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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras e Direitos Humanos, n o 33, p. 37-58, 2007 37 Lamentando o Esquecimento da Memória: As Instalações Fotográficas de Rosângela Rennó Marguerite Itamar Harrison (Smith College) 1 RESUMO A artista brasileira Rosângela Rennó cria instalações foto- gráficas – muitas vezes utilizando materiais descartados, como carteiras de identidade com a data expirada – que de- safiam o esquecimento conveniente da nação. Obras como Cicatriz funcionam como resposta estética às desigualdades da sociedade brasileira. O trabalho de Rennó cobra do ob- servador a tarefa moral e arqueológica de relembrar feições humanas e, através da alusão metonímica, a própria huma- nidade, através das imagens desumanizadas. Suas instalações nos reportam ao apagamento da identidade, e da vida, acio- nando a memória do espectador, no sentido de reter o hor- ror da ausência, dirigindo, assim, um olhar ativista para o futuro. Palavras-chave: fotografia; amnésia; social; justiça. In teaching us a new visual code, photographs alter and enlarge our notions of what is worth looking at and what we have a right to observe. They are a grammar and, even more importantly, an ethics of seeing. Susan Sontag, On Photography Memory implies a certain act of redemption. What is remembered has been saved from nothingness. What is forgotten has been abandoned.

Lamentando o esquecimento da memória: as …...ultramoderna capital nacional, planejada a partir de plantas em forma de jato e brotada da terra vermelha do centro-oeste do país?

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras e Direitos Humanos, no 33, p. 37-58, 2007 37

Lamentando o Esquecimento da Memória:As Instalações Fotográficas de Rosângela Rennó

Marguerite Itamar Harrison (Smith College) 1

RESUMO

A artista brasileira Rosângela Rennó cria instalações foto-gráficas – muitas vezes utilizando materiais descartados,como carteiras de identidade com a data expirada – que de-safiam o esquecimento conveniente da nação. Obras comoCicatriz funcionam como resposta estética às desigualdadesda sociedade brasileira. O trabalho de Rennó cobra do ob-servador a tarefa moral e arqueológica de relembrar feiçõeshumanas e, através da alusão metonímica, a própria huma-nidade, através das imagens desumanizadas. Suas instalaçõesnos reportam ao apagamento da identidade, e da vida, acio-nando a memória do espectador, no sentido de reter o hor-ror da ausência, dirigindo, assim, um olhar ativista para ofuturo.

Palavras-chave: fotografia; amnésia; social; justiça.

In teaching us a new visual code,photographs alter and enlargeour notions of what is worthlooking at and what we havea right to observe. They area grammar and, even moreimportantly, an ethics of seeing.Susan Sontag, On Photography

Memory implies a certain act of redemption.What is remembered has been saved from nothingness. What is forgottenhas been abandoned.

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…the distinction between rememberingand forgetting is transformed into anact of judgment, into the rendering ofjustice, whereby recognition is closeto being remembered, and condemnationis close to being forgotten.John Berger , About Looking 2

Como descrito pela ética do ver de Susan Sontag, as instalações fotográficasprovocadoras de Rosângela Rennó convocam o olhar participativo do espectador. As reconstruções que a artista faz do processo de lembrar ade-

rem à prescrição de John Berger para a realização de justiça, através de seuenglobamento de uma realidade social complexa que engaja o olho ético do es-pectador. Com o intuito de fazer arte, Rennó recupera imagens abandonadas eregistros desprezados para buscar nada menos que um resgate coletivo da almahumana. Em várias de suas obras, ela nos convida à auto-avaliação e nos desafia aexaminar os eixos do poder que, de acordo com Berger, condenam os seres hu-manos ao esquecimento. Como será discutido ao longo deste ensaio, a artistabrasileira começa por confrontar as tendências de seu próprio estado-nação comrelação ao apagamento crônico da identidade.

Como um convite a duelo, a intenção de Rennó de engajar o Brasil numconcurso de memória está bem explicada em sua obra de 1994, intitulada Imemorial,que desafia o símbolo-mor da confiança do Brasil em seu futuro: a capital deBrasília. Poderia haver um símbolo melhor das aspirações nacionais do que aultramoderna capital nacional, planejada a partir de plantas em forma de jato ebrotada da terra vermelha do centro-oeste do país? No plano original, Brasíliahavia sido projetada para expressar simetria modernista e esplendor utópico, ele-mentos arquitetônicos proclamando o Brasil como uma terra do futuro. Rodea-dos por piscinas de água, vários prédios federais e monumentos de Brasília ofere-cem reflexos da paisagem urbana e de seu amplo horizonte: o céu e a terra enlaça-dos numa ilusão bidimensional e otimista.

Apesar de ter sido fundada a partir de princípios socialistas, a vasta gradeurbana de Brasília não corresponde a uma escala humana. Além disso, a constru-ção da capital acarretou um grande custo. Este é justamente o tema de Imemorial,uma peça funerária lamentando a perda de trabalhadores durante as obras detrinta e cinco anos atrás. Criada para a exposição “Revendo Brasília”, Imemorial

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espelha, mesmo de forma sombria, a ênfase da própria cidade em reflexão, aoremexer e reconstruir o passado de si mesma.3 Na instalação, uma tinta preta esemi-translúcida cobrindo quarenta fotografias em preto e branco, montadas nochão para parecer túmulos, espelha dez retratos em tons de estanho, penduradosacima solitariamente numa parede branca. Como o artista Evandro Salles expres-sou, as imagens escuras, horizontais, são visíveis, mas por pouco: “A prata dofilme se distingue tenuemente do fundo negro. A imagem quase retorna para oesquecimento, para a memória. Mantém entretanto uma pulsação luminosa. Osrostos aparecem como reflexos sobre a massa de esquecimento”.4

Nas instalações de Rennó, fotografias encontradas são ferramentas essenci-ais que a artista apropria e reconfigura para expressar sentidos maiores, muitasvezes subterrâneos. Neste caso, Imemorial serve como um memorial comovente,exigindo que o espectador lembre-se do esquecido. De fato, os retratos foscosmontados no chão em molduras de ferro e presos com parafusos de metal –reflexões penumbrosas das imagens em tons pratas montadas verticalmente naparede – evocam de maneira assombrosa a escuridão dos enterrados. Além disso,conforme veremos depois, ao sepultar cada retrato numa obscuridade sombria deforma a resistir o anonimato insípido, burocrático, Imemorial desafia inexoravelmenteo regime oficial do Brasil de esquecimento, a propensão de um país jovem porperda de memória.

Como artista visual, Rennó ultrapassa as margens que definem os camposda arte. Ela é fotógrafa, artista de instalação, ou ativista? Apesar de ter sido descri-ta como sendo uma “fotógrafa que não fotografa”,5 e insistir ela mesma em afir-mar que aborda “questões sociais não por querer fazer um trabalho engajado”,6ela é, de fato, tudo isso. Formada em arquitetura e obcecada por colecionar, Rennóé uma arquivista estética cujo trabalho – em suas evocações simples de humanida-de e em seus retratos complexos de comportamentos sociais—instiga reaçõeséticas do espectador. Como sugere de forma astuta o crítico Adriano Pedrosa, opapel de Rennó como artista envolve o desvendamento público de um esqueci-mento coletivo do indivíduo.7

Nem todos os trabalhos de Rennó são politizados. No entanto, em geralsuas instalações engajam o espectador num diálogo visual no qual a responsabili-dade cívica surge do reconhecimento de que somos todos seres sociais responsá-veis por nossas ações individuais e coletivas. Seus trabalhos insistem que tome-

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mos uma posição a favor ou contra; não permitem que sejamos simplesmentevoyeurs passivos. Apesar de Rennó ser uma artista brasileira cujas instalações, comoserá analisado neste ensaio, refletem suas reações estéticas como cidadã, o alcanceinternacional de sua experiência artística também permite que seus trabalhos ope-rem interculturalmente, estendendo-se além de fronteiras nacionais, de forma aconferir um apelo internacional à sua arte. O trabalho de Rennó – como ficaevidente no alcance mundial de suas exposições individuais, realizadas em lugarescomo no Alexanderplatz de Berlim, o Museu do Chiado em Lisboa, a Galeria dela Raza em São Francisco, o Australian Centre for Photography em Sydney, a DeAppel Foundation em Amsterdã, e nas bienais de Johanesburgo e Veneza – é ricoe abrangente.

Carteiras de identidade e perda da identidade

Para a montagem de Imemorial, Rennó recuperou pequenas fotografias dosarquivos municipais utilizadas para as carteiras de identidade dos trabalhadores.Ao divulgar registros federais e re-exibir imagens burocráticas como retratos enig-máticos, a peça anuncia vigorosamente sua intenção de relegar o anonimatoinstitucional. Para protestar os processos de documentação institucional que fa-vorecem registros em lugar da individualidade, a artista primeiro ampliou as foto-grafias 3x4 dos trabalhadores. Ela então contrabalançou o olhar direto e frontaldos sujeitos ao escurecer as imagens com tinta preta. Como a intenção inicial dasfotografias era de documentação, as expressões nos rostos dos trabalhadores sãosérias, e suas roupas são mais formais.

Um número é afixado a cada imagem como que para reforçar a posturainstitucional que converte um indivíduo num rosto capaz de ser quantificado,desconhecido. Além disso, de acordo com a artista, o número tem duas funçõespara validar e também preservar privacidade: referencia intimamente a data dacontratação de cada trabalhador, e registra, por outro lado, a amnésia clínica dasfatalidades esquecidas. Não é por acaso que o número das fotografias no chão dainstalação é maior do que aquelas montadas na parede acima. A equação assimétricaserve para provocar uma reflexão sobre a desproporção entre as perdas e ganhosdo “progresso”.

Enterrados no fundo dos arquivos, estes indivíduos descartados e falecidos– entre eles, um número pequeno de mulheres e crianças – tornam-se vítimas

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permanentes extraviadas da memória, que literal e simbolicamente deixam de existir.Sua memória coletiva é ressuscitada, no entanto, pela ação conjunta da instalaçãode Rennó e o olhar do espectador – este último, em particular, é encarregado dadifícil tarefa de resgatar dos escombros ópticos os traços faciais subterrados pelaobscuridade da tinta escura da artista – de forma a restaurar solenemente a indivi-dualidade de cada trabalhador. Além disso, como sugerido por Jacapo CrivelliVisconti, o ato de refotografar e ampliar as minúsculas fotografias de identidadedos construtores mortos durante seu trabalho nas obras de Brasília “sobrepõe aesta constatação formal uma denúncia de cunho social difícil de se ignorar, lan-çando uma nova luz no sonho de modernidade do Brasil”.8 Dentro de um contex-to mais amplo, a instalação de Rennó poderia também ser interpretada dentro doconceito de James E. Young de contra-monumentos, os quais, como Lisa Saltzmandescreve, “insistem na ausência, impermanência, participação, e contexto”.9

A intenção de Rennó é que instalações fotográficas como Imemorial sejamrespostas críticas a tradições documentárias de fotografia impostas por institui-ções. Suas peças artísticas surgem da pressuposição de que nós, como seres so-

Sem titulo (braço com coraçãozinho), 199610

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ciais, respondemos ao nosso mundo atual, saturado de imagens, comdessensibilização e desapego em relação a capacidades humanas básicas, como,por exemplo, compaixão e compreensão. O objetivo de Rennó é de engajar oespectador a reaprender como ler sinais visuais: a medir e interpretar criticamente,por exemplo, os conflitos entre indivíduos e instituições; ou a reagir às infraçõesespaciais que põem à prova diariamente os limites do público e do privado; ou atémesmo a desviar nosso olhar da perversidade voyeurística e redirecioná-lo à empatiae, ao fazer isso, a restaurar a visibilidade dos indivíduos que têm se tornado social-mente invisíveis.

Reagindo à tradição documentária, Rennó extingue ainda mais das imagensfotográficas o sensacionalismo e drama das manchetes de primeira página, as im-buindo de dignidade desguarnecida e conteúdo reflexivo. Além disso, Rennó se-gue as recomendações de John Berger para criar usos alternativos de fotografia11

ao estabelecer um contexto destabilizado para suas fotografias encontradas, deforma a insistir no envolvimento intelectual e emocional do espectador. As ima-gens que seleciona e reformula comunicam-se comunalmente ao espectador comclareza simples, denunciando a tendência de amnésia social, e exigindo recorda-ção.

A artista não tem medo de retratar tragédia, como se suas obras de artefossem concebidas para revelar os piores momentos do Brasil: violência e totalita-rismo, desprezo e perda. Não lança acusações; os elementos trágicos escoam dostrabalhos em si em demonstrações de luminosidade estética: opacidade negra,luzes azuis etéreas, tintas vermelho-sangue, e cicatrizes em tons de sépia. Comoque quisesse falar: para poder nos projetar no futuro como cidadãos melhores (oucomo uma nação melhor, ou como um mundo justo), temos que encarar nossosdefeitos. E para isso temos que evocar uma memória fotográfica.

Revelando os defeitos fundadores

Em termos de confrontar a amnésia nacional, Rennó não teme retratar aexperiência colonial, ocorrida vários séculos antes da construção de Brasília, comomostra sua instalação de vídeo de 2000, Vera Cruz. Nesta, o encontro inicial entreos colonizadores europeus e os povos indígenas não inclui um componentepictográfico; o único elemento visual do vídeo consiste em riscos numa tela embranco. A trilha sonora resume-se a ressonâncias do vento e do mar. As legendas

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do documentário reproduzem um monólogo obviamente fictício do ponto devista dos colonizadores12, um aspecto que questiona a veracidade fundadora e aomesmo tempo reforça o desequilíbrio marcado da experiência colonial. Vera Cruzdocumenta a gênese de uma sociedade desigual, cuja magnitude e complexidadesão as raízes dos defeitos do Brasil.

No capítulo final e sombrio de seu livro Brasil: Mito Fundador e SociedadeAutoritária, a intelectual Marilena Chauí define o Brasil de 500 anos –independen-temente do sistema político em vigor – como uma sociedade autoritária, marcadahistoricamente por profundas desigualdades. Delineando as estruturas fundado-ras da sociedade brasileira, Chauí indica de forma sucinta como tal ethos de desi-gualdade cria e perpetua um enorme vão: “para os grandes, a lei é privilégio; paraas camadas populares, repressão”.13 Dentro do escopo da análise de Chauí, a tre-menda polarização sócio-econômica do Brasil custa caro à maioria da população:a poderosa minoria restringe os sem-poder a uma vida (curta) de serventia e sub-jugação.

As instalações fotográficas de Rennó exploram esteticamente a experiênciabrasileira ao ressaltar de forma graciosa e artística as desigualdades humanas queestão no cerne da situação infeliz de seu país. Imemorial, por exemplo, lamenta aperda de vida – especificamente as vidas daqueles, inclusive crianças, contratadospara trabalho braçal – em troca da realização dos sonhos futurísticos da nação.Outras instalações, como Atentado ao Poder: Via Crucis (1992) e Candelária (1993),ambos realizados antes de Imemorial, abordam a ineficácia da violência como res-posta aos intransponíveis desequilíbrios sociais do Brasil. Cada trabalho lança umolho crítico – sem ser confrontador – em direção a qualquer solução a curto-prazo sugerida para resolver os problemas mais graves do país.14

Atentado ao Poder : Via Crucis – uma instalação criada para coincidir com aConferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento de1992, conhecida como ECO-92 – enfoca a brutalidade humana durante um pe-ríodo de duas semanas quando líderes mundiais se reuniram no Brasil para discu-tir estratégias globais para prevenir a violência contra o meio ambiente. A artistareproduziu e ampliou as fotografias granuladas de jornais mostrando cadáveresensangüentados esparramados nas calçadas da cidade. Estas imagens – cada umacorrespondendo a uma Estação da Via Sacra, referenciando assim o simbolismocristão que ressalta sacrifício, traição, e brutalidade – são montadas verticalmente

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no chão contra a parede, numa postura remanescente, mais uma vez, de túmulos.Feixes de luz verde-fluorescente emanam por detrás destes retratos grotescos –quem sabe reflexos difusos do mundo natural. Os corpos mutilados, produtos demortes desnaturais e prematuras, por inferência se tornam parte da própria terra.O brilho verde pulsante contrabalança o título da instalação, afixado bem ao altoda parede branca acima, que proclama: “The Earth Summit”. O título pretensio-so, em inglês, reforça o domínio do primeiro mundo e impõe uma hierarquia falsa,sócio-econômica sobre a natureza, enquanto que os corpos humanos, cercadospor um verde gritante, parecem inferiores e esquecidos. Para o historiador da arteTadeu Chiarelli, as imagens dos cadáveres “desmascararam a hipocrisia da solida-riedade pregada na ECO-92”.15 A crítica Alma Ruiz afirma também que esta ins-talação teve como propósito zombar de um mundo “incapaz de eliminar violên-cia endêmica, desigualdade, e poluição”.16

Um olho que não se pode fechar

Enquanto Atentado ao Poder lança uma visão mundial sobre as conseqüênciasda irresponsabilidade ambiental e do abuso humano, Candelária enfoca de pertouma das piores calamidades do Brasil atual. A obra lamenta de forma pungente omassacre noturno em 1993 de meninos de rua, realizado na frente da Igreja daCandelária por autoridades locais para “limpar” o centro do Rio de Janeiro. Aocontrário das imagens chocantes publicadas em periódicos ao redor do mundo,na Candelária de Rennó não há nenhuma representação figurativa. Há uma ausên-cia absoluta de referências humanas, numa tentativa de ressaltar a perda extrema(e literal) de vidas inocentes. Através de um processo criativo de luto – ao mesmotempo racional e palpável – a artista deixa sua herança ao espectador: um olhoque não se pode fechar.17

A instalação consiste em quatro painéis com textos em forma de pipas deduas asas. O número (4 x 2) corresponde às oito crianças que foram mortas nanoite da chacina. Os painéis duplos parecem flutuar como anjos num esplendorazul-etéreo de luz fluorescente, um aspecto essencial da peça. Fios elétricossuspensos dos painéis até o chão como cordas de pipa nos lembram, como indi-cado por Paulo Herkenhoff, o passatempo infantil tão comum no Brasil. A umnível metafórico, nas palavras de Herkenhoff, “é como um fio-terra que manti-vesse a ligação com a terra como um cordão umbilical”18 – uma escada, talvez,para as mais recentes almas ascendentes.

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Para Alma Ruiz, a frieza da iluminação azulada de Candelária pode simboli-zar o caráter sangue-frio deste ato de “limpeza de rua”.19 Os painéis azul-radiantestambém podem, paradoxalmente, representar um campo celestial que contrastafortemente com a escuridão que envolve o espectador. As linhas de pipa se tor-nam a única ligação do espectador à inocência infantil, um meio para escapar daviolência arbitrária e da cumplicidade social em relação aos assassinos.

Em Candelária, as palavras substituem o horror imediato da imagem visual.A artista selecionou oito segmentos de seu Arquivo Universal, uma coleção pessoalde textos curtos retirados da mídia impressa ao longo dos anos, cada um referin-do-se de alguma forma a uma imagem fotográfica ou experiência. De acordo coma artista, esta técnica baseada em textos, livre de imagens – que força o espectadora converter palavras em imagens mentais – torna o processo de humanização e dere-lembrança mais imediata e humana. Também confere responsabilidade pessoalpela chacina a cada espectador, pois a projeção mental de suas conseqüências é dealguma forma uma participação das mesmas.

Os oito textos de Candelária reforçam a culpabilidade da sociedade ao evo-car a experiência humana em suas mais abrangentes formas. O caleidoscópio tex-tual de Rennó repercute numa variedade de problemas sociais e corrupções; sua“lente” rotatória capta imagens estáticas reveladoras: vítimas e vilãos, momentosde presságio assustador e clemência angustiante, comportamento abominável, eabuso escandaloso. Em lugar de imagens visuais das oito crianças massacradasestão passagens destoantes como esta:

A Funai vai exigir na Justiça que a empresa E. indenize a índia I., de15 anos, violentada e engravidada em agosto passado por técnicosda Empresa que faziam prospecção na reserva indígena. Osfuncionários da Funai ficaram revoltados com o descaso daEmpresa, que enviou apenas uma relação, sem fotografias, dostécnicos que trabalhavam na área na época para I., que é surda-muda e deficiente mental, identificar os autores do crime.20

Esta passagem juntamente com outras sete resumem apropriadamente aperda fatídica de inocência infantil: uma criança indígena surda-muda que é estu-prada por técnicos levantadores; um pai que perde sua jovem filha à AIDS; meno-res que ficam presas numa roda de pornografia; uma mãe que lamenta a morte deseu filho devido a negligência hospitalar; um empregado pedófilo da embaixada

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que é pego chantageando jovens meninas. Estes segmentos também captam mo-mentos de incongruência social: a afluente atriz italiana em seu carro importado ecasaco de pele que participa da luta contra a fome após ver fotografias de criançasmorrendo de fome na Somália; o casal que recebe um cupom para revelaçãogratuita de fotografias depois que o laboratório de processamento perdeu valio-sos retratos de seu neném de quatro meses; um retrato textual que preserva umsegundo de alegria provocado pelo coral que canta para os meninos de rua nafrente da Igreja da Candelária somente doze dias antes de muitos deles seremassassinados.

Estes fragmentos textuais universalizam a tragédia ao buscar referências alémde sua especificidade visual. A juventude é transviada, roubada, e literalmenteassassinada em todo lugar, todos os dias, através dos meios mais variados e eston-teantes. Enquanto que imagens dos meninos de rua fuzilados os congelariam emdata, local, e contexto específicos, ao conectar suas mortes à perda da infância aoredor do mundo, Rennó aciona uma chave exponencial no banco de memória decada espectador. Através de sua judiciosa falta de visualização, os meninos de ruado Rio se tornam a primeira imagem numa casa de espelhos em que cada reflexosurge espantosamente diferente, mas ao mesmo tempo essencialmente igual.

As instalações fotográficas de Rennó comemoram esteticamente as vidasdos que não têm voz ou nome, honrando aqueles que ocupam as margens dasociedade. De fato, como afirma Tadeu Chiarelli, Rennó lida com a “pobrezafísica, econômica, e existencial do homem contemporâneo”.21 Numa entrevistacom Melissa Chiu, Rennó reitera esta atenção prestada às “histórias dosperdedores”, que ela percebe como mais interessantes do que as “histórias dosganhadores”.22 Também já foi dito que o trabalho dela representa “o que quasevai para o lixo”.23 Suas próprias matérias-primas são muitas vezes fotografias des-cartadas: itens ou relegadas ao lixo ou recuperadas de arquivos inaccessíveis. Numespírito de fundir a arte contemporânea com consciência social, Rennó exige queo espectador participe do processo de elevar a visibilidade e valorizar aqueles quesão ou se tornaram insignificantes e descartáveis, esquecidos no meio das massasinstitucionalizadas.

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Contestando o magnetismo hegemônico

No Brasil, um país de olho no futuro, disposto a repor a imagem de ontemcom uma que seja de última geração hoje (uma substituição que exige a supressãoperpétua de seu passado histórico enquanto adere ironicamente a uma ordemsocial arcaica, herdada do ethos colonialista de serventia), a prática de manter do-cumentação institucional torna-se habitualmente antiquada, à medida que docu-mentos públicos caem em desuso continuamente. Seu desprezo e subseqüentefutilidade formam um paradoxo burocrático: fontes de identificação governamentalse tornam sujeitos de perda de identidade. Em suas obras de instalação do finaldos anos 90, Rennó problematiza este paradoxo ao retornar ao tipo de trabalhoinvestigativo que realizou para produzir Imemorial. É necessário entender que par-te do papel de Rennó como artista é de desenterrar ou – utilizando a terminologiafotográfica – expor arquivos públicos abandonados, literalmente mostrando as-sim uma narrativa oficial que havia sido esquecida. Obras como Vulgo, de 1998-1999, e Cicatriz, de 1996-2003, surgiram do exame exaustivo (e preservação) daartista de dezenas de milhares de negativos em vidro, arquivados nas coleções daPenitenciária Estadual de São Paulo no complexo de Carandiru.24

Carandiru é um lugar sobrecarregado de significados, evocando a chacinade 1992 que ocorreu na prisão e que foi retratada de forma pungente no filme deHector Babenco de 2003 sob o mesmo nome. No entanto, os trabalhos de Rennósobre prisão são derivados intencionalmente de outras fontes históricas, mais es-pecificamente do sistema de classificação baseado em medicina utilizado paraclassificar prisioneiros, desenvolvido entre os anos 20 e 40 para categorizá-los deacordo com suas marcas individuais.25 Como um meio de controle de identifica-ção, conectando táticas de monitoração com tendências de estigmatização, estaclassificação sistemática incluiu o registro de características físicas tais como corda pele, altura, e peso, assim como deformidades do corpo, cicatrizes e tatuagens.Entretanto, guardadas perpetuamente como estão, em arquivos inoperáveis (e con-seqüentemente desprezados), as imagens de fato perdem suas capacidades de iden-tificação e se transformam em meros elementos estatísticos. Os prisioneiros en-tão perdem seus nomes, seus rostos, tornando-se “cativos” das marcas distintasde seu próprio esqueleto e pele, em lugar dos indivíduos únicos que eram nopassado.

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Ao resgatar as imagens desprezadas e refotografá-las parcialmente, dandobeleza e definição às marcas dos prisioneiros, a artista restaura um sentido devalor aos prisioneiros anônimos apresentados em Vulgo. Em suas próprias pala-vras, Rennó reitera seu desejo de “dar nomes e rostos e dignidade a essas pes-soas”.26 Os traços e cicatrizes pessoais, realçados em matizes suaves pela artista,tornam-se verdadeiras marcas de beleza que simbolizam a qualidade única decada indivíduo. A obra como um todo transforma a condição humana em algoíntimo ao aproximar o espectador de seus sujeitos. Com a cumplicidade do espec-tador, a artista “recupera, discretamente, o valor das memórias sem valor”.27

Enquanto que em Candelária cifras verbais tomaram o lugar das imagensvisuais, Vulgo – uma instalação exibida no Australian Centre for Photography emSydney, na Lombard Freid Fine Arts Gallery em Nova Iorque, e na Galeria CamargoVilaça em São Paulo – combina o verbal e o visual.28 Em primeiro lugar, emtermos visuais, o trabalho consiste em anti-retratos do museu da penitenciária, ouseja, fotografias tiradas principalmente detrás das cabeças de prisioneiros (de dozefotografias, somente três foram tiradas de frente). Com poucas exceções, há umaausência total de traços faciais. Textos curtos acompanham as fotografias, tiradosdo Arquivo Universal da artista. Em cada passagem do Arquivo Universal, a fotogra-fia original de onde surgiu a legenda foi removida. A qualidade – e apelo universal– dos textos advém de certa variação lingüística, pois freqüentemente alternamentre português, inglês, espanhol, italiano e francês.

O que foi designado de Vulgo/Texto consiste em palavras brancas sobre umfundo preto, formando uma lista vertical de apelidos e codinomes criminais aolongo da página (ou tela, numa outra montagem), dispostos de acordo com cor-respondências visuais ou auditivas. Esta lista evidentemente tem a função de fugirda função documentária de uma lista oficial de nomes próprios, organizada alfa-beticamente. O inventário de Vulgo é complementado por imagens fotográficasalternadas com passagens curtas de Arquivo Universal, impressas solenemente embranco sobre branco. A uniformidade do texto branco sobre um fundo brancosimula a arte de camuflar e ocultar, e torna a tarefa de leitura ainda mais árdua.Qualquer referência humana nestes textos fica reduzida às letras X, Y, e Z, au-mentando ainda mais o sentido de anonimato.

Um dos segmentos reproduzidos em Vulgo remonta a Candelária numa cor-respondência intertextual evocativa:

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Eram nomes típicos brasileiros: Paulo Roberto, Marcelo, ValderinoMiguel, Paulo José, Marcos Antônio, Anderson, e dois que eramconhecidos simplesmente como Gambazinho e Zé Nojento. Osnomes em si significavam muito pouco. Mas quando uma procissãode crianças percorreu a ala central segurando os oito nomes emcima de suas cabeças, a multidão dentro da Candelária prestou maisatenção. As luzes das câmeras de televisão de repente foram ligadasnovamente. Fotógrafos trocaram de posição rapidamente e os flashesdispararam. E quando as crianças se viraram com suas placas defrente para os que estavam ali de luto, a mídia desceu sobre o altarcomo se não houvesse nenhuma barreira sagrada.29

Esta passagem trata da reação imediata da comunidade à chacina deCandelária, mas também documenta uma perda do espaço sagrado para reflexãoe luto, transformado pelos flashes da mídia numa arena pública, uma mudançaexacerbada pelo uso globalizante do inglês. Separada do retrato abstrato da tragé-dia feito pela própria artista, e pregada sem mais nem menos sobre outras ima-gens não-relacionadas, esta mensagem textual é capaz de transmitir uma voz críti-ca de longe-alcance e multidimensional: uma voz que questiona os direitos deinstituições de lançar um olhar invasor sobre a vida de cidadãos privados, mesmoquando estes cidadãos são réprobos sociais (prisioneiros ou crianças de rua).

Como peça de instalação, Cicatriz – um projeto concebido para o Museumof Contemporary Art de Los Angeles – entrelaça ainda mais elementos visuais everbais ao alternar fotografias íntimas de tatuagens dos prisioneiros com textosdo Arquivo Universal da artista. Em forte semelhança com a técnica textual bran-co-sobre-branco utilizada por Rennó em Vulgo para enfatizar ocultação, os com-ponentes escritos de Cicatriz foram literalmente entalhados na parede (descritoadequadamente por Alma Ruiz como tendo sido “cicatrizados”30) para simular oprocesso de gravura na pele. Uma produção em livro desta obra reproduz ostextos em páginas que parecem pele humana, aproximando ainda mais os compo-nentes escritos às imagens complementares de sujeitos tatuados.31

Os textos de Cicatriz partem da obsessão geral da artista para com (o tema)de fotografia, ao permitir que a palavra escrita amplie os parâmetros do campovisual da câmera. Enquanto que as fotografias enfocam de perto as tatuagens,amputando visualmente do corpo integral braços, mãos, ou peitos, os segmentostextuais têm o efeito contrário: o de magnificar o contexto social geral e, com isso,

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reproduzir as repercussões de nossas ações humanas numa escala global (revelan-do-se, portanto, a significação da variedade lingüística dos textos).

Como em Candelária, as inclusões textuais de Cicatriz extraem as implicaçõesmais amplas de dramas pessoais, as incorporando numa vasta estrutura social.Vários dos segmentos, por exemplo, tratam da esfera abrangente de identidade edetecção, limitações, e confinamento. Rennó afirma que os variados fragmentostextuais expõem uma topografia complexa da experiência humana, usando ametonímia de cicatrizes como seu denominador comum.32 As tatuagens em si,entretanto, ressaltam com simplicidade típica – e com algo de ironia, já que ostatuados representam desvio social – emoções humanas comuns: amor e fidelida-de, liberdade, devoção religiosa.

Apesar de ser um aspecto unificador, as tatuagens em si, como aponta AlmaRuiz, não são o foco primário destas imagens.33 Ao invés disso, a façanha admirá-vel de Rennó é de ter alterado e contextualizado as imagens de tal forma a comu-nicar qualidades primárias, humanísticas ao espectador. A intenção documentáriadas fotografias é destilada através de um foco táctil sobre impressão estética. Alémdisso, ao resgatar imagens encontradas e relançá-las dentro de uma peçapluridimensional, conceitual, a artista também elimina a tendência de ampliar odrama individual de cada imagem, que freqüentemente é a ênfase de fotografiajornalística. Ao invés de deixar a fotografia exaltar o drama social com uma espé-cie de magnetismo hegemônico, Rennó faz do espectador o elo necessário entre aarte e a condição humana. O espectador deve assimilar e entender a peça comoum todo – isto é, seu contexto conforme apresentado pela artista – para podercapturar seu sentido multifacetado. Auxiliado pela artista a captar o escoporevolvedor da memória social, o espectador é então persuadido a moldar a com-posição estética numa responsabilidade ética.34

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Sem titulo (América e Cristo), 199835

Resistindo a subjacências de abuso

O componente moral das instalações de Rennó surgem de sua insistênciaativa para que o espectador concretize, ou talvez batize, as obras em sua memóriaeticamente carregada, para que fiquem completas. Apesar de uma peça comoCicatriz não ter sido projetada para retratar diretamente a chacina de Carandiru,por exemplo (como faz o tour de force cinemático de Babenco), o espectador éconvidado a buscar correlações conceitualmente, ao separar da obra de arte asformas das quais ela expõe tangencialmente a persistência da injustiça e devasta-ção humana manifestadas no dia-a-dia.

O espectador pode querer também estabelecer conexões com outras insta-lações, como Candelária, uma rede de correspondências produzida com a intenção– ainda que atenuada – de reagir a formas sancionadas de violência, perpetuadaspor forças institucionais. O título em si, Cicatriz, sugere ferimento e mutilação,elementos aparentemente incongruentes com a ressonância visual das fotografiasem si. Enquanto que as tatuagens, conforme representadas por Rennó, podem serconsideradas formas inextinguíveis de arte, as cicatrizes referenciadas no títulodespontam para enfrentar as formas enraizadas de discriminação e abuso socialexpressas pela obra de arte como um todo. Em outras palavras, as fotografias porsi mesmas podem representar força humana; entretanto, em combinação com os

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textos e os elementos formais que juntos compõem a instalação, Cicatriz cria umespaço crítico de onde o espectador pode interpretar o papel da sociedadeinstitucionalizada na objetificação e marginalização destes indivíduos.

Escolhi enfocar somente um aspecto das contribuições artísticas de Rennó,ou seja, onde elas intersectam mais claramente com temas sociais, através de for-mas que tratam especificamente do Brasil. Se levarmos em consideração os argu-mentos da Marilena Chauí de que o autoritarismo crônico do Brasil constrói-se apartir de um quadro hierárquico de desigualdade social, as obras discutidas atéentão exploram um dilema filosófico de grande respaldo. Elas buscam formas deinserir empatia e compaixão num processo de desumanização habitual que equi-para, entre outras coisas, marginalidade econômica a exclusão social. Para evitarque marginais sociais cometam atos criminosos (realizados freqüentemente poruma questão de sobrevivência), o Estado assume o papel onipresente ou, parautilizar um termo fotográfico, panóptico, e punitivo de institucionalizar mecanis-mos de controle (mesmo se os indivíduos escolhidos para realizar tais políticassão eles próprios advindos das camadas mais baixas da ordem social). O desafiopara artistas com a sensibilidade social de Rennó é o de responder esteticamenteàs contradições radicais que existem entre a imagem pública do Brasil como umpaís alegre e pacífico (a qual, paradoxalmente, encarna) e a negação do país de suaexploração sancionada (inclusive subjugação, violência, e por vezes genocídio),ensejada pelas enormes disparidades sócio-econômicas. Atraído irresistivelmentepelo trabalho da artista, o espectador – também um membro privilegiado da elitecultural, que possui necessariamente pelo menos um certo grau de alfabetização –é encarregado de lembrar estas subjacências de abuso, resistindo a elas.

Relembrar torna-se um verbo ativo

I still remember how, in my half-conscious state, I tried to hold fastto my powdery gray dream image,which sometimes quivered in a slightbreath of air, and to discover what itconcealed, but it only dissolved all themore and was overlaid with memory,surfacing in my mind…W.G. Sebald, Austerlitz36

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Gostaria de concluir esta análise das obras de Rennó com uma discussão demais duas peças que instigam o espectador a realizar uma missão difícil que envol-ve o ato de ver com o propósito de lembrar, como sugerido acima por W.G.Sebald. A instalação Hipocampo (1995) – “o nome dado a uma região do cérebroonde se acredita que a memória esteja armazenada”37 – é especialmente provocativaao insistir em forçar a assumirem indivíduos privados (neste caso, espectadores) opapel de guardiões da memória pública. Numa sala iluminada, o espectador de-fronta-se com paredes e colunas em branco. Somente quando se apagam as luzese o espectador é cercado pela escuridão é que textos pintados em verde fluores-cente surgem da obscuridade. Durante dois minutos e meio é permitido ao espec-tador formular imagens mentais das legendas que emergem da escuridão, algumasdelas circundando as colunas, outras projetadas diagonalmente nas paredes. Deacordo com a artista, “na escuridão, tudo se torna legível”.38

O processo de leitura subseqüentemente torna-se mais difícil quando ostextos começam a dissolver-se numa luz gradual, banhada em brancura. À medidaque o brilho intensifica-se, o espectador perde ou mantém sua noção, dependen-do de quanto esteja ancorado nas imagens mentais que surgiram a partir dostextos. Nas palavras da crítica de arte Regina Barros: “A luz ofusca, cega e nãorevela nada”.39 O espectador precisa reter uma lembrança do que foi lido até queseja mais uma vez submergido na escuridão. A tarefa árdua de ver e lembrar tor-na-se uma metáfora viva e vivida de responsabilidade social, mesmo quando de-frontada, como a instalação ressalta, com uma parede de escuridão que simbolizaa navegação através das adversidades da vida.

A Série Vermelha (Militares) (2000-2003) de Rennó, exibida na Biennale deVeneza de 2003 (para a qual a artista foi uma de dois brasileiros selecionados pararepresentar o Brasil), também faz demandas rigorosas do espectador. Entretanto,neste caso exige-se do olhar arquivístico ao espectador uma responsabilidade qua-se arqueológica, ou escavadora. Na instalação, montada a partir de variados retra-tos de álbuns fotográficos de meninos e homens vestidos de uniforme, a artistaamplia os retratos – imagens digitais reproduzidas sobre papel fotográfico – paracapturar a rigidez da profissão dos sujeitos, realçando suas posturas enrijecidas,disciplinadas. Uma tintura vermelho-sangue estabelece uma distância segura entreespectador e sujeitos, mas também magnifica a ameaça potencial destes últimos.As camadas transparentes pintadas de vermelho comunicam desapego e realçamuma qualidade de intransigência dos retratos que se materializa por detrás deles.

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Através de suas poses controladoras, estes homens militares destacam-se de seuspanos-de-fundo e de seus espectadores, numa camada protetora de impunidade.Em contraste com as fotografias da Penitenciária, aqui Rennó sublinha a oposi-ção entre autoridade e liberdade do ponto de vista do opressor, como que paraenfatizar, de acordo com Alfons Hug, “os pólos extremos da existência huma-na”.40

O espectador pode colocar-se à uma certa distância e olhar para estas ima-gens de forma desapegada, refletindo as poses impermeáveis dos sujeitos dasfotografias. Entretanto, paradoxalmente, como a camada vermelha dificulta a lei-tura das imagens detrás dela – as tornando por vezes ilegíveis ou invisíveis – oespectador é literal e figurativamente levado a aproximar-se mais das fotografias.O olho é encarregado de relembrar os traços dos sujeitos, de separá-los da tintavermelha que os obscurece, como os arqueólogos separam os detritos do passadodo solo do presente.

E nesta altura o espectador precisa tomar uma decisão. É possível resgatar ahumanidade dos detritos imundos de um mundo devastado por guerra? O olhoempático, compassivo consegue re-montar os traços de uma pose militar sobreaqueles de um homem de família retratado num estimado álbum de fotografia?Ou o espectador se torna, ao concretizar estas imagens meio-escondidas, um cúm-plice dos sujeitos fotográficos em sua sanção do complexo industrial-militar quesustenta seu poder? Eis a questão: deve-se olhar ou desviar o olhar?

Esta é a questão no cerne das instalações participatórias de Rennó. O ato deolhar torna-se carregado de responsabilidade moral; relembrar torna-se um verboativo. Através da ação de uma visão destabilizadora e de imagens fotográficasressuscitadas – o invisível torna-se novamente visível – nós, seus espectadores,temos que encarar nossas inações, nosso esquecimento, e nossa amnésia crônica,e assumir a responsabilidade de nada menos do que construir o futuro.

ABSTRACT

Brazilian artist Rosângela Rennó creates photographicinstallations – often using found materials such as outdatedinstitutional identity cards – that challenge the convenientforgetfulness of the young Brazilian nation. Works such asCicatriz, or Scar, respond aesthetically to the radical inequitiesof Brazilian society. Rennó’s works charge each viewer with

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the moral and excavational task of remembering humanfeatures, and by metonymic implication, humanity itself, fromdehumanizing images. Her installations recall the erasure ofidentity and indeed, of life itself, thereby charging viewers’memories with the task of retaining the horror of absence,and carrying an activist gaze into the future.

Key words: photographs, social amnesia, justice.

Notas

1 Meus sinceros agradecimentos à Rosângela Rennó e à Galeria Fortes Vilaça pela ajuda durante aminha pesquisa; e a Marcos Gallon, da Galeria Vermelho, em São Paulo, por sua valiosa ajudacom as imagens incluídas no presente trabalho. Agradecimentos também à Pamela Petro e àDana Leibsohn pelo apoio editorial, assim como Elena Langdon na tradução. Este ensaio édedicado à memória de Mary Frances Diaz, amiga e ativista incansável pelos direitos humanos.

2 Ver Sontag, Susan, On Photography. New York: Picador, 2001; 1 ed. 1978; e John Berger, AboutLooking. New York: Pantheon Books, 1980, p. 54. O ensaio de John Berger intitulado “Uses ofPhotography” (p. 48-63) é dedicado a Susan Sontag.

3 A exposição “Revendo Brasília neu gesehen” foi organizada pelo Projeto do Instituto Goethe deBrasília e a Fundação Athos Bulcão, com a colaboração do Ministério de Relações Exteriores deBonn e da Embaixada da República Federal da Alemanha em Brasília. Foi exibida na GaleriaAthos Bulcão, Teatro Nacional, Brasília entre 1-25 set. 1994. Entre out. 1994 e mai. 1995 viajoupara São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre e Belo Horizonte.

4 Salles, Evandro, “Cruel Horizonte”, In Revendo Brasília neu gesehen. Brasília: Goethe-Institut e Fun-dação Athos Bulcão, 1994, p. 48-51.

5 Ver Visconti, Jacopo Crivelli, “Evidências Ocultas”, In Shattered Dreams=Sonhos despedaçados: BeatrizMilhazes/Rosângela Rennó. São Paulo: Fundação Beinal de São Paulo, 2003, p. 44; ver tb. “Cronolo-gia”, In: Rosângela Rennó: Depoimento, org. Janaina Melo. Belo Horizonte: Circuito Atelier, 2003, p.92.

6 Depoimento à autora, Rio de Janeiro em 15 de junho de 2004.

7 Ver Ruiz, Alma, “Cicatriz”, In Rosângela Rennó: Cicatriz. Los Angeles: The Museum of ContemporaryArt, 1996, p. 6.

8 Visconti, J. C. “Evidências Ocultas”, op. cit., p. 46.

9 Saltzman, Lisa, resenha de At Memory’s Edge: After-Images of the Holocaust in Contemporary Art andArchitecture, de James E. Young (New Haven and London: Yale UP, 2000), In Bryn Mawr Review ofComparative Literature v. 2, n. 2 (Spring 2001), s/p.

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10 Da série Museu Penitenciário/Cicatriz. A partir de original do Museu Penitenciário Paulista. Foto-grafia p&b em papel resinado, laminada, montada em PVC Sintra. Coleção MOCA, Los Angelese coleção particular, São Paulo.

11 Berger, J. “Uses of Photography”, op. cit., p. 58-60.

12 Rennó, Rosângela, “Vera Cruz”, In Virgin Territories. Washington DC: National Museum of Womenin the Arts, 2001, p. 97.

13 Chauí, Marilena, Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação PerseuAbramo, 2004, p. 90. 5 ed. 1 ed. 2000.

14 Estas instalações foram criadas logo após a mudança da Rosângela Rennó para o Rio de Janeiro,onde ela deparou-se pela primeira vez com o índice de alta violência e criminalidade da cidade,inclusive seqüestros e assassinatos, contra os quais a sua arte demanda a reação do espectador.Depoimento à autora, Rio de Janeiro em 15 de junho de 2004.

15 Chiarelli, Tadeu, “La Mirada Contaminada: Otras Fotografias/The Contaminated Gaze: OtherPhotographies”, Poliéster v. 2, n. 8 (Primavera 1994), p. 38.

16 Ruiz, A. “Cicatriz”, op. cit., 7.

17 Esta expressão vem do ensaio de John Berger intitulado “Photographs of Agony”, op. cit., p. 38.

18 Herkenhoff, Paulo, “Rennó ou a Beleza e o Dulçor do Presente“, In Rosângela Rennó. São Paulo:EdUSP, 1998, p. 161.

19 Ruiz, A. “Cicatriz”, op. cit., p. 8.

20 Rennó, Rosângela. O arquivo universal (coleção da artista). Texto em mimeo cedido à autora pelaartista.

21 Chiarelli, Tadeu, “Photography in Brazil in the 1990s”, In Lapiz; Revista Internacional de Arte(Madrid, Jul.-Set: 117-123), 1997, p. 121.

22 Chiu, Melissa, “Rosângela Rennó Interview”, In Vulgo [Alias]: Rosângela Rennó. Sydney, Australia:University of Western Sydney-Nepean, 1999, p. 42.

23 Ver Cameron, Dan, “Entre as Linhas”. São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1995, p. 5; e Melo, J.,op. cit., p. 15.

24 Ruiz, A. “Cicatriz”, op. cit, p. 8-9.

25 De fato, para obter acesso aos arquivos (um esforço que durou nove meses) Rennó teve queprometer que de nenhuma forma representaria a chacina. Depoimento à autora, Rio de Janeiroem 15 jun. 2004.

26 Chiu, M. “Rosângela Rennó Interview”, op. cit., p. 43.

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27 Melendi, Maria Angélica, “Bibliotheca ou das possíveis estratégias da memória“, In RosângelaRennó: o arquivo universal e outros arquivos, org. Adriano Pedrosa e Maria Angélica Melendi. SãoPaulo: Cosac & Naify/CCBB, 2003, p. 33.

28 Enquanto Rosângela Rennó estava visitando o Australian Centre for Photography em Sydney lhefoi concedido acesso aos arquivos que mantinham a documentação criminal de aborígines, am-pliando assim o contexto da sua obra. Depoimento à autora, Rio de Janeiro, 15 jun. 2004.

29 Cf. Pedrosa, A. e Melendi, M.A., op. cit, s/p. Na citação em inglês: “They were typical Braziliannames: Paulo Roberto, Marcelo, Valderino Miguel, Paulo José, Marcos Antônio, Anderson, andtwo who simply went by the nicknames of Gambazinho and Zé Nojento. The names alone meantlittle. But when a procession of children walked up the centre aisle holding the eight names abovetheir heads, the crowd inside Candelária became more focused. The lights for the video cameraswere suddenly switched back on. Photographers quickly shifted their positions and flashes flared.And when the children turned around with their signs facing the mourners, the press descendedupon the altar as if there were no sacred boundaries.”

30 Ruiz, A. ”Cicatriz”, op. cit., p. 9.

31 Cf. Pedrosa, A. e Melendi, M.A., op. cit., s/p.

32 Ferreira, José Guilherme R., “Entrevista: Rosângela Rennó”, Cult no. 6. São Paulo, 1998, p. 11.

33 Ruiz, A. “Cicatriz”, op. cit., p. 10.

34 Ver Herkenhoff, Paulo no seu ensaio “Brasil/Brasis”, In Arte contemporânea brasileira: texturas, dic-ções, ficções, estratégias, org. Ricardo Basbaum. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 359-370.Herkenhoff afirma: “Uma marca que atravessou gerações de artistas brasileiros deste século [...]foi a tradição de tomar a arte como uma experiência ética” (p. 368).

35 Da série Museu Penitenciário/Cicatriz. A partir de original de Museu Penitenciário Paulista. Impres-são digital (processo Íris) sobre papel Sommerset). Coleção Daros Latin America, Zurich, e cole-ção particular, San Diego.

36 Sebald, W.G. Austerlitz. trad. Anthea Bell. New York: The Modern Library, 2001, p. 194.

37 Barros, Regina Teixeira de, “Rosângela Rennó: Hipocampo”, Poliéster 14 (Winter 1995-1996), p.54.

38 Cf. Melo, J. , op. cit., p. 84.

39 Barros, R. T. “Rosângela Rennó: Hipocampo”, op. cit., p. 55.

40 Hug, Alfons, “Sonhos Despedaçados“, In Shattered Dreams=sonhos despedaçados: Beatriz Milhazes/Rosângela Rennó. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2003, p. 19.