14
Márcio Couto Henrique** SER EDUCADOR: UMA EXPERIÊNCIA MODIFICADORA DE SI* PONTO DE VISTA m agosto de 2004, ministrei oficina intitulada Afinal, O que São Sociedades Indígenas? juntamente com Jane Felipe Beltrão, no E Encontro Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizado em Belém do Pará. Em meio às discussões, narrei aos participantes algumas de minhas experiências de contato com po- vos indígenas à época em que trabalhei como Chefe do Serviço de Edu- cação na Fundação Nacional do Índio (Funai), na Administração Regional de Belém. Basicamente, utilizei essas experiências para dis- cutir com os participantes uma série de preconceitos dos quais os povos indígenas ainda são vítimas no Brasil e também para discutir categorias tais como etnocentrismo, civilização e cultura. Até hoje, lembro-me de que, ao final da oficina, uma das participantes veio me dizer do espanto que teve ao me ver ainda jovem e, segundo ela, com tantas histórias para contar. De fato, sempre notei que levar para a sala de aula experiências vividas fora do âmbito escolar constitui um diferencial para os alunos e geralmente facilita a compreensão e a interação nas discussões. Ocorre que, se todos nós temos experiências múltiplas vividas fora da escola, nota-se que nem todos os educadores conseguem estabelecer relações entre o que se vive fora e o que se discute dentro da escola. Uma das disciplinas que mais me marcou no doutorado foi A História da Sexualidade de Michel Foucault, ministrada pelo professor Ernani Chaves. As lições que aprendi sobre o mestre francês foram ines- A VIAGEM DO CONHECIMENTO

la aventura sociologica

Embed Size (px)

DESCRIPTION

antropología e sociología

Citation preview

  • Mrcio Couto Henrique**

    SER EDUCADOR:

    UMA EXPERINCIA

    MODIFICADORA DE SI*

    PO

    NT

    O

    DE

    V

    IST

    A

    m agosto de 2004, ministrei oficina intitulada Afinal, O que SoSociedades Indgenas? juntamente com Jane Felipe Beltro, noE

    Encontro Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia(SBPC), realizado em Belm do Par. Em meio s discusses, narreiaos participantes algumas de minhas experincias de contato com po-vos indgenas poca em que trabalhei como Chefe do Servio de Edu-cao na Fundao Nacional do ndio (Funai), na AdministraoRegional de Belm. Basicamente, utilizei essas experincias para dis-cutir com os participantes uma srie de preconceitos dos quais os povosindgenas ainda so vtimas no Brasil e tambm para discutir categoriastais como etnocentrismo, civilizao e cultura. At hoje, lembro-me deque, ao final da oficina, uma das participantes veio me dizer do espantoque teve ao me ver ainda jovem e, segundo ela, com tantas histriaspara contar.

    De fato, sempre notei que levar para a sala de aula experinciasvividas fora do mbito escolar constitui um diferencial para os alunos egeralmente facilita a compreenso e a interao nas discusses. Ocorreque, se todos ns temos experincias mltiplas vividas fora da escola,nota-se que nem todos os educadores conseguem estabelecer relaesentre o que se vive fora e o que se discute dentro da escola.

    Uma das disciplinas que mais me marcou no doutorado foi AHistria da Sexualidade de Michel Foucault, ministrada pelo professorErnani Chaves. As lies que aprendi sobre o mestre francs foram ines-

    A VIAGEM DO CONHECIMENTO

  • 190 , Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ

    quecveis, mas gostaria aqui de fazer meno a uma viagem que fiznessa disciplina, mesmo sem ter sado da sala de aula. Na introduo dovolume 2 da sua Histria da Sexualidade, Foucault (1984) explica aosleitores as modificaes que teve que fazer no percurso de sua pesqui-sa. Diz ele que todos os seus esforos de pesquisa so feitos no sentidode [...] mudar-se a maneira de ver, para modificar o horizonte daquiloque se conhece e para tentar distanciar-se um pouco (FOUCAULT,1984, p. 15). Esse distanciamento me parece ser a chave da questo! necessrio distanciar-se de si, das coisas que estamos acostumados aver diariamente e, mais precisamente, necessrio distanciar-se damaneira como estamos habituados a ver as coisas que vemos diaria-mente. Esse ato de tomar distncia das coisas Foucault (1984, p. 15)compara com uma viagem e, para ele, a [...] viagem rejuvenesce ascoisas e envelhece a relao consigo mesmo. Em outras palavras, quan-do viajo, conheo outros mundos, outras formas de agir e de pensar,outras concepes do que significa a felicidade, a vida, a morte etc. Porisso, a viagem rejuvenesce as coisas. Por outro lado, o conhecimentodesses outros faz com que eu adquira mais experincia, com queamadurea minhas prprias ideias, da porque a viagem envelhece arelao consigo. J no consigo mais olhar para as coisas como olhavaantes, pois agora sei que existem outras respostas possveis para asmesmas questes que enfrento no dia a dia. nesse sentido que Foucaultdiz que a viagem uma experincia modificadora de si.

    O leitor mais acostumado com as discusses antropolgicas dirque essas reflexes do filsofo francs sobre o distanciamento so re-correntes na Antropologia desde o incio desta cincia. verdade! Masconsiderando que a atitude antropolgica no exclusividade dosantroplogos, no vejo problema em iniciar a discusso sobre odistanciamento recorrendo a um filsofo, ainda mais tendo sido Foucaultterico fundamental para a renovao de temticas de pesquisa em di-versas reas das chamadas Cincias Humanas.

    Mas o que essa discusso toda tem a ver com o trabalho do pro-fessor em sala de aula? Tudo! Digo isso porque, se muitas vezes noconseguimos utilizar nossas prprias experincias em sala de aula, porque no conseguimos olhar para as coisas de maneira diferente daque estamos acostumados. Todos os dias fazemos viagens dentro oufora de casa, mas no permitimos que elas constituam uma experinciamodificadora de ns mesmos! Por isso, muitas vezes no conseguimosperceber que o mundo nossa volta que tambm, em certo sentido,

  • 191, Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ

    o mundo de nossos alunos nos oferece inmeras possibilidades derecursos que podem ser levados para dentro das salas de aula.

    Numa outra situao, lembro que ministrava a disciplina Meto-dologia da Histria em determinada faculdade em Belm e precisavaexplicar aos alunos a noo de estranhamento, que seria o equivalen-te noo de distanciamento utilizada por Foucault. Depois de discu-tir o texto Ritual do Corpo entre os Nacirema, em que o antroplogoHorace Minner (1956) realiza interessante exerccio de estranhamentoda sociedade norte-americana, olhando-a de maneira distanciada, pediaos alunos que fizessem seu prprio exerccio de estranhamento, a par-tir da observao de algo que lhes fosse familiar. Para meu espanto,nenhum aluno das duas turmas em que ministrava essa disciplina apre-sentou qualquer exerccio na data marcada. Para facilitar o trabalho,dando-lhes ideia de como a atividade poderia ser desenvolvida, haviafeito meu prprio exerccio de estranhamento para dividir com os alu-nos. Meu esforo, a partir da leitura do conto O Espelho, de Machadode Assis (1996), resultou no pequeno texto abaixo.

    A CAIXA DE SONHOS

    No intrigante conto O Espelho, o romancista Machado de Assisps na boca do personagem Jacobina uma interessante reflexosobre a natureza da alma. Em primeiro lugar, dizia Jacobina,no h uma s alma, h duas. Cada criatura humana traz duasalmas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olhade fora para dentro. Esta ltima a que o personagem chama denossa alma exterior. H casos em que a alma exterior pode serum esprito, um fluido, um homem, um livro, uma mquina, umpar de botas. Tal como a primeira alma, o ofcio dessa segunda transmitir a vida. Estas duas almas completam o homem. Aqueleque perde uma delas, perde metade da existncia. H mesmo ca-sos em que a perda da alma exterior implica a da existncia in-teira. Em outras palavras, a perda da alma exterior, nesses casos,implica na morte do perdedor. No caso de Jacobina, sua almaexterior era o ttulo de alferes da Guarda Nacional.Gostaria de refletir sobre a alma exterior de grande parte daspessoas do mundo dito civilizado: a Caixa de Sonhos. Quandode seu surgimento, ela s era acessvel aos muito ricos, mas des-de sempre se constituiu num objeto de desejo de todos, pobres ou

  • 192 , Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ

    ricos. A razo de todo esse encantamento com a Caixa devidaao fato de que ela tem o poder mgico de refletir imagens dequaisquer coisas, o que causa um verdadeiro fascnio nas pesso-as. No incio, as imagens refletidas na Caixa eram em preto ebranco, mas hoje elas so a cores, o que s aumentou seu fasc-nio. Tal como as pessoas, coloridos tambm so os sonhos, fan-tasias e ideologias que a Caixa reproduz, sempre com ar deveracidade.Atualmente, pode-se ver que algumas casas tm vrias Caixasde Sonhos, mas nem sempre foi assim. Antes, quem no tinhauma Caixa sequer, assistia as imagens na casa de quem tinha, oque conferia ao dono da casa certo status. Hoje elas tambm sode tamanhos diferentes e bem mais sofisticadas, at mesmo per-mitindo s pessoas escolherem os programas que alimentaroseus sonhos e fantasias. Parece mesmo existir uma relao entr eo tamanho da fantasia e o tamanho da Caixa. Em algumas situa-es, quanto maior a Caixa, parece que maior o status ou, pelomenos, a sensao de bem estar do dono. Mas em outras, o ta-manho da Caixa vai exatamente na direo contrria: quantomenor ela for, mais orgulhoso ficar o dono, ostentando-a napalma da mo, como se carregasse a prpria alma. Os que nopodem carregar a alma nas mos, olham de soslaio.Causa certo espanto perceber que algumas pessoas passam porprivaes a fim de acumularem dinheiro para compr-la. Vriasoutras situaes nos indicam o fascnio que a Caixa de Sonhosexerce sobre as pessoas. Elas so objeto de desejo de ladres; bastante comum tambm vermos casais em processo de separa-o brigando, muitas vezes publicamente, pela posse da Caixade Sonhos; em algumas casas, os filhos tm Caixa em seu pr-prio quarto; em algumas famlias, h briga para assistir a Caixaem determinados horrios; em outras, todos assistem a Caixajuntos.J houve quem me dissesse que em sua casa, a briga maior para ver a quem caber o controle da Caixa de Sonhos, poisatualmente, j possvel acessar a Caixa distncia, bastandoter em mos um acessrio que, direcionado para ela, faz comque as imagens apaream automaticamente, sendo possvel defi-nir sries de imagens preferenciais. Ou seja, quem tem o acess-rio em mos, tem o controle da Caixa de Sonhos, o que no deixa

  • 193, Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ

    de significar um controle sobre todos os que esto diante dela.Eis o motivo das brigas! Certos programas conseguem reunirmilhares de pessoas diante das Caixas, em clima de festa, comdireito a bebida, comida...Pessoas que aparecem na Caixa, muito embora apenas repre-sentando papis, muitas vezes so tratadas como deuses e noconseguem andar nas ruas sem serem assediadas, correndo orisco de terem suas roupas rasgadas, seus cabelos arrancadosou serem beijadas mesmo contra sua vontade. E tais pessoas de-vem corresponder a esse assdio, mantendo o riso, a simpatia,muito embora tais caractersticas s lhes sejam peculiares naCaixa de Sonhos.A Caixa de Sonhos lana modas, costumes, modifica a lingua-gem das pessoas. Os mais encantados chegam a pautar sua vidaou seu comportamento em funo do que a Caixa apresenta comovalor. Cozinheiros e cozinheiras, empregadas domsticas, mui-tas vezes preparam os alimentos nos intervalos das sries de ima-gens veiculadas na Caixa.Mas nem todos se entregam Caixa de Sonhos de corpo e alma.Muitos acusam-na de desestruturar as famlias, corromper osvalores; alguns pais probem seus filhos de lig-la; ouve-se atreaes Caixa de Sonhos em msicas com letras agressivasonde se diz que a Caixa me deixou burro, muito burro, demais.Agora todas as coisas que eu penso me parecem iguais. Nada,no entanto, parece conseguir arranhar a imagem da Caixa. Defato, parece que, assim como no conto de Machado de Assis ottulo de alferes eliminou o homem, na sociedade ocidental ditacivilizada a Caixa de Sonhos eliminou de muitos de ns uma par-te considervel de humanidade.A alma exterior que antes era o sorriso dos filhos, o olharterno dos pais, o beijo da namorada, o afago do marido, o poe-ma para a mulher amada foi eliminada pela Caixa de Sonhos.

    DE VOLTA ESCOLA

    O fato de nenhum dos meus alunos ter conseguido realizar o exer-ccio, mesmo depois de ler o texto de Horace Minner e o meu prprio,alm de me deixar bastante frustrado, fez-me refletir ainda mais sobreessa dificuldade que no exclusiva daquele grupo de alunos. De certa

  • 194 , Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ

    maneira, esse tipo de estranhamento requer de ns educadores postu-ra semelhante a dos antroplogos. Roberto Cardoso de Oliveira (1996,p. 13-17), importante antroplogo brasileiro, afirmou que os trs mo-mentos ou etapas da apreenso dos fenmenos sociais feita pelo an-troplogo so o olhar, o ouvir e o escrever. Com relao ao olhar,o autor diz que nossa maneira de ver a realidade influencia previa-mente o modo como dirigimos nosso olhar para o objeto de nossapesquisa. Algo semelhante ocorre quanto ao ouvir, pois a teoria so-cial que adquirimos durante nossa formao acadmica tambm pr-estrutura o nosso olhar. no momento de escrever que, de fato, oantroplogo cumpre sua mais alta funo cognitiva, iniciando propri-amente o processo de textualizao dos fenmenos scioculturais ob-servados no campo.

    Talvez esteja faltando a ns educadores exatamente esse tipo deexerccio, de (re)aprender a olhar, ouvir e, sobretudo, escrever. Assim,todos os dias temos acesso a experincias nossas ou de outras pessoasque poderiam ser transformadas em algo que pudesse ser trabalhado emsala de aula, mas nossos olhos e ouvidos esto to massacrados pelocotidiano que mal conseguimos refletir sobre nossa realidade a pontode a transformarmos em texto. Se considerarmos como Cardoso de Oli-veira (1996) que o ato de escrever um ato igualmente cognitivo,ao no escrever estamos abrindo mo da possibilidade de exercitar nos-sa capacidade de elaborar descries e narrativas, aprofundar nossasanlises e consolidar nossos argumentos.

    Em setembro de 2005, tive a oportunidade de exercitar essasideias com um grupo de alunos do Curso de Especializao em Cinciase Matemtica, em Abaetetuba, Par, promovido pelo Educimat/UFPA1.A disciplina era Antropologia da Educao e os alunos eram graduadosem Matemtica, atuando como professores nos municpios paraensesde Abaetetuba, Limoeiro do Ajuru, Igarap Miri, Concrdia do Par,Bujaru e Moju. Depois de discusso mais terica e de delimitar os cui-dados que devemos ter com nossa postura em campo, elaboramos rotei-ro bsico de perguntas que deveriam ser feitas aos informantes ouinterlocutores, orientei os alunos a realizarem exerccio de trabalho decampo em que deveriam identificar os saberes matemticos nos seguin-tes lugares: na oficina de produo de brinquedos de miriti2, feira doaa3, marcenaria e serraria. A turma foi dividida em grupos, que foramliberados durante uma manh para realizar a tarefa. tarde, os alunosdeveriam apresentar o resultado do trabalho de campo, via atividade

  • 195, Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ

    que evidenciasse como seria possvel levar o conhecimento adquiridona pesquisa para a sala de aula.

    A apresentao dos trabalhos tarde mostrou que a atividade foibem sucedida e que os grupos se empenharam em executar a tarefa commuito afinco. Todos apresentaram sua experincia de campo, sendo quemuitos fizeram questo de demonstrar satisfao por estarem realizan-do exerccio de pesquisa de campo pela primeira vez. Foi consenso apercepo de que este tipo de trabalho bastante acessvel aos profes-sores e que eles podem dinamizar suas aulas dessa forma, inclusiveenvolvendo os alunos. No relatrio da pesquisa de campo apresentadopelo grupo que visitou uma oficina de produo de miriti, os alunosconcluram que

    [o] arteso estudou at a 5 srie e afirma ter sido um bom alunode Matemtica, sendo esta disciplina uma das suas favoritas.Para ele os conhecimentos matemticos obtidos na escola o aju-daram bastante na produo dos artesanatos de miriti nos se-guintes aspectos: na proporcionalidade, atravs dela possvelsaber a quantidade de matria-prima necessria para produzirdeterminada quantia de brinquedos; na aritmtica, atravs damultiplicao e diviso do nmero de peas necessrias para semontar uma determinada quantidade de produtos; na equao,atravs do processo de produo envolvendo a quantidade deprodutos, o tempo para produzi-los e o preo para venda dosmesmos (PINHEIRO, 2005).

    Na apresentao das atividades que evidenciassem como seriapossvel levar o conhecimento adquirido na pesquisa para a sala de aulaos alunos foram bastante criativos, explorando ao mximo as possibili-dades de exerccio na matemtica, inclusive ensejando debates em tor-no de questes especficas da rea, deixando o professor da disciplinamuitas vezes viajando, em sentido bem distinto do proposto porFoucault...

    Tambm em Abaetetuba, ao ministrar Antropologia da Educaopara turma de professores que trabalham com Sries Iniciais, pedi aalguns alunos que tentassem transformar em texto alguma das muitasexperincias interessantes que eles narravam nas aulas. A aluna MarilyFernandes de Souza (2005), do municpio de Concrdia do Par, acei-tou o desafio e produziu o texto a seguir.

  • 196 , Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ

    Uma experincia inusitada4

    Essa histria se passou em meados de 1994, em perodo eleitoral nointerior do Maranho, no municpio de Montes Altos, numa aldeiaKrikati.Nessa poca morava em Belm e, a convite de uma cunhada que esta-va candidata a Deputada Estadual no Maranho, fomos eu, meu ex-marido e trs casais de amigos participar do comcio na aldeia dosndios Krikati, no mesmo Estado. Por solicitao de minha cunhada,seu irmo a ajudaria em sua campanha poltica levando um trio deforr para animar seu comcio. Bom, importante lembrar que aoaceitarmos o convite nos organizamos de forma a no perder um smomento na aldeia: filmadora, mquina fotogrfica e muita cerveja,seria uma grande festa, afinal iramos conhecer ndios de fato.Viajamos aproximadamente 10h. Claro! amos parando, parecamosrealmente turistas! Ao chegarmos em Montes Altos tomamos banho eseguimos numa estrada de cho perigosa e cansativa, estvamos an-siosas para conhecermos o objeto da nossa aventura, os ndios. Bem,finalmente avistamos a aldeia, nossos olhos brilhavam, nunca nenhumde ns havia estado numa aldeia indgena. Ao adentrarmos, nos ocor-reu o primeiro estranhamento: antenas parablicas, caminhes, ca-minhonetes, casas ao invs de ocas, enfim, parecia uma pequenacidade. Havia milhares de ndios, e logo percebemos que no vera-mos ndios pelados ou com as vestimentas tpicas que nos acostuma-mos a ver nos livros didticos.Mas o melhor, ou pior, ainda estava por vir. Quando estacionamosos carros, minha cunhada logo apareceu, e pediu que o trio de forrcomeasse logo o show, pois todos estavam ansiosos para comear.Ao iniciar o show os ndios comearam a zombar e gritavamMastruz com leite!, Mastruz com leite! (Banda de forrrenomada naquela poca), e no conseguamos entender o motivo.Logo em seguida um ndio se aproximou de nosso grupo e pediu queum de ns se dirigisse at o cacique da aldeia. L o cacique expli-cou que eles haviam sido enganados, pois minha cunhada haviaprometido uma banda de forr e no um sanfoneiro, um zabumbeiroe um tringulo. Avisou que ficaramos todos presos e um de nspoderia sair para buscar a banda de forr. Entramos todos em de-sespero, ouvamos eles dizerem que iam quebrar os carros, haviarevolta em suas vozes.

  • 197, Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ

    Descobrimos com minha cunhada que funcionrios do INCRA j ha-viam sido presos por vrios dias, amarrados a troncos que inclusiveestavam bem visveis a nossos olhos, e eram alimentados com sanguede um cachorro que um dos funcionrios do INCRA havia matado.Da em diante estenderam-se as negociaes, alguns ndios universi-trios nos ajudaram, amenizando a problemtica.O dia j estava amanhecendo quando resolveram o impasse nos li-bertando, porm minha cunhada deveria levar em uma data determi-nada por eles uma banda maior, o que realmente aconteceu depois.Mas, claro, s ela foi!Foi uma experincia e tanto! No incio ficamos muito revoltados, en-tretanto, percebemos que os ndios ainda possuem valores muito maislapidados que os nossos. E que o homem branco querendo semprelevar vantagem em tudo, acaba rompendo com tais valores ferindoessa relao entr e ndios e brancos. Hoje, principalmente aps tertido essa experincia e de ter cursado a disciplina Antropologia daEducao, tenho concepes acerca da cultura indgena completa-mente diferente daquelas que possua, resultado de uma educaotradicional, carregada de preconceitos.Marily Fernandes de SouzaConcrdia do Par, 19 de maio de 2006.

    Note-se que a professora Marily Fernandes de Souza construiu belae rica narrativa valendo-se de uma experincia inusitada ou uma belaviagem, nos termos de Foucault. Ao aceitar o desafio de textualizar essaexperincia, transformou-a numa experincia modificadora de si mesma e,ao mesmo tempo, num ato cognitivo. De objetos de nossa aventura, osndios Krikati passaram condio de sujeitos de sua prpria histria,demonstrando forma peculiar de apropriao dos cdigos de nossa cultura,revelando dinamismo cultural que escapava ao olhar at ento precon-ceituoso da professora. Com texto produzido por ela, enriquecido comelementos de sua experincia de vida, a professora Marily Fernandes deSouza tem em mos instrumento pedaggico que lhe abre a possibilidadede discutir com seus prprios alunos noes tais como preconceito,etnocentrismo, respeito pelas diferenas, identidade cultural, entre ou-tros. Ainda mais se considerarmos que, muito possivelmente, seus alunoscompartilham de muitos dos esteretipos que ela demonstrava ter a res-peito dos ndios, esperando encontr-los pelados ou com as vestimentastpicas que nos acostumamos a ver nos livros didticos.

  • 198 , Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ

    OS NDIOS E A CARTA DE CAMINHA S AVESSAS

    Outra experincia bastante satisfatria que tive foi durante cursode Etno-Histria que ministrei para professores indgenas Temb, Kaapore Guajajara, em Santa Ins, Maranho, organizado pelo ConselhoIndigenista Missionrio (Cimi) e Funai, no ano de 2000. Em uma dasatividades que programei, fizemos a leitura e discusso da famosa Cartade Pero Vaz de Caminha. Depois disso, solicitei aos ndios que elaboras-sem carta em grupo, com a viso (imaginria) dos ndios sobre os primei-ros europeus que chegaram ao Brasil. O destinatrio da carta deveria sero chefe ou cacique maior da aldeia. Seria uma espcie de Carta de Ca-minha s avessas. O resultado deixaria meus alunos de Metodologia daHistria com inveja... vejamos alguns exemplos5:

    CARTA 1: Aldeia Morro Branco, 22 de abril de 1500Il.mo. Cacique,Disponho deste presente documento para comunicar-lhe que te-mos invaso de pessoas estranhas em nossa terra. So pessoasaltas, cheias de plos pelo rosto, peito e pernas. Seus ps so co-bertos de um material que parece couro das caas que comemos,possuem canoas com muitos detalhes e so muito grandes.No conseguimos compreender suas falas, nem eles entendem nossalngua. Usam objetos brilhosos nos pescoos que no sabemos oque , so muita gente nas canoas grandes. Parece-nos que ca-ram do cu, so muito diferente que ns. Usam tambm um objetosobre suas peles. No comem a nossa comida e nem ns consegui-mos comer o que eles comem. Diante desse fato solicito a presen-a de todos os parentes para v-los e experimentarmos a carnedestes seres que so gordos.Atenciosamente,Sebastio Bento de S. Lima

    CARTA 2: O primeiro encontro com os Karayu no ceculo XVIIandando numa canoa Eu e um companheiro. fazendo uma pesca-ria de flecha. direpente fumos soprendido pro umas pessoas quenis no conhecia eles. tinham as pelis mais bm clara de que anossa. os cabelos louros. e as comidas deles ram totalmnte dife-rente do nossa. elas no tm o meimos sabor do quanto osmuquidado qu fazemos na nosa aldeia. eles mostraram um

  • 199, Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ

    arapurra qu e diferente dos nossos, que temos aqui na nossa ter-ra. mostraram tambm um muntm qu tambm diferente do qunois conhecemos. deu ate para faze meido.mostran tambm um parauah qu este igual o nossos daqui. soas penas diferente, mais tudo isto foi dificio de ns ci entende bmproque ns no tinha o meimos tronco liguista. mais atraveis doacnos comvesamos um pouco. mas ditudo o qu o capito delistm de bonito um colar qu so capito pode uza. Eu ainda pdirpara ele mais no mi entendeu.aulado deli tinha uma coisa to bonita, qu so capito pode uza.mais um delis tinham-se um colar de frutinhas branca, logo Eulipdir para faz uma brasadeira. ele mi deu. Mais ai Eu pesebirqu no era frutinha. lidei de volta.Ass Carlos Kaapor

    CARTA 3: Santa Ins, 27 de janeiro de 2000Carta ao leitor sobre a chegada dos Europeus no Brasil.No incio, ou seja, como dizem antes do descobrimento do talBrasil, ns indgenas vivamos com total liberdade, no haviaperseguio, opresso e nem massacre. Em 1500, precisamen-te 22 de abril aqui chegaram os portugueses vindo de um lugarbem distante chamado Portugal. Que com certeza jamais sab-amos a existncia desse pas. A caravela que aqui chegou eracomandado por senhor chamado, Pedro Alvares Cabral, o gran-de mentiroso, com ele veio um escrivo chamado Pero Vaz deCaminho, que tinha a misso de registrar tudo. Inclusive sobrens, indgenas. Chegaram sem pedir nenhuma permisso a ns,a terra que servia somente para caar desenvolver nossas ati-vidades culturais, os rios eram para pescar, as caas serviamde alimentos, nos tomaram tudo. Aps essa chegada deles aquipara nos mudou tudo. apartir da ento no tnhamos maissocego. Comearam nos matar por que nos no queriamos fa-zer o que eles queriam com a gente, comearam tambm nosescravisar e hoje estamos vivos graas a fora de resistnciaque temos, so 500 anos de luta e umilhao, mas estamos naluta para reverter esse quadro. Queremos ser reconhecidos quesomos pessoas diferentes que os nossos conhecimentos sejamrespeitados por todos.Zezico Rodrigues Guajajara.

  • 200 , Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ

    Mesmo com as dificuldades apresentadas no domnio da lnguaportuguesa, posto que muitas vezes mais acostumados com o relato oral eem sua prpria lngua, os professores indgenas aceitaram e enfrentaramo desafio de textualizar sua compreenso dos primeiros encontros edesencontros entre ndios e no-ndios no Brasil, transformando o exerc-cio proposto, de fato, num ato cognitivo. Outra experincia interessantenesse curso foi a elaborao de calendrios a partir da realidade das aldei-as, substituindo o nome convencional dos meses pelo aspecto que identi-fica o respectivo ms em cada aldeia (fenmenos sociais ou da natureza).Por exemplo: substituir janeiro por milho, dezembro por festa, fevereiropor rio cheio etc. Essa atividade, comum em escolas indgenas espalha-das pelo Brasil caberia a muitos municpios brasileiros, que muitas vezestm que se adaptar a calendrio padronizado imposto pelas secretarias deeducao, distante das realidades locais, geralmente marcadas pelasazonalidade, em que as referncias so o tempo do aa, do milho, otempo da cheia ou da seca e no janeiro e fevereiro, por exemplo.

    Figura 1: Carta de Caminha s avessas, escritapelo professor indgena Carlos Kaapor,janeiro de 2000.

  • 201, Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ

    Infelizmente, no tive como acompanhar os desdobramentos des-sas experincias no trabalho desses professores, mas a atitude deles mefaz acreditar que, se no ampliaram essas experincias, pelo menosvisualizaram novas possibilidades de encaminhar o trabalho com seusalunos. De todo modo, a atitude dos professores indgenas, em sua dispo-sio cognitiva antropofgica, sempre abertos para tudo devorar e atri-buir novos significados (v-los e experimentarmos a carne destes seresque so gordos, nas palavras do Guajajara Sebastio Lima), serve comoindicativo da necessidade dessa disposio dialgica que precisamos tercomo educadores, estando sempre dispostos a enxergar as coisas de ma-neira diferente, a fim de que, junto com nossos alunos, possamos alcan-ar uma compreenso maior do mundo em que vivemos.

    Notas

    1 O Programa Educimat est localizado no Ncleo Pedaggico de Apoio ao Desenvol-vimento Cientfico (NPADC)/UFPA unidade acadmica de integrao na produode conhecimentos e em aes de educao continuada de professores de Cincias eMatemtica, em todos os nveis de ensino, inclusive no de ps-graduao lato e strictosensu. Trabalha na formao de tutores em nvel de especializao lato sensu e produzcursos distncia para a educao distncia , com produo de materiais didticospara o ensino e a aprendizagem nessa rea.

    2 O miriti (mauritia setigera), da famlia das palmceas, a palmeira utilizada pelos osartesos de Abaetetuba para a produo dos famosos brinquedos de miriti, recriando,em miniatura, a fauna e a flora da Amaznia, alm de aspectos do imaginrio amaz-nico. Mas veem-se tambm miniaturas de embarcaes, objetos do trabalho cotidia-no, avies, figuras humanas e vrios outros. Os brinquedos de miriti foram um doselementos considerados essenciais no Crio de Nazar, de Belm do Par, sendo alvode registro no Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional como PatrimnioCultural Imaterial Brasileiro. Os outros elementos considerados essenciais so a Ima-gem Original encontrada por Plcido, a Imagem Peregrina, a Trasladao, a ProcissoPrincipal do Crio, a Berlinda, a Corda, o Almoo do Crio, o Arraial, as Alegorias e oRecrio. Cf. Dossi Iphan (2006, p. 74).

    3 O aa ( euterpe oleracea) uma palmeira com at 30m de altura, folhas pinadas eflores ssseis. O fruto uma baga contendo amndoa pequena e dura, chamado aa;fornece o refresco de aa, de sabor muito apreciado nas regies produtoras. Ocorredesde a Amaznia at a Bahia. Cf. Larousse Cultural (1988, p.6).

    4 Agradeo a gentileza de Marily Fernandes de Souza pelo envio de seu relato de expe-rincia e pela permisso para utilizao neste artigo.

    5 Conservei a grafia original das cartas, escritas pelos prprios ndios.

  • 202 , Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ

    Referncias

    CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O trabalho do antroplogo: olhar, ouvir, escrever. Revistade Antropologia, v. 39, n. 1, p. 13-17, 1996.CARTA DE CARLOS KAAPOR ao cacique de sua aldeia, Santa Ins, Maranho, janeirode 2000. Acervo pessoal de Mrcio Couto Henrique.CARTA DE SEBASTIO BENTO de S. Lima ao cacique de sua aldeia, Santa Ins,Maranho, janeiro de 2000. Acervo pessoal de Mrcio Couto Henrique.CARTA DE ZEZICO RODRIGUES Guajajara ao cacique de sua aldeia, Santa Ins,Maranho, janeiro de 2000. Acervo pessoal de Mrcio Couto Henrique.DOSSI IPHAN. Crio de Nazar. Rio de Janeiro: Ed. do Iphan, 2006.FOUCAULT, M. Histria da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal,1984.LAROUSSE CULTURAL. Brasil A/Z. So Paulo: Universo, 1988.MACHADO DE ASSIS, J. M. O espelho. In: MACHADO DE ASSIS, J. M. Contos. Riode Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 21-35.MINNER, H. O ritual do corpo entre os Sonacirema? Traduo de Eduardo Viveiros deCastro. American Anthropologist, v. 58, p. 503-507,1956.PINHEIRO, A. R. et al. Procurando a matemtica onde ela est: no cotidiano das pessoas.Relatrio de pesquisa de campo da disciplina Antropologia da Educao, ministrada porMrcio Couto Henrique no Curso de Especializao para Formao de Tutores na ` rea deCincias e Matemtica, turma de Matemtica. Abaetetuba, Par, setembro de 2005, mimeo.Acervo pessoal de Mrcio Couto Henrique.SOUZA, M. F. de. Uma experincia inusitada. Relato de experincia feito na disciplinaAntropologia da Educao, ministrada por Mrcio Couto Henrique no Curso de Especia-lizao para Formao de Tutores na `rea de Cincias e Matemtica, turma de SriesIniciais. Abaetetuba, Par, outubro de 2005, mimeo. Acervo pessoal de Mrcio CoutoHenrique.

    * Artigo destinado ao Curso Presencial de Formao Continuada de Professores em EducaoIndgena, organizado pelo Educimat: Formao, Tecnologia e Prestao de Servios em Educaoem Cincias e Matemticas, integrante da Rede Nacional de Formao Continuada de Professoresde Educao Bsica (MEC/SEIF/UFPA). Belm: Educimat, 2006.

    ** Doutor em Cincias Sociais/Antropologia pela Universidade Federal do Par (UFPA). Professorna Faculdade de Histria e no Programa de Ps-G raduao em Histria Social da Amaznia.