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Brasília a. 35 n. 139 jul./set. 1998 71 1. Introdução Na introdução de sua obra Über die Verfassung, traduzida para a edição brasileira como “A Essência da Constituição”, Ferdinand Lassalle afirma o caráter científico da sua palestra 1 , exortando o público ouvinte a se despir de quaisquer idéias ou conhecimentos prévios a respeito do tema, como se dele tomasse conhecimento pela primeira vez, para que melhor acompanhasse e compreendesse o desenvolvimento do seu pensamento. Tal posição se justifica pelo caráter da conferência proferida, que, como o próprio texto sugere, talvez tivesse como objetivo consci- entizar o proletariado ouvinte. Aspectos biográficos, traçados por Aurélio Wander Bastos no prefácio da obra, fornecem-nos um perfil de Ferdinand Lassalle, que não teria se preocupado em dar uma tonalidade jurídica ao seu discurso, nem tampouco em fornecer subsídios lógicos para a formulação de uma A essência da Constituição no pensamento de Lassalle e de Konrad Hesse IACYR DE AGUILAR VIEIRA Iacyr de Aguilar Vieira é Professora Assistente no Departamento de Direito da Universidade Federal de Viçosa-MG. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. SUMÁRIO 1. Introdução. 2. A Constituição no pensamento de Ferdinand Lassale. 3. A Constituição no pensa- mento de Konrad Hesse. 4. Conclusão. 1 Segundo Aurélio Wander Bastos (em Nota Explicativa à edição brasileira de Über die Verfassung, traduzida como “A Essência da Constituição”, Rio de Janeiro : Liber Juris, 1985. p. ix), trata-se de uma conferência proferida em 1863, para intelectuais e operários da antiga Prússia. Segundo Konrad Hesse (A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre : S.A. Fabris, 1991. p. 9. Tradução de: Die normative Kraft der Verfassung), trata-se de conferência sobre a essência da Constituição, proferida em 16 de Abril de 1862, numa associação liberal-progressista de Berlim.

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1. Introdução

Na introdução de sua obra Über dieVerfassung, traduzida para a edição brasileiracomo “A Essência da Constituição”, FerdinandLassalle afirma o caráter científico da suapalestra1, exortando o público ouvinte a sedespir de quaisquer idéias ou conhecimentosprévios a respeito do tema, como se deletomasse conhecimento pela primeira vez, paraque melhor acompanhasse e compreendesse odesenvolvimento do seu pensamento.

Tal posição se justifica pelo caráter daconferência proferida, que, como o próprio textosugere, talvez tivesse como objetivo consci-entizar o proletariado ouvinte. Aspectosbiográficos, traçados por Aurélio WanderBastos no prefácio da obra, fornecem-nos umperfil de Ferdinand Lassalle, que não teria sepreocupado em dar uma tonalidade jurídica aoseu discurso, nem tampouco em fornecersubsídios lógicos para a formulação de uma

A essência da Constituição nopensamento de Lassalle e de KonradHesse

IACYR DE AGUILAR VIEIRA

Iacyr de Aguilar Vieira é Professora Assistenteno Departamento de Direito da Universidade Federalde Viçosa-MG. Mestre em Direito pela UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. A Constituição no pensamentode Ferdinand Lassale. 3. A Constituição no pensa-mento de Konrad Hesse. 4. Conclusão.

1 Segundo Aurélio Wander Bastos (em NotaExplicativa à edição brasileira de Über die Verfassung,traduzida como “A Essência da Constituição”, Riode Janeiro : Liber Juris, 1985. p. ix), trata-se de umaconferência proferida em 1863, para intelectuais eoperários da antiga Prússia. Segundo Konrad Hesse(A força normativa da Constituição. Tradução deGilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre : S.A. Fabris,1991. p. 9. Tradução de: Die normative Kraft derVerfassung), trata-se de conferência sobre a essênciada Constituição, proferida em 16 de Abril de 1862,numa associação liberal-progressista de Berlim.

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teoria da Constituição, mas, sim, em cons-cientizar o ouvinte, numa preocupação eminen-temente política.

O texto analisado trata de questões rele-vantes tais como: poder constituinte, processode formação das leis, reforma constitucional,supremacia da Constituição, distinção entreConstituição formal e Constituição material etc.,sem conferir-lhes tratamento jurídico.

Coube-lhe, no entanto, o mérito de haverlançado as bases de uma análise da Constituiçãono sentido material e sociológico, ao afirmar anecessidade de distinguir entre Constituiçõesreais e Constituições escritas. Considerando quea verdadeira Constituição de um país residesempre e unicamente nos fatores reais e efetivosde poder que dominam nessa sociedade,observa que, quando a Constituição escrita nãocorresponder a tais fatores, está condenada aser por eles afastada.

Submetendo-se a tais condições, ou éreformada para ser posta em sintonia com osfatores materiais de poder da sociedadeorganizada, ou sucumbe perante esta. Naconcepção de Lassalle, os problemas consti-tucionais não são primariamente problemas dedireito, mas de poder.

A análise do texto “A Essência da Consti-tuição” será feita, basicamente, com o subsídioda obra “A Força Normativa da Constituição”(tradução efetuada pelo Professor GilmarFerreira Mendes da aula inaugural proferida peloProfessor Konrad Hesse na Universidade deFreiburg – RFA, em 1959, sob o título: Dienormative Kraft der Verfassung).

Konrad Hesse, ao contrapor-se às reflexõesdesenvolvidas por Ferdinand Lassalle, não asrefuta de forma peremptória. Relativizando aconcepção de Lassalle, a completa; trazendo-apara uma nova realidade, realça o caráternormativo da Constituição.

Na concepção de Hesse, a realização daConstituição importa na capacidade de operarna vida política, nas circunstâncias da situaçãohistórica e, especialmente, na vontade deConstituição, que procede de três fatores: daconsciência da necessidade e do valor específicode uma ordem objetiva e normativa que afaste oarbítrio; da convicção de que esta ordemconstituída é mais do que uma ordem legitimadapelos fatos e que necessita estar em constanteprocesso de legitimação, e da consciência deque se trata de uma ordem que não logra sereficaz sem o concurso da vontade humana,

principalmente das pessoas envolvidas noprocesso constitucional, isto é, de todos ospartícipes da vida constitucional.

Hesse relativiza as idéias de Lassalle aocondicionar a autonomia da Constituição:

“A norma constitucional não temexistência autônoma em face da realidade.A sua essência reside na sua vigência,ou seja, a situação por ela reguladapretende ser concretizada na realidade.Essa pretensão de eficácia (Geltungsans-pruch) não pode ser separada das con-dições históricas de sua realização, queestão, de diferentes formas, numa relaçãode interdependência, criando regraspróprias que não podem ser descon-sideradas. Devem ser contempladas aquias condições naturais, técnicas, econô-micas e sociais. A pretensão de eficáciada norma jurídica somente será realizadase levar em conta essas condições”.

E acrescenta um elemento axiológico:“Há de ser, igualmente, contemplado

o substrato espiritual que se consubs-tancia num determinado povo, isto é, asconcepções sociais concretas e o baldra-me axiológico que influenciam decisiva-mente a conformação, o entendimento ea autoridade das proposições norma-tivas”2.

Como se pode observar nas primeiras linhas,tanto a obra de Lassalle quanto a obra de Hessefornecem elementos para uma teorização daConstituição; um esforço de elaboração e apro-fundamento de um conceito de Constituição.

Bem observa Jorge Miranda3 que não causasurpresa o fato de a Constituição surgir “comnatureza, significação, características e funçõesdiversas consoante as diferentes correntesdoutrinais que atravessam os séculos XIX e XX”.

Entre essas correntes, destaca o autorportuguês as concepções jusnaturalistas(“manifestadas segundo as premissas dojusracionalismo nas Constituições liberais einfluenciadas depois por outras tendências”),as positivistas (Laband, Jellinek ou Carré deMalberg e Kelsen), as historicistas (Burke, DeMaistre, Gierke), as sociológicas (aqui se incluiFerdinand Lassalle), as marxistas, as institu-cionalistas (Hauriou, Renard, Burdeau, SantiRomano, Mortati), a decisionista (Schmitt), as

2 HESSE, op. cit., p. 14-15.3 Manual de Direito Constitucional. 3. ed. Coim-

bra : Coimbra Ed., 1991. v. 2, p. 53.

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concepções decorrentes da filosofia dos valores(Maunz, Bachof) e as concepções estruturalistas(Spagna Musso, José Afonso da Silva)4.

Não obstante, a riqueza doutrinária que aanálise pormenorizada de cada uma dessasconcepções traria a este estudo não a faremos.Vale ressaltar que o quadro histórico em quesurge cada concepção traz seu próprio contornopolítico e econômico, que por sua vez determinao contorno social.

O Estado, ao tempo em que escreve Lassalle,encontra-se dentro de uma moldura que nãocomportaria o Estado ao tempo em que escreveHesse. As estruturas políticas, econômicas esociais oferecem ao constitucionalismo doséculo XIX conotações diversas das oferecidasà doutrina constitucional do século XX.

Além das experiências vivenciadas duranteas duas grandes guerras e o desenvolvimentocientífico e industrial verificado no século XX,podemos apontar ainda a instituição das formasde controle jurisdicional da constitucionalidadeque, também neste século, constituíram fatoresde modificação sobre a ordem constitucional.

Conforme realçado por Jorge Miranda5, “oconceito material de Constituição vai acusar noséculo XX as repercussões dos acontecimentosque o balizam, vai ser assumido ou utilizado pordiferentes regimes e sistemas políticos e abrir-se, portanto, a uma pluralidade de conteúdos”.

A influência histórica se revela de forma clarano posicionamento de Lassalle. Tal fator é melhorobservado quando confrontamos seu pensa-mento com o de Konrad Hesse.

Para melhor clareza na exposição, dividiremoseste trabalho em duas partes: A Constituiçãono pensamento de Ferdinand Lassalle e AConstituição no pensamento de Konrad Hesse.

2. A Constituição no pensamento deFerdinand Lassalle*

Assim como a interpretação jurídica dependesempre da concepção que o intérprete tenha doDireito6, saber o que seja a essência da Cons-tituição dependerá sempre da concepção quese tenha da Constituição.

Lassalle inicia sua obra com uma indagação:qual a verdadeira essência, qual o verdadeiroconceito de uma Constituição?

Não basta apresentar a matéria concreta dedeterminada Constituição, tampouco bastabuscar, na legislação precedente, seus dispo-sitivos para alcançarmos um conceito deConstituição e, portanto, a sua essência.

Analisando a resposta de um jurisconsulto:“Constituição é um pacto juramentado entre orei e o povo, estabelecendo os princípiosalicerçais da legislação e do governo dentro deum país”, ou, tratando-se de um país repu-blicano: “A Constituição é a lei fundamentalproclamada pela nação, na qual baseia-se aorganização do Direito Público do País”, o autorentende que as respostas jurídicas distanciam-se muito e não explicam cabalmente a perguntafeita, limitando-se a descrever exteriormentecomo se formam as Constituições e o que fazem;fornecem critérios, notas explicativas paraconhecer juridicamente uma Constituição, porémnão esclarecem onde está o conceito de todaConstituição, isto é, onde pode ser encontradaa sua essência7; também não servem para nosorientar se uma Constituição é boa ou má, factívelou irrealizável, duradoura ou insustentável.

Somente é possível verificar “se a CartaConstitucional determinada e concreta queestamos examinando se acomoda, ou não, àsexigências substantivas” após sabermos qual éa verdadeira essência de uma Constituição, oque não é possível por meio das definiçõesjurídicas, “pois podem ser aplicadas a todos ospapéis assinados por uma nação ou por esta eseu rei, proclamando-as Constituições, seja qualfor o seu conteúdo, sem penetrarmos na suaessência”.

4 Ibidem, p. 53-4.5 Ibidem, p. 20.* As transcrições entre aspas, sem referência

expressa, pertencem ao texto A Essência daConstituição.

6 AGUIAR JR. Ruy Rosado de. Interpretação.Ajuris, Porto Alegre, n. 45, 1989.

7 Atualmente pode-se apontar como elementosessenciais da Constituição o seu caráter temporal,isto é, abertura ao tempo, historicidade; o seu caráterprocessual, isto é, como quadro normativo, insere-seno processo histórico que determina a sua muta-bilidade; consenso, pois, como projeto dirigido aofuturo, com base na aceitação, para que haja eficáciaprogramática é necessário que haja consenso sob penade perder a legitimidade; unidade, apesar de não serum código, de não ser exaustiva, requer unidade, queé alcançada por meio de princípios aglutinadores;abertura ao tempo, o que requer, pela sua incom-pletude, uma estrutura aberta cuja concretização seráefetuada pelo Judiciário; e ordem. Notas de aula,quando da apresentação Seminário – Aplicabilidadedas Normas Constitucionais pelo mestrandoHumberto Bergamnn Ávila. CPG-Mestrado emDireito- UFRGS. 1º semestre de 1995.

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Lassalle busca encontrar o conceito deConstituição por meio do método da compa-ração. Comparando Lei e Constituição, épossível estabelecer a diferença entre uma eoutra, a partir de uma afinidade entre ambas – aessência genérica comum: “Uma Constituição,para reger, necessita de aprovação legislativa,isto é, tem que ser também lei. Todavia, não éuma lei como as outras, uma simples lei: é maisdo que isso”.

A diferença fundamental está no fato de sera Constituição mais do que uma simples lei:

- Diante do grande número de leis editadas atodo o tempo não há protesto. Há consenso danecessidade de edição de novas leis, que sempremodificam o aparelhamento legal existente.

- No entanto, há também consenso de que omesmo não deve ocorrer quanto à Constituição.Há uma grande reserva quanto a modificaçãona Constituição. Muitos protestam.

- Existem Constituições que dispõem taxati-vamente que a Constituição não poderá seralterada de modo algum.

- Outras Constituições dispõem que, paraserem reformadas, não é o bastante o desejo deuma maioria simples; há necessidade de obten-ção de 2/3 dos votos do Parlamento.

- Existem ainda as que declaram não ser dacompetência dos corpos legislativos suamodificação, nem mesmo unidos ao PoderExecutivo. Para reformá-la, deverá ser nomeadauma nova Assembléia Legislativa ad hoc, criada,expressa e exclusivamente, para esse fim, paraque tal Assembléia se manifeste acerca daoportunidade ou conveniência de ser a Consti-tuição modificada.

Esses fatos demonstram que “no espíritounânime dos povos, uma Constituição deve serqualquer coisa de mais sagrado, de mais firme,de mais imóvel que uma lei comum”.

A resposta “Constituição não é uma lei comoas outras, é uma lei fundamental da nação” podefornecer a verdade que está sendo buscada. Maspara que tal aconteça, faz-se necessárioresponder a outra pergunta: “Como distinguiruma lei da Lei Fundamental?” ou, “Qual adiferença entre Lei Fundamental e outra leiqualquer?”

No processo de distinção, destacam-se osseguintes pontos: a Constituição como leifundamental deve constituir o verdadeirofundamento das outras leis, devendo informá-las e engendrá-las: “a idéia de fundamento traz,implicitamente, a noção de uma necessidade

ativa, de uma força eficaz e determinante, queatua sobre tudo que nela se baseia, fazendo-aassim e não de outro modo”.

“Sendo a Constituição a lei fundamental deuma nação, será qualquer coisa que logopoderemos definir e esclarecer, ou, como jávimos, uma força ativa que faz, por uma exigênciada necessidade, que todas as outras leis einstituições jurídicas vigentes no país sejam oque realmente são”.

Assinalando a supremacia da Constituição,conclui:

“Promulgada, a partir desse instante,não se pode decretar, naquele país,embora possam querer, outras leiscontrárias à fundamental”.

À pergunta: – “Será que existe em algumpaís alguma força ativa que possa influir de talforma em todas as leis do mesmo, que as obriguea ser necessariamente, até certo ponto, o quesão e como são, sem poderem ser de outromodo?” responde:

“Os fatores reais do poder que atuamno seio de cada sociedade são essa forçaativa e eficaz que informa todas as leis einstituições jurídicas vigentes, deter-minando que não possam ser, em subs-tância, a não ser tal como elas são”.

Exemplifica com a hipótese de um incêndioque destruísse todos os originais e todas ascópias impressas de todas as leis de um país,gerando a necessidade de decretação de novasleis. “Neste caso, pergunta ele, o legislador,completamente livre, poderia fazer leis decapricho ou de acordo com o seu próprio modode pensar?”

Para responder, começa por enumerar osfatores reais do poder: a monarquia, a aristo-cracia, a grande burguesia, os banqueiros, apequena burguesia e a classe operária.

A monarquia – Mesmo que o povo quisessenão reconhecer as prerrogativas que até entãolhe tinham sido dispensadas ou não aceitasse amonarquia, não poderia impor a sua vontade,pois, contando com o apoio do Exército, omonarca estaria protegido – conclui ele: “umrei, a quem obedecem o Exército e os canhões...é uma parte da Constituição”.

A aristocracia – A influência dos nobres,grandes proprietários de terra, que, formandouma Câmara Alta, fiscalizam os acordos daCâmara dos Deputados – eleita pelo voto detodos os cidadãos –, aprovando-os ou não, alémde contar com o apoio do Exército e dos canhões,

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é sentida pelo rei e constitui “também uma parteda Constituição”.

A grande burguesia – A expansão industrialnão aceitaria uma Constituição inspirada nomodelo medieval (do tipo “gremial”). A expansãoindustrial requer “ampla liberdade de fusão dosmais diferentes ramos do trabalho nas mãos deum mesmo capitalista” e “necessita, ao mesmotempo, da produção em massa e da livreconcorrência – aqui no sentido de empregarquantos operários necessitar, sem restrições”.

A implantação de uma Constituição nosmoldes medievais, isto é, do tipo gremial,provocaria uma crise no setor industrial e,conseqüentemente, no social. O fechamento defábricas e o desemprego levariam os homenssem trabalho às ruas, subsidiados pela grandeburguesia. Assim, a grande burguesia, também,um fragmento da Constituição.

Os banqueiros – O fato de o Governotambém sentir apertos financeiros e necessitarcontrair empréstimos em troca antecipada detítulos da Dívida Pública faz com que osbanqueiros também se tornem parte da Consti-tuição. O Governo deles necessita, como tam-bém necessita da cotação que a Bolsa de Valoresdá aos títulos da Dívida Pública.

O Governo, limitado quanto à implantaçãode medidas excepcionais que firam os interessesdos banqueiros e das Bolsas de Valores, conferea estes lugar especial como fator real de poder,isto é, como parte da Constituição.

A consciência coletiva e a cultura geral daNação também são consideradas “como partí-culas, não pequenas, da Constituição”.

A pequena burguesia e a classe operária –Na proteção dos interesses e na manutençãodos privilégios da nobreza, dos banqueiros, dosgrandes industriais e dos grandes capitalistas,o Governo poderia privar a pequena burguesiae a classe operária das suas liberdades políticas?

Lassalle conclui que sim, mesmo que deforma transitória. Mas se o Governo pretendessesubtrair à pequena burguesia e à classe operárianão somente suas liberdades políticas, mas sualiberdade pessoal, transformando-as em escra-vos, não alcançaria tal pretensão, pois a pequenaburguesia e a classe operária protestariam,formando um bloco invencível. Constitui entãoo povo uma parte integrante da Constituição.

A monarquia, a aristocracia, a grandeburguesia, os banqueiros, a consciênciacoletiva, a cultura geral da Nação e também o

povo (a pequena burguesia e a classe operária)constituem os fatores reais de poder.

A tese fundamental do pensamento deLassalle pode ser assim resumida: a Constituiçãode um País é, em essência, “a soma dos fatoresreais do poder que regem uma nação”.

Estabelece a relação que existe entre essesfatores reais de poder e a Constituição jurídica:

“Juntam-se esses fatores reais dopoder, os escrevemos em uma folha depapel e eles adquirem expressão escrita.A partir desse momento, incorporados aum papel, não são simples fatores reaisde poder, mas sim verdadeiro – direito,instituições jurídicas. Quem atentarcontra eles atenta contra a lei, e porconseguinte é punido”.

Segundo Lassalle, “ninguém desconhece oprocesso que se segue para transformar essesescritos em fatores reais do poder, transfor-mando-os desta maneira em fatores jurídicos”.Tal fenômeno ocorre de forma “diplomática”,não havendo uma declaração expressa de que“os senhores capitalistas, o industrial, a nobrezae o povo são um fragmento da Constituição, ouque o banqueiro X é outro pedaço da mesma”.

Relata uma situação ocorrida na época, queretrata como os fatores reais de poder, dissimu-ladamente, operam por meio da legalidade: oSistema Eleitoral das Três Classes, que vigorariana Prússsia de 1848 a 1918.

Até 1848, vigia o sufrágio universal, quegarantia a todo cidadão, fosse rico ou pobre, omesmo direito político, as mesmas atribuiçõespara intervir na administração do Estado. Com apromulgação da Lei das Três Classes (1848),usurparam-se, aos trabalhadores e à pequenaburguesia, suas liberdades políticas, semdespojá-las, no entanto, de um modo imediato eradical, dos bens pessoais, constituídos pelodireito à integridade física e à propriedade.

A Lei das Três Classes dividia a Nação emtrês grupos eleitorais de acordo com os impostospor eles pagos e que eram calculados de acordocom as posses de cada eleitor, chegando aalcançar resultados como: o opulento teria omesmo poder político que dezessete cidadãoscomuns, ou melhor, nos destinos políticos doPaís; o capitalista teria uma influência dezessetevezes maior que a de um simples cidadão semrecursos.

Outro exemplo apresentado por Lassalle é oda formação de uma Câmara Senhorial, umSenado, constituída pelos representantes da

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grande propriedade sobre o solo – proprietáriospor tradição – e outros elementos secundários,com atribuições de aprovar ou não os acordoscelebrados pela Câmara dos Deputados eleitapela Nação, que não teriam valor legal se fossemrejeitados por essa Câmara Senhorial, ou Senado.

A vontade nacional, e de todas as classesque a compõem, por mais unânime que seja, ficaminada pela prerrogativa atribuída a um grupode cidadãos que detêm a propriedade do solo.

Apenas o rei (e o Exército) pode superar opoder atribuído às três classes de eleitores.Como chefe supremo das Forças Armadas, umavez que estas não são obrigadas a prestarjuramento à Constituição, mas ao rei, possui esteum poder muito superior ao que goza a Naçãointeira, mesmo tendo esta um poder efetivo muitomaior que do Exército. Isso porque o Exército seconstitui numa força organizada que podereunir-se a qualquer hora do dia ou da noite eque funciona com disciplina, enquanto o povo,mesmo sendo em número superior, não seencontra organizado, além de não possuircanhões.

Lassalle, no entanto, não subestima a forçado povo, que “pode se levantar contra o poderorganizado, opondo-lhe sua formidável supre-macia, embora desorganizada”.

O autor conclui a primeira parte de suaConferência entendendo haver demonstrado arelação que guardam entre si as duas Consti-tuições de um país: a Constituição real e efetiva,integralizada pelos fatores reais de poder queregem a sociedade, e a Constituição escrita, àque denomina de “folha de papel”, numa alusãoà frase de Frederico Guilherme IV que teria dito:

“Julgo-me obrigado a fazer agora,solenemente, a declaração de que nem nopresente nem para o futuro permitirei queentre Deus do céu e o meu país seinterponha uma folha de papel escrita,como se fosse uma segunda Providência”.

Observando que todos os países possuírame possuirão sempre uma Constituição real eefetiva, afirma ser esta uma necessidade que seimpõe, “pois não é possível imaginar uma Naçãoonde não existam os fatores reais de poder,quaisquer que sejam eles”.

Aponta como exemplo a França, em que opovo estava habituado a sofrer o peso de todosos impostos e prestações que lhe quissessemimpor; ressalta a desnecessidade de que talcircunstância conste de documento escrito, umavez que naquele país vigorava a expressão

simples e clara dos fatores reais de poder, nãoconstando, em nenhum documento escrito, quaisos direitos do povo e quais os direitos doGoverno. Tais tradições de fato assentavam-senos precedentes que na Inglaterra continuavama ter grande importância nas chamadas questõesconstitucionais.

Assinala que“os fatos e precedentes, os pergaminhos,foros, estatutos e privilégios da IdadeMédia reunidos formavam a Constituiçãodo País e que todos eles eram a expressão,de um modo simples e sincero, dos fatoresreais do poder que regiam o País”.

Segundo Lassalle,“todos os países possuem ou possuíramsempre, e em todos os momentos de suahistória, uma Constituição real e verda-deira. A diferença, nos tempos moder-nos – e isto não deve ficar esquecido,pois tem muitíssima importância –, nãosão as constituições reais e efetivas, massim as constituições escritas nas folhasde papel”.

Nos Estados Modernos, com o fenômenodo monopólio do Direito pelo Estado, é quesurgem, de modo generalizado, as Constituiçõesescritas, “cuja missão é a de estabelecerdocumentalmente, numa folha de papel, todasas instituições e princípios do governo vigente”.

A aspiração de possuir uma Constituiçãoescrita tem como origem o fato de ter-se operadouma transformação nos elementos reais do poderimperantes dentro do país, num determinadomomento:

“se esses fatores do poder continuassemsendo os mesmos, não teria cabimentoque essa mesma sociedade desejasse umaConstituição para si. Acolheria tranqüi-lamente a antiga, ou, quando muito,juntaria os elementos dispersos numúnico documento, numa única CartaConstitucional”.

Como ocorrem essas transformações queafetam os fatores reais do poder de umasociedade pode-se observar por meio da história:

O Estado pouco povoado da Idade Média,sob o domínio governamental de um príncipe ecom uma nobreza que possuía a maior parte dapropriedade territorial, necessitava de umaConstituição feudal. A nobreza detinha, alémda posse das terras, o poder sobre os feuda-tários, os servos, os colonos, obrigando-os aformar suas hostes e a lutar com os seus

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vizinhos. Os senhores feudais possuíam, ainda,chefes de armas, soldados, escudeiros e criadosque, sob o seu poder, também serviam ao rei,que não possuía outra força efetiva que a dospróprios que compunham a nobreza. O príncipenão poderá criar, sem seu consentimento, novosimpostos e ocupará entre eles apenas a posiçãode primus inter pares.

A passagem do feudalismo ao capitalismodetermina novas mudanças. Novos fatores reaisde poder surgem determinando novo modelode Constituição:

“a população cresce, a indústria e ocomércio progridem e seu progressofacilita os recursos necessários parafomentar novas mudanças, transfor-mando as vilas em cidades. Nasce apequena burguesia e os grêmios dascidades começam a desenvolver-setambém, circulando o dinheiro e formandoos capitais e a riqueza particular”.

A população urbana não mais depende danobreza; tem interesses opostos a esta que,pouco a pouco, perde as prerrogativas e ospoderes.

O príncipe alcança maior poder efetivo,chegando a possuir um Exército permanente;retira da nobreza a prerrogativa de receber tribu-tos, obrigando-a ao pagamento de impostos.

Com a transformação dos fatores reais dopoder, transforma-se também a Constituiçãovigente no país. O absolutismo sucede aofeudalismo, dando razão a uma nova ordem.

O príncipe, como soberano absoluto,“não acredita na necessidade de se pôrpor escrito a nova Constituição; amonarquia é uma instituição demasiadoprática para proceder assim. O príncipetem em suas mãos o instrumento real eefetivo do poder, tem o exército perma-nente, que forma a Constituição efetivadesta sociedade, e ele e os que o rodeiamdão expressão a essa idéia, dando ao paísa denominação de ‘estado militar’”.

O poder efetivo do príncipe é reconhecidopela nobreza, que abandona os feudos e seconcentra na Corte, onde “recebe uma pensão econtribui, com sua presença, para prestigiar amonarquia”.

O próximo passo registrado pela história etambém analisado por Lassalle é o do fortale-cimento da burguesia, por meio do desenvol-vimento da indústria e do comércio. Ao príncipetorna-se impossível acompanhar o desenvol-vimento da burguesia, “que começa a compre-

ender que também é uma potência políticaindependente”.

Paralelamente ao aumento da população,aumenta-se e divide-se a riqueza social emproporções incalculáveis, progredindo tambémas indústrias, as ciências, a cultura geral e aconsciência coletiva; outro dos fragmentos daConstituição.

Surge o protesto da burguesia. Fato ocorridona Prússia em 18 de março de 1848.

Lassalle termina a primeira parte da suaexposição entendendo “haver demonstrado queos fatos históricos analisados tiveram o mesmoefeito de um incêndio”(correspondem aoincêndio hipotético apresentado no início da suaobra) ou de um furacão que “tivesse varrido avelha legislação nacional”.

Ao tratar sobre a Constituição escrita e aConstituição real, Lassalle inicia afirmando aprevalência do direito privado em caso derevolução e afirmando o desmoronamento dasleis do direito público quando num paísarrebenta e triunfa uma Revolução.

Foi o caso da Revolução de 1848, ocorridana Prússia, que demonstrou a necessidade dese criar uma nova Constituição escrita, tendo orei se encarregado de convocar, em Berlim, aAssembléia Nacional para estudar as bases deuma Nova Constituição.

“Em 1848 ficou demonstrado que o Poder daNação é muito superior ao do Exército”, masaponta a grande diferença que existe entre um eoutro: a questão da organização de que é dotadoo Exército e de que não dispõe o povo, “que étotalmente desorganizado, capaz de vencerapenas em momentos de grande comoção”.

Um erro da Revolução de 1848 apontado porLassalle foi o fato de a Nação não ter absorvidoo Exército, deixando-o continuar a serviço dorei contra os interesses da Nação.

Atribui à praticidade dos reis e à retórica dopovo o fato de terem os reis melhores servidoresdo que os tem o povo.

Após essas observações, Lassalle apresentatrês conseqüências da Revolução de 1848 naPrússia:

a) A preocupação em evitar que fossemafastados os fatores reais de poder dentro dopaís impediu que a Assembléia Nacional orga-nizasse a sua Constituição por escrito.

b) Com a dissolução da Assembléia NacionalConstituinte, coube ao rei proclamar a Consti-tuição; decretou-a voluntariamente e – ainda que

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de acordo, em muitos pontos, com as idéias daAssembléia Nacional – não correspondia à suapretensão, pois não se justificava pelos fatoresreais de poder de que o rei continuava a dispor.

A disparidade entre a Constituição real,efetiva, e a Constituição escrita se fez notar eacarretou várias modificações. A constituiçãodatada de 5 de dezembro de 1848, em que o reiespontaneamente concordava com uma série deconcessões, foi alterada pela Lei Eleitoral de1848, que estabeleceu os três grupos deeleitores.

A câmara criada à raiz desta Lei Eleitoral foio instrumento de reformas à Constituição,aproximando-a do poder real, efetivo.

c) A terceira conseqüência apontada porLassalle:

“Quando uma Constituição corres-ponde aos fatores reais de poder queregem um país, não há necessidade demodificá-la e o respeito a que a ela se temé natural, não é lema de um ou de outropartido político, porque ela já é respeitadae invulnerável. Se, ao contrário, nãocorresponder, será modificada”.

O pensamento de Lassalle pode ser assimresumido:

– os problemas constitucionais não sãoproblemas de direito, mas de poder;

– a verdadeira constituição de um paíssomente tem por base os valores reais e efetivosdo poder que naquele país vigem;

– as constituições escritas não têm valor nemsão duráveis a não ser que exprimam fielmenteos valores que imperam na realidade social. Umaconstituição escrita pode ser boa e duradouraquando corresponder à Constituição real e tiversuas raízes nos fatores do poder que regem opaís. Caso contrário, irrompe inevitavelmente umconflito impossível de ser evitado e no qual aConstituição escrita, a folha de papel, sucum-birá, necessariamente, perante a Constituiçãoreal, a das verdadeiras forças vitais do País.

3. A Constituição no pensamentode Konrad Hesse*

Konrad Hesse apresenta uma concepçãoque pode ser considerada como uma síntese dasdiversas concepções modernas de Constituição:

“Constituição como ordem jurídica fundamental,material e aberta de uma comunidade”8.

Como afirmado na Introdução, Hessecompleta o pensamento de Lassalle. E o fazfortalecido pela expectativa de consolidação doDireito Constitucional moderno.

Após considerar como tese fundamental daobra de Lassalle a afirmativa de que questõesconstitucionais não são questões jurídicas, massim questões políticas, Hesse, citando GeorgJellinek, que afirmara: “o desenvolvimento dasConstituições demonstra que regras jurídicasnão se mostram aptas a controlar, efetivamente,a divisão de poderes políticos, cujas forçasmovem-se consoante suas próprias leis, queatuam independentemente das formas jurí-dicas”, observa que “esse pensamento nãopertence ao passado”, que “ a coincidência derealidade e norma constitui apenas um limitehipotético extremo” e sustenta a necessidadede uma ficção – uma força normativa daConstituição – como força determinante paraassegurar a eficácia da Constituição jurídica,uma vez que no âmbito da Constituição “inexiste,ao contrário do que ocorre em outras esferas daordem jurídica, uma garantia externa paraexecução de seus preceitos”9.

À conclusão de Lassalle de que a verdadeiraConstituição de um país somente tem por baseos valores reais e efetivos do poder que naquelepaís vigem contrapõe-se Hesse:

“A norma constitucional não temexistência autônoma em face da realidade.A sua essência reside na sua vigência,ou seja, a situação por ela regulada pre-tende ser concretizada na realidade”.(...)“A pretensão de eficácia de uma normaconstitucional não se confunde com as

8 MIRANDA, op. cit., p. 59.9 A Força normativa da Constituição, p. 10-12.

Interessante recordar aqui as palavras do Dr. Plíniode Arruda Sampaio na 6ª Reunião Ordinária daSubcomissão do Poder Judiciário e do MinistérioPúblico, Comissão de Organização dos Poderes eSistema de Governo da Assembléia NacionalConstituinte, em 27.4.1987: “Uma pessoa chegou ame sugerir que houvesse uma lei assim: Artigo tal:“Todos os artigos desta Constituição têm que sercumpridos”. (Fonte: Dissertação de Mestrado –Itiberê de Oliveira Rodrigues. CPG-Mestrado emDireito-UFRGS). Não obstante a ausência de talnorma, as Constituições possuem mecanismos dedefesa, principalmente por meio do controle daconstitucionalidade das leis, principalmente após acriação de Tribunais Constitucionais que atuam comofator de fortalecimento da força normativa dasconstituições.

* As transcrições entre aspas que não sãoreferenciadas expressamente pertencem ao texto AForça Normativa da Constituição.

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condições de sua realização; a pretensãode eficácia associa-se a essas condiçõescomo elemento autônomo. A Constitui-ção não configura, portanto, apenasexpressão de um ser, mas também de umdever ser; ela significa mais do que osimples reflexo das condições fáticas desua vigência, particularmente as forçassociais e políticas. Graças à pretensão deeficácia, a Constituição procura imprimirordem e conformação à realidade políticae social. Determinada pela realidadesocial e, ao mesmo tempo, determinanteem relação a ela, não se pode definir comofundamental nem a pura normatividade,nem a simples eficácia das condiçõessócio-políticas e econômicas. A forçacondicionante da realidade e a norma-tividade da Constituição podem serdiferençadas; elas não podem, todavia,ser definitivamente separadas ou confun-didas”.

A questão da Constituição escrita é vistapor Hesse da seguinte forma:

“A Constituição jurídica não significasimples pedaço de papel, tal comocaracterizada por Lassalle. Ela não seafigura ‘impotente para dominar, efetiva-mente, a distribuição de poder’, tal comoensinado por Georg Jellinek e como,hodiernamente, divulgado por um natura-lismo e sociologismo que se pretendecético. A Constituição não está desvin-culada da realidade histórica concreta doseu tempo. Todavia, ela não está condi-cionada, simplesmente, por essa reali-dade. Em caso de eventual conflito, aConstituição não deve ser considerada,necessariamente, a parte mais fraca. Aocontrário, existem pressupostos reali-záveis (realizierbare Voraussetzungen)que, mesmo em caso de confronto,permitem assegurar a força normativa daConstituição. Somente quando essespressupostos não puderem ser satis-feitos, dar-se-á a conversão dos proble-mas constitucionais, enquanto questõesjurídicas (Rechtsfragen), em questões depoder (Machtfragen). Nesse caso, aConstituição jurídica sucumbirá em faceda Constituição real. Essa constataçãonão justifica que se negue o significadoda Constituição jurídica: o Direito Consti-tucional não se encontra em contradiçãocom a natureza da Constituição”.

Há necessidade da vontade de Constituição,isto é, há necessidade da vontade de cumpri-lae de conformar a realidade com as normas nelaprescritas, pois além do ser ela prescreve umdever ser.

A vontade de Constituição origina-se de trêsvertentes diversas10:

– “Baseia-se na compreensão danecessidade e do valor de uma ordemnormativa inquebrantável, que proteja oEstado contra o arbítrio desmedido euniforme.

– Reside, igualmente, na compreensãode que essa ordem constituída é mais doque uma ordem legitimada pelos fatos (eque, por isso, necessita de estar em cons-tante processo de legitimação).

– Assenta-se também na cons-ciência de que, ao contrário do que sedá com uma lei do pensamento, essaordem não logra ser eficaz sem oconcurso da vontade humana. Essaordem adquire e mantém sua vigênciaatravés de atos de vontade. Essavontade tem conseqüência porque avida do Estado, tal como a vida humana,não está abandonada à ação surda deforças aparentemente inelutáveis. Aocontrário, todos nós estamos perma-nentemente convocados a dar confor-mação à vida do Estado, assumindo eresolvendo as tarefas por ele coloca-das. Não perceber esse aspecto da vidado Estado representaria um perigosoempobrecimento de nosso pensamen-to. Não abarcaríamos a totalidade dessefenômeno e sua integral e singular natu-reza. Essa natureza apresenta-se nãoapenas como problema decorrentedessas circunstâncias inelutáveis, mastambém como problema de determinadoordenamento, isto é, como um problemanormativo”.

Hesse enumera alguns pressupostos, “quepermitem à Constituição desenvolver de formaótima a sua força normativa”:

“Quanto mais o conteúdo de umaConstituição lograr corresponder ànatureza singular do presente, tanto maisseguro há de ser o desenvolvimento desua força normativa”.

10 HESSE, op. cit., p. 19-20.

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Enumera como requisito essencial da forçanormativa da Constituição que ela

“leve em conta não só os elementossociais, políticos e econômicos domi-nantes, mas também que, principalmente,incorpore o estado espiritual de seutempo, o que irá assegurar à Constituiçãoo apoio e a defesa da consciência geral”.

Enquanto Lassalle entendia a sujeição daConstituição aos fatores reais de poder, Hesseassevera que a Constituição, para ser aceita, parater eficácia, para ser legítima, deve incorporartais elementos, “não devendo assentar-se numaestrutura unilateral, se quiser preservar a suaforça normativa num mundo em processo depermanente mudança político-social”, condi-cionando, no entanto, a relação entre Consti-tuição e realidade ao efetivo cumprimento dasdisposições constitucionais:

“Um ótimo desenvolvimento da forçanormativa da Constituição depende nãoapenas do seu conteúdo, mas também desua práxis. De todos os partícipes da vidaconstitucional exige-se partilhar aquelaconcepção anteriormente por mim deno-minada vontade de Constituição (Willezur Verfassung). Ela é fundamental,considerada global ou singularmente”.

Ressalta o valor do respeito à Constituição,o perigo da reforma constitucional e o signi-ficado decisivo da interpretação constitucional.

Quanto à preservação da Constituição,Hesse reforça o seu pensamento citando WalterBurckhardt (1931), para quem a vontade daConstituição

“deve ser honestamente preservada,mesmo que, para isso, tenhamos derenunciar a alguns benefícios, ou até aalgumas vantagens justas. Quem semostra disposto a sacrificar um interesseem favor da preservação de um princípioconstitucional fortalece o respeito àConstituição e garante um bem da vidaindispensável à essência do Estado,mormente ao Estado democrático”.

Quanto à reforma constitucional, afirmaHesse:

“Cada reforma constitucional expres-sa a idéia de que, efetiva ou aparente-mente, atribui-se maior valor às exigênciasde índole fática do que à ordem normativavigente”.

Quanto à interpretação, “tem significadodecisivo para a consolidação e preservação daforça normativa da Constituição”. SegundoHesse, o princípio da ótima concretização danorma, ao qual está submetida a interpretaçãoconstitucional,

“não pode ser aplicado com base nosmeios fornecidos pela subsunção lógicae pela construção conceitual. Se o direitoe, sobretudo, a Constituição têm a suaeficácia condicionada pelos fatos concre-tos da vida, não se afigura possível que ainterpretação faça deles tábula rasa”.

Da obra de Konrad Hesse pode-se concluir,ainda, que:

A Constituição jurídica está condicionadapela realidade histórica e os limites à força norma-tiva da Constituição podem ser constatadosquando a ordenação constitucional não mais sebasear na natureza singular do presente, nãosendo possível à Constituição suprimir esseslimites.

É conferido um papel de destaque à inter-pretação construtiva, como condição funda-mental da força normativa da Constituição e,por conseguinte, de sua estabilidade. “Caso elavenha a faltar, tornar-se-á inevitável, cedo outarde, a ruptura da situação jurídica vigente”.

Atribui-se ao Direito Constitucional a tarefade concretização da força normativa da Consti-tuição, sobretudo porque esta não está assegu-rada de plano, “configurando missão que,somente em determinadas condições poderá serrealizada de forma excelente”. Conforme Hesse“a Ciência do Direito Constitucional cumpre seumister quando envida esforços para evitar queas questões constitucionais se convertam emquestões de poder”.

4. Conclusão

Após o confronto das duas obras, destaca-se que o Direito Constitucional busca, neste finalde século, firmar-se como ciência, delineando oseu objeto, a se preocupar, não apenas com aorganização do Estado e a distribuição dospoderes e das competências. Ela busca contri-buir de forma mais direta e eficaz para o desen-volvimento do sistema jurídico, servindo-lhe defundamento material, por meio da concretizaçãodos princípios constitucionais, tanto pela vialegislativa quanto via jurisprudencial.

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Pontes de Miranda, no prólogo aos Comen-tários à Constituição de 194611, traça um perfildas Constituições do nosso século:

“No século XX, principalmente apósa Grande Guerra, não é possível falar-sede Constituição, sem se lhe procuraremas causas e a função sociológica. Consti-tuição só política, sem preocupações doproblema social, que avulta cada dia,agravado por outro, que é o das relaçõesentre os Estados de tôda a Terra, é teme-ridade, sôbre ser anacronismo. Ao mesmotempo que se observa a tendência àfixação dos fins da política, obrigando ànitidez dos programas partidários, ou àprópria instalação do unipartidarismo,outra tendência igualmente inevitávelexige que o Estado lance as vistas porsôbre todos os setores da vida social,quer se trate das fôrças culturais ereligiosas, quer de qualquer outra ativi-dade do homem”12.

Uma concepção mais recente, que tambémmerece ser transcrita, é-nos fornecida por MauroCappelletti:

“As Constituições modernas não selimitam, na verdade, a dizer estaticamenteo que é o Direito, a ‘dar uma ordem’ parauma situação social consolidada; mas,diversamente das leis usuais, estabe-lecem e impõem, sobretudo, diretrizes eprogramas dinâmicos de ação futura.Elas contêm a indicação daqueles que sãoos supremos valores, as rationes, osGründe da atividade futura do Estado eda sociedade: consistem, em síntese, emmuitos casos, como, incisivamente,

costumava dizer Piero Calamandrei,sobretudo em uma polêmica contra opassado e em um programa de reformasem direção ao futuro”13.

A Constituição que se volta em direção aofuturo exige uma redação muito bem elaborada –deve conter disposições fundamentais para oestabelecimento da sociedade, de forma que aconstante adaptação da norma constitucional àrealidade seja feita sem ferir os princípios quelhe deram conformação. O exemplo a que se poderecorrer se encontra na Constituição Federalnorte-americana de 1787, cuja supremacia temsido afirmada, no decorrer de mais de doisséculos, período em que foi objeto de apenasvinte e uma emendas, a despeito do desen-volvimento verificado no País a que serve deestrutura.

Os mecanismos de controle e a criação deTribunais Constitucionais se revelam comopossíveis de efetuar a integração entre a normaconstitucional e a realidade, expressa tanto emfatos submetidos à apreciação do Judiciário,quanto mediante o exame das normas infracons-titucionais. A “interpretação em conformidadecom a Constituição” possibilita reafirmar, emcada ato praticado ou julgado, a supremacia daConstituição.

Bibliografia

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HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição.Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. PortoAlegre : S.A. Fabris, 1991.

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LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitucion.Traducción esp. por Alfredo Gallego Anabitarte.Barcelona : Ariel, 1976.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Consti-tucional. Coimbra : Coimbra Ed., 1991. v. 2.

MIRANDA, F. C. Pontes de. Comentários àConstituição de 1946. 3. ed. Rio de Janeiro :Borsoi, 1960. v. 1.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Consti-tucional. 10. ed. São Paulo : Malheiros, 1995.

11 3. ed. Rio de Janeiro : Borsoi, 1960. v. 1, p. 15.12 Nessa mesma obra, à página 175, Pontes de

Miranda observa que, “durante o século XIX e ocomeço do século XX, o direito constitucionalobedecia a certos princípios que constituíam o eixo,por bem dizer, da civilização européia e americana”(...)e que “por cima e à base de tal direito, no qual eraimplícito o individualismo jurídico, achava-se todoum sistema de soluções facilitadoras do triunfoeconômico e social dos elementos possuidores daspopulações, ou dos que a estrutura política, a educaçãoe o próprio liberalismo manchesteriano deixavamsubir à classe possuidora”. Tais observações bemdemonstram o espírito individualista do século XIXe início do século XX, que se revelava pelasConstituições e que, após as duas Grandes Guerras,relativiza-se, voltando-se para uma visão mais socialdo Direito.

13 CAPPELLETTI, Mauro. O Controle judicialde constitucionalidade das leis no Direito Comparado.Tradução de Aroldo Plínio Gonçalves. 2. ed. PortoAlegre : S.A. Fabris, 1992. p. 89.