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La Musique Savante Manque a Notre Désir (Rimbaud, Illuminations) - Músicas Populares E Músicas Eruditas: Uma Distinção Inoperante? (Parte 01) por Didier Francfort Introdução Num ambiente acadêmico onde ainda ecoam as sagradas escrituras da Escola de Frankfurt, uma abordagem do fenômeno musical numa sociedade de massas pela história cultural traz novos ares para o dogmatismo que tem dominado o ensino superior de música, tanto nos conservatórios quanto nos departamentos de música das universidades pelo mundo, graças à militância germânica que remonta a II Escola de Viena, ou mesmo antes, com Hanslick e Schenker. Sem, é claro, querer resolver todos os problemas, mas dando uma nova luz ao que antes encontrava-se "debaixo do tapete", varrido sumariamente por aqueles que, ao invés de tentar compreender e redimensionar a compreensão da situação, têm preferido ignorar o fenômeno da cultura de massas e tentar forçar a aplicação de uma filosofia da música de índole aristocrática, baseada numa sociedade de baixo consumo, no seio de uma sociedade pós-industrial. Conheci Didier Francfort através do violoncelista Jean de Spengler, do Quarteto Stanislas, em 2007, quando eu era curador de música do CCSP (Centro Cultural São Paulo). A partir dali, preparamos juntos uma programação para o ano da França no Brasil (2009) que incluiu atividades no Brasil e na França. Além dos concertos e mesas-redondas, apresentei uma comunicação na Sala Poirel, em Nancy, onde tentei explicar aos franceses um pouco da circulação da música europeia no Brasil, baseado na ideia de que foram alguns momentos isolados em nossa história que condições favoráveis tornaram possível tal circulação. Essa minha comunicação foi publicada em português nesta revista eletrônica [3] , em parceria com Ana Carla Vannucchi (CUBM) [4] , com as devidas adaptações. Os preparativos durante ano de 2008 coincidiram com meu ingresso como docente na USP de Ribeirão Preto e Didier generosamente me enviou este trabalho apresentado no colóquio fundador da Sociedade Internacional de História Cultural, em Gent, em agosto daquele ano, como "documento de circulação restrita", já que ainda não havia perspectiva para sua publicação. Minha admiração por suas ideias

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  • La Musique Savante Manque a Notre Dsir (Rimbaud, Illuminations) -

    Msicas Populares E Msicas Eruditas: Uma Distino Inoperante? (Parte 01)

    por Didier Francfort

    Introduo

    Num ambiente acadmico onde ainda ecoam as sagradas

    escrituras da Escola de Frankfurt, uma abordagem do fenmeno musical numa

    sociedade de massas pela histria cultural traz novos ares para o dogmatismo que

    tem dominado o ensino superior de msica, tanto nos conservatrios quanto nos

    departamentos de msica das universidades pelo mundo, graas militncia

    germnica que remonta a II Escola de Viena, ou mesmo antes, com Hanslick e

    Schenker. Sem, claro, querer resolver todos os problemas, mas dando uma nova

    luz ao que antes encontrava-se "debaixo do tapete", varrido sumariamente por

    aqueles que, ao invs de tentar compreender e redimensionar a compreenso da

    situao, tm preferido ignorar o fenmeno da cultura de massas e tentar forar a

    aplicao de uma filosofia da msica de ndole aristocrtica, baseada numa

    sociedade de baixo consumo, no seio de uma sociedade ps-industrial.

    Conheci Didier Francfort atravs do violoncelista Jean de Spengler,

    do Quarteto Stanislas, em 2007, quando eu era curador de msica do CCSP (Centro

    Cultural So Paulo). A partir dali, preparamos juntos uma programao para o ano

    da Frana no Brasil (2009) que incluiu atividades no Brasil e na Frana. Alm dos

    concertos e mesas-redondas, apresentei uma comunicao na Sala Poirel, em

    Nancy, onde tentei explicar aos franceses um pouco da circulao da msica

    europeia no Brasil, baseado na ideia de que foram alguns momentos isolados em

    nossa histria que condies favorveis tornaram possvel tal circulao. Essa

    minha comunicao foi publicada em portugus nesta revista eletrnica[3], em

    parceria com Ana Carla Vannucchi (CUBM) [4], com as devidas adaptaes. Os

    preparativos durante ano de 2008 coincidiram com meu ingresso como docente na

    USP de Ribeiro Preto e Didier generosamente me enviou este trabalho

    apresentado no colquio fundador da Sociedade Internacional de Histria Cultural,

    em Gent, em agosto daquele ano, como "documento de circulao restrita", j que

    ainda no havia perspectiva para sua publicao. Minha admirao por suas ideias

  • e a facilidade com que ele me recebeu como seu orientando de ps-doutoramento

    no ano letivo europeu 2012-13, graas a uma bolsa BPE/ Fapesp, s aumentaram

    nossa amizade. Aguardamos Didier para o VI Encontro de Musicologia da USP de

    Ribeiro Preto que ocorrer nos dias 16, 17 e 18 de outubro de 2014, no campus

    de Ribeiro Preto, e que tem no comit cientfico: Anas Flchet (Universit de

    Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines), Didier Francfort (Universit de Lorraine),

    Fernando Crespo Corvisier (FFCLRP/USP), Flvia Toni (IEB/USP), Isabel Nogueira

    (UFRGS), Luciano Zanatta (UFRGS), Marcos Cmara de Castro (FFCLRP/USP),

    Marisa Fonterrada (UNESP), Panagiota Anagnostou (IEP Bordeaux), Pedro Paulo

    Funari (UNICAMP) e Rose Hikiji (FFLCH/USP).

    Este encontro, que um dos produtos do meu ps-doutorado, tem

    como ttulo Indstria da Cultura, Esnobismo e Vanguarda: os novos avatares da

    composio musical contempornea (um encontro transdisciplinar), diz em sua

    chamada:

    Para pensar a composio musical hoje,

    preciso ter em conta os empecilhos da lgica comercial, sem

    perder de vista que a cultura de massa uma realidade

    histrica sobre a qual devemos atuar criticamente. At que

    ponto uma esttica que defenda valores aristocrticos para

    uma sociedade de baixo consumo pode fazer frente aos

    desafios de uma sociedade de consumo em massa? Ou at

    que ponto a racionalizao da cultura realizada pela

    vanguarda histrica, elimina o processo artstico de

    conhecimento - como experincia nica no tempo e no

    espao - substituindo-o pelo conhecimento abstrato de cunho

    cientfico, divorciado da qualidade da experincia vivida e

    introduzindo a supremacia da obra sobre o processo

    artstico? Por fim, como fundar um pensamento brasileiro

    face s importaes de escolhas culturais fora de contexto,

    realizadas tradicionalmente pelo esnobismo das classes

    dominantes consulares, nascidas do processo de colonizao?

    Argumento

  • Tendo em vista que a "lgica comercial ameaa toda produo

    independente, e que a concorrncia, longe de diversificar, homogeneza, e que a

    busca do produto omnibus - que tende a difundir, de preferncia no mesmo

    instante, o mesmo tipo de produto, visando lucro mximo e custo mnimo, a

    difuso comandando a produo" (BOURDIEU, 2001, p.77-78)[5] -, vemos que, para

    a indstria da cultura, a criao independente tem pouca ou nenhuma importncia;

    o esnobismo das salas de concerto impede a circulao de certas obras

    contemporneas; e a hegemonia dos dogmas da autoproclamada vanguarda no

    abre espaos para um trabalho criativo no-alinhado.

    Como dizem Georgina Born e David Hesmondalgh, "aps a

    segunda guerra mundial, sob a influncia substancial dos escritos pedaggicos de

    Schoenberg, foi a linhagem serialista do modernismo musical que se tornou

    dominante nas instituies e no ensino da msica nova. Os experimentos dos

    primeiros modernistas (...) com suas representaes de outros - fossem exticos,

    nacionalistas ou populistas - deram lugar a um formalismo cada vez mais abstrato,

    cientificista e racionalista baseado na negao total ou parcial da tonalidade (BORN

    & HESMONDALGH, 2000, p.15)[6].

    A esttica de Adorno, buscando fundar uma filosofia da msica

    contempornea, constri uma tica poltica que rejeita a intruso, na msica, das

    lgicas comerciais, tornando-se assim muito severo com as prticas musicais

    comerciais, levando s vezes confuso os leitores que buscavam na Escola de

    Frankfurt uma filosofia emancipadora que acompanhasse a evoluo de seu gosto

    musical (FRANCFORT, 2008).

    Como "experincia de multido, relativamente nova na histria"

    (GULLAR, 1978, p.114)[7], preciso identificar na cultura de massa "qual a ao

    cultural possvel que permita aos meios de massa transmitir valores culturais"

    (ECO,2004, p. 50)[8]. Se "a arte aristocrtica do passado correspondia a uma

    sociedade de baixo consumo", at que ponto devemos justificar a qualquer preo, a

    permanncia de uma viso esttica aristocrtica dentro da sociedade de massas?

    (GULLAR, 1978, pp.115 e 106-107).

    Para Tia DeNora, "em Adorno, a indstria da cultura muito

    rapidamente considerada como uma fora monoltica, rejeitando a priori seus

  • produtos como indiferenciados e igualmente sem valor. (...) Essa projeo cegou

    Adorno para a heterogeneidade presente nos vrios enclaves daquilo a que se

    referiu, talvez simplisticamente, como a indstria da msica` - setores de mdio

    alcance, redes, indivduos, grupos, e rivalidades atravs das quais ocorriam a

    produo. Para citar apenas um exemplo, o aparato conceitual de Adorno no lhe

    permite considerar como a indstria de gravao era multifacetada, composta de

    uma mistura de pequenas e independentes companhias e grandes conglomerados,

    e como a interao entre esses setores teriam implicaes no tipo de obra

    produzida (DeNORA, 2003, p.23)[9].

    A msica erudita contempornea floresceu sob a proteo estatal

    do mercado assistido (cf. MENGER, 2001, 2002 e 2009)[10] e da academia, e s

    vezes tambm na indstria de entretenimento (como nas trilhas de filmes de

    terror...). No errado dizer que a indstria da msica reposicionou os clssicos

    em um nicho maior e altamente lucrativo na cultura consumista contempornea; o

    que nos leva a concluir que no a msica clssica que est em crise, mas a

    maneira de pens-la (COOK, 1998)[11].

    A pluralidade de re-apropriaes atravs de tempos, lugares,

    gneros e estilos a que as msicas hoje esto expostas sugere que seu valor

    esttico no est dissociado de seu valor simblico. Sem qualquer reducionismo

    sociolgico, muito menos tentando descartar uma suposta "aura" da obra musical,

    v-se que as aes e estratgias individuais dos compositores contemporneos

    inserem-se na luta social por representao e classificao na prtica coletiva, no

    mercado reputacional e na pirmide de notoriedade (MENGER, 2002).

    Apesar de termos conscincia dessa pluralidade, cada tipo de

    msica vem junto com sua prpria maneira de pens-la, como se s existisse uma

    maneira de pens-la e s um tipo de msica para ser pensado. Essa tradio vem

    dos estudos acadmicos do sculo XIX europeu e reflete o estado da msica

    naquele sculo, criando assim uma falta de sintonia entre as msicas e como as

    pensamos. Longe de ser algo que simplesmente acontece, msica aquela que

    fazemos e o que fazemos dela; lembrando que qualquer abordagem musicolgica

    deva se ocupar de texto e de contexto, sem esquecer que "escrever sobre msica

    como danar sobre arquitetura" (COOK, 1998, p.vii-x).

  • Do ponto de vista de um pas "emergente" como o Brasil, uma das

    consequncias de qualquer processo de colonizao o surgimento, nas colnias,

    de uma classe dominante consular cuja caracterstica, entre outras, o esnobismo

    cultural. Esse esnobismo expresso principalmente nas escolhas culturais fora do

    contexto, ignorando as manifestaes locais, ou incluindo-as no conjunto das

    estratgias de urgncia em participar de um suposto universalismo cultural

    metropolitano.

    Uma crtica indstria da cultura, aos esnobismos e aos dogmas

    da vanguarda encontra seu primeiro obstculo em seus prprios campos, devido

    recusa de seus atores em promover uma reflexo crtica que venha questionar

    privilgios, interesses imediatos de dominao e vantagens nem sempre apenas

    simblicas.

    O Departamento de Msica da USP de Ribeiro Preto, o Ncleo de

    Pesquisa em Cincias da Performance (NAP-CIPEM) e o Laboratrio de Musicologia

    (LAMUS) convidam compositores, intrpretes e pesquisadores das mais diferentes

    reas do conhecimento, nos dias 16, 17 e 18 de outubro de 2014, no campus de

    Ribeiro Preto (SP), para discutirem juntos sobre os espaos musicais de criao,

    circulao e recepo, visando uma contribuio transdisciplinar que aponte para

    uma renovao da criao musical contempornea, j que a indstria da cultura, os

    esnobismos e a vanguarda histrica que tm sido o pano de fundo para as

    "transformaes durante sua breve existncia"(STRAVINSKY, 1940)[12].

    Dentro desse enfoque, a publicao da traduo deste trabalho

    gerador de toda essa reflexo mais que oportuna e, de certa maneira, abre os

    trabalhos do evento.

    Prof. Dr. Marcos Cmara de Castro

    Professor do Departamento de Msica da Faculdade de Filosofia,

    Cincias e Letras da USP de Ribeiro Preto e membro do NAP-CIPEM (Ncleo de

    Pesquisas em Cincias da Performance)

  • Comunicao apresentada no Colquio Fundador da Sociedade Interncional

    de Histria Cultural (Gent, Blgica), em agosto de 2008, por Didier

    Francfort

    Traduo de Marcos Cmara de Castro (NAP-CIPEM/ FFCLRP-USP)

    A oposio estabelecida entre msica popular e msica erudita faz

    remontar precisamente a meados do sculo XIX e choca-se, seja qual for a

    disciplina na qual se insira (musicologia, sociologia, histria cultural, filosofia...),

    com uma dificuldade de ordem semntica. Este divrcio , essas "linhas de

    demarcao" entre a alta cultura musical e os espetculos de msica "comercial"

    abertos a todos (S. -A. Leterrier[13]) se situam dentro de uma distino geral

    entre artes mais ou menos legtimas. O divrcio[14] no se refere somente a um

    par identificvel erudito/popular mas constitui uma oposio entre uma

    multiplicidade de etiquetas designando msicas mais ou menos identificveis. De

    um lado, as msicas comerciais , os modos efmeros obedientes s leis do

    mercado, a msica, arte menor, das canonetas, as msicas fceis, leves, o rock

    comercial, a main stream, a prtica de amadores, as festas de bairro, os grupos

    urbanos de jovens... Do outro lado, a Grande Msica , a msica sria, clssica e

    tambm contempornea, experimental, barroca, o free jazz, a msica institucional

    e dos conservatrios...

    O objeto deste trabalho no colocar em questo a histria do

    estabelecimento, no sculo XIX, de um abismo separando os gneros musicais,

    mas de estudar a evoluo dessa bi-partio das prticas e das sensibilidades

    musicais, confrontada com as culturas de massa e com a globalizao dos sculos

    XX e XXI. Para Sophie-Anne Leterrier, as fronteiras entre msica erudita e

    msica popular foram reforadas pelo desaparecimento de instituies de

    transferncia ento numerosas (msica religiosa e militar, orfees, fanfarras e

    harmonias) . O fenmeno certamente observvel, mas ser que no se poderia

    pretender, em torno das tcnicas de difuso de massa, estabelecer outras formas

    de transferncias, buscando principalmente aproveitar a popularidade de uma

    melodia ultra-conhecida para educar o povo dando-lhe acesso alta cultura

    musical? A difuso da msica clssica est tambm perfeitamente adaptada s

    modalidades comerciais e mediticas da arte de massa[15]. O que ns propomos

  • aqui voltar, num primero momento, aos critrios sociais e estticos de distino

    entre msicas populares e eruditas herdadas do sculo XIX, para procurar em

    seguida tudo que com o surgimento das culturas ou das artes de massa perturbou

    essas linhas de demarcao a partir do sculo XX. Fenmenos de porosidade, novas

    formas de transferncia impedem a classificao segundo uma linha simples de

    demarcao aquilo que revela o erudito e o popular. Chegaremos portanto a um

    questionamento dessa distino, no campo disciplinar da histria cultural. No se

    trata de dizer que vale-tudo , ou de abolir a esttica de valor, mas de considerar

    que para abordar a questo dos gostos musicais e das prticas, a oposio entre

    popular e erudito no mais operante na era da globalizao, tal como

    empregada depois do fim da Primeira Guerra mundial.

    1. DIFERENCIAO DA MSICA POPULAR E DA MSICA ERUDITA

    O fenmeno esttico e social que culmina com a bi-partio das

    prticas musicais no sculo XIX diz respeito ao mesmo tempo s prticas e s

    representaes do que a arte musical. No h linha de demarcao nica e

    permanecem generosos projetos de abolio do abismo e de ampla difuso dos

    benefcios da verdadeira msica que no desapareceram jamais. Desse modo,

    msicos progressistas como Charles Koechlin (1867-1957), desejam difundir

    uma verdadeira msica popular no comercial. A harmonizao coral de velhas

    melodias populares coloca uma linha de demarcao no entre o popular e o

    erudito, mas entre o que autenticamente popular e o que falsificado e

    comercial. Pode-se pensar, nesse sentido, na vontade de Bartk ou de Kodly de

    reencontrar a verdadeira msica popular e de no mais considerar, como fazia

    Liszt, as msicas de cervejarias, as orquestras ciganas tocando nas tabernas. A

    construo de uma categoria de msica popular um dos elementos de

    construo de um povo e de uma nao[16]. A descoberta de critrios de

    diferenciao das msicas no podem entretanto isolar o que revela gnero

    (popular ou erudito) do que revela outras propriedades (nacionais, religiosas...) ou

    outras funes divergentes (msica incidental, msica de salo...).

    Linhas de demarcao

    A msica considerada erudita se composta e executada por

    msicos profissionais. O sculo XIX fixa o estatuto profissional dos msicos e

  • legitima as instituies especficas de formao no modelo do conservatrio. Um

    compositor to popular como Verdi detesta ouvir suas obras interpretadas por

    msicos de rua. A diferenciao de d tambm pelo lugar onde a msica

    interpretada: os parques de diverso e os cabars ou as salas de concerto onde um

    ritual preciso se estabelece. A demarcao das msicas com certeza uma questo

    de lugar, de instituies de formao ou de lugar de prtica musical. As bandas

    militares e a rede orfenica[17] conservam possibilidades de conhecimento das rias

    de pera para um vasto pblico popular: na Itlia, trabalhadores frequentam os

    teatros lricos; na Inglaterra, mineiros tocam arranjos de Haendel nas fanfarras. A

    criao de um repertrio especificamente popular se opera ao mesmo

    tempo que a criao de um repertrio erudito. Assiste-se, retomando os

    termos clssicos de Eric Hobsbauwn e Terenece Ranger[18], inveno de uma

    dupla tradio. Com a diferenciao do espao, fixa-se de uma s vez as regras de

    etiqueta do concerto e os critrios de autenticidade do que deve ser a verdadeira

    tradio popular camponesa[19]. Certamente, tocando nas grandes e prestigiosas

    salas, os virtuoses se emancipam da tirania dos sales aristocrticos mas a

    construo do grande repertrio clssico de referncia no diz respeito somente a

    instituies coletivas, de conservatrios e orquestras prestigiosas e exemplares.

    Todo um culto domstico burgus da msica se constri, pressupondo uma

    apropriao individual da verdadeira msica erudita.

    A apropriao domstica

    Essa apropriao domstica talvez mais ligada construo de

    uma cultura feminina. O piano, haxixe das mulheres (Goncourt)[20] retoma o

    espao privado. Duas fontes poderiam ser estudadas sistematicamente a esse

    respeito: as coletneas de peas para piano religando partituras dispersas e

    indicando o gosto das pianistas amadoras e o conjunto de objetos de culto

    domstico colocados sobre o piano, os deuses domsticos representados pelo busto

    de Beethoven ou aquela medalha esmaltada lembrando as principais obras de

    Dvork. A apropriao diferencial na qual se constituem dois gneros de msica

    distintos portanto tambm a consagrao de uma multiplicidade de construes

    de repertrios pessoais. Sigmund Freud tem entre seus pacientes Gustav Mahler

    mas reconhece no saber nada de msica e cantar desafinado. Se ele cita uma ria

    de pera como tal passagem das Bodas de Fgaro de Mozart, no pela msica,

  • mas pelas palavras de Fgaro. Mas se h uma multiplicidade de devoes musicais

    domsticas ou de gostos e sensibilidades individuais nas quais a msica interfere

    mais ou menos, h tambm fenmenos coletivos e institucionais de apropriao

    diferencial, essencialmente em torno da construo de um panteo nacional. Nesse

    sentido, os grandes clssicos que formam seu repertrio so mais figuras de

    msicos do que de corpus de obras.

    As vias de canonizao e de classificao no grande repertrio

    So clssicos e reconhecidos como criadores de grande msica

    os compositores cujos retratos figuram nos museus (Liszt por Munkcsy, 1886),

    depois em selos postais, cujos bustos ornamentam os teatros, cujo nome aparece

    em produtos comerciais derivados (bombons Mozart, chocolate ou cigarros

    Mascagni, cerveja Peter Benoit, vodca Chopin...). Os compositores mais facilmente

    admitidos no panteo clssico so aqueles cujas msicas participam de vastos

    dispositivos comemorativos. Peter Benoit[21], por exemplo, fundador do

    conservatrio de Anvers, organizou festivais e dispositivos comemorativos e

    comps oratrios, cantatas, peras de tema nacional como De Pacificatie van Gent.

    A consagrao do repertrio clssico se d em manifestaes de forte carga

    emotiva coletiva e poltica, por exemplo, Verdi celebrado em Verona a partir de

    1913. O problema dessas maneiras coletivas e intitucionais de consagrao que

    estabelecem um corpus estvel de obras cannicas srias de referncias que

    terminam por se tornar uma norma estatstica de msicas dignas de

    reconhecimento e perdem assim sua funo distintiva. Em outras palavras, o

    caminho no longo entre as arenas de Verona, o Albert Hall e o Palcio

    Poliesportivo de Bercy ou o Stade de France. A obra celebrada pelas turbas no

    mais classificvel do lado erudito .

    Reconhecimento ou distino? Os limites do sucesso.

    O sucesso realmente popular das obras inscritas no grande

    repertrio clssico contribui para desqualific-las. Pierre Bourdieu notou este

    processo de desvalorizao, de divulgao da msica: A manifestao mais

    perfeita desse efeito na ordem da msica legtima o destino do "famoso Adagio"

    de Albinoni (como dizem os encartes de discos) ou de tantas obras de Vivaldi que

    passaram em menos de vinte anos do status prestigioso de descobertas

  • musicolgicas ao estado de ladainhas de canais de rdio populares e de toca-discos

    pequeno-burgueses. [22]

    Mais do que a coisificao do repertrio e a reproduo intacta de

    uma linha de fratura entre msicas populares e msicas eruditas, so esses casos

    de desclassificao, de desvalorizao ou de re-canonizao que podem, dentro de

    uma perspectiva de histria cultural, trazer elementos significativos. O acesso ao

    status de standard de grande sucessso faz perder toda caracterstica distintiva de

    uma msica dada. Esse fenmeno de desvalorizao atingiu, vez por outra, peas

    de envergadura apresentadas em situaes muito espetaculares. As obras

    designadas como distintivas por Bourdieu esto no lado oposto do que provoca

    entusiasmo coletivo ( O cravo bem temperado de Bach ). O fenmeno de re-

    qualificao talvez menos frequente. Assim que se descobre que um msico

    pouco suspeito de complacncia comercial se interessa por uma msica, sentimo-

    nos autorizados a expressar nosso gosto pessoal por msicas pouco legtimas. As

    valsas de Johann Strauss so apreciadas pelo temvel Brahms, e descobre-se que

    elas foram arranjadas para pequeno grupo de cmara por Arrnold Schoenberg e

    seus alunos. Isso pode ser suficiente para re-qualificar os hbitos musicais

    vienenses. Inversamente, assistem-se a formas de amolecimento da oposio.

    Os amadores de uma msica contempornea sem concesso (Varse, Boulez) se

    permitem a fraqueza das msicas comerciais nas quais eles colocam, s vezes

    indistintamente, as comdias musicais, o jazz, a cano. Esse processo de

    revalorizao ou de desvalorizao de obras musicais ou de prticas musicais

    permite pensar que a mesma msica, de acordo com os contextos, pode ser

    classificada sem problema como uma obra de msica erudita ou como uma obra

    comercial largamente difundida. o que indica, numa reflexo sobre o estado

    ontolgico da arte de massa, Roger Pouivet, a respeito, por exemplo, da Mona Lisa,

    notando que h o objeto singular do Louvre, mas tambm interpretaes que do

    objetos diferentes em Marcel Duchamp (LHOOQ) ou em vendedores

    desouvenirs tursticos na margem do Sena. o mesmo objeto, mas

    compreendidos segundo categorias ontolgicas distintas [23]. Para a msica, isso

    conduz, como j foi visto, a fenmenos de classificao diferente em condies

    sociais diferentes de recepo. Mas pode-se perguntar se certas peas clssicas ou

    contemporneas tiradas do contexto da msica erudita tm mais caractersticas

    prprias suceptveis de permitir sua desqualificao em direo msica comercial

  • popular que outras. Em outras palavras, pode-se vender mais facilmente Bizet

    que Berlioz, Brahms que Schumann?

    Propriedades distintivas?

    Antes de evocar o risco de desvalorizao das msicas eruditas

    divulgadas em demasia, Pierre Bourdieu considera que a oposio entre os gneros

    de msica corresponde bem s diferenas de legitimidade social e que, no interior

    do domnio da msica, uma hierarquia existe: diferena entre msica clssica e

    cano , separao entre pera e opereta , entre msica contempornea e

    msica antiga. Tambm entre as obras musicais, o Cravo bem temperaddo e o

    Concerto para mo esquerda [...] se opem s valsas de Strauss e Dana do

    Sabre, msicas desvalorizadas tanto por sua pertinncia a um gnero inferior ("a

    msica ligeira"), quanto por sua divulgao [24]. Bourdieu distingue duas

    modalidadess de oposio: uma que remete a uma classificao que parece estvel

    e objetiva, outra que remete a uma evoluo das condies de recepo. Com

    certeza a primeira que causa verdadeiramente um problema. Quais seriam os

    critrios de distino entre a msica como Grande Arte ou como arte menor

    alm dos critrios internos ( o sucesso, a comercializao...)? Roger Pouivet

    resume bem a regra implcita : Os critrios de pertinncia Grande Arte so

    positivos: a complexidade formal, a preciso expressiva, o valor moral. Os critrios

    de pertinncia s artes menores so negativos: a simplicidade formal, a

    sentimentalidade, a vulgaridade. [25]

    A esttica de Adorno, buscando fundar uma filosofia da msica

    contempornea, rene uma tica poltica que rejeita a intruso, na msica, das

    lgicas comerciais[26]. Adorno assim muito severo com as prticas musicais

    comerciais, vulgares, levando s vezes confuso os leitores que buscavam na

    Escola de Frankfurt uma filosofia emancipadora que acompanhasse a evoluo de

    seu gosto, por exemplo musical. A verdadeira arte musical exerce uma funo

    superior. Permanecemos, como nota Jean-Marie Schaeffer, dentro de uma

    concepo romntica da arte, transcendendo as realidades imediatas[27]. Para

    Bourdieu, o status da msica, em relao s outras artes, reside na distncia

    maior, mais incomensurvel, em relao s realidades sociais: A msica a mais

    espiritualista das artes do esprito e o amor pela msica uma garantia de

  • "espiritualidade". [...] A msica a arte "pura" por excelncia: ela no diz nada e

    no tem nada a dizer [28]. A msica erudita seria mais caracterizada que a msica

    popular por essa capacidade de denegao do mundo e do mundo social que o

    ethos burgus espera de todas as formas de arte . Esta ideia pode funcionar se

    prestamos ateno aos textos, aos livretos, aos programas explicando as obras e as

    msicas: os heris de opereta so burgueses desejosos de abandonar sua condio

    e as convenes e no as admirveis figuras trgicas da pera, eles no se

    sacrificam. A ausncia de programa ou de ttulo evita dar senhas para a

    compreenso que permitiriam a um pblico popular ter acesso compreenso

    de uma obra: as sinfonias nacionais (irlandesas, por exemplo), as sinfonias

    heroicas, os poemas sinfnicos acompanham e guiam o pblico. Com peas sem

    ttulo, o pblico est por sua prpria conta. Mas o que da msica por si mesma? O

    pblico pode se prender mais facilmente uma iluso narrativa numa sinfonia do

    que num quarteto. tambm fcil de opr na obra de Beethoven o que

    teatralizvel por Walt Disney em Fantasia, como a Sexta Sinfonia Pastoral e o

    que no , como os ltimos quartetos. A cor instrumental e a diversidade de

    timbres, a utilizao de hbitos musicais comuns (um ritmo de valsa, mesmo em

    Chostacovitch) podem fornecer pontos de referncia que faam a mesma msica

    passar do registro erudito ao registro popular.

    Pode-se considerar que um trio de jazz seja menos isolado do

    mundo social que um trio de Beethoven? Ns chegamos ao que pode parecer, aps

    o incio desta reflexo, como uma evidncia, mas que uma evidncia que deve ser

    expressa: a oposio entre msica popular e msica erudita diz respeito mais s

    utilizaes da msica do que s suas qualidades intrnsecas. A mesma msica pode,

    de acordo com as circunstncias, ser classificada diferentemente. A fronteira entre

    gneros musicais aparece bem como produto de uma construo. Bernard Lahire

    prope um novo tipo de oposio nos comportamentos face s obras : de um

    lado, o que revela uma cultura quente (as msicas de danar , as festas nas

    quais o pblico intervm...), de outro, a cultura fria que apela para a

    contemplao contida e silenciosa[29]. Essa relao com a msica permite

    compreender as prticas no distintivas : um melmano clssico pode se

    vulgarizar ao danar um sucesso de vero.

  • Se certos canais de passagem, de tranferncias entre os gneros

    foram desprezados pelo sculo XX (os orfees e as fanfarras), no se poderia

    considerar que as transferncias entre pases (desde a descoberta das msicas

    americanas, do jazz ao tango, pela Europa) no venham acompanhadas de um

    questionamento da oposio entre os gneros musicais: Stravinsky compe um

    tango ou um ragtime. No seria isso um sinal de novas modalidades de apropriao

    que consistem em abrir os gneros e procurar sair das diferenciaes?

    2. DAS PRTICAS DE NO-DIFERENCIAO

    Desde a Primeira Guerra Mundial, a indstria do disco

    nascente[30] faz entrar a msica erudita, ao mesmo tempo que as msicas

    populares comerciais, na era das culturas de massa, segundo vrias modalidades

    concomitantes: o repertrio simplificado e algumas rias so tiradas de obras

    lricas para ser interpretadas de maneira isolada (a famosa ria , os

    sucessos...), arranjos diversos so realizados, os grandes intrpretes incluem em

    seu repertrio peas um pouco mais leves. A Primeira Guerra Mundial pde acelerar

    as coisas. O Grande Caruso que j gravava rias do repertrio verdiano e

    verista[31] assim como melodias populares napolitanas se lana com fervor sobre as

    canes patriticas americanas. A reaproximao de repertrios no contexto da

    difuso de massa da msica concerne sobretudo transformao de temas e

    melodias originrias da tradio erudita clssica em obras populares. O corpus

    imenso e compreende obras de qualidade muito diversa mas, definitivamente pouco

    importa, o que falta, numa abordagem de histria cultural, tomar essas

    adaptaes como um exemplo realmente eloquente do fenmeno de apropriao.

    Adaptaes

    As transformaes de obras eruditas clssicas em obras de massa,

    mais ou menos comerciais permitem identificar as diferenas entre gneros e, ao

    mesmo tempo, de lhes fazer evoluir. A adaptao transforma o ritmo em algo

    swingante, a orquestrao d uma colorao mais metais (cuivre), o

    tratamento dado ao naipe de cordas corresponde a um desejo de msica

    impropriamente qualificada de romntica para dizer que ela pode acompanhar

    agradavelmente, na intimidade, un tte--tte amoroso. A transposio, o

    rearranjo no so mais somente diversas maneiras de atualizar um repertrio

  • antigo ao se apropriar ativamente como Gounod na Ave Mariasobre um preldio

    de Bach[32]. Os Swingle Singers encantaram o grande pblico adaptando a partir de

    1962 rias clssicas. Partamos da hiptese de que o jazz funcionou como o

    elemento ao mesmo tempo perturbador e unificador das sensibilidades musicais

    populares e eruditas tais como o sculo XIX as havia construdo e diferenciado. O

    ouvinte reencontra na adaptao jazzista, tanto no repertrio clssico quanto na

    audio de jazz, o prazer de um reconhecimento de uma passagem, com a

    improvisao e a reexposio, em momentos tranquilizadores de cumplicidade

    entre produtor de msica e ouvinte. A adaptao refinada de Bach pelos Swingle

    Singers no pode ser considerada como uma simples passagem de uma obra

    clssica a uma obra de massa. Django Reinhardt improvisando sobre um tema de

    Grieg no trata diferentemente o material temtico do que faria com um standard

    de jazz. Definitiva e paradoxalmente, so as obras pardicas, as interpretaes

    insanas (loufoques) da msica clssica que so as mais prximas do original e de

    sua lgica erudita e discriminante. As caricaturas de Gerald Hoffnung (1925-

    1959) podem ser apreciadas por um vasto pblico mas seu humor devastador em

    gravaes repletas de referncias eruditas, as aproximaes e anacronismos que

    divertem sobretudo os melmanos mais cultos, seja a adaptao para mangueira

    (esguicho) de um concerto para trompa dos Alpes ou o Concerto Popolare ou

    concerto para o fim de todos os concertos marcado pela luta acirrada entre solista

    e regente querendo tocar respectivamente os concertos de Tchaikovsky e Grieg.

    Pardica ou comercial, respeitosa ou iconoclasta, cada adaptao de uma obra

    clssica deve ser analisada como uma forma original de apropriao ativa que

    implica na leitura da obra retomada e uma resposta uma suposta expectativa de

    um pblico preciso. No se trata de um simples fato de popularizao ou

    comercializao . Alguns exemplos de reinterpretaes manifestam lgicas

    diferentes. Os Comedian Harmonists berlinenses utilizam a voz, sem palavras,

    como cordas, com efeitos de pizzicati, para cantar o famoso minueto de

    Boccherini , aqui bem classicamente. Em contraste, osQuatre Barbus apoiam-se

    sobre as palavras de Francis Blanche, falador prolixo, para fazer da Quinta de

    Beethoven o pregador de roupa[33] (la pince linge). A histria cultural deve

    mesmo enfrentar as aproximaes iconoclastas reecontrando inspiraes ou fontes

    no explicitamente autorizadas pelos autores ou intrpretes da cano to

    talentosos e populares como Dario Moreno ou Henri Salvador, um e outro

    atravessadores de ritmos e de msicas exticas na Frana dos anos 1960[34].

  • As adaptaes no chegam todas a des-legitimar a obra mas o

    risco est sempre ali. A msica popular comercial busca uma forma de legitimao

    ao adaptar um clssico que perde um pouco de seu prestgio na utilizao

    excessivamente frequente e deturpada. O sucesso comercial legitimado por uma

    ambio democrtica, colocar os clssicos disposio de todos. Em seu livro A

    cultura dos indivduos , interessando-se pelas dissonncias culturais e aos

    fenmenos de no-respeito hierarquia cultural, livro importante pela reflexo

    sobre os gneros musicais sobre o que voltaremos, Bernard Lahire consagra

    algumas pginas ao fenmeno do sucesso do popular Andr Rieux [35]. Ele coloca

    o sucesso do violinista no contexto das estratgias de mistura nas quais os

    msicos populares buscam uma forma de enobrecimento e os msicos clssicos

    uma popularizao que lhes faltam. Essas estratgias, segundo Lahire, no

    modificam o entupimento dos cirrcuitos de distribuio. A habilidade de Rieux ao

    mesmo tempo de tornar mais erudito um repertrio passe-

    partout de variet internacional e mais prazeiroso um repertrio srio , no qual

    ele mantm o lado danante ou romntico . O todo atinge um espetculo

    maravilhoso. O site do msico evoca o sonho impossvel realizado: Rieux e sua

    orquestra giram o mundo com uma reconstituio no grande estilo de

    Schnbrunn[36]. Para Lahire, esta hbil estratgia de mistura de gneros no afeta a

    distino entre alta e baixa cultura musical e preciso reconhecer que Rieux

    realiza objetivamente um trabalho de familiarizao de certos temas musicais . Os

    legitimistas que criticam uma desfigurao dos clssicos devem se render

    evidncia de que Rieux tem xito justamente onde as polticas de democratizao

    da grande cultura fracassaram. Partamos da hiptese de que, mesmo se os

    circuitos de distribuio permanecem distintos, o caso Rieux est longe de ser

    um fenmeno isolado e que a estratgia de popularizao do clssico se realiza

    tambm por artistas e por gravaes de verses originais de obras clssicas ou

    contemporneas eruditas.

    Os vendilhes do Templo

    Assim que em maio de 1890, Bernard Shaw relata o primeiro

    concerto londrino de Paderewski, ele evoca a generalizao do fenmeno dos

    campees do piano[37] . O virtuosismo musculoso, ao qual se soma no caso de

    Paderewski a conotao patritica e poltica ativa, contribui com a emergncia de

  • um sistema de vedetismo clssico do qual nunca mais samos. No foi preciso

    esperar o posicionamento de um Nigel Kennedy como rock star para que os

    msicos que tocam em concerto e gravam as verses originais de obras

    clssicas se tornassem verdadeiras vedetes adaptadas s regras do mercado e do

    cultura de massa. A veia comercial da comemorao pstuma dos compositores ou

    dos intrpretes toca quase exclusivamente sobre a personalizao da msica: o ano

    Mozart no foi suficiente. O fluxo de artigos, emisses de televiso e rdio

    consagradas a Karajan pelo centenrio de seu nascimento ultrapassa amplamente

    os meios especializados . Ser suficiente evocar outras personalidades musicais

    importantes nascidas em 1908 que no tiveram direito a uma celebrao

    equivalente para compreender o que o sistema de comemorao tem de arbitrrio

    e de conformidade s lgicas comerciais. O Karajan que se ia ver na Filarmnica de

    Berlim era j em vida um produto da arte de massa. difcil de integrar de maneira

    equivalente s leis do mercado Olivier Messiaen ou Eliot Carter. Pode-se no entanto

    sugerir s casas de disco de aproveitar o calendrio para promover a msica de

    Stphane Grappelli ou de David Oistrakh, tambm nascidos em 1908. Nos anos

    1960, a possibilidade de comercializar de maneira mais adequada s leis de

    mercado uma parte da produo musical erudita aparecia claramente. O hit clssico

    foi rebaixado tanto na verso original quanto na adaptada. Os argumentos de

    venda se confundem com a auto-celebrao meditica, com discos que so

    antologias de msicas utilizadas na publicidade (como a valsa de Chostakovitch

    relanada por uma companhia de seguros), que so acompanhadas da orgulhosa

    meno visto na televiso e o argumento da autoridade que permite ao ouvinte

    pouco cultivado de identificar a verdadeira verso original, por exemplo

    para Carmina Burana de Carl Orff (1937) a verso autorizada pelo compositor,

    a dirigida por Eugen Jochum, que alis contrariamente a Karajan no aderiu ao

    partido nazista. O disco se encontra frequentemente entre colees de Hard Rock

    ou de msica popular. Essa moda da autenticidade reencontrada conduz, em suas

    variantes sobre a ideia de manuscrito descoberto , a operaes comerciais que,

    sem engano, constrem um repertrio erudito injustamente mal conhecido

    chamado ao sucesso popular. O famoso Adagio de Albinoni , citado por Bourdieu

    como exemplo de uma pea erudita desvalorizada por seu sucesso foi editada

    em 1958 e completamente recomposta em 1945 por Remo Giazotto a partir de um

    fragmento de manuscrito encontrado nas runas de Dresden. A adaptao no

    aparece como a nica forma de transferncia entre gneros musicais. Alm disso a

  • msica erudita, definida como tal face s msicas populares, jamais deixou depois

    da segunda metade do sculo XIX de tomar emprestado na fonte de um folclore

    real ou imaginrio inspirao e legitimidade, por exemplo patritica.

    Ir para Segunda Parte

    [1] Comunication prsente au Colloque fondateur de l'International Society for

    Cultural History Gand (Gent, Belgique) en aot

    2008.http://www.abdn.ac.uk/isch/

    [2] Didier Francfort, Centre de Recherche sur les Cultures Littraires Europennes,

    Cercle, Universit de Lorraine (Nancy Universit) - (CERCLE/ Universit de Lorraine)

    [3] http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=artigos&id=106 (acesso:

    31/03/2014)

    [4] Centro Universitrio Baro de Mau

    [5] BOURDIEU, Pierre. Contre-feux. Paris, ditions Raisons d`Agir, 2001.

    [6] BORN, Georgina e HESMONDALGH, David. Western music and its others. Los

    Angeles, University of California Press, 2000

    [7] GULLAR, Ferreira. Vanguarda e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Editora

    Civilizao Brasileira, 1978

    [8] ECO, Umberto. Apocalpticos e integrados. 6 ed. So Paulo, Ed. Perspectiva,

    2004

    [9] DENORA, Tia. After Adorno. Rethinking Music Sociology. Cambridge, Cambridge

    University Press 2003

    [10] MENGER, Pierre-Michel. Le paradoxe du musicien. Le compositeur, le

    mlomane et l`tat dans la societ contemporaine. Paris, L`Harmattan, 2001.

    MENGER, Pierre-Michel. Le travail crateur. S`accomplir dans l`incertain. Paris,

    Seuil/ Gallimard, 2009. MENGER, Pierre-Michel. Portrait de l`artiste en travailleur.

  • Mtamorphoses du capitalisme. Paris, ditions du Seuil et La Rpublique des Ides,

    2002.

    [11] COOK, Nicholas. Music: A Very Short Introduction. New York, Oxford

    University Press Inc., 1998

    [12] STRAVINSKY, Igor. Poetics of music. Cambridge, Harvard Press University,

    1970

    [13] Sophie-Anne LETERRIER, Musique populaire et musique savante au

    XIXesicle. Du "peuple" au "public", Revue d'histoire du XIXe sicle, 1999-

    19,Aspects de la production culturelle au XIXe sicle , [URL :

    http://rh19.revues.org/document157.html. Acesso: 01/01/2008

    [14] Roger POUIVET, L'Oeuvre d'art l'ge de sa mondialisation. un essai

    d'ontologie de l'art de masse. Bruxelles, La Lettre Vole, 2003, pp.66-67.

    [15] Como diz Nicholas Cook, A msica moderna (...) floresce principalmente nas

    franjas do subsdio do Estado e da academia, e s vezes tambm da indstria do

    entretenimento (como em trilhas sonoras para filmes de terror), mas o ponto que

    nessas reas ela realmente floresce. um produto de um nicho, certamente - mas

    ento poder-se-ia dizer o mesmo sobre a tradio Beethoven / Brahms. A diferena

    est s no tamanho do nicho, e o grau de alavancagem econmica associada a

    ele. Modern music, or rather modern music`, flourishes mainly on the fringes of

    State subsidy and academia, and sometimes also of the entertainment industry (as

    in soundtracks for horror movies), but the point is that in those areas it does

    flourish. It is a niche product, certainly - but then you could say the same about the

    Beethoven/Brahms tradition. The difference is just in the size of the niche, and the

    degree of economic leverage associated with it (COOK, 2000, p.46). Nota do

    tradutor.

    [16] Didier FRANCFORT, Le Chant des Nations. Musiques et cultures nationales en

    Europe 1870-1914, Hachette-Littrature 2004

    [17] Philippe GUMPLOWICZ, Les travaux d`Orphe. Deux sicles de pratique

    musicale amateur en France (1820-2000) Harmonies, Chorales, Fanfares. Paris,

    Aubier 2001 (rdition)

  • [18] Eric HOBSBAWM et Terence RANGER (dir.), L`invention de la

    tradition.traduction franaise. Paris, ditions Amsterdam 2006.

    [19] Georgina BOYES The imagined village: Culture, ideology and the English folk

    revival. Manchester University Press, 1994, xiv-284 p.

    [20] Alain CORBIN, Coulisses in P. ARIS et G. DUBY (dir. ), Histoire de la vie

    prive, t.IV (dir. M. PERROT) p. 486.

    [21] August CORBET, Geschriften van Peter Benoit. Ingeleid en van aanteekeningen

    voorzien door Dr.Aug.Corbet, Antwerpen, 1942, p.167

    Prosper VERHEYDEN Peter Benoit and the Modern Flemish School inProceedings

    of the Musical Association, 41st Sess., (1914 - 1915), pp. 17-35

    [22] Pierre BOURDIEU, La distinction. Critique sociale du jugement Paris, Editions

    de Minuit, 1979, p.13

    [23] Roger POUIVET, op.cit. p.32

    [24] Pierre Bourdieu, op.cit. p. 13

    [25] Roger POUIVET, op.cit. p.67

    [26] Theodor W. ADORNO, Philosophie de la musique nouvelle, Paris Gallimard

    1962.

    [27] Jean -Marie SCHAEFFER, Adieu l'esthtique, Paris, PUF, 2000, p.262

    [28] Pierre BOURDIEU, op. cit. pp. 16-17

    [29] Bernard LAHIRE , La culture des individus. Dissonances culturelles et

    distinction de soi. Paris, La Dcouverte 2004, pp. 72-76

    [30] Ludovic TOURNS, Du phonographe au MP3 XIXe - XXIe sicle. Une histoire de

    la musique enregistre. Autrement2008, collection Mmoires/culture n138, p.162

    [31] Didier FRANCFORT, Le crpuscule des hros. Opra et nation en Italie aprs

    Verdi in Mlanges de l`Ecole franaise de Rome, tome 117, 2005, 1, pp. 269-293

  • Didier FRANCFORT, Rome et l`oprain Christophe CHARLE et Daniel ROCHE (dir.)

    Capitales culturelles. Capitales Symboliques, Publications de la Sorbonne, 2002,

    Actes du colloque international octobre 1999 Collge de France, Paris, p. 381-402

    [32] Antoine HENNION, La Passion musicale. Paris, Mtaill 2007, p.231

    [33] Disponvel

    em http://www.youtube.com/watch?v=0sPcbMbpzo0&feature=kp(acesso:

    01/04/2014). NT

    [34] Cf. FLCHET, Anas. Si tu vas Rio... Paris, Armand Colin, 2013 (nota do

    tradutor)

    [35] Bernard LAHIRE , La culture des individus. Op.cit. pp. 646-649

    [36] Para maiores informaes,

    (nota do

    tradutor)

    [37] Bernard SHAW, Paroles en l`air, in The Star, 16 mai 1890, in crits sur la

    musique , Paris, Laffont 1994, p. 447