Lama

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Conto escrito por V., para publicação no blog F417S-D1V3R5.

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Lama

A natureza t invadindo a sua casa, eu disse. O homem deu uma farta risada, bem daquelas que me recriminavam por soltar no trabalho. Eu tinha acabado de matar um inseto monstruoso que, sem dvida, carregava uma doena tropical terrvel, especialmente para inocular no meu organismo. No minuto seguinte, uma lagartixa da mesma cor da parede entrou pela janela da cozinha, para dividir com as aranhas da sala e a meia dzia de pererecas que vira no banheiro o butim da caada aos mosquitos. Acompanhei a viagem aparentemente catica de uma formiga pelo xadrez da toalha, ignorando os pratos sujos, a panela sobre o descanso de madeira, as trs garrafas de vinho vazias, at que escolheu parar, o que me pareceu uma escolha meio bvia, num torrozinho de acar que cara num dos quadradinhos brancos da estampa do tecido.

Estvamos tomando caf. Desculpa, ele disse, quando serviu minha xcara, no tenho acar branco, s mascavo. Quer?. Lembrei que acar mascavo deixa tudo com gosto de rapadura. Eu prefiro puro mesmo. E esse aqui t muito bom!, eu disse, dando nfase ao muito. Estava, mesmo, muito bom. Passado em filtro de pano, igual no comercial, ou na novela das seis. Vai dizer que o caf tambm da sua hortinha?, eu perguntei. Ah, no. At pensei nisso uma vez, mas no me animei. Preferi continuar fazendo s vinho, mesmo.

Ele tinha-me colocado para ajudar a fazer a janta. Perguntou se eu gostava de macarro. Se gosto! minha comida preferida.. Tu sabe cozinhar?, perguntou, enquanto ele guardava as compras que retirava da bolsa de lona. Sei fazer molho bolonhesa, respondi, sentindo imediatamente o super-ego descer uma rgua de madeira nos meus dedos, para aprender a no ser arrogante. Ento, tu faz o molho que eu fao a massa. meio demorado, eu falei, lavando as mos, pensando no grau de dificuldade que existe em pr uma gua pra ferver e cozinhar um macarro. No tem problema, ele disse, Temo assunto e vinho pra noite inteira!.

O homem estava afixando na ponta da mesa um mecanismo que tinha uma manivela, retirado de algum dos muitos armrios da cozinha. Sabe o que isso?, No fao ideia. Parece um mimegrafo., Ah, agora tu que me pegou. Bueno, isso aqui um cilindro pra sovar a massa., Pera! Como assim? Que massa?, eu perguntei, lavando os tomates que estavam na sua fruteira. A que ns vamo comer, u!, O senhor vai fazer a massa?, Mas claro!, respondeu, rindo. Ele abriu um dos sacos de papel que trouxera na bolsa e comeou a despejar a farinha de trigo numa bacia alouada.

Separei os tomates, uma dzia. Tambm peguei duas cebolas e dois dentes de alho grandes. Quer mais tempero? Tem na hortinha, ali fora. Fui dar uma olhada. Ele me acompanhou. Pasmei. A hortinha era do tamanho do meu apartamento (meu modo de dizer; alugado). Devia haver umas cem espcies de coisas plantadas ali, de abbora a zimbro. O senhor planta tudo o que o senhor come?, No, ele respondeu, dando o timing da piada, as galinha, as vaca, os porco... esses, se plantar, no pega., e achou graa da prpria perspiccia. Aqui, apontou com o dedo enfarinhado tem alecrim, slvia, salsa, cebolinha, ali tem manjerona, manjerico, aquela arvorezinha ali louro... e tem mais tomate ali assim. Tem de tudo. Escolhe a o que tu quiser pro teu molho. Vou ali sovando a massa.. Peguei um raminho de coentro. Perdi uns bons minutos, sem pensar em absolutamente nada, apenas sentindo o cheiro inconfundvel das folhas invadindo e preenchendo minha cabea.

Ensinou-me a passar a carne no moedor. Ele tinha carneado uma rs dois dias antes, e fora vender, ou melhor, trocar a carne por mantimentos no mercadinho da vila. Guardou para si s um pedao para pr no espeto e assar no domingo, quando a chuva ia passar. E como que o senhor sabe que vai parar de chover?, perguntei, descascando a cebola, usando um truque, que vi na tev, para no chorar. Ele apontou com o queixo em direo a um balco, onde havia uma imagem do papa Joo Paulo II e mais uma dzia de fotografias antigas. o papa que lhe conta?, perguntei, devolvendo o chiste de antes. Ele riu. No. O galo ali em cima. Ele vai mudando de cor quando vai chover, e fica branco de novo quando a chuva para. No erra nunca, Mas que bruxaria essa?, Ah!, eu sei l. S sei que funciona. E tambm tem o rdio, mas nesse a eu no confio. Quer ouvir msica?, No precisa. Vamos proseando, que t bom, Eu tambm prefiro, ele disse, comeando a passar a massa pelo cilindro.

O barulho de carne moda fritando irreproduzvel. sinestsico, no , o termo pra isso? A carne cedendo num susto seu sumo no metal quente, mudando lentamente de cor, do vermelho ao castanho, do castanho ao amadeirado. E o aroma, que s as fibras tenras da carne de boi liberam quando se misturam cebola e ao alho picados que j douravam no leo no fundo da panela. Muita cebola e, especialmente, muito alho, j que no ia bejar ningum pelos prximos dias, ento, quem se importava? Quando o perfume da carne fritando se espalhou pela cozinha, o homem veio espiar. Isso t cheirando bem! Te d com as panela, mesmo!, Aprendi cedo. Amo fazer comida., Eu aprendi tarde. No comeo eu no gostava. Mas agora, at me divirto, pensando hoje o que que eu vou comer amanh., O senhor mora aqui sozinho?, e outra vez eu quis meter a cabea dentro do forno e abrir o gs. Eu vi que ele notou meu constrangimento. No tem problema. o que dizem, n, 'perguntar no ofende'. No assim?, Pois , mas o senhor me desculpe a indiscrio, mesmo. Eu falo sem pensar., Que mentira! Ningum fala sem pensar. justo nessas hora que a pessoa fala o que t pensando. Quem fica escolhendo o que vai falar... com esses sim tem que abrir o olho. E tambm, j t te pegando o vinho, n?, e riu, servindo o resto da primeira garrafa no meu copo. Eu ri, e concordei, sem parar de mexer a panela, pra evitar que a carne queimasse. Deixei os tomates picados cairem lentamente na panela, para dissolverem-se aos poucos, misturando-se carne. Abrimos outra garrafa?, perguntei, colocando as folhinhas de coentro sobre os tomates. Quer provar um dos meu? Eu mesmo que fao., Srio? O senhor tem uma vincola aqui?, No, no pra tanto. Fao um vinhozinho, pra mim e pros meus compadre. O que sobra eu deixo pra vender no mercadinho l na entrada do corredor. Eu acabei de deixar umas garrafa l, com a carne., Aquele mercadinho na faixa? Mas isso fica a uns trinta quilmetros daqui! E com a estrada nesse estado? Que loucura!, T vendo? Se eu no tivesse ido l, no ia ter te encontrado..

Era verdade. Eu tinha resolvido sair um pouco da vida urbana, da minha vida urbana. Um amigo empresou seu stio, e me entregou as chaves na segunda, junto com as recomendaes sobre como abrir os cadeados, como acender o fogo, como evitar os insetos (tenho todos os tipos de alergias a picadas de insetos) e como dirigir na estrada de terra. Eu s no contava com a chuva que comeou a cair na tera e s parou na manh de quinta. Como havia feito sol forte quinta tarde, sexta e sbado inteiros, imaginei que no sbado noite, depois do meu expediente, daria para me aventurar. O que era para ser uma saudvel incurso zona rural acabou virando o Rally dos Sertes. Meu carro no era apropriado sequer para andar em estradas de terra, imagine para uma estrada de terra revirada por caminhes carregados de soja e por quarenta e oito horas de chuva. Aquilo transformou-se em um lamaal intransponvel. Mas a intrepidez, o destemor, e a inconsequncia me fizeram acreditar que meu 1.0 daria conta. Cinco quilmetros para dentro do corredor foram suficientes para me arrepender de todos os meus pecados. Derrapei, desviei, passei por cima da grama, atolei uma vez, dei r, desatolei, insisti, virei uma curva, fiz a outra com o carro andando de lado, me empolguei lembrando do videogame do meu irmo, meti numa reta visivelmente intrafegvel, atolei de vez. Tentei sair de r e o carro cavou ainda mais fundo sua sepultura no lodo. A dezenove mil oitocentos e setenta e sete metros da civilizao, com metade do carro invisvel sob a estrada, desisti. Quis chorar, mas fiquei com vergonha.

Eu havia feito compras para passar o final de semana no campo. Um fim de semana de embriaguez solitria no meio do mato era tudo o que eu precisava. Bem, na verdade, a solido no era o plano inicial. Se algum visse as minhas compras no banco de trs, deduziria que as castanhas, as torradinhas, os moranguinhos, as uvas e outras frutinhas, frescas e secas, as duas garrafas de vinho e um espumante, aquilo estava com cara de comidinhas para depois do amor. Aconteceu que quem compartilharia o fim de semana comigo, justo naquele fim de semana, decidiu que era hora de darmos um tempo, porque estava-se sentindo sob presso com o ritmo que nossa relao estava aproximando-nos demais e tornando-nos felizes demais, situao preocupante, segundo seus critrios. Decidi, ento, manter o meu plano de ir para o stio, levar todas aquelas comidinhas e bebidinhas s para mim, no sem antes passar na primeira loja de convenincias que encontrei e comprar um monte de fast-food de micro-ondas (meu amigo jurou que havia um no stio) e uma garrafa de tequila. Eu merecia uma bebedeira memorvel. Com sorte, uma amnsia etlica!

Uma hora depois de atolar o carro, sem sinal de celular, imagine de internet, sem iluminao pblica, quando j cogitava deixar o carro ali e voltar a p os dezenove ou vinte quilmetros at a faixa, onde havia um mercadinho e, talvez, um orelho, vi que se aproximava uma moto, vindo do lado da estrada. Chegando perto, pude ver quem a guiava. Era um homem de idade incerta, meio selvagem, com barba e cabelo enormes. Trazia um grande volume no banco da moto, um saco preto amarrado com firmeza ao veculo. Imaginei que ele tambm estava levando compras, pra onde quer que estivesse indo, e, quem sabe, teria vindo para o campo, comer, encher a cara, pensar, ou esquecer. A diferena entre ns que ele era competente para andar na estrada sem atolar. Eu estava enfiado nela at os joelhos.

A moto, uma 125, estava embarrada, mas sem qualquer sinal de haver-se enfiado barro adentro, como meu pobre carrinho. Atolou feio a, hem?, ele disse, descendo da moto, deixando o farol aceso. No conseguia ver mais que sua silhueta abrutalhada, meio que um contraste com uma doura paternal na voz. Pois ., eu disse, O que o senhor acha? Ser que ele sai da? Tem algum que possa rebocar, sei l, uma caminhonete, um trator?, Olha, ele ponderou, se tentar rebocar, ele vai sair da um pedao de cada vez. melhor cavocar em roda e calar ele com umas tbua., Ento..., eu disse, com certa irritao e no consigo conter o sarcasmo quando me irrito que eu esqueci minhas ferramentas em casa., Mas no seja por isso, respondeu, acho que fingindo no ter percebido meu mau-humor, eu pego ali em casa e tiramo o auto pra j.. Alegrei-me imediatamente. O senhor faria isso?, Mas claro. Fica a que eu j volto, disse, acelerando a moto, andando milagrosamente por cima do lamaal como se fosse no asfalto, por uma trilha invisvel para no iniciados.

Minutos depois, acho que menos de meia-hora, o homem voltou, com uma enxada, uma p e duas tbuas, equilibrando tudo, incluindo a si prprio, em cima da moto. Nos trinta minutos seguintes, tiramos o barro que se enfiara at a altura dos pra-lamas, abrindo espao para enfiar as tbuas sob os pneus dianteiros. Se tu resolvesse acelerar mais um pouco, tinha fundido o motor., ele disse, com um cigarro inesgotvel no canto da boca. Agora, vai ali e pisa devagar. Eu vou l atrs empurrar.. Fiquei com medo que as tbuas riscassem a pintura, mas, quela altura, seria um dano mnimo. Num susto, o carro saiu de dentro do buraco que ele prprio havia cavado, e que ns aumentamos a golpes de p e enxada. Manobrei conforme ele indicava, apontando para a minha salvao.

Bah!, eu disse Eu no tenho como lhe agradecer., No foi nada..., ele disse, reticente (ou tmido), sem olhar pra mim. O que foi?, eu perguntei, e ele disse, como que analisando a estrada, Olha, eu no quero ser pessimista. que eu acho que, se tu seguir pra cidade, com a estrada desse jeito, vai atolar de novo.. Eu fiquei pensando de onde aquele homem to bruto tinha tirado a palavra pessimista. Ele continuou, finalmente olhando pra mim, Onde tu tava indo?, Tava indo pro stio de um amigo meu. Fica numa entrada, logo depois da terceira cancela, eu disse, apontando na direo para onde estava indo, que, agora, ficava para trs do carro. Sei onde . Meu compadre arrenda as terra dele, leva as vaca pra pastar l. Mas um horror de longe! Tu t mais ou menos no meio do caminho. Com a estrada desse jeito, ia chegar l s no ano que vem., , eu percebi. Se o senhor no tivesse chegado aqui, eu teria ficado aqui parado at o ano que vem. E agora isso... no tenho como ir adiante, nem como voltar pra cidade., Ento, vamo l pra casa. No chegou at o rancho do teu amigo, mas chegou at o meu. A entrada ali, . No me faz desfeita., ele disse, sorrindo. Eu pensei um pouco, e assenti com a cabea. Ele deu a partida na moto e eu o segui, morrendo de medo de ficar na lama outra vez.