KUHLMANN e ROCHA Educação Nos Asilos Dos Expostos Da Santa Casa Em São Paulo

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  • 597Cadernos de Pesquisa, v. 36, n. 129, set./dez. 2006

    A educao no Asilo...

    EDUCAO NO ASILO DOS EXPOSTOSDA SANTA CASA EM SO PAULO:

    1896-1950

    MOYSS KUHLMANN JNIORDepartamento de Pesquisas Educacionais da Fundao Carlos Chagas

    Universidade So [email protected]

    JOS FERNANDO TELES DA ROCHAMestre em Educao pela Universidade So Francisco

    [email protected]

    RESUMO

    Este texto pretende identificar aspectos da educao das crianas de zero a seis anos, noAsilo dos Expostos da Santa Casa de Misericrdia de So Paulo, de 1896 at 1950. Paratanto, foram consultados os Relatrios dos Mordomos dos Expostos. O texto trata inicial-mente das propostas para os bebs, e posteriormente das propostas para as crianas de trsa seis anos. Em relao aos bebs, o aspecto mais importante foi o fato de as crianas noserem mais entregues s amas para serem criadas, permanecendo no berrio, que foi fun-dado em 1936. Com relao s crianas maiores, desde o incio do sculo identifica-se aexistncia do jardim-de-infncia, que ir tambm se renovar na dcada de 1940, com achegada de profissionais ligadas secretaria estadual de educao. As propostas e as concep-es pedaggicas existentes na sociedade se manifestam nas funes educacionais do asilo.EDUCAO INFANTIL CRIANAS HISTRIA DA EDUCAO PEDAGOGIA

    ABSTRACT

    EDUCATION AT SANTA CASA ASYLUM OF THE DISPLAYED IN SO PAULO: 1896-1950. This text intends to identify educational aspects of zero to six years old children, in theAsylum of the Displayed of So Paulo Santa Casa de Misericrdia, from 1896 up to 1950. Forsuch, reports of the butlers of the House of the Displayed had been consulted. The text deal,initially, with the proposals for the babies and, later, with those for the three to six years old

    Verso preliminar deste texto foi aprovada para reunio da Associao Brasileira de Pesquisa emEducao Anped , como excedente, no Grupo de Trabalho Histria da Educao.

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    children. With regard to the babies, the most important issue was the fact that the childrenwere no longer given to be raised by wet nurses: they remained in the nursery, which wascreated in 1936. In relationship to older children, the pre-school, founded in the beginning ofthe century, was renewed in the decade of 1940, with the arrival of professionals linked tothe state board of education. The existing proposals and pedagogical conceptions of societyare disclosed in the educational functions of the Asylum.EARLY CHILDHOOD EDUCATION CHILDREN HISTORY OF EDUCATION PEDAGOGY

    Este texto pretende identificar aspectos da educao das crianas de zeroa seis anos, no Asilo dos Expostos da Santa Casa de Misericrdia de So Pau-lo, de 1896 at 1950. Para tanto, foram consultados os Relatrios dosMordomos dos Expostos, que eram os administradores do asilo. A primeira datarefere-se transferncia do asilo para o bairro do Pacaembu e a segunda, aoltimo Relatrio, encontrado no acervo do Instituto Histrico e Geogrfico deSo Paulo.

    O Relatrio do Irmo Mordomo do Asilo dos Expostos era encaminha-do ao provedor para, ao lado dos demais departamentos da Santa Casa de Mi-sericrdia, compor a publicao do relatrio anual apresentado mesa con-junta daquela instituio. Em geral, o Relatrio da Mordomia era composto porduas partes. Na primeira, o mordomo fazia balanos da trajetria da institui-o e prestava contas da movimentao financeira, das crianas institucionali-zadas, da manuteno e reformas nos prdios, dos trabalhos nas oficinas, dentroe fora do asilo, de atividades do cotidiano das crianas. Na segunda parte, omdico do asilo ocupava-se das amas, do sistema da roda dos expostos, dasdoenas e dos bitos de asilados. s vezes, anexavam-se relatrios e textosdas professoras, da assistente social e de outros.

    A mudana do Asilo dos Expostos para um prdio prprio separou-o doambiente hospitalar, em que as crianas ficavam prximas aos doentes. Nomesmo ano, 1896, era inaugurada a Escola Normal da Praa, depois chamadaCaetano de Campos, e o jardim-de-infncia anexo. As mudanas nas institui-es e na organizao do Estado, implementadas desde o perodo monrqui-co, ganham nova dinmica no regime republicano.

    A educao das crianas, no Asilo dos Expostos, variava conforme a ida-de. Os bebs at cerca de dois anos, ou em alguns casos at os quatro anos,permaneciam fora do asilo, por meio do sistema das amas-de-leite mercen-

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    rias at a mudana da forma de atendimento, em 1936, com a inauguraodo berrio. Aps a estada com as amas, as crianas eram internadas no asilo.Ali se criou um jardim-de-infncia, associado educao na escola primria,educao que se complementava com alguma formao profissional. O textoir tratar inicialmente, das propostas para os bebs e, posteriormente, das pro-postas para as crianas de trs a seis anos.

    A EDUCAO DOS BEBS

    O mordomo dos expostos, Guilherme Dumont Villares, que assumiuesse posto em julho de 1936, inicia o relatrio relativo quele ano com a pro-posta de apresentar os resultados da nova orientao que substituiu o antigoservio das amas pelo novo berrio, o que modificou radicalmente umservio que datava de mais de um sculo. O sistema de entrega do beb auma criadeira, para que esta a levasse consigo e em sua prpria casa, lhe pro-digalizasse os cuidados que a tenra idade do pequeno exposto estava a exigir(p.193), havia sido iniciado em 1825, quando a Santa Casa recolheu a primei-ra criana abandonada.

    A mudana do asilo para o prdio prprio, em 1896, teve implicaesdiretas para as crianas maiores e no para os bebs, que continuaram nomesmo sistema. Entretanto, naquele mesmo ano, um Regulamento para Amas-de-Leite, entre outras aes, determinava, como forma de controle em rela-o aos aspectos de higiene e sade, que essas tivessem registro junto ao Ser-vio Sanitrio, rgo pblico responsvel pelo saneamento e pelas polticas dehigienizao do Estado de So Paulo (Almeida, 2003, p.18).

    Havia uma forte resistncia das amas em relao s noes bsicas paramelhor alimentao, aplicao correta dos medicamentos s crianas, limpe-za, entre outras necessidades, fatores que aumentavam os ndices de mortali-dade infantil. Isso se relacionava sua formao a maioria pobre e sem ins-truo embora tambm houvesse casos de negligncia por parte delas paracom as crianas. Uma das funes do Servio Sanitrio era a de educar, divul-gando junto s amas informaes para que pudessem cuidar das crianas damelhor forma possvel. De acordo com Rocha (2003, p.32), os mdicos higie-nistas representam-se como porta vozes da razo, do progresso e da moder-nidade, esses homens de cincia reclamam para si a responsabilidade pelos

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    destinos da cidade e de seus habitantes, procurando impor-lhes um conjuntode preceitos que deveria guiar as suas vidas.

    Como incentivo s prticas de cuidados e educao dos bebs, criaram-se associaes para orientar mes pobres e amas-de-leite. O Instituto de Pro-teo Infncia e Assistncia do Rio de Janeiro (Ipai-RJ), entidade fundada pelomdico Arthur Moncorvo Filho, em 1899, propagou-se por vrias capitais dopas e difundiu diversos modelos institucionais. Uma das formas de estimularas mes que aleitavam seus filhos foi a promoo de concursos de robustezpara bebs, atribuindo prmios em dinheiro (Kuhlmann Jr., 2004, p.86).

    A Santa Casa de So Paulo adotou procedimento semelhante: foi esti-pulado pela irmandade1 um prmio em dinheiro para as trs amas cujoslactentes se apresentassem em melhores condies, tendo em vista a pesageminicial e final e o estado de sade do exposto sob sua responsabilidade. Em1905, o prmio foi de 100 mil ris. Para o segundo e o terceiro lugar, 50 milris cada um. A ganhadora foi M.O.B,

    ...que recebendo uma creana com 1 kilo 450 grammas, portanto dbil ou pre-

    maturo estado conseguio, com seus cuidados fazer com que se desenvolvesse

    muito regularmente, o que sempre difficil. Com effeito, em 22 de fevereiro a

    creana recolhida pezava 1 kilo 450 grammas, em 10 de julho 3 kilos e 900

    grammas. (Relatrio de 1905, p.68)

    Os altos ndices de mortalidade no eram atribudos qualidade do lei-te, mas sim s condies de moradia e higiene das amas. Embora fosse poss-

    1. A ordem das Santas Casas de Misericrdia, de carter leigo, foi instituda em Portugal pelaRainha Leonor de Lancastre, no ano de 1498, que juntamente com o Rei D. Manuel, assinoucompromisso com Frei Contreras (confessor da Rainha), a Infanta Dona Brites e o Arcebispode Lisboa, D. Martinho da Costa, com os objetivos de: tratar os enfermos, patrocinar ospresos, socorrer os necessitados e amparar os rfos. No Brasil, a primeira Santa Casa foifundada por Brz Cubas, no ano de 1543, na Capitania de So Vicente (Vila de Santos). Porvolta de 1560, deu-se a criao da Confraria da Misericrdia de So Paulo dos Campos dePiratininga, que esteve alojada no Ptio do Colgio, nos Largos da Glria e da Misericrdia,sucessivamente. A direo da irmandade exercida pela mesa administrativa, composta por50 irmos mesrios, e um poder executivo a provedoria integrada pelos irmos: prove-dor (autoridade mxima), vice-provedor, escrives, mordomos, tesoureiros e procuradoresjurdicos (http://www.santacasasp.org.br).

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    vel encontrar um nmero grande de amas moradoras em bairros mais prxi-mos do centro da cidade, como Brs, Mooca, Pari, muitas habitavam em dis-tritos afastados como Embu, Itapecerica da Serra, Santo Amaro, o que dificul-tava, em muito, o acesso ao hospital e, mais ainda, o seu controle por partedos mdicos, fiscais e pelo prprio mordomo.

    Ao assumir a responsabilidade pelo exposto, a ama deveria retornar Santa Casa pelo menos uma vez por ms, para que a criana passasse pelocontrole mdico e para que ela recebesse seu salrio. Porm, muitas delas,talvez pelo fato de morarem longe ou mesmo devido criana no estar bemde sade, postergavam sua ida Santa Casa, no cumprindo a determinao.Nesse caso, mordomo, mdicos e fiscais iam at suas residncias, como podeser constatado na citao a seguir:

    O factor que mais tem prejudicado o servio de aleitamento dessas crianas

    residentes fora da cidade , sem duvida alguma, as distancias que existem entre

    as moradias das amas, que sem exagero algum podem ser calculadas em algu-

    mas dezenas de leguas. Ora, fiscalizar-se de 35 a 40 amas residentes em stios

    diversos, numa rea to elevada, levando-se tambm em conta no s a

    defficincia de transporte como tambm as sorprezas que trazem na maioria,

    quase que impossvel. (Relatrio de 1910, p.104)

    Em 1909, de 126 crianas entregues s amas de stios, 22 faleceram. De25 aos cuidados das amas da cidade, 12 morreram, relatava em 1912 o mdi-co do asilo, Synesio Rangel Pestana, ao ento mordomo dos expostos, JooMaurcio de Sampaio Vianna. Embora sejam entregues s amas da cidade ascreanas mais fracas e que paream exigir maiores cuidados mdicos, eleva-dssima a mortalidade 50%. Questionava tambm se

    no devamos attribuir o facto fiscalizao defeituosa das amas em seus do-

    miclios [...]

    No sentido de permittir uma serie de estudos a respeito das creanas expostas

    e abandonadas vamos iniciar este anno grande numero de providencias scientificas

    que nos autorizem a propor varias medidas em beneficio da sade destes

    pequeninos seres. [...] Dentre estas, tm chamado particularmente a nossa

    atteno as que referem s amas que na sua ignorncia ou bondade realizam os

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    esforos da puericultura moderna, resumidos na velha phrase do poeta grego

    mater est quae lactavit, non quae genuit [me a que alimenta, no a que

    gera]. (Relatrio de 1912, p.100-101)

    Rangel Pestana chamava a ateno para a estatstica de mortalidade dascrianas sob responsabilidade da Santa Casa, seja por meio do asilo ou das amas.De 1909 a 1912, de um total de 652 crianas, houve 178 bitos. E fazia umacomparao: Ao passo que em 1912 a porcentagem de bitos de creanas de0 a 1 anno, em toda Capital foi de 19,9 por 100 nascimentos, ns registramos28,5 por 100 entrados (Relatrio de 1913, p.88). Seguia comentando que:

    A maioria dos bitos se verifica nos lactantes entregues s amas dos stios,

    creaturas inteiramente ignorantes do que seja hygiene alimentar. [...] h ainda a

    falta de medico no logar, o que obriga as amas a consultarem os curandeiros

    boaes da redondesa [...]. Os bitos occorridos nos stios trazem todos attestados

    de pessoas idneas do logar ou do escrivo do registro civil de Itapecerica. Dos

    fallecidos durante o anno de 1912 s 9 viviam nesta Capital sendo os 41 restan-

    tes dos stios. (1913, p.88)

    Em 1929, o mdico Synesio Rangel Pestana afastou-se do cargo. Em seulugar tomou posse Joo Leite Bastos Jnior, que j exercia o cargo como ad-junto. Em seus relatrios mantinha a mesma preocupao quanto aos eleva-dos ndices de mortalidade das crianas junto s amas-de-leite. No ano de 1933,Leite Bastos solicitava a transferncia das crianas menores de dois anos queestavam em poder das amas, inclusive com a construo de um local adequa-do para atend-las. Justificava seu pedido dizendo que:

    ...esse doloroso confronto entre a elevada lethalidade das crianas confinadas s

    bondosas mas incultas caboclas de Itapecerica, e a mortalidade nulla das que

    ficam sob os cuidados das virtuosas e dedicadas Irms de So Jos, est aclamar

    por providencia urgente e definitiva que ponha os lactentes em situao de igual-

    dade de outros expostos. [...] Esta providencia importa, inicialmente, na

    construco de um pavilho para menores de 2 annos, onde esses infelizes pos-

    sam receber os benefcios da moderna hospitalizao. Aconselhado pelos prof-

    cuos resultados obtidos no pas e no extrangeiro. (Relatrio de 1933, p.281)

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    Marclio (1998, p.249) comenta que sempre, e em todo lugar, se pa-gavam salrios irrisrios s amas-de-leite de expostos. E isso foi dado comocausa da pouca ateno e dos parcos cuidados das amas para com os bebsexpostos. As condies precrias das amas, assim como a baixa remuneraorecebida por elas, eram preocupaes constantes dos responsveis pelo asilo.Tanto assim que, em relao a 1936, o ento mordomo Guilherme DumontVillares afirmava que:

    ...essas criadeiras ou amas que assim se chamavam, eram mulheres de origem

    modesta, as quaes, residindo nas vilas mais pobres dos arredores da Capital, ao

    receber a creana em sua casa, no visavam seno uma remunerao, por pe-

    quena que fosse. E era, de facto, das mais modestas a que a nossa Instituio

    lhes dava por tal servio [...]. Nessas condies, bem de ver-se, havia de ser

    das mais rudimentares a assistncia que taes amas poderiam prestar as creanas

    que perfilhavam [...]. Assim, por mais que fosse a ba vontade que algumas

    revelavam, a precaridade das condies materiais impossibilitava uma conve-

    niente assistncia creana exposta, que em geral pagava com a vida a ausncia

    das attenes com que a moderna pediatria consegue, em certos paizes, redu-

    zir a um mnimo a cifra da mortalidade infantil. (Relatrio de 1936, p.194).

    Nota-se na leitura dos relatrios da mordomia a necessidade, cada vezmais forte, da Santa Casa e do prprio mordomo, de modificar o servio dasamas, uma vez que detectavam, pelo controle mensal, a precariedade dascondies fsicas das crianas criadas por elas. A falta de cultura e de recursosmateriaes das pobres amas as impedia completamente de executar as regrasque lhes eram ensinadas pelos mdicos (Relatrio de 1936, p.195).

    Segundo o mordomo Guilherme Dumont Villares, o berrio comeoua funcionar em 20 de outubro de 1936, em uma casa alugada na rua FredericoSteidel, 157, bairro de Santa Ceclia.

    A principio, installmos algumas que tnhamos levado provisoriamente para a

    nossa residncia particular, afim de evitar que fossem para as casas das amas;

    depois, aquellas que por esses dias foram expostas na Roda e nos chegaram de

    outras procedncias; a seguir, retiramos todas as creanas que estavam com as

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    amas: e assim fomos pondo em funccionamento o novo Berrio. (Relatrio

    de 1936, p.197)

    Paralelo instalao do berrio, foi criado tambm um lactrio, com fi-nalidade mdico-social uma forma de restringir, ao que parece, o servio dasamas pois, de acordo com o prprio mordomo, a finalidade do mesmo extrahir, conservar e distribuir leite humano a dbeis, prematuros e doentes,expostos ou filhos de ricos e pobres, evitando-se assim, ao mesmo tempo, osinconvenientes irremediveis do aleitamento mercenrio (Relatrio de 1936,p.200).

    Lvia Vieira (1988, p.10), em artigo sobre o Departamento Nacional daCriana, conta que, em 1938, Vasconcelos e Sampaio propunham dois tiposde instituio para socorrer as crianas pobres e combater as criadeiras: Oslactrios, que alimentam as crianas e ensinam as mes, servem s mulheresque podem guardar junto de si os filhos; e as creches, de depsitos: para asmulheres que so foradas a trabalhar. No Relatrio da Mordomia de 1938,verifica-se que o papel das amas se modificou: De nutriz mercenria que era,qualificativo aviltante e desprezvel, passou a ser doadora de leite, funco al-tamente humanitria, conforto de mes que soffrem e salvao de criancinhasque fenecem (p.275).

    O relatrio de 1936 trouxe oito fotos do berrio e duas da ChcaraWanderley, onde funcionava o asilo. Na superviso do berrio, GuilhermeDumont foi auxiliado por sua esposa Maria Luiza Villares e pelos mdicos Lei-te Bastos e Wladimir Piza. A casa, administrada por Maria Clia Bonilha, con-tava com seis enfermeiras, seis pagens, duas cozinheiras e uma ajudante, umaroupeira, uma chefe de lavanderia, trs lavadeiras, duas passadeiras, uma pes-soa para limpeza da casa, uma costureira e um jardineiro:

    Devemos tambm consignar aqui o inestimvel auxilio prestado por algumas

    senhoras, que altruisticamente se interessam pelas creanas, trazendo nos dia-

    riamente ajuda preciosa do seu trabalho. A estas abnegadas companheiras, os

    nossos melhores agradecimentos. (p. 201)

    Nos dormitrios, com capacidade para 60 crianas, havia livros de en-fermagem, em que se anotavam, diariamente, todas as informaes sobre a

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    sade de cada criana. A temperatura tomada de manh, e noite, e qual-quer normalidade em diurese, dejeces, vmitos, alimentao est tambmregistrada para informao medica. (p.198).

    Mas a preocupao no era exclusiva com os problemas de ordemmdica, como pode se observar:

    Os servios do Berrio, onde as creanas permanecem at os tres annos de

    idade, continuam muito bons, tendo-se conseguido resultados realmente extra-

    ordinrios no s na sade das creanas como no seu desenvolvimento mental.

    [...] Pelo lado psychico, tambm, essas creanas, cuidadas por boas auxiliares,

    que, com carinho e affecto, realmente se interessam pelo seu bem estar,

    permittindo o desenvolvimento normal de sua mentalidade conservando-lhe

    a alegria e a individualidade prpria apresentam os melhores resultados. As

    creanas nesta casa tem a mesma alegria e a mesma mentalidade de creanas

    criadas nas casas das nossas melhores famlias. (Relatrio de 1938, p.257-258)

    A princpio, a iniciativa da implantao do berrio deu resultados posi-tivos. Tanto que, em reunio da Mesa Administrativa de 5 de dezembro de1941, foi aprovado parecer da Comisso de Contas e Obras favorvel au-torizao para os estudos e elaborao de plantas e oramento para a cons-truo de um prdio anexo ao Asilo Sampaio Vianna para servir de berrio(Relatrio de 1941, p.98).

    Em 1/1/1943 havia 59 crianas no berrio. Entraram, durante o ano, 29, fa-leceram 11, saram 28. Em 31/12/1943, havia 49 crianas: duas foram removidas paraa Escola Pacheco Silva, seis, para o asilo, dez entregues mediante tutela, nove entre-gues ao pai ou me e uma, ao juiz de menores (Relatrio de 1943, p.234).

    H um inventrio do berrio referente ao ms de agosto de 1943. Entreoutros objetos que podem ser indcios de uma ao pedaggica esto: duasestantes grandes para brinquedos, duas estantes pequenas para brinquedos, umrdio, uma vitrola quebrada, trs quadros, diversos brinquedos (no especi-ficam quais) e um espelho (p.272).

    Em 1945, o berrio foi transferido para a antiga enfermaria do asilo:

    ...depois de inteiramente remodelada, adaptada e modernizada, veio contribuir

    decisivamente para uma melhor e mais fcil orientao de trabalho pela unifica-

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    o da administrao e dos servios mdicos e de enfermaria. [...] Esto real-

    mente melhor assistidas crianas de primeira idade, 0 a 3 anos com maiores

    instalaes da cozinha diettica e refeitrio anexo, os novos banheiros dotados

    de todo conforto, tendo concorrido para a implantao de hbitos higinicos e

    de educao. Sendo que todas as despesas realizadas com as reformas foram

    custeadas com o generoso donativo oferecido nossa Irmandade pela So Pau-

    lo Companhia Nacional de Seguros. (Relatrios de 1945, p.251)

    A EDUCAO NO JARDIM-DE-INFNCIA

    No ano de 1904, o mordomo Joo Maurcio de Sampaio Vianna orga-nizou a escola do asilo em trs sees, a primeira, com 59 alunas de cinco a14 anos, a segunda, com 46 alunos de seis a 12 anos:

    Nestas duas seces o ensino adoptado calcado no programma official, e

    folgo em confessar que, tanto os alumnos da primeira como os da segunda

    seco, demonstraram, no correr do anno grande aproveitamento.

    A terceira seco que no mais do que um ponto de reunio de creanas

    um grande jardim de infncia, teve uma freqncia de 16 creanas, regulando as

    edades de 3 a 5 annos. (Relatrio de 1905, p.64)

    Mas a partir da dcada de 1940 que h mais informaes sobre o sis-tema de ensino e as educadoras, as metodologias, a estrutura fsica das salas eas disciplinas, entre outras notcias da escola no asilo e de seus alunos. Por meiode um extenso relatrio, no do ano de 1943, foi possvel compreender me-lhor e com maiores detalhes a prtica educacional vivenciada pelas crianas ins-titucionalizadas. Naquele ano, 86 alunos estavam no ensino primrio, 46 me-ninos e 40 meninas, e no jardim-de-infncia, 29 crianas (p.236).

    Quanto ao lazer das crianas, vale a pena observar uma foto que mos-tra as crianas uniformizadas, caladas e algumas delas at penteadas, brincan-do no jardim do asilo. Nota-se um grupo de crianas que, apesar de no esta-rem brincando com os triciclos, patinetes ou cavalinhos de madeira, aguardavam alguns at em fila sua vez de brincar. Sugere-se que esse era o combina-

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    do entre as crianas e os responsveis pela brincadeira ou, quem sabe, algumcontrolasse o tempo das crianas nos brinquedos.

    A partir de 1943, o jardim-de-infncia do asilo passou a contar com acolaborao da professora Alice Meirelles Reis, que organizou as duas classes,doou um museu completo e indicou duas de suas alunas para o cargo deprofessora. Num extenso relatrio as professoras Vera Castanho e RenataColombo discorriam sobre seus trabalhos.

    Nas linhas iniciais reclamavam do comportamento dos alunos. Fomosassaltadas por grande desnimo diante da indisciplina e falta de bons hbitosde algumas crianas. Porm, segundo elas, com a retirada dos alunos maisproblemticos e apoiadas que foram pelas Irms, conseguimos, no tantocomo pretendamos, mas melhorar no s a disciplina como a formao debons hbitos sociais e morais (Relatrio de 1943, p.259).

    De acordo com o mesmo relatrio de 1943, as aulas comearam no dia1 de julho. Na classe masculina, 20 alunos, com idade entre trs anos e meioa sete; na feminina, 18 alunas, com a mesma idade. Naquele primeiro dia, porcausa da indisciplina e desobedincia, no foi possvel organizar qualquer ati-vidade (p.260). Foi necessria a presena da pajem para que pudessem ensi-nar como formar uma fila ou mesmo sentar. As crianas maiores se conside-ravam superiores e molestavam em grande parte a turma dos menores. Coma retirada destas, consegui da por diante, dar algumas atividades organizadas(p.260).

    Em seus escritos, as professoras, ao relatarem cada atividade ministra-da, escreviam uma observao. Assim, em relao ao desenho, segundo elas,consistiram em garatujas e mais tarde, objetos conhecidos (p.261). Na ob-servao, colocaram que essa atividade sempre foi recebida com alegria porparte das crianas, sendo um castigo no deixa-las desenhar (p.261).

    H tambm algumas observaes assinaladas no mesmo relatrio, emrelao s crianas e escola/infra-estrutura. Segundo as professoras, em ter-mos de higiene, as crianas estavam bem observadas, roupa simples e asseiada;falta de calados para a classe masculina. Sobre o refeitrio, pouco agrad-vel e no apropriado. Em relao s instalaes sanitrias, apropriadas e compouco asseio. Caracterizaram ainda o recreio como saudvel (ar livre), es-paoso, com aparelhos para movimento, escorregador, balano, tanque deareia (p.259).

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    Quanto linguagem, pssima, quanto aos termos e pronncia. Paramelhor-la, foram utilizados os seguintes meios: correo dos defeitos da lingua-gem em todas as oportunidades; deixar a criana falar, ouvir e conversar; pales-tras; dar o nome apropriado para o material; histrias contadas e repetidas pelascrianas com auxlio de perguntas; memorizao de pequenas poesias (p.261).

    Em relao a outras atividades desenvolvidas, citaram canto, jogos or-ganizados, exerccios sensoriais (de ateno, cores, formas e raciocnio) e h-bitos de ordem. Conseguimos os hbitos de ordem, aproveitando todas asoportunidades como escolher, brincar e guardar material, formar a fila etc.(p.262). Sobre os trabalhos manuais h informaes mais detalhadas de comoeram feitos. De acordo com as professoras as atividades eram:

    a) enfiar contas, apreciado pelas meninas; b) construo de blocos, apreciado

    pelos meninos, c) construo na areia, agradava ambas as classes, d) dobraduras

    muito simples porque as crianas encontravam dificuldades; e) modelagem,

    muito apreciada; f) recorte e colagem de gravuras muito apreciado; g) alinha-

    vo muito apreciado e era dado somente para os maiores; havia grande facili-

    dade por parte das meninas; h) pintura, grande interesse; e os desenhos eram

    grandes e simples. (p.261)

    Na observao relatavam que a construo na areia proporcionava gran-de indisciplina, pois as crianas atiravam areia umas s outras. Foi necessrioretirar algumas do brinquedo e deixa-las parte (p.261). As aulas de canto,acompanhadas de piano, eram ministradas trs vezes por semana no salo defesta. De acordo com o relatrio,

    ...agradava muito s crianas e a aprendizagem era fcil . Segundo as professo-

    ras, nos dias em que no havia canto no salo de festas, havia em classe, rodas

    com canto, cantos e marchas cantadas. Na classe masculina, as rodas com canto

    eram dadas com grande dificuldade porque vrias crianas se recusavam a parti-

    cipar dessa atividade. As aulas de canto eram mixtas. (p.261)

    Pela primeira vez h informaes que caracterizavam fisicamente a salade aula. No relatrio de 1943 descreviam que era apropriada, espaosa, cla-

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    ra, arejada (4 janelas) e com pouco asseio (p.260). Destaca-se a observaofinal escrita pelas professoras:

    Procuramos sempre evitar que as crianas mentissem, aconselhando-as e apelan-

    do para a religio. Quanto delao, em todos os casos fizemos com que a prpria

    criana culpada se acusasse, e havia sempre repreenso momentnea. As crianas

    tinham tambm o grande defeito de brigar e essas eram afastadas das outras, tanto

    na classe como na fila. Para qualquer questo que surgisse na classe, procuramos

    saber as razes de ambos os lados para depois fazer a devida justia. (p.263)

    Fica uma dvida em relao devida justia. Isso porque no h, nemmesmo nas entrelinhas dos relatrios, alguma atitude que nos levasse a pen-sar que eram empregados castigos fsicos ou maus-tratos aos asilados comoforma de punio. Da no podermos concluir que tal expresso deva tratar-se de algo deste tipo.

    Nas declaraes constantes nos relatrios das professoras, de 1943,verificam-se passagens em que essas chamam a ateno para a indisciplina, oatraso na linguagem, para a carncia de calados em algumas crianas e atmesmo para a falta de higiene em determinados locais da escola, como os sa-nitrios. Essas observaes contrariam, de certa forma, a lgica doenaltecimento que supostamente utilizaram ao escreverem os relatrios aomordomo. Talvez essa atitude tenha a ver com o fato de estarem iniciando seustrabalhos naquele ano, excluindo-se assim de qualquer responsabilidade pelosaspectos negativos encontrados. Pode ser tambm que sinalizassem para osresponsveis superiores que a situao encontrada exigiria delas um grandeesforo no sentido de revert-la.

    A sada das Irms de So Jos do asilo ocorre em 19 de julho de 1944.No mesmo dia, Branca Leite de Mello, que havia ingressado um ms antes nadireo do berrio, assume a direo do asilo, comissionada pelo governo doestado (Relatrio de 1944, p.242). No Relatrio de 1944 nota-se o entusias-mo do mordomo quanto aos resultados alcanados no jardim-de-infncia. Se-gundo ele, com o excelente trabalho desenvolvido pela professora AliceMeirelles Reis, houve uma notvel transformao nos nossos internados, im-primindo-lhes as primeiras noes de civilidade, bons costumes, boas manei-ras e hbitos de higiene (p.243).

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    No incio daquele ano foi introduzido o curso de ginstica educativa ecorretiva, cujo objetivo principal era o de corrigir defeitos observados naconstituio fsica de muitas crianas e tambm na expansibilidade de movi-mentos, despertando o interesse associativo da ginstica moderna de marchas,ritmos e jogos (p.245). A professora Cordelia Barbosa Dalpino relatou quepara as crianas do jardim-de-infncia eram ministradas aulas com exercciosimitativos, aula historiada e pequenos jogos amenizados com cantos, rodascantadas e recitativos (p.262).

    No ano de 1944 foi inaugurada a Casa de So Jos, localizada na Ala-meda Baro de Limeira, tendo posteriormente sido transferida para a AvenidaAnglica. Foi criada especialmente para abrigar as asiladas que, por motivo deindisciplina e idade, no poderiam continuar no Sampaio Vianna. O relatriode 1945 traz um balano do ensino ministrado no interior do asilo e seus re-sultados, pelo menos de forma parcial. Nesse sentido, aps a mudana dasmeninas para a Casa de So Jos ficaram no Asilo Sampaio Vianna somentecrianas menores de 12 anos. Sendo que at quatro anos havia asilados deambos os sexos. A partir dessa idade, exclusivamente meninos.

    As aulas de educao fsica, segundo o relatrio, tornaram as crianasmais fortes, sadias e alegres, contribuindo para um desenvolvimento acima donormal. O programa do jardim-de-infncia masculino, desenvolvido pela pro-fessora Lirba de Barros Esteves, conseguiu desenvolver o esprito das crian-as, educando-as com suavidade e ateno individual e imprimindo a todas gra-dativamente bons hbitos de higiene e educao (Relatrio de 1945, p.252).

    Terminado o jardim-de-infncia, os meninos vo para o Grupo Escolardo bairro, medida esta das mais salutares introduzidas desde 1943. Segundoo relatrio, os resultados dos estudos feito no grupo so aqueles:

    ...comuns de todas as crianas, mas o desenvolvimento associativo, o conheci-

    mento das coisas externas, a vida em comum nas classes, o trajeto para o Gru-

    po com as suas naturais intercorrncias, criam para cada criana uma confiana

    em si prpria, com os meios de defesa e de adaptao to necessrios sobretu-

    do aos que como os nossos, no contam com o amparo de seus Paes ou de

    suas famlias foi incontestavelmente a realizao desta parte de nosso programa

    uma das maiores compensaes que tivemos na trabalhosa Mordomia do asilo.

    (Relatrio de 1945, p.252)

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    O jardim-de-infncia feminino, dirigido pela professora Renata Colombo,tinha como princpios educar pela persuaso, com bondade e com o objetivosempre presente da formao de bons hbitos e do carter e personalidadeda menor, criando horror mentira, delao e hipocrisia (p.253).

    O programa era baseado nos centros de interesse, mtodo criado e de-senvolvido pelo mdico e educador Ovide Decroly. O mtodo consistia em idiasgeradoras como: necessidade de alimento, luta contra intemprie, necessidadede defesa, necessidade de ao e de trabalho (Kishimoto, 1988, p.119).

    O conceito de interesse o pontap inicial da teoria de Decroly. Se-gundo o educador, a necessidade gera o interesse e s este leva ao conheci-mento. Herbart, um dos pedagogos no qual Decroly se inspirou para elaborarsuas teorias, dizia que o interesse liga-se aos prprios objectos; involuntrioe precede a ecloso do desejo que desencadeia o acto (Bassan, 1978, p.19).

    Segundo escritos da professora Lirba de Barros Esteves, uma vez capta-do o interesse, elaborado um projeto com as atividades que poderiam vir asolucionar o problema trazido pelo asilado:

    Tudo o que dado no Jardim parte do interesse da criana, logo, ela que nos

    d o seu problema e ns vamos desenvolve-lo de acordo com a sua idade. [...]

    No desenvolvimento destas atividades, as crianas iro aplicando os conheci-

    mentos adquiridos, comparando-os com os conhecimentos anteriores e adqui-

    rindo experincias novas. (Relatrio de 1945, p.259)

    Ainda de acordo com a professora, naquele ano foram desenvolvidos,com os meninos, seis centros de interesse, e os temas foram trazidos pelasprprias crianas: os animais, meios de transporte, o galinheiro, as plan-tas, a Arca de No e o prespio. Segundo ela, o projeto que mais agra-dou e no qual houve maior colaborao das crianas foi o galinheiro (p.259).

    Nas atividades ministradas ao longo do ano, havia jogos livres e organi-zados, estudo da natureza e vida social, exerccios sensoriais, dramatizao,trabalhos em grupo, entre outras. Apontavam-se trs problemas: a indisciplina,a falta de interesse das crianas e a existncia de alunos com trs anos de ida-de misturados com os de seis anos, que eram a maioria. De acordo com aprofessora, as crianas de trs anos tinham necessidade contnua de movimentoe perturbavam as atividades dos maiores. Ela terminava seus escritos com um

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    questionamento: Uma vez que h nmero suficiente de alunos porqu per-mitir na classe, crianas de trs anos? (p.261).

    No jardim-de-infncia feminino, naquele mesmo ano de 1945, as ativi-dades tambm foram desenvolvidas com base nos centros de interesse. Segun-do a professora Renata Colombo, o maior problema quando as crianas esta-vam no asilo era a falta de interesse. Com a transferncia para o Lar So Jos,essa atitude modificou-se:

    Ns precisvamos despert-lo nelas; por nada se interessavam, no traziam pro-

    blemas para a classe; isso porem desapareceu com a vinda das crianas para o

    lar, vinda essa que no trouxe somente este benefcio, trouxe tambm outro de

    importncia muito maior, fez com que as crianas se sentissem em sua prpria

    casa; viver como se estivessem entre seus pais; isso observei na casa de boneca

    nas dramatizaes. [...] vi dramatizaes de cenas dirias como: o aniversrio da

    boneca, a boneca est doente, a vinda do mdico, a visita de uma amiga; as

    meninas vo cozinha fazer o bolo, fazer o caf etc. etc... (p.265)

    Ainda de acordo com o relatrio da professora, em 1945 foram desen-volvidos trs centros de interesse: o gato, a primavera e o prespio. Paraela, a primavera foi o melhor projeto desenvolvido e que contou com o maiorinteresse pelas crianas.

    Os centros de interesse deveriam ser grupos de aprendizado organiza-dos de acordo com a faixa etria dos alunos. O desenvolvimento das ativida-des proporcionava o ajustamento da criana ao grupo social, a acquisio denovas tcnicas de trabalho e a formao de bons hbitos (p.259).

    A opo por esse mtodo, provavelmente, estava relacionada com apresena da professora Alice Meirelles Reis que, a partir de 1943, atendeuconvite dos responsveis pelo asilo e organizou duas classes do jardim-de-in-fncia, e contou para isso com o trabalho de duas de suas alunas: as professo-ras Vera Castanho e Renata Colombo. Docente do jardim-de-infncia anexo Escola Normal Caetano de Campos de 1922 a 1940, Superintendente deEnsino de Departamento de Menores Abandonados da Liga das SenhorasCatlicas, entre 1934 a 1940, e assessora tcnica, nomeada pelo governo, deinstituies assistenciais que tivessem educao infantil como era o caso do

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    asilo Alice Meirelles Reis teve influncia em seu trabalho do educador Decroly(Kishimoto, 1988, p.123). Ela foi tambm auxiliar de presidente, em 1932,na composio da primeira diretoria do Centro de Estudos e Ao Social, en-tidade que foi a fundadora e mantenedora da Escola de Servio Social. Em 1937passou a fazer parte do conselho tcnico desta mesma escola (Yasbek, 1977,p.27 e 44).

    Os responsveis pela casa estavam bastante satisfeitos e, em resoluoda Mesa Administrativa de 20 de maio de 1944, foi resolvido agradecer Pro-fessora Alice Meirelles Reis a sua efficiente collaborao na reorganizao doJardim de Infncia do Asylo Sampaio Vianna (Relatrio de 1944, p.27).

    A partir do ano de 1948 o Asilo Sampaio Vianna passou a contar comum curso maternal, com 18 crianas, cuja professora, Olinda Pinto de Miranda,foi cedida pela Secretaria da Educao. O objetivo desse curso, articulado como jardim-de-infncia, segundo os responsveis pelo asilo, era o de dar aos pr-escolares hbitos que melhorassem suas condies fsicas, morais e sociais, demodo a fornecer-lhes uma base mais slida para quando ingressassem no pe-rodo verdadeiramente escolar (Relatrio de 1948, p.258).

    Segundo o mesmo relatrio, 23 crianas que freqentaram o curso pri-mrio tiveram o apoio da professora Orsina Seabra Leal como auxiliar no pre-paro das lies. No jardim-de-infncia, que parte preponderante nas nos-sas atividades, estudaram, no perodo, 19 crianas, sob a responsabilidade daprofessora Lirba de Barros Esteves. Tambm houve na capela do asilo a pri-meira comunho de oito meninos, sendo que as aulas de catecismo foramministradas semanalmente, com a colaborao da professora Olinda Pinto deMiranda (p.261-2).

    O ltimo relatrio relativo educao no interior da instituio data de23 de fevereiro de 1950, escrito pela professora Lirba de Barros Esteves e en-caminhado ao mordomo, na poca, Joo Leite de Bastos. Nele h uma des-crio das atividades trabalhadas ao longo do ano anterior. A maioria dos alu-nos tinha quatro anos e, percebendo que as crianas necessitavam de exercciosnos quais pudessem se movimentar vontade, a professora organizou umprograma com aulas de ginstica recreativa, jogos livres, jardinagem, passeiosao redor do asilo e do Estdio do Pacaembu, alm de brincadeiras com bola,bicicleta, patinetes e carros para puxar. As histrias foram curtas e cheias derepeties; as palestras ligeiras, pois as crianas nessa idade no tm ateno

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    fixa. A adaptao dos alunos novos ao jardim-de-infncia no constituiu pro-blema, segundo ela. Apenas o Jos Alberto (Pimpa) recusava-se a deixar suacadeirinha para as atividades organizadas (Relatrio de 1949, p.212).

    Estiveram tambm num circo, tendo o passeio resultado no centro deinteresse o circo. De acordo com a professora, o ano foi encerrado em meioa grande alegria com a festinha de Natal e a minha satisfao foi imensa porficar ciente de que o ano de 1949 fra proveitoso para as crianas (p.212).

    CONCLUSES

    As prticas educativas na histria das instituies para as crianas pobresso quase uma incgnita. Quanto s concepes educacionais, as pesquisassobre a histria da educao infantil tm evidenciado que as propostas paraessas instituies tratam a pobreza com preconceito. Entretanto, esse precon-ceito em relao pobreza no pode ser entendido simplesmente como umaatitude conspirativa, pois se associa a concepes pedaggicas que existiam paraas crianas que no se encontravam em situao de pobreza, e que podem serentendidas atualmente como autoritrias ou disciplinadoras. Quanto s propos-tas e s prticas educacionais cotidianas, ainda h muito a se investigar sobreelas, para que se possa conhecer melhor o que acontecia nas instituies e oseu efeito sobre as crianas. As evidncias dessas prticas so sugeridas, boaparte das vezes, nas entrelinhas dos textos. Para a composio desses fragmen-tos em uma interpretao consistente so necessrias a busca, a sensibilidadee a oportunidade de encontrar fontes que forneam esses dados.

    No estudo realizado, observa-se que, por um intervalo de aproximada-mente 40 anos, poucas informaes puderam ser obtidas, relacionadas ao queocorria com as crianas, com exceo da crtica ao encaminhamento s amas.As avaliaes apresentadas, quando da implementao das novas propostas, quecomeam a acontecer a partir da inaugurao do berrio, em 1936, e daque-las ocorridas a partir do incio da dcada de 1940, no jardim-de-infncia, suge-rem que at ento a educao oferecida era de muito pouca qualidade.

    A sada das Irms de So Jos, do berrio, em 1944, culmina um pro-cesso de transio para profissionais laicos, encarregados do trabalho educa-cional. Entretanto, isso no significa a retirada dos contedos religiosos, quepode ser identificada na denominao da Casa de So Jos, inaugurada na

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    mesma data, assim como nas referncias s aulas de catecismo e ao uso dareligio como forma de persuaso para obter disciplina.

    No que se refere educao das crianas pequenas, obter informaessobre as propostas e as prticas educacionais ainda mais difcil do que para acriana de sete anos ou mais. Quanto menor a idade das crianas, mais essesdados se diluem. Mesmo nos dias de hoje, comum a demanda de profissio-nais da educao infantil, relacionada s poucas orientaes para a educao eos cuidados das crianas dos zero aos dois ou trs anos. As propostas e osmodelos de cuidado e educao dos pequenos circulam intensamente nas pr-prias prticas, transmitidas dos experientes aos iniciantes. Esses conhecimen-tos, por vezes, so propostos de forma mais sistematizada nos manuais e noscursos de puericultura organizados por mdicos para as mes e para as pro-fessoras. A educao dos pequenos ocorre diretamente associada aos cuida-dos prestados a eles e os preceitos no so exclusivamente de ordem mdicaou higinica, mas evidenciam concepes sociais e educacionais. Na histriado Asilo da Santa Casa, a criao do berrio sinaliza a opo pelo modelo dainstituio educacional coletiva, com um corpo profissional, em oposio aomodelo domstico.

    Quanto s crianas maiores, as prticas so mais explicitadas no perodoposterior a 1940. A chegada de profissionais ligados ao sistema pblico de edu-cao estadual e as suas propostas pedaggicas revelam a sintonia com as con-cepes educacionais daquele perodo. Mas as crianas de trs anos, j fora doberrio, parecem ter ficado um tanto margem no interior da turma do jardim-de-infncia, at a abertura do maternal, em 1948. Observa-se a dificuldade dasprofessoras em organizar atividades para esse grupo, ao lado dos maiores, rela-cionada a uma expectativa do comportamento disciplinado das crianas, seguin-do filas e permanecendo quietas, sentadas, em seus lugares. Da se considera-vam os pequenos como indisciplinados e indicava-se como soluo a sua retiradada classe, da mesma forma que a outras crianas maiores, que apresentassemcomportamento mais irrequieto ou com necessidades especiais.

    Cabe destacar a presena de prticas pedaggicas oriundas da longa tra-dio das propostas de Froebel para o jardim-de-infncia, relacionada s ativi-dades de recortes e colagem, de alinhavo, de construo com blocos, nos tra-balhos manuais. Identifica-se uma certa orientao diferenciada para meninose meninas estas com preferncia pelos alinhavos, aqueles pela construo

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    com blocos , o que se distancia das propostas de Froebel, que sugeria ativi-dades comuns para meninos e meninas, e revela uma distino de gnero in-centivada pelas prprias professoras.

    Outra fonte de inspirao pedaggica associava-se proposta dos cen-tros de interesse de Decroly. Cabe destacar a avaliao feita pelas professo-ras, sobre a falta de interesse das crianas, quando comentavam justamenteo uso dessa metodologia. A opo pelos temas parece ter surgido mais davontade dessas educadoras do que propriamente dos interesses das crianas,o que tambm indica a sua vontade de encontrar atividades que fossem signi-ficativas. Isso evidencia ainda a impossibilidade de se isolar as crianas da suarelao com os adultos quando se quer entender as prticas realizadas nas ins-tituies educacionais, mesmo quando elas anunciam uma suposta independn-cia das crianas. Afinal, no se pode deixar de lado a dimenso das interaesetrias entre as diversas classes de idade, entre adultos e crianas, e mesmoque se oferea a elas a oportunidade de escolhas, estas sempre iro ocorrerem espaos planejados e organizados pelos adultos e com materiais escolhi-dos por eles, em contextos histricos especficos.

    O Asilo dos Expostos marcado pelo seu carter de instituio total, parautilizar o conceito de Goffman (1961). Ali, as crianas cresciam separadas deuma referncia domstica familiar. Esse carter de internamento conjuga dife-rentes funes e um dos fatores que levou interpretao histrica que iden-tifica imediatamente as casas de expostos com as instituies de educao in-fantil para as crianas pobres como assistenciais. Mas, se a constituio dasinstituies sociais e a definio das suas funes (assistenciais, educacionais etc.)ocorre no processo histrico de estruturao do Estado e de formulao daspolticas sociais, cabe considerar que a influncia ocorre no sentido inverso: no a necessidade de assistncia a crianas abandonadas que promove a criaodas instituies de educao infantil, mas so as propostas e as concepespedaggicas existentes na sociedade que se manifestam nas funes educacio-nais dos internatos.

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    Recebido em: maio 2006

    Aprovado para publicao em: junho 2006.