurpao -, sob o qual se debatem ainda as sociedades humanas. Sabemos muito, mas mesmo muito

    bem os anarquistas demonstraram-no bastantes vezes pela crtica incessante das diversas formas de

    Governo -, que a misso de todos os governos, monrquicos, constitucionais e republicanos, proteger

    e manter pela fora os privilgios das classes possidentes: aristocracia, padralhada e burguesia. Cerca

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    19/22

    19

    de um tero bem pesados das leis as leis fundamentais, as leis sobre os impostos, sobre as

    alfndegas, sobre a organizao dos ministrios e das suas chancelarias, sobre o exrcito, a polcia, a

    Igreja, etc. - e h bem algumas dezenas de milhar em cada pas no tem outra finalidade seno

    manter, consertar e desenvolver a mquina governamental, a qual serve, por sua vez, quase

    inteiramente para proteger os privilgios das classes possidentes. Analise-se todas essas leis, faa-se asua observao na aco do dia-a-dia, e toda a gente se aperceber que no h uma nica boa e digna

    de ser conservada, a comear pelas que entregam as comunas, de mos e ps atados, ao proco, ao

    grande burgus do stio e ao subprefeito, e acabando nessa famosa Constituio (a 19 ou 20 desde

    1789)6 que nos d uma Cmara de cretinos e de especuladores na Bolsa, que preparam a ditadura de um

    aventureiro qualquer, caso no seja o governo de um cabea de abbora coroado.

    Em resumo, em relao a estas leis, no pode haver qualquer dvida. No s os anarquistas,

    mas tambm os burgueses mais ou menos revolucionrios, esto de acordo sobre o seguinte: o nico

    uso que se possa eventualmente fazer de todas as leis referentes organizao do Governo acender-

    se uma jubilosa fogueira de festa.

    Resta a terceira categoria de leis, a considerada mais importante, j que a ela que se agarram

    mais preconceitos: as leis respeitantes proteco das pessoas, punio e preveno dos crimes.

    Com efeito, esta categoria a mais importante, porque, se a Lei goza de uma certa considerao, porque se cr este gnero de leis absolutamente indispensvel segurana do indivduo na sociedade.

    So estas leis as tais que se desenvolveram a partir do ncleo de costumes teis para as sociedades

    humanas e que foram exploradas pelos dominadores para sancionar o seu domnio. A autoridade dos

    chefes de tribo, das famlias ricas das comunas e do rei apoiava-se nas funes de juiz que exerciam; e

    ainda at ao presente, cada vez que se fala da necessidade do Governo, a sua funo de juiz supremo

    que se subentende. Sem Governo, os homens cortariam as goelas uns aos outros, diz o pensador de

    aldeia. O objectivo final de qualquer Governo dar doze honestos jurados a cada acusado, dizia

    6 O autor refere-se Constituio de 1791( Monarquia parlamentar), de 1793 (Governo da Conveno), de 1795(Directrio), de 1799 (Consulado), de 1802 (Consulado vitalcio), de 1804 (Primeiro Imprio), de 1814(senatorial), Carta Constitucional de 1814 (restaurao monrquica), ao Acto adicional Constituio do Imprio de1815, Carta Constitucional de 1830, Constituio de 1848 (2 Repblica), de 1852 (2 Imprio e Monarquiacesarista), de 1870(2 Imprio liberal), de 1875 (3 Repblica). J depois da morte de Kropotkine, a Frana aindaconheceria a Constituio de 1946 (4 Repblica) e a de 1958 ( 5 Repblica). E entre todas estas datas ainda houverevises e ajustes...

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    20/22

    20

    Burke.

    Pois bem, apesar dos preconceitos existentes sobre este assunto, j no sem tempo de os

    anarquistas dizerem com voz grossa que esta categoria de leis to intil e nociva como as

    precedentes.

    Para comear, quanto aos chamados crimes, aos atentados contra as pessoas, consabido quedois teros e frequentemente at trs quartos de todos esses crimes so inspirados pelo desejo de

    algum se apossar das riquezas pertencentes a outrem. Esta categoria imensa dos chamados crimes e

    delitos desaparecer no dia em que a propriedade privada tiver deixado de existir.

    Mas, dir-nos-o, haver sempre brutos que atentaro contra a vida dos cidados, que

    desfecharo uma facada a cada querela, que vingaro a menor ofensa com um homicdio, se no houver

    leis para reduzi-los impotncia e penas para det-los! A est o refro que nos cantam, mal pomos

    em dvida o direito de punir da sociedade. Sobre isso h no entanto uma coisa hoje bem estabelecida: a

    severidade das punies no diminui o nmero dos crimes. Enforcai, esquartejai, se quiserdes, os

    assassinos, o nmero de assassnios no diminuir um s. Pelo contrrio, aboli a pena de morte e no

    haver um assassinato a mais. Os estatsticos e os legistas sabem que nunca diminuio da severidade

    no cdigo penal trouxe um aumento de atentados contra a vida dos cidados. Por outro lado, seja a

    colheita boa, esteja o po barato, esteja o tempo bome o nmero de assassinatos diminuir logo. Est

    provado pela estatstica que o nmero de crimes aumenta e diminui, em proporo do preo dos vveres

    e do bom ou mau tempo. No que todos os assassinatos sejam inspirados pela fome. Nada disso; mas

    quando a colheita boa e os vveres esto a um preo acessvel, os homens mais alegres, menosmiserveis do que habitualmente, no se deixam arrastar pelas paixes sombrias e no vo enterrar a

    faca na barriga de um dos seus semelhantes por motivos fteis.

    Alm disso, tambm consabido que o medo do castigo nunca deteve um nico assassino. Todo

    aquele que vai matar o vizinho movido pelo desejo de vingana ou pela misria no raciocina

    demasiado sobre as consequncias do seu acto; e no h assassino que no tenha tido a firme convico

    de que vai escapar s diligncias legais. De resto, que cada um raciocine por si mesmo sobre o assunto,

    analise os crimes e as penas correspondentes, os motivos e as consequncias deles e, se souber

    raciocinar sem se deixar influenciar pelas ideias feitas, chegar necessariamente a esta concluso:

    Sem se falar j de uma sociedade em que o homem receber uma melhor educao, onde o

    desenvolvimento de todas as suas faculdades e a possibilidade de us-las lhe proporcionaro tanto

    prazer que ele no procurar perd-las por causa de um assassinato sem se falar da sociedade futura,

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    21/22

    21

    at mesmo na sociedade actual, com estes tristes produtos da misria que hoje vemos nos botequins das

    grandes cidades -, no dia em que nenhuma punio for infligida aos assassinos, o nmero de

    assassnios no registar o aumento de um nico caso por tal motivo; pelo contrrio, at muito

    provvel que tal nmero diminusse, pela subtraco de todos os casos que hoje so devidos aos

    reincidentes, embrutecidos nas prises.

    Falam-nos sempre dos benefcios da lei e dos efeitos salutares das penas. Mas j alguma vez se tentou

    fazer o balano entre os benefcios atribudos Lei e s penas e o efeito degradante dessas penas sobre

    a humanidade? Faa-se apenas a adio de todas as ms paixes despertas nos espectadores pelas

    punies atrozes que eram infligidas nas nossas ruas. Ento quem que cultivou e desenvolveu os

    instintos de crueldade no homem (instintos desconhecidos nos animais, j que o homem se tornou no

    animal mais cruel face da terra), se no foram o rei, o juiz e o padre, armados de leis, que mandavam

    arrancar a carne viva aos pedaos, derramar pez a ferver sobre as feridas, desmembrar, triturar os ossos,

    serrar os homens ao meio, a fim de manterem a sua autoridade? Calcule-se apenas toda a torrente de

    depravao despejada nas sociedades humanas pela delao, favorecida pelos juzes e paga pelo metal

    sonante do Governo, com o pretexto de contribuir para a descoberta dos crimes. V-se at priso e

    estude-se por l aquilo em que o homem se transforma, privado de liberdade, fechado a sete chaves

    com outros depravados que se impregnam de toda a corrupo e de todos os vcios que as paredes dasprises actuais ressumam; e lembre-se ao menos algum que quanto mais so elas reformadas, mais

    detestveis ficam, sendo as penitencirias modernas e modelares cem vezes mais corruptoras que as

    torres de menagem da Idade Mdia. Tome-se, enfim, em considerao quanta corrupo, quanta

    depravao do esprito so mantidas na humanidade pelas ideias de obedincia essncia da lei -, de

    castigo, de autoridade com o direito de punir, de julgar do lado de fora da conscincia de cada um;

    assim como pelo exerccio das funes de carrasco, de carcereiro, de delator numa palavra, pelo

    funcionamento de todo este imenso aparelho da Lei e da Autoridade. Considere-se tudo isso e toda a

    gente estar certamente de acordo connosco, sempre que dissermos que a Lei e a penalidade so

    abominaes que devem deixar de existir.

    Alis, os povos primitivos no policiados e, partida, menos imbudos de preconceitos

    autoritrios compreenderam perfeitamente que aquele a quem chama criminoso, muito

  • 8/6/2019 Kropotkin a Lei e a Autoridade

    22/22

    22

    simplesmente um infeliz; que no questo de chicote-lo, de acorrent-lo ou de faz-lo morrer no

    patbulo ou na priso, mas que preciso alivi-lo pelos cuidados mais fraternos, por um tratamento

    igualitrio, pela prtica da vida entre pessoas honestas. E esperamos que a prxima revoluo faa

    ressoar este brado:

    Queimemos as guilhotinas, deitemos por terra as prises, escorracemos o juiz, o polcia, o delator -raa imunda, se jamais houve outra igual sobre a terra -,tratemos como um irmo aquele que tiver sido

    levado pela paixo a fazer mal ao seu semelhante; acima de tudo, retiremos aos grandes criminosos, a

    esses produtos ignbeis do parasitismo burgus, a possibilidade de exibio das suas taras sob formas

    sedutoras -e tenhamos a certeza de que no teremos mais que muitos poucos crimes a assinalar na

    nossa sociedade. O que mantm vivo o crime (alm do parasitismo) so a Lei e a Autoridade: a lei

    sobre a propriedade, a lei sobre o Governo, a lei sobre penas e delitos e a Autoridade que se encarrega

    de fazer essas leis e de aplic-las.

    No mais leis, no mais juzes! A Liberdade, a Igualdade e a prtica da Solidariedade so o

    nico dique eficaz que, em caso de necessidade, possamos opor aos instintos anti-sociveis de alguns

    de entre ns.

    (Artigos da revistaLe Rvolt, publicados em 13 de Maio,

    27 de Maio, 5 de Agosto e 19 de Agosto de 1882).