LEAL, Samuel - Dapodo, Imagem Xavante

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    Dapodo, imagem Xavante

    SAMUEL LEAL

    FRANCISCO ANTUNES CAMINATI

    ALINE YURI HASEGAWA

    Resumo

    Este artigo trata das implicaes polticas e culturais daproduo audiovisual contempornea dos ndios Xavantedas aldeiasWeder e Etenhiritip , analisadas a partir daexpe incia dos auto es na ealizao do egist o lmadode um importante ritual de iniciao, oDanhono , ocorridoao longo do ano de 2011. O o jetivo e eti so e o modocomo a produo de imagens tcnicas integrada ao ritual; oestatuto que a imagem tcnica adquire localmente em meioa esse processo de apreenso e de apropriao de tecnologiasestrangeiras; e a funo e o papel do vdeo na mediao dacultura xavante com o mundo externo e com sua prpriareproduo futura (dilogo entre geraes).

    Palavras-chave: Xavante/Auw Uptabi,imagem, memria

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    Dapodo, Xavante image

    SAMUEL LEAL

    FRANCISCO ANTUNES CAMINATI

    ALINE YURI HASEGAWA

    Abstract

    This article addresses the political and cultural implicationsof the contemporary Xavante audiovisual productionat Weder and Etenhiritip villages. Taking as point ofdepa tu e the autho ss pa ticipation in the lmed eco dof an important rite of initiation,Danhono , occurreddu ing 2011, the aim of the a ticle is to e ect on: how theproduction of technical image is integrated into the ritual,the status that the technical image acquires locally amidthis process of apprehension and appropriation of foreigntechnologies, and the function and the role of the video inthe mediation between the Xavante culture and the outside world and with their own future culture reproduction(intergenerational dialogue).

    Keywords: Xavante/Auw Uptabi,

    image, memory

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    1. Introduo

    Os wapt 1 esto sentados na porta de suas casas, com a ca-bea baixa sob a esteira de palha de buriti, palmeira comumna regio. No podem olhar para frente, mas certamente po-dem ouvir os comentrios e a comoo das pessoas que acom-panham a ao do trio de homens que se aproxima. So osisapuuwa , os furadores. Dois deles so velhos que cumpriramesse papel em iniciaes anteriores, e vem acompanhando oisapuuwa atual. Ele ir perfurar as orelhas doswapt , que es-peram ansiosamente por este momento. Isso ser feito com aiteihi , uma agulha feita do osso da ona-parda, objeto trans-mitido por geraes em uma linhagem de furadores. Depoisdisso, os meninos iro usar oburuteihi , um pequeno cilindrode madeira atravessado nos lbulos das suas orelhas. Por meiodesse gesto do furador e do objeto introduzido por ele, queagora constitui parte de seus corpos, eles do mais um passoem seu caminho para a vida adulta.

    Esse momento, central na formao dos jovens Xavan-te2, parte do Danhono , ritual de iniciao dos meninos queacontece aproximadamente a cada 5 anos. Em 2011, as aldeiasEtenhiritip

    eWeder

    , localizadas na T.I. Pimentel Barbosa3

    ,estado do Mato Grosso, realizaram esse ritual. As duas co-munidades, seguindo uma prtica de mais de 20 anos (LEAL,2012), decidiram documentar o ritual em todas as suas etapaspara a produo de um vdeo documentrio. Essa documen-tao foi realizada por uma equipe mista, composta por xa- vantes e porwaradz 4, e obedeceu as orientaes doWar 5, oconselho tradicional formado pelos homens adultos.

    O presente artigo procura, a partir dessa experinciacompartilhada entre pesquisadores e realizadores, indgenase no-indgenas, demonstrar a dimenso poltica do modo

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    como os Xavante p oduzem imagens: sua funo est atgicaem uma trajetria de guerra-relao com um mundo estran-geiro. Uma resposta ao estrangeiro que depende da apropria-o de uma tecnologia estrangeira.

    No processo de documentao do ritual, a tecnologia que

    vem de fora articulada com a prpria cultura Xavante, pormeio de sua incorporao tanto nos rituais quanto na vida co-tidiana. Nesse processo, a tcnica de produo e de registroaudiovisual se torna um vetor de memria, a qual registradae arquivada, mas tambm reproduzida e transformada, ga-nhando contornos efetivamente polticos que dizem respeito prpria possibilidade de existncia e de continuidade da re-produo da cultura Xavante.

    No centro da discusso colocada pelo artigo est a trans-formao que a imagem sofre, pois , simultaneamente, aconcretizao de uma de relao com o exterior mediao demundos e de uma relao com o prprio ncleo da cultura Xavante mediao de memrias e de tradies. Por um lado,ressalta-se o aspecto poltico mais amplo, voltado luta pelosdireitos das populaes indgenas no contexto do Estado Bra-sileiro. Por outro, remete-se ao modo como as tecnologias deproduo e registro so apropriadas localmente, e passam ainteg a e a modi ca as edes de elaes locais.

    Acompanhando e dialogando com o texto, so apresen-tados trs vdeos realizados especialmente para essa ocasio,gravados na aldeiaWeder em novembro de 20126. Os vdeoscontm depoimentos endereados s mesmas questes queeste artigo aborda e visam oferecer uma perspectiva local,direta e no-mediada pela linguagem escrita e acadmica. O vdeo aparece, portanto, como via para superar as limitaesque a linguagem escrita impe para este dilogo.

    2. O furador e o lmador

    Na escola estadual da aldeiaWeder 7, onde realizamos a maiorpa te dos t a alhos de o cinas e de edio das imagens, exis-tiam muitos cartazes espalhados pelas paredes com desenhosde coisas acompanhados de seus nomes escritos tanto empo tugus como no idioma local ( gu a 1). Um deles most aum jovem Xavante, provavelmente um padrinho da iniciao,chamados danhohuiwa , pintado com o corpo todo preto, umquadrado vermelho na barriga e um grande retngulo verme-lho cobrindo as costas. O jovem est segurando uma cmerade vdeo, e a palavradapotwa completa a composio.

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    Tal palavra uma referncia pessoa que manipula a c-mera de vdeo, por sua vez conhecida comodaptoz . O su xo-wa fornece um carter agentivo para o termo, baseado nasca acte sticas invocadas pelo adical, enquanto o su xo-z realiza a substantivao dessas caractersticas, concretizan-do-as em um objeto. Nesse caso, o radicaldapodo- refere-sea imagem. Sem os radicais-wa ou -z, dapodo pode signi catam m fotog a a, te mo que ainda pode se t aduzido alte-nativamente comodahibari ou dapodo ir . Dapodo tambmfunciona como referncia imagem produzida pela cmeraantes da edio, o mate ial lmado uto. Aps a edio, tantoo vdeo nalizado quanto o supo te que o ca ega, no caso amdia do DVD, so chamados derpodo , termo tambm utili-zado como efe ncia aos lmes que chegam da cidade ou soassistidos pela internet.

    A formao do vocbulodapotwa obedece ao mesmo pro-cesso de composio que opera no termoisapuuwa , palavra quedesigna o furador.Isapu o termo utilizado como referncia cerimnia de perfurao das orelhas dos meninos, assim comoao prprio gesto da perfurao com a agulha de ossoiteihi . As-sim, o su xo-wa atribui pessoa que o termo denomina umaagncia associada s operaes fsicas e simblicas da ao queela executa, assim como cerimnia das quais essas operaesso o ato central. De maneira similar, o termohwa utilizado

    para designar oswapt

    enquanto moradores doh8

    . Aqui, o su-xo -wa atribui aos meninos uma designao relacionada ao lo-cal de moradia, que caracteriza seu lugar social na comunidadeenquanto vivem ali. Na medida em que essa condio implicadeve es espec cos, existe tam m um aspecto de agentivida-de na formao da palavra. No termodapotwa , as qualidadescondensadas pelo radicaldapodo- so atribudos pessoa querealiza a criao das mesmas. Novamente, a questo da agnciaganha destaque, pois odapotwa atua ativamente na xaodas imagens no suporte digital por meio na manipulao doobjeto tcnico que realiza a operao.

    Figura 1Desenho dapotwa; Decupando lmagens na TV; Quadro deavisos da Escola. Fonte: Acervodo Ponto de Cultura Apow

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    Todos os elementos que compem o ritual de iniciaoDanhono esto organizados em torno de procedimentos per-fo mticos de nidos. Dessas otinas dependem o impactosocial e psicolgico que confe e ao itual sua e cincia: de-marcar a consolidao de um processo de aprendizado e de

    formao. Isso ressalta a importncia do uso e a funo doselementos materiais acima descritos na composio da rotinaritual. Esses objetos concretos ocupam um papel fundamen-tal nas redes sociais articuladas em torno do ritual na medidaem que promovem e movimentam relaes, servindo comosuporte e agente das mesmas.

    No caso da furao, a agulha iteihi um artefato familiar,transmitido entre geraes. a perfurao da orelha por elaque legitima o potencial sexual desses jovens e reconhece seusdireitos vida adulta, embora a autorizao para o exercciodesses direitos ainda leve algum tempo. Tal gesto realiza umatransformao na sua identidade social por meio da interven-o nos seus corpos, a qual marcada peloburuteihi que de- vero carregar nos lbulos por toda a vida adulta.

    Portanto, o isapuuwa ocupa um dos papis-chave do ri-tual. Ele um dos portadores, por meio da agulha, do poderde transformar oswapt em riteiwa, meninos em rapazes. Eleintervem nos corpos, primeiro com aiteihi e depois com oburu-teihi . Assim, homem, osso e madeira formam um complexo deseres humanos e no humanos, dotado de uma agncia inexis-tente em cada elemento separado. A prpria formao social domenino xavante depende da interveno desse conjunto.

    Um procedimento anlogo realizado pelodapotwa ,por meio do uso do objeto tcnicodaptoz. Homem e mqui-na constituem um conjunto que adquire uma dimenso trans-formadora que, por meio da ao de captura das imagens doritual, atua sobre o contedo e sobre a realizao da perfor-mance. Na medida em que incorporado nos circuitos rituais,

    o vdeo os conecta a um espectro mais amplo. Por meio dele,a cultura Xavante passa a existir no s na relao entre aspessoas, e das pessoas com as tcnicas tradicionais ou comas tcnicas estrangeiras assimiladas localmente, mas tambmna relao com as imagens tcnicas, e nas relaes entre aspessoas e essas imagens tcnicas9. Nesse sentido, o procedi-mento do lmado (dapotwa) tambm complementar aodo furador (isapuuwa) no contexto do ritual.

    Se a associao homem-agulha-madeira tem a capacidadede fazer do wapt um riteiwa, a associao homem-cmera-performance tambm pode operar uma transformao, s que

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    em outra escala. Homem e equipamento atuam em conjuntoe de maneira inseparvel do contexto cerimonial no qual as-sumem um papel fundamental. Constituem-se mutuamente,assim como a cerimnia ao mesmo tempo constituinte dessarelao e constituda por ela. Finalmente, a associao homem,

    equipamento e ritual adquire uma capacidade agentiva trans-formadora que no existe para cada um deles separadamente. Aqui, a tecnologia produz o homem e a cultura na mesma me-dida em que homem e cultura produzem a tecnologia.

    Se por um lado a relao da agulha com o furador j estconsolidada culturalmente, a relao da cmera com o seuportador ainda passa por uma estabilizao. Oisapuuwa rea-liza uma transformao corporal, social e biolgica no contex-to do itual. J a t ansfo mao ope ada pelo lmado oco epela ampli cao do efeito da pe fo mance no espao e notempo: no espao, na medida em que faz esses signos chega-rem a outras aldeias e outros locais; e no tempo, na medida emque as imagens constituem uma memria fsica voltada parachegar s futuras geraes.

    Aquilo que a cmera transmite ao seu operador passa a serde uma qualidade diferente, na medida em que se torna tam-bm objeto de mediao de todo o grupo. O grupo estabelecelinhas de subjetividade que fraturam o dispositivo audiovisuale as linhas de poder que o constituem. Dessa forma, o gruposubverte o uso da cmera quando coloca novos usos para ela,usos baseados na vida da aldeia. Por meio dessa subjetivao,a qual se d na escala da comunidade, o indivduo inseridoem uma srie de procedimentos de regulao, e o potencial douso da cmera passa a estar em uma zona de segurana para osinteresses comunitrios.

    Figura 2Vdeo 2: Caimi Waiass.Fonte: Acervo do Pontode Cultura Apow

    youtu.be/I0g1gsA-TDQ

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    Nesse sentido, a funo do lmador se torna cada vez me-nos estranha, se aproximando estruturalmente da condiosocial do furador . Na medida em que passa a ter uma funointeligvel o vdeo incorporado enquanto elemento de socia-lizao local. Sua assimilao se torna vivel medida que o

    ope ado ganha uma posio social de nida; e, na medida emque o operador pode ser localizado socialmente, o seu apare-lho domesticado.

    3. Xavantizao do vdeo

    A mudana de contexto altera os limites do uso do equipa-mento, ede ne suas funes. O investimento social so eesse uso imprime uma marca profunda sobre o equipamento,que o insere em uma nova rede de socialidade, que contemplaagentes humanos e no humanos, para a qual sua existnciano havia sido pensada inicialmente.

    Segundo Shohat e Stam (2006, p.148), o aparato do cinemacompreende tanto uma base material (cmera, projetor, tela)quanto uma base imaterial (desejo, smbolos, repertrio), con- junto que possi ilita ia a expe incia de identi cao do espec-tador a um tipo de sujeito transcendental (METZ, 1982, p.49).Estendendo o argumento para a produo indgena, um novoaspecto deve ser levado em considerao, que sua intenocultu al. Na p oduo indgena, esttica, c tica e a maocultural constituem o discurso audiovisual em um mesmo pla-no de imanncia, expressando por meio das imagens os desdo-bramentos cotidianos do uso da cmera. Trata-se de uma pos-tu a que, po um lado, p op iamente etnog ca, na medidaem que elabora uma sistematizao da prpria cultura; por ou-tro, aponta para possibilidades de generalizaes estratgicas,com objetivos conscientemente polticos.

    Um exemplo o vdeoOi: Luta dos meninos (2009), pro-

    duzido po Caimi Waiass ( gu a 2). Nele, a cena de a e tu a ga-nha todo o seu peso a partir de uma contingncia de ordem tcni-ca. A improvisao de uma lanterna amarrada na ala da cmera,soluo encontrada para iluminar a cena noturna, resultou emfoco de luz ama elado xo no cent o do plano, cuja intensidadeno consegue preencher todo o quadro. Alm disso, os prpriosgestos que pintam na escurido os pequenos e ansiosos meninos,que so preparados para lutar, possuem um grande apelo estti-co. Junta-se ainda expectativa criada pela sequncia narrativada montagem, que introduz aos poucos o tema do vdeo, o ritualdo qual as imagens constituem os momentos iniciais.

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    Essa sequncia ene esttica, c tica e a mao polti-ca em um mesmo plano e no deve, como tambm em todaproduo audiovisual poltica e socialmente minoritria, serabordada por critrios exclusivamente tcnicos. So constitu- das tambm por determinantes sociais e culturais, na medi-

    da em que passam a ser incorporadas por redes de relaesentre pessoas e grupos e contribuem para a catalisao dessasrelaes. Uma vez capturada pelas redes de socializao e dereproduo cultural de um grupo, essas tecnologias iro assu-mir uma outra forma cultural, adaptada localmente.

    Assim, a documentao audiovisual dos rituais feita pelosprprios Xavante instaura uma linha de subjetividade dentrodispositivo cinematog co (DELEUZE, 1989). Formalmente,tal documentao constitui um uso do apa ato cinematog -co similar catalogao imperialista dos territrios e dos po- vos dominados. No entanto, os objetivos so diametralmenteopostos. A catalogao dos prprios costumes no tem funode controle, mas de memria. Os registros no saem do mbitolocal para favorecer um controle externo, mas circulam internae exte namente com o o jetivo de esolve o p o lema da a-mao e da transmisso cultural. Com isso coloca-se tambma luta pelo territrio, uma vez que modo de vida e territrio soelementos que se constituem mutuamente.

    Quando incorporam um objeto tcnico como a cmerano complexo ritual e identitrio, os Xavante exercem sua me-diao, cultural e humana, sobre o processo de integrao,modulando-o conforme seus objetivos e necessidades. A incor-porao da cmera no ritual se d por meio da reinveno doequipamento e do seu operador em termos rituais. Podemos di-zer, a partir de Deleuze (idem), que isso faz surgir linhas de fugae de subjetivao que despertam um devir-agulha na cmerae um devir-xavante da imagem produzida pelos equipamentostcnicos. Assim, a atividade de auto-catalogao cultural ao

    mesmo tempo resultado e combustvel para o processo cons-tante de auto-inveno dos Xavante por si mesmos.

    4. Memria como campo de ao poltica

    As pessoas morrem, as imagens continuam . A partir deste frag-mento de depoimento de Maurcio Uraw ( gu a 3), ext ado deum dos vdeos que dialogam com este artigo, est explcito umdos aspectos que o trabalho com tecnologias audiovisuais possi-

    ilita: o dilogo ent e os vivos e os mo tos, isto , o potencial dereproduo incessante de imagens e de vozes gravadas, trazendo

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    vida queles que no esto mais nomundo de c . por issoque, ainda segundo o ancio, alguns no gostam de se em l-mados ou terem suas vozes gravadas, j que as imagens retra-tam o que a pessoa vive quandoestava na Terra . So as mem-rias de algum, de um tempo no passado.

    Afora as discusses das implicaes inerentes cosmo-logia Xavante10 do uso das ferramentas audiovisuais, existemimplicaes polticas decorrentes do uso dessas tecnologiastambm para o trabalho com as memrias, as quais sero res-saltadas a seguir.

    Trazer vida memria, inserindo o passado e os ante-passados na organizao do presente enreda um movimentode anlise do presente luz do passado, comparativamente. As-sim, o papel dessas tecnologias expandido para muito alm doque seria apenas o registro ou a representao, e abarca ques-tes pedaggicas, identitrias e, sobretudo, estratgicas.

    Pedagogicamente, ao tornar possvel a visualizao detempos e de ituais passados po meio das imagens lmadasno presente, as geraes que se deixaram registrar assim en-sinam aos mais novos como os antigos organizavam a vida

    social Se por um lado, o avano do sistema capitalista impss ge aes mais jovens o aumento das di culdades de ep o-duo de um modo de vida baseado na relao no cindidado homem com a terra; por outro, o uso das tecnologias au-diovisuais estrangeiras rompe a barreira temporal e espacial,tirando essa nova gerao dasolido de serem indivduos semhistria e sem tradio, encorajando-os a continuar um pro- jeto de vida baseado na coletividade e na tradio11.

    Identitariamente, as imagens podem ser uma ferramentade intensi cao dos laos sociais. EmWeder , feito um usointeressante do vdeo nesse sentido. Durante a infncia, os me-

    youtu.be/xpoRnU3JYQU

    Figura 3Vdeo 1: Maurcio Uraw .

    Fonte: Acervo do Pontode Cultura Apow

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    ninos xavante participam de uma luta ritual chamada Oi.Esthabilitado a participar desse ritual todo menino que j conseguir

    ca de p com seu p p io equil io e fo a, segu a memen-te com as mos os objetos e que ainda no tenha entrado noh.O ritual consiste em uma luta em que meninos de portes fsicos

    parecidos e de cls diferentes lutam entre si, devendo bater nascostelas e nas costas do adversrio com o talo de uma raiz durachamada oi, que cortada para a ocasio tomando a forma deum basto. A luta continua at que um dos lutadores desista, ouque os adultos decidam que j houve luta o su ciente.

    Existe grande investimento por parte dos pais na prepa-ao dos seus lhos pa a esse itual, na medida em que ele

    no s uma importante ferramenta de educao em que va-lores como respeito, coragem e honra so reforados, comotambm so atualizadas algumas relaes e disputas entreas linhagens e os cl. Em uma pausa ent e uma das o cinasde formao realizadas emWeder , alguns adultos exibirampara as crianas um vdeo recentemente realizado por Caimi Waiass, sobre esse ritual, j mencionado anteriormente. Du-rante a exibio, eram feitos comentrios sobre trechos daslutas, assim como indicaes sobre acertos e erros dos luta-dores. As crianas observavam atentas enquanto os adultos seexaltavam reproduzindo os movimentos de um bom lutador,pausando e repetindo alguns trechos diversas vezes.

    Essa ocasio demonstra de maneira prtica as questes so-bre a relao entre imagem e memria. O registro leva ao co-nhecimento de si, o que produz uma transformao, que acon-tece em dois sentidos: aponta pa a o passado, ecupe ando aconscincia das prprias tradies, e aponta para o futuro, poisassimila tecnologias estrangeiras em um uso simbitico com asnecessidades locais, forjando estratgias calcadas na identida-de tnica para o posicionamento crtico cultura hegemnica.Finalmente, o ciclo se fecha com a transmisso das tradies

    para as novas geraes por meio desses registros feitos, no con-texto das transformaes em curso. Assim, a memria intensi-ca as ma cas identit ias, uma vez que efo a os signos inte-

    nos coletivamente compa tilhados: danas, msicas, pintu as,alimentao, formas de falar e de agir, posturas corporais etc.

    Estrategicamente, as memrias, ao reforarem os laossociais atravs de referenciais tradicionais os signos coletiva-mente compartilhados , funcionam tambm como agentes dofuturo, uma vez que direcionam o olhar dos mais jovens para a

    ep oduo do modo de vida t adicional, ncando azes cada vez mais fortes, profundas e seguras em torno da ancestralidade.

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    O debate sobre as memrias traz a todo momento a ideiadas especi cidades e das su jetividades individuais, mas semdeixar de considerar a base social e histrica de cada represen-tao, de cada narrativa, de cada relato.

    Assim, se cada narrativa ou relato uma operao indivi-

    dual, essa ao resultado da elaborao da experincia social,do prprio cotidiano. , portanto, a transformao de sensa-es, impresses, vivncias e costumes em narrativas possveisatravs da racionalizao da subjetividade e do inconsciente. Oque signi ca t aze pa a o cdigo do p esente todo o passado euma projeo sobre o futuro. O trabalho com a memria apre-senta esse potencial revelador e ao mesmo tempo criador deidentidades e subjetividades. Portanto, quando Caimi Waiass,em outro dos vdeos que dialogam com este texto, fala de suaexperincia com os vdeos e com os projetos realizados juntocom os waradz , ele mobiliza sua prpria trajetria, que in-dividual, mas concomitantemente, ele a e o o da mem ia e,amparado em seus antepassados e na fora dessa tradio, peem evidncia eixos explicativos que vo alm da racionalidadeprtica ocidental e capitalista. Transporta, assim, o intangvele o imaterial a memria de um tempo que j se foi para opresente, e acaba por projetar tambm um futuro.

    Portanto, o trabalho com as memrias atravs dos vdeos( gu a 4), alm do potencial de t ansfo mao evelado a naprpria subjetividade daqueles que produzem suas narrativas,tam m a e out o ho izonte de emancipao: a plu alizaoda participao dos sujeitos nos eventos histricos, retirando omonoplio do protagonismo poltico e histrico das mos degrupos hegemnicos. Leva-se, desse modo, para o campo dadisputa poltica e do embate pblico verses subalternizadasda expe incia cotidiana, evidenciando o con ito imanente notrabalho de contar uma histria . Assim, ao levar em conside-rao o simblico, o subjetivo e o cultural no processo de re-

    construo do passado no prprio trabalho com as memrias,portanto apresenta-se a potencialidade da emancipao, uma

    Figura 4 Sequncia de imagens sobre ouiwede dza dar (buriti preto),

    etapa do ritual de iniciao dosadolescentes Danhono. Fonte: Acervo do Ponto

    de Cultura Apow

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    vez que os sujeitos deixam de ser atores do processo histrico epassam a narradores de si mesmos.

    Eles esto sempre lembrando para no esquecer . Esteoutro fragmento do depoimento de Maurcio Uraw, sinteti-za o potencial emancipado do t a alho com as mem ias: operigo do esquecimento dos rituais ou o pesadelo da perda damemria coletiva , na realidade, o desaparecimento fsico,real deles. No se trata aqui de linguagem metafrica. Se asp ticas sociais e as especi cidades cultu ais dete minam asidiossincrasias de uma comunidade, o esquecimento destasimplica no prprio desaparecimento desta comunidade.

    Assim, ao assistirem ou escutarem vdeos e gravaes deseus antepassados ou de si prprios em contextos anteriores os Xavante analisam todas as mudanas pelas quais passa-ram desde o incio do contato com oswaradz . Posicionam-secrtica e conscientemente a respeito do que foram e do quequerem ser. Os velhos ensinam os jovens a darem continui-dade aos rituais; enquanto os jovens registram os velhos paraque as prximas geraes tenham a possibilidade dedilogo com o passado, uma base a partir da qual lanaro suas estra-

    tgias de reproduo social. Ao apagar da memria a existncia das diferenas, o capi-talismo, atravs da modernidade, homogeneza - por meio da violncia, da represso, do autoritarismo, da espoliao e da pro-duo de misria - as experincias e a prpria Histria , comose unive salmente zssemos, todos, pa te de um nico mo- vimento e de uma nica racionalidade. J que o esquecimentosigni ca inexistncia total12, o acesso memria a ferramenta apartir da qual se garante a existncia, a permanncia, a reprodu-o. O trabalho com as memrias constitui-se, portanto, como verdadeiro projeto de resistncia homogeneizao.

    youtu.be/Ffqf1Fa3-iU

    Figura 5Vdeo 3: Leandro Parinaia.Fonte: Acervo do Ponto deCultura Apow

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    Isso implica tambm na percepo de que somente apartir de uma gesto autnoma do territrio possvel repro-duzir um modo de vida tradicional. Nas palavras de LeandroParinaia, que tambm aparece em um dos vdeos,os rituaisdependem do meio-ambiente ( gu a 5).

    Os avanos do capital pelo campo representam as princi-pais ameaas reproduo de modos de vida tradicionais, jque estas pressupem relaes sociais e modos de produoque no se limitam nem se enquadram no binarismo moderno-ocidental da ciso do homem com a terra, ou melhor, justa-mente na simbiose da vida social com a terra que esses modosde vida se tornam possveis. Toda a reproduo da vida Xavan-te poltica, econmica, cultural, ecolgica, alimentar passapela relao ntima estabelecida com seu entorno. A terra, aocontrrio da viso moderna, no algo que se domina e se sub- juga. Tampouco algo passvel de se tornar mercadoria. Ela omeio de produo de toda a vida e para onde toda a vida retor-nar. Sua concepo de mundo abarca o meio ambiente, no cindida dele, e tampouco estranha a ele. Desse modo, nose concebe um modo de vida baseado nas premissas ancestraissem que haja um territrio e uma terra onde possam ser livrespara viver desse modo, expressando cotidianamente a fuso desi com a terra. A memria, assim, ao remeter constantementeao prprio territrio, como base para a reproduo da vida, rea-

    ma continuamente a inescapa ilidade da autonomia te ito-ial. A imate ialidade da mem ia a ma suas ases mate iais,suas razes, no prprio territrio.

    5. Como lidar com o waradz

    A experincia Xavante de apropriao de tcnicas de pro-duo de imagem precisa ser entendida em continuidadeao p ocesso de integ ao de nitiva dos Xavante socieda-

    de nacional brasileira, ao processo de paci cao do branco .Mais precisamente, a uma estratgia de liberdade traada apartir de um sonho, que orientou um projeto de autonomia ede resistncia diante desse processo inexorvel de integraoque possui como um de seus fundamentos o conhecimentodo Outro e a apreenso de suas tecnologias para mediar essarelao de alteridade.

    Referimo-nos aqui ao sonho do Cacique Apow, que con-siderado o lder desse processo. Foi ele quem negociou o conta-to de nitivo ent e seu povo e o SPI13 no nal da dcada de 1940,quando pe ce eu que a est atgia de gue a no e a mais su-

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    ciente para evitar o avano de fronteira que colocava em risco acontinuidade do povo Xavante, de seu territrio e de seu modode vida. Nos anos 1950, Apow recebeu o antroplogo america-no David Ma u -Lewis, o p imei o a ealiza uma etnog a asobre seu povo, que deu origem ao clssico da AntropologiaA

    Sociedade Xavante (MAybUry LEWIS, 1984).No nal dos anos 1970, p eocupado com a degene aoam iental e com o modo de vida t adicional pela intensi ca-o do contato com a cultura e a economiawaradz , Apowelaborou uma estratgia para proteger seu povo e sua cultura.Orientado por seus sonhos, e antecipando-se ao pior cenriopossvel que poderia decorrer da expansomodernizadora- colonizadora ao oeste14, enviou 8 de seus netos para estudarem cidades de So Paulo e de Gois. O objetivo era que apren-dessem a lngua e os modos de vida doswaradz para que,quando se tornassem adultos, tivessem condies de lideraros Xavante para que continuassem a ser Auw Uptabi , ou seja,povo verdadeiro povo de verdade.

    Alguns destes jovens chega am a ca at 10 anos na ci-dade, e quando concluram sua formao na cultura exter-na como se referem atualmente a essa experincia foramfundamentais para a luta pela demarcao dos territrios Xa- vante nos anos 1980, tiveram participao destacada nos mo- vimentos polticos realizados durante a Constituinte15 para aconsolidao dos direitos dos povos indgenas do Brasil e hojeso lderes em diferentes aldeias.

    A estratgia de Apow e a astante inte essante: pa a con-tinuarem sendo verdadeiros, precisavam conhecer a culturaque os acossava e os ameaava. Era preciso saber como o ini-migo convertido em vizinho pensava, quais eram seus valores,como se relacionava com o mundo. Era preciso saber operarem sua lgica para que fosse possvel lidar com ele e para con-seguir processar de maneira positiva a inevitvel transforma-

    o deco ente e ine ente opo da via pelo contato pac co.O que mais chama ateno nesse processo que no setrata de uma tentativa de incluso no mundo dos brancos,mas da continuao de um processo de conhecer para enfren-tar, da elaborao e da execuo de uma estratgia de liber-dade e de autonomia em relao a uma convivncia impostae incontornvel. Uma resistncia ao avano dowaradz quepassava pelo conhecimento profundo do mundo e da culturawaradz, e pela apreenso e apropriao de algumas de suastecnologias. Se a lngua e a escrita foram as primeiras tecno-logias apreendidas, assim que reconheceram a importncia

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    poltica do vdeo, perceberam a necessidade de conhecer suastcnicas, o funcionamento de suas mquinas e de produzirseus p p ios vdeos ( gu a 6).

    Partindo de um pensamento estratgico sobre o contato dacultura tradicional com as tecnologias brancas implicar sempreem transformaes da sua cultura, entenderam que se possu- ssem conhecimento sobre as tecnologias poderiam direcionarou conduzir esta transformao com maior margem de agn-cia. De forma que passaram se apropriar de diferentes tecno-logias sendo as do vdeo apenas uma entre elas como es-tratgia de preservao e, principalmente, desenvolvimento desua cultura tradicional diante da condio contempornea queenfrentam de convivncia cada vez mais intensa com a culturae com os objetos doswaradz , que so portadoras de inmerospotenciais, mas cujos efeitos nocivos e negativos precisam serreconhecidos, neutralizados e revertidos.

    Atualmente, como apontamos nesse artigo, o uso de tec-nologias no se resume a uma mediao para fora. Celulares,mquinas fotog cas digitais e apa elhos de MP3 po tteis,alm de TVs e rdios, j so objetos comuns na paisagem das al-deias. DVDs circulam entre aldeias de diferentes terras indge-nas Xavante com registros de festas e rituais, que so assistidose comparados para que as diferenas no modo como cada grupo

    executa essas aes seja avaliada e discutida. H uma rede cada vez mais pujante de circulao e de troca de gravaes de m-sicas em MP3 e de fotos digitais. E j h at mesmos casos de pirataria , pois alguns desses registros chegam a ser vendidos,sem autorizao, por camels em Canarana-MT, inclusive paraoutros povos indgenas do Parque do Xingu e para um ou ou-tro waradz . Esta presena de tecnologias estrangeiras s tendea se intensi ca pois desde 2011 a ede de ene gia elt ica estdisponvel na Terra Indgena Pimentel Barbosa, o que faz comque os conhecimentos relativos ao manejo dessas tecnologias

    Figura 6 Sequncia de imagens sobre ouiwede dza dar (buriti preto),

    etapa do ritual de iniciao dosadolescentes Danhono.Fonte: Acervo do Ponto

    de Cultura Apow

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    e aos processos produtivos que elas disparam as habilidadesque so a contrapartida humana a seu funcionamento (STRA THERN, 1999) se tornem ainda mais valiosos.

    A experincia com tecnologias de produo de imagem,que pode mesmo ser considerada uma das pioneiras entre

    os povos indgenas do Brasil, acaba fornecendo um modelopara novas experincias de apropriao tecnolgica. A chavefornecida da construo de uma linguagem que permita aaplicao das tecnologias para resoluo do problema exter-no (a mediao com o Estado, com a sociedade nacional e doavano da fronteira de produo do capitalismo) e, ao mesmotempo, de seu aproveitamento para a resoluo de problemasinternos. No caso do vdeo, estes ltimos referem-se trans-misso cultural e gesto da memria coletiva, sua aplicaopara o estabelecimento de um dilogo entre geraes, um di-logo que, no limite, ocorrer entre os antepassados e as fu-turas geraes. E, em outras frentes que a evoluo da relaocom o exterior impe, apontam para a aplicao de tcnicasde gesto e de controle territorial, que permitam a preserva-o da integridade da comunidade a partir da preservao daintegridade do territrio.

    6. Concluso

    Ns, Xavante, no resistimos a essas mudanas. No conser -vamos nossas ideias, nossos pensamentos. Mesmo assim, a gente tem uma ligao muito forte com nossas razes . Essafrase enunciada tambm pelo ancio Maurcio Uraw, apesardo tom pessimista primeira vista, ressalta o aspecto dial-gico da assimilao do aparato audiovisual. fruto da enun-ciao de um discurso dos Xavante sobre si, resultado doprocesso discutido nesse artigo. um discurso que, se no plenamente hbrido, na medida em que permanece Xavante,

    comporta aspectos no locais que, ao serem assimilados local-mente, passam a constituir identidade Xavante transformada,adequada ao contexto poltico-cultural contemporneo.

    A maneira como foi formado o repertrio audiovisual dascomunidades em Pimentel Barbosa a partir da chegada dessastecnologias muito expressiva acerca do investimento culturaldedicado questo. Vdeos com produes indgenas realizadasno contexto do Vdeo nas Aldeias16 tambm comearam a circu-lar, a partir do envolvimento com o projeto. Em pouco tempo,essas produes j eram referncia. Os primeiros usos do vdeo

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    entram em um registro local de produo e de circulao, e ape-nas em um segundo momento dirigiram o olhar para fora.

    Isso, no entanto, no um processo espontneo, mas simf uto de um investimento intenso das comunidades, que se e e-te na natureza coletiva que constitui a produo audiovisual em

    Weder. Ou seja, os Xavante dessa aldeia no buscam aprender afazer vdeos para se tornaremwaradz . Pelo contrrio, reforamnos vdeos uma diferena fundamental para que se possa viabili-zar uma comunicao executada nos seus termos.

    Com isso, tradio, memria, cultura e poltica ganhamuma uidez que to na intil qualque tentativa de o se v-las enquanto catego ias mais ou menos de nidas. Elas passam afazer parte de um processo de investigao e de reproduo,de ensinamento e de aprendizado, de inveno e de reinven-o, que colocado em movimento pelo su gimento da gu ado cineasta local que dirige seu olhar para os costumes deseu povo. Colocar tal processo em foco teve como objetivo ap oduo de um conhecimento que compo ta a e exo Xa- vante que o caracteriza.

    Assim, o processo de produo de um vdeo acaba porconstituir uma exegese cultural feita pelo grupo sobre si mes-mo. O passado no mobilizado em simples continuidade como presente, mas em uma articulao de termos que potencializaagenciamentos futuros. E o presente transformado pela natu-

    eza e exiva do p ocesso, ecupe ando uma ce ta continuida-de entre passado, presente e futuro em torno do que se entendepor identidade Xavante. , porm, uma identidade que possuiuma uidez que se movimenta na dialtica esta elecida ent e

    xidez e ci culao, ecepo e assimilao dos signos cultu ais.Imagem xa e pe fo mance social se alimentam mutuamente,complexi cando a dinmica cultu al exp essa nas elaes en-tre as pessoas envolvidas no processo.

    A produo audiovisual uma das diversas formas de ex-

    presso dessa perspectiva de luta. Nesse caso, a sujeio do in-divduo a um conjunto de exigncias garante para o grupo queo uso do equipamento esteja de acordo com os objetivos deter-minados pela comunidade. Assim, o perigo inerente transfor-mao cultural implicada na adoo de novas prticas neutra-lizada em favor da tradio, da qual a transformao passa ser aprpria expresso. Mais que isso, o modo com que se d a trans-fo mao o que de ne a p p ia t adio (SAHLINS, 1997).

    Pa a a efetividade da a mao de uma identidade t-nica, assim como dos desdobramentos polticos dessa pos-

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    tura, fundamental para a produo audiovisual Xavante,e indgena em geral, a colocao de um ponto de vista, deuma maneira de olhar. A capacidade de discutir com a so-ciedade brasileira os termos desse olhar sobre si decisivapara seu futuro poltico-cultural. nessa direo que apon-

    ta a estratgia de Apow.Coerente com tal estratgia, o uso Xavante das tcnicasdo vdeo realiza umaindigenizao do dispositivo cinemato-g co: a einveno de seu uso pela su jetivao das linhasde pode que po muito tempo identi ca am suas imagense discursos com o dispositivo imperialista colonial. A partirde uma escolha consciente por valores tradicionais, realizamum atualizao da tcnica, ampliam as possibilidades do seuuso. Como estratgia de heterogeneizao do discurso sobrea identidade, os vdeos indgenas estabelecem umainterlo -cuo cultural no campo onde praticamente qualquer lutapoltica contempo nea deve ent a : os meios de comunica-o e as mdias de massa; o conhecimento tcnico, a infor-mao e seus circuitos e redes de circulao.

    O vdeo se torna simultaneamente vetor de transmisso ede transformao cultural. A observao da maneira corretade executar os rituais resulta na beleza da performance. Seuregistro a garantia de que tal beleza possa superar a fugacida-de da mem ia, intensi cada po um contexto de acele aodas transformaes. Porm, o registro tambm carrega algofugaz, que reside na parcialidade e nas limitaes dos olha-res do aparelho, do operador e do espectador. A circulao doregistro a possibilidade que correo e beleza permaneamsignos da identidade desejada localmente.

    Com isso, os Xavante modulam os impactos do contatocom a sociedade brasileira de maneira estratgica, criando ascondies para a perpetuao de seu modo de vida. Perma-necem Xavante exatamente na medida em que se abrem para

    a viabilizao de trocas culturais que, na medida do possvel,ocorrem a partir de seus prprios termos. Ao realizarem issopor meio de parcerias produtivas, se posicionam tambmcomo produtores de conhecimento e discurso. Ao captura-rem agentes externos em suas redes, e deixarem-se capturarpor outras redes, inserem-se ativamente nesses circuitos e in-

    uenciam suas p odues.Esse texto e o trabalho de cooperao que o fundamenta,

    resultado de uma dessas capturas.

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    NOTAS

    1.Wapt o nome dado gerao de meninos que est sendo formada no ri-tual em questo. Essa nomenclatura faz parte de um sistema mais complexode o ganizao e classi cao social Xavante, desc ito em dive sos t a alhospor antroplogos, missionrios e professores xavantes. Nesse artigo basea-mo-nos nas seguintes efe ncias: Ma u -Lewis (1984, p. 188-219); Lopesda Silva (1986, p. 64); Lachnitt (2003, p.88); e Xavante (et al, 2011).

    2. As va iaes de g a a do te mo Xavante o edece as seguintes eg as:quando designa a etnia de maneira ampla, referindo-se ao conjunto daspopulaes, dos costumes e/ou da memria, utiliza-se a norma da Associa-o Brasileira de Antropologia, sem plural e com inicial maiscula; quando utilizado pa a quali ca uma pessoa, atividade ou o jeto, funciona comoadjetivo, escrito com inicial minscula e pode ser utilizado no plural.

    3. Cf.: < http://ti.socioam iental.o g/pt- /#!/pt- /te as-indigenas/3821>

    4. A denominao Xavante um etnnimo atribudo externamente, o qualfoi assimilado e utilizado hoje para lidar com os no ndios, ouwaradz(extrangeiro). No entanto, sua auto-denominao Auw Uptabi (homens verdadeiros, povo verdadeiro), termo que tambm pode ser usado parareferir-se a outros povos indgenas.

    5. As aldeias xavante costumam ter o formato de um arco, composto pelascasas. No centro do espao entre as casas, acontece diariamente uma reuniodos homens adultos da comunidade, para conversar e tomar decises rela-tivas a assuntos que dizem respeito aldeia. OWar o espao central daaldeia e tambm o nome dessa reunio.

    6. Os vdeos podem ser acessados pelosqrcodes ou urls ao longo do texto,que acompanham os respectivos frames.

    7. Um dos resultados concretos do projeto foi a instalao em 2010 de um Labo-ratrio de Produo Audiovisual em Software Livre, que chamamos de Weder-Lab. O laboratrio continua funcionando e gerido pela comunidade. Todo omaterial produzido a partir dessa experincia est sendo organizado para serdisponi ilizado via inte net no ende eo .

    8. H o nome dado casa construda em um espao separado do arco decasas que forma tradicionalmente as aldeias, onde os adolescentes iromorar juntos, separados de suas famlias, por todo o perodo de formaoque precede a iniciao.

    9. Imagem tcnica um conceito de Vilm Flusser, que se refere s imagensproduzidas por aparelhos tcnicos, e so resultado da abstrao do mundo apa ti dos conceitos cient cos. Cf. FLUSSEr, 1985.

    10. No mesmo vdeo, Mau cio ainda conta que alguns gostam de se em l-mados, pois quando virem as gravaes, anos depois, podero lembrar-se dotempo em que seu sangue ainda era forte, isto , conectam-se, na velhice,com sua juventude por meio dos vdeos.

    11. Como o so os indivduos modernos, cindidos de suas comunidades, fam-lias e tradies de origem, guiados pela lgica do pragmatismo econmico,soltos no mercado, livres para chocarem-se uns contra os outros. O que no o caso desses jovens, que possuem vnculos fortes tanto com seus ancestrais,que se materializam em suas memrias, quanto com suas comunidades.

    12. No que se refere ao processo de esquecimento, interessante notar quesocial e politicamente o esquecimento o apagamento, a anulao das narrati-

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    vas diversas em prol de uma que se toma como universal, justamente por secolocar como a nica. Evidentemente, este processo no natural, ou seja,no oco e sem em ates e esultado de p ocessos hist icos e de con itosentre grupos sociais. O obscurecimento das lutas, resistncias e estratgiasde ep oduo social de dete minado g upo atende a inte esses espec cos,que se ene ciam cultu al e politicamente deste apagamento e da ideia deuma narrativa homognea e universal. Esse processo legitima e reproduz umdete minado uxo de pode . no m ito do con ito cultu al e poltico que se

    insere o trabalho com as memrias.

    13. O Servio de Proteo ao ndio (SPI) foi um rgo criado pelo EstadoBrasileiro em 1910, organizado pelo Marechal Rondon, para prestar assis-tncia, proteger e mediar a integrao e a co-existncia dos povos indgenashabitantes do Brasil. Em 1967, o rgo foi extinto tendo suas atribuiestransferidas para a Fundao Nacional do ndio (FUNAI), rgo atualmente vinculado ao Ministrio da Justia.

    14. Paulo Tavares (2012) em sua analise do papel da construo de Brasliana expanso da fronteira oeste como parte do projeto de modernizao doBrasil, oferece uma interessante problematizao do modo como nossoprocesso de modernizao implica e, de certa forma, continua o processode colonizao do te it io. O histo iado no te-ame icano Seth Ga eld(2001) oferece uma anlise aprofundada e bastante rica da relao polticaentre os Xavante e o Estado Brasileiro no processo de expanso de fronteiradurante o perodo que vai de 1937 a 1988 e, portanto, englobando desde oEstado Novo at o perodo de redemocratizao da Constituinte.

    15. Cf.:Estratgia Xavante (2007).

    16. O projeto Vdeo nas Aldeias foi idealizado pelo indigenista e cineasta Vincent Carelli e a antroploga Dominique Gallois em 1987, como uma ativi-dade do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) de So Paulo. O projeto nas-ceu de uma atividade de produo audiovisual com os Nambiquara, e partiuda p emissa de o ienta o egist o com nalidade p odutiva, const utiva, emrelao identidade. Posteriormente, o projeto saiu do CTI e se tornou umaONG independente, hoje sediada na cidade do Recife.

    Referncias

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    rece ido em: 07/07/14 Aceito em: 11/09/14

    SAMUEL [email protected] mestre em Antropologia pelo Programa de Ps-Graduao emSociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro(IFCS-UFRJ). Atualmente doutorando em cinema pelo Programa dePs-graduao em Comunicao da Universidade Federal Fluminense.

    FRANCISCO ANTUNES CAMINATI

    http://caminati.wiki.br doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campi-nas (UNICAMP) e professor do Departamento de Planejamento,Urbanismo e Ambiente da Faculdade de Cincias e Tecnologia daUniversidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP -Presidente Prudente).

    ALINE YURI HASEGAWA

    mestre em Sociologia pela Universidade Federal de So Car-los (UFsCar )e atualmente doutoranda do programa de ps-graduao em Cincias Humanas e Sociais da UniversidadeFederal do ABC (UFABC).