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IACOCCA UMA AUTOBIOGRAFIA

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IACOCCA UMA AUTOBIOGRAFIA

LEE IACOCCA

Tradução

Adail U. Sobral Maria Stela Gonçalves

Digitalização: Argonauta

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À minha querida Mary, por sua coragem...

e sua devoção

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ÍNDICE

Agradecimentos 11 Introdução 13 Prólogo 15

MADE IN AMERICA

I A família 21 II Os tempos de escola 32

A HISTÓRIA DA FORD III Mãos a obra 51 IV Os contadores de tostões 61 V A chave da administração 70 VI O Mustang 86 VII Big Boy! 105 VIII A caminho do sucesso 114 IX Distúrbios no paraíso 127

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X 1975 — O ano fatídico 141 XI Guerra declarada 151 XII O dia seguinte 166 A HISTÓRIA DA CHRYSLER XIII Cortejado pela Chrysler 175 XIV Canoa furada 186 XV Compondo a equipe 203 XVI Cai o Xá do Irã. Começa a crise. 220 XVII Medidas drásticas: recorrendo ao governo. 231 VIII A Chrysler deve ser salva? 242 XIX A Chrysler vai ao Congresso 255 XX Igualdade de sacrifícios 273 XXI A prova de fogo: os bancos. 284 XXII O carro K 298 XXIII Homem público, função pública. 317 XXIV Uma vitória amarga 329 CONVERSA FRANCA XXV Como salvar vidas na estrada 345 XXVI O alto custo da mão-de-obra 356 XXVII O desafio japonês 368 XXVIII Redescobrindo o sonho americano 379

Epílogo A grande dama 397

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AGRADECIMENTOS

Geralmente, o autor agradece a to-das as pessoas que o ajudaram a fazer seu livro. Mas, como esta é uma autobiografia, eu gostaria de começar agradecendo a algumas das pessoas que me ajudaram a construir minha vida — amigos verdadeiros, que me apoiaram quando meu mundo estava-se despe-daçando: o bispo Ed Broderick, Bill Curran, Vic Damone, Alejan-dro de To-maso, Bill Fugazy, Frank Klotz, Walter Murphy, Bíll Win e Gio, meu barbeiro. Quero agradecer também a meu médico, James Barron, que me ajudou a conservar inteiros o corpo e a alma.

Desejo agradecer ao grupo que deixou de lado uma aposenta-doria tranqüila para me auxiliar na Chrysler — Paul Bergmoser, Don De La Rossa, Gar Laux, Hans Mathias e John Naughton — e aos meus "jovens tenentes", entre eles Jerry Greenwald, Steve Miller, Leo Kelmenson e Ron de Luca, que abandonaram empregos bons e seguros para trabalhar duro e ajudar a salvar uma empresa quase falida.

Em meus trinta e oito anos no ramo de automóveis, tive o pri-vilégio de trabalhar com três mulheres maravilhosas. A primeira foi Betty Martin, uma secretária tão talentosa que fazia muitos executi-vos da Ford parecerem péssimos. A segunda, Dorothy Carr, deixou a Ford no dia em que fui demitido e veio para a Chrysler por pura lealdade, mesmo colocando a sua pensão em risco. E a terceira, mi-nha atual secretária, Bonnie Gatewood, uma funcionária veterana da Chrysler, está no mesmo nível das outras duas.

Sou muito grato a meus velhos amigos da Ford, os poucos e preciosos que permaneceram amigos durante aquele período tene-broso: Calvin Beauregard, Hank Carlini, Jay Dugan, Matt McLaug-hlin, John Morrissey, Wes Small, Hal Sperlich e Frank Zimmerman.

Desejo agradecer a Nessa Rapoport, minha editora, que possi-bilitou que este livro chegasse ao fim; ao pessoal da Bantam Books, que trabalhou arduamente, em particular Jack Romanos, Stuart Ap-plebaum, Heather Florense, Alberto Vitale e Lou Wolfe; e a meu inestimável colaborador, William Novak.

E, nem é preciso dizer, às minhas filhas, Kathi e Lia, que real-mente foram — e continuam sendo — toda a minha vida.

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INTRODUÇÃO

nde quer que eu vá, as pessoas sem-pre me fazem as mesmas perguntas: Como você conseguiu ter su-cesso? Por que Henry Ford demitiu você? Como você levantou a Chrysler?

Como eu nunca tinha uma resposta certa e rápida para essas perguntas, adquiri o hábito de dizer: " Quando eu escrever meu li-vro, você vai descobrir".

Repeti essa frase tantas vezes ao longo dos anos, que acabei a-creditando em minhas palavras. Por fim, não tive outra escolha se-não escrever o livro de que vinha falando há tanto tempo.

Por que o escrevi? Certamente não foi para ficar famoso. Os anúncios da Chrysler na televisão já me tornaram mais famoso do que jamais imaginei ser.

Também não o escrevi para ficar rico. Já tenho todos os bens materiais de que alguém possa necessitar. Por isso, cada centavo que eu ganhar com este livro será doado ao Joslin Diabetes Center, de Boston.

E não escrevi este livro para me vingar de Henry Ford, por ter-me demitido. Isso eu já fiz à velha moda americana, lutando com ele no mercado.

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A verdade é que escrevi este livro para esclarecer as coisas (e para esclarecer a minha cabeça), para contar a história da minha vi-da na Ford e na Chrysler da maneira como realmente aconteceu. Enquanto trabalhava no livro e revivia minha vida, ficava pensando em todos os jovens que encontro quando falo em universidades e em escolas de administração. Se este livro puder dar a eles um qua-dro realista da emoção e do desafio que há no mundo dos grandes negócios nos Estados Unidos de hoje, e transmitir uma idéia daqui-lo pelo que vale a pena lutar, então todo este trabalho intenso terá servido para alguma coisa.

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PRÓLOGO

ocês vão ler a história de um homem que teve muito sucesso na vida, mas que, ao longo do caminho, também passou por períodos muito ruins. Na verdade, quando volto os olhos para os meus trinta e oito anos na indústria automobilísti-ca, o dia que aparece mais vivo na lembrança não tem nada a ver com carros novos, promoções ou lucros.

Comecei minha vida como filho de imigrantes e fui construin-do meu caminho até chegar à presidência da Ford Motor Company. Quando finalmente consegui, eu me senti nas alturas. Mas então o destino me disse: "Espere. Ainda não acabou. Agora você vai desco-brir o que alguém sente quando é chutado Monte Everest abaixo!"

No dia 13 de julho de 1978, fui demitido. Eu tinha sido presi-dente da Ford durante oito anos, e era funcionário da Ford há trinta e dois anos. Nunca tinha trabalhado em nenhum outro lugar. E ago-ra, de repente, estava sem emprego. Era como um soco no estômago.

Oficialmente, meu contrato de trabalho deveria terminar dali a três meses. Mas, nos termos da minha "renúncia", depois desse pe-ríodo eu teria direito a usar um escritório até arrumar outro empre-go.

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No dia 15 de outubro, meu último dia à frente da Ford — e, por coincidência, o dia do meu 54? aniversário —, meu motorista le-vou-me pela última vez à sede internacional da companhia, em De-arborn. Antes de sair de casa, beijei minha esposa, Mary, e minhas duas filhas, Kathi e Lia. Minha família tinha sofrido terrivelmente durante meus turbulentos meses finais na Ford, o que me deixou com muita raiva. Talvez eu fosse responsável pelo meu próprio des-tino. Mas, e Mary e as meninas? Por que tinham que passar por isso? Eram vítimas inocentes do déspota cujo nome estava lá no edifício.

Mesmo hoje, o sofrimento delas é o que guardo comigo. É um pouco como a leoa e os filhotes: se o caçador sabe o que é melhor para ele, deixa-os em paz. Henry Ford fez minhas crianças sofre-rem, e isso nunca lhe perdoarei.

No dia seguinte, entrei no carro e fui para meu novo escritório. Ficava num armazém obscuro, na Telegraph Road, a poucos quilô-metros da sede internacional da Ford. Mas, para mim, era o mesmo que estar em outro planeta.

Não sabia exatamente onde ficava o escritório, e levei alguns minutos para achar o prédio. Quando finalmente cheguei lá, não sa-bia nem onde estacionar o carro.

Percebi que havia muitas pessoas querendo me ver. Alguém ti-nha alertado a imprensa de que o presidente recém-deposto da Ford iria trabalhar lá, naquela manhã, e uma pequena multidão tinha se reunido para me encontrar. Um repórter de TV enfiou um microfo-ne na minha cara e perguntou: "Como se sente, vindo a este arma-zém, depois de estar oito anos lá em cima?"

Não consegui responder. O que eu poderia dizer? Quando me vi a salvo, fora do alcance da câmera, murmurei a verdade: "Eu me sinto uma merda",

Meu novo escritório era pouco mais que um cubículo, com uma pequena escrivaninha e um telefone. Minha secretária, Doro-thy Carr, já estava lá, com lágrimas nos olhos. Sem dizer uma pala-vra, apontou para o piso de linóleo rachado e para as duas xícaras de café, de plástico, em cima da escrivaninha.

Um dia antes, ela e eu trabalhávamos no meio da maior osten-tação, O escritório do presidente era do tamanho de uma suíte de hotel de luxo. Eu tinha meu banheiro particular, tinha até mesmo uma sala de estar só para mim. Como executivo sênior da Ford, era servido por garçons vestidos a rigor, que ficavam à minha disposi-

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ção o dia inteiro. Certa vez, trouxe uns parentes da Itália para verem onde eu trabalhava; eles acharam que tinham morrido e estavam no céu. Hoje, porém, era como se eu estivesse a milhares de quilôme-tros. Pouco depois de eu chegar, o administrador do armazém parou para me fazer uma visita de cortesia. Ofereceu-se para me trazer uma xícara de café da máquina do hall. Foi um gesto delicado, mas o fato de eu estar lá era absurdo, e nos deixou embaraçados.

Para mim, aquilo era a Sibéria. Era um exílio no canto mais longínquo do reino. Estava tão atordoado, que levei alguns minutos para perceber que não tinha nenhum motivo para ficar lá. Tinha te-lefone em casa, e alguém poderia levar-me a correspondência. Dei-xei aquele lugar antes das dez horas e nunca mais voltei.

Essa humilhação final foi muito pior do que ser demitido. Era suficiente para eu ter vontade de matar — não sabia ao certo quem, se Henry Ford ou a mim mesmo. Assassinato ou suicídio nunca fo-ram possibilidades reais, mas comecei a beber um pouco mais — e a tremer muito mais. Sentia-me realmente caindo aos pedaços.

Durante a nossa vida, há milhares de pequenas bifurcações pelo caminho, algumas realmente grandes — aqueles momentos de ava-liação, momentos da verdade. Eu estava em um desses momentos e me perguntava o que fazer. Será que conseguiria encerrar tudo e me aposentar? Estava com cinqüenta e quatro anos e já tinha realizado muita coisa. Financeiramente, estava garantido. Poderia passar o resto da minha vida jogando golfe.

Mas isso não me parecia certo. Sabia que tinha que juntar os pedaços e seguir em frente.

Há momentos na vida em que as coisas positivas nascem de uma adversidade. Existem ocasiões em que tudo parece tão ruim que você tem que agarrar o destino pelos ombros e sacudi-lo. Tenho certeza de que foi aquela manhã no armazém que me empurrou para assumir a presidência da Chrysler, apenas algumas semanas depois.

O sofrimento pessoal, eu teria conseguido suportar. Mas a hu-milhação pública deliberada foi demais para mim. Eu estava furio-so, e tinha uma opção bastante simples: poderia voltar aquela fúria contra mim, com resultados desastrosos, ou poderia pegar um pou-co daquela energia e tentar fazer algo produtivo.

Mary me chamava a atenção: "Não deixe isso acabar com você, fique calmo". Em momentos de grande stress e adversidade, é sem-

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pre melhor manter-se ocupado, canalizar a raiva e a energia para al-go positivo.

Logo percebi que saíra da frigideira para cair no fogo. Um ano depois de eu ter assinado o contrato, a Chrysler entrou num rápido processo de bancarrota. Havia dias em que me perguntava como ti-nha podido entrar naquela confusão. Ser demitido da Ford já tinha sido muito ruim. Mas afundar com o navio na Chrysler era mais do que eu merecia.

Felizmente, a Chrysler venceu a briga contra a morte. Hoje sou um herói. Mas, por estranho que pareça, tudo aconteceu por causa daquele momento de verdade, lá no armazém. Com determinação, com sorte e com a ajuda de muita gente ótima, consegui me levan-tar das cinzas.

Agora vou contar-lhes a minha história.

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MADE IN AMERICA

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I A FAMÍLIA

icola Iacocca, meu pai, chegou a es-te país em 1902, com doze anos — pobre, sozinho e assustado. Ele costumava dizer que a única coisa de que tinha certeza quando de-sembarcou era que o mundo é redondo. E assim mesmo porque ou-tro menino italiano, Cristóvão Colombo, o havia precedido em 410 anos, quase no mesmo dia.

Quando o navio estava entrando no Porto de New York, meu pai avistou a Estátua da Liberdade, o grande símbolo de esperança para milhões de imigrantes. Em sua segunda travessia, quando no-vamente viu a estátua, era um novo cidadão americano — tendo como companheiras apenas sua mãe, sua jovem esposa e a esperan-ça. Para Nicola e Antoinette, os Estados Unidos eram a terra da li-berdade — liberdade de sermos o que desejarmos, se esse desejo for intenso e se estivermos dispostos a lutar por ele.

Esta foi a única lição que meu pai deu à sua família. Espero que eu tenha conseguido o mesmo com a minha.

Durante minha infância em Allentown, Pennsylvania, nossa família era tão unida que às vezes nos sentíamos como se fôssemos uma única pessoa com quatro partes.

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Meus pais sempre fizeram minha irmã, Delma, e eu nos sen-tirmos importantes e especiais. Não havia nada que fosse trabalhoso ou problemático demais. Meu pai podia ter que fazer dúzias de coi-sas, mas sempre conseguia tempo para nós. Minha mãe dava-se ao trabalho de cozinhar as comidas que nós adorávamos — apenas pa-ra nos ver felizes. Até hoje, quando vou visitá-la, ela faz os meus dois pratos favoritos — sopa de frango com pedacinhos de vitela e ravióli recheado com ricota. De todas as grandes cozinheiras napo-litanas do mundo, minha mãe deve ser uma das melhores.

Meu pai e eu éramos muito unidos. Eu adorava agradá-lo, e ele sempre se orgulhava imensamente das minhas realizações.

Se eu vencia um concurso de leitura na escola, ele ficava no céu. Mais tarde, sempre que eu era promovido, ligava imediatamen-te para meu pai e ele saía correndo para contar aos amigos. Na Ford, cada vez que eu lançava um carro novo, ele queria ser o pri-meiro a dirigi-lo. Em 1970, quando fui nomeado presidente da Ford Motor Company, não sei qual dos dois ficou mais entusiasmado.

Como muitos italianos, meus pais eram muito abertos quanto aos seus sentimentos e seu amor — não só em casa, mas também em público. A maioria dos meus amigos nunca abraçava seus pais. Acho que tinham medo de não parecer fortes e independentes. Mas eu vivia abraçando e beijando meu pai — achava a coisa mais natu-ral do mundo.

Ele era um homem inquieto e criativo, sempre experimentando novidades. Certa vez, comprou duas figueiras e acabou descobrindo uma maneira de cultivá-las no clima rigoroso de Allentown. Tam-bém foi a primeira pessoa da cidade a comprar uma motocicleta — uma velha Harley Davidson —, com a qual rodava pelas ruas sujas da nossa vila. Infelizmente, meu pai e sua motocicleta não se deram muito bem. Ele caía tanto, que resolveu desfazer-se dela. Resultado: nunca mais confiou em nenhum veículo que tivesse menos de qua-tro rodas.

Por causa daquela maldita motocicleta, não me deixaram ter bicicleta quando era criança. Sempre que eu queria dar uma volta de bicicleta, tinha que pedir emprestada a de um amigo meu. Por outro lado, meu pai me deixou dirigir automóvel assim que comple-tei dezesseis anos, Assim, fui o único garoto em Allentown que passou diretamente de um triciclo para um Ford.

Meu pai adorava carros. Na verdade, ele teve um dos primeiros Modelo T. Era uma das poucas pessoas em Allentown que sabia di-

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rigir, estava sempre mexendo com carros e pensando em como a-perfeiçoá-los. A exemplo dos demais motoristas daquela época, costumava ter um monte de pneus furados. Durante anos, sua ob-sessão foi descobrir uma maneira de dirigir uns quilômetros a mais com um pneu furado. Até hoje, sempre que aparece alguma novida-de na tecnologia de pneus, lembro-me de meu pai.

Era um apaixonado pelos Estados Unidos e perseguia o sonho americano com todas as suas forças. Quando irrompeu a Primeira Guerra Mundial, meu pai se apresentou voluntariamente ao Exérci-to — em parte por patriotismo e em parte, como me confessou mais tarde, para ter um pouco mais de controle sobre o seu destino. Ti-nha trabalhado muito para ficar nos Estados Unidos e se naturalizar e se apavorava com a perspectiva de ser mandado de volta para a Europa, para lutar na Itália ou na França. Por sorte, ficou estacioná-rio em Camp Cran, um centro de treinamento do Exército a apenas alguns quilômetros de casa. Como sabia dirigir, foi designado para treinar motoristas de ambulância.

Nicola Iacocca tinha vindo de San Marco, que ficava cerca de

40 quilômetros a nordeste de Nápoles, na província italiana de Campania. Tinha, como tantos outros imigrantes, muita ambição e muita esperança. Nos Estados Unidos, viveu algum tempo em Gar-ret, Pennsylvania, com seu meio-irmão. Foi trabalhar em uma mina de carvão, mas detestou o serviço, a ponto de desistir no segundo dia. Ele gostava de dizer que tinha sido o único dia da sua vida em que trabalhara para outra pessoa.

Logo se mudou para Allentown, onde tinha outro irmão. Por volta de 1921, tinha juntado dinheiro suficiente, fazendo serviços ocasionais — particularmente como aprendiz de sapateiro —, e pô-de voltar a San Marco para buscar sua mãe viúva. Na verdade, aca-bou trazendo também minha mãe. Em sua estada na Itália, aquele solteirão de trinta e um anos apaixonou-se pela filha de um sapatei-ro, de dezessete anos. Em poucas semanas estavam casados.

Ao longo dos anos, alguns jornalistas têm noticiado (ou repeti-do) que meus pais passaram a lua-de-mel na praia do Lido, em Ve-neza, e que eu teria recebido o nome de Lido para comemorar aque-la semana feliz. É uma história maravilhosa, mas tem um problema: não é verdadeira. Meu pai realmente fez uma viagem à praia do Li-do, mas antes do casamento, e não depois. E como na época ele es-

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tava acompanhado pelo irmão de minha mãe, duvido que suas férias tenham sido muito românticas.

A viagem de meus pais para os Estados Unidos não foi nada fácil. Minha mãe contraiu febre tifóide e passou a viagem inteira na enfermaria do navio. Quando chegaram à ilha de Ellis, tinha perdi-do todo o cabelo. De acordo com a lei, ela deveria ter sido mandada de volta para a Itália. Mas meu pai era uma pessoa agressiva e bem falante e já tinha aprendido a se cuidar no Novo Mundo. Não se sa-be como, conseguiu convencer os funcionários da imigração de que sua jovem esposa só estava com enjôo.

Eu nasci três anos depois, no dia 15 de outubro de 1924. Nessa época, meu pai abriu uma casa de cachorro-quente chamada Or-pheum Wiener House. Era um negócio perfeito para quem não tinha muito dinheiro. Na verdade, para começar ele só precisou de uma grelha, uma chapa e alguns banquinhos.

Meu pai sempre tentou incutir duas coisas em mim: nunca en-tre num negócio que exija grandes investimentos de capital, porque os banqueiros acabam engolindo você (eu deveria ter dado mais a-tenção a este conselho!); e, em tempos difíceis, fique no ramo de a-limentos, porque, por pior que estejam as coisas, as pessoas têm que comer. A Orpheum Wiener House permaneceu a salvo durante toda a Grande Depressão.

Mais tarde, ele trouxe meus tios, Theodore e Marco, para o ne-gócio. Os filhos de Theodore, Julius e Albert Iacocca, ainda fazem cachorros-quentes em Allentown. A sociedade se chamava Yocco's, que era mais ou menos como os holandeses da Pennsylvania pro-nunciavam nosso nome.

Eu mesmo estive muito perto de entrar no ramo de alimentos. Certa vez, em 1952, pensei seriamente na possibilidade de deixar a Ford e entrar na venda de alimentos. Os revendedores da Ford ope-ravam como concessionárias independentes, e me ocorreu que se alguém conseguisse montar uma rede de venda de alimentos ficaria rico muito depressa, Meu plano era ter dez pontos de venda de lan-ches rápidos, com uma única central de compras. Isto foi muito an-tes de Ray Kroc ter concebido o McDonald's, e às vezes me pergun-to se não terei deixado de seguir minha verdadeira vocação. Quem sabe? Talvez hoje eu valesse meio bilhão de dólares e tivesse uma placa na fachada anunciando: mais de 10 bilhões de refeições servi-das.

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Poucos anos depois, abri meu próprio negócio, uma pequena casa de sanduíches em Allentown chamada The Four Chefs. Servia bifes com queijo à Philadelphia. (Isto é, bife cortado fino com quei-jo fundido, em pão italiano.) Meu pai montou o negócio e eu entrei com o dinheiro. Funcionou muito bem — na verdade bem demais, pois o que eu realmente teria precisado então era de uma proteção contra o imposto de renda. Fizemos 125 mil dólares no primeiro ano, o que elevou tanto a minha faixa de imposto de renda, que fui obrigado a me livrar da lanchonete. Com The Four Chefs eu me ex-pus, pela primeira vez, à mão de ferro e à voracidade crescente de nossas leis de impostos.

Na realidade, entrei no ramo de alimentos muito antes de me envolver com automóveis. Quando eu tinha dez anos, foi aberto em Allentown um dos primeiros supermercados do país. Depois da es-cola e nos fins de semana, meus colegas e eu nos postávamos à por-ta do supermercado com nossos carrinhos vermelhos, como uma fi-leira de táxis à porta de um hotel. À medida que os compradores sa-íam, nós nos oferecíamos para carregar as sacolas por uma pequena gorjeta. Relembrando agora, faz muito sentido — eu estava no setor de transportes do ramo de alimentos.

Na adolescência, tive um emprego de fim de semana num mer-cado de frutas dirigido por um grego chamado Jimmy Kritis. Acor-dava de madrugada para ir ao mercado atacadista e trazer os produ-tos. Recebia 2 dólares por dia — e todas as frutas e verduras que conseguisse levar para casa depois de um dia de trabalho de dezes-seis horas.

Nessa época, meu pai tinha outros empreendimentos além da Orpheum Wiener House. Primeiro, ele se associou a uma compa-nhia nacional chamada U-Drive-It, uma das primeiras agências de aluguel de carros. Acabou montando uma frota de uns trinta carros, na maioria Fords. Meu pai também tinha muita amizade com um certo Charley, cujo filho, Edward Charles, trabalhava para um re-vendedor Ford. Mais tarde, Eddie comprou uma revendedora pró-pria, onde me introduziu no mundo fascinante da venda de carros. Quando eu tinha quinze anos, Eddie me convenceu a entrar no ramo de automóveis. Desde então, empenhei todas as minhas energias exatamente nisso.

Provavelmente, foi meu pai o responsável pelo meu instinto de marketing. Ele teve dois cinemas; um deles, o Franklin, continua funcionando até hoje. Os moradores mais antigos de Allentown me

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contaram que meu pai era um promotor tão eficaz que os garotos que iam às matinês de sábado ficavam mais entusiasmados com suas o-fertas do que com os filmes. Até hoje se comenta o dia em que ele anunciou que os dez garotos de rosto mais sujo teriam entrada grátis.

Tenho minhas dúvidas de que hoje haja garotos no Franklin. Agora ele se chama Jenette e, ao invés de Tom Mix e Charlie Cha-plin, exibe filmes pornográficos.

Economicamente, nossa família teve seus altos e baixos. Co-

mo muitos americanos, vivemos bem durante os anos 20. Meu pai ganhou muito dinheiro com imóveis, além de ter tido outros negó-cios. Por alguns anos fomos realmente ricos. Mas, então, veio a Depressão.

Quem a viveu jamais poderá esquecê-la. Meu pai perdeu todo o dinheiro e quase perdemos nossa casa. Lembro-me de que eu per-guntava a minha irmã, que era dois anos mais velha que eu, se terí-amos que nos mudar e como faríamos para achar um lugar para mo-rar. Na época eu tinha apenas seis ou sete anos, mas ainda trago vi-va a ansiedade que senti com relação ao futuro. Os períodos difíceis são indeléveis — permanecem em nós para sempre.

Durante aqueles anos difíceis, minha mãe sempre teve muito expediente. Era uma verdadeira mãe imigrante, o esteio da família. Um pequeno osso para sopa rendia muito lá em casa e sempre tí-nhamos o que comer. Lembro-me de que ela costumava comprar pombos — três por um quarto de dólar — e ela mesmo os matava, porque não confiava na garantia do açougueiro de que o produto era fresco. Quando a Depressão piorou, ela passou a ajudar na lancho-nete de meu pai. Numa certa ocasião, ela foi trabalhar numa fábrica de seda, costurando camisas. Minha mãe fazia com prazer tudo o que fosse preciso para sobrevivermos. Hoje ela ainda é uma mulher bonita — que parece mais jovem do que eu.

Como acontecia com muitas famílias naquela época, nós nos apoiávamos numa intensa fé em Deus. Parece que rezávamos mui-tíssimo. Eu tinha que ir à missa todo domingo e comungar a cada uma ou duas semanas. Levou alguns anos para eu compreender bem por que tinha que fazer uma boa confissão a um padre antes de re-ceber a comunhão, mas na adolescência comecei a entender a im-portância deste rito, o mais incompreendido da Igreja Católica. Eu não tinha apenas que pensar sobre as minhas transgressões contra os meus amigos; devia falar delas em voz alta. Anos depois, sentia-

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me completamente restaurado depois da confissão. Até comecei a freqüentar retiros de final de semana, em que os jesuítas, através de exames de consciência cara a cara, levaram-me a encarar com seri-edade o modo de conduzir a minha vida.

A necessidade de discernir o certo do errado de forma sistemá-tica foi a melhor terapia que eu já tive.

Apesar de alguns períodos difíceis, tivemos muitos divertimen-tos. Não havia TV naquela época; portanto, as pessoas dependiam mais umas das outras. Aos domingos, depois de irmos à igreja, nos-sa casa sempre se enchia de parentes e amigos, ríamos, comíamos macarrão e bebíamos vinho tinto. Também líamos muito e, natu-ralmente, todo domingo à noite, nós nos reuníamos em torno do ve-lho rádio Philco para ouvir nossos programas favoritos, com Edgar Bergen e Charlie McCarthy e Inner Sanctum.

Mas, para meu pai, a Depressão foi a pior coisa que aconteceu. Não conseguia agüentar a situação. Depois de anos de luta, final-mente conseguira juntar uma boa quantidade de dinheiro. E então, quase da noite para o dia, tudo se fora. Quando eu era pequeno, ele dizia que eu tinha que ir para o colégio para aprender o que signifi-cava a palavra "depressão". Ele mesmo só tinha feito as quatro pri-meiras séries da escola. "Se alguém me tivesse ensinado o que era uma depressão", dizia ele, "eu não teria hipotecado um negócio para começar outro."

Isto foi em 1931. Eu tinha apenas sete anos, mas mesmo assim sabia que alguma coisa séria tinha acontecido. Mais tarde, na uni-versidade, aprenderia tudo sobre ciclos de negócios, e na Ford e na Chrysler aprenderia a manejá-los. Mas a nossa experiência de famí-lia foi um primeiro vislumbre do que viria depois.

Meus pais gostavam muito de tirar fotografias, e o nosso álbum de família contou-me muita coisa. Até os seis anos de idade, apare-ço vestido com sapatos de cetim e casaquinhos bordados. Quando bebê, apareço nas fotos com um chocalho de prata na mão. De re-pente, por volta de 1930, minhas roupas começam a parecer um pouco estragadas. Minha irmã e eu não estávamos mais ganhando roupas novas. Eu não conseguia entender por quê, e esse era o tipo de coisa que meu pai não poderia me explicar. Como dizer a uma criança: "Fiquei na miséria, filho, mas não sei por quê".

A Depressão fez de mim um materialista. Anos mais tarde, quando me formei na universidade, minha atitude era do tipo: "Não me aborreça com filosofias. Quero estar ganhando dez mil por ano

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quando tiver vinte e cinco anos, e depois quero ser milionário". Não me interessava ser um esnobe; eu queria era grana.

Mesmo agora, como assalariado rico, coloco a maior parte do meu dinheiro em investimentos bem conservadores. Não é que eu tenha medo de ficar pobre, mas em algum lugar, bem no fundo da minha cabeça, permanece a advertência de que as trovoadas podem voltar e minha família pode ficar sem ter o suficiente para comer.

Seja qual for minha situação financeira, a Depressão nunca me sai da cabeça. Até hoje, odeio desperdícios. Quando as gravatas es-treitas saem da moda e entram as largas, eu guardo todas as minhas gravatas velhas, até entrarem na moda de novo. Jogar comida fora ou jogar metade de um bife no lixo são coisas que ainda me deixam louco. Consegui transmitir um pouco dessa visão a minhas filhas, e noto que elas só gastam dinheiro quando encontram um bom preço — meu Deus, como elas percorrem as lojas!

Mais de uma vez, durante a Depressão, os cheques de meu pai foram devolvidos com a frase mortal: insuficiência de fundos. Isto sempre o deixava muito mal, pois ele sabia que um bom nível de crédito era vital para a integridade de um indivíduo ou de um negó-cio. Ele sempre desfiava seu sermão sobre a responsabilidade fiscal para Delma e para mim, insistindo para nunca gastarmos mais di-nheiro do que tínhamos. Via o crédito como algo traiçoeiro. Nin-guém da família tinha autorização para ter cartão de crédito ou abrir financiamento — jamais!

Nesse sentido, meu pai estava um pouco à frente de seu tempo. Ele previa que comprar as coisas e ficar devendo enfraqueceria o senso de responsabilidade das pessoas com relação a seus gastos. Previu ainda que o crédito fácil acabaria permeando e sabotando toda a nossa sociedade e que os consumidores teriam muitos pro-blemas se lidassem com seus cartõezinhos de plástico como se fos-sem dinheiro no banco.

Ele dizia: "Se você pedir um empréstimo, nem que seja vinte centavos a um colega de escola, não deixe de anotar, para não se esquecer de pagar a dívida". Costumo imaginar como ele reagiria se tivesse vivido o suficiente para me ver pendurado, em 1981, para manter a Chrysler Corporation em atividade. E foram bem mais de vinte centavos: o total chegou a 1,2 bilhão de dólares. Embora me lembrasse do conselho de meu pai, tinha a sensação engraçada de que me lembraria desse empréstimo sem precisar anotar nada.

Dizem que as pessoas votam com o próprio bolso, e com certe-

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za as posições políticas de meu pai mudavam conforme sua renda. Quando éramos pobres, éramos democratas. Os democratas, como todos sabem, eram o partido do povo. Para eles, quem se dispusesse a trabalhar duro e não fosse malandro deveria ter condições de ali-mentar a família e educar os filhos.

Mas quando estávamos bem de vida — antes da Depressão e quando ela finalmente acabou — éramos republicanos. Afinal, tí-nhamos trabalhado duro para conseguir nosso dinheiro e merecía-mos conservá-lo.

Quando adulto, passei por uma transformação política seme-lhante. Enquanto estava na Ford e tudo corria às mil maravilhas, era republicano. Mas, quando tomei posse na Chrysler e centenas de milhares de pessoas de repente se viram ameaçadas de perder seus empregos, os democratas foram suficientemente pragmáticos para fazer o que era necessário. Se a crise da Chrysler tivesse irrompido durante uma administração dos republicanos, a companhia teria en-trado pelo cano num piscar de olhos.

Quando os tempos eram difíceis para nossa família, era meu

pai que mantinha nosso moral. Acontecesse o que acontecesse, ele estava sempre conosco. Era um filósofo, sempre repetindo ditados e homílias a respeito das coisas do mundo. Seu tema favorito era que a vida tem seus altos e baixos e cada um deve agüentar a sua pró-pria parcela de miséria. "A gente tem que aceitar as pequenas triste-zas da vida", ele me dizia, quando me via chateado por causa de uma nota baixa ou alguma outra decepção. "Você nunca vai saber realmente o que é a felicidade, se não tiver com que compará-la."

Ao mesmo tempo, ele detestava ver qualquer um de nós infeliz e sempre tentava nos alegrar. Quando eu estava aborrecido com al-guma coisa, ele me dizia: "Escute, Lido, o que foi que aborreceu você do mesmo jeito no mês passado? Ou no ano passado? Está vendo? Você nem se lembra! Então, vai ver que o que está aborre-cendo você tanto hoje não é tão ruim assim. Esqueça e vá em frente".

Nos tempos difíceis, ele sempre foi um otimista. Quando as coisas pareciam ir mal, dizia: "Espere que o sol vai aparecer. Ele sempre aparece". Muitos anos mais tarde, quando eu estava tentan-do salvar a Chrysler da falência, senti falta das palavras reconfor-tantes do meu pai. Eu lhe diria: "Ei, papai, onde está o sol, onde es-tá o sol!" Ele nunca deixou nenhum de nós entregar-se ao desespe-ro. Confesso que houve mais de um momento, em 1981, em que me

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senti prestes a desistir. Mantive minha sanidade, naquela época, re-lembrando sua frase favorita: "Parece horrível agora, mas lembre-se de que isso também vai passar".

Ele insistia em que cada um devia aproveitar ao máximo o pró-prio potencial, fizesse o que fizesse. Se íamos a um restaurante e a garçonete atendia mal no final da refeição ele a chamava e lhe pas-sava o seu sermãozinho preferido: "Vou lhe dar uma gorjeta real-mente boa: algumas perguntas. Por que você é tão infeliz neste ser-viço? Alguém a está obrigando a ser garçonete? Quando você é grosseira, está dizendo a todo mundo que não gosta do que está fa-zendo. Estamos querendo passar momentos agradáveis e você está estragando tudo. Se você realmente quer ser garçonete, deve se es-forçar para ser a melhor garçonete do mundo. Caso contrário, pro-cure outro tipo de serviço".

Em seus restaurantes, ele despedia imediatamente qualquer empregado que fosse grosseiro com um cliente. Ele lhe dizia: "Por mais eficiente que você seja, não pode mais trabalhar aqui, pois está afastando a freguesia". Ia direto ao ponto principal da questão, e a-cho que sou do mesmo jeito. Ainda acho que o maior talento do mundo não justifica a grosseria deliberada.

Meu pai sempre me dizia que eu devia aproveitar a vida, e ele mesmo punha em prática seu conselho. Trabalhava muito, mas sempre deixava alguns períodos livres para se distrair. Adorava bo-liche e pôquer, gostava de boa comida e bebida e principalmente dos bons amigos. Sempre fez amizade com os meus colegas de tra-balho. Durante a minha carreira na Ford, acho que ficou conhecen-do mais gente do que eu mesmo,

Em 1971, dois anos antes da morte do meu pai, dei uma festa

enorme para comemorar o 50º aniversário de seu casamento. Eu ti-nha um primo que trabalhava na U. S. Mint e o encarreguei de es-culpir uma medalha de ouro, representando meus pais, de um lado, e a igrejinha italiana onde se casaram, do outro. Na festa, cada con-vidado recebeu uma cópia da medalha em bronze.

Nesse mesmo ano, minha mulher e eu levamos meus pais à Itá-lia, para visitarem sua cidade natal e encontrarem os velhos amigos e a família. Já nessa época, sabíamos que meu pai estava com leu-cemia. Submetia-se a transfusões de sangue a cada duas semanas e estava perdendo peso sistematicamente. Certa vez, nós nos perde-mos dele por algumas horas e ficamos com medo de que tivesse

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perdido a consciência ou sofrido um colapso. Finalmente, o encon-tramos numa loja minúscula, em Amalfi; entusiasmado, ele estava comprando souvenirs de cerâmica para dar a todos os amigos quan-do voltasse para casa.

Bem perto do final, em 1973, ele ainda tentava aproveitar a vi-da. Não podia dançar ou comer como antes, mas se mostrava firme e determinado a viver. De qualquer forma, seus dois últimos anos de vida foram duros para ele, e para todos nós também. Era difícil vê-lo tão vulnerável — e mais ainda aceitar isso.

Hoje, quando me lembro de meu pai, vejo apenas um homem extremamente vigoroso e enérgico. Certa vez, eu estava em Palm Springs participando de um encontro com revendedores da Ford e convidei meu pai para tirar umas férias curtas. Quando o encontro acabou, alguns de nós saímos para jogar golfe. Embora meu pai nunca tivesse estado num campo de golfe em toda a sua vida, nós o convidamos para ir conosco.

Assim que bateu na bola, ele saiu correndo atrás dela — setenta anos, e correndo o tempo todo. Tive que ficar lembrando: "Calma, papai. O golfe é um jogo para andar\"

Mas meu pai não deu bola. Sempre dizia: "Para que andar se a gente pode correr?"

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II OS TEMPOS DE

ESCOLA

U tinha onze anos quando aprendi que éramos italianos. Até então, sabia que tínhamos vindo de

um país real, mas não sabia como se chamava e onde ficava. Eu me lembro que cheguei até a procurar, num mapa da Europa, lugares chamados Dago e Wop.

Naquela época, principalmente quando se morava numa cidade pequena, o fato de ser italiano era algo que se tentava esconder. Quase todo mundo em Allentown era holandês da Pennsylvania e, quando eu era garoto, sofri muitos insultos por ser diferente.

As vezes eu brigava com os meninos que me insultavam. Mas sempre me lembrava do conselho de meu pai: "Se ele for maior que você, não brigue. Use a sua cabeça ao invés de usar os punhos".

Infelizmente, o preconceito contra os italianos não se limitava às pessoas da minha idade. Houve mesmo alguns professores que me chamavam, cochichando, de "carcamaninho".

Meus problemas étnicos chegaram ao auge no dia 13 de junho de 1933, quando estava na terceira série. Tenho certeza de que a da-ta era essa, porque 13 de junho é dia de Santo Antônio, um grande Termos pejorativos equivalentes a "carcamano", "macarrone", etc. (N. do T.)

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acontecimento na nossa família. O nome de minha mãe é Antoi-nette, e Anthony é o meu segundo; então, todos os anos, no dia 13 de junho, dávamos uma festa lá em casa.

Para marcar a ocasião, minha mãe fazia pizza. Ela nasceu em Nápoles, o berço da pizza. Até hoje, minha mãe faz as melhores pizzas do país, senão do mundo inteiro.

Naquele ano fizemos uma festa particularmente bonita, com nossos amigos e parentes. Como sempre, havia um grande barril de cerveja. Apesar de só ter nove anos, eu tinha permissão para beber um pouco — desde que estivesse em casa, sob estrita vigilância. Deve ser por isso que eu nunca tomei um porre no colégio ou na fa-culdade. Na nossa família, o álcool (particularmente vinho tinto fei-to em casa) fazia parte da vida — mas sempre com moderação.

Bem, naquela época, praticamente não se conhecia pizza nos Estados Unidos. Hoje, naturalmente, disputa com o hambúrguer e o frango frito a preferência dos americanos. Mas naquela época nin-guém, além dos italianos, tinha ouvido falar em pizza.

Na manhã seguinte à festa, comecei a fazer alarde entre os ou-tros meninos da escola: "Rapaz, que festa ontem à noite!"

"Ah, é?", alguém perguntou. "Que tipo de festa?" "Uma"festa de pizza", respondi. "Uma festa de pizza? Que palavra carcamana estúpida é essa?"

E todos começaram a rir. "Esperem aí", disse eu. "Vocês todos gostam de torta." Todos

eram bem gordinhos, por isso eu sabia o que estava dizendo. "Bem, sabem o que é uma pizza? É uma torta de tomates."

Eu devia ter desistido enquanto estava por cima, porque eles fi-caram histéricos. Não tinham a menor idéia do que eu estava falan-do. Mas sabiam que, se era italiano, devia ser ruim. A única coisa boa de todo esse incidente foi que ele aconteceu perto do final do ano escolar. O episódio da pizza foi esquecido durante o verão.

Mas eu nunca o esqueci. Aqueles garotos eram criados na base de torta de melado, mas eu nunca ri deles por comerem melado no café da manhã. Diabo, hoje não se vêem barracas de torta de mela-do em nenhum lugar dos Estados Unidos. Mas, para um menino de nove anos, não é nenhum consolo pensar que algum dia vai ser con-siderado precursor de alguma coisa.

Não fui a única vítima da intolerância na minha classe. Tam-bém havia duas crianças judias, e eu me dava muito bem com elas. Dorothy Warsaw sempre foi a primeira da classe e eu, geralmente,

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era o segundo. O outro menino judeu, Benamie Sussman, era filho de um judeu ortodoxo que usava um chapéu preto e era barbudo. Em Allentown, os Sussmans eram tratados como párias.

As outras crianças afastavam-se dessas duas como se elas tives-sem lepra. No começo eu não entendia por quê. Mas, quando estava na terceira série, comecei a entender o que significava. Como italia-no, eu era considerado um pouco melhor que as crianças judias. Até chegar ao colegial, eu nunca tinha visto um negro em Allentown.

Ser exposto à intolerância quando menino deixou marcas em mim. Eu me lembro nitidamente dessas passagens, e ainda sinto um gosto amargo na boca.

Infelizmente, testemunhei muitos preconceitos, mesmo depois de deixar Allentown. Então, o preconceito não vinha de crianças de escola, mas de homens bem situados, de grande poder e prestígio na indústria automobilística. Em 1981, quando nomeei Gerald Green-wald vice-presidente da Chrysler, soube que essa decisão não tinha precedentes. Até então, nenhum judeu jamais tinha galgado a escala superior das três grandes montadoras. Acho difícil acreditar que ne-nhum deles fosse qualificado.

Fazendo um retrospecto, lembro-me de certos episódios da mi-nha infância que me fizeram descobrir, à força, como funciona o mundo dos adultos. Quando eu estava na sexta série, houve uma e-leição para capitão da patrulha de alunos. Todos os patrulheiros u-savam cinturões brancos com um distintivo de prata, mas o tenente e o capitão usavam uniformes especiais, com distintivos especiais. Eu acalentava a idéia de vestir aquele uniforme, e estava determi-nado a ser o capitão.

Quando a votação acabou, eu tinha perdido para outro garoto, por uma margem de vinte e dois a vinte. Estava amargamente de-cepcionado. No dia seguinte, um sábado, fui à matinê do cinema lo-cal, onde costumávamos ver os filmes de Tom Mix.

Na minha frente sentou-se o maior garoto da nossa classe. Ele olhou em volta, me viu e disse: "Seu italiano estúpido, você perdeu a eleição",

"Eu sei", disse eu. "Mas por que você está me chamando de es-túpido?"

"Ora", ele disse. "Somos trinta e oito garotos na classe. Mas quarenta e dois votaram. Os carcamanos não sabem nem contar?"

Meu adversário tinha colocado votos falsos na urna. Contei pa-ra a professora que algumas crianças tinham votado duas vezes.

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"Deixe isso pra lá", disse-me ela. Ela não queria escândalos, e escondeu o que tinha acontecido.

Esse incidente teve um profundo efeito em mim. Foi a minha pri-meira — e dramática — lição de que a vida nem sempre é um mar de rosas.

Quanto a todos os outros aspectos, a escola foi um lugar muito

alegre para mim. Eu era bom aluno. Também era um dos preferidos de muitos professores, que sempre me escolhiam para limpar o apa-gador, apagar a lousa ou tocar o sinal da escola. Se me perguntarem os nomes de meus professores do curso superior, terei dificuldade em me lembrar de mais do que dois ou três. Mas ainda lembro dos nomes dos meus professores do primário e do colégio.

A coisa mais importante que aprendi na escola foi me comuni-car. Miss Raber, nossa professora da nona série, passava um exercí-cio de redação, de quinhentas palavras, toda segunda-feira de ma-nhã. Semana após semana, tínhamos que fazer o maldito exercício. No final do ano, tínhamos aprendido a nos expressar por escrito.

Em classe, ela às vezes fazia chamadas orais sobre a seção de vocabulário do Reader's Digest. Sem nenhum aviso prévio, ela pu-xava a revista e nos mandava fazer o teste de vocabulário. Isso se tornou um hábito para mim — até hoje, ainda olho a lista de pala-vras em cada exemplar do Digest.

Depois de alguns meses dessas chamadas orais, conhecíamos um grande número de palavras. Mas ainda não sabíamos como jun-tá-las. Nessa etapa, Miss Raber iniciou-nos no discurso improvisa-do. Eu era bom nisso, e entrei na equipe de debates, coordenada por Mr. Virgil Parks, nosso professor de latim. Foi aí que desenvolvi minha habilidade oratória e aprendi a pensar por mim mesmo.

No começo, eu ficava morto de medo. Tinha frio na barriga — e até hoje ainda fico um pouco nervoso antes de fazer um dis-curso. Mas a experiência de participar da equipe de debates foi fundamental. Você pode ter idéias brilhantes, mas se não conse-guir ser persuasivo, sua inteligência não adianta nada. Quando vo-cê tem quatorze anos, não há nada melhor para desenvolver suas habilidades do que defender os dois lados da questão: "A pena de morte deve ser abolida?" Este foi um debate quente, acontecido em 1938 — e eu devo ter falado pelo menos vinte e cinco vezes a favor de cada lado.

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O ano seguinte foi decisivo. Tive febre reumática. Quase morri de susto quando senti uma palpitação no coração, pela primeira vez. Pensei que meu coração fosse sair pela boca. O médico disse: "Não se preocupe. Ponha uma compressa de gelo sobre ele". Fiquei em pânico: que diabo estou fazendo com todo esse gelo no peito? Devo estar morrendo!

Naquela época as pessoas realmente morriam de febre reumáti-ca. O tratamento era à base de pílulas de casca de bétula para acabar com a infecção. Eram tão fortes, que a gente tinha que tomar pílulas antiácidas a cada quinze minutos para evitar vômitos (hoje, natu-ralmente, usam-se antibióticos).

A febre reumática é sempre um risco para o coração. Mas eu tive sorte. Embora tenha perdido uns vinte quilos e ficado de cama durante seis meses, acabei me recuperando totalmente. Mas nunca me esqueci daquelas talas com chumaços de algodão embebido em óleo de gaultéria, para diminuir a dor horrorosa nos joelhos, torno-zelos, cotovelos e pulsos. Realmente aliviavam a dor na parte inter-na, mas às custas de queimaduras de terceiro grau na parte externa. Hoje parece um método primitivo — mas ainda não se tinha inven-tado o Darvon nem o Demerol.

Antes de ficar doente, fui um jogador de beisebol bastante bom. Eu era um grande fã dos Yankees, e Joe Di Maggio, Tony Lazzeri e Frankie Crossetti — todos eles italianos — eram meus verdadeiros heróis. Como muitos meninos, eu sonhava em jogar nas maiores equipes. Mas minha longa doença mudou tudo isso. Desisti dos esportes e comecei a jogar xadrez, bridge e especialmente pô-quer. Ainda adoro jogar pôquer, e geralmente ganho. É um ótimo jogo para se aprender quando explorar uma vantagem, quando re-cuar e quando blefar. (Isto foi muito útil anos mais tarde, durante difíceis negociações com os sindicatos!)

Acima de tudo, enquanto fiquei de cama, voltei-me para os li-vros. Lia como louco — qualquer coisa que me viesse às mãos. Gostei especialmente das histórias de John O'Hara. Minha tia me deu Encontro em Samarra, que era considerado um livro muito sujo naquela época. Quando o médico viu o livro na minha cama, quase o jogou fora. Na opinião dele, não era o tipo de leitura ideal para um adolescente com palpitações no coração.

Anos mais tarde, quando Gail Sheehy veio me entrevistar para Esquire, mencionei Encontro em Samarra. Ela disse que se tratava

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de um romance sobre executivos e me perguntou se eu achava que o livro tinha influenciado minha carreira. Ora, claro que não!

A única coisa de que consegui me lembrar a respeito do livro é que ele tinha despertado meu interesse por sexo.

Devo ter lido também a minha cota de livros escolares, porque todo ano, no colégio, eu terminava como um dos primeiros da clas-se, com conceito A em matemática. Participava do clube de latim e ganhei um prêmio por ter sido o melhor aluno de latim por três anos seguidos. Em quarenta anos, nunca precisei usar uma palavra de la-tim! Mas me ajudou muito no meu vocabulário em inglês, e além disso eu era um dos poucos garotos que conseguiam acompanhar o padre na missa dominical. Então, o Papa João mudou o idioma da missa para o inglês, e acabou-se!

Ser bom aluno era muito importante para mim — mas não era o suficiente. Eu sempre estava muito envolvido em atividades ex-tracurriculares. No colégio, participava ativamente do clube de tea-tro e da equipe de debates. Depois da minha doença, quando já não podia participar muito de atletismo, tornei-me dirigente da equipe de natação. Isto quer dizer que eu carregava as toalhas e lavava os maiôs.

Mais tarde, na sétima série, desenvolvi uma grande paixão por jazz e swing. Era a época das grandes bandas, e meus amigos e eu íamos ouvi-las todos os fins de semana.

Geralmente eu só ouvia essas bandas, embora soubesse dançar bem o shag e o lindy hop. íamos ao Empire Balroom, em Allen-town, e ao Sunnybrook, em Pottstown, Pennsylvania. Quando podia me dar ao luxo, eu me metia no Hotel Pennsylvania, em New York, ou no Meadowbrook de Frank Daley, no Pompton Turnpike. Certa vez, vi Tommy Dorsey e Glenn Miller numa "Batalha das Orques-tras" — tudo por oitenta e oito centavos. Naquela época, a música era minha vida. Assinava o Downbeat e o Metronome e sabia o no-me de todos os coadjuvantes das principais bandas.

Nessa época, comecei a tocar saxofone-tenor. Cheguei até a ser convidado para tocar o primeiro trompete na banda da escola. Mas desisti da música para entrar na política. Quis ser representante de classe, na sétima e na oitava séries — e fui.

Na nona série candidatei-me a representante da escola toda. Jimmy Leiby, meu amigo íntimo, era um gênio. Tornou-se o coor- Passos de dança usuais nos Estados Unidos dos anos 30. (N.do T.)

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denador da minha campanha e criou uma verdadeira máquina polí-tica. Venci a eleição por uma maioria esmagadora de votos, e isto me subiu à cabeça. Como se dizia naquele tempo, eu me achava o bacana.

Mas, depois de eleito, perdi contato com o meu eleitorado. Eu me julgava superior aos outros garotos, e comecei a ficar esnobe. Ainda não tinha aprendido o que sei agora — que a capacidade de comunicação é tudo.

O resultado foi que perdi a eleição no segundo semestre. Foi um golpe terrível. Eu tinha desistido da música para entrar no cen-tro estudantil, e agora minha carreira política se interrompia porque eu tinha esquecido de apertar as mãos das pessoas e de ser amável. Foi uma lição importante a respeito de liderança.

Apesar de todas as minhas atividades extracurriculares, ainda consegui me formar em décimo segundo lugar numa turma com mais de novecentos alunos. Para se ter uma idéia do tipo de expec-tativas com que fui educado, a reação do meu pai foi a seguinte: "Por que você não foi o primeiro?" Se vocês o ouvissem, pensariam que eu tinha sido reprovado!

Na época de entrar na universidade, eu tinha uma base sólida em áreas fundamentais: leitura, escrita e oratória. Com bons profes-sores e capacidade de concentração, dá para chegar longe com essas habilidades.

Anos depois, quando minhas filhas me perguntavam que cursos deveriam escolher, eu as aconselhava a ter uma boa formação em "artes liberais". Embora eu acredite muito na importância de apren-der História, não me importava muito que elas decorassem todas as datas e locais da Guerra Civil. O fundamental é ter uma base sólida em leitura e escrita.

De repente, no meio do ano da minha formatura, o Japão ata-

cou Pearl Harbor. Os discursos do presidente Roosevelt nos deixa-vam exasperados, e o país inteiro se reunia em torno da bandeira. Do dia para a noite, todos os americanos se mobilizaram e se uni-ram. Com aquela crise aprendi uma coisa que guardo comigo até hoje: muitas vezes é necessário um pouco de desgraça para fazer as pessoas se unirem.

Como a maioria dos jovens naquele mês de dezembro de 1941, eu mal conseguia esperar para me alistar. Ironicamente, a doença que quase me matou acabou salvando a minha vida. Para minha e-

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norme decepção, fui classificado na categoria 4 F — dispensa mé-dica —, o que significava que eu não poderia me alistar na Força Aérea para lutar na guerra. Embora eu estivesse recuperado e me sentisse em plena forma, o Exército decidiu não admitir ninguém que apresentasse um histórico de febre reumática. Mas eu não me sentia doente e um ou dois anos depois, quando passei pelo meu primeiro exame clínico para fazer seguro de vida, o médico me dis-se: "Você é um rapaz saudável. Por que não está no estrangeiro?"

A maioria de meus colegas de escola foi convocada e muitos deles morreram. Éramos a turma de 42, e os garotos que tinham de-zessete ou dezoito anos iam para o campo de treinamento e depois atravessavam o Atlântico, onde os alemães estavam nos massacran-do. Até hoje, às vezes folheio meu anuário do colégio, e fico triste e descrente ao pensar nos alunos de Allentown High que morreram no exterior, defendendo a democracia.

A Segunda Guerra Mundial não se pareceu em nada com o Vi-etnã, e por isso talvez os leitores jovens não compreendam muito bem como se sente uma pessoa incapaz de servir o seu país no mo-mento em que ele mais precisa. O patriotismo estava no auge, e a única coisa que eu queria era sobrevoar a Alemanha num bombar-deio para me vingar de Hitler e de suas tropas.

O fardo de uma dispensa médica durante a guerra era uma des-graça, e comecei a me considerar um cidadão de segunda classe. Muitos amigos e parentes meus tinham partido para lutar contra os alemães. Eu me sentia o único jovem dos Estados Unidos que não estava em combate. Então, fiz a única coisa que podia: afundei mi-nha cabeça nos livros.

Nessa época, eu estava interessado em engenharia e vinha e-xaminando muitas faculdades. Uma das melhores do país era Pur-due. Tentei obter uma bolsa de estudos, mas não consegui e fiquei aniquilado. No entanto, Cal Tech, MIT, Corneel e Lehigh também tinham ótimas escolas de engenharia. Acabei escolhendo Lehigh, porque ficava a apenas meia hora de carro da minha casa, em Allen-town, e eu não teria que me afastar muito da minha família.

A Universidade de Lehigh, em Bethlehem, Pennsylvania, era uma espécie de escola-satélite da Bethlehem Steel Company. Seus departamentos de engenharia metalúrgica e de engenharia química estavam entre os melhores do mundo. Mas ser calouro lá era o e-quivalente universitário do campo de treinamento. Qualquer aluno que não fosse capaz de manter uma determinada média no final do

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segundo ano era gentilmente convidado a sair da escola. Eu tinha aula seis dias por semana, incluindo um curso de estatística, que começava às oito da manhã de sábado. Muita gente cabulava essas aulas, mas eu tirei A — não tanto pela minha competência em esta-tística, mas pela minha perseverança em comparecer ao curso todas as semanas, enquanto os outros rapazes descansavam das farras de sexta-feira à noite.

Isso não quer dizer que eu não tenha me divertido na época da universidade. Eu gostava de uma bagunça, e participava de jogos de futebol e de festas regadas a cerveja. E também havia as viagens pa-ra New York e Philadelphia, onde eu tinha várias namoradas.

Mas, com a guerra, eu não tinha ânimo para ficar vagabunde-ando. Desde criança, tinha aprendido a fazer as lições de casa logo que voltava da escola, para poder brincar depois do jantar. Na uni-versidade, eu sabia me concentrar e estudar, sem ouvir rádio ou me distrair. Dizia a mim mesmo: "Vou render o mais possível nas pró-ximas três horas. Depois, largo o trabalho de lado e vou ao cinema".

A capacidade de concentração e de usar bem o tempo é funda-mental para se ter sucesso nos negócios — e, na verdade, em quase tudo. Desde o curso colegial, eu sempre trabalhei muito durante a semana, mas tentava manter os fins de semana livres para me dedi-car à família e ao lazer. Com exceção dos períodos de crise real, nunca trabalhei nas noites de sexta-feira, aos sábados ou aos do-mingos. No domingo à noite, começava a retomar o trabalho fazen-do um esboço das minhas tarefas para a semana seguinte. Esse era basicamente o esquema que desenvolvi em Lehigh.

Sempre me impressionou a quantidade de pessoas que não sa-bem controlar seus horários. Ao longo dos anos, encontrei muitos executivos que diziam com orgulho: "Rapaz, trabalhei tanto no ano passado, que nem férias tirei". Na verdade, não há nada de que se orgulhar, Tenho sempre vontade de responder: "Seu burro. Quer di-zer que você foi o responsável por um projeto de 80 milhões de dó-lares e nem pôde tirar duas semanas para sair com a sua família e se divertir um pouco?"

Se você quer usar bem o seu tempo, tem que saber distinguir o que é mais importante e, então, dedicar-se totalmente a isso. Essa foi outra lição que aprendi em Lehigh. Se eu ia ter cinco aulas no dia seguinte, inclusive uma chamada oral, na qual eu queria me sair bem, tinha que me preparar. Quem quiser tornar-se um soluciona-dor de problemas no mundo dos negócios terá que aprender, desde

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cedo, a estabelecer prioridades. É claro que as referências são um pouco diferentes. Na faculdade, eu tinha que planejar o que ia reali-zar em uma noite. Nos negócios, os padrões de tempo estariam en-tre três meses e três anos.

Pelo que pude observar, ou você adota logo esse tipo de pen-samento positivo, ou nunca mais o faz. Estabelecer prioridades e usar bem o tempo não são coisas que se possam aprender na Har-vard Business School. O ensino formal pode ajudar muito, mas muitas das habilidades essenciais na vida são aquelas que cada um tem que desenvolver por si mesmo.

Não foi apenas minha capacidade de concentração que me aju-dou em Lehigh. Também tive sorte. À medida que um número cada vez maior de estudantes era recrutado, as classes tornavam-se me-nores. Um professor habituado a dar aula para cinqüenta pessoas de repente via-se com cinco alunos na classe. O resultado foi que eu tive uma formação universitária muito especial.

Quando as classes são pequenas, todos os alunos recebem mui-ta atenção. Um professor tinha condições de dizer: "Vamos ver por que você não está conseguindo resolver esse problema de desenho mecânico; vou tentar ajudá-lo a entender". Assim, por um acaso da história, recebi um treinamento incrível. Logo depois da guerra, com a G. I. Bill, a mesma classe de Lehigh teria setenta alunos. Então eu não teria aprendido nem a metade do que aprendi.

Eu também tinha a motivação das pressões do meu pai, o que era típico entre as famílias imigrantes: se algum dos filhos tivesse a felicidade de chegar à universidade, esperava-se que ele compen-sasse a falta de instrução dos pais. Cabia a mim aproveitar essas oportunidades que eles nunca tiveram; assim, eu tinha que ser um dos primeiros da classe.

No entanto, era mais fácil dizer que fazer. Passei por uma fase especialmente difícil no primeiro semestre da universidade. Como não consegui ficar entre os melhores, meu pai caiu em cima de mim — com tudo! Ele alegava que, afinal de contas, se eu era tão bom no colégio, onde tinha me formado entre os primeiros, como podia ter-me tornado tão burro alguns meses depois? Ele achava que eu ficava vagabundeando. Eu não conseguia fazê-lo entender que a u-niversidade era muito diferente do colégio. Em Lehigh, todos eram bons, senão nem estariam lá. Emenda relativa à compensação aos veteranos da guerra. (N. do T.)

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No primeiro ano, quase fui reprovado em física. Nós tínhamos um professor chamado Bergmann, um imigrante vienense com um sotaque tão carregado, que eu quase não conseguia entender o que ele dizia. Era um ótimo professor, mas não tinha paciência para en-sinar calouros. Infelizmente, este curso era obrigatório para todos os alunos de engenharia mecânica.

De qualquer forma, apesar das minhas dificuldades em suas au-las, eu era amigo do professor Bergmann. Passeávamos pelo cam-pus e ele me falava sobre os avanços mais recentes da física. Inte-ressava-se especialmente pela fissão atômica, que naquela época a-inda parecia pertencer ao domínio da ficção científica. Para mim era grego, e eu conseguia compreender muito pouco do que ele me di-zia, embora acompanhasse as linhas gerais.

Havia algo misterioso com relação a Bergmann. Toda sexta-feira ele terminava a aula abruptamente e saía do campus, para onde só voltava na segunda-feira. Só desvendei seu segredo muitos anos depois. Pela natureza de seus interesses, talvez eu pudesse ter adi-vinhado. Ele passava todos os fins de semana em New York, traba-lhando no Projeto Manhattan. Em outras palavras, quando Berg-mann não estava dando aulas em Lehigh, estava trabalhando na bomba atômica.

Apesar da nossa amizade e das explicações particulares, não consegui tirar mais do que D em física básica — minha nota mais baixa em Lehigh. No colégio, eu tinha sido bom aluno em matemá-tica, mas simplesmente não estava preparado para o mundo do cál-culo avançado e das equações diferenciais.

Acabei me aborrecendo e mudei minha primeira opção de en-genharia mecânica para engenharia industrial. Não demorou muito para que minhas notas melhorassem. No último ano, havia-me afas-tado da hidráulica, da termodinâmica e de outras ciências avança-das, voltando-me para os cursos na área de negócios, tais como problemas trabalhistas, estatística e contabilidade. Fui muito melhor nessas matérias, terminando meu último ano com A. Meu objetivo era tirar média 3,5, para me graduar com louvor. Consegui por um triz — terminei com 3,53. Dizem que esta geração é competitiva. Queria que vocês nos vissem trabalhando!

Além de todos os cursos nas áreas de engenharia e de negócios, estudei quatro anos de psicologia e psicopatologia, em Lehigh. Fora de brincadeira, estes foram, provavelmente, os cursos mais valiosos da minha carreira universitária. É um trocadilho de mau gosto, mas

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é verdade: foi mais útil o que aprendi nesses cursos, para lidar com os loucos que encontrei no mundo das empresas, do que tudo o que aprendi nos cursos de engenharia, para lidar com as porcas (e para-fusos) dos automóveis.

Em um desses cursos, passávamos três tardes e três noites por semana visitando a ala psiquiátrica do Allentown State Hospital, si-tuado a cerca de oito quilômetros do campus. Víamos de tudo lá — maníaco-depressivos, esquizofrênicos — e mesmo alguns tipos vio-lentos. Nosso professor chamava-se Rossman, e vê-lo trabalhar com aqueles doentes mentais era ver um mestre em ação.

O curso focalizava nada menos que os fundamentos do com-portamento humano. O que motiva aquele rapaz? Como esta mulher desenvolveu seus problemas? O que levou Joe a agir como um ado-lescente aos cinqüenta anos? No exame final, fomos apresentados a um grupo de pacientes novos. Devíamos era fazer um diagnóstico de cada um deles em poucos minutos.

Com esse treino, aprendi a avaliar as pessoas com bastante ra-pidez. Até hoje, geralmente consigo dizer muita coisa sobre uma pessoa depois de um primeiro encontro. Esta habilidade é funda-mental, pois a coisa mais importante para um administrador é saber contratar as pessoas certas.

No entanto, há duas coisas realmente importantes num candi-dato que a gente não consegue captar numa só entrevista. A primei-ra é se ele é preguiçoso e a segunda, se tem bom senso. Não existe uma análise qualitativa para se checar se uma pessoa tem disposi-ção para o trabalho e se terá sensatez — ou conhecimentos práticos — na hora de tomar uma decisão.

Eu gostaria que houvesse algum tipo de máquina capaz de me-dir essas qualidades, porque são elas que distinguem os homens dos meninos.

Fiz meu curso em Lehigh em oito semestres seguidos, o que

significou não ter férias de verão. Eu gostaria de ter tido tempo para sentir o perfume das flores, como meu pai sempre me aconselhou. Mas a guerra prosseguia violenta, e com meus amigos lutando — e morrendo — do outro lado do oceano, eu tinha que correr a todo vapor. O trocadilho a que o autor se refere é estabelecido pelo uso da palavra nuts em duas acepções: loucos (uso coloquial) e porcas (uso técnico). (N. do T.)

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Além dos estudos, eu estava envolvido em muitas atividades extracurriculares, Sem dúvida, a mais interessante foi no jornal da escola, The Brown and White. Minha primeira tarefa como repórter foi entrevistar um professor que tinha inventado um pequeno carro movido a carvão (isso aconteceu anos antes da crise de energia, é claro). Devo ter escrito um artigo muito bom, pois foi adquirido pe-la Associated Press e publicado numa centena de jornais.

Por causa desse artigo, tornei-me o editor responsável pela dia-gramação. Logo percebi que ali se localizava o verdadeiro poder da imprensa. Anos depois, li o livro de Gay Talese sobre o New York Times, em que um dos editores dizia que o cargo de maior poder em qualquer jornal não é o do responsável pelos editoriais, mas o dos editores encarregados das manchetes e da diagramação.

Esta lição eu já tinha aprendido. Como diagramador, logo per-cebi que a maioria das pessoas não lê as notícias: elas se prendem às manchetes e aos subtítulos. Isto significa que a pessoa que escre-ve essas manchetes e esses subtítulos tem uma influência enorme sobre a maneira como o público recebe as notícias.

Além disso, era eu que determinava a extensão de cada artigo, com base no espaço disponível. Fiz isso com impunidade, e quase sempre cortava duas polegadas de um bom artigo porque precisava daquele espaço para os anúncios. Também aprendi a alterar o que os repórteres escreviam pelo uso "criterioso" das manchetes e sub-títulos. Mais tarde, conseguia perceber quando era enganado pelos diagramadores dos jornais e revistas mais prestigiados do país. É preciso ser um deles para saber!

Mesmo antes de me formar, queria trabalhar para a Ford. Eu dirigia um velho Ford 1938 de 60 HP, que despertou meu interesse pela companhia. Mais de uma vez aconteceu de a engrenagem da transmissão quebrar quando eu estava subindo um morro. Parecia que algum executivo incógnito da matriz da Ford, em Dearborn, Michigan, tinha decidido fazer economia usando apenas 60 HP em uma máquina V-8. Teria sido uma boa idéia — se tivessem restrin-gido o carro a lugares planos como Iowa. Lehigh fora construída em cima de uma montanha.

Eu costumava brincar com os amigos: "Esses caras precisam de mim. Quem constrói um carro tão ruim precisa de ajuda".

Naquela época, ter um Ford era uma ótima maneira de apren-der coisas sobre carros. Durante a guerra, todas as fábricas de au-tomóveis foram utilizadas para produzir armas; não era produzido

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nenhum carro novo. Mesmo as peças sobressalentes se tornaram ra-ras. As pessoas costumavam procurar por elas no mercado negro ou em ferros-velhos. Quem tinha a sorte de ter um carro, aprendia a cuidar bem dele. A falta de carros no tempo da guerra foi tão gran-de que, depois de me formar, vendi aquele Ford por 450 dólares. Levando em conta que meu pai tinha comprado o carro para mim por apenas 250 dólares, fiz um ótimo negócio.

No meu tempo de universidade, a gasolina custava apenas três centavos e meio por litro. Mas, por causa da guerra, havia escassez. Como estudante de engenharia, recebi um cartão C, que significava que meus estudos eram vitais para a guerra (imagine só!). Não era tão patriótico como estar no exterior, mas, pelo menos, era um pe-queno símbolo de honra, que dizia que algum dia eu daria a minha contribuição ao país. Na primavera do ano em que me formei, havia muita procura de engenheiros. Fui a cerca de vinte entrevistas e, li-teralmente, podia escolher onde queria trabalhar.

Mas eram os carros que me interessavam. Já que eu ainda que-ria trabalhar na Ford, marquei um encontro com o recrutador da companhia, cujo nome era, inacreditavelmente, Leander Hamilton McCormick Goodheart. Ele rodou pelo campus num Mark I, um daqueles Lincoln Continental lindos, que pareciam feitos sob medi-da. Aquele carro me virou mesmo a cabeça. Bastou olhar para ele e sentir o cheiro de couro do estofamento para ter vontade de traba-lhar na Ford pelo resto da vida.

Naquela época, a política de recrutamento da Ford consistia em visitar cinqüenta universidades e escolher um aluno de cada uma. Isso sempre me pareceu meio estúpido. Se Isaac Newton e Albert Einstein fossem colegas da mesma universidade, a Ford só poderia admitir um deles. McCormick Goodheart entrevistou muitos alunos de Lehigh, mas fui eu o escolhido pela Ford, e fiquei nas nuvens.

Depois da formatura e antes de iniciar o estágio, passei um pe-queno período de férias com meus pais, em Shipbottom, New Jer-sey. Enquanto estávamos lá, recebi uma carta de Bernadine Lenky, diretora do serviço de empregos, em Lehigh. Ela incluiu na carta um folheto que oferecia uma bolsa de estudos para pós-graduação em Princeton; era uma subvenção que cobria anuidades, livros e mesmo os gastos pessoais.

Bernadine disse-me que só eram concedidas duas dessas bolsas por ano e sugeriu que eu solicitasse uma delas. "Sei que você não estava planejando fazer pós-graduação, mas esta promete", disse e-

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la. Escrevi a Princeton para pedir mais detalhes, e eles solicitaram o meu histórico escolar. A primeira notícia que recebi depois disso foi que eu tinha ganho a Wallace Memorial Fellowship.

Foi só dar uma olhada no campus, e eu já queria ir para lá. I-maginei que, de qualquer maneira, um grau de mestre ao lado do meu nome não prejudicaria a minha carreira.

De repente, eu tinha duas oportunidades incríveis. Falei com McCormick Goodheart sobre o meu dilema. "Se eles querem você em Princeton", disse ele, "vá e faça o seu mestrado. Guardaremos seu lugar até você terminar." Era justamente o que eu esperava que ele dissesse, e eu estava no sétimo céu.

Princeton era um lugar delicioso para se estudar. Em compara-

ção com o ritmo frenético de Lehigh, era quase um lugar calmo. Escolhi, como matérias optativas, política e um novo campo — ma-teriais plásticos. Como acontecia em Lehigh, a proporção professor-aluno em Princeton era muito favorável, por causa da guerra. Um dos meus professores, um homem chamado Moody, era o mais fa-moso especialista do mundo em hidráulica. Apesar de ter trabalha-do na Represa Grand Coulee e em muitos outros projetos, só tinha quatro alunos no seu curso.

Um dia, fui assistir a uma conferência de Einstein. Na verdade, eu não entendia do assunto sobre o qual ele estava falando, mas o simples fato de vê-lo era emocionante. A faculdade não ficava lon-ge do Institute for Advanced Studies, onde Einstein dava aulas, e às vezes eu o via dando uma caminhada,

Eu tinha três semestres para escrever minha tese, mas estava tão ansioso para começar a trabalhar na Ford que a terminei em dois semestres. O meu projeto era fazer o design e construir, a mão, um dinamômetro hidráulico. Um professor chamado Sorenson ofere-ceu-se para trabalhar comigo. Juntos, construímos o dinamômetro e o penduramos em cima de uma máquina que a General Motors ha-via doado à universidade. Fiz todos os testes, terminei minha tese e a encadernei — em couro, pois estava muito orgulhoso.

Enquanto isso, em Dearborn, o recrutador Leander McCormick Goodheart tinha sido recrutado para a guerra. Por pura tolice, eu não tinha mantido contato com ele durante o ano que passei em Princeton. Pior ainda, não tinha promessa dele por escrito. Quando terminei o mestrado em Princeton, ninguém na Ford tinha ouvido falar em mim.

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Finalmente, consegui falar por telefone com o chefe de McCor-mick Goodheart, Bob Dunham, e expliquei-lhe a minha situação. Ele me disse: "O grupo de treinamento está fechado e já temos os nossos cinqüenta rapazes. Mas, nessas circunstâncias, não seria cor-reto deixar você de fora. Se você puder vir para cá imediatamente, será o número cinqüenta e um". No dia seguinte, meu pai levou-me até a Philadelphia, onde embarquei para Detroit, no Red Arrow, pa-ra começar a minha carreira.

A viagem levou a noite inteira, mas eu estava excitado demais para conseguir dormir. Quando cheguei na Fort Street Station, com uma mochila no ombro e cinqüenta dólares no bolso, desembarquei e perguntei ao primeiro cara que vi pela frente: "Onde fica Dear-born?"

Ele disse: "Vá para o oeste, rapaz — são mais ou menos dezes-seis quilômetros ao oeste!"

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A HISTÓRIA

DA FORD

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III MÃOS À OBRA

m agosto de 1946, comecei a traba-

lhar na Ford como estagiário de engenharia. Nosso programa era conhecido como treinamento em circuito fechado, pois os estagiá-rios realizavam o circuito completo de toda a operação. Trabalhá-vamos no interior da empresa, passando alguns dias ou uma semana em cada departamento. Esperava-se que, no final, estivéssemos fa-miliarizados com todas as etapas da fabricação de automóveis.

A empresa fazia o máximo para nos oferecer todos os tipos de experiências. Fomos enviados para a famosa fábrica de River Rou-ge, o maior complexo industrial do mundo. As minas de carvão e de calcário também eram da Ford Motor Company, e então pudemos acompanhar todo o processo, do início ao fim — desde a extração do minério de dentro da terra até a produção de aço e a transforma-ção do aço em automóveis.

Nosso roteiro obrigatório incluía a oficina de fundição, a ofici-na de produção, os depósitos de metal, as oficinas de usinagem e moldagem, a pista de testes, as instalações de forja e as linhas de montagem. Mas nem toda a nossa experiência estava ligada direta-mente à produção. Também passamos algum tempo no departamen-to de compras e até mesmo no hospital da fábrica.

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Era o melhor lugar do mundo para se aprender como os auto-móveis eram produzidos e como se desenvolvia o processo indus-trial. A fábrica de Rouge era o orgulho da empresa; sempre vinham delegações de outros países para conhecê-la. Isto já acontecia muito antes de os japoneses demonstrarem interesse por Detroit; mas tam-bém eles acabariam fazendo milhares de peregrinações até Rouge.

Finalmente, eu estava vendo a aplicação prática de tudo o que havia lido nos livros. Eu tinha estudado metalurgia em Lehigh, mas agora estava realmente fazendo metalurgia, trabalhando nos fornos de fundição e nas soleiras dos altos-fornos. Nos departamentos de usinagem e moldagem, pude operar o maquinário sobre o qual ha-via lido: plainas, fresas, tornos e outros equipamentos.

Até passei quatro semanas na linha final de montagem. Minha tarefa era capear uma rede de fios no interior de um arcabouço de caminhão. Não era um trabalho difícil, mas era terrivelmente ente-diante. Um dia, minha mãe e meu pai foram me visitar. Quando me viu enfiado num macacão, papai sorriu e disse: "Você foi à escola durante dezessete anos. Viu o que acontece com os burros que não são os primeiros da classe?"

Nossos supervisores eram bem atenciosos, mas os operários nos tratavam com suspeita e ressentimento. No início pensamos que os crachás que usávamos, com a inscrição "Engenheiro Estagiário", deviam ser a causa do problema. Quando reclamamos, passamos a usar crachás com a inscrição "Administração". Mas isso só serviu para piorar as coisas.

Logo fiquei sabendo de algumas coisas que me fizeram enten-der o que estava acontecendo. Naquela época, Henry Ford, o funda-dor, estava velho. A empresa estava sendo gerida por um grupo de homens da sua confiança, especialmente Harry Bennett, conhecido por ser uma pessoa bem difícil. As relações entre os operários e a administração eram péssimas, e os estagiários de engenharia, com seus crachás de "Administração", estavam no meio do fogo cruza-do. Muitos trabalhadores achavam que éramos espiões enviados pa-ra vigiá-los. O fato de sermos recém-formados e de mal termos saí-do dos cueiros piorava mais ainda a situação.

Apesar da tensão, fazíamos o possível para nos divertir. Éra-mos um bando de cinqüenta e um garotos de várias universidades diferentes, que moravam juntos, tomavam cerveja juntos e tentavam aproveitar a vida ao máximo, quando não estavam trabalhando. O programa de treinamento era bem desorganizado e, se alguém qui-

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sesse dar uma escapada para Chicago por uns dois dias, ninguém i-ria nem perceber.

No meio do período de treinamento, tivemos uma reunião de avaliação com nossos supervisores. O meu disse: "Ah, Iacocca — engenharia mecânica, dinamômetros hidráulicos, transmissões au-tomáticas. Vejamos, então. Vamos formar um novo grupo de transmissões automáticas. Vamos mandar você para lá".

Eu estava no programa há nove meses e faltavam nove meses para terminar. Mas a engenharia já não me interessava. No dia em que cheguei, o pessoal me fez desenhar uma mola de embreagem. Depois de levar um dia inteiro para fazer um desenho detalhado da tal mola, disse a mim mesmo: "Afinal, que diabo estou fazendo? Será que eu quero passar o resto da vida desse jeito?"

Eu queria ficar na Ford, mas não na engenharia. Estava louco para ficar nas áreas onde se desenrolava a verdadeira ação — mar-keting ou vendas. Eu gostava mais de trabalhar com pessoas do que com máquinas. Naturalmente, meus supervisores não acharam a menor graça. Afinal de contas, a empresa me havia contratado na escola de engenharia e tinha investido todo esse tempo e dinheiro no meu treinamento. E agora eu queria trabalhar em vendas?

Insisti, e entramos em acordo. Eu lhes disse que não havia ra-zão para terminar o treinamento, pois meu mestrado de Princeton equivalia ao segundo período de nove meses de treinamento. Eles concordaram em me liberar para eu tentar arrumar um emprego em vendas. Mas eu teria que fazer tudo por minha conta. Eles me disse-ram: "Gostaríamos de mantê-lo na Ford, mas você vai ter que sair e vender a si mesmo se quiser seguir o caminho das vendas".

Imediatamente entrei em contato com Frank Zimmerman, meu melhor amigo no programa de treinamento. Zimmie tinha sido o primeiro a ser aceito no programa e foi o primeiro a se formar. Co-mo eu, ele tinha decidido abandonar a engenharia e já tinha conse-guido uma vaga de vendedor de caminhões no distrito de New York. Quando fui visitá-lo no Leste, comportamo-nos como duas criancinhas na cidade grande, percorrendo restaurantes e nightclubs, absorvendo o esplendor de Manhattan. "Meu Deus", pensei, "eu te-nho mesmo que voltar para cá." Como eu era do Leste, estar naque-la cidade era estar em casa.

O gerente distrital de New York não estava quando cheguei a seu escritório; tive que ser entrevistado por seus dois assistentes. Eu estava nervoso. Minha formação era em engenharia, e não em ven-

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das. A única maneira de conseguir emprego era dar uma boa im-pressão na entrevista.

Eu tinha levado uma carta de recomendação de Dearborn e a entreguei a um deles. Ele a pegou sem levantar os olhos do jornal. De fato, passou meia hora lendo o The Wall Street Journal e não levantou os olhos nem uma vez.

O outro era só um pouco melhor. Deu uma olhada nos meus sapatos e verificou se minha gravata estava em ordem. Então me fez algumas perguntas. Deu para perceber que ele não gostou do fa-to de eu ter formação universitária e de eu ter passado uns tempos em Dearborn. Talvez ele achasse que eu estava ali para vigiá-lo. De qualquer forma, estava claro que ele não iria me contratar. "Não li-gue para nós", ele disse, "ligaremos para você." Eu me senti como se tivesse fracassado numa estréia na Broadway. Minha única espe-rança era tentar outro escritório distrital de vendas; então, marquei uma entrevista com o gerente do escritório de vendas de Chester, Pennsylvania, não muito longe de Philadelphia. Dessa vez tive mais sorte. O gerente distrital não apenas estava lá, como se mostrou dis-posto a me dar uma chance. Fui contratado para uma função de bai-xo escalão, na venda de veículos para frotas.

Em Chester, meu trabalho era falar com os encarregados de com-pras das frotas a respeito da alocação de novos veículos. Não era fá-cil. Naquele tempo, eu era tímido e desajeitado e entrava em pânico toda vez que pegava no telefone. Antes de cada contato, eu ensaiava várias vezes o que ia dizer, sempre com medo de ser rejeitado.

Tem gente que acha que os bons vendedores já nascem feitos e não precisam fazer nenhum esforço. Mas eu não tinha nenhum ta-lento natural. Em geral, os meus colegas eram muito mais calmos e jeitosos do que eu. Durante um ou dois anos fui teórico e formal. No fim, acabei adquirindo alguma experiência e comecei a melho-rar. Dominados os fatos, comecei a trabalhar a forma de apresentá-los. Depois de algum tempo, as pessoas começaram a me ouvir.

Aprender as técnicas de venda é uma tarefa que exige tempo e esforço. É preciso praticar bastante, até elas se transformarem numa segunda natureza da gente, Nem todos os jovens de hoje entendem isso. Eles vêem um homem de negócios bem-sucedido e não param para pensar em todos os erros que ele deve ter cometido quando era mais jovem. Os erros fazem parte da vida; não há como evitá-los. Só se pode esperar que eles não custem muito caro e que não se cometa o mesmo erro duas vezes.

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Mais uma vez, como ocorreu na época da universidade, che-guei num período favorável. A produção de automóveis ficara para-lisada durante a guerra; por isso, a demanda foi alta entre 1945 e 1950. Todo carro produzido era vendido ao preço de tabela ou por um preço maior. E todos os revendedores procuravam clientes que tivessem carros usados para trocar, pois até o carro mais decrépito podia ser revendido com um belo lucro.

Embora eu tivesse um cargo baixo, a grande procura de carros novos deu um grande impulso à minha profissão. Se eu quisesse enganar, poderia ter aproveitado bastante a situação. Havia muitas vendas irregulares no mercado. Em quase todos os lugares, os em-pregados dos distritos estavam conseguindo carros para os amigos em troca de presentes ou de dinheiro.

Os revendedores enriqueciam. Não havia nenhuma tabela de preços e as pessoas pagavam o que o mercado quisesse cobrar. Al-guns empregados dos distritos queriam entrar na dança e jogavam rápido e rasteiro para conseguir sua parte. Idealista, mal começando a conhecer o mundo, tendo saído da escola há mais ou menos um ano, fiquei chocado.

Acabei conseguindo me libertar da escrivaninha e do telefone. Lancei-me em campo, como representante, com a função de visitar revendedores e orientá-los na venda de caminhões e carros para fro-tas. Eu adorava cada minuto do meu trabalho. Finalmente estava fo-ra da escola e entrava no mundo real. Passava os dias guiando um carro no vinho, partilhando minha sabedoria recém-adquirida com uns duzentos revendedores — cada um esperando que eu fizesse dele um milionário.

Em 1949, tornei-me gerente regional em Wilkes-Barre, Penns-ylvania. Minha função era trabalhar diretamente com dezoito re-vendedores. Foi uma experiência fundamental de aprendizagem.

Os revendedores sempre foram o núcleo dos negócios de au-tomóveis neste país. Embora tenham uma relação de trabalho com a matriz, eles é que são a quintessência dos empresários americanos. Representam o âmago do nosso sistema capitalista. E, de fato, são eles que vendem cada carro produzido; são eles que prestam assis-tência a cada carro vendido.

Como comecei trabalhando diretamente com os revendedores, sabia o valor que eles tinham. Mais tarde, quando passei a fazer parte dos escalões administrativos, empenhei-me ao máximo para que ficassem satisfeitos. Para ter sucesso nesse negócio, é preciso

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que todo o pessoal funcione como um time. E isto significa que o escritório central e os revendedores devem jogar do mesmo lado.

Infelizmente, a maioria dos executivos desta área parece não ter conseguido captar essa concepção. Os revendedores, por sua vez, ressentem-se pelo fato de poucas vezes serem convidados a sentar-se à mesa principal. Para mim, é muito fácil entender: os re-vendedores são, na verdade, os únicos clientes de uma indústria. Assim, é uma questão de bom senso ouvir com atenção o que eles têm a dizer, mesmo que nem sempre se goste do que é dito.

Em Chester, aprendi bastante a respeito da venda de carros a

varejo, principalmente com um gerente de vendas de Wilkes-Barre, chamado Murray Kester. Ele era um verdadeiro especialista no trei-namento e motivação de vendedores.

Um dos seus truques era ligar para cada cliente trinta dias após a venda do carro. Sempre perguntava: "O que os seus amigos acha-ram do carro?" Sua estratégia era simples. Alegava que, se você perguntasse ao cliente o que tinha achado do carro, ele se sentiria obrigado a pensar em alguma coisa negativa. Mas se você pergun-tasse o que os amigos tinham achado, ele seria obrigado a dizer o quanto o carro era bom.

Mesmo que os amigos não tivessem gostado do carro, ele não seria capaz de admitir. Pelo menos não tão cedo! Ainda precisava se convencer de que tinha feito uma boa compra. E se você fosse mesmo esperto, poderia perguntar ao cliente os nomes e telefones dos seus amigos. Afinal, eles poderiam estar interessados em com-prar um carro igual.

Lembrem-se disso: qualquer pessoa que compre alguma coisa — uma casa, um carro, ações ou títulos — irá justificar sua compra por algumas semanas, mesmo que tenha cometido um erro.

Murray também era um bom contador de casos. A maior parte do material ele obtinha do cunhado, que por acaso era Henny Youngman. Uma vez ele trouxe Henny de New York para falar numa convenção de vendas no Hotel Brodwood, em Philadelphia. Henny esquentou o pessoal e depois eu apresentei os carros novos. Foi um sucesso absoluto.

Seguindo a orientação de Murray, eu dava aos revendedores algumas dicas. Explicava que eles deviam "classificar" um compra-dor, para fazer as perguntas que pudessem levar a uma venda.

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Se alguém quer comprar um conversível vermelho, é isto que você vai vender. Mas muitos clientes não sabem o que querem comprar; faz parte do trabalho do vendedor ajudá-los a descobrir. Eu diria que comprar um carro não é tão diferente de comprar um par de sapatos. Se você trabalha numa loja de sapatos, primeiro vo-cê mede o pé do cliente e depois pergunta se ele quer um sapato es-porte ou social. O mesmo se aplica aos carros. Você tem de saber para que o cliente precisa do carro e quem mais da família vai usá-lo. Você também tem de avaliar quanto ele pode gastar e apresentar o melhor plano de financiamento.

Murray sempre falava da importância do fechamento do negó-cio. Descobrimos que a maior parte do nosso pessoal fazia um bom trabalho nas fases preliminares da venda, mas depois ficava com tan-to medo da rejeição, que muitas vezes acabava deixando escapar cli-entes potenciais. Simplesmente nunca conseguiam dizer: Assine aqui.

Trabalhando em Chester, recebi a influência de outro homem notável, que teve sobre minha vida maior impacto do que qualquer outra pessoa, além de meu pai. Charlie Beacham era o gerente regi-onal da Ford para toda a Costa Leste. Como eu, tinha sido treinado como engenheiro, mas depois voltou-se para o marketing e para as vendas. Foi quase um mentor para mim.

Charles era do Sul, um homem afável e brilhante, grandalhão e imponente, dono de um sorriso maravilhoso. Era um grande moti-vador — o tipo da pessoa pela qual você investiria contra posições inimigas, mesmo sabendo que poderia morrer no ataque.

Ele tinha o raro dom de ser duro e generoso ao mesmo tempo. Certa vez, minha zona de vendas ficou em último lugar entre as tre-ze zonas do nosso distrito. Fiquei deprimido, e quando me viu an-dando de um lado para o outro na garagem, Charlie se aproximou, pôs a mão no meu ombro e perguntou: "Por que você está tão pra baixo?"

"Mr. Beacham", respondi, "há treze zonas, e a minha, este mês, pegou o décimo terceiro lugar em vendas."

"Ah, mas que diabo, não deixe isso derrubá-lo, alguém tem que ser o último", ele falou e foi se afastando. Quando chegou no carro, voltou-se e me disse: "Mas, escute, nunca seja o último por dois meses seguidos!"

Ele tinha um modo muito vivo de falar. Certa vez falaram em mandar alguns rapazes recém-recrutados para visitar os revendedo-res da Philadelphia, que formavam um grupo muito resistente. Bea-

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cham achou a idéia horrível. Ele disse: "Esses garotos são tão ver-des, que na primavera as vacas vão comê-los de uma vez só".

Às vezes ele também era bem direto. Costumava dizer: "Ganhe dinheiro e deixe o resto pra lá. Este é um sistema de produção de lucros, garoto. O resto é enfeite".

Beacham costumava falar dos macetes, das coisas que você simplesmente sabe, das lições básicas que na verdade ninguém po-de ensinar. "Lembre-se, Lee", dizia ele, "a única vantagem do ser humano é a capacidade de pensar e o bom senso. Esta é a única vantagem real que temos sobre os macacos. Lembre-se, um cavalo é mais forte e um cachorro é mais amigo. Por isso, se você não sabe a diferença entre cocô de cavalo e sorvete de baunilha — e tem um monte de gente que não sabe —, então não tem jeito, porque você nunca vai fazer nada direito."

Ele aceitava erros, desde que se assumisse a responsabilidade por eles. Dizia: "Tenha sempre em mente que todos erram. O pro-blema é que a maioria nunca admite que errou. Quando um cara faz uma besteira, ele nunca diz que foi culpa dele, pelo menos se puder dar um jeito. Ele acusa a esposa, o síndico, os filhos, o cachorro, o tempo — mas nunca a si mesmo. Por isso, se você fizer uma bestei-ra, não me venha com desculpas — vá primeiro se olhar no espelho. E depois venha falar comigo".

Durante as convenções de vendas, Charles às vezes usava um tempo para dar uma lista das últimas desculpas que tinha ouvido pa-ra explicar por que as vendas não iam bem, para que depois nin-guém tivesse coragem de usá-las. Respeitava quem tinha coragem de encarar as próprias falhas. Não gostava das pessoas que ficavam arrumando álibis ou que ficavam lutando na guerra passada e es-queciam a próxima. Charlie era um lutador de rua e um estrategista, e sempre pensava antes o que faria em seguida.

Ele adorava charutos, e mesmo depois que o médico o proibiu de fumar, não conseguiu permanecer longe deles. Ao invés de fu-mar, ficava com o charuto apagado na boca e o mastigava. Toda ho-ra abria o canivete e arrancava a ponta mastigada. Quando a reunião terminava, parecia que um coelho tinha estado na sala — na mesa dele havia uns dez ou quinze pedaços de charuto, iguaizinhos a co-cô de coelho.

Charlie sabia ser um chefe duro quando necessário. Num jantar de comemoração da minha escolha para a presidência da Ford, em 1970, finalmente tive coragem de dizer publicamente a Charlie o que

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eu achava dele. "Jamais haverá alguém igual a Charlie Beacham", eu disse. "Ele ocupa um lugar especial no meu coração — e às ve-zes acho que ele cavou este lugar a mão. Não foi apenas meu men-tor, foi mais do que isso. Ele foi meu atormentador, mas eu o a-mo!"

Quando me tornei mais confiante e passei a ter mais sucesso, Charlie me atribuiu a tarefa de ensinar os revendedores a vender caminhões. Até escrevi um livreto chamado Contratando e Trei-nando Vendedores de Caminhões. Não havia dúvida de que eu tinha feito a escolha certa quando deixei a engenharia. Era aqui que se desenrolava a ação, e eu adorava estar bem no meio dela.

A exemplo do que aconteceu na universidade, meu sucesso em Chester não se deveu só a mim. Também aqui, tive a sorte de estar no lugar certo, na hora certa. A Ford estava passando por uma reor-ganização. Conseqüentemente, havia muito mais espaço para pro-moções. As oportunidades estavam lá e eu as agarrei. Depois de al-gum tempo, Charlie passou a me dar tarefas mais importantes.

Eu viajava pela Costa Leste de alto a baixo, de cidade em cida-de, como um vendedor ambulante, carregando meus instrumentos de trabalho — projetores de slides, quadros e gráficos dobráveis. Às vezes chegava a uma cidade no domingo à noite e instalava um cur-so de treinamento de cinco dias para os vendedores de caminhões Ford da área. Eu falava o dia inteiro. E como acontece em qualquer atividade, depois de uma certa prática você acaba pegando o mace-te do que faz.

Como parte da minha função, eu tinha que fazer um monte de telefonemas interurbanos. Naquela época não havia discagem direta a distância e as ligações eram feitas por telefonistas. Elas pergunta-vam meu sobrenome e eu dizia "Iacocca". É claro que elas não ti-nham a mínima idéia de como soletrar este nome, de modo que sempre era uma briga para entenderem direito. Então perguntavam meu nome e, quando eu dizia "Lido", morriam de rir. Um dia eu disse a mim mesmo: "Pra que isso?", assim passei a me chamar Lee.

Certa vez, antes da primeira viagem ao Sul, Charlie me chamou no escritório. "Lee", ele disse, "você vai entrar na minha região e eu quero dar umas dicas. Em primeiro lugar, você fala rápido demais para essa rapaziada, fale mais devagar. Em segundo lugar, eles não vão gostar do seu nome. Então, quero que você diga a eles que tem O autor faz um jogo entre mentor e tormentor = atormentador. (N. do T.)

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um nome engraçado — Iacocca — e que seu sobrenome é Lee. O pessoal do Sul vai gostar disso."

Adoraram. Eu começava todos os encontros com essa história, e eles vibravam. Eu desarmava completamente aqueles sulistas. Até esqueciam que eu era italiano. De repente, fui aceito como um bom sujeito.

Eu dava duro nessas viagens, indo de trem para lugares como Norfolk, Charlotte, Atlanta e Jacksonville. Conheci os revendedores e vendedores de todo o Sul, comi farinha grossa e caldo vermelho até não agüentar mais. Mas estava feliz. Eu queria estar do lado humano do ramo de automóveis e agora, afinal, eu estava.

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IV OS CONTADORES

DE TOSTÕES

epois de uns bons anos em Chester, sofri um revés inesperado. Houve uma recessão moderada no início dos anos 50 e a Ford resolveu fazer uma redução drástica de despe-sas. Um terço da força de vendas foi dispensada — inclusive alguns dos meus melhores companheiros. Creio que tive sorte em sofrer apenas um rebaixamento, mas certamente não me senti um felizar-do. Por algum tempo fiquei arrasado. Foi nessa época que comecei a pensar no ramo de alimentos.

Mas se você realmente acredita no que faz, tem que persistir, mesmo diante dos obstáculos. Quando meu estado de depressão passou, redobrei meus esforços e trabalhei com dedicação maior a-inda. Em poucos meses recuperei minha posição. Os reveses fazem parte da vida, e é preciso responder a eles com cuidado. Se eu tives-se ficado deprimido por muito tempo, provavelmente teria sido dis-pensado também.

Por volta de 1953, consegui passar a assistente do gerente de vendas do distrito da Philadelphia. Mesmo que os carros não sejam revendidos, eles continuam a sair das linhas de montagem, e é pre-ciso fazer alguma coisa. A gente aprende a lutar e a se virar depres-sa. Ou você aprende a produzir, ou se dá mal — e muito rápido!

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Quem está na chuva tem que se molhar, e choveu muito na mi-nha vida em 1956. Foi nesse ano que a Ford decidiu promover a se-gurança dos automóveis, ao invés de promover o desempenho e a po-tência. A empresa introduziu medidas de segurança que incluíam a forração antichoque do painel. A fábrica enviou um filme para mos-trarmos aos revendedores; o filme deveria explicar que a nova for-ração era muito mais segura no caso de o passageiro bater a cabeça no painel. Para ilustrar, o narrador afirmava que a forração era tão espessa, que se alguém jogasse um ovo em cima dela, de um prédio de dois andares, o ovo pularia como uma bola sem se quebrar.

Eu estava fascinado. Ao invés de levar aos vendedores a in-formação sobre a forração de segurança através do filme, seria mui-to mais impressionante se eu fizesse a demonstração jogando mes-mo um ovo na forração. Cerca de mil e cem homens estavam na convenção regional de vendas quando comecei meu lance para ven-der a maravilhosa forração de segurança que estávamos oferecendo nos modelos de 1956. Eu tinha espalhado tiras da forração pelo pal-co e subi numa escada alta com uma caixa cheia de ovos frescos.

O primeiro ovo que joguei caiu completamente fora da forra-ção e se despedaçou no piso de madeira. O público se deliciou. Tentei acertar a pontaria ao jogar o outro ovo, mas meu assistente, que estava segurando a escada, escolheu justo aquele momento para se mover na direção errada. Então, o ovo bateu no ombro dele e pu-lou. Isto também foi recebido com muitos aplausos.

O terceiro e o quarto ovos caíram bem no lugar em que deveri-am cair. Infelizmente, quebraram-se com o impacto. Afinal, com o quinto ovo, consegui o resultado desejado — e fui aplaudido de pé. Aprendi duas coisas naquele dia. Em primeiro lugar, nunca use o-vos numa reunião de vendedores. Em segundo lugar, jamais apareça na frente dos clientes sem ter ensaiado com cuidado o que você vai dizer — ou o que você vai fazer — para ajudar a vender o seu pro-duto.

Naquele dia fiquei com a cara cheia de ovo, o que acabou sen-do um sinal profético com respeito aos nossos carros de 1956. A campanha de segurança gorou. Foi bem concebida e teve ótima promoção, mas os clientes não responderam.

As vendas dos carros Ford 1956 foram mínimas em todo lugar e nosso distrito foi o mais fraco de todo o país. Pouco depois do in-cidente dos ovos, imaginei um novo plano — que eu esperava que fosse melhor. Achei que qualquer cliente que comprasse um Ford

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1956 poderia pagar uma modesta entrada de vinte por cento, segui-da de trinta e seis pagamentos mensais de 56 dólares. Este era um plano de pagamento que quase todo mundo poderia assumir e eu esperava que a idéia estimulasse as vendas do nosso distrito. Cha-mei minha idéia de "56 por um 56".

Naquela época, o financiamento de carros novos estava come-çando a pegar. O plano "56 por um 56" foi um sucesso estrondoso. Em três meses, o distrito da Philadelphia saiu do último lugar e al-cançou o primeiro. Em Dearborn, Robert S. McNamara, vice-presidente em exercício da Divisão Ford — ele viria a se tornar se-cretário da Defesa na administração Kennedy —, gostou tanto do plano que o adotou como parte da estratégia nacional de vendas e marketing da empresa. Segundo estimativas posteriores dele, o pla-no teria sido responsável pela venda de 75.000 unidades a mais.

Assim, depois de dez anos de preparação, do dia para a noite eu me tomei um sucesso. Nos escritórios centrais, todos me conheciam e falavam de mim. Eu tinha comido o pão que o diabo amassou por uns bons dez anos, mas aí despontei. De repente, meu futuro se co-loriu. Como recompensa pela idéia, fui promovido a gerente distri-tal de Washington, DC.

Em meio a toda essa agitação, me casei. Mary McLeary tinha si-do recepcionista na fábrica de montagem da Ford em Chester. Nosso primeiro encontro ocorrera há oito anos, numa recepção, no Hotel Bellevue Stratford, em Philadelphia, por ocasião do lançamento dos nossos modelos 1949- Durante vários anos nós nos encontrávamos de vez em quando, mas eu estava sempre viajando, o que tornou nosso namoro difícil e longo. Finalmente, no dia 29 de setembro de 1956, casamo-nos em Chester, na igreja católica de St. Robert.

Mary e eu passamos vários meses procurando casa em Wa-shington, mas nem bem conseguimos comprar uma e Charlie Bea-cham ligou dizendo: "Você está sendo transferido". Respondi: "Vo-cê deve estar brincando. Vou me casar na semana que vem e acabei de comprar uma casa". "Sinto muito", disse ele, "mas se você quiser receber seu salário, o cheque estará em Dearborn." Não só tive que dizer a Mary que haveria uma súbita mudança para Detroit como fui obrigado a explicar, em nossa lua-de-mel, que quando voltásse-mos para nossa bela casa de Maryland eu passaria uma noite com ela e partiria!

Charlie Beacham, que tinha sido promovido a diretor de vendas de automóveis e caminhões da Divisão Ford, levou-me para Dear-

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born como gerente nacional de marketing de caminhões. Em um ano passei a dirigir o marketing de automóveis e em março de 1960 assumi as duas funções.

A primeira vez que encontrei Robert McNamara, meu novo chefe, falamos a respeito de carpetes. Embora eu estivesse vibrando com a promoção para o escritório nacional, estava preocupado com o dinheiro que tínhamos gasto com nossa casa nova em Washing-ton. McNamara tentou me pôr à vontade explicando que a empresa compraria a casa de mim. Infelizmente, Mary e eu tínhamos acaba-do de gastar dois mil dólares para colocar os carpetes, uma quantia considerável naquela época. Eu tinha esperanças de que a Ford também me reembolsasse essa despesa, mas McNamara balançou a cabeça. "Só a casa", ele me disse. "Mas, não se preocupe, cuidare-mos dos carpetes nas gratificações."

A proposta me pareceu boa, mas no escritório voltei a pensar na questão. "Espera aí", pensei, "não faço idéia de quanto seria a gratificação sem os carpetes, então como vou saber se fiz um bom negócio?" Agora, tudo isso parece ridículo, e McNamara e eu rimos muito disso alguns anos depois. Naquela época, contudo, não era prestígio ou poder que eu queria. Era dinheiro.

Robert McNamara tinha vindo para a Ford há onze anos, como

um dos famosos Garotos-Prodígio. Em 1945, quando Henry Ford II saiu da Marinha para assumir a empresa imensa mas doente do avô, o que ele mais precisava era de talento gerencial. O destino quis que ele recebesse, de bandeja, a solução para os seus problemas. E ele foi suficientemente esperto para agarrar a oportunidade.

Pouco depois do fim da guerra, Henry recebeu um telegrama inusitado e intrigante de um grupo de dez jovens oficiais da Força Aérea. Estavam interessados em conversar a respeito de "um assun-to de importância para a administração", como disseram no tele-grama. Como referência, apresentaram o secretário da Defesa. Es-ses dez oficiais, que haviam dirigido o Escritório de Controle Esta-tístico da Força Aérea, queriam continuar trabalhando juntos, mas agora no setor privado.

Henry Ford convidou-os a ir a Detroit, onde o líder do grupo, o Coronel Charles (Tex) Thornton, explicou que seus homens poderi-am racionalizar os custos na Ford, como haviam feito na Força Aé-rea. Thornton também deixou claro que a proposta deles era coleti-va. Se Henry estivesse interessado, teria que contratar a equipe to-

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da. Sabiamente, Henry concordou. Embora nenhum daqueles ho-mens entendesse de automóveis, dois deles, McNamara e Arjay Miller, acabariam por se tornar presidentes da Ford.

Os oficiais da Força Aérea entraram na Ford na época em que eu era estagiário de engenharia. Fizeram um curso especial em cir-cuito fechado, mas ao invés de aprenderem, como nós, tudo a res-peito da fabricação, estudaram a administração e gerência da em-presa." Nos primeiros quatro meses passaram de um departamento a outro e fizeram tantas perguntas, que o pessoal começou a chamá-los Garotos-Problema. Mais tarde, quando seu sucesso na Ford tor-nou-se um fato, ficaram conhecidos como os Garotos-Prodígio.

Robert McNamara era notoriamente diferente dos outros Garo-tos-Prodígio e também dos seus colegas executivos da Ford. Muita gente o achava frio, e acredito que, de fato, um pouco da sua frieza era proposital. Ele não ria com muita facilidade, a não ser quando estava com Beacham. Charlie o deixava descontraído, e embora não pudesse haver duas pessoas mais diferentes — ou talvez por isso mesmo —, a amizade entre eles é lendária. Apesar da sua reputação de robô humano, McNamara era um homem muito atencioso e um amigo leal. Mas sua inteligência era tão prodigiosa e disciplinada, que muitas vezes se sobrepunha à sua personalidade.

Nem sempre era fácil lidar com ele e seus altos padrões de in-tegridade pessoal às vezes nos deixavam loucos. Certa vez ele pre-cisou de um carro com porta-esquis, para passar umas férias numa estação de esqui. "Não tem problema", eu lhe disse. "Vou pôr um porta-esquis num dos carros da empresa em Denver; você passa lá e pega." Mas ele nem quis ouvir falar nisso. Insistiu para que alugás-semos um carro para ele na Hertz, pagando a mais pelo porta-esquis, e que lhe mandássemos a conta. Recusou-se veementemente a usar um carro da empresa em suas férias, mesmo sabendo que to-da semana emprestávamos, como cortesia, centenas de carros a ou-tros VIPs.

McNamara dizia que o chefe deve ser mais católico que o Papa — e tão limpo quanto um dente de cão de caça. Pregava a necessi-dade de uma certa austeridade e praticava o que pregava. Nunca fez parte da "panela".

Jogo com. o som das palavras quiz (problema, enigma) e whiz (prodígio, gênio). (N. do T.)

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Enquanto a maioria dos executivos da indústria de automóveis morava nos bairros residenciais de Grosse Pointe e Bloomfield Hil-ls, McNamara morava com a esposa em Ann Arbor, perto da Uni-versidade de Michigan. Bob era um intelectual e preferia ter como amigos os acadêmicos, e não o pessoal do ramo de automóveis. Também era independente em termos políticos. Num setor que a-poiava automaticamente os republicanos do mundo dos grandes ne-gócios, McNamara era um liberal e um democrata.

Foi um dos homens mais perspicazes que conheci; tinha um QI fenomenal e um raciocínio cortante. Era um gigante mental. Dotado de uma capacidade admirável de absorver os fatos, conseguia lem-brar-se de tudo o que aprendia. Mas McNamara conhecia mais do que os fatos reais — ele conhecia também os hipotéticos. Quando se falava com ele, podia-se perceber que já tinha organizado na ca-beça os detalhes relevantes do ponto de vista de todas as opções e circunstâncias possíveis. Ele me ensinou a nunca tomar uma deci-são importante sem ter opção pelo menos entre baunilha e chocola-te. E se houvesse mais de cem milhões de dólares em jogo, era bom ter morango também.

Quando se tratava de gastar grandes somas, McNamara calcula-va as conseqüências de todas as decisões possíveis. Ao contrário da maioria das pessoas que conheci, ele conseguia guardar na cabeça uma dúzia de planos diferentes e apresentar todos os fatos e núme-ros relativos a cada um deles sem jamais consultar suas anotações.

No entanto, ele me ensinou a pôr todas as minhas idéias no pa-pel. "Você é muito eficiente cara a cara", ele costumava me dizer. "Você conseguiria vender qualquer coisa a qualquer um. Mas esta-mos para gastar cem milhões de dólares aqui. Vá para casa hoje à noite e ponha sua grande idéia no papel. Se você não conseguir fa-zer isso, é porque não trabalhou a idéia direito."

Esta foi uma lição valiosa, e a partir daí passei a seguir sua ori-entação. Sempre que um dos meus homens tem uma idéia, eu lhe peço para colocá-la no papel. Não quero que ninguém me venda um plano por causa do tom da sua voz ou da força de sua personalida-de. Seria inadmissível.

McNamara e os outros Garotos-Prodígio faziam parte de uma nova geração de administradores que trouxe à Ford algo de que a empresa estava precisando urgentemente: o controle das finanças. Durante muitos anos, esta área tinha sido a mais fraca da Ford des-

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de os tempos em que o velho Henry Ford geria suas contas rabis-cando números nas costas de um envelope.

Os Garotos-Prodígio fizeram a Ford Motor Company entrar no século vinte. Implantaram um sistema de controle que permitiu, pe-la primeira vez, que cada operação da empresa fosse medida em termos de lucros e perdas — agora, cada gerente podia ser respon-sabilizado pelo sucesso ou fracasso financeiro de sua área.

Além dos Garotos-Prodígio, Henry Ford II contratou inúmeros graduados na Harvard Business School. Para nós que trabalháva-mos em vendas, planejamento de produtos e marketing, os planeja-dores financeiros eram os intelectuais — homens com mestrado em Administração de Empresas, que formavam uma elite dentro da empresa. Tinham sido trazidos para pôr ordem na casa, e fizeram seu trabalho com sucesso. Mas quando terminaram, detinham a maior parcela do poder na Ford.

No mundo dos negócios, os homens de finanças são freqüen-temente chamados de contadores de tostões. McNamara era o con-tador de tostões por excelência, a síntese dos pontos fortes e fracos da raça. Na sua versão mais aprimorada — e Bob era o seu exem-plar supremo —, os contadores de tostões eram grandes cabeças nas finanças e tinham uma capacidade analítica impressionante. Na é-poca em que não havia computadores, esses caras eram os compu-tadores.

Por sua própria natureza, os analistas financeiros tendem a ser conservadores e pessimistas, mantendo-se na defensiva. Do outro lado do muro está o pessoal das vendas e do marketing — agressi-vos, especuladores, otimistas. Sempre dizem "vamos fazer", ao pas-so que os contadores de tostões estão sempre tentando nos mostrar as razões para não fazer. Em qualquer empresa você precisa dos dois termos da equação, pois a tensão natural entre os dois grupos cria um sistema próprio de checagem e de equilíbrio.

Quando os contadores de tostões são fracos demais, a empresa acaba indo à bancarrota. Mas quando são fortes demais, a empresa não consegue atender ao mercado ou se manter competitiva. Foi o que aconteceu com a Ford nos anos 70. Os gerentes financeiros passaram a se julgar as únicas pessoas prudentes da empresa. Sua atitude era: "Se não segurarmos esses palhaços, eles vão nos fazer quebrar". Achavam que sua tarefa era salvar a empresa dos selva-gens sonhadores e radicais que queriam esgotar os recursos da Ford. Mas esqueceram o quanto as coisas mudam depressa no ramo de

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automóveis. A Ford estava morrendo para o mercado, e eles não moviam uma palha até a reunião de discussão do orçamento do ano seguinte.

Robert McNamara era diferente. Era um bom homem de negó-cios, mas tinha mentalidade de defensor do consumidor. Acreditava fervorosamente na idéia de um veículo utilitário, um carro com o único propósito de atender às necessidades básicas das pessoas. Achava que a oferta de muitos modelos e de muitas opções luxuo-sas era uma frivolidade e só a aceitava pela alta margem de lucro que propiciava. Mas McNamara era um administrador tão hábil e tão valioso para a empresa que, apesar da sua independência ideo-lógica, continuou a ascender no sistema.

Embora estivesse de olho na presidência da Ford, ele jamais esperou alcançá-la. Certa vez me disse: "Não vou chegar lá, porque Henry e eu não concordamos em nada". Sua afirmação estava certa, mas a previsão, errada.

Mas não creio que estivesse errado a longo prazo. Bob era um homem decidido, que lutava com todas as forças em defesa das coi-sas em que acreditava. Henry Ford, como eu acabaria sabendo por experiência própria, tinha o péssimo hábito de se livrar dos líderes fortes. McNamara tornou-se presidente a 10 de novembro de 1960, e eu fui promovido no mesmo dia ao seu antigo cargo de vice-presidente e gerente geral da Divisão Ford. Nossa indicação coinci-diu com a eleição de John F. Kennedy. Dias depois, quando Ken-nedy estava formando seu gabinete, representantes do presidente e-leito voaram para Detroit para encontrar Bob. McNamara, que entre outras realizações havia sido professor na Harvard Business School, foi convidado para ser o secretário do Tesouro. Ele recusou, mas Kennedy estava impressionado com ele. Mais tarde, quando Ken-nedy lhe ofereceu o cargo de secretário da Defesa, ele aceitou.

Em 1959, McNamara havia lançado seu próprio carro. O Fal-

con foi o primeiro carro compacto americano, e para citar uma óti-ma frase do pessoal de Subaru, era barato — e construído para con-tinuar sendo barato. Também teve um sucesso enorme; suas vendas, só no primeiro ano, alcançaram o fabuloso número de 417.000 uni-dades. Esta realização não tinha precedentes na história do automó-vel, e foi razão mais que suficiente para que McNamara ganhasse o cargo de presidente da Ford. 68

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McNamara achava que o carro era um meio de transporte bási-co, e nada mais do que isso; com o Falcon, pôs sua idéia em prática. Embora eu não gostasse do estilo do carro — e não creio que ele ti-vesse algum estilo —, não podia deixar de admirar o seu sucesso. Era um carro cujo preço podia competir com o dos veículos peque-nos importados, que começavam a entrar com força no mercado, e que já ocupavam uma fatia de uns dez por cento do mercado ameri-cano. E o Falcon, ao contrário dos importados, transportava seis passageiros, tamanho adequado à maioria das famílias americanas.

Nós, da Ford, não éramos os únicos a enfrentar as importações. Mais ou menos na mesma época, a General Motors lançou o Corva-ir e a Chrysler criou o Valiant. Mas o Falcon ganhava fácil, em par-te porque era o mais barato.

Além de um bom preço, o Falcon tinha algumas grandes quali-dades. Embora a economia de combustível não fosse um item prio-ritário em 1960, o Falcon fazia mais quilômetros por litro. E, o que era mais importante, tinha a reputação de ser um carro que não dava problemas, não tinha trepidação e não exigia muitos cuidados. Suas linhas simples tornavam os reparos relativamente baratos, quando eram necessários — tanto era verdade, que as empresas de seguro ofereciam descontos aos compradores do Falcon.

Mas, apesar de sua enorme popularidade, o Falcon não gerou tanto retorno quanto esperávamos. Como um carro pequeno e eco-nômico, sua margem de lucro era restrita. Além disso, não oferecia muitas opções — o que poderia ter aumentado muito nossa receita. Depois da minha promoção à direção da Divisão Ford, comecei a desenvolver minhas próprias idéias sobre a produção de um carro que, além de ser popular, pudesse nos trazer uma montanha de di-nheiro. Dentro de alguns anos, eu viria a ter oportunidade de pôr es-sas idéias em prática.

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V A CHAVE DA

ADMINISTRAÇÃO

os trinta e seis anos, eu era gerente geral da maior divisão da segunda maior empresa do mundo. Ao mesmo tempo, era praticamente desconhecido. Metade do pessoal da Ford não sabia quem eu era. A outra metade não conseguia pro-nunciar meu nome.

Quando Henry Ford me chamou ao seu escritório em dezembro de 1960, senti como se o próprio Deus me tivesse chamado. Nós nos tínhamos cumprimentado algumas vezes, mas foi a primeira vez que tivemos uma conversa de fato. McNamara e Beacham já me haviam contado que tinham vendido a idéia de me colocar como diretor da Divisão Ford, mas pediram que eu me fizesse de desen-tendido. Sabiam que Henry gostaria de me dar a impressão de que a idéia era dele.

Vibrei com a promoção, mas percebia que ela me colocava numa posição delicada. Por um lado, de repente eu estava dirigindo a divisão de elite da empresa. Henry Ford me havia coroado pesso-almente. Por outro lado, eu tinha passado na frente de umas cem pessoas mais velhas e mais experientes. Algumas, eu sabia, estavam ressentidas com meu sucesso repentino. Além disso, eu ainda não tinha credenciais reais como homem de produto. Àquela altura da

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minha carreira não havia nenhum carro para o qual se pudesse a-pontar e dizer: "Foi Iacocca quem fez".

Então me sobrava a área que eu conhecia: o lado humano dos negócios. Tinha que descobrir se toda a minha prática em vendas e em marketing poderia ser aplicada ao trabalho com pessoas. Tinha que usar tudo que havia aprendido com meu pai, com Charlie Bea-cham e com minha própria experiência e bom senso. Era um perío-do de teste para mim.

Uma das minhas primeiras idéias veio de Wall Street. Há qua-tro anos, em 1956, a Ford finalmente se tornara uma empresa de capital aberto. Agora os proprietários eram um grande grupo de a-cionistas, bastante interessados na nossa saúde e produtividade. A exemplo de outras companhias de capital aberto, enviávamos aos acionistas relatórios financeiros detalhados a cada três meses. Qua-tro vezes ao ano eles nos controlavam através da análise desses re-latórios trimestrais, e quatro vezes ao ano pagávamos a eles um di-videndo da nossa receita.

Se nossos acionistas tinham um sistema de revisões trimestrais, por que os executivos não o deveriam ter? Foi o que me perguntei. Comecei a desenvolver um sistema de administração que uso até hoje. Ao longo dos anos, fazia regularmente ao meu pessoal-chave — e pedia-lhes que fizessem o mesmo com o pessoal-chave deles, e assim por diante, ao longo da hierarquia — algumas perguntas bási-cas: " Quais os seus objetivos para os próximos noventa dias? Quais os seus planos, prioridades, expectativas? E de que forma você pre-tende atuar para alcançá-los?"

À primeira vista, esse procedimento não parece ser mais do que uma forma rigorosa de levar os empregados a prestar contas ao che-fe. É um pouco isso mesmo, mas é também muito mais, pois o sis-tema de revisão trimestral faz os empregados prestarem contas a si mesmos. Isto não só leva cada gerente a considerar seus próprios alvos, como constitui um meio eficaz de lembrar às pessoas que não devem perder de vista seus próprios sonhos.

A cada três meses, cada gerente se reúne com seu superior i-mediato para rever seu próprio desempenho e para estabelecer seus objetivos para o período seguinte. Havendo acordo quanto a esses objetivos, o gerente os põe no papel e o supervisor assina. Como aprendi com McNamara, o hábito de escrever as coisas é o primeiro passo no sentido de realizá-las efetivamente. Na conversa, você po-de se desviar para todos os tipos de imprecisões e absurdos, muitas

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vezes sem perceber. Mas, ao colocar suas idéias no papel, você se força a ir direto ao que interessa. É mais difícil enganar a si mesmo ou enganar aos outros.

O sistema de revisão trimestral talvez pareça simples demais — só que funciona. E funciona por várias razões. Em primeiro lu-gar, permite que cada um seja seu próprio chefe e estabeleça seus próprios objetivos. Em segundo lugar, torna a pessoa mais produti-va e motivada por si mesma. Por fim, ajuda as novas idéias a chega-rem ao topo da hierarquia. A revisão trimestral força os gerentes a parar e a avaliar o que realizaram, o que pretendem realizar e como pretendem fazê-lo. Nunca encontrei um jeito melhor de estimular novas formas de abordagem para a resolução dos problemas.

Outra vantagem do sistema de revisão trimestral — sobretudo numa grande empresa — é que ele evita que as pessoas sejam es-quecidas. É muito difícil alguém se perder no sistema se é submeti-do a uma avaliação a cada trimestre pelo chefe e, indiretamente, pe-lo chefe do chefe e pelo chefe do chefe do chefe. Desta maneira, as pessoas competentes não são passadas para trás. E, o que também é importante, os incompetentes não conseguem se esconder.

Talvez o mais importante, finalmente, seja que o sistema de re-visão trimestral provoca o diálogo entre o gerente e seu chefe. Num mundo ideal, não seria necessário implantar uma estrutura especial. só para garantir que ocorra esse tipo de interação. Mas se um geren-te e seu chefe não se dão lá muito bem, pelo menos quatro vezes ao ano eles poderão sentar para decidir o que farão juntos nos próxi-mos meses. Não há como evitarem este encontro e, com o tempo, à medida que vão se conhecendo melhor, sua relação de trabalho cos-tuma melhorar.

Nesses encontros trimestrais, cabe ao chefe responder ao plano de cada gerente. O chefe poderá dizer: "Acho que você está voando um pouco alto demais, mas se você se acha capaz de fazer tudo isso nos próximos noventa dias, por que não tentar?" ou: "Este plano tem sentido, mas há algumas prioridades nele com que não concor-do. Vamos discutir um pouco". Seja qual for a natureza dessa dis-cussão, o papel do chefe começa a se transformar. Aos poucos, ele vai deixando de ser apenas um representante da autoridade e passa a ser um pouco mais um conselheiro e colega mais experiente.

Se sou o supervisor de Dave, devo começar por perguntar a Dave o que ele gostaria de fazer nos próximos três meses. Poderá responder que pretende aumentar nossa penetração no mercado em

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meio por cento. Então, eu posso dizer: "Ótimo. Agora me diga co-mo você pretende fazer isso".

Antes dessa pergunta, eu e Dave temos que chegar a um acordo com relação ao alvo específico que ele pretende alcançar. Mas isto raramente é problema. Se houver algum conflito entre nós, é mais provável que o seu foco esteja no como e não no o quê. Muitos ge-rentes relutam em soltar seu pessoal. Ficariam surpresos em ver como um sujeito informado e motivado caminha depressa.

Quanto mais sentir que fixou suas próprias metas, tanto mais Dave se sentirá disposto a derrubar paredes para alcançá-las. Afinal de contas, foi ele próprio que as escolheu e ele tem o carimbo da aprovação do chefe. E como Dave quer fazer as coisas do seu jeito, ele vai se empenhar ao máximo para provar que o seu jeito é bom.

O sistema de revisão trimestral também funciona bem quando Dave fracassa. Nesse caso, em geral, o chefe não precisa dizer nada. Na maioria das vezes, o próprio Dave vai perceber, já que sua falha é dolorosamente óbvia.

Pela minha experiência, no fim dos noventa dias, quem não é bem sucedido geralmente aparece e diz, apresentando mil descul-pas, que não conseguiu atingir as metas — antes que o chefe diga qualquer coisa. Se o fracasso se repetir várias vezes, a pessoa co-meça a duvidar de si mesma. Acaba percebendo que a falha é sua e não do chefe.

Mesmo neste caso, em geral ainda é tempo de tomar alguma medida construtiva. Freqüentemente, a própria pessoa diz: "Olha, não consigo dar conta do meu trabalho. Está acima de minhas for-ças. Você poderia me transferir?"

É muito melhor para todos que um empregado chegue a esta decisão por si mesmo. Todas as empresas já perderam bons profis-sionais, quando o único problema era que estavam no cargo errado. Todos eles ficariam mais satisfeitos e teriam mais sucesso se tives-sem sido transferidos para outra área, ao invés de serem despedidos. É claro que, quanto mais cedo se detecta um problema deste tipo, maiores são as chances de resolvê-lo.

Sem um sistema regular de revisão, um gerente que não estiver se saindo bem numa determinada área poderá ficar aborrecido com seu chefe. Poderá achar que a razão do seu fracasso em atingir as me-tas é a má vontade do chefe com relação a ele. Conheço muitos casos de pessoas que ficaram durante anos na função errada. Quase sem-pre, a administração só descobre esse tipo de coisa tarde demais.

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Em princípio, não sou a favor de se ficar mudando as pessoas de lugar a toda hora. Sou cético quanto à validade da atual tendên-cia de manter os funcionários circulando de um departamento para outro, como se todas as qualificações fossem intercambiáveis. Elas não o são. É como se fôssemos procurar um ótimo cardiologista pa-ra fazer um parto. Ele seria o primeiro a dizer que a obstetrícia é um campo completamente diferente e que o fato de ser competente em uma área não quer dizer que tenha habilidade ou experiência em ou-tra. O mesmo se aplica ao mundo dos negócios.

Na Ford, e mais tarde na Chrysler, sempre tentei levar quem trabalhava comigo a aplicar o sistema de revisão trimestral. Costu-mo explicar: "Esta é a minha maneira de controlar as coisas. E vou lhe mostrar como funciona. Não estou dizendo que você deva fazer tudo à minha maneira. Mas se não fizer, seria bom fazer alguma coisa que tivesse os mesmos resultados".

Depois de aplicar o sistema por muitos anos, aprendi a ficar a-tento a dois problemas potenciais. Em primeiro lugar, as pessoas às vezes têm os olhos maiores do que a boca. Em alguns casos, isto pode acabar sendo ótimo, pois indica que a pessoa está voando alto e que, para ela, mesmo um sucesso parcial pode valer muito. Qual-quer supervisor competente prefere trabalhar com pessoas que vo-am alto a trabalhar com aquelas que voam demasiado baixo.

O outro problema é a tendência dos chefes a interferir cedo demais. E logo que passei a ocupar cargos mais altos, eu era um dos piores. Não conseguia resistir à tentação de dar o meu palpite, mas, com paciência, acabei aprendendo a não interferir. De modo geral, o sistema de revisão trimestral é auto-regulador; funciona melhor quando não interfiro. Quando atua por si mesmo, mantém as pesso-as construtivamente unidas, voltadas para objetivos adequados e a-provados por consenso. Não se pode desejar mais do que isso.

Se eu tivesse que resumir numa palavra as qualidades de um

bom gerente, diria que tudo é uma questão de determinação. Você pode usar os computadores mais fantásticos do mundo e juntar to-dos os gráficos e números possíveis, mas no final você tem que re-unir as informações, fixar um cronograma e agir.

Não estou falando de agir precipitadamente. A imprensa muitas vezes me descreve como um líder extravagante e atirado, uma pes-soa que atua sem medir as conseqüências. Talvez eu dê essa im-

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pressão, mas, se essa imagem fosse verdadeira, eu jamais teria tido sucesso nos negócios.

Na verdade, meu estilo de administração sempre foi bem con-servador. Quando me arriscava, tinha plena certeza de que as pes-quisas e estudos de mercado confirmavam meu instinto. Posso agir com base na intuição — mas apenas se as minhas sacadas forem apoiadas pelos fatos.

Há muitíssimos gerentes que se deixam abater pelo peso da tomada de decisões, especialmente aqueles com muita educação formal. Certa vez disse a Philip Caldwell, que se tornou o primeiro homem da Ford quando eu saí: "Seu problema, Phil, é que você es-tudou em Harvard, e aprendeu a não fazer nada antes de ter todos os fatos à mão. Você tem noventa e cinco por cento dos fatos, mas vai levar mais seis meses para conseguir os outros cinco por cento. E quando você conseguir, seus fatos estarão desatualizados, pois o mercado o venceu. O fundamental na vida é a escolha do momento".

Um bom líder no mundo dos negócios não pode agir assim. É perfeitamente natural o desejo de ter todos os fatos à mão e respei-tar a pesquisa que garanta o sucesso de um determinado programa. Afinal de contas, se você está em vias de gastar trezentos milhões num novo produto, tem que estar cem por cento seguro de que está no caminho certo.

Teoricamente, isto é uma maravilha, mas na vida real não fun-ciona assim. Obviamente, você tem a responsabilidade de reunir to-dos os fatos e projeções relevantes que puder. Mas, em algum mo-mento, você terá que acreditar. Primeiro, porque mesmo a decisão certa será errada se for tomada tarde demais. Em segundo lugar, porque em muitos casos é impossível chegar a esse grau de certeza. Há momentos em que mesmo o melhor gerente é como um garoti-nho esperando o cachorro querer ir para algum lugar, para poder le-vá-lo até lá.

O que é informação suficiente para quem toma decisões? É im-possível falar em números, mas é claro que quando você vai em frente contando com apenas a metade dos fatos, certamente enfren-tará muitos obstáculos. Nesse caso, você deverá ter muita sorte — ou uma intuição arrasadora. Às vezes é necessário fazer esse tipo de jogo, mas, sem dúvida, não é a melhor maneira de andar nos trilhos.

Ao mesmo tempo, você nunca sabe cem por cento do que pre-cisa saber. A exemplo de tantos outros setores industriais, nos dias de hoje o ramo automobilístico está em permanente mudança. Para

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nós, em Detroit, o grande desafio é sempre o de perceber o que vai atrair os consumidores dentro de três anos. Estou escrevendo em 1984, e já estamos planejando os modelos de 1987 e de 1988. Às vezes, tenho que tentar prever o que poderemos vender daqui a três ou quatro anos, mesmo sem ter condições de dizer com uma certa margem de certeza o que o público vai querer no mês que vem.

Quando você não dispõe de todos os fatos, às vezes tem que se basear na sua experiência. Sempre que leio no jornal que Lee Ia-cocca adora atirar às cegas, digo a mim mesmo: "Bem, talvez ele já faça isso há tanto tempo, que agora já sabe como atingir o alvo".

Até certo ponto, sempre operei a partir da intuição. Gosto de estar na linha de fogo. Nunca fui daqueles caras que conseguem fi-car o tempo todo sentados traçando estratégias.

Mas há uma nova geração de homens de negócios, composta principalmente por homens com pós-graduação em Administração de Empresas, que temem as decisões intuitivas. De fato, a intuição não é uma base suficiente para se agir, Mas muitos desses homens preferem o extremo oposto. Parecem acreditar que todos os pro-blemas podem ser estruturados e reduzidos a um estudo de caso. Is-to pode ser verdade na escola, mas nos negócios é preciso ter al-guém por perto para dizer: "Muito bem, pessoal, chegou o momen-to. Começaremos em uma hora". Quando leio relatos sobre a Se-gunda Guerra e sobre o Dia D, sempre penso que Eisenhower quase pôs tudo a perder por ter vacilado. Mas afinal ele disse: "Não im-porta como esteja o tempo, temos que avançar agora. Esperar pode ser muito mais perigoso. Portanto, vamos lá".

O mesmo se aplica à vida das empresas. Sempre vai haver al-guém que deseja um ou dois meses adicionais para pesquisar mais a respeito da forma do teto de um novo carro. A pesquisa pode ser muito útil, mas poderá pôr a perder os planos de produção. Após um certo momento, quando já se sabe a maior parte dos fatos rele-vantes, fica-se sujeito à lei da redução proporcional do retorno.

Por isso, é essencial uma certa dose de risco. Compreendo que não é assim com todo mundo. Tem gente que nunca sai de casa sem um guarda-chuva, mesmo que esteja fazendo sol. Infelizmente, o mundo não fica à sua espera enquanto você tenta prever suas per-das. Às vezes você tem que arriscar — e corrigir os erros enquanto vai avançando.

Por volta dos anos 60 e durante a maior parte dos anos 70, estas coisas não tinham tanta importância como têm hoje. Naquele tempo

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a indústria automobilística era uma galinha dos ovos de ouro. Ga-nhávamos dinheiro sem fazer praticamente nenhum esforço. Mas, hoje, poucos negócios podem se dar ao luxo das decisões lentas, quer estas envolvam uma pessoa que está na função errada, quer envolvam o planejamento de toda uma nova linha de carros com cinco anos de antecedência.

Apesar do que dizem os livros, as decisões mais importantes da vida das empresas são tomadas por indivíduos e não por comissões. Minha política tem sido ser democrático sempre, até o momento de tomar as decisões. Nesse momento eu me transformo no comandan-te implacável. "Bem, já ouvi vocês todos; agora, aqui está o que vamos fazer."

Sempre é preciso haver comissões, pois é nelas que as pessoas compartilham conhecimentos e intenções. Mas quando as comis-sões substituem os indivíduos — e a Ford hoje tem mais comissões que a General Motors —, a produtividade começa a cair.

Em resumo: neste mundo, nada pára. Gosto de caçar patos, por causa do movimento e da mudança constantes. Você pode mirar um pato e estar com ele debaixo dos olhos, mas ele está sempre em movimento. Para acertar o pato, você tem que mover a arma. Uma comissão que tem diante de si uma decisão importante nem sempre pode mover-se tão depressa quanto os fatos a que tenta responder. Quando a comissão está pronta para atirar, o pato já saiu voando.

Além de serem tomadores de decisões, os gerentes devem ser

motivadores. Quando eu era gerente geral da Divisão Ford, fui con-vidado a falar para os Sloan Fellows na Escola de Administração Alfred P. Sloan, do MIT. Os Sloan Fellows constituíam um grupo muito talentoso, que participou de um programa-piloto que incluía uma semana na Europa para estudar o Mercado Comum, uma se-mana em Wall Street, uma semana no Pentágono etc.

Toda quinta-feira à noite, um conferencista convidado, ligado ao comércio ou à indústria, tinha um encontro com os alunos. Quando me chamaram para fazer uma palestra em um desses en-contros, em 1962, fiquei lisonjeado, mas também um pouco tenso. "Relaxe", disseram-me. "Os alunos se reúnem depois do jantar na sala de estar. Você vai lhes dizer algumas palavras sobre negócio de automóveis, e então eles vão lhe fazer algumas perguntas."

Assim, falei brevemente a respeito da produção e da venda de automóveis e então solicitei que fizessem perguntas e comentários.

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Diante de um grupo tão brilhante, eu esperava questões bem abstra-tas e teóricas; mas fiquei surpreso quando um me perguntou: "Quantas pessoas trabalham na Divisão Ford?"

"Cerca de onze mil pessoas", respondi. "Bem", disse ele, "você vai ficar hoje e amanhã aqui em Cam-

bridge. Enquanto você está fora do escritório, quem motiva essas onze mil pessoas?"

Foi uma pergunta muito importante, e ainda me lembro da cara do jovem que a fez. Ele atacou o ponto central, pois administrar na-da mais é do que motivar outras pessoas.

É claro que não podia saber o nome das onze mil pessoas que trabalhavam para mim. Assim, alguma coisa além do sistema de re-visões trimestrais estava motivando todas elas.

A única maneira de motivar as pessoas é comunicar-se com e-las. Embora eu tivesse sido membro do grupo de debate no colégio, tinha medo de falar em público. Nos primeiros anos da minha vida profissional, eu era introvertido.

Mas isso foi antes de eu ter feito um curso de oratória no Dale Carnegie Institute. Na época, eu tinha acabado de ser indicado ge-rente nacional de treinamento de vendas de caminhões na Ford. A empresa mandou um grupo para o Dale Carnegie para aprendermos os detalhes importantes do falar em público.

O curso começou pela tentativa de nos tirar da nossa concha. Algumas pessoas — inclusive eu — eram capazes de falar o dia in-teiro diante de uma ou duas pessoas, mas ficavam nervosas quando tinham que falar diante de um grupo.

Um dos exercícios de que me lembro consistia em falar de im-proviso, durante dois minutos, a respeito de um assunto de que não se sabia nada — Zen-budismo, por exemplo. Você podia começar dizendo que não sabia nada sobre o que estava falando, mas tinha que continuar — e logo descobria o que dizer. O que interessava era exercitar a capacidade de pensar por si mesmo.

Aprendemos algumas técnicas básicas de oratória, que ainda aplico até hoje. Por exemplo, você pode entender do assunto, mas tem que ter em mente que o público chega despreparado. Por isso, comece dizendo sobre o que você vai falar. Depois diga o que tem a dizer. Por fim, diga o que você acabou de dizer-lhes. Nunca perdi de vista esse princípio.

Outra técnica que aprendemos é sempre levar a audiência a fa-zer alguma coisa antes de terminar nossa conferência. Não importa

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o que seja — escrever ao seu representante no congresso, telefonar para o vizinho, analisar uma afirmação. O importante é nunca sair sem solicitar uma tarefa.

Em algumas semanas, fui me sentindo mais seguro. Logo esta-va pronto para levantar e falar sem que me solicitassem. Gostei do desafio. O curso pretendia nos tornar menos inibidos, e no meu caso certamente funcionou. Quando eu começava a falar, não conseguia parar. (Tenho certeza de que para algumas pessoas teria sido melhor eu não ter aprendido a gostar tanto de falar!)

A partir daquela época, acredito muito no Dale Carnegie Insti-tute. Conheci muitos engenheiros com idéias excelentes, que ti-nham dificuldade para explicá-las às outras pessoas. É sempre uma pena quando uma pessoa de talento não consegue dizer o que pensa ao conselho ou a uma comissão. Na maioria das vezes, um curso do Dale Carnegie faria uma diferença enorme.

Nem todo gerente tem de ser um orador ou escritor. Mas há ca-da vez mais gente saindo da escola sem condições de se expressar claramente. Enviei dezenas de rapazes introvertidos para o Dale Carnegie, às custas da empresa. Para a maioria, o instituto fez uma grande diferença.

Eu só queria era encontrar um instituto que ensinasse as pesso-as a escutar. Afinal de contas, um bom gerente precisa ouvir, pelo menos tanto quanto precisa falar. Tem muita gente que não percebe que a boa comunicação se faz nas duas direções.

Na vida da empresa, é preciso estimular todos a contribuir para o bem comum e a descobrir formas melhores de fazer as coisas. Você não é obrigado a aceitar todas as sugestões, mas tem que se voltar para quem apresentar alguma sugestão, lhe dar um tapinha nas costas e dizer: "Excelente idéia". Senão, a pessoa nunca mais fará nenhuma proposta. Este tipo de comunicação faz as pessoas sentirem que são realmente importantes.

Você tem que ter capacidade de ouvir, se pretende motivar as pessoas que trabalham com você. É essa habilidade que distingue uma empresa medíocre de uma grande empresa. A maior satisfação da minha vida como administrador é ver alguém que o sistema clas-sificou como médio ou medíocre encontrar o seu caminho, porque alguém ouviu seus problemas e o ajudou a resolvê-los.

De fato, o modo mais comum de se comunicar com seu pessoal é falar com eles em grupo. Falar em público, que é a melhor forma de motivar um grupo grande, é completamente diferente de ter uma

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conversa particular. Falar em público exige preparação. Não há es-capatória: você tem que fazer a "lição de casa". Um orador pode ser muito bem-informado, mas se não tiver pensado exatamente no que quer dizer aos seus ouvintes, é melhor não fazer as pessoas perde-rem tempo.

É importante falar com as pessoas em sua própria linguagem. Se você fizer isso bem, elas vão dizer: "Puxa, ele disse exatamente o que eu estava pensando". E quando começam a respeitar você, e-las o seguirão até a morte. Elas não o estarão seguindo porque você tem alguma capacidade misteriosa de liderança, mas porque é você que as está seguindo.

É o que faz Bob Hope quando manda um olheiro saber quem está na platéia, para poder fazer brincadeiras que tenham um signi-ficado especial para as pessoas e para a situação delas. Se você esti-vesse vendo pela televisão, talvez não entendesse nada. Mas quem está na platéia sempre gosta que o orador tenha o trabalho de saber alguma coisa a seu respeito. Nem todos podem ter olheiro, mas a mensagem é clara: falar em público não significa falar de modo im-pessoal.

Embora talvez eu até conseguisse falar de improviso por duas horas, sempre sigo um roteiro. Falar sem um rumo definido é muito cansativo. Procuro utilizar um texto preparado de antemão e vou fa-zendo digressões quando sinto que é oportuno.

Quando falo para um grupo na Chrysler, minha preocupação não é divertir as pessoas, como quando estou num jantar. Com o meu pessoal, procuro ser o mais direto e franco possível. Descobri que a melhor forma de motivá-los é levá-los a conhecer as regras do jogo para poderem participar dele. Tenho que lhes explicar os meus objetivos, assim como os outros executivos têm que fixar seus pró-prios objetivos junto aos seus supervisores. E se eles alcançarem es-tes objetivos, devem ser recompensados com algo mais do que pa-lavras elogiosas. Dinheiro e promoção são a forma concreta de a empresa dizer: seu desempenho foi excelente.

Quando você dá um aumento a um funcionário, é o momento de aumentar as responsabilidades dele. Enquanto ele está animado, você o recompensa pelo que realizou e, ao mesmo tempo, motiva-o a realizar ainda mais. Sempre o alimente com mais trabalho quando ele estiver por cima e nunca seja muito duro com ele quando ele es-tiver por baixo. No momento em que está contrariado com os pró-prios erros, você corre o risco de feri-lo demais e de fazê-lo perder

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o incentivo para melhorar. Ou, como dizia Charlie Beacham: "Se você quiser dar crédito a um sujeito, faça isso por escrito. Se você quiser mandá-lo para o inferno, faça-o por telefone".

Charlie Beacham era contra a idéia de uma pessoa só dar conta de tudo. Ele dizia: "Você quer fazer tudo sozinho, não sabe delegar. Vamos, não me entenda mal. Você é o melhor cara que já tive. Tal-vez até valha por dois. Mas, mesmo assim, ainda seriam só dois. Você tem umas cem pessoas trabalhando com você agora. O que vai ser quando tiver dez mil?"

Ele sabia prever as coisas, pois na Divisão Ford eu tinha onze mil. Ensinou-me a não ficar tentando fazer o trabalho de todos. E me ensinou a dar metas às pessoas — e a motivá-las para atingi-las.

Sempre achei que um gerente faz muito quando consegue mo-tivar outra pessoa. Na hora de levar as coisas adiante, a motivação é tudo. Você pode até conseguir fazer o trabalho de duas pessoas, mas não pode ser duas pessoas. Ao invés disso, você deve inspirar o seu subordinado direto e levá-lo a inspirar os subordinados dele.

Certa vez, durante um jantar particular com meu amigo Vince

Lombardi, o legendário técnico de futebol, eu lhe perguntei qual a fórmula do seu sucesso. Queria saber exatamente o que criava um time vencedor. O que ele me disse naquela noite também se aplica ao mundo dos negócios:

"Você tem que começar ensinando os fundamentos. Um joga-dor deve conhecer as bases do jogo e deve saber como jogar em sua posição. Depois, você deve colocá-lo na linha. Isto é disciplina. Os homens precisam jogar como uma equipe e não como um amontoa-do de indivíduos. Não há espaço para estrelas".

Prosseguiu: "Mas há muitos técnicos que têm bons jogadores, que conhecem os fundamentos e são disciplinados, mas não ga-nham o jogo. Assim, você chega ao terceiro ingrediente: se vamos jogar em equipe, temos que cuidar uns dos outros. Temos que nos amar. Cada jogador deve estar pensando no companheiro e dizendo a si mesmo: 'Se eu não bloquear aquele adversário, Paul vai quebrar a perna. Tenho que desempenhar bem o meu papel, para ele poder fazer o dele'".

"A diferença entre a mediocridade e a grandeza", disse ainda Lombardi, "é o sentimento que esses garotos têm uns pelos outros. Muitos chamam isso de espírito de equipe. Quando os jogadores

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têm este sentimento especial, você sabe que conseguiu um time vencedor."

E então ele deixou escapar, meio sem jeito: "Mas, Lee, para que estou dizendo isso a você? Você dirige uma empresa. É a mes-ma coisa que dirigir um time. Afinal de contas, por acaso um ho-mem faz um carro sozinho?"

Lombardi disse-me que gostaria de visitar a Ford para ver como são feitos os carros e eu prometi convidá-lo a ir a Detroit. Mas pouco depois daquele nosso jantar, ele foi hospitalizado com uma doença fatal. Encontrei-o poucas vezes, mas guardei suas palavras: "Toda vez que um jogador de futebol sai para fazer o seu trabalho, ele tem que jogar a partir do chão — da sola dos pés até a cabeça. Cada pe-daço dele deve jogar. Alguns jogam com a cabeça, e é verdade que você tem de ser esperto para ser o primeiro em tudo que tentar. Mas, mais importante do que isso: você tem que jogar com o coração. Se tiver a sorte de encontrar alguém com muita cabeça e muito coração, você vai ver que esta pessoa nunca estará em segundo lugar".

Ele tinha razão, com certeza. Conheci muitos garotos espertos e talentosos que são incapazes de jogar num time. São os gerentes de quem as pessoas falam: "Por que será que ele não vai para fren-te?" Todos nós conhecemos gente deste tipo, pessoas que parecem ter tudo mas que nunca progridem muito. Não estou falando daque-las pessoas que realmente não querem progredir, ou daquelas que são simplesmente preguiçosas. Estou pensando nas pessoas que se esforçam muito, seguem um plano definido, vão para a universida-de, conseguem um bom emprego, dão duro e não conseguem nada.

Quando você fala com essas pessoas, muitas vezes elas dizem que tiveram azar, ou que o chefe não gosta delas. Invariavelmente, elas se colocam como vítimas. Mas você tem que se perguntar por que só tiveram azar e por que nunca pareciam estar procurando o-portunidades melhores. Sem dúvida, a sorte tem um papel nisso tu-do. Mas quando pessoas capazes não conseguem avançar, em geral é porque não conseguem trabalhar bem com seus colegas.

Conheço um homem que dedicou sua vida ao trabalho no ramo de automóveis. É muito bem-educado e bem-organizado. É um es-trategista brilhante, talvez uma das pessoas mais valorosas de sua empresa. Mas ele jamais chegou ao escalão superior, justamente por não ter habilidade para trabalhar com pessoas.

Vejam minha própria carreira. Conheci muitas pessoas mais in-teligentes do que eu e muitas entendem mais de carros do que eu. E

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no entanto as ultrapassei. Por quê? Porque sou duro? Não. Você não terá sucesso por muito tempo se ficar brigando com as pessoas. Vo-cê tem que saber como falar com elas, pura e simplesmente.

Há uma frase que eu detesto ouvir quando se faz a avaliação de qualquer gerente, por mais talentoso que ele seja: "Ele tem proble-mas de relacionamento com as pessoas".

Para mim, este é o beijo da morte. "Você destruiu o sujeito", sempre penso. "Ele não se dá bem com as pessoas? Então o pro-blema dele é grande mesmo, pois aqui temos pessoas por toda parte. Não temos cães, nem macacos — só pessoas. E se ele não consegue se relacionar com os colegas, que benefício está trazendo para a empresa? Como executivo, sua função se resume em motivar os ou-tros. Se não consegue fazer isso, está no lugar errado."

E há ainda a estrela. Ninguém gosta do tipo, embora possa ser tolerado quando tem bastante talento. Na Ford, havia um executivo que queria que seus escritórios fossem remobiliados com móveis antigos. Ele apresentou uma requisição para fazer uma decoração pela bagatela de um milhão e duzentos e cinqüenta mil dólares (e esse preço era para uma sala e um lavabo!). Por acaso vi a resposta de Henry Ford, e dava para perceber que ele estava zangado, pela mensagem que escreveu no memorando; dizia apenas: "Realizar o serviço com três quartos de milhão". Esse executivo entendia muito de indústria de automóveis, mas na minha opinião seu estilo o tor-nava ineficaz como gerente.

Lembro-me de um caso que aconteceu há muito tempo. A Ford contratou um executivo de alto nível para ajudar a organizar o de-partamento de marketing. Ele acabou sendo demitido, por ter feito o impensável — contratou seu próprio homem de Relações Públicas. Ele tentou dar a impressão de que o sujeito estava sendo contratado como consultor, mas a verdade logo apareceu. A maior preocupa-ção desse executivo era ter seus feitos relatados nos jornais. Não é de surpreender que não tenha durado.

Ao mesmo tempo, um certo grau de autopromoção é natural e até necessário. Conheci gerentes muito tímidos ou muito medrosos para tratar com a imprensa, ou que não querem que ninguém saiba o quanto fizeram. Embora a General Motors tenha estimulado esse ti-po de personalidade sem cara, não gosto disso. Se os executivos mais importantes não tiverem um pouco de vaidade, como sua em-presa vai conseguir manter o entusiasmo e a competitividade?

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Há uma diferença enorme entre um ego forte, que é essencial, e um ego grande — que pode ser destrutivo. A pessoa com um ego forte conhece suas próprias forças. É confiante. Tem uma idéia rea-lista daquilo que pode realizar e caminha decidida na direção do seu alvo.

Mas o sujeito que tem um ego grande está sempre buscando re-conhecimento. Precisa estar sempre recebendo tapinhas nas costas. Pensa que é mais do que todo mundo. E trata com prepotência as pessoas que trabalham com ele.

O The Wall Street Journal certa vez afirmou que eu tinha "um ego do tamanho de todos os outdoors". Mas se isso fosse verdade, não creio que tivesse sucesso num ramo que depende tanto da capa-cidade de trabalhar bem com as pessoas.

Já falei que acho importante pôr as coisas no papel. Mas isso também pode ser levado a extremos. Muita gente parece que gosta de transformar a empresa em fábrica de papel. Em parte, isto é da natu-reza humana. Num escritório, sempre há situações em que alguém sente uma grande necessidade de tirar o corpo fora produzindo um memorando para o arquivo. É verdade que colocar as idéias no papel é, em geral, o melhor meio de se refletir sobre elas. Mas isto não sig-nifica que tudo o que se escreve deva circular entre os colegas.

A melhor forma de desenvolver idéias é manter-se em intera-ção com os colegas gerentes. Isto nos leva mais uma vez à questão da importância do trabalho em equipe e da capacidade de relacio-namento. A química entre duas ou três pessoas que sentam juntas pode ser incrível — e a ela devo grande parte do meu sucesso.

Assim, acho muito importante reunir os gerentes para conver-sar — nem sempre em encontros formais, mas também só para um bate-papo, um vai ajudando o outro, resolvendo problemas.

As pessoas que vão ao meu escritório da Chrysler freqüente-

mente ficam surpresas por eu não ter um terminal de computador na mesa. Talvez elas se esqueçam de que tudo o que sai do computa-dor, alguém tem de colocar dentro dele. O maior problema atual dos negócios nos Estados Unidos é que muitos gerentes dispõem de in-formações demais. Isto os atrapalha e eles não sabem o que fazer com tanta coisa.

A chave do sucesso não é a informação. São as pessoas. E o tipo de pessoa que eu procuro para colocar na alta gerência é aquela que procura fazer tudo para agradar. São essas pessoas que tentam fazer

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mais do que se espera delas. Elas estão sempre atingindo metas e se aproximando das pessoas com quem trabalham, tentando ajudá-las a fazer melhor suas tarefas. É assim que essas pessoas funcionam. Mas há os outros, a turma das nove às cinco. Só querem ficar por ali espe-rando alguém dizer o que têm que fazer. Eles dizem: "Não quero en-trar nessa loucura. Pode fazer mal para o coração".

Não é porque você se envolve, se entusiasma e se dedica real-mente às coisas que vai morrer de hipertensão em uma semana!

Assim, tento procurar pessoas que tenham disposição. Não são necessárias muitas. Com vinte e cinco pessoas desse tipo, eu conse-guiria dirigir o governo dos Estados Unidos.

Na Chrysler tenho cerca de uma dúzia. O que torna esses ge-rentes fortes é que eles sabem delegar poderes e motivar. Sabem achar os pontos fundamentais e estabelecer prioridades. São do tipo capaz de dizer: "Esqueça isso, vai levar dez anos. Aqui está o que devemos fazer agora".

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VI O MUSTANG

eeus anos como gerente geral da Divisão Ford foram o período mais feliz da minha vida. Para meus colegas e para mim, aquele foi um tempo bem agitado. Estávamos ansiosos para descobrir o nosso próprio caminho — uma mistura de trabalho duro e grandes sonhos.

Naquela época, eu mal conseguia esperar para começar a traba-lhar pela manhã. À noite, não queria parar. Estávamos sempre expe-rimentando novas idéias e testando modelos na pista de provas. Éra-mos jovens e convencidos. Nós nos considerávamos artistas, aptos a produzir as maiores obras-primas que o mundo jamais tinha visto.

Em 1960, o país inteiro estava otimista. Com Kennedy na Casa Branca, novos ares se espalhavam por toda a nação. Traziam uma mensagem implícita de que tudo era possível. O contraste gritante en-tre a nova década e a década de 50, entre Kennedy e Dwight Eise-nhower, podia ser resumido em uma simples palavra — juventude.

Mas, antes de pôr em prática os meus sonhos juvenis, havia ou-tros assuntos a cuidar. Depois do espetacular sucesso do Falcon, Robert McNamara autorizou o desenvolvimento de um outro carro novo, um compacto de tecnologia alemã, conhecido como Cardinal. Seu lançamento estava previsto para o final de 1962 e, quando eu

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assumi a Divisão Ford, uma das minhas tarefas era supervisionar sua produção.

Como McNamara estava interessado em economia de combus-tível e em transporte básico, o Cardinal foi concebido para ser a resposta americana ao Volkswagen. A exemplo do Falcon, ele era pequeno, de linhas simples, e barato. Os dois modelos expressavam a profunda convicção de McNamara: um carro é um meio de trans-porte e não um brinquedo.

Depois de alguns meses na nova função, voei para a Alemanha para verificar o progresso do carro de McNamara. Era a primeira vez que eu ia à Europa e, por si só, isto já era muito emocionante. Mas, quando eu vi o Cardinal, fiquei decepcionado.

Era um carro muito bom para o mercado europeu, com seu mo-tor V-4 e tração dianteira. Mas, nos Estados Unidos, não haveria jeito de vender as trezentas mil unidades com as quais estávamos contan-do. Entre outros problemas, o Cardinal era muito pequeno e não tinha porta-malas. Embora economizasse muito combustível, esse não era ainda um apelo forte para o consumidor americano. Além disso, não tinha muito estilo. Parecia ter sido projetado por uma comissão.

Como sempre, McNamara estava à frente do seu tempo — dez anos, para ser exato. Uma década mais tarde, depois da crise da OPEP, o Cardinal seria um sucesso mundial.

Em alguns setores industriais, estar à frente do tempo é uma grande vantagem. Mas não em Detroit. Assim como a indústria de automóveis não podia ficar muito atrás com relação ao consumidor, também não poderia ficar muito à frente dele. Lançar um novo pro-duto muito cedo era tão ruim quanto lançá-lo tarde demais.

Existe um mito de que aqueles que dirigem a indústria de au-tomóveis manipulam, de certa forma, o público consumidor, de que nós dizemos às pessoas que tipo de carros devem comprar, e elas aceitam. Sempre que ouço isso, sorrio e penso: "Quem dera fosse verdade!"

A verdade é que nós só podemos vender o que as pessoas que-rem comprar. De fato, nós seguimos o público, muito mais que o conduzimos. É claro que fazemos o possível para persuadir as pes-soas a comprarem nossos produtos. Mas às vezes os nossos esforços não são suficientes.

Ninguém precisava me lembrar disso em 1960. A companhia ainda estava cambaleando sob o fiasco do Edsel, acontecido dois anos antes. Não cabe entrar aqui nas causas dessa história lamentá-

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vel, mas basta dizer que o Edsel — com o qual nem McNamara nem eu tivemos nada a ver — foi um fracasso tão grande, que a pa-lavra "Edsel" tornou-se sinônimo de fracasso.

Quando voltei da Alemanha, fui logo procurar Henry Ford. "O Cardinal já perdeu", disse-lhe eu. "Lançar outra inutilidade logo de-pois do Edsel poderia derrubar a companhia. Simplesmente não po-demos lançar um modelo novo que não tenha apelo para os com-pradores jovens."

Enfatizei o ponto de vista da juventude por duas razões. Em primeiro lugar, eu estava tomando consciência do poder econômico da geração jovem, um poder que ainda não era reconhecido em nos-sa indústria. Em segundo lugar, sabia que o patrão gostava de se considerar um sujeito moderno, uma pessoa que compreendia os desejos da juventude.

A seguir, eu me reuni com a alta administração e com o nosso conselho de diretores para discutir o destino do Cardinal. Essas conversas deram-me a impressão de que toda a empresa estava con-fusa com relação ao carro e de que os veteranos estavam agradeci-dos por contar com um jovem pretensioso como eu para tomar a decisão por eles. Assim, nenhum deles seria diretamente responsa-bilizado se o resultado da desistência do Cardinal fosse um erro e-norme. Embora a empresa já tivesse investido 35 milhões de dóla-res no carro, argumentei que ele não venderia e que deveríamos evi-tar maiores perdas e seguir em frente.

Devo ter sido persuasivo, porque a minha decisão foi aceita, com apenas duas opiniões dissidentes: John Bugas, chefe dessas operações internacionais, e Arjay Miller, nosso controller.

Bugas, embora fosse meu amigo pessoal, naturalmente queria que o Cardinal fosse lançado por ter sido feito no exterior. Miller estava preocupado com os 35 milhões de dólares já investidos. Co-mo um verdadeiro contador de tostões, ele só via os 35 milhões de dólares perdidos naquele trimestre.

Com o Cardinal fora da jogada, eu estava livre para trabalhar nos meus próprios projetos. Imediatamente reuni um grupo de jo-vens brilhantes e criativos da Divisão Ford. Começamos a nos en-contrar uma vez por semana para jantar e conversar no Fairlane Inn, em Dearborn, a cerca de um quilômetro e meio de onde trabalhá-vamos.

Nós nos encontrávamos no hotel porque uma porção de gente, lá no escritório, estava esperando para cair em cima de nós. Eu era

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um menino terrível, um vice-presidente novo, que ainda não tinha sido posto à prova. Os meus rapazes eram talentosos, mas nem sempre as pessoas mais populares da empresa.

Don Frey, nosso gerente de produto e hoje dirigente da Bell and Howell, era um membro-chave desse grupo. O mesmo ocorria com Hal Sperlich, que ainda está comigo, em um alto cargo na C-hrysler. Dos outros membros, tínhamos: Frank Zimmerman, do marketing; Walter Murphy, nosso gerente de Relações Públicas e meu amigo leal durante o meu tempo na Ford; e Sid Olson, da J. Walter Thompson, redator brilhante que escrevera os discursos para Franklin Delano Roosevelt e que, entre outras coisas, cunhou a fra-se "O Arsenal da Democracia".

A comissão Fairlane, como nos chamávamos, era muito com-petente. Tínhamos a vaga consciência de que o mercado de auto-móveis se transformaria nos próximos anos, embora não houvesse nenhum meio de saber exatamente o que iria acontecer. Sabíamos também que a General Motors pegara o Corvair, um carro econô-mico, e o transformara no caro Corvair Monza, simplesmente a-crescentando alguns acessórios esportivos, como bancos individu-ais, alavanca de câmbio no assoalho e um acabamento interno sofis-ticado. Nós, na Ford, não tínhamos nada para oferecer às pessoas que se interessavam pelo Monza, mas sabíamos que elas represen-tavam um mercado em ascensão.

Enquanto isso, nosso departamento de relações públicas vinha recebendo uma quantidade enorme de cartas de pessoas que queri-am que lançássemos outro Thunderbird para dois passageiros. Era uma surpresa, porque aquele carro não tinha feito muito sucesso e vendeu só cinqüenta e três mil unidades em três anos. Mas as cartas mostravam que o gosto do consumidor estava mudando. Talvez o Thunderbird de dois passageiros simplesmente estivesse à frente de seu tempo. Estávamos começando a ter a nítida impressão de que, se aquele carro ainda estivesse no mercado, estaríamos vendendo muito mais que dezoito mil unidades por ano.

Ao mesmo tempo, nossos pesquisadores de mercado confirma-vam que a imagem de juventude da nova década tinha uma base re-al na demografia. Primeiro, a idade média da população estava bai-xando com uma rapidez excepcional. Milhões de adolescentes nas-cidos durante a explosão de bebês que se seguiu à Segunda Guerra Mundial estavam para surgir no mercado nacional.

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O grupo de idade entre vinte e vinte e quatro anos aumentaria em mais de 50% durante a década de 60. Além disso, os jovens a-dultos de idade entre dezoito e trinta e quatro anos responderiam no mínimo pela metade do espantoso aumento nas vendas de carros previstas para toda a indústria nos dez anos seguintes.

Os pesquisadores acrescentaram uma nota de rodapé obscura mas interessante. Não só haveria mais jovens do que antes, como também teriam mais instrução que as gerações anteriores. Sabíamos que as pessoas com curso universitário compravam, proporcional-mente, mais carros do que as menos instruídas, e nossas projeções mostravam que o número de estudantes universitários dobraria por volta de 1970.

Também havia mudanças interessantes ocorrendo entre os compradores mais velhos. Começávamos a notar um desvio percep-tível da preocupação com carros econômicos, que havia caracteri-zado a década de 50 e que havia ajudado o Falcon a estabelecer no-vos recordes de venda. Os consumidores estavam começando a a-bandonar os modelos austeros e puramente funcionais e a se voltar para os modelos mais esportivos e luxuosos — como está voltando a acontecer em 1984.

Quando analisamos todas essas informações, a conclusão foi indiscutível. Enquanto o Edsel tinha sido um carro em busca de um mercado que nunca encontrou, havia um mercado em busca de um carro. O procedimento normal em Detroit era construir um carro e depois tentar identificar seus compradores. Mas agora estávamos em condições de caminhar no sentido inverso: fazer, sob medida, um modelo novo para um mercado ávido.

Para atrair os clientes jovens, qualquer carro deveria ter três ca-

racterísticas principais: estilo, ótimo desempenho e preço baixo. Não seria fácil desenvolver um novo modelo com essas característi-cas. Mas, se pudéssemos fazê-lo, o nosso êxito estaria garantido.

Voltamos à pesquisa e ficamos sabendo um pouco mais sobre a transformação do mercado de automóveis. Em primeiro lugar, esta-va aumentando muito o número de famílias com dois carros, e ge-ralmente o segundo carro era menor e mais esportivo que o primei-ro. Em segundo lugar, estava crescendo o número de mulheres que compravam carro, e elas preferiam carros pequenos e fáceis de ma-nejar. Os solteiros também apareciam em proporção cada vez maior entre os novos compradores de carros, com preferência por modelos

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menores e mais esportivos. Finalmente, ficava claro que, nos pró-ximos anos, os americanos teriam mais dinheiro do que nunca para gastar em transporte e lazer.

Assim que processamos essas informações, começamos a ob-servar o movimento de vendas do Falcon para ver o que poderíamos descobrir a respeito dos nossos clientes. Os resultados foram sur-preendentes. Embora o Falcon estivesse classificado como um carro econômico e de preço baixo, muito mais clientes do que imaginá-vamos vinham optando por transmissão automática, pneus faixa-branca e motores mais potentes. Este foi o meu primeiro vislumbre de um fato importante com referência a carros pequenos, que, aliás, permanece ainda tão verdadeiro hoje como há vinte anos: o com-prador de carros americano é tão obcecado por fazer economia, que pagará qualquer coisa para obtê-la!

A comissão Fairlane começou a definir mais especificamente o carro que desejávamos construir. Deveria ser pequeno — mas não demais. O mercado para os carros de dois lugares podia estar cres-cendo, mas limitava-se ainda a cerca de cem mil pessoas, ou seja, um carro de dois lugares não teria apelo para a massa. Nosso carro, portanto, deveria acomodar quatro passageiros. Em função do de-sempenho, também teria que ser leve — nosso limite era de cerca de mil e duzentos quilos. E, finalmente, ele tinha que ser barato. Nosso objetivo era vendê-lo, no máximo, por dois mil e quinhentos dólares, com acessórios.

Quanto ao estilo, eu tinha uma idéia do que queria. Em casa, sempre folheava atentamente as páginas de um livro chamado Auto Universum, que trazia ilustrações de todos os carros já construídos. O modelo que sempre me chamou a atenção foi o primeiro Mark Continental. Era o carro dos sonhos de qualquer um — ou, pelo menos, foi o carro dos meus sonhos desde que Leander Hamilton McCormick Goodheart passou com ele por Lehigh, em 1945. O que distinguia o Mark era o capô longo e a traseira curta. O comprimen-to do capô dava-lhe um aspecto de energia e de capacidade, e eu me dei conta de que era isso que as pessoas estavam procurando.

Quanto mais o nosso grupo conversava, mais nossas idéias se tornavam concretas. Nosso carro devia ser esportivo e ter um estilo próprio, com um ligeiro toque de nostalgia. Devia ser de fácil iden-tificação e diferente de tudo o que havia no mercado. Devia ser simples de manobrar, mas com capacidade para quatro pessoas e com espaço para um porta-malas de bom tamanho. Devia ser um

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carro esportivo, mas algo mais do que um carro esporte. Queríamos um carro que servisse para ir ao clube de campo na sexta-feira à noite, à paquera no sábado e à igreja no domingo.

Em outras palavras, nossa intenção era atingir várias faixas de mercado ao mesmo tempo. Precisávamos aumentar a nossa base de clientes potenciais, porque a única forma de produzir esse carro a um excelente preço era vendê-lo em grande quantidade. Concorda-mos que, em vez de oferecer várias versões diferentes do mesmo produto, era mais viável desenvolver um carro básico, com uma gama variada de opções. Assim, o cliente poderia comprar a eco-nomia, o luxo ou o desempenho que desejasse — ou que pudesse pagar.

Mas a questão era se podíamos produzir o carro. Um projeto totalmente novo, feito a partir do zero, custaria de 300 a 400 mi-lhões de dólares. A resposta estava em usar peças que já existissem no sistema. Dessa forma, poderíamos economizar uma fortuna em custos de produção. Os motores, as transmissões e os eixos das ro-das utilizados no Falcon já existiam; se pudéssemos adaptá-los, não precisaríamos começar do nada. Podíamos colocar o novo carro dentro do Falcon e economizar uma fortuna. No fim, seríamos ca-pazes de desenvolvê-lo por apenas 75 milhões de dólares.

Tudo isso parecia maravilhoso, mas não havia ninguém que achasse viável. Dick Place, planejador de produto, disse que fazer um carro esporte a partir do Falcon era como colocar seios postiços na vovó. Mesmo assim designei Don Frey e Hal Sperlich para pen-sarem na idéia. Testaram vários modelos diferentes mas, no final, concluíram que o design e a parte externa do novo carro deviam ser completamente originais. Podíamos manter o chassi e o motor do Falcon, mas, como dizemos em Detroit, o carro precisava de pele e vitrina novas — o pára-brisa, os vidros laterais e traseiros.

No final de 1961, estabelecemos nosso prazo. A inauguração da Feira Mundial de New York estava marcada para abril de 1964 e achamos que era a oportunidade ideal para o lançamento do nosso carro. Embora os novos modelos sejam tradicionalmente lançados no final do ano, tínhamos em mente um produto tão fantástico e tão diferente, que nos atreveríamos a lançá-lo no meio da estação. Só a Feira Mundial tinha a importância e o interesse dignos do carro dos nossos sonhos.

Mas faltava uma peça fundamental no quebra-cabeça: ainda não tínhamos o design. Durante os primeiros sete meses de 1962,

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nossos estilistas produziram nada menos que dezoito protótipos, na esperança de que um deles pudesse ser o carro que queríamos. Mui-tos desses modelos eram fantásticos, mas nenhum deles parecia ri-gorosamente correto.

Eu já estava ficando impaciente. Se o nosso carro tinha que fi-car pronto em abril de 1964, precisávamos imediatamente de um projeto. Tínhamos vinte e um meses para aprovar a idéia, chegar a um modelo final, decidir sobre a fábrica, comprar equipamento, ar-ranjar fontes de suprimento e combinar com as revendedoras a ven-da do produto final. Estávamos em pleno verão de 1962; para fazer o lançamento na Feira Mundial, era preciso estar com o protótipo aprovado no primeiro dia de setembro, sem falta.

O tempo corria, e então decidi organizar uma competição entre os nossos designers. No dia 27 de julho, Gene Bordinat, nosso dire-tor de estilo, chamou três dos seus melhores funcionários. Explicou que seus estúdios participariam de uma competição aberta, sem precedentes, projetando pelo menos um modelo do carro esporte pequeno que pretendíamos construir.

Os designers foram avisados de que os protótipos deveriam es-tar prontos a 16 de agosto, para serem examinados. Estávamos exi-gindo muito desses rapazes, pois, em condições normais, não se po-de projetar um carro tão depressa. Mas, depois de duas semanas de trabalho contra o relógio, havia sete modelos disponíveis, dentre os quais a cúpula poderia fazer sua escolha.

O vencedor indiscutível foi projetado por Dave Ash, assistente de Joe Oros, chefe de estúdio da Ford. Quando quase metade do protótipo estava pronto, Joe me convidou para dar uma olhada. Lo-go que o vi, uma coisa me chamou a atenção: embora estivesse no chão do estúdio, o protótipo parecia estar se movendo.

Como para eles o carro tinha a natureza de um felino, Joe e Dave começaram a chamá-lo de Cougar. O modelo que prepararam para a mostra do dia 15 era branco, com rodas vermelhas. O pára-choque traseiro do Cougar era virado para cima, formando uma pequena traseira arrebitada. A grade da frente trazia um pequeno puma estili-zado, dando ao modelo um toque de elegância e, ao mesmo tempo, de força. Logo depois da apresentação, o Cougar foi levado para os estúdios da Ford para estudos de viabilidade. Tínhamos finalmente uma proposta concreta sendo examinada. Mas ainda não tínhamos um carro. Para isso, precisávamos da aprovação da comissão de es-tilo — que era composta pelos altos executivos da empresa.

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Eu sabia que estava diante de uma batalha difícil quando co-mecei a tentar vender o Cougar. De saída, os executivos veteranos ainda não estavam convencidos, como nós, de que o mercado jo-vem era uma realidade. E como a lembrança do Edsel ainda estava viva em sua memória, mostravam-se cautelosos e reticentes quanto ao lançamento de mais um modelo novo. Para piorar a coisas, eles tinham se comprometido com a reorganização da linha regular dos produtos Ford para 1965, que acarretaria uma despesa enorme. De fato, era duvidoso que a empresa pudesse construir um outro carro — mesmo que esse modelo pudesse ser produzido por uma quantia relativamente pequena.

Arjay Miller, que logo se tornou o novo presidente, mandou fa-zer um estudo sobre a nossa proposta. Ele estava bastante otimista com relação às vendas, mas temia o canibalismo, isto é, que o su-cesso do novo carro pudesse acontecer em detrimento dos outros produtos da Ford, especialmente o Falcon. O estudo encomendado por ele estimou as vendas do Cougar em oitenta e seis mil unidades. Era um número respeitável, mas não suficiente para justificar a grande despesa envolvida no desenvolvimento de um novo modelo.

Felizmente, Henry Ford estava agora mais receptivo com rela-ção ao plano. Essa atitude contrastava muito com a reação dele quando expus a idéia pela primeira vez a uma comissão de executi-vos de alto nível. No meio do relato, Henry disse, de repente: "Vou embora", e saiu da sala. Nunca o tinha visto tão indiferente com rela-ção a uma idéia nova. Em casa, disse para Mary: "Meu projeto favo-rito levou um chute hoje. Henry saiu enquanto eu estava falando".

Fiquei mesmo arrasado. Mas, já no dia seguinte, soube que a saída abrupta de Henry nada tinha a ver com a minha exposição. Ele estava se sentindo mal e por isso foi para casa mais cedo — e passou as seis semanas seguintes de cama, com mononucleose. Quando voltou, estava com uma disposição muito melhor com rela-ção a tudo, inclusive aos planos do nosso novo carro.

Mais tarde, quando estávamos construindo o protótipo industri-al, Henry certo dia veio dar uma olhada. Entrou no carro e declarou: "Está um pouco apertado no banco traseiro. Acrescente mais uma polegada para esticar as pernas".

Infelizmente, acrescentar uma polegada que seja ao interior de um carro pode tornar-se uma proposta muito onerosa. Uma polega-da a mais também tem implicações com relação ao estilo, e todos nós fomos contrários à mudança. Mas também sabíamos que a deci-

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são de Henry não estava em discussão. Como ele gostava de nos lembrar, aquele edifício tinha o seu nome. Além disso, naquela altu-ra dos acontecimentos teríamos acrescentado mais dez polegadas, se isso fosse o fator decisivo entre fazer o carro e perdê-lo.

Henry talvez não soubesse na época — e, de fato, pode ser que até hoje não saiba —, mas ele também interferiu na escolha do no-me do novo carro. Antes de decidirmos chamá-lo de Mustang, teve muitos outros nomes. Nos estágios iniciais de planejamento, nós o chamamos de Special Falcon. Depois que o modelo Oros-Ash foi aceito, demos a ele o nome de Cougar. Henry queria chamá-lo de T. Bird II, mas ninguém, além dele, gostou desse nome.

Numa reunião de estratégia de produto realizada em maio, se-lecionamos uma lista de quatro opções: Monte Cario, Mônaco, To-rino e Cougar. Quando soubemos que os dois primeiros nomes já tinham sido registrados por outras empresas na Automobile Manu-factures Association, ficamos com Torino e Cougar. Finalmente es-colhemos Torino, que é o nome de uma cidade industrial da Itália. Torino também conservava o tempero levemente estrangeiro, que tanto nos tínhamos empenhado em captar. Como uma espécie de compromisso, decidimos manter o puma estilizado como emblema do Torino.

Quando estávamos preparando a campanha promocional para o Torino, recebi um telefonema do homem principal de relações pú-blicas, Charlie Moore. "Você tem que arranjar um outro nome para o seu carro", disse ele. Ele me explicou que Henry estava se divor-ciando e estava saindo com Cristina Vettore Austin, uma divorciada italiana do jet-set que ele tinha conhecido numa festa em Paris. Al-guns assessores de Henry achavam que dar um nome italiano ao novo carro poderia levar a uma publicidade desfavorável e a mexe-ricos e que poderia criar embaraços para o chefe.

Tínhamos que achar imediatamente outro nome. É sempre uma luta dar nome a um carro. É a parte mais difícil de dar certo. É mais fácil projetar portas e tetos do que acertar um nome, porque a esco-lha é inevitavelmente subjetiva. Algumas vezes, o processo pode ser muito emocional.

John Conley, que trabalhou para a J. Walter Thompson, nossa agência de publicidade, era um especialista em nomes. Antes, já havia pesquisado nomes de pássaros para o Thunderbird e para o Falcon. Dessa vez, nós o mandamos à Biblioteca Pública de Detroit para procurar nomes de animais. John veio com milhares de suges-

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tões, das quais escolhemos seis: Bronco, Puma, Cheetah, Colt, Mustang e Cougar.

Mustang era o nome de um dos protótipos do carro. Curiosa-mente, esse nome não se referia ao cavalo selvagem das pradarias do Oeste, mas ao legendário avião de combate da Segunda Guerra Mundial. Não tinha importância. Todos nós gostávamos do nome Mustang e, como disse a própria agência de publicidade, "é excitan-te como os espaços abertos e é americano toda vida".

Na biblioteca de minha casa, ainda tenho um molde em metal do emblema Cougar, que os designers me enviaram numa caixinha de nogueira, com uma inscrição: "Por favor, não fique indeciso. Dê-lhe o nome de Cougar". Não pude atender àquele pedido, mas usa-mos o nome Cougar poucos anos depois para um carro novo muito bonito, na divisão Lincoln-Mercury.

Logo que o Mustang foi lançado, as pessoas caçoavam, dizen-do que o emblema do cavalo na frente do carro estava virado para o lado errado, porque ele aparecia galopando na direção dos ponteiros do relógio, enquanto que nas pistas de corrida americanas, os cava-los correm no sentido anti-horário.

Minha resposta a isso sempre foi que o Mustang é um cavalo selvagem, não um corredor domesticado. E, seja como for, eu tinha cada vez mais certeza de que ele estava correndo no sentido certo.

Tomada a decisão quanto ao estilo, tínhamos que fazer o mes-

mo com relação ao interior do carro. Queríamos atender aos clientes que desejavam luxo, mas não pretendíamos deixar de lado as pesso-as que estavam mais interessadas no desempenho ou na economia. Ao mesmo tempo, não desejávamos produzir um carro completa-mente despojado. O Mustang já era considerado o Thunderbird dos pobres; seria sinal de pouco caso lançar um Mustang dos pobres. Decidimos que mesmo o modelo econômico deveria ser compará-vel às versões de luxo e de alto desempenho. Então, itens como bancos reclináveis, revestimento em vinil, rodas cobertas e carpete deveriam ser padronizados.

Além disso, tínhamos em mente uma espécie de carro faça-você-mesmo, que atrairia todos os segmentos do mercado. Se um cliente pudesse pagar o luxo, poderia comprar acessórios extras e maior po-tência. Se adorasse luxo mas não pudesse gastar com esses adicio-nais, também ficaria feliz, pois muitas opções pelas quais normalmente teria que pagar estavam disponíveis sem qualquer despesa extra.

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Muito antes do lançamento, começamos a fazer pesquisas de mercado. Um de nossos testes finais foi especialmente animador. Selecionamos um grupo de cinqüenta e dois casais da área de De-troit e os convidamos para visitar nosso showroom. Cada casal já tinha um carro de tamanho standard e todos pertenciam à faixa mé-dia de rendimentos, o que significava que não eram candidatos por excelência a um segundo carro. Nós os dividimos em pequenos grupos, fazendo-os entrar no estúdio de estilo para que vissem o protótipo do Mustang, e registramos as suas impressões em tape.

Verificamos que os white-collar se impressionaram com o esti-lo do carro, enquanto os operários (blue-collar) viram no Mustang um símbolo de status e de prestígio. Quando pedimos para estima-rem o preço do carro, quase todos chegaram a uma quantia que era pelo menos de mil dólares a mais do que o preço real. Quando lhes perguntamos se comprariam um Mustang, muitos disseram que não. Justificaram dizendo que o carro era muito caro, ou" muito peque-no, ou muito difícil de manejar.

Mas, quando dissemos o preço real do carro, aconteceu uma coisa engraçada. Muitos disseram: "Deixa pra lá as minhas obje-ções, eu quero esse carro!" De repente, as justificativas desaparece-ram. Vieram com uma série de razões para explicar que, afinal, se-ria uma boa ter o carro. Um sujeito disse: "Se eu estacionar esse carro na minha garagem, todos os meus vizinhos vão ficar se per-guntando onde foi que eu arranjei tanto dinheiro". Outra pessoa nos disse: "Não parece um carro comum — e, pelo preço que vocês es-tão pedindo, é um carro comum".

A lição era clara. Quando chegasse a hora de promover o Mus-tang, teríamos que nos empenhar em enfatizar o seu preço baixo.

Nossa decisão inicial era manter o preço do novo modelo abai-xo de dois mil e quinhentos dólares. Acabamos tendo um carro com uma polegada e meia a mais do que o projeto original — e também com cerca de cinqüenta quilos a mais. Mas conservamos a faixa de preço, e o Mustang foi vendido por 2.368 dólares.

Os bons ventos continuaram. Em janeiro de 1964, a apenas al-gumas semanas do lançamento, a situação econômica tornou-se surpreendentemente favorável. Soubemos mais tarde que o primeiro trimestre de 1964 marcou o nível mais alto de vendas de automó-veis da história. Além disso, o Congresso estava prestes a aprovar uma redução no imposto de renda e a renda disponível estava au-

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mentando. Em vista de todos esses fatores, o estado de espírito do país era de confiança e otimismo.

No dia 9 de março de 1964, 571 dias após o Cougar Oros-Ash

ter sido selecionado entre os seus seis rivais, o primeiro Mustang saiu da linha de montagem. Tínhamos decidido produzir no mínimo 8.160 carros antes do dia do lançamento — 17 de abril —, para que cada revendedor Ford do país tivesse pelo menos um Mustang em seu showroom quando o carro fosse lançado oficialmente.

Promovemos o Mustang de todas as formas possíveis. Convi-damos os editores de jornais universitários para virem a Dearborn e cedemos um Mustang a cada um, para que dirigisse por algumas semanas. Quatro dias antes do lançamento oficial do carro, cem membros da imprensa participaram de um rally gigante, de setenta Mustangs, de New York a Dearborn, e os carros provaram sua se-gurança percorrendo 1.120 quilômetros sem apresentarem qualquer problema. A imprensa registrou o seu entusiasmo com uma torrente volumosa e lírica de palavras e fotografias, que apareceram em des-taque em centenas de jornais e revistas.

No dia 17 de abril, todas as revendedoras Ford estavam cheias de clientes. Em Chicago, um revendedor teve que trancar as portas, porque a multidão lá fora era grande demais. Um revendedor de Pittsburgh contou que os clientes invadiram sua firma, a ponto de ele não poder tirar o Mustang da área de lavagem. Em Detroit, ou-tro revendedor relatou que tantas pessoas chegaram em carros es-porte para ver o Mustang, que o seu estacionamento ficou parecen-do um rally de carros estrangeiros.

Em Garland, Texas, um revendedor da Ford tinha quinze clien-tes em potencial disputando o único Mustang da sua vitrina. Ele o vendeu para quem fez a melhor oferta — um homem que insistiu em passar a noite dentro do carro, para que ninguém mais pudesse comprá-lo enquanto o seu cheque estivesse sendo compensado. Em uma revendedora de Seattle, o motorista de um caminhão de cimen-to que estava passando ficou tão fascinado pelo Mustang da vitrina que perdeu o controle da direção e bateu de encontro ao vidro do showroom.

O Mustang estava destinado a ser um sucesso incrível. No pri-meiro fim de semana depois da abertura de suas vendas, uma multi-dão sem precedentes, de quatro milhões de pessoas, visitou as re-

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vendedoras Ford. A receptividade do público excedeu nossas ex-pectativas mais otimistas.

A imprensa teve um papel importante na produção desse entu-siasmo. Graças ao incansável trabalho de relações públicas de Wal-ter Murphy, o Mustang foi apresentado simultaneamente na capa da Time e da Newsweek. Foi um lance publicitário espantoso para um novo projeto comercial. As duas revistas entenderam que estávamos de posse de um vencedor, e sua publicidade adicional na semana do lançamento do Mustang contribuiu para que sua própria previsão se cumprisse como uma profecia. Estou convencido de que só a Time e a Newsweek contribuíram para a venda de 100.000 carros.

Os dois artigos de capa tiveram o efeito de dois comerciais gi-gantescos. Depois de dizer aos leitores que meu nome "rima com try-a-Coke-ah", a Time afirmou que "Iacocca produziu muito mais do que só outro carro novo. Com seu capô longo e traseira curta, sua vocação de Ferrari e sua enorme grade de ventilação do motor, o Mustang assemelha-se aos carros de corrida europeus que tanto atraem os aficcionados americanos de carros esporte. Além disso, Iacocca fez o projeto Mustang tão flexível, seu preço tão razoável e suas opções tão numerosas, que seu apelo potencial atinge cerca de dois terços de todos os compradores de carros americanos. Com um preço baixo — 2.368 dólares — e capaz de acomodar uma família pequena em seus quatro bancos, o Mustang parece destinado a ser uma espécie de Modelo A dos carros esporte — tanto para o povo quanto para os aficcionados". Eu não teria dito melhor.

A imprensa automobilística não ficou menos entusiasmada. "Um mercado que estava procurando um carro já o encontrou", as-sim começava a matéria de Car Life. Mesmo o Consumer Reports, que em geral não era grande fã de Detroit, apontou, no Mustang, "a ausência quase completa de imperfeições nos encaixes e de defeitos de acabamento, em um carro construído às pressas".

Mas não era nossa intenção deixar as revistas substituir-nos na tarefa da publicidade do Mustang. No dia do lançamento, coloca-mos anúncios de página inteira em 2.600 jornais. Usamos o que chamávamos de abordagem Mona Lisa: um contorno simples do carro em branco, colocando o preço ao lado de uma chamada sim-ples: "O Inesperado". Quando o produto é bom, você não precisa ser um grande propagandista.

Também enchemos as redes de televisão com os comerciais do Mustang. J. Walter Thompson produziu uma série completa de a-

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núncios usando um tema de Walter Mitty, baseado no personagem de James Thurber, que sonhava ser piloto de corrida ou piloto de avião a jato. Em um desses anúncios, Henry Foster, um antiquário austero e conservador, sai da sua loja carregando uma lancheira. "Você ouviu falar em Henry Foster?", pergunta a mulher da loja ao lado. Henry caminha até a esquina e entra no seu Mustang verme-lho. Joga fora sua cartola e a substitui por um chapéu esporte de tweed, que tirou da bolsa. Tira o casaco, e por baixo se revela um colete vermelho-vivo. Finalmente, ele troca os óculos antiquados por óculos de corrida.

"Alguma coisa aconteceu a Henry", prossegue a voz da mulher. "Um Mustang aconteceu a Henry", anuncia outra mulher. Ela é

jovem, atraente e está esperando por Henry numa campina verde, com uma cesta de piquenique e uma garrafa de vinho.

Também recorremos a programas intensivos de promoção na-cional. Expusemos Mustangs nos quinze aeroportos mais movimen-tados do país e nos corredores de duzentos Holiday Inns, de costa a costa. Nos jogos de futebol da Universidade de Michigan, alugamos grandes áreas do estacionamento e colocamos anúncios enormes que diziam: "Curral do Mustang". Fizemos inúmeras malas-diretas e enviamos milhões de prospectos a proprietários de carros peque-nos de todo o país.

Algumas semanas depois, ficou claro para mim que precisáva-

mos viabilizar uma segunda unidade de fabricação para o carro. A hipótese inicial tinha sido a de que o Mustang venderia setenta e cinco mil unidades durante o primeiro ano. Mas as projeções conti-nuavam aumentando e, antes mesmo do lançamento do carro, pre-vimos uma venda de duzentas mil unidades. Para construir uma quantidade tão grande de carros, tivemos que convencer a cúpula administrativa a utilizar mais uma fábrica, em San José, na Califór-nia, na produção de Mustangs.

Como tínhamos um pequeno estoque de carros era difícil saber quantos, de fato, poderíamos vender. Assim, poucas semanas de-pois do lançamento, Frank Zimmerman organizou uma experiência em Dayton, Ohio, conhecida como uma cidade da GM, porque esta empresa tinha várias fábricas na área.

Reuniu-se com os revendedores Ford de Dayton e lhes disse: "Aqui vocês têm um mercado duro, competitivo, e o Mustang é um carro quente. Queremos ver se ele é quente de verdade; para isso

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vamos dar a cada um de vocês dez carros para colocar em estoque e atenderemos aos seus pedidos assim que nos forem enviados".

Os resultados foram surpreendentes. Ocupamos aproximada-mente dez por cento de todo o mercado de carros em Dayton. Era a munição de que precisávamos; em setembro, estávamos começando a utilizar a fábrica de San José na produção de Mustangs.

Nossa capacidade anual era então de 360.000 carros, e logo es-távamos organizando uma terceira fábrica, em Metuchen, Newjer-sey. Essas duas fábricas adicionais representaram um grande risco, mas tínhamos queimado o Falcon justamente por fazermos estima-tivas muito baixas e não termos, então, a capacidade de produzir to-dos os carros necessários. Não podíamos cometer o mesmo erro du-as vezes.

As vendas do Mustang atingiram cifras impressionantes. As opções e acessórios seguiam o mesmo ritmo. Nossos clientes se ati-ravam à longa lista de opções como os lenhadores famintos se ati-ram ao smorgasbord. Quase 80 por cento queriam pneus faixa-branca, 80 por cento queriam rádios, 71 por cento encomendavam motores de oito cilindros e 50 por cento, transmissão automática. Em cada dez Mustangs, um era vendido com tacômetro e um reló-gio que incluía um "Conjunto de Rally" especial. Para um carro que custava 2.368 dólares, nossos clientes gastavam uma média de 1.000 dólares justamente nas opções!

Eu tinha em mente uma meta para o primeiro ano. O Falcon ti-nha vendido, no primeiro ano, um número recorde de 417.174 car-ros, e eu pretendia superar essa marca. Tínhamos um lema: "417 em 4/17 — o aniversário do Mustang. No final da tarde do dia 16 de abril, um jovem californiano comprou um Mustang conversível vermelho. Era o Mustang de número 418.812: e estávamos termi-nando o nosso primeiro ano com um novo recorde.

Os contadores de tostões voltaram a seu redutos resmungando que, evidentemente, havia mais de um modo de construir um carro. O estilo fez o Mustang, e com isso eles não contaram. Mas na hora de contar dinheiro, não ficaram com vergonha. Só nos primeiros dois anos o Mustang gerou um lucro líquido de 1,1 bilhão de dóla-res. E isso em dólares de 1964! Prato típico sueco. (N. do T.) Dia 17 de abril. (N. do T.)

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Algumas semanas depois do lançamento do Mustang, estáva-mos submersos em cartas de clientes satisfeitos. Sempre leio a cor-respondência dos clientes, por isso sei bem que a maioria das pes-soas só escreve ao fabricante quando há algum problema. No caso do Mustang, entretanto, as pessoas escreviam para expressar a sua gratidão e o seu entusiasmo. A única queixa que recebi referia-se à falta de Mustangs e à longa lista de espera.

Uma de minhas cartas favoritas veio de um morador do Broo-klyn e chegou quatro dias depois do lançamento do carro. "Não me interesso muito por carros", escrevia ele, "e tem sido assim desde que, em sua maioria, os carros começaram a se tornar luxuosos. A-lém disso, New York não é lugar para se ter carro. O pessoal deixa os cachorros urinarem nas rodas. Os moleques roubam as calotas. Os guardas de trânsito nos multam. Os pombos, na melhor das hi-póteses, se empoleiram no carro. Sempre há confusão nas ruas. Os ônibus nos esmagam, os táxis nos abalroam, e o preço dos estacio-namentos exige uma segunda hipoteca da casa. O combustível custa trinta por cento mais do que em qualquer outro lugar. O preço do seguro é altíssimo. O distrito industrial é intransponível, a área de Wall Street, impenetrável, ir a New Jersey é impossível".

E aqui está como ele termina: "Portanto, logo que eu conseguir levantar a grana, vou comprar um Mustang".

Examinando os dados dos proprietários de Mustang, verifica-mos que sua idade média era de trinta e um anos, mas um em cada seis tinha entre quarenta e cinco e cinqüenta e quatro anos, o que significava que o carro não se restringia aos jovens. Quase dois ter-ços dos compradores eram casados e mais da metade havia freqüen-tado a universidade.

Antes do fim do primeiro ano, existiam centenas de clubes de Mustang, além de óculos de sol Mustang, chaveiros, chapéus e Mustangs de brinquedo para crianças. Tive certeza de que tínhamos vencido quando alguém viu um anúncio na vitrina de uma padaria: "Nossos pães quentes estão vendendo como Mustangs"

Seria fácil dedicar o resto deste livro às histórias do Mustang,

mas quero contar só mais uma. Durante uma de minhas cinqüenta e duas viagens pela Europa,

eu estava dormindo, no avião da empresa, um domingo de manhã, sobre a rota dos icebergs — onde o Titanic afundou. Abaixo de nós havia um navio meteorológico cujo telegrafista, pobre alma aban-

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donada, mandava mensagens sobre o tempo para os aviões. Quando nossos rapazes sobrevoaram o navio, enviaram uma mensagem: "Como vão as coisas?"

"Não consigo ficar em pé", respondeu o homem do tempo. "Es-tá um dia péssimo, e as ondas estão com quase 4 metros de altura."

Conversaram, e então o rapaz descobriu quem nós éramos. "Eu tenho um Mustang", disse ele imediatamente. "Vocês estão com Ia-cocca a bordo?"

Enquanto eles tagarelavam, um avião da KLM cruzou o nosso caminho, e seu piloto disse: "Segure-o. Esse é o avião da Ford com Iacocca? Eu gostaria de falar com ele".

Nesse momento, justamente, um avião da Pan Am entrou no espaço aéreo e sua tripulação entrou na conversa.

Tudo isso aconteceu enquanto eu estava dormindo. Nosso pilo-to entrou e me disse: "O senhor está sendo chamado ao telefone. Um barco e dois aviões estão querendo falar com o senhor".

Eu disse: "Ninguém respeita mais nada? É domingo de manhã, estou no meio de lugar nenhum, e não consigo me livrar dessa ma-nia de Mustang?"

Em geral, sou considerado o pai do Mustang, embora, como

sempre acontece com o sucesso, muita gente tenha desejado levar o crédito. Alguém que procurasse em Dearborn pelas pessoas ligadas ao Edsel seria como o velho Diógenes procurando, com sua lanter-na, por um homem honesto. Por outro lado, foram tantas as pessoas que reivindicaram o rótulo de pai, que eu não gostaria de ser visto em público como a mãe do Mustang.

Dizem que todas as coisas boas têm fim, e o Mustang não foi exceção. Em 1968, na reunião anual da Ford, uma de nossas acio-nistas pediu a palavra para fazer uma queixa: "Quando o Thunder-bird foi lançado, era um lindo carro esporte. Então vocês o incha-ram tanto, que ele perdeu a identidade. Está acontecendo a mesma coisa com o Mustang. Por que vocês não podem deixar um carro pequeno continuar sendo pequeno? Vocês vão aumentando o carro, e depois lançam outro carro pequeno, e começa tudo outra vez".

Infelizmente ela estava com a razão. Poucos anos depois de seu lançamento, o Mustang já não era um cavalo lustroso. Parecia mais um porco gordo. Em 1968, Bunkie Knudsen assumiu a presidência da Ford. Imediatamente, acrescentou ao Mustang um motor mons-truoso, com o dobro da potência. Para sustentar esse motor, ele teve

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que aumentar o carro todo. Em 1971, o Mustang tinha crescido vin-te centímetros de comprimento, quinze de largura e estava com quase 300 quilos a mais do que o original de 1965.

Não era mais o mesmo carro, e o declínio das vendas mostrava isso claramente. Em 1966, vendemos 550.000 Mustangs. Por volta de 1970, as vendas caíram vertiginosamente para 150.000 — um declínio desastroso. Nossos clientes nos abandonaram, porque tí-nhamos abandonado o seu carro. Ao invés do preço original de 2.368 dólares, o Mustang estava agora custando cerca de 3.368 dó-lares, e esse aumento não poderia ser atribuído só à inflação.

No final de 1969, começamos a planejar o Mustang II, uma volta ao carro pequeno que tinha feito tanto sucesso. Muita gente em Detroit não acreditaria que estivéssemos fazendo isso, pois es-távamos violando uma regra não-escrita de que um carro firmado no mercado só pode tornar-se maior — nunca menor. Lançar um Mustang menor equivalia a admitir que tínhamos errado.

E tínhamos errado mesmo. Para planejar o Mustang II, voltei a apelar para Hal Sperlich, que tivera um papel fundamental na cria-ção do Mustang original. Hal e eu fomos à Itália para visitar os es-túdios da Ghia, em Turim, onde nos encontramos com Alejandro de Tomaso, chefe do estúdio.

Em dois meses, o protótipo de Tomaso chegou a Dearborn, e tínhamos um projeto fantástico.

O Mustang II fez muito sucesso, embora não tanto quanto o o-riginal. Mas sabíamos muito bem que o que tínhamos conseguido não era fácil.

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VII BIG BOY!

sucesso do Mustang tornou-se evi-dente tão depressa, que antes do seu primeiro aniversário obtive uma promoção muito importante. Em janeiro de 1965, tornei-me vice-presidente do grupo de automóveis e caminhões da empresa. Tinha a meu encargo o planejamento, a produção e o marketing de todos os carros e caminhões, nas divisões Ford e Lincoln-Mercury.

Meu novo escritório passou a ser na Casa de Vidro, que era como todos chamavam a matriz. Finalmente eu era um dos big boys, fazia parte daquele grupo seleto de funcionários que almoça-vam todo dia com Henry Ford. Até então, para mim, Henry tinha sido apenas o chefe supremo. De repente, passei a vê-lo quase todos os dias. Não só eu fazia parte da atmosfera rarefeita da cúpula ad-ministrativa, como também era o novo garoto da turma, o recém-chegado responsável pelo Mustang.

Além de tudo, eu era o protegido de Sua Majestade. Depois que McNamara saiu, em 1960, para participar da administração Kennedy, Henry, de certa forma, tinha me adotado, e desde o início acompanhava tudo o que eu fazia.

Como vice-presidente do grupo, eu tinha algumas funções e responsabilidades, principalmente na área de propaganda e promo-

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ção. Mas a minha atribuição principal, como Henry deixou claro, era "espalhar um pouco daquele bálsamo do Mustang na Divisão Lincoln-Mercury".

Durante anos, a Lincoln-Mercury fora a prima pobre da família Ford e um peso para o resto da empresa. A divisão existia desde os anos 40, mas vinte anos depois ainda não tinha encontrado seu pró-prio caminho. Falava-se até mesmo em desistir do Lincoln e vender aquela parte da empresa.

Essa divisão projetava carros caros e de alta classe. A esperan-ça e a expectativa da empresa eram que o cliente que adquirisse um produto da Divisão Ford pudesse acabar "avançando" para um Mer-cury ou para um Lincoln, assim como um cliente da General Mo-tors passaria de um Chevrolet ou de um Pontiac para um Buick ou para um Oldsmobile.

Isto só funcionava na teoria. Na prática, muita gente que tinha carro da Ford acabava pulando fora do barco. Quem tinha condi-ções para trocar de carro preferia comprar um Buick, um Oldsmobi-le ou um Cadillac, ao invés de um Mercury ou um Lincoln. O que fazíamos era criar futuros consumidores dos carros de luxo da GM.

Examinando de perto a Divisão Lincoln-Mercury, compreendi por quê. Os carros simplesmente não despertavam entusiasmo. Não é que não fossem bons; mas eles não tinham identidade própria. O Comet, por exemplo, na verdade era apenas um Falcon extravagan-te, e o Mercury parecia um Ford enorme. O que faltava aos carros Lincoln-Mercury era estilo e identidade.

Ao longo dos anos, as vendas foram se reduzindo cada vez mais. Supunha-se que o Lincoln deveria competir com o Cadillac, mas as vendas do Cadillac superavam as do Lincoln com uma mar-gem de cinco por um. O Mercury teve o mesmo destino e não con-seguia ser páreo para a dupla da GM: o Buick e o Oldsmobile. Em 1965, a Divisão Lincoln-Mercury estava virtualmente morta e tendo que ressuscitar com toda urgência.

Seria fácil, mas totalmente injusto, pôr a culpa nos revendedo-res. Na verdade, os revendedores que conseguiram sobreviver até 1965 tinham que ser bons, já que não contavam com um produto de primeira ordem. Além disso, estavam com o moral baixo. Precisa-vam de motivação e de uma nova equipe de gerentes distritais de vendas. E precisavam de alguém na Casa de Vidro que realmente cuidasse dos interesses deles.

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Mas, antes de mais nada, eles necessitavam de novos produtos. Começamos imediatamente a trabalhar e, por volta de 1967, tínha-mos prontos dois lançamentos. O Mercury Cougar era um carro es-porte luxuoso, destinado ao motorista do Mustang que estivesse querendo um carro um pouco mais vistoso. O Mercury Marquis era um carro luxuoso, de tamanho grande, destinado a competir com o Buick e o Oldsmobile.

Era sintomático o fato de Gar Laux, chefe da Divisão Lincoln-Mercury, não querer que o Marquis levasse o nome Mercury. Para ele, o nome Mercury era o beijo da morte, que poderia afundar até mesmo um ótimo carro. Tive que convencê-lo de que, lançando o Marquis, iríamos recuperar a imagem da Lincoln-Mercury.

Para criar um clima de entusiasmo com relação a esses dois carros, era importante apresentá-los aos revendedores da maneira mais fantástica possível. Até há cerca de dez anos, o lançamento anual dos modelos de carros novos de Detroit era um evento muito importante, tanto para os revendedores quanto para o público. Perto da data de lançamento, os revendedores mantinham os seus carros novos cobertos de lona. Por todos os lados, as crianças espreitavam pelas vitrinas na esperança de conseguir ver os Fords ou Chevrolets novos, antes que todo mundo. Hoje, este ritual é apenas uma lem-brança agradável.

Também vão longe os grandes shows para revendedores, que organizávamos anualmente em Las Vegas. Todos os verões, pro-movíamos um grande jantar e gastávamos milhões num show fan-tástico, onde lançávamos os modelos novos. Havia carros saindo de fontes, garotas saindo dos carros, montes de bombas de fumaça e luzes estroboscópicas e todos os tipos de exibições ofuscantes. Es-ses espetáculos às vezes eram melhores do que os da Broadway, mas aqui as estrelas eram os carros.

Sempre promovíamos programas de incentivo ao revendedor. Naquela época, as Três Grandes estavam nadando em dinheiro. Tu-do o que fazíamos era de primeira classe. Quando se tratava de im-pressionar os revendedores, o céu era o limite. Muitos deles esta-vam ganhando 1 milhão de dólares por ano e mesmo os que não e-ram muito bons estavam indo bem.

Durante os anos 60, promovíamos muitas viagens de incentivo e gratificação para os revendedores. Não importava que eles fossem ricos ou não: uma viagem bem planejada a algum lugar exótico era irrecusável. Essas viagens eram sempre um grande sucesso e muitos

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revendedores se tornaram amigos; isto levantava o seu moral e de-senvolvia neles um sentimento intenso de determinação e de união.

Às vezes eu viajava com eles, como anfitrião oficial. Para mim, as viagens eram uma oportunidade perfeita de entrar em contato com muitos revendedores em pouco tempo. Também eram a forma ideal de combinar trabalho com lazer, e Mary e eu sempre nos divertíamos.

Em setembro de 1966, a Lincoln-Mercury promoveu um cru-zeiro espetacular para os revendedores que tivessem atingido uma certa cota de vendas. Alugamos o S. S. Independence por 44.000 dólares ao dia e navegamos de New York ao Caribe, onde planejá-vamos mostrar os nossos modelos novos. Ao entardecer do segundo dia, reunimos todos os revendedores na popa do navio. Num deter-minado momento, soltamos centenas de balões, que subiram em di-reção ao céu e deixaram à mostra o Marquis Mercury 1967. Junta-mente com Matt McLaughlin, que se tornara chefe da divisão, apre-sentei o carro e descrevi suas características.

Duas noites depois, na ilha de São Tomás, mostramos o novo Cougar. Numa praia toda iluminada por archotes brilhantes, um bar-co de desembarque da Segunda Guerra Mundial encostou na praia e baixou a rampa. A platéia ficou boquiaberta quando desceu um bri-lhante Cougar branco. A porta se abriu e apareceu o cantor Vic Da-mone, que começou o show. Eu já havia visto muitos lançamentos belíssimos para os revendedores, mas aquele superou todos os outros.

Os revendedores passaram muito tempo sem nada que os entu-siasmasse. Ficaram loucos pelo Cougar. A exemplo do Mustang, o Cougar tinha uma aparência esportiva, com o capô comprido e a traseira curta. Confirmando as expectativas dos revendedores, teve sucesso imediato e logo se transformou no destaque da Divisão Lincoln-Mercury. Hoje, um Cougar 1967 em boas condições é uma peça de colecionador.

Esses lançamentos espetaculares devem-se em grande parte a Frank Zimmerman, nosso gênio da promoção. Zimmie, que agora está aposentado e mora na Carolina do Sul, é uma personalidade i-nesquecível — magro como um caniço, dotado de energia inesgo-tável e muito divertido.

Trabalhar com Zimmie era um prazer, mas também um desafio especial, porque ele costumava ter uma idéia nova a cada cinco mi-nutos. Cerca de dez por cento de suas idéias eram esplêndidas, mas algumas beiravam o absurdo.

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Para promover o Cougar, por exemplo, Zimmie queria colocar um urso amestrado para dirigir o carro de New York até a Califór-nia. Sua idéia era que um treinador se sentasse na frente, ao lado do urso. Outro plano era colocar um anão agachado no chão do carro, usando equipamento especial para dirigir. O carro faria inúmeras paradas por dia, para que o público se juntasse em volta dele e a imprensa pudesse tirar fotos. "Pense nas manchetes", dizia Zimmie. "Urso dirige Cougar de costa a costa!"

Adoro idéias audaciosas, mas até para mim aquela era extrava-gante demais. Alguns anos depois, Henry Ford recebeu uma carta de um sujeito que dizia ter treinado seu cavalo para dirigir um Lin-coln Continental. O cavalo até tocava a buzina, com o nariz! Henry passou a carta para mim, e eu a passei para Zimmie. Ainda bem que foi a última vez que ouvi falar nesse cavalo!

Nós realmente usamos um animal vivo para promover o Cougar. Por sugestão da Kenyon & Eckhardt, a agência de publicidade da Lincoln-Mercury, tentamos o óbvio — um puma verdadeiro. O escri-tório da agência, situado em New York, ficou encarregado da terrível responsabilidade de encontrar um puma treinado e de filmá-lo em cima do emblema da Lincoln-Mercury. Não era uma tarefa fácil, mas cerca de um mês depois já tínhamos alguns segundos preciosos de filme que mostrava um puma rugindo em cima do logotipo. A Divi-são Ford tivera êxito com um cavalo selvagem. Agora, a Lincoln-Mercury veria o que um gato selvagem era capaz de fazer.

O puma se firmou de tal forma como símbolo, que a agência de publicidade recomendou que usássemos "o símbolo do gato" para representar toda a divisão. Nós o fizemos, e isso representou um passo fundamental para a criação de uma nova identidade para a Lincoln-Mercury. Em pouco tempo, a figura do puma encarapitado em cima do emblema tornou-se quase tão conhecida quanto o sím-bolo oval da Ford e a estrela de cinco pontas da Chrysler.

Quando você está tentando promover uma marca, sua primeira tarefa é deixar claro onde a marca pode ser encontrada. É por isso que o arco da McDonald's é tão eficaz. Até uma criança pequena sabe onde deve ir para comprar hambúrguer.

Antes de o puma aparecer nos emblemas, muita gente nunca ti-nha ouvido falar da Lincoln-Mercury. Hoje quase todo mundo sabe o que é.

Enquanto isso, Zimmie continuava a expor suas idéias de pro-moção. Em certa ocasião, ele revirou o país em busca de pessoas

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que tivessem nomes de exploradores famosos, como Cristóvão Co-lombo ou Almirante Byrd. Quando as encontrou, contratou-as para aparecerem em nossos anúncios, que diriam, por exemplo, "Cristó-vão Colombo acaba de descobrir o novo Mercury".

A Kenyon & Eckhardt fez um ótimo trabalho de promoção do Cougar, No caso do Marquis, todos nós definimos que o ponto forte das vendas era a maciez com que ele rodava. O Marquis tinha atin-gido um nível inédito em termos de engenharia de suspensão; o re-sultado era a maior suavidade do mundo, em termos de transporte automobilístico.

Mas como passar isso para o público ? Nossos engenheiros dis-seram ao pessoal da publicidade que o Marquis rodava mais macio que os carros mais caros da concorrência. A resposta foi: "Pro-vem!". Os engenheiros convidaram um grupo de pessoas da agência para virem à nossa pista de provas, vendaram os seus olhos e as fi-zeram andar em Oldsmobiles, Buicks, Cadillacs e Marquis. Com uma única exceção, todos apontaram o Marquis como tendo a me-lhor suspensão.

O teste da venda nos olhos acabou tendo muita importância na campanha publicitária. A Kenyon & Eckhardt fez muitos comerci-ais utilizando consumidores de olhos vendados — em um dos casos utilizou motoristas —, a quem pediu para classificar os carros quan-to à maciez e ausência de barulho.

Logo depois, a agência lançou outros comerciais que também focalizavam muito bem esse aspecto. Em um dos anúncios, aparecia um recipiente com ácido corrosivo pendurado sobre um casaco de pele caríssimo. Em outro, no banco da frente aparecia uma vitrola com um disco tocando. Num terceiro, um barbeiro fazia a barba de Bart Starr, jogador de futebol. Em outro ainda, mostrava-se um re-cipiente de nitroglicerina no banco de trás. Para mostrar que era de verdade, no fim desse comercial explodimos o carro!

No comercial mais famoso, a agência filmou um lapidador de diamantes holandês em pleno trabalho enquanto o carro fazia cur-vas numa estrada toda esburacada. Aqueles que são muito jovens para se lembrar desse anúncio talvez tenham visto uma clássica pa-ródia dele, que apareceu alguns anos mais tarde no Saturday Night Live. Nessa versão, o cortador de diamantes foi substituído por um rabino prestes a fazer uma circuncisão ritual num menino, enquanto o carro seguia, debaixo da chuva, por estradas rurais em péssimas

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condições. Acreditem, o suspense do anúncio do lapidador de dia-mantes não era nada, comparado a este.

Com o Marquis e o Cougar, a linha Mercury estava agora em

muito boa forma. Mas ainda não tínhamos nada especial para a ca-mada mais alta do mercado. Precisávamos de um novo Lincoln que pudesse realmente derrotar o Cadillac.

Uma noite, eu estava deitado num quarto de hotel, no Canadá, onde me encontrava para participar de uma reunião. Não conseguia dormir, e de repente tive uma idéia. Telefonei para Gene Bordinat, nosso estilista-chefe. "Quero colocar uma grade de Rolls-Royce na frente de um Thunderbird", eu lhe disse.

Na época, tínhamos o Thunderbird quatro portas, que estava morrendo no mercado. Meu plano era criar um novo carro que u-sasse o mesmo chassi, o mesmo motor e até o mesmo teto, mas com mudanças suficientes para que o carro parecesse realmente novo e não apenas um subproduto do T-Bird.

Enquanto eu estava tentando imaginar esse novo carro de luxo, lembrei-me de um bom precedente. Alguns anos antes, no final dos anos 30, Edsel Ford produzira o Mark, um carro de luxo, silencioso e macio, destinado a um público pequeno e exigente. Em meados dos anos 50, seu filho, William Clay, construiu o Mark II, um deri-vado do Mark original. Os dois carros, clássicos, eram o Rolls-Royce dos automóveis americanos. Eram o tipo de carro com que muita gente sonhava, mas que apenas um público pequeno e seleto podia adquirir.

Decidi que era hora de revivermos a linha Mark criando o Mark III, baseados no nosso Thunderbird, mas com mudanças suficientes para fazer dele um carro novo e diferente. O Mark III tinha um capô muito comprido, uma traseira curta, um possante motor V-8 e um pneu sobressalente continental na traseira, como nos Marks originais. O carro era grande, produzia impacto e tinha identidade própria.

Tive sentimentos contraditórios quando um repórter o compa-rou a um carro alemão de oficiais da Segunda Guerra Mundial.

Lançamos o Mark III em abril de 1968, e já no primeiro ano ele ultrapassou em vendas o Cadillac Eldorado, o que tínhamos estabe-lecido como meta a longo prazo. Nos cinco anos seguintes, tivemos um período de sucesso, em parte pelo fato de o carro ter saído mui-to barato. Fizemos tudo por 30 milhões de dólares, uma pechincha, porque pudemos usar partes de projetos já existentes.

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Nosso plano inicial era lançar o Mark III na Cartier, a famosa joalheria da Quinta Avenida, em Manhattan. Os gerentes da Cartier ficaram muito interessados e Walter Murphy foi para New York conversar com eles. Queríamos enfatizar a elegância e o bom gosto do carro convidando a imprensa para um jantar na loja à meia-noite. Quanto mais tarde, melhor. Mas, quando Walter explicou que terí-amos que derrubar algumas paredes e aumentar uma janela ou duas para que o carro coubesse, os gerentes da Cartier voltaram atrás. (Mas concordaram em nos deixar usar o nome deles no relógio do Mark III.)

Então, lançamos o carro Mark III em várias cidades. Em Hol-lywood, nós o colocamos num palco, no cenário do filme Camelot; as pessoas tinham que subir os degraus como se estivessem pres-tando homenagem a um rei. Em Detroit, lançamos o carro num jan-tar dos editores de jornais americanos. Ao invés de colocar o carro numa mesa giratória, que seria a forma normal de apresentar um modelo novo, colocamos os editores numa mesa giratória. À medi-da que o seu ângulo de visão mudava, eles viam uma série de Lin-colns e Marks históricos. Afinal, abriram-se as cortinas e apareceu o Mark III. Os editores ficaram tão impressionados que muitos en-comendaram um carro imediatamente.

Antes do Mark III, a Divisão Lincoln-Mercury estava perdendo dinheiro com cada carro de luxo. Estávamos vendendo apenas cerca de dezoito mil Lincolns por ano, o que não era suficiente para a-mortizar os custos fixos. Em nosso negócio, esses custos são enor-mes. Quer você produza um carro ou um milhão, é preciso ter uma fábrica e desenvolver as matrizes para moldar o metal. Se as suas projeções estiverem erradas e você não alcançar seu objetivo, terá que pagar essas despesas fixas em cima de um número menor de carros. Em resumo: você perde tudo.

O velho clichê certamente é verdadeiro: carros maiores real-mente significam lucros maiores. Na venda de um Mark, ganháva-mos tanto quanto na de dez Falcons. Nosso lucro chegava à quantia surpreendente de 2.000 dólares por automóvel. Além disso, o di-nheiro começou a entrar tão depressa, que mal conseguíamos con-trolá-lo. Em nosso melhor ano, fizemos quase um bilhão de dólares só na Divisão Lincoln: foi o maior sucesso da minha carreira.

Continuamos com o Mark IV em 1971. A Ford ainda continua a série — estão atualmente com o Mark VIL O Mark é o carro mais rendoso da Ford, assim como o Cadillac é o mais rendoso da Gene-

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ral Motors. É a teoria de Alfred Sloan: você precisa ter o que ofere-cer para todos. Para cobrir todas as suas apostas, você sempre preci-sa de um carro para os pobres — e isso o primeiro Henry Ford já pressentia —, mas também precisa de carros de classe alta, já que nunca se pode saber quando o operário vai ser demitido. Parece que a única coisa com que se pode contar nos Estados Unidos é que, mesmo durante uma depressão, os ricos ficam mais ricos. Então, é sempre necessário ter coisas para eles comprarem.

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II A CAMINHO DO

SUCESSO

or volta de 1968, eu era o grande favorito para ser o próximo presidente da Ford Motor Company. O Mustang havia demonstrado que eu merecia atenção. O Mark III deixara claro que não era fogo de palha. Eu tinha quarenta e quatro anos, era protegido de Henry Ford — e nunca o meu futuro tinha se apresentado tão próspero.

Mas quando parecia que nada conseguiria me segurar, o desti-no interferiu. A General Motors deu a Henry uma oportunidade que ele não podia perder.

Naquela época, a GM tinha um vice-presidente executivo alta-mente respeitado, chamado Semon Knudsen, conhecido por "Bun-kie". Knudsen era engenheiro formado pelo MIT e havia assumido o cargo de diretor da Divisão Pontiac aos quarenta e quatro anos. Era, então, o diretor de divisão mais jovem da história da GM — o tipo de distinção que é decisivamente levada em conta em Detroit.

Uma das razões da notabilidade de Knudsen é que seu pai tinha sido presidente da GM. Muita gente esperava que Bunkie seguisse os passos do velho Knudsen. Mas quando a GM, apesar da boa re-putação de Bunkie como homem de produto, escolheu Ed Cole para

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presidente, Bunkie logo entendeu que sua carreira na GM tinha chegado ao fim.

Assim como a Avis vigia a Hertz e a Macy's vigia a Gimble's, nós da Ford sempre vigiamos a GM de muito perto. Henry, em par-ticular, era um grande observador e admirador da GM. Para ele, a disponibilidade de Bunkie Knudsen era um presente do céu. Talvez Henry acreditasse que a célebre competência de Knudsen na GM era genética. De qualquer forma, não perdeu tempo para iniciar uma aproximação. Quando Henry ficou sabendo que Bunkie estava pen-sando em renunciar, chamou-o imediatamente.

Henry não tinha muito jeito de convidar Bunkie para ir a seu escritório, porque na Casa de Vidro não há segredos. Em meia hora, a imprensa ficaria sabendo tudo sobre a visita. E também desistiu de convidar Bunkie para ir à sua casa quando se deu conta de que os vizinhos de Grosse Pointe poderiam ver. Mas Henry adorava a-venturas, e então alugou um Oldsmobile na Hertz, pôs uma capa e, no melhor estilo 007, foi à casa de Bunkie, em Bloomfield Hills.

Uma semana depois, chegaram a um acordo. Knudsen assumi-ria imediatamente a presidência por um salário anual de 600 mil dó-lares — o mesmo salário de Henry.

Para abrir espaço para Knudsen, Henry tinha que se livrar de Arjay Miller, presidente da empresa nos últimos cinco anos. Miller foi repentinamente promovido a vice-presidente do conselho, um cargo novo, criado para a ocasião. Um ano depois, ele renunciou e tornou-se diretor da Escola de Administração da Universidade de Stanford.

Bunkie foi contratado no início do inverno de 1968, enquanto eu estava passando férias com minha família numa estação de es-qui. No meio da viagem, recebi um chamado do escritório de Henry pedindo para eu estar lá no dia seguinte. A empresa até enviou um DC-3 para me levar de volta.

No dia seguinte, fui encontrar o chefe. Henry sabia que eu fica-ria zangado por ele estar trazendo Bunkie para a presidência e que-ria me explicar as razões. Tinha certeza de que a admissão de um homem de alto nível da GM na nossa equipe teria um efeito impor-tante em poucos anos.

E ele fazia questão de me garantir que a vinda de Bunkie não significava o encerramento da minha carreira. Muito pelo contrário. E disse: "Olhe, você ainda é o meu favorito. Mas você é jovem, a-inda tem o que aprender".

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Henry previa que Bunkie traria uma grande quantidade de in-formações sobre o sistema da GM. Lembrou-me de que eu era doze anos mais jovem do que Knudsen e me pediu para ter paciência. Deixou claro que não queria me perder. E concluiu dizendo vee-mentemente que a minha paciência naquele momento seria mais do que recompensada no futuro.

Dias depois, recebi um telefonema de Sidney Weinberg, um de nossos membros veteranos do conselho e um legendário mago de Wall Street. Tinha sido o mentor de Henry durante anos, mas tam-bém era um grande fã meu. Sempre me chamou de "Lehigh".

Depois do almoço, em seu apartamento de New York, Weinberg disse-me que entendia a minha indignação com a vinda de Knudsen. Mas me aconselhou a ficar firme. Sidney tinha ouvido os mesmos rumores que eu: a GM no fundo tinha ficado satisfeita em se ver livre de Knudsen. Weinberg tinha ouvido isso diretamente de um alto exe-cutivo da GM, que dissera: "Vocês resolveram para nós um problema complicado. Nós não sabíamos o que fazer com Knudsen até que o velho Henry o pegou. Não sabemos como agradecer".

"Se Bunkie é tão ruim como eles dizem, sua vez logo vai che-gar", disse-me Sidney.

Eu não tinha tanta certeza. Naquela época eu estava com uma pressa danada de subir. Apesar das promessas de Henry, a vinda de Bunkie era, para mim, um enorme pontapé. Eu desejava ardentemen-te a presidência e não concordava que ainda tivesse muito a aprender.

Eu achava que já havia passado por todos os testes possíveis na empresa. E tinha sido aprovado em todos com louvor.

Durante algumas semanas, considerei seriamente a possibilida-de de pedir demissão. Herb Siegel, um graduado de Lehigh, que era chefe da Chriscraft, me tinha feito uma proposta atraente. Herb de-sejava expandir a Chriscraft e transformá-la num pequeno conglo-merado no ramo do lazer. Ele gostava de mim e respeitava o que eu tinha realizado na Ford.

"Olhe", disse-me Herb, "se você ficar na Ford, estará sempre à mercê de Henry Ford e, se ele foi suficientemente estúpido para não nomear você presidente, é provável que vá bombardeá-lo outra vez". Possível jogo de palavras entre Lehigh (universidade onde Lee Iacocca estudou) e "grande Lee". (N. do E.)

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Fiquei tentado. Comecei até a procurar casa em New York e Connecticut. Mary também gostou da idéia de voltar para o Leste. "Pelo menos vamos poder voltar a comer frutos do mar frescos", disse com um brilho no olhar.

Acabei decidindo ficar na Ford. Eu adorava o negócio de car-ros e amava a Ford Motor Company. Na verdade, não conseguia me imaginar em qualquer outro lugar. Com Henry ao meu lado, o futu-ro ainda parecia brilhante. Eu contava com a possibilidade de Bun-kie não se dar bem na presidência e de chegar a minha vez, antes do que se esperava.

Em Detroit, a vinda de Knudsen para a Ford era o assunto em

pauta. Em nossa indústria, era raro alguém pular fora do barco e ir trabalhar para um concorrente. Era um fato quase inédito na GM, que, mesmo para os padrões de Detroit, tinha uma reputação de ser unida.

O que tornava a história ainda mais interessante era o fato de Bunkie não ser o primeiro Knudsen a trabalhar para a Ford. Mais de cinqüenta anos antes, William Knudsen, o pai de Bunkie, trabalhara para o avô de Henry. O velho Knudsen supervisionou o estabeleci-mento de catorze fábricas do modelo T em dois anos, incluindo a famosa fábrica de River Rouge. Depois da Primeira Guerra Mundi-al, foi mandado para a Europa, onde colaborou no desenvolvimento das operações da Ford no exterior.

Depois de chegar à cúpula da empresa, William Knudsen teve problemas com o velho Ford, que o demitiu em 1921. Quando Knudsen saiu da Ford, estava ganhando 50 mil dólares por ano, um salário fantástico naquela época. Um ano depois, assinou contrato com a General Motors.

E agora fechava-se o círculo das relações Knudsen-Ford. De-troit adorou o episódio da contratação de Knudsen, e a nomeação de Bunkie foi um prato cheio para a imprensa. Dava uma ótima histó-ria: Henry Ford, o neto do homem que tinha demitido William Knudsen, estava trazendo de volta o filho de Knudsen como seu presidente.

Quando a nomeação de Bunkie foi anunciada, muitos de nós, que tínhamos altos cargos na Ford, nos sentimos ofendidos com o fato de um homem da GM ser nosso chefe. Eu estava especialmente preocupado, pois havia rumores de que Knudsen traria John DeLo-rean para ocupar o meu lugar. (DeLorean era um executivo jovem e

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talentoso, visto como uma espécie de contestador, que tinha traba-lhado com Bunkie na Divisão Pontiac.)

Meus colegas e eu tínhamos certeza de que o sistema de admi-nistração da GM não daria muito certo na Ford. Mas Henry achava que a simples presença de Bunkie Knudsen na Casa de Vidro pode-ria passar para nós um pouco do grande sucesso da GM.

Isso nunca aconteceu. A Ford tinha a sua forma própria de fa-zer as coisas. Gostávamos de agir com rapidez, e Bunkie parecia ter dificuldade em acompanhar o ritmo. Além disso, a administração não era o seu ponto forte. Logo ficou claro para mim que a GM provavelmente tinha razão em não nomeá-lo presidente.

Knudsen sempre desconfiou de mim. Achava que eu estava de olho na presidência antes da sua chegada, e que continuava de olho nela depois da sua chegada. Ele estava certo quanto às duas hipóte-ses. Felizmente, nós dois éramos demasiado ocupados para perder tempo com política de escritório. Mas tínhamos nossas divergên-cias, sobretudo com relação ao estilo dos modelos novos.

Logo que chegou à Ford, Knudsen começou por aumentar o peso e o tamanho do Mustang. Ele era louco por corridas, mas não conseguia compreender que o apogeu das corridas já havia passa-do. Knudsen também decidiu redesenhar o Thunderbird, para que ficasse parecido com o Pontiac, o que resultou num desastre com-pleto.

Como líder, Bunkie Knudsen teve pouca influência na empre-sa. Entre outras coisas, ele errou em não trazer ninguém do pessoal de alto nível da GM para ajudá-lo a pôr seus planos em prática. Ninguém da Ford sentia-se pessoalmente ligado a Knudsen, o que o deixava sem uma base de poder. Como resultado, ele se viu sozi-nho, num ambiente estranho, e nunca foi aceito de fato. Dez anos depois, quando fui para a Chrysler, eu me preveni no sentido de não cometer o mesmo erro.

A imprensa muitas vezes publicou que eu liderei um motim contra Knudsen. Mas o fracasso dele pouco teve a ver comigo. Bunkie Knudsen tentou dirigir a Ford sem usar o sistema. Ele igno-rou a hierarquia existente e passou por cima de mim e de outras pessoas da cúpula, estabelecendo a política em áreas colocadas sob nossa responsabilidade.

Desde o início, a Ford e a GM foram empresas completamente diferentes. A GM sempre teve um espírito de clube, de família, com dezenas de comissões e inúmeros níveis de administração. Na Ford,

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pelo contrário, o ambiente era mais competitivo. Sempre tomáva-mos decisões mais depressa, com menos revisão do pessoal de staff e com mais espírito empresarial. No mundo lento e ordenado da GM, Bunkie Knudsen floresceu. Na Ford, era um peixe fora d'água.

Knudsen durou apenas dezenove meses. Henry realizara um grande golpe publicitário ao tirar um homem da GM, mas logo per-cebeu que o sucesso numa empresa de automóveis nem sempre ga-rante o sucesso em outra.

Gostaria de poder dizer que Bunkie foi demitido porque arrui-nou o Mustang ou porque suas idéias eram completamente erradas. Mas a verdadeira razão da sua demissão nada teve a ver com isso. Bunkie Knudsen foi demitido porque tinha o hábito de entrar no es-critório de Henry sem bater. É isso mesmo — sem bater!

Ed CLeary, um dos auxiliares de Henry, dizia: "Isso deixa Hen-ry maluco! A porta se abre, e lá está Bunkie na frente dele".

É claro que essa pequena transgressão foi apenas a gota d'água numa relação que nunca tinha sido boa. Henry era um rei que não tolerava ter semelhantes, característica que Bunkie parecia não per-ceber. Ele tentou se fazer de desentendido com Henry, o que foi um grande erro. A única coisa que você nunca podia fazer na Ford era chegar muito perto do trono. Beacham tinha me avisado há alguns anos: "Mantenha distância de Henry. Lembre-se de que ele tem sangue azul. O seu é apenas vermelho".

A maneira como Henry Ford demitiu Bunkie Knudsen dá uma boa história e também revela muito a respeito de Henry. No feriado do Dia do Trabalho — numa segunda-feira, à tarde —, ele mandou Ted Mecke, seu vice-presidente de Relações Públicas, à casa de Bunkie. A incumbência de Mecke era levar ao conhecimento de Knudsen que ele estava para ser demitido.

Mas Mecke não conseguiu cumprir sua missão. Ele só conse-guiu dizer: "Henry me mandou aqui para dizer-lhe que amanhã te-remos um dia de trabalho muito difícil".

"Espere um pouco", disse Florence Knudsen, uma mulher mui-to decidida. "O que você veio de fato fazer aqui? Quem o mandou aqui e qual é o recado? Você veio aqui para demitir meu marido?" Ela adivinhou imediatamente a verdade, e Mecke não teve outra sa-ída senão confirmar.

Na manhã seguinte, Henry passou apressado pelo corredor. Es-tava procurando um aliado e sabia que eu ficaria satisfeito de ver

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Knudsen fora dali. Mas Henry ainda não dissera a Bunkie que ele estava demitido.

Finalmente Mecke disse a Bunkie: "Acho que Mr. Ford deseja falar com você".

Quando Bunkie entrou no escritório de Henry, este lhe pergun-tou: "Mecke falou com você?"

"Afinal, o que é que está acontecendo aqui?", perguntou Bun-kie. "Você está me demitindo?"

Henry fez um sinal afirmativo. "As coisas simplesmente não deram certo", ele disse. Esse tipo de afirmação vaga era a marca re-gistrada de Henry.

Poucos minutos depois, Henry entrou novamente no meu escri-tório. "Bunkie está marcando uma entrevista com a imprensa", disse ele.

"O que aconteceu?", perguntei. Àquela altura eu já fazia idéia, mas queria ouvir tudo da boca do chefe.

Henry tentou me dizer que ele acabara de demitir Bunkie. Mas enquanto eu estava ali, parado, olhando para ele, Henry parecia não encontrar as palavras. Finalmente, ele disse: "Bunkie não entende. Nós estamos com problemas".

Parecia uma comédia dos Keystone Kops. Depois disso, só o que eu vi foi Bunkie entrar no meu escritório dizendo: "Acho que fui demitido, mas não tenho certeza".

Assim que Knudsen saiu, Henry voltou ao meu escritório e perguntou: "O que ele disse?"

Poucos minutos depois, Henry voltou. "O que vamos fazer?", perguntou. "Bunkie está querendo dar a sua entrevista à imprensa justo aqui!"

"Bem", respondi, "se ele foi despedido tem que dizer alguma coisa."

"Está certo, ele foi despedido", disse Henry. "Mas acho que ele deveria dar a entrevista à imprensa num hotel e não justamente aqui no edifício."

Tive sentimentos contraditórios durante todo o episódio. Por um lado, estava satisfeitíssimo com a saída de Bunkie. Ao mesmo

Grupo de comediantes criado em 1914 por Mack Sennett: eram policiais carica-tos sempre envolvidos era perseguições fantásticas. (N. do E.)

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tempo, sentia pena dele. Eu não desejava que o mandato de qual-quer presidente da empresa terminasse dessa maneira.

Mas Henry Ford nunca conseguiu demitir uma pessoa direta-mente. Sempre teve um capanga para fazer o trabalho sujo para ele.

A única coisa que eu conseguia era me perguntar: é isso que es-tá reservado para mim? Passei aquela noite conversando com Mary. "Por que você não sai de lá?", ela perguntou. Mais uma vez eu fi-quei tentado. E mais uma vez resolvi ficar.

No dia da demissão de Bunkie houve muita alegria e um gran-de consumo de champanha. Um funcionário de Relações Públicas cunhou uma frase que logo ficou famosa na empresa: "Henry Ford — o primeiro — certa vez disse que a História é uma besteira. Mas hoje Bunkie pertence à História".

Mesmo com Bunkie demitido, Henry ainda não estava disposto a me oferecer a presidência. Ao invés disso, desdobrou o cargo em três. Eu comandava as operações da Ford norte-americana, o que me tornou o primeiro entre os demais. Robert Stevenson era o chefe da Ford internacional e Robert Hampson chefiava as operações não-automotivas.

Felizmente, o triunvirato não teve vida longa. No ano seguinte, no dia 10 de dezembro de 1970, afinal consegui o que desejava: a presidência da Ford.

Poucos dias antes do anúncio oficial, Henry entrou em meu es-critório para me dizer o que tinha em mente. Lembro-me de que pensei: "Esse é o maior presente de Natal que eu poderia receber!"

Nós nos sentamos por alguns momentos, ele com um cigarro e eu com um charuto, e jogamos fumaça um no outro.

Assim que Henry saiu pela porta, telefonei para minha esposa. Depois telefonei para meu pai, em Allentown, para contar a boa no-va. Durante a sua vida longa e movimentada, meu pai teve muitos momentos felizes, mas tenho certeza de que o meu telefonema da-quele dia foi quase o clímax.

Quando me tornei presidente, a Ford Motor Company tinha cer-

ca de 432.000 empregados. Nossa folha de pagamento ultrapassava os 3,5 bilhões de dólares. Só na América do Norte estávamos cons-truindo cerca de 2,5 milhões de carros por ano e 750.000 caminhões. "jogo de palavras com bunk (besteira) e Bunkie. (N. do T.)

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No exterior, o total estimado era de cerca de 1,5 milhões de veícu-los. Nosso total de vendas para 1970 ultrapassou os 14,9 bilhões de dólares, dos quais 515 milhões de dólares eram lucro.

Embora 515 milhões de dólares certamente não sejam uma quantia desprezível, representavam apenas 3,5 por cento do total das vendas. No início dos anos 60, nosso retorno nas vendas nunca foi menor que 5 por cento. Eu estava decidido a voltar a essa taxa.

Como todo mundo sabe, existem apenas duas maneiras de se ganhar dinheiro: vender mais mercadoria ou gastar menos nas des-pesas gerais. Eu estava satisfeito com as nossas vendas — pelo me-nos naquele momento. Mas, quanto mais examinava nossas opera-ções, mais me convencia de que havia muita coisa a fazer para re-duzir nossas despesas.

Uma das primeiras medidas que tomei como presidente foi convocar uma reunião dos altos executivos para estabelecer um programa de redução de despesas. Chamei esse programa de "Cin-qüenta em Quatro " porque o seu objetivo era reduzir as despesas operacionais em 50 milhões de dólares em cada uma das quatro á-reas — cronograma, complexidade do produto, custos de projeto e modos antiquados de fazer negócios. Se conseguíssemos atingir nosso objetivo em três anos, poderíamos aumentar nossos lucros em cerca de 200 milhões de dólares — um ganho de quase 40 por cento —, mesmo sem vender nenhum carro a mais.

Havia uma série de aspectos que podiam ser melhorados. Por exemplo: todo ano gastávamos duas semanas preparando as nossas fábricas para a produção dos modelos do ano seguinte.

Nesse período, as fábricas simplesmente não funcionavam, o que significava que tanto o maquinário quanto os trabalhadores fi-cavam inativos.

Através de uma programação de computador mais eficaz e uma esquematização mais sofisticada, seria possível reduzir esse período de duas semanas para dois dias. Obviamente, esse tipo de mudança não se opera da noite para o dia. Mas, por volta de 1974, chegamos a um ponto em que as nossas fábricas eram transformadas durante um fim de semana — quando as linhas de produção ficam mesmo paradas.

Outra área cujos custos podiam ser reduzidos era a expedição. O frete representava uma percentagem muito pequena das nossas despesas totais, mas um custo superior a 500 milhões por ano ainda era uma quantia que merecia uma revisão. Eu ainda não tinha pen-

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sado nisso antes. Mas, quando examinei melhor esse aspecto, veri-fiquei que as estradas de ferro estavam nos passando a perna. Co-bravam por volume e não por peso, e nós não estávamos levando is-so em conta.

Começamos a embalar os carros de forma muito mais compac-ta. Lembro-me de que, numa certa altura, nós alteramos um dese-nho de pára-lama em cerca de 5 centímetros para permitir que cou-bessem alguns carros a mais em cada trem. Por um preço tão alto, a última coisa que eu desejava era expedir espaço vazio. Quando vo-cê gasta 500 milhões de frete, mesmo uma economia minúscula de 0,5 por cento representa 2,5 milhões de dólares.

Instituí também um programa denominado "Descarte os Perde-dores". Numa empresa grande como a nossa, existem muitas opera-ções que nos levam a perder dinheiro ou produzem lucros mínimos. Sempre acreditei que qualquer operação numa empresa de automó-veis pudesse ser medida em termos de sua lucratividade. Cada ge-rente de fábrica sabia — ou deveria saber — se a sua operação es-tava dando dinheiro para a empresa ou se as peças produzidas cus-tavam mais do que se fossem compradas fora.

E então eu anunciei que os gerentes tinham três anos para tor-nar seus departamentos lucrativos ou liquidá-los. Era uma simples questão de bom senso, como diz o gerente de uma grande loja de departamentos: "Estamos perdendo uma tonelada de dinheiro na-quela boutique, portanto vamos fechá-la".

Muitos dos nossos maiores perdedores faziam parte da Philco-Ford, uma firma de acessórios e eletrônica, que compramos em 1961. A Philco foi um erro terrível, que perdeu milhões de dólares por ano, durante dez anos, até começar a produzir lucros. Muitas pessoas da cúpula administrativa tinham sido contra a compra da Philco, mas Henry insistiu. E, na Ford, Henry conseguia tudo o que queria.

Acabamos por fechar cerca de vinte dos maiores perdedores no começo dos anos 70. Um deles era uma fábrica de equipamentos de lavanderia. Até hoje, não consegui saber o que tínhamos a ver com equipamentos de lavanderia. Mas, de qualquer forma, demoramos dez anos para acabar com ela, que nunca nos deu um centavo.

Esses programas de redução de despesas e de perdas represen-tavam uma nova tarefa para mim. Até aquele momento eu me con-centrara em vendas, marketing e projetos. Mas, como presidente, meu primeiro encargo foi a tarefa pouco lisonjeira de procurar cen-tenas de maneiras diferentes de cortar as despesas e aumentar os lu-

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cros. O resultado foi que, finalmente, consegui o respeito de um grupo que sempre desconfiou de mim — os contadores de tostões.

Passei a ter inúmeras responsabilidades, e tão diversas que eu

precisava aprender um estilo diferente de administrá-las. Por mais que me desagradasse admitir, eu já não tinha a mesma resistência do tempo do Mustang, quando só pensava em engolir um hambúr-guer no jantar e ficava no escritório até meia-noite.

A Ford tinha cerca de 500 mil empregados em todo o mundo, e eu tinha que ter em mente que era apenas um deles. Às vezes, isso significava só conseguir retribuir um telefonema depois de duas semanas. Mas decidi que era mais importante preservar minha saú-de mental do que ficar resolvendo todos os problemas dos outros.

Ao invés de voltar para casa cada noite dirigindo um carro di-ferente, para ficar mais familiarizado com os nossos vários produ-tos, agora eu tinha um motorista. O tempo que sobrava eu usava pa-ra ler e pôr a minha correspondência em dia. Mas continuava a se-guir a minha velha rotina semanal. A menos que eu estivesse fora da cidade, os meus fins de semana eram dedicados à família. Eu não abria a minha pasta até domingo à noite, quando me sentava na minha biblioteca, estudava os assuntos da empresa e planejava a semana seguinte. Na segunda-feira de manhã, eu estava pronto para tudo. Esperava o mesmo do pessoal que trabalhava para mim: sem-pre achei que o ritmo do chefe é o ritmo do time.

Durante o tempo em que fui presidente da Ford, eu sempre en-contrava pessoas que me diziam: "Eu não queria o seu cargo nem por todo o dinheiro do mundo". Nunca soube o que responder a es-se tipo de observação. Adorava meu trabalho, embora muita gente o considerasse como o tipo de cargo que oprime e mata. Mas eu nun-ca senti isso. Para mim, era um trabalho entusiasmante.

Na realidade, depois de chegar à presidência, senti uma certa decepção. Levei anos para subir a montanha. Quando finalmente cheguei ao topo, comecei a me perguntar por que eu tinha corrido tanto para vencer. Eu só tinha quarenta e poucos anos e não tinha idéia do que faria para prosseguir.

Sem dúvida, eu gostava do prestígio e do poder do meu cargo. Mas ser uma figura pública tinha suas vantagens e desvantagens. Percebi isso com clareza, numa sexta-feira de manhã, quando esta-va indo para o trabalho. O rádio estava ligado e eu o estava ouvindo vagamente quando, de repente, o apresentador interrompeu o pro-

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grama para dar um boletim extra. Ao que parecia, um grupo de al-tos empresários do país, inclusive eu, estava sendo ameaçado de as-sassinato pela "família" Manson.

Essa informação agradável tinha sido dada por Sandra Good, companheira de quarto de "Squeaky" Fromme, a jovem que foi pre-sa por tentar matar o presidente Ford, em Sacramento. Não há me-lhor estimulante, logo de manhã, do que saber que você faz parte de uma lista de candidatos a serem assassinados.

Mas não quero me queixar demais de um dos melhores cargos do mundo. Se Henry era o rei, eu era o príncipe regente. E não ha-via dúvida de que o rei gostava de mim. Certa vez, ele e sua esposa, Cristina, foram a um jantar em nossa casa. Meus pais também esta-vam lá e Henry passou a metade da noite falando das minhas quali-dades e dizendo que, sem mim, a Ford não existiria. Em outra oca-sião, ele me levou a um encontro com seu grande amigo, o ex-presidente Lyndon Johnson. Henry realmente me considerava seu protegido e me tratava como tal.

Esses foram os tempos das vacas gordas. Todos nós que consti-tuíamos a cúpula administrativa da Casa de Vidro vivíamos muito bem na corte real. Fazíamos parte de algo que estava além da pri-meira classe — éramos membros da realeza., talvez, onde tínhamos do bom e do melhor. Os garçons ficavam à nossa disposição duran-te o dia todo e almoçávamos juntos na sala de refeições dos execu-tivos.

De fato, não era uma lanchonete. Estava à altura dos melhores restaurantes do país. Um tipo especial de peixe de Dover era trazido diariamente da Inglaterra. Comíamos as melhores frutas, em qual-quer estação. Chocolates deliciosos, flores exóticas, tínhamos de tudo. E éramos servidos por garçons profissionais vestidos a rigor.

No começo pagávamos 2 dólares por esses almoços. O preço inicial tinha sido de 1,50 dólar, mas com a inflação aumentou para 2 dólares. Quando Arjay Miller ainda era vice-presidente de finan-ças, queixou-se do preço. "Na verdade não deveríamos pagar por esses almoços", disse ele certo dia. "A comida dos empregados é deduzida do imposto pela empresa. Muitas empresas fornecem ali-mentação ao pessoal sem cobrar nada. Mas, se nós pagamos pela nossa comida, pagamos com o que sobra depois dos impostos." Es-távamos todos na faixa de 90 por cento, de modo que, quando gas-távamos dois dólares, tínhamos que ganhar 20.

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Naquela altura, alguns de nós começamos uma discussão sobre quanto aqueles almoços realmente custavam para a empresa. No es-tilo típico da Ford, promovemos um estudo para determinar a des-pesa real dos almoços servidos no refeitório dos executivos. A des-pesa era de 104 dólares por pessoa — e isso há vinte anos.

Você podia pedir o que quisesse naquele restaurante, desde os-tras à Rockefeller até faisão assado. Mas Henry geralmente pedia um hambúrguer; poucas vezes ele comia outra coisa. Certo dia, no almoço, ele veio se queixar para mim do chefe de cozinha de sua casa, que, embora ganhasse entre 30 e 40 mil dólares por ano, não conseguia fazer um hambúrguer decente. Além disso, nenhum res-taurante que ele conhecia fazia um hambúrguer do jeito que ele gos-tava — o jeito como era feito no refeitório dos executivos.

Eu gostava de cozinhar, e por isso fiquei fascinado com a quei-xa de Henry. Fui à cozinha falar com Joe Bernardi, nosso chefe de cozinha suíço-italiano. "Joe", disse eu, "Henry gosta muito do seu hambúrguer. Você pode me mostrar como é que se faz?"

"Está certo", disse Joe. "Mas você precisa ser um grande chef para saber fazê-lo direito: por isso, preste atenção."

Foi até a geladeira, tirou uma fatia de carne New York de uns 3 centímetros de espessura e colocou-a na chapa. Daí saiu a carne bá-sica, que Joe moldou e transformou em hambúrguer. Então jogou-a na grelha.

"Alguma pergunta?" Então olhou para mim com um sorrisinho e disse: "É surpreen-

dente o que a gente consegue fazer quando começa com um pedaço de carne de primeira!"

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IX DISTÚRBIOS NO PARAÍSO

té o momento em que me tornei pre-sidente, Henry Ford sempre tinha sido uma figura remota. Mas ago-ra, nossos escritórios ficavam um ao lado do outro na Casa de Vidro e nós nos encontrávamos muito, embora apenas em reuniões. Quan-to mais eu conhecia Henry Ford, mais me preocupava com o futuro da empresa — e com o meu próprio futuro.

A Casa de Vidro era um palácio, e nela Henry era o rei supre-mo. Cada vez que ele entrava no prédio, circulava a notícia: o rei chegou. Executivos ficavam zanzando pelos corredores, esperando encontrar-se com ele. Se tivessem sorte, Mr. Ford poderia até per-ceber sua presença e dizer alô. Às vezes ele poderia até dignar-se a falar com eles.

Sempre que Henry entrava em uma reunião, a atmosfera muda-va repentinamente. Ele tinha poder de vida e de morte sobre todos nós. De repente, ele podia dizer: "Cortem a cabeça dele" — e mui-tas vezes o fazia. E mais uma carreira promissora na Ford ia por água abaixo, sem a menor chance de defesa.

Para Henry, só importavam as coisas superficiais. Ele era ob-cecado pelas aparências. Se um sujeito usasse as roupas certas e u-

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sasse as palavras certas de elogio, Henry ficava impressionado. Mas, quem não tivesse a aparência a seu favor, era melhor desistir.

Certa vez Henry me mandou demitir um determinado executi-vo que, segundo ele, era "um invertido".

"Não seja bobo", eu disse. "O rapaz é amigo meu. É casado e tem um filho. Sempre jantamos juntos."

"Livre-se dele", insistiu Henry. "É um invertido." "Por que você está falando isso?", eu disse. "Olhe para ele. Usa calças muito apertadas." "Henry", eu disse calmamente, "o que é que as calças dele têm

a ver com isso?" "Ele é esquisito", disse Henry. "Tem um jeito efeminado. Li-

vre-se dele." Acabei tendo que demitir um bom amigo. Eu o transferi da Ca-

sa de Vidro para o interior do país, odiando o que estava fazendo. Mas, afinal, depois a única alternativa foi mandá-lo embora.

Este uso arbitrário do poder não era apenas um defeito de per-sonalidade. Era algo em que Henry realmente acreditava.

Bem no início da minha presidência, Henry me falou sobre sua filosofia administrativa: "Se um sujeito trabalha para você, não o deixe ficar muito à vontade. Não o deixe sentir-se dono da situação. Faça sempre o contrário do que ele está esperando. Mantenha seu pessoal ansioso e inseguro".

Ora, é de se pensar por que cargas d'água o presidente da Ford Motor Company, um dos homens mais poderosos do mundo, se comportava como um pirralho frustrado. O que o tornou tão inse-guro?

Talvez a resposta esteja no fato de Henry Ford nunca ter tido que lutar por nada, em toda a sua vida. Talvez esta seja a perdição dos garotos ricos, que herdam o dinheiro que têm. Ficam perambu-lando pela vida, passeando entre as flores, imaginando o que teria sido deles se não fosse o papai. Os pobres reclamam que ninguém lhes deu uma chance, mas o garotinho rico nunca sabe se deve a si mesmo alguma coisa do que realizou. Ninguém jamais lhe diz a verdade. Só lhe dizem o que ele quer ouvir.

Eu tinha a impressão de que Henry Ford II, neto do fundador da Ford Motor Company, tinha passado a vida inteira com medo de pôr tudo a perder.

Talvez por isso ele se sentisse tão ameaçado. Talvez por isso ele estivesse sempre enxergando focos de rebelião no palácio. Se

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via duas pessoas conversando no corredor, imediatamente achava que estavam planejando uma conspiração!

Não quero dar uma de psiquiatra, mas tenho uma teoria a res-peito da origem dos temores de Henry. Quando ele era menino, seu avô sentia-se neuroticamente ameaçado por seqüestradores. Aquelas crianças cresceram cercadas de portões fechados e guardas de segu-rança, com medo de todos que não fizessem parte da sua família.

E assim Henry tornou-se um pouco paranóico. Por exemplo, odiava colocar no papel qualquer coisa que fosse. Embora nós dois tenhamos dirigido a empresa juntos por cerca de oito anos, quase nada nos meus arquivos daquele tempo tem a sua assinatura. Henry, na verdade, até se gabava de não manter arquivos. De vez em quan-do queimava seus papéis.

"Esta porcaria só atrapalha", dizia ele. "O sujeito que tem ar-quivo está querendo arranjar problemas. Os papéis acabam caindo na mão da pessoa errada, e você ou a empresa têm que pagar caro."

Ele piorou ainda mais depois de Watergate, que o abalou mui-to. "Está vendo? Eu tinha razão — veja só o que lhe pode acontecer!"

Certa vez, numa das raras visitas que fez ao meu escritório, ele olhou para meus vários álbuns de recortes e arquivos. "Você é lou-co", disse. "Um dia você ainda vai ser crucificado por causa de toda essa porcaria."

Ele seguia o lema do avô: "A História é uma besteira". Isto se tornou uma obsessão. Sua atitude era: destrua tudo que puder.

Certa vez, durante a minha presidência, Henry posou para uma foto feita por Karsh, de Ottawa, o grande fotógrafo canadense. Co-mo sempre, o trabalho de Karsh foi excelente. A fotografia ficou tão boa, que Henry enviou cópias autografadas aos amigos e parentes.

Um dia, Ted Mecke, assessor de Henry, me viu admirando a fotografia.

"O que você achou da fotografia nova do chefe?", perguntou. "Está ótima", respondi. "Aliás, não tenho nenhuma foto de Henry. Será que posso ficar com uma destas?"

Ted disse: "Claro. Vou pedir para ele autografar uma". Dias depois Mecke falou: "Mr. Ford não quis autografar a foto

na hora, e eu a deixei com ele". A próxima vez que entrei no escritório de Henry, vi uma cópia

em sua mesa. "Essa foto está excelente", comentei. "Obrigado", respondeu. "Na verdade, esta é para você. Só que

eu ainda não pude autografá-la."

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Ele nunca mais falou nada a respeito, e eu nunca recebi minha cópia. Ela simplesmente desapareceu. Para Henry, autografar aquela foto era um gesto de muita intimidade — mesmo para seu presidente.

Henry parecia não querer nenhuma lembrança duradoura e concreta da nossa amizade — mesmo no período em que ainda é-ramos amigos. Era como se ele soubesse que algum dia se voltaria contra mim, e não queria deixar provas de que, por algum tempo, nossas relações tinham sido boas.

Mesmo durante os primeiros anos tivemos alguns desentendi-

mentos. Mas sempre tive muito cuidado em ser tolerante. Se tinha algum problema mais grave com ele, eu o bloqueava. Quando havia alguma discussão mais séria, tomava a precaução de só deixá-la vir à baila em particular, quando achava que ele me daria ouvidos.

Como presidente, eu não podia gastar energias com brigas in-fantis. Tinha que pensar em termos globais. Onde estaria a empresa dentro de cinco anos? Quais as principais tendências a que devía-mos dar atenção?

Depois da guerra árabe-israelense de 1973 e da subseqüente crise do petróleo, as respostas a estas perguntas tornaram-se muito claras. O mundo estava virando de cabeça para baixo e tínhamos que responder imediatamente. A onda do futuro eram os carros pe-quenos, econômicos em termos de combustível, de tração dianteira.

Não era preciso ser um gênio para percebê-lo. Bastava ler os dados de vendas de 1974, um ano terrível para Detroit. As vendas da GM caíram em um milhão e meio de veículos. As vendas da Ford estavam meio milhão abaixo do normal. Os japoneses tinham a maioria dos carros pequenos e estavam vendendo como loucos.

Voltar-se para a produção de carros pequenos nos Estados U-nidos era uma proposta muito cara. Mas há momentos em que a ú-nica escolha é fazer um grande investimento. A General Motors es-tava gastando bilhões de dólares para "diminuir o tamanho" em toda a empresa. Mesmo a Chrysler estava investindo uma pequena for-tuna em modelos de baixo consumo de combustível.

Mas, para Henry, os carros pequenos eram a morte. Sua ex-pressão favorita era "minicarros, minilucros".

E verdade que não se pode ganhar dinheiro com carros peque-nos — pelo menos neste país. E isto está se tornando cada vez mais verdadeiro. As margens de lucro dos carros pequenos realmente não compensam. Mas isto não significa que não os devêssemos fabricar.

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Mesmo sem perspectivas de uma segunda crise do petróleo, tínha-mos que satisfazer nossos distribuidores. Se não lhes fornecêssemos os carros pequenos que as pessoas queriam, eles nos abandonariam e assinariam contratos com a Honda e a Toyota, que se encontra-vam em plena expansão.

É um fato óbvio que é preciso cuidar muito bem do lado mais baixo do mercado. E se há uma crise de energia a enfrentar, não há o que discutir. Não oferecer carros pequenos, que consumissem pouco combustível, era como ter uma sapataria onde se dissesse ao cliente: "Desculpe, mas só trabalhamos com números acima de 40".

Os carros pequenos tornaram-se para Henry uma espinha atra-vessada na garganta. Mas eu insisti em fazermos um carro pequeno, de tração dianteira — pelo menos na Europa. Lá, o preço da gasoli-na era muito mais alto e as estradas, muito mais estreitas. Mesmo Henry diria que um carro pequeno na Europa era uma coisa sensata.

Enviei Hal Sperlich, nosso principal planejador de produtos, para o outro lado do Atlântico. Em pouco tempo, Hal e eu monta-mos um carro completamente novo. O Fiesta era bem pequeno, com tração dianteira e com motor transversal. Era fabuloso. Eu sabia que tínhamos um vencedor.

Durante vinte anos, os contadores de tostões na Ford nos havi-am fornecido as razões para não construirmos este carro. Agora, até mesmo os dirigentes da Divisão Européia se opunham ao Fiesta. Meu vice-presidente de operações internacionais disse-me que Phil Caldwell, então presidente da Ford na Europa, era totalmente contra ele, e dizia que eu devia andar fumando maconha, pois o Fiesta nunca venderia e, mesmo que vendesse, não renderia um centavo.

Mas eu sabia que tínhamos de lutar por ele. Entrei no escritório de Henry e o enfrentei. Eu lhe disse: "Escute, o pessoal da Europa não quer fazer esse carro. Por isso, você tem que me apoiar. Não quero nenhuma virada de última hora, como você fez com o Edsel. Se você não estiver do meu lado de corpo e alma, vamos esquecer tudo".

Henry compreendeu. Acabou concordando em gastar um bi-lhão para fazer o Fiesta. E foi bom ele ter feito isso. O Fiesta foi um sucesso estrondoso. Quer Henry soubesse, quer não, o Fiesta o sal-vou na Europa; foi tão importante para nossa recuperação na Euro-pa quanto foi o Mustang para a Divisão Ford nos anos 60.

Imediatamente, Sperlich e eu começamos a discutir a possibili-dade de trazer o Fiesta para os Estados Unidos como o modelo de

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1979. Verificamos que as importações dos japoneses aumentavam. Sabíamos que os carros X da GM, com tração dianteira, estavam dando certo. A Chrysler estava lançando o Omni e o Horizon, e a Ford não tinha nada a oferecer.

Em seu projeto original, o Fiesta era um tanto pequeno para o mercado americano. Assim, Hal e eu decidimos modificá-lo, alar-gando-o um pouco para os lados, para aumentar o espaço interior. Chamamos nosso carro de "Fiesta aumentado". Seu nome de código era Wolf.

Naquela época, no entanto, a ofensiva dos carros japoneses e os encargos trabalhistas proibitivamente altos tornavam quase impos-sível para uma empresa americana produzir carros pequenos que pudessem competir no mercado. Gastaríamos quinhentos milhões de dólares só para construir instalações de produção dos motores e transmissões de quatro cilindros. E Henry não estava disposto a to-par a parada.

Mas Sperlich e eu estávamos demasiado envolvidos com o pro-jeto para abandoná-lo sem lutar. Deveria haver um jeito de produzir o Wolf e conseguir lucros.

Na minha viagem seguinte ao Japão, marquei um encontro com a cúpula da Honda. Naquela época, a Honda não estava querendo produzir carros. Preferia ficar com as motocicletas. Mas já estavam equipados para fazer motores pequenos, e ansiosos para fazer negó-cio conosco.

Eu me entendi maravilhosamente com Sr. Honda. Ele me con-vidou para ir à sua casa e deu uma festa enorme, com uma imensa exibição de fogos de artifício. Antes de eu sair de Tóquio, tínhamos chegado a um acordo. A Honda nos forneceria trezentas mil unida-des por ano a 711 dólares cada uma. Era uma oportunidade fantásti-ca — 711 dólares por uma transmissão e um motor numa caixa, prontos para serem colocados em qualquer carro que fizéssemos.

Eu estava animadíssimo quando voltei do Japão. Não podíamos perder o Wolf. Ia ser o novo Mustang! Hal e eu montamos um pro-tótipo amarelo e preto maravilhoso. Aquele carro teria sido um grande sucesso no país.

Mas quando contei a Henry o acordo com a Honda, ele logo vetou o projeto. "Nenhum carro com meu nome no capô vai ter uma máquina japonesa dentro", ele disse. E esse foi o fim de uma grande oportunidade!

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Henry podia não gostar dos japoneses, mas era louco pela Eu-ropa. Em nosso país, sobretudo depois do Vietnã, respeitava-se ca-da vez menos a autoridade. Mais especificamente, respeitava-se ca-da vez menos o nome Ford. Mas a Europa era algo diferente. Lá, o dinheiro de família ainda significava alguma coisa. Ainda existia o antigo sistema de classes. Era o lugar da aristocracia proprietária de terras, dos palácios e das famílias reais. Na Europa, as pessoas ain-da davam importância a quem eram os avós das pessoas.

Lembro-me de uma noite em que estava com Henry na Alema-nha, num castelo do Reno. Quando se tratava de receber Henry Ford, dinheiro não era problema. Quando chegamos, fiquei assom-brado. Havia uma orquestra de metais, com todos os componentes vestidos a caráter, alinhados para recebê-lo. Enquanto Henry andava lentamente pela ponte do fosso e pelas escadas do castelo, a banda o seguia de perto, tocando. Achei que iam tocar "Hail to the Chief".

Na Europa, onde quer que Henry fosse, encontrava-se com a realeza. Tinha boas relações com os nobres, bebia com eles e ado-rava freqüentá-los. Era tão louco pela Europa, que muitas vezes fa-lava em se mudar para lá. Certa vez, numa festa da alta sociedade na Sardenha, ele apareceu com uma bandeira americana costurada nos fundilhos da calça. Até os europeus ficaram ofendidos. Mas Henry só estava querendo fazer graça.

É por tudo isso que meu sucesso com o Fiesta pode ter sido um

prego no meu caixão. Nos Estados Unidos, minhas realizações não representavam ameaça. Mas a Europa era o domínio dele. Quando começaram a me aplaudir nas mansões enormes do Velho Mundo, ele ficou preocupado. Henry nunca disse isso de modo explícito, mas certos lugares eram definitivamente reservados só para ele. A Europa era um desses lugares. Wall Street era outro.

Em 1973 e no início de 1974, começamos a ganhar uma tone-lada de dinheiro, mesmo depois da crise da OPEP. Nossos princi-pais administradores foram a New York falar com um grupo de cem importantes banqueiros e analistas do mercado de ações. Henry sempre se opunha a esses encontros. Dizia: "Não quero ficar ofere-cendo ações por aí". Mas toda empresa de capital aberto sempre

"Vivas ao chefe", música com que é saudado o Presidente dos Estados Unidos. (N. do E.)

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mantinha encontros com membros da comunidade financeira. Fazia parte da rotina dos negócios.

Quando Henry se levantou para falar naquele encontro, estava meio bêbado. Chegou a falar coisas ininteligíveis a respeito de co-mo a empresa estava se desenvolvendo. Ed Lundy, nosso homem de finanças, se inclinou para o meu lado e disse: "Bem, Lee, agora é melhor você consertar as coisas. Tente salvar a nossa situação ou ficaremos todos parecendo idiotas".

Levantei-me e falei, e esse deve ter sido o começo do meu fim. Na manhã seguinte, Henry me chamou. "Você está falando

com gente demais aí fora", disse ele. O que ele queria dizer é que não havia problema se eu falasse com os revendedores ou fornece-dores, mas eu devia evitar Wall Street. Senão iam pensar que eu es-tava dirigindo a empresa, o que não era muito bom para ele.

Naquele mesmo dia, encontros semelhantes que tinham sido marcados para Chicago e San Francisco foram cancelados. "Está decidido", disse Henry. "Nunca mais vamos fazer isso de novo. Na-da de sair para contar ao mundo o que estamos pretendendo fazer."

Henry não se importava que eu conseguisse publicidade — contanto que fosse para os produtos. Quando fui capa do New York Times Magazine, ele enviou um telegrama de congratulações para o meu hotel em Roma. Mas quando passei a ser admirado em suas es-feras de influência, ele não conseguiu agüentar.

Ora, quase todo mundo é responsável perante alguém. Algumas

pessoas devem satisfações aos pais ou aos filhos. Outros, ao cônju-ge, ou ao patrão, ou mesmo ao cachorro. E ainda há os que julgam dever satisfações apenas a Deus. Mas Henry Ford nunca deu satis-fações a quem quer que fosse. Numa empresa de capital aberto, o presidente do conselho é responsável, em termos morais, perante os empregados e acionistas, e legalmente responsável perante o conse-lho de diretores. Mas parece que Henry sempre dava um jeito de driblá-los.

A Ford Motor Company abriu o capital em 1956, mas Henry nunca aceitou de fato a mudança. Aos seus olhos, ele era como seu avô, o dono de direito — Henry Ford, o Proprietário —, e a empresa era sua para ele fazer o que bem entendesse. Na diretoria, ele, mais do que a maioria dos membros do conselho, acreditava no sistema de cultivo de cogumelos — jogue adubo e deixe-os no escuro. Esta ati-

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tude foi favorecida pelo fato de Henry e sua família, que tinham ape-nas 12 por cento das ações, controlarem 40 por cento dos votos.

Sua atitude para com o governo não era muito diferente da ati-tude para com a empresa.

Um dia ele me disse: "Você paga imposto de renda?" "Você está brincando?", respondi. "Claro que sim!" Por mais

arranjos que eu fizesse, estava pagando 50 por cento do que ganhava. "Bem", disse ele, "estou ficando preocupado. Este ano estou

pagando onze mil dólares. E é a primeira vez em seis anos que pago alguma coisa!"

Eu não conseguia acreditar. "Henry", falei, "como é que você faz uma coisa dessas?"

"Meus advogados cuidam de tudo", ele respondeu. "Olha", eu disse, "não tenho nada contra aproveitar os artifícios

que o governo nos permite usar. Mas o pessoal que trabalha nas su-as fábricas paga quase tanto quanto você! Você não acha que devia pagar o valor correto? E a defesa nacional? E o Exército? E a Força Aérea?"

Mas ele não percebia qual era o problema. Embora eu não ti-vesse razões para crer que ele estivesse violando a lei, quando se tratava dos seus interesses o jogo era: engane o governo o mais que puder.

Durante todos os anos em que trabalhamos juntos, nunca o vi gastar um centavo do seu próprio dinheiro. Um grupo de acionistas da Ford acabou contratando Roy Cohn, famoso jurista de New York, para representá-los em uma ação contra Henry, acusando-o de usar fundos da empresa para pagar todo tipo de despesas pesso-ais. Em viagens para Londres, por exemplo, onde se hospedava em sua própria casa, ele cobrava despesas de hospedagem da empresa. Na verdade, Henry até teve coragem de me perguntar quanto a em-presa estava pagando pela minha suíte no Claridge's — apenas para não cobrar além do razoável.

O processo de Roy Cohn também o acusava de usar aviões da empresa para transportar seus móveis particulares da Europa para Detroit, para transportar os cachorros e gatos de sua irmã toda vez que ela queria tosar ou dar banho de xampu nos animais de estima-ção e para levar champanha Dom Perignon e vinho Château Lafite de uma casa para outra.

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Não sei se todas essas acusações eram verdadeiras, mas certa vez eu realmente levei uma lareira dele de Londres para Grosse Po-inte no avião da empresa.

Henry tinha uma grande atração por aviões. Certa vez, a em-presa comprou da Nippon Airways um jato 727 que Henry conver-teu num luxuoso avião de cruzeiro. Os advogados disseram-lhe que não era certo ele usar o avião para suas férias ou para seus passeios pela Europa — a não ser que pagasse as viagens do seu próprio bol-so. Mas ele preferia ir nadando para a Europa a concordar em re-embolsar a empresa.

Enquanto isso, eu usava o 727 regularmente para minhas via-gens de negócio ao estrangeiro. Esse avião transformou-se num tormento para Henry. Ele simplesmente odiava me ver voando nele, quando ele não podia fazer o mesmo.

Certo dia, Henry deu ordem para vender o avião ao Xá do Irã por 5 milhões de dólares.

O encarregado da nossa frota ficou chocado. "Não deveríamos pelo menos receber outras ofertas?", perguntou.

"Não", disse Henry."Quero esse avião fora daqui hoje!" A em-presa perdeu uma fortuna no negócio.

Após uma auditoria interna, Henry teve que reembolsar trinta e quatro mil dólares à empresa. Foi pego com a boca na botija e nem mesmo seus próprios auditores conseguiram tirá-lo do apuro. A ú-nica defesa de Henry foi responsabilizar sua esposa, mas o fato de ele admitir um erro foi excepcional.

No final, a ação Roy Cohn foi retirada do tribunal. Embora os acionistas não tivessem conseguido nada, Cohn recebeu seus hono-rários legais pelo esforço — uns duzentos e sessenta mil dólares. Henry escapou facilmente mais uma vez.

Mas tudo isso é pouco diante do caso do Renaissance Center. O RenCen, como é conhecido, é um conjunto impressionante

de edifícios de escritórios e lojas, onde está situado o hotel mais al-to do inundo. Foi um projeto elaborado para salvar o centro de De-troit, que se tornava abandonado e perigoso à medida que cada vez mais estabelecimentos comerciais se mudavam para os subúrbios.

Henry decidiu que construiria esse monumento para si mesmo, e levantou os recursos para fazê-lo. O compromisso oficial da Ford era de seis milhões de dólares — dos fundos da empresa, claro. Esta quantia logo foi dobrada. O gasto da empresa acabou chegando a

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cerca de cem milhões de dólares. Pelo menos esta foi a versão ofi-cial da história.

Mas, pelo que se pôde observar, creio que provavelmente in-vestimos mais algumas centenas de milhares de dólares no RenCen — levando-se em conta os custos envolvidos na mudança de cente-nas de empregados nossos para o centro da cidade, na tentativa de povoar aquelas imensas torres de escritórios. É claro que só uma parcela do nosso enorme investimento se tornou pública. Eu estava completamente chocado. Deveríamos estar gastando aquele dinhei-ro para competir com a General Motors — que não investia seus lu-cros em imóveis fantásticos, mas no desenvolvimento de carros pe-quenos. Inúmeras vezes, em particular, contei a Henry o que eu a-chava. Mas ele me ignorou.

O envolvimento de Henry com o RenCen teria sido muito dife-rente se ele tivesse tido o comportamento dos Carnegies, Mellons ou Rockefellers. Essas famílias gastaram boa parte de seu dinheiro para o bem da comunidade. Mas, ao contrário do que ocorre com os grandes filantropos, a generosidade de Henry com muita freqüência parecia sustentar-se no dinheiro dos outros — dinheiro que perten-cia não a ele, mas à empresa e aos acionistas. Naturalmente, os a-cionistas nunca foram consultados.

Desde o início, o RenCen foi um fracasso. Em 1974, quando só a metade dele estava ocupada, faltavam cem milhões em recursos.

Para cobrir a diferença, Henry designou Paul Bergmoser, vice-presidente em exercício da área de compras, para percorrer o país pressionando outras empresas a "investirem" no RenCen. Cinqüenta e uma empresas deram dinheiro. Destas, trinta e oito dependiam da indústria automobilística, e da Ford em particular, na maioria dos seus negócios.

Bergmoser foi encarregado de procurar dirigentes de empresas como a U. S. Steel e a Goodyear. Com cara séria, devia dizer: "Bem, não estou aqui na qualidade de dirigente da área de compras" — mesmo considerando que fazíamos negócios da ordem de mi-lhões de dólares por ano com essas empresas. "Estou aqui como re-presentante pessoal de Henry Ford", ele dizia. "E minha visita não tem nada a ver com a Ford Motor Company."

Os executivos de empresas como a Budd, Rockwell e U. S. Steel morriam de rir com as explicações de Bergie. Ed Speer, exe-cutivo chefe da U. S. Steel, disse a Bergie que o único símbolo ade-quado para o Renaissance Center era um braço torcido.

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Por causa do nome Ford, algumas das melhores lojas dos Esta-dos Unidos e da Europa concordaram em se instalar no RenCen. Mas todas insistiram em receber garantias financeiras da empresa. Isto levou a uma situação totalmente ridícula, em que a Ford Motor Company teve de entrar no negócio de boutiques, joalherias ou chocolates e cobrir perdas durante os primeiros dois anos. E houve realmente muitas perdas.

Enquanto estou escrevendo estas palavras, o RenCen está à bei-ra do colapso econômico. Hoje, ele oferece pouco mais que uma ar-quitetura confusa em um local de compras bem medíocre — além de um estacionamento de preço altíssimo. Ah, sim! — também há um escritório completo que custou 2,7 milhões de dólares, com uma escadaria em caracol e uma lareira; foi construído para servir de es-critório para Henry Ford no centro da cidade.

Muitas vezes eu me pergunto: onde estava a imprensa? Naque-la época, falava-se muito em reportagem de investigação, mas nin-guém em Detroit pesquisou a história real do Renaissance Center.

Uma razão é que Henry era notícia, e todos toleravam seus ex-cessos. Além disso, éramos um dos maiores anunciantes. Ninguém em Detroit — ou, de fato, em qualquer outro lugar — queria correr o risco de ofender um cliente tão rico.

Na minha opinião, Henry era um playboy. Nunca trabalhou muito; ao contrário, sempre brincou muito. O que importava para ele eram o vinho, as mulheres e a música.

Para falar a verdade, sempre achei que ele odiava as mulheres — exceto sua mãe. Quando o pai de Henry morreu, Eleanor Clay Ford assumiu a responsabilidade pela família e colocou seu filho Henry para cuidar de tudo. Ela também o mantinha mais ou menos na linha.

Mas quando ela morreu, em 1976, o mundo dele desmoronou. A única mulher que ele tinha respeitado na vida já não existia. Hen-ry foi o último chauvinista; acreditava que as mulheres tinham sido postas no mundo só para agradar aos homens.

Certa vez ele se queixou para mim de que algum dia as mulhe-res iriam assumir o comando da Ford Motor Company — e levá-la à bancarrota. "Foi o que aconteceu com a Gulf Gil", disse ele. E a-crescentou que treze netos na Ford detinham agora mais poder de voto que ele, seu irmão e sua irmã. Mas ele achava que o triste nis-so tudo era que, desses treze netos, sete eram mulheres e só seis e-ram homens. "E aí está o problema", ele dizia, "as mulheres não são

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capazes de dirigir porcaria nenhuma." Como geralmente acontecia, Mary percebeu quem ele era desde o início. Ela sempre dizia: "A bebida destrói todas as inibições e deixa transparecer a verdadeira personalidade. Por isso, tenha cuidado: esse sujeito é desprezível!"

Na verdade, Mary foi uma das poucas mulheres que ele não desprezava. Certa vez, na festa dos cinqüenta anos de uma grande amiga nossa, Katie Curran, Henry e Mary começaram uma longa discussão, enquanto o resto do pessoal bebia. Naquela época, Henry tinha parado de beber e Mary não bebia porque era diabética.

Eles estavam falando sobre os encontros da cúpula administra-tiva, que em geral ocorriam em hotéis maravilhosos. Quando Mary disse que as mulheres deveriam ser convidadas também, Henry dis-cordou. "Vocês, mulheres, vivem tentando superar umas às outras", afirmou. "A única coisa que lhes interessa são roupas e jóias." "Vo-cê está completamente enganado", ela respondeu. "Quando as mu-lheres estão juntas, o pessoal vai dormir na hora certa. Não fica an-dando à toa. A conta das bebidas se reduz à metade e, na manhã se-guinte, os homens vão para as reuniões na hora certa. Vocês conse-guiriam fazer muito mais se convidassem as esposas para esses en-contros."

Ele escutou e, mais tarde, me disse: "Sua mulher tem bom sen-so". Esses momentos de sobriedade eram a ocasião de se aproximar de Henry; era preciso pegar o nariz dele e torcê-lo. Mary sempre foi capaz de fazer isso sem problemas.

Henry tentava ser sofisticado e ter maneiras européias. Sabia ser charmoso. E até entendia um pouco de vinhos e de arte. Mas is-so era só fachada. Depois da terceira garrafa de vinho, todas as monstruosidades apareciam. Ele se transformava, diante dos nossos olhos, de Dr. Jekyll em Mr. Hyde.

Por causa da bebida, eu ficava longe dele em reuniões sociais. Beacham e McNamara, meus dois mentores, tinham me alertado. "Não se aproxime", disseram. "Ele vai ficar bêbado e você vai se ver em apuros a troco de nada."

Ed O'Leary deu-me o mesmo conselho. "Você nunca vai ser despedido por ter perdido bilhões de dólares. Poderá ser despedido uma noite qualquer, quando Henry estiver bêbado. Ele vai chamá-lo e vocês vão brigar. Ouça o que estou dizendo — sem nenhum moti-vo. Por isso, fique sempre fora da linha de fogo dele."

Eu tentei, mas Henry começou a se revelar muito mais do que grosseiro.

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Um momento decisivo para eu ver quem ele realmente era o-correu em 1974, numa reunião administrativa destinada à discussão do programa de oportunidades iguais. Cada divisão tinha sido en-carregada de relatar seus avanços quanto à contratação e promoção de negros. Depois de ouvir os relatórios, que de fato não eram lá muito impressionantes, Henry ficou irritado. "Vocês estão interes-sados nesse assunto da boca para fora", ele nos disse.

Prosseguiu lançando um apelo emocionado para que realizás-semos mais a favor dos negros. Até falou que, em breve, os execu-tivos receberiam bônus de acordo com o progresso que ocorresse nesta área. "Desta forma", concluiu, "vocês certamente vão se le-vantar de suas poltronas e fazer o que é necessário a favor da co-munidade negra."

Suas observações naquela reunião foram tão comoventes, que literalmente me arrancaram lágrimas. "Talvez ele tenha razão", dis-se a mim mesmo. "Talvez de fato não estejamos fazendo o suficien-te. Talvez eu esteja fazendo corpo mole. Se o chefe sente isso com tanta intensidade, acho que devemos nos concentrar mais nessa questão."

Quando a reunião acabou, fomos todos almoçar no refeitório dos executivos. Como geralmente acontecia, eu me sentei à mesa de Henry. Assim que sentamos, ele começou a praguejar contra os ne-gros. "Esses malditos crioulos! Eles ficam indo e vindo pelo lago Shore Drive, em frente à minha casa. Eu os odeio, tenho medo de-les, e acho que vou me mudar para a Suíça, onde não há nenhum preto."

Nunca me esquecerei daquele momento. Fiquei totalmente transtornado. O sujeito conseguira me fazer chorar, e uma hora de-pois estava xingando os negros. Tudo tinha sido um espetáculo para impressionar. Bem no fundo, ele devia detestá-los. Foi então que percebi que estava trabalhando para um verdadeiro degenerado.

A intolerância já é muito ruim, conforme aprendi em Allen-town. Mas pelo menos os garotos da minha escola não fingiam que não eram intolerantes. Mas Henry era mais do que intolerante. Também era hipócrita.

Em público, ele se fazia passar pelo homem de negócios mais progressista do mundo, mas entre quatro paredes mostrava desprezo por praticamente todo mundo. Até 1975, o único grupo que Henry não havia difamado na minha presença eram os italianos. Mas logo ele estaria fazendo tudo para recuperar o tempo perdido.

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X 1975 - O ANO

FATÍDICO

m 1975, Henry Ford começou seu plano premeditado para me destruir.

Até então, ele até que havia me deixado em paz. Mas, naquele ano, passou a sentir dores no peito e realmente não parecia estar bem. O rei Henry começava a perceber que não era imortal.

Transformou-se num animal. Imagino que seu primeiro impul-so tenha sido: "Não quero aquele italiano metido assumindo as coi-sas por aqui. O que vai acontecer com os negócios da família se eu tiver um ataque cardíaco e morrer? Sem eu perceber, qualquer noite ele se esgueira por aqui, tira meu nome do prédio e transforma es-te lugar na Iacocca Motor Company. O que vai ser do meu filho Edsel?"

Quando Henry achou que eu ia roubar as jóias da família, re-solveu se livrar de mim. Mas ele não tinha coragem para ir em fren-te e fazer ele mesmo essa sujeira. Além disso, ele sabia que não ia conseguir escapar impunemente. Decidiu então fazer um jogo ma-quiavélico, para me humilhar até que eu me demitisse.

Henry jogou a primeira bomba quando eu estava longe. No iní-cio de 1975, fiquei fora do país por algumas semanas, num giro rá-pido pelo Oriente Médio, participando de uma delegação de execu-

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tivos, organizada pela revista Time, destinada a alcançar uma me-lhor compreensão de Israel e do mundo árabe.

Quando voltei aos Estados Unidos, no dia 3 de fevereiro, tive a surpresa de encontrar Chalmers Goyert, meu assistente, à minha es-pera no Aeroporto Kennedy de New York.

"Que está acontecendo?", perguntei. "Temos grandes problemas", ele respondeu. Realmente, tínhamos grandes problemas. Escutei Goyert resu-

mir as coisas incríveis que aconteceram na minha ausência. Há al-guns dias, enquanto alguns de nós estávamos com o Rei Faisal na Arábia Saudita, o rei Henry subitamente marcou uma reunião espe-cial com a cúpula administrativa.

Os efeitos daquela reunião estão sendo sentidos até hoje. Henry estava preocupado com a situação da OPEP. O homem a quem ca-bia o crédito de ter tocado a Ford Motor Company durante a Se-gunda Guerra Mundial estava morrendo de medo. Os árabes esta-vam se tornando donos da situação e ele não sabia o que fazer.

Convencido de que era iminente uma grande depressão, ele or-denou um corte de dois bilhões nas verbas dos futuros programas de produção. Com esta decisão, eliminou sumariamente muitos produ-tos que nos teriam permitido competir no mercado — produtos co-mo carros pequenos e tecnologia de tração dianteira.

Durante a reunião, Henry anunciara: "Sou o Sewell Avery da Ford Motor Company". Era uma referência sinistra. Sewell Avery tinha sido o chefe supremo da Montgomery Ward, um administra-dor ultraconservador que havia decidido não liberar recursos para o desenvolvimento de novos produtos após a Segunda Guerra Mundi-al. Ele acreditava que o mundo estava perto do fim e que os Estados Unidos estavam condenados. Sua decisão veio a ser um desastre pa-ra a Montgomery Ward, pois a Sears começou a derrotá-los.

O anúncio de Henry tinha implicações semelhantes para nós. Quanto a mim, não era difícil saber o que estava para aconte-

cer. Henry tinha esperado me ver a milhares de quilômetros de dis-tância para fazer uma reunião onde usurpou meu poder e minhas responsabilidades — e onde se colocou contra tudo em que eu acre-ditava.

Henry fez um mal incalculável à empresa naquele dia. O Topaz e o Tempo, os carros pequenos da Ford, de tração dianteira, que fi-nalmente passaram a ser vendidos em maio de 1983, deveriam estar prontos quatro ou cinco anos antes, quando o consumidor estava

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pedindo carros pequenos. Mas a resposta da Ford à crise do petró-leo de 1973 nem tinha sido planejada, até 1979.

Fiquei furioso. A OPEP já tinha deixado claro que sem carros pequenos estaríamos liquidados. A GM e a Chrysler estavam traba-lhando rápida e incansavelmente para lançar seus subcompactos. E, enquanto isso acontecia, o chefe supremo da Ford Motor Company havia enfiado a cabeça na areia.

Todo mês, com a regularidade de um relógio, depois do encon-

tro do conselho, eu costumava receber a visita de Franklin Murphy, o decano do conselho, ex-chanceler da UCLA, presidente do conse-lho da Los Angeles Times-Mirror Company — e principal confiden-te de Henry Ford.

Murphy sempre me dava conselhos sinceros, não a respeito da maneira de dirigir a empresa, mas a respeito da maneira de lidar com Henry. Certo dia, ele me disse: "Henry está sofrendo muita pressão, seja condescendente. Ele está tendo muitos problemas com a esposa".

Todos nós sabíamos que o casamento de Henry e Cristina esta-va acabando. Recentemente, ele tinha sido preso por dirigir bêbado em Santa Barbara — junto com sua amante, Kathy Du Ross —, en-quanto Cristina estava em Katmandu com sua amiga Imelda Mar-cos, primeira dama das Filipinas.

Alguns dias depois, eu fiquei de cama, com um resfriado, e in-felizmente perdi uma reunião sobre um fato surpreendente.

No dia 14 de fevereiro, na minha ausência, Henry convocou uma reunião de cúpula para discutir "a situação da Indonésia". Ao que parece, Henry tinha autorizado Paul Lorenz, um dos vice-presidentes executivos e principais funcionários da empresa, a pagar uma "comissão" de um milhão de dólares a um general indonésio. Em troca, a Ford deveria obter um contrato de vinte e nove milhões de dólares para construir dezesseis estações terrestres de satélite.

Mas a questão da "comissão" veio à tona, e Henry enviou dois companheiros nossos de Dearborn a Jacarta, para dizer ao general que aquela não era nossa maneira de fazer negócios.

Lorenz trabalhava para mim. Quando eu soube do incidente chamei-o ao meu escritório. "Paul", falei, "por que diabo você ofe-receu um milhão de pacotes àquele general?"

Paul era um sujeito correto e competente. Também era leal e não queria colocar ninguém em apuros. "Foi um engano", disse.

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"Um engano?", perguntei. "Ninguém distribui um milhão por engano!" Paul ficou quieto. Insisti, e ele disse: "Você sabe que eu não faria isso por iniciativa própria, não é?"

"O que você quer dizer com isso?", perguntei. "Você quer dizer que alguém mandou você fazer isso?"

Paul respondeu: "Bem, não, mas o presidente de certo modo acenou com essa possibilidade, e disse: 'É assim que se fazem as coisas por lá!'"

Pois bem, é verdade que as companhias que fazem negócios em países do Terceiro Mundo às vezes oferecem propinas. Mas, tanto quanto eu soubesse, isso nunca poderia acontecer na Ford. Assim que a imprensa ficou sabendo da tentativa de suborno, co-meçou dentro da empresa uma completa operação para esconder o fato. Essa operação foi quase tão impressionante quanto a que ocor-reu durante o caso Watergate. Houve uma "queima" de arquivos. Houve até reuniões especiais para coordenar as desculpas a serem dadas por termos feito aquilo.

Não tivemos outra escolha senão demitir Paul Lorenz e, como sempre, fui eu o encarregado de fazê-lo. "Vou embora sem abrir a boca se minha ficha continuar limpa", ele me disse. "Mas eu estou levando a má fama. Você sabe que eu não teria feito isso sem apro-vação da cúpula," Eu conhecia Paul muito bem e acreditava que ele estava dizendo a verdade.

Alguns dias depois, Henry de certo modo reconheceu seu erro. "Talvez eu tenha levado Lorenz a achar que podia lançar mão do suborno", ele me disse. "Talvez eu tenha deixado o miserável na mão." Um ano e meio depois, ao examinar a folha das gratificações, fiquei chocado quando vi que Henry havia decidido dar a Paul Lo-renz cem mil dólares.

"Demiti o cara", eu disse a Henry. "Como é que você pode dar a ele cem mil de gratificação?"

"Bem", respondeu Henry, "não era mau sujeito." Era quase uma reedição de Watergate. Lorenz levou a má fama, e o chefe es-tava cuidando dele.

Neste caso, a imprensa foi muito boazinha com Henry, e a jus-tiça também. Uns dois anos depois, fui intimado pelo Departamento de Justiça a depor sobre o assunto. Henry nunca deu qualquer depo-imento. Não sei como conseguiu se livrar disso.

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No mesmo inverno, anunciamos nossos prejuízos do quarto trimestre de 1974, que chegaram a doze milhões. Considerando-se os prejuízos atuais, este foi até pequeno. Comparado ao que a in-dústria automobilística perdeu entre 1979 e 1982, um prejuízo de doze milhões deveria ter sido uma boa razão para se comemorar.

E no entanto, essa era a primeira vez, desde 1946, que a Ford Motor Company tinha um trimestre com prejuízo. Assim, além de estar com a saúde abalada e com o casamento se acabando, Henry tinha mais uma preocupação. Conseqüentemente, ficou mais para-nóico do que nunca.

Naquela época minha secretária era uma mulher competentís-sima, chamada Betty Martin. Se não fosse o chauvinismo criado dentro do sistema, Betty teria sido vice-presidente — ela era muito melhor que a maioria dos homens que trabalhara comigo.

Betty sempre sabia quando estava acontecendo alguma coisa errada. Certo dia ela me disse: "Acabei de saber que toda vez que o senhor usa o cartão de crédito da empresa, alguém leva um relatório ao escritório do Sr. Ford".

Umas duas semanas depois, ela me disse: "Sua mesa está sem-pre em desordem; por isso, às vezes, antes de ir para casa, tento or-ganizá-la. Sempre sei exatamente onde ponho cada coisa, mas no dia seguinte tudo está fora do lugar. Isso acontece muitas vezes e achei que o senhor tinha que saber. Não acredito que as pessoas da limpeza mexam nas coisas".

Em casa eu disse a Mary: "Agora estou preocupado". Betty Martin era uma mulher equilibrada, que detestava fofocas. Não me teria contado essas coisas se não achasse que eram importantes. Havia alguma coisa ruim no ar e, como sempre, as secretárias eram as primeiras a saber.

Depois disso, as coisas se tornaram cada vez mais estranhas. No dia 10 de abril, na nossa reunião mensal do conselho, respon-demos aos nossos prejuízos recentes com uma redução de vinte cents dos dividendos trimestrais. Esta medida, em si, levou-nos a uma economia de 75 milhões de dólares por ano.

Mas, nesse mesmo dia, Henry aumentou o salário anual dos di-retores de 40 para 47 mil dólares. Isto é o que eu chamo neutralizar o conselho.

Naquele mesmo mês, anunciamos nosso prejuízo do primeiro trimestre: 11 milhões, descontando-se os impostos, o que significa-

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va que tínhamos agora dois trimestres consecutivos com resultado negativo.

Henry estava começando a afundar de vez. Em 11 de julho, tornou pública sua loucura. Naquele dia ele convocou os quinhentos gerentes principais para uma reunião. Não antecipou nada — nem mesmo para mim — a respeito do propósito dessa reunião extraor-dinária.

Quando todos estavam acomodados no auditório, Henry come-çou a fazer um discurso, no qual anunciou: "Sou o capitão deste na-vio". Afirmou que nossa administração estava encaminhando as coisas de forma errada. Eu era o principal administrador, por isso não havia dúvida sobre quem ele tinha em mente. Aquela foi uma reunião sem precedentes. Henry falava de forma desconexa, muitas vezes de maneira totalmente incoerente. As pessoas saíram pergun-tando umas às outras: "Afinal, o que significa tudo aquilo?"

Depois daquela reunião, passamos a nos perguntar se Henry ti-nha perdido a cabeça; o nervosismo era geral. A Ford estava mor-rendo de medo, mas ninguém fazia nada. Todos só se ocupavam em tentar descobrir o que Henry ia fazer — e que partido deveriam a-poiar.

Embora a maior parte da imprensa não estivesse percebendo essas escaramuças, nossos revendedores estavam com a clara im-pressão de que havia algo de podre no reino da Dinamarca. No dia 10 de fevereiro de 1976, houve uma reunião dos revendedores da Divisão Ford de Las Vegas. As minutas diziam: "Parece haver polí-tica demais no âmbito da liderança da Ford Motor Company e isto está acabando com a eficiência dos seus líderes... Henry Ford II não está oferecendo, neste momento, o tipo de liderança que seus re-vendedores esperam dele".

Os revendedores também expressaram sua preocupação com a falta de novos produtos da Ford e com o fato de estarem se sentin-do, naquele momento, numa posição de desvantagem com relação à GM.

Nas minhas brigas com Henry, os revendedores tornaram claro que estavam do meu lado. E isto só serviu para piorar as coisas. Ca-da manifestação de apoio vinda dos revendedores era mais munição para Henry. A Ford Motor Company não era uma democracia, e por isso o simples fato de eu ter popularidade entre as tropas era sufici-ente para convencer Henry de que eu era perigoso. 146

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Mas tudo isso não era nada em comparação com as grandes crises daquele ano.

No outono de 1975, Henry chamou Paul Bergmoser e o repre-endeu por fazer negócios com Bill Fugazy, dirigente de uma empre-sa de limusines e de viagens em New York e organizador dos nos-sos programas de incentivo para os revendedores.

"Você não tem medo de Fugazy?", perguntou Henry. "Você não tem medo de terminar no East River com um par de sapatos de concreto?"

Pouco depois disso, Henry me chamou. "Sei que Fugazy é seu amigo", ele disse. "Mas estou começando a fazer uma investigação completa a respeito dele."

"Qual é o problema?", perguntei. "Acho que ele está metido na Máfia", respondeu Henry. "Não seja ridículo", falei. "O avô dele começou o negócio de

viagens em 1870. Além disso, jantei com ele e com o cardeal Spel-lman. Ele tem ligações com pessoas corretas."

"Isso eu não sei", disse Henry. "Ele tem uma empresa de limu-sines. Empresas de limusines e de caminhões sempre são fachadas da Máfia."

"Você está brincando?", perguntei. "Se ele está envolvido com a Máfia, por que está perdendo tanto dinheiro?" Ele não parecia ter re-gistrado esse argumento; então tentei outra abordagem. Lembrei Henry de que Bill Fugazy tinha conseguido que o Papa Paulo usasse um Lincoln em vez de um Cadillac, na visita que fez a New York. Mas Henry estava irredutível. Pouco depois, Fugazy me contou que tinham tirado alguns arquivos do escritório dele, sem seu conheci-mento. Ele tinha certeza de que, além disso, seus telefones estavam grampeados, mas nunca se descobriu nada que fosse incriminador.

Logo ficou claro que o caso Fugazy na verdade era um disfar-ce. O alvo real da sindicância de Henry absolutamente não era Bill Fugazy. Era Lee Iacocca.

A investigação, que acabou custando quase dois milhões de dó-

lares à empresa, começou em agosto de 1975. Inspirado em Water-gate, Henry até indicou um promotor especial — Theodore Souris, ex-juiz da Corte Suprema de Michigan.

O primeiro alvo foi uma reunião de revendedores Ford realiza-da em Las Vegas. Wendell Coleman, dirigente da nossa filial de San Diego, encarregado da prestação de contas nessa reunião, foi

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chamado para um interrogatório em que o fizeram sofrer as penas do inferno. Ele ficou tão indignado, que me escreveu um relato completo do que aconteceu.

Coleman foi chamado ao Escritório Central no dia 3 de dezem-bro de 1975, onde foi "entrevistado" por dois homens do setor finan-ceiro. Começaram por informá-lo de seus direitos. Então disseram que não se tratava de uma auditoria da Divisão Ford, mas de uma au-ditoria feita a pedido do Escritório Central; e lhe pediram para não comentar aquela entrevista com qualquer pessoa da empresa.

A entrevista começou com uma revisão detalhada de vários jantares de revendedores Ford em Las Vegas. Perguntaram a Cole-man se havia mulheres na festa dos executivos realizada num res-taurante. Perguntaram-lhe especificamente se havia alguma mulher comigo. A seguir, perguntaram por que ele havia dado uma gorjeta generosa ao maitre, se Fugazy fazia parte do nosso grupo, se houve executivos que jogaram e se Coleman lhes havia fornecido dinheiro para isso.

"Foi uma caça às bruxas", disse-me Coleman. "Estavam procu-rando alguma coisa — qualquer coisa —, jogo, garotas, o que quer que fosse." Quando Coleman fez objeções ao teor das perguntas, perguntaram-lhe diretamente: "Alguma vez você deu dinheiro a Ia-cocca para ele jogar?"

"Não." "Algum executivo pediu dinheiro para jogar?" "Não." Coleman teve a impressão de que os investigadores achavam

que ele vivia desviando rios de dinheiro para dar aos membros da cúpula da empresa.

Sob o disfarce de uma auditoria sobre gastos de viagem e des-pesas de altos executivos, Henry coordenou nada menos que uma investigação em larga escala tanto da minha vida profissional quan-to da minha vida pessoal. A "auditoria" consistiu em cerca de cin-qüenta e cinco entrevistas, realizadas não apenas com os executivos da Ford, mas também com nossas agências de publicidade e muitos fornecedores, entre eles a U. S. Steel e a Budd.

Apesar do esforço impressionante que fizeram, a investigação não conseguiu descobrir nenhum item duvidoso com relação a mim e ao meu pessoal.

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Foi apresentado um relatório completo a Franklin Murphy, que me procurou para dizer: "Você não tem com que se preocupar. Terminou tudo!"

Eu estava indignado. "Por que nenhum de vocês do conselho fez nada enquanto tudo estava acontecendo?", perguntei.

"Esqueça", disse Frank. "Você conhece Henry. Crianças agem como crianças. De qualquer forma, ele estava procurando um leão e encontrou um gatinho."

Depois de gastar dois milhões de dólares sem encontrar nada, uma pessoa normal teria pedido desculpas. Uma pessoa normal te-ria dito: "Bem, andei investigando meu presidente e alguns dos meus vice-presidentes, e eles são limpos como água. Eu me orgulho deles, pois a investigação foi implacável".

E realmente foi. Durante aqueles meses, saíamos do prédio pa-ra telefonar. Henry tinha ido ao Japão e ficou louco com as novas bugigangas eletrônicas de alta potência que viu por lá. Todos nós tínhamos medo de que nossos escritórios estivessem sendo vigia-dos. Bill Bourke, um dos nossos vice-presidentes, disse que estava com Henry quando ele comprou um dispositivo de dez mil dólares que podia captar conversas de outro prédio. Conhecendo Henry, ninguém tinha dúvidas de que era verdade. O impacto de tudo isso na nossa cúpula administrativa é inacreditável. Começamos a fechar as cortinas e a cochichar. Bidwell, que depois se tornou presidente da Hertz antes de se juntar a mim na Chrysler, dizia que tinha medo até de andar pelos corredores. Homens feitos estavam tremendo na base, com medo de que o rei os condenasse à morte.

Era incrível. Um homem que tinha herdado uma fortuna estava aprontando a maior confusão, lançando a empresa numa vida infer-nal, durante três anos, só porque estava com vontade. Estava brin-cando com a vida das pessoas. Os homens estavam bebendo de-mais. Suas famílias estavam se desfazendo. E ninguém podia fazer nada. Aquele fanático estava louco.

Esse era o clima na Casa de Vidro em 1975. E esse foi o momento em que eu deveria ter pedido demissão.

Certamente Henry esperava que eu fosse embora. No plano original, ele deve ter calculado: "Vou descobrir alguma coisa a respeito dele. Ele está fazendo todas essas viagens, está vivendo no maior luxo. Se eu cavar bem fundo, com certeza vou encontrar muita sujeira".

Mas ele nunca encontrou. Quando a investigação acabou, meus amigos disseram: "Graças a Deus acabou".

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"Não", eu disse. "Henry terminou com as mãos vazias. Fez pa-pel de bobo. Agora é que os problemas vão começar."

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XI GUERRA DECLARADA

uuitas vezes me pergunto por que não me demiti no final de 1975. Por que aceitei o que Henry estava me preparando? Como pude deixar alguém agredir assim o meu destino?

Quando olho para trás, não sei como consegui viver aqueles anos. Minha vida era tão louca, que comecei a anotar tudo o que acontecia. Mary sempre dizia: "Registre tudo isso. Pode ser que al-gum dia você queira escrever um livro. Ninguém vai acreditar no que estamos vivendo".

E por que será que não fui embora? Primeiro, porque, como qualquer pessoa que está em má situa-

ção, eu esperava que as coisas melhorassem. Talvez Henry voltasse ao normal. Ou talvez o conselho perdesse a paciência.

Outra possibilidade que imaginei é que o irmão dele, Bill, que tinha duas vezes mais ações do que Henry, algum dia dissesse: "Bem, meu irmão está ficando louco. Temos que substituí-lo". Sei que a idéia deve ter passado pela cabeça de Bill. Mas ele nunca a colocou em prática.

Por que fiquei lá? Em parte porque eu não conseguia me ima-ginar trabalhando em outro lugar. Eu tinha passado toda a minha

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vida adulta na Ford, e era lã que eu queria ficar. O Mustang, o Mark III e o Fiesta eram meus filhos. Eu também tinha muitos aliados. Os fornecedores continuavam a receber grandes pedidos. Os revende-dores diziam: "Jamais ganhamos tanto". Os gerentes estavam rece-bendo gratificações enormes. A não ser que eu fosse alguma espé-cie de guru dotado de poder mágico sobre todas essas pessoas, sou levado a concluir que minha popularidade era decorrência do meu desempenho. Apesar dos problemas com Henry, eu estava muito sa-tisfeito com o meu sucesso. Nunca imaginei que pudéssemos che-gar a uma guerra declarada, mas, se fosse o caso, eu estava prepara-do. Eu sabia o quanto valia para a empresa. No que se referia a tudo o que era realmente decisivo, eu era muito mais importante do que Henry. Na minha ingenuidade, mantinha a esperança de que, como éramos uma empresa de capital aberto, o melhor venceria.

Além disso, eu era ambicioso. Adorava ser presidente. Gostava dos privilégios de presidente, da vaga especial no estacionamento, do banheiro privativo, dos garçons de paletó branco. Eu estava fi-cando mole, seduzido pela vida boa.

E eu achava quase impossível deixar de ter uma renda anual de novecentos e setenta mil dólares. Embora eu fosse o homem núme-ro dois da empresa número dois, estava ganhando, na verdade, mais que o presidente da General Motors. Eu queria tanto ganhar aquele milhão que não conseguia perceber a realidade.

Dos sete pecados capitais, estou absolutamente convicto de que o pior é a cobiça.

Bem no fundo de mim devia haver uma fraqueza. As pessoas me acham decidido e forte como uma rocha diante da adversidade. Mas onde estavam estas qualidades quando realmente precisei delas?

Talvez eu devesse ter contra-atacado. A vontade de Mary era pôr Henry a nocaute. Ela costumava dizer: "Eu adoraria fazê-lo em pedaços. Sei que isso iria custar seu emprego, mas pelo menos to-dos nós nos sentiríamos melhor".

Enquanto isso, Henry continuava decidido a se livrar de mim. Quando a investigação não deu a ele o pretexto que queria, deve ter pensado: "Esse sujeitinho não vai se demitir, por isso tenho que ten-tar outra coisa. Não posso demiti-lo porque ele tem popularidade. Então vou ter que usar outros métodos. Vou arrancar-lhe os braços, um de cada vez, e ele nem vai perceber que está sem eles".

Com o tempo, vim a saber que esses braços eram pessoas reais. Eu tinha ouvido o boato de que Henry tinha uma lista negra dos a-

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migos do Iacocca. E logo fiquei sabendo que era muito mais do que um simples boato. Certo dia, aparentemente sem nenhuma razão, Henry ligou para Leo-Arthur Kelmenson, presidente da Kenyon & Eckhardt, a agência de publicidade que tinha a conta da Lincoln-Mercury.

"Kelmenson", ele rugiu. "Demita Bill Winn." Ora, Bill Winn era um dos meus melhores amigos. Tínhamos

sido colegas de quarto em Ann Arbor. Apenas dois dias antes da li-gação de Henry, Bill havia sido contratado por Kenyon & Eckhardt para trabalhar em promoções especiais. Antes disso, ele havia diri-gido sua própria empresa de produção. Trabalhava freqüentemente conosco, em nossos shows anuais de revendedores, e sempre havia feito um trabalho excelente.

Quando Kelmenson me deu a notícia de que Bill havia sido demitido, eu estava prestes a fazer uma palestra para um grupo de executivos de empresa numa conferência promovida pela Universi-dade de Michigan. Durante a palestra, naquela noite, minha mente estava voltada para Bill.

Eu não conseguia entender por que Henry havia feito aquilo. Bill Winn era uma pessoa muito fácil de se lidar. Não havia ne-nhuma controvérsia com relação a ele. Henry não poderia ter briga-do com ele, pois nunca o tinha visto. Além do mais, Bill sempre ti-nha se saído muito bem no trabalho.

Então percebi tudo. A decisão arbitrária de Henry de demitir Bill nada mais era do que uma forma grosseira e indireta de atacar Lee Iacocca.

O caso de Bill Winn foi a declaração de uma longa guerra de nervos que atingiu um nível sem precedentes durante 1976. Se eu ainda duvidava dessa guerra, o ataque seguinte de Henry, contra Harold Sperlich, me deu a prova necessária.

Hal Sperlich é um daqueles tipos legendários de Detroit, de quem as pessoas dizem: "Ele tem gasolina nas veias". Como enge-nheiro e planejador de produtos, trabalhou comigo nas décadas de 60 e 70. Teve um papel fundamental na criação de vários carros no-vos — especialmente do Mustang e do Fiesta. Hal tinha tanto talen-to que nunca se poderá dizer o suficiente a seu favor. Talvez seja o melhor homem da indústria automobilística em Detroit. É rápido como um raio, e tem uma capacidade fantástica de ir à raiz de um problema — e de chegar a ela antes de todo mundo.

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Como presidente da Ford, uma das minhas funções era dirigir uma comissão de planejamento de produtos. Nas reuniões, Hal Sperlich sentava à minha esquerda e Henry, à minha direita. De vez em quando, Henry balançava a cabeça ou resmungava. Ele nunca falava muito nessas reuniões, mas seus gestos e ruídos eram mais do que eloqüentes. Na verdade, as pessoas geralmente prestavam mais atenção nas expressões faciais de Henry do que em qualquer idéia que estivesse sendo apresentada.

Era claro que Henry não gostava de Sperlich ou de suas pro-postas. Hal era impetuoso e não demonstrava muita deferência para com o rei. Tentava ser diplomático, mas todos percebiam o que es-tava acontecendo. Sperlich, que tinha um conhecimento enorme so-bre automóveis e uma capacidade incrível de enxergar as tendências para o futuro, estava sempre nos empurrando na direção dos mode-los menores, o que era praticamente a última coisa no mundo que Henry queria escutar.

Um dia, depois de uma reunião da comissão, Henry me cha-mou ao seu escritório. "Detesto aquele maldito Sperlich", ele disse, "e não quero que ele se sente ao seu lado. Está sempre cochichando no seu ouvido. Não quero que vocês dois fiquem conspirando con-tra mim desse jeito."

Não tive outra escolha senão chamar Sperlich e lhe dar a notí-cia. "Hal", falei, "sei que é ridículo, mas você não pode mais sentar-se ao meu lado." Eu queria chegar só até aí. Hal era, sem dúvida, o melhor jogador do time, e nada neste mundo me faria deixá-lo na reserva.

Afinal de contas, a única coisa que eu podia fazer para salvar Hal era deixá-lo bem longe da vista de Henry. Eu o indiquei para cuidar de alguns projetos na Europa e ele logo se tornou um viajan-te transatlântico regular. Qualquer que fosse o problema, Hal iria a-trás e o resolveria. O Fiesta foi o seu maior acerto, mas quase tudo em que ele punha a mão se transformava em ouro.

Pouco depois, Henry me chamou e ordenou que demitisse Hal Sperlich.

"Henry", falei, "você só pode estar brincando. Ele é o melhor profissional que já tivemos."

"Demita-o agora", disse Henry. Estávamos no meio da tarde. Eu ia deixar o escritório e tomar

um avião para New York. Perguntei a Henry se podia deixar para quando voltasse.

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"Se você não lhe der um pontapé agora mesmo", respondeu Henry,"vai embora junto com ele."

Vi que não tinha jeito. Mesmo assim, tentei argumentar com ele: "Sperlich fez o Mustang, ele nos fez ganhar milhões".

"Não me venha com besteiras", respondeu Henry. "Não gosto dele. Você não tem direito de me perguntar por quê. É só um senti-mento meu."

Hal ficou muito abalado. Embora nós dois enxergássemos o que ia acontecer, sempre se mantém a esperança de que, se a gente trabalhar direito, a justiça acaba prevalecendo. Hal acreditava que o seu talento era suficiente para mantê-lo na Ford, mesmo que o che-fão não gostasse dele. Mas ele se esquecia de que trabalhávamos numa ditadura.

"Este ambiente é uma desgraça", eu disse a Sperlich. "E eu de-veria estar saindo junto com você. Meu cargo é mais alto que o seu, mas tenho que conviver com a mesma sujeira. Talvez Henry lhe es-teja fazendo um favor. Num ambiente mais democrático, seu talento será reconhecido e recompensado. É difícil acreditar nisso agora, mas algum dia você vai se lembrar e ficar grato por Henry ter man-dado você embora."

Acho que fui profético. Logo depois da demissão de Hal, o presidente da Chrysler o convidou para almoçar. No início de 1977, Hal começou a trabalhar na Chrysler. Logo assumiu um papel de li-derança no planejamento dos carros pequenos da empresa, onde fez tudo o que gostaria de ter feito na Ford.

Menos de dois anos depois, eu e Hal estávamos trabalhando jun-tos de novo. Hoje ele é presidente da Chrysler. E numa deliciosa revi-ravolta, seus carros de tração dianteira, em especial os novos minifur-gões T:l 15 — os carros que Henry nunca lhe permitiu fazer na Ford —, estão engolindo inexoravelmente a fatia de mercado da Ford.

No início de 1977, Henry declarou guerra total. Contratou

McKinsey & Company, consultores administrativos, para reorgani-zar a cúpula da empresa. Quando o projeto ficou pronto, um alto executivo da organização deixou um bilhete na minha mesa: "Vá se agüentando aí, Lee. Mas não vai ser fácil. Seu chefe é um ditador absoluto e total, e não sei como o seu pessoal vai reagir".

Depois de meses de estudo e uns dois milhões de dólares de honorários, McKinsey apresentou as suas recomendações. O plano sugeria um triunvirato — uma estrutura com três membros no cargo

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de chefe executivo — para substituir a estrutura tradicional de pre-sidente do conselho e presidente.

O novo sistema foi instalado formalmente em abril. Henry, na verdade, continuou a ser presidente do conselho e chefe executivo. Phil Caldwell foi nomeado vice-presidente do conselho e eu conti-nuei como presidente.

Cada um de nós tinha suas próprias responsabilidades, mas a mudança principal — e a razão óbvia para a criação do novo siste-ma — foi explicada num memorando de Henry que especificava: "O Vice-Presidente do Conselho é o Chefe Executivo na ausência do Presidente do Conselho". Em outras palavras, se Henry era o primeiro, Phil Caldwell agora era o segundo.

A designação de Caldwell como número dois tornava a minha guerra com Henry totalmente clara. Até então, a tática era de guerri-lha. Mas agora Henry estava atacando em massa. Toda a mudança na administração fora apenas uma manobra complicada e cara para me tirar o poder de uma forma "socialmente aceitável". Sem ter que me enfrentar de maneira direta, Henry havia conseguido colocar Caldwell acima de mim.

Era um soco na cara. Quando havia algum jantar, Henry enca-beçava a mesa um, Caldwell, a dois, e eu era relegado à mesa três. Era uma humilhação pública, como a do sujeito preso numa gaiola no centro da cidade.

Ele me arrebentou por dentro. Arrebentou minha mulher e mi-nhas filhas. Elas sabiam que eu estava sofrendo uma grande pres-são, mas eu não lhes contava todos os detalhes. Não queria que fi-cassem loucas. Eu estava me matando, mas não podia fraquejar. Pode ter sido orgulho, pode ter sido burrice, mas eu não ia sair de lá correndo com o rabo entre as pernas.

O cargo de chefe executivo era um monstro de três cabeças. Era ridículo que Caldwell, que antes trabalhava para mim, de repen-te estivesse acima de mim, sem nenhuma razão aparente a não ser maldade. Em particular, eu disse a Henry que esse plano era um grande erro. Mas, como sempre, ele tentou me convencer com bes-teiras: "Não se preocupe, no fim tudo vai dar certo".

Embora estivesse fervendo por dentro, em público eu defendia a nova estrutura. Garantia a todos que trabalhavam comigo que o arranjo era ótimo.

Não foi nenhuma surpresa que o cargo de chefe executivo não tivesse durado muito. Catorze meses depois da sua criação, em ju-

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nho de 1978, Henry anunciou outra mudança na cúpula administra-tiva: ao invés de três membros, nosso pequeno grupo agora teria quatro.

O novo membro era William Clay Ford, irmão mais novo de Henry. Bill foi trazido para manter a presença da família Ford em caso de doença ou de morte de Henry.

Passei então para o quarto lugar na hierarquia. Além do mais, eu não respondia mais diretamente a Henry e sim a Phil Caldwell, que havia sido nomeado chefe executivo em exercício. Para com-pletar a humilhação, Henry não se deu ao trabalho de me comuni-car esta nova reestruturação até um dia antes da sua comunicação oficial.

Quando finalmente ele me deu a notícia, eu disse: "Acho que

você está cometendo um erro". "Esta é a minha decisão e a decisão do conselho", ele respondeu. Estava na hora de cortar o salame — uma fatia de cada vez. Eu

estava sendo retalhado. A cada dia eu sentia falta de mais uma parte do corpo. Jurei que não ia tolerar aquilo.

Quatro dias depois, a 12 de junho, Henry se reuniu com os no-

vos membros externos do nosso conselho e disse-lhes que estava prestes a me demitir. Dessa vez o conselho virou a mesa. Os mem-bros disseram: "Não, você está cometendo um erro, vamos contor-nar a situação. Vamos falar com Lee. Vá lá e peça desculpas a ele".

"Hoje perdi meu conselho", ele disse a Frank Murphy. No dia seguinte, Henry foi ao meu escritório pela terceira vez

em oito anos. "Vamos fazer as pazes", falou. O conselho havia decidido que eu deveria me reunir com al-

guns dos seus membros para tentar colocar um ponto final nos nos-sos problemas. Nas semanas seguintes, encontrei-me separadamen-te com Joseph Cullman, dirigente da Philip Morris em New York, e com George Bennett, presidente da State Street Investiment Cor-poration em Boston. Não havia nada de sigiloso nessas reuniões. A idéia tinha sido deles. Para me encontrar com eles, eu viajava no a-vião da empresa e apresentava relatórios de despesas; era tudo pú-blico e notório.

A falsa paz durou um mês. Na noite do dia 12 de julho de 1978, Henry jantou com os membros externos do conselho, como

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costumava fazer todos os meses na véspera da reunião do conselho. Mais uma vez anunciou que ia me demitir. Desta vez alegou que eu estava conspirando contra ele, reunindo-me com os diretores exter-nos nas costas dele — embora eles me tivessem convidado para os encontros. Falou ainda que nunca houvera empatia entre nós. Pare-ce que Henry Ford precisou de trinta e dois anos para concluir que não se dava bem comigo.

Dessa vez também vários membros do conselho o desafiaram. Fizeram referência à minha lealdade e à minha importância para a empresa. Pediram a Henry para me devolver à minha antiga posição de número dois.

Henry ficou lívido. Não estava acostumado a ser contestado pe-lo conselho. "Ele ou eu", vociferou. "Vocês têm vinte minutos para mudar de idéia." E saiu intempestivamente da sala.

Até então, ele não tinha ousado demitir a pessoa que o estava fazendo ganhar todo o seu dinheiro, que era o pai do Mustang, do Mark e do Fiesta e que era muito popular na empresa. Acho que ele tinha dúvidas sobre a possibilidade de escapar ileso de uma decisão como essa.

Mas afinal, frustrado, ele simplesmente perdeu o controle. De-via estar pensando: "Já se passaram três anos, e esse sujeitinho ain-da está aqui". Quando viu que não conseguia me levar a pedir de-missão, acabou decidindo tomar a iniciativa. Ele sempre poderia se justificar depois. Na mesma noite recebi um telefonema de Keith Crain, editor de Automotive News, a revista semanal sobre negócios da indústria automobilística. "Diga que não é verdade", falou.

Eu não tinha dúvidas sobre o que ele estava querendo dizer. Crain era amigo íntimo de Edsel, filho de Henry, e desconfio que Henry havia instruído Edsel para deixar a história transpirar. Assim, eu poderia ficar sabendo da minha demissão indiretamente, através da imprensa. Era uma atitude típica de Henry. Ele queria que a no-tícia da minha demissão me atingisse através de um terceiro. Henry era um profissional na arte de espicaçar. Essa manobra mais uma vez garantia que o rei não teria que sujar as mãos com meros pro-blemas de Estado.

Na manhã seguinte, fui para o trabalho normalmente. No escri-tório nada indicava que houvesse algo errado. Na hora do almoço eu já estava começando a achar que Keith Crain talvez estivesse mal-informado. Mas pouco antes das três, a secretária de Henry me chamou para ir ao escritório dele. "É agora", pensei.

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No santuário, encontrei Henry e seu irmão Bill sentados atrás de uma mesa de mármore, com cara de quem estava sentindo "chei-ro de merda". Estavam tensos e nervosos. Eu estava estranhamente calmo. Já estava prevenido. Sabia o que ia acontecer. A reunião era apenas para oficializar tudo.

Eu não esperava que Bill estivesse junto na hora da demissão, mas sua presença fazia sentido. Era uma forma de dizer que a deci-são não era apenas de Henry, mas de toda a família. Bill era o maior acionista da empresa, por isso sua presença trazia também uma mensagem política. Se Bill concordasse com a decisão do irmão, não me restaria qualquer recurso. Henry também queria uma teste-munha. Em geral, ele delegava este trabalho sujo aos outros — es-pecialmente a mim —, que concretizavam as demissões por ele. Mas dessa vez ele estava à vontade. Ter Bill ao seu lado provavel-mente tornava mais fácil para ele me mandar embora. O fato de Bill estar ali também fez com que eu me sentisse melhor. Ele era um grande fã meu e um bom amigo. Já me havia prometido que, quan-do a coisa explodisse — o que sabíamos que ia acontecer —, lutaria a meu favor. Eu sabia que não podia contar com o seu apoio inte-gral, pois ele nunca havia enfrentado Henry. Mesmo assim, eu tinha alguma esperança de que ele interferisse.

Quando me sentei à mesa, Henry pigarreou, embaraçado. Ja-mais tinha demitido ninguém e não sabia como começar. "Está che-gando a hora de fazer as coisas à minha maneira", disse ele final-mente. "Resolvi reorganizar a empresa. Esse é o tipo de coisa que a gente detesta fazer, mas tem que ser feita de alguma forma. Foi bom trabalhar com você" — olhei para ele sem conseguir acreditar — "mas acho que você deve ir embora. É melhor para a empresa."

Em nenhum momento durante a reunião de quarenta e cinco minutos ele usou a palavra "demitido". "Por quê?", perguntei.

Mas Henry não era capaz de me apresentar uma razão. "É coisa pessoal", disse, "e não posso lhe dizer mais nada. É uma dessas coi-sas que acontecem."

Mas eu insisti. Queria forçá-lo a me dar uma razão, pois sabia que ele não tinha nenhuma. Por fim ele sacudiu os ombros e disse: "Bem, às vezes você simplesmente não gosta de uma pessoa".

Eu só tinha uma carta na mão. "O que Bill acha disso?", per-guntei. "Gostaria de saber o que ele pensa." "Eu já tomei a decisão", disse Henry.

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Eu estava desapontado, mas nem um pouco surpreso. O sangue é mais denso que a água, e Bill fazia parte da dinastia.

"Certamente tenho alguns direitos", falei, "e espero que não ha-ja qualquer divergência quanto a isso." Eu estava preocupado com a minha pensão e com a indenização.

"Podemos resolver isso", disse Henry. Combinamos que, ofici-almente, minha demissão da empresa seria registrada em 15 de ou-tubro de 1978 — dia em que fiz cinqüenta e quatro anos. Se tivesse saído antes, teria perdido muitos benefícios.

Até este ponto, nossa conversa havia sido incrivelmente calma. Então ataquei. Para que Henry se lembrasse, citei uma série de rea-lizações minhas a favor da Ford Motor Company. Lembrei que tí-nhamos acabado de completar os dois melhores anos da nossa his-tória. Queria que ele soubesse o que estava jogando fora.

Quando acabei de falar disse: "Olhe para mim". Até aquele momento ele não tinha conseguido me encarar. Fui levantando a voz, agora que percebia que aquela seria nossa última conversa.

"Seus métodos não valem nada", falei. "Acabamos de ganhar um bilhão e oitocentos pelo segundo ano consecutivo. Isso dá três bilhões e meio nos últimos dois anos. Mas guarde bem as minhas palavras, Henry. Você nunca mais vai ver um bilhão e oitocentos. E você sabe por quê? Antes de tudo porque você não sabe o que fize-mos para ganhá-los!"

E era verdade. Henry era especialista em gastar dinheiro, mas nunca entendeu como o dinheiro entrava. Apenas se sentava em sua torre de marfim e dizia: "Meu Deus, estamos ganhando dinheiro!" Ele aparecia lá todo dia para exercer o seu poder, mas nunca soube o que fazia a coisa andar.

Quase no final da reunião, Bill fez um esforço honesto para fa-zer o irmão mudar de idéia. Mas não adiantava, era tarde demais. Quando saímos do escritório, Bill estava com lágrimas nos olhos. "Isto não podia ter acontecido", repetia. "Ele é desumano."

Depois ele se recompôs. "Vocês estavam tão frios. Você esteve conosco por trinta e dois anos e ele nem apresentou alguma razão. Você realmente acabou com ele. Ele nunca levou uma chamada como essa de ninguém. Não sei como agüentou."

"Obrigado, Bill", falei. "Mas eu estou morto e você e ele ainda estão vivos!"

Bill é uma boa pessoa, mas sempre se trata dos Ford contra o mundo. Mesmo assim, continuamos amigos. Sei que ele queria de

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fato que eu continuasse como presidente — e que acreditava since-ramente que não podia fazer nada.

Quando voltei ao meu escritório, comecei a receber telefonemas de alguns amigos e colegas. Ao que parecia, a notícia da minha de-missão já havia se espalhado. Antes do final do dia, Henry emitiu um memorando cifrado aos executivos principais que dizia apenas: "A partir deste momento, você passa a se reportar a Philip Caldwell".

Alguns receberam este memorando no escritório. Mas muitos o encontraram no banco dianteiro do carro, na garagem dos executi-vos. Alguém me disse depois que o próprio Henry desceu e os colo-cou ali. Provavelmente, era a única maneira de ele ter certeza de que a tarefa tinha sido realizada.

Quando deixei o escritório naquele dia, tive uma grande sensa-ção de alívio. "Graças a Deus o suplício acabou", disse a mim mesmo no carro. Se tive que ser demitido, pelo menos meu desem-penho era bom. Tínhamos acabado de completar os melhores seis meses da nossa história.

Quando cheguei em casa recebi um telefonema de Lia, minha filha mais nova, que estava numa temporada de tênis — a primeira vez que esteve fora de casa. Ela soubera da demissão pelo rádio e estava chorando.

Quando me lembro daquela semana terrível, o que me vem à lembrança mais nitidamente é Lia chorando ao telefone. Odeio Henry pelo que ele me fez. Mas eu o odeio ainda mais pelo modo como o fez. Não me deu tempo para sentar e contar às minhas filhas antes que o mundo inteiro soubesse. Nunca o perdoarei por isso.

Lia não estava apenas triste. Também estava zangada porque eu não tinha contado com antecedência que estava para ser demitido. Ela não conseguia acreditar que eu não soubesse que isso ia acontecer.

"Como é possível que você não soubesse?", perguntou. "Você é o presidente dessa empresa. Você sempre sabe o que está aconte-cendo!"

"Não desta vez, querida." Ela teve uma semana muito dura. Creio que havia crianças que

tinham um prazer sádico em ver que a filha do presidente, que sem-pre tivera do bom e do melhor, finalmente estava passando por um mau momento.

Logo ficou claro que Henry havia tomado a decisão de me de-mitir num impulso, embora ela fosse inevitável a longo prazo. Na mesma semana, a empresa havia distribuído material com informa-

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ções prévias sobre o lançamento do Mustang 1979. Dentro do paco-te havia uma fotografia minha na frente do novo carro. Mas quando o Mustang foi lançado algumas semanas depois, no Dearborn Hyatt Regency, foi Bill Bourke quem representou a empresa.

Dizem que quanto maior a altura, maior o tombo. Bem, eu me

senti muito mal naquela semana. Identifiquei-me imediatamente com cada uma das pessoas que eu já havia demitido.

Quando fui para a Chrysler alguns meses depois, tive que demi-tir centenas de executivos para poder manter a empresa em pé. Fiz o possível para agir com um pouco de sensibilidade. Pela primeira vez na minha vida, aprendi como é terrível ser mandado embora.

Depois de ter sido demitido, senti como se tivesse deixado de existir. Frases como "pai do Mustang" já não poderiam ser usadas. Pessoas que haviam trabalhado para mim, meus colegas e amigos, tinham medo de me encontrar. Ontem eu era um herói. Hoje era uma pessoa a ser evitada a todo custo.

Todos sabiam que Henry estava preparado para expurgar quem apoiava Iacocca. Quem não conseguisse cortar totalmente as rela-ções diplomáticas e sociais comigo corria o risco de ser demitido.

Meus antigos amigos pararam de me telefonar, pois o meu tele-fone poderia estar grampeado. Chegavam ao ponto de perceber mi-nha presença numa exposição de automóveis e olhar para o outro lado. Os corajosos se aproximavam de mim e me davam um rápido aperto de mão. Mas logo se afastavam, antes que o fotógrafo do De-troit Free Press pudesse registrar o encontro. Afinal de contas, Henry poderia ver a foto no jornal. E então ele executaria o traidor que tinha sido visto em público com o pária.

Na semana da minha demissão, Walter Murphy, que tinha sido meu colaborador e diretor executivo mundial de relações públicas da empresa durante vinte anos, recebeu um telefonema de Henry no meio da noite.

"Você gosta de Iacocca?", Henry perguntou. "Claro", respondeu Walter. "Então você está demitido", disse Henry. Henry voltou atrás no dia seguinte, mas isso mostra como ele

estava louco. Vários meses depois, Fred e Burns Cody, dois velhos amigos

meus, me ofereceram uma festa. Só algumas pessoas da Ford com-pareceram e apenas uma da administração — Ben Bidwell. Ele cor-

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reu um grande risco. No dia seguinte, quando chegou ao trabalho, Bidwell foi chamado à sala acarpetada. "Queremos saber quem es-tava naquela festa", disseram-lhe.

E a coisa não parou por aí. O massagista da empresa, um gran-de amigo meu, continuou a me atender durante um ou dois anos. Então, num domingo, ele não apareceu. Disse que estava sob vigi-lância, e nunca mais o vi. Alguém deve ter contado que ele tinha si-do visto indo a minha casa para me fazer massagem e ele não podia correr o risco de perder o emprego. Quase quatro anos depois da minha demissão, a aeromoça-chefe da frota da empresa foi transfe-rida e rebaixada porque ainda mantinha relações de amizade com minha mulher e minhas filhas.

Para mim, a dor permaneceu por muito tempo depois da des-graça. Um dos meus melhores amigos na empresa foi amigo íntimo da minha família por vinte e cinco anos. Jogávamos pôquer toda sexta-feira à noite. Nossas famílias passavam férias juntas. Mas, depois que fui demitido, deixou até mesmo de me telefonar. E quando Mary faleceu, em 1983, ele nem sequer foi ao enterro.

Meu pai sempre dizia que se na hora de morrer você tiver cinco amigos de verdade, você teve uma vida ótima. Descobri de um dia para outro o que ele queria dizer com isso. Foi uma dura lição. Vo-cê pode ser amigo de uma pessoa durante décadas. Você pode parti-lhar com ela todos os bons e maus momentos. Você pode tentar a-judá-la quando ela passa por uma situação difícil. Então, quando chega a sua vez de passar por uma situação difícil, você nunca mais ouve falar dessa pessoa.

Isso realmente nos leva a fazer grandes indagações. Se eu pu-desse começar de novo, poderia ter cuidado melhor da minha famí-lia? Minha mulher e minhas filhas tinham sofrido uma pressão in-suportável. Você vê sua esposa ficar cada vez mais doente — Mary teve o primeiro ataque do coração menos de três meses depois da minha demissão — e começa a refletir. Um homem cruel e um des-tino cruel intervém e mudam a sua vida.

Sofri demais depois da demissão e me teria feito muito bem re-ceber um telefonema de alguém que me dissesse: "Vamos tomar ca-fé juntos, sinto muito o que aconteceu". Mas a maioria dos meus amigos da empresa me abandonou. Foi o maior choque da minha vida. Até certo ponto, posso compreender essa atitude. Não era cul-pa deles se a empresa era uma ditadura. Seus empregos de fato esta-

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riam ameaçados se continuassem a manter relações comigo. Ti-nham contas para pagar e filhos para alimentar.

Mas, e o conselho? Seus membros eram ilustres guardiões da Ford Motor Company. Esperava-se que constituíssem um sistema de controle e de equilíbrio para evitar abusos flagrantes de poder por parte da cúpula administrativa. Mas tenho a impressão de que sua ati-tude foi: "Enquanto recebermos nossa parte, seguiremos o chefe".

Quando Henry ordenou ao conselho que escolhesse entre ele e eu, por que o deixaram demitir a pessoa em quem tinham tanta con-fiança? Pode ser que não tivessem condições de impedir que isso acontecesse, mas pelo menos alguns poderiam ter-se demitido em protesto. Ninguém o fez. Ninguém disse: "Isto é uma vergonha. Es-se sujeito está nos fazendo ganhar bilhões por ano e você o está demitindo? Então também vou embora".

Este é um mistério que ainda quero desvendar antes de morrer. Como aqueles membros do conselho conseguem dormir em paz? Por que Joe Cullman, George Bennett, Frank Murphy e Carter Bur-gess não enfrentaram Henry Ford? Até hoje, não consigo saber co-mo os membros do conselho podem defender a decisão que toma-ram, diante de si mesmos e de qualquer outra pessoa.

Depois que deixei a empresa, os únicos de quem ouvi uma pa-lavra foram Joe Cullman, Marian Heiskell e George Bennett. Quan-do assinei contrato com a Chrysler, Marian ligou para me desejar boa sorte. Ela era uma verdadeira dama.

Continuei a manter relações cordiais com George Bennett, da State Street Investiment. Ele disse: "Sabe, se tivesse tido coragem, teria saído junto com você. Mas administro um fundo de pensão da Ford e o perderia na hora se fosse com você para a Chrysler".

Depois que Mary morreu, recebi uma carta de Bill Ford e um bilhete de Franklin Murphy. E foi só. Depois de todos os anos que trabalhamos juntos, esta foi a primeira e última vez que ouvi falar no conselho durante o meu calvário.

Na reunião anual que se seguiu à minha dispensa, Roy Cohn levantou-se e perguntou a Henry: "Demitindo Iacocca, de que for-ma você ajudou os acionistas?"

Henry apenas sorriu e disse: "Bem, o conselho me apoiou, mas esta é uma informação confidencial!"

A dispensa despertou bastante interesse no mundo exterior.

Walter Crontike apresentou os detalhes no The CBS Evening News,

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comentando que "tudo isso parece coisa daqueles romances enor-mes a respeito do negócio de automóveis". The New York Times, numa matéria de primeira página, chamou a demissão de "um dos mais dramáticos golpes da história da Ford Motor Company". Dada a turbulência da nossa história, esta afirmação diz muita coisa.

Fiquei especialmente satisfeito com um editorial da Automotive News. Mencionou minha renda anual de um milhão de dólares e a-firmou que "sob todos os aspectos ele mereceu cada centavo". Sem fazer críticas diretas a Henry, o editorial disse: "O melhor jogador do mundo dos negócios agora tem passe livre".

Um certo número de editorialistas e colunistas achou a demis-são inquietante — e difícil de acreditar. Jack Egan, nas páginas so-bre finanças do Washington Post, escreveu que a forma como ela aconteceu "traz à tona a questão de uma empresa tão grande como a Ford ser dirigida como um ducado privado, pela vontade de um ú-nico homem".

Em Warren, Rhode Island, o jornal local levantou uma questão semelhante. Citando um artigo do Wall Street Journal, que explica-va minha demissão pelo fato de que eu "estava voando próximo demais do avião Número Um da Força Aérea", um colunista obser-vou: "Isto é um pouco assustador quando se pensa que a Ford nos Estados Unidos é tão grande que tudo o que ela faz afeta a todos. E ao que parece, o que acontece na Ford está sob o controle de um ve-lho arrogante que não tem consideração por ninguém. Ele simples-mente faz o que quer".

Nicholas Von Hoffman, colunista do sindicato, foi ainda mais longe. Chamando Henry de "adolescente de 60 anos", concluiu: "Se o emprego de uma pessoa como Iacocca não é seguro, será que o de alguém é?"

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XII O DIA SEGUINTE

ssim que souberam da notícia, os revendedores Ford levantaram-se em pé de guerra. Ed Mullane, re-vendedor em Bergenfield, New Jersey, e presidente da Associação de Revendedores Ford (FDA), que contava com mil e duzentos membros, ficou especialmente contrariado.

Mullane já havia percebido que eu estava em apuros. Por inici-ativa própria, escreveu a Henry uma carta dando apoio a mim e a todos os diretores. Henry respondeu dizendo que ele cuidasse do que era da sua conta. Certa vez, eu ia passando pelo escritório de Henry e o ouvi xingar pelo telefone: "Iacocca foi procurar Mullane, aquele filho da puta, e pediu para ele fazer isso". É claro que nunca fiz uma coisa dessas.

Depois da demissão, Mullane liderou uma campanha para me fazer voltar e para exigir a indicação de um revendedor no conselho administrativo. Segundo seus cálculos, os revendedores tinham um investimento total de cerca de dez bilhões de dólares nas suas várias franquias, e eu representaria o melhor meio de dar proteção a esse investimento. Mais tarde, naquele mesmo verão, ele até tentou or-ganizar um protesto dos distribuidores que também eram acionistas da empresa, mas o plano não foi adiante.

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Embora Mullane não tenha tido êxito nos seus esforços para que eu fosse readmitido, houve indícios de que a Ford estava preo-cupada com a eventual repercussão de meu afastamento junto à sua base de revendedores. No dia seguinte ao da minha demissão, Hen-ry enviou uma carta a cada um dos revendedores do país, tentando convencê-los de que não seriam negligenciados: "A empresa tem uma equipe de administradores fortes e experientes. As operações automobilísticas nos Estados Unidos são dirigidas por executivos talentosos, que vocês conhecem bem e que estão plenamente sinto-nizados com as necessidades de vocês e do mercado". Mas, com e-feito, se tudo aquilo fosse verdade, não teria sido necessário fazer aquela carta.

Recebi inúmeros telefonemas e cartas dos nossos revendedores. Sua preocupação e seu apoio significavam muito para mim. Com freqüência a imprensa me descreve como "exigente", "rigoroso" e "impiedoso". Se fosse, mesmo assim, não creio que os revendedores tivessem corrido em meu auxílio. Tivemos nossos desentendimen-tos, mas sempre os tratei razoavelmente bem. Enquanto Henry cor-ria atrás do jet-set e aprontava o diabo, eu lhes dava atenção como pessoas. Também ajudei muitos deles a se tornarem milionários.

Henry indicou Bill Ford e Carter Burgess, um membro do con-

selho, para decidirem a respeito da minha indenização. Eu lhes dis-se a quantia que tinha direito a receber, mas eles foram sacanas até o amargo fim. Para conseguir o que merecia contratei Edward Ben-nett Williams, o melhor advogado que eu conhecia. No final, con-segui cerca de 75 por cento do que realmente deveria receber.

Ao me lembrar desse episódio, o que continua atravessado na minha garganta é a imagem de Carter Burgess e Henry Noite, prin-cipal conselheiro de Henry, falando baboseiras sobre como eles gostariam de ser razoáveis, mas que não podiam criar nenhum pre-cedente quanto a acordos financeiros por causa dos "interesses dos acionistas". Bill Ford, por sua vez, só ficou sentado mordendo os lábios.

Recebi muitas cartas de apoio de ex-companheiros de trabalho. Todas foram escritas a mão, naturalmente, para que, sem cópias, não houvesse provas de que haviam sido enviadas. Houve também cartas e telefonemas de caçadores de talentos, ansiosos para me a-judar a arrumar emprego.

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Creio que aquela manhã de exílio no depósito de peças teve uma influência fundamental sobre a minha decisão, tomada duas semanas depois, de aceitar a presidência da Chrysler. Se não fosse pela humilhação no depósito, eu teria ficado parado por algum tem-po, jogando golfe ou viajando com a família.

Mas fiquei com tanta raiva do que aconteceu, que foi bom eu ter arrumado emprego imediatamente. Se não fosse isso, eu teria me deixado consumir pelo rancor.

Uma conseqüência curiosa da demissão foi que agora eu podia convidar Pete e Connie Estes para jantar em casa. Pete, que morava bem perto de nós, era presidente da General Motors. Durante anos, desde que nos conhecemos, nunca estivemos juntos em situações sociais, pois desde que comecei a trabalhar na Ford nós dois tínha-mos que obedecer a uma regra implícita que determinava que, se uma pessoa da Ford e uma da GM fossem vistas juntas jogando tê-nis ou golfe, certamente estavam combinando uma política conjunta de preços ou conspirando contra o sistema de livre empresa. Os e-xecutivos da GM eram especialmente cuidadosos, pois sua empresa estava sempre sob ameaça de ser desmembrada, por ser um mono-pólio. O resultado era que nós, que ocupávamos posições de poder nas Três Grandes, raramente sequer nos cumprimentávamos.

Essa mudança foi um prêmio especial para Mary, pois ela gos-tava de Connie Estes e agora não precisariam encontrar-se às es-condidas. É ridículo, mas esta era a norma de conduta em Grosse Pointe e em Bloomfield Hills nos anos 70.

Minha amizade recém-descoberta com Pete Estes não durou muito. Quando assinei contrato com a Chrysler, tivemos que nos afastar outra vez.

Pouco tempo depois da minha dispensa, um dos jornais de De-

troit divulgou que um "porta-voz da família" Ford teria dito que eu havia sido demitido por "má conduta" e porque era muito "afoito", e que entre um filho de imigrante italiano nascido em Allentown, Pennsylvania, e Grosse Pointe, a distância era muito grande.

Era um insulto, mas não era tão surpreendente. Para os Ford eu sempre tinha sido um forasteiro! Pois se até a mulher de Henry, Cristina, sempre tinha sido considerada uma forasteira! Todos na família a chamavam de a "Rainha da Pizza".

Tendo em vista os sentimentos de Henry com relação aos itali-anos, os comentários eram bem previsíveis. Nos últimos anos, ele

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se convenceu de que eu fazia parte da Máfia. Acho que o filme O Chefão foi suficiente para convencê-lo de que todos os italianos ti-nham ligação com o crime organizado.

Mas ele teria mesmo morrido de medo se tivesse ficado saben-do de um telefonema inesperado que recebi depois da publicação daquelas palavras anônimas no jornal. Um sujeito com sotaque ita-liano ligou para minha casa e disse: "Se o que lemos no jornal for verdade, queremos dar um jeito naquele desgraçado f.d.p. Ele des-truiu a honra da sua família. Vou lhe dar o meu telefone. Quando você quiser, quebraremos os braços e as pernas dele. Isto vai fazer a gente se sentir melhor. E certamente vai fazer você se sentir melhor também".

"Não, obrigado", falei. "Não é o meu estilo. Se o seu pessoal fizer isso, não vou ficar nem um pouco satisfeito. Se fosse para agir com violência, eu quebraria as pernas dele com as minhas próprias mãos.''

Durante a investigação de 1975, Henry várias vezes fez insinu-ações veladas de Queridos pais, eu teria ligações com a Máfia. Tan-to que eu saiba, nunca encontrei alguém da Máfia em toda a minha vida. Mas agora Henry havia lançado uma profecia que se realizaria por si mesma. De repente, eu tinha acesso justamente às únicas pes-soas capazes de levá-lo a sentir um medo enorme.

Não é que eu acredite em virar a outra face. Henry Ford destru-iu inúmeras vidas. Mas eu me vinguei sem recorrer à violência. Graças à pensão a que fiz jus, ele ainda me paga uma boa quantia para eu ir trabalhar toda manhã e tentar derrubá-lo. Isto deve levá-lo à loucura.

Depois que o choque inicial da demissão passou, comecei a

pensar sobre o que tinha acontecido entre Henry e eu. Em certo sen-tido, não faz diferença se você é o presidente da empresa ou o por-teiro. Ser demitido é sempre um golpe terrível, e você começa ime-diatamente a se perguntar: o que eu fiz de errado?

Certamente, nunca tive esperanças de me tornar o número um. Eu me conformei com isso desde muito cedo. Se eu quisesse ser chefe executivo de uma empresa, poderia ir para outros lugares — afinal, tive inúmeras oportunidades. Mas, enquanto permaneci na Ford, sabia que um membro da família sempre estaria dirigindo a empresa, e aceitava isso. Se eu tivesse a ambição de ser chefe exe-

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cutivo, teria saído da Ford há muito tempo. Mas, até 1975, eu esta-va satisfeito com o meu emprego.

Fui demitido pelo fato de representar uma ameaça ao chefe. Henry era famoso por colocar seu número dois em circunstâncias desagradáveis. Para ele, era sempre a revolta dos camponeses con-tra o amo e senhor. Além disso, sempre me apeguei à idéia de que eu era diferente e de que, de alguma forma, eu era mais esperto e ti-nha mais sorte que os outros. Não pensei que algum dia isso fosse acontecer comigo.

Eu deveria ter refletido um pouco mais sobre a história da em-presa. Eu sabia que Ernie Breech tinha sido mandado para o infer-no, para onde algum dia eu iria também. Sabia que Tex Thornton e McNamara não viam a hora de sair depois de terem entrado lá co-mo Garotos-Prodígio. Sabia que Beacham dizia todo dia: "Esse su-jeito é louco, e é melhor você se preparar para a tempestade". Arjay Miller, Bunkie Knudsen e até mesmo John Bugas, que era amigo de Henry, terminaram do mesmo jeito. Bastaria eu rever a história para que minha autobiografia aparecesse bem diante dos meus olhos.

Então houve a doença de Henry. Ele tinha certeza de que se al-guma coisa lhe acontecesse, eu manipularia a família para assumir o controle da empresa. "Quando tive angina em janeiro de 1976", dis-se ele a um repórter de Fortune, "de repente descobri que não iria viver para sempre. Perguntei a mim mesmo: Onde vai parar a Ford Motor Company sem mim? Cheguei à conclusão de que Iacocca não me poderia suceder como presidente do Conselho." O maldito nunca deixou isso claro, nem para mim, nem para o conselho e pro-vavelmente nem mesmo para si próprio.

Os Ford são uma das últimas grandes dinastias familiares dos Estados Unidos. Em qualquer dinastia, o primeiro instinto é a auto-preservação. Qualquer coisa, qualquer coisa — boa, ruim ou neutra — que possa afetar a dinastia torna-se um problema em potencial para o homem que a lidera.

Henry jamais escondeu sua intenção de que o seu filho Edsel o sucedesse, e ele acreditava que eu era um obstáculo à realização desses planos. Como um amigo meu costuma dizer: "Lee, você não foi afetado pelo fracasso do primeiro Edsel. Mas com toda a certeza foi atingido em cheio pelo fracasso do segundo!"

Depois da demissão, só encontrei Henry uma vez. Quatro anos e meio depois, Mary e eu fomos convidados por Khatharine Gra-

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ham para uma das festas de sessenta anos da Newsweek, que foram realizadas em vários locais do país. Em Detroit, por ironia, a co-memoração foi feita no salão de baile do Renaissance Center.

Isto aconteceu alguns meses antes da morte de Mary. Ela não estava se sentindo muito bem e eu fiquei a seu lado a noite inteira. Estávamos sentados à mesa com Bill Bonds, o principal noticiarista de Detroit, um grande sujeito. Num dado momento, enquanto Mary e Bill conversavam, fiquei olhando ao acaso, e percebi Henry e a esposa chegando à recepção.

"Hum", falei. Mary se virou. "Hum", fez ela. Sempre penso nesse momento. Sou uma pessoa razoavelmente calma, mas sempre imaginei o que aconteceria se eu encontrasse Henry depois de ter tomado uns drinques. Eu me perguntava se iria sair da linha. Por muito tempo tive a fantasia de dar-lhe um chute lá onde dói, e na verdade não tinha certeza de que conseguiria lidar com aquilo.

Nossos olhares se cruzaram. Fiz um sinal com a cabeça, e sabia que ele tinha três opções. A primeira era fazer também um sinal com a cabeça e dizer alô e depois se perder no meio das pessoas. Esta seria uma forma de não dar o braço a torcer.

Sua segunda alternativa era se aproximar e dizer algumas pala-vras. Poderíamos apertar as mãos. E ele.poderia até me abraçar. Isto seria esquecer o passado. Seria a atitude mais decente; portanto, era esperar demais.

Sua terceira opção era fugir como o diabo foge da cruz. E foi o que ele fez. Agarrou a sua esposa, Kathy, e fugiu.

Foi a última vez que vi Henry Ford. Muita coisa aconteceu desde 13 de julho de 1978. As marcas

deixadas por Henry Ford, especialmente na minha família, serão duradouras, pois as feridas foram profundas. Mas os acontecimen-tos dos últimos anos tiveram um efeito curativo. E assim vamos se-guindo o nosso caminho.

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A HISTÓRIA DA CHRYSLER

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XIII CORTEJADO

PELA CHRYSLER

e eu tivesse a mais vaga idéia do que e esperava, quando me liguei à Chrysler, não teria ido nem por todo o dinheiro do mundo. É bom que Deus não nos permita enxer-gar um ano ou dois à frente, senão ficaríamos muito tentados a dar um tiro na cabeça. Mas Ele é um Deus caridoso: só permite que se veja um dia de cada vez. Quando os tempos ficam difíceis, o único jeito é respirar fundo, continuar e fazer o melhor possível.

Logo que a demissão foi anunciada, fui procurado por algumas empresas de outros ramos, inclusive a International Paper e Lock-heed. Charles Tandy, dono da Rádio Shack, pediu-me para ir traba-lhar para ele. Três ou quatro escolas de administração, inclusive a NYU, me convidaram para decano. Algumas dessas ofertas eram tentadoras, mas eu não conseguia avaliá-las seriamente. Sempre trabalhei no ramo de automóveis e era aí que eu queria permanecer. Não fazia muito sentido eu ficar mudando de carreira àquela altura da minha vida.

Aos cinqüenta e quatro anos, eu era muito jovem para me apo-

sentar e muito velho para começar a trabalhar num ramo totalmente diferente. Além disso, os carros estavam em meu sangue.

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Nunca concordei muito com a idéia de que nos negócios as ha-bilidades são intercambiáveis, de que o presidente da Ford poderia dirigir igualmente bem qualquer outra grande empresa. Na minha opinião, é como um sujeito que toca saxofone numa banda. Um dia o maestro diz: "Você é um bom músico. Por que não passa a tocar piano?" Ele diz: "Espere um pouco, eu toco sax há vinte anos! Não sei nada de piano".

Cheguei a receber uma oferta de uma empresa de automóveis. A Renault, da França, estava interessada em me contratar como consultor para o mundo todo. Mas eu não tenho jeito para ser con-sultor. Eu só sei trabalhar onde há ação. Gosto da responsabilidade de pôr a mão na massa. Se der certo, dêem-me o crédito. Se não der, serei o responsável.

Além disso, o empresário que existe em mim estava ficando agi-tado. Nesse ínterim, no verão de 1978, fiquei obcecado por uma idéia que denominei "Global Motors". Era um plano de grande enverga-dura, não exatamente o tipo de projeto que se põe em prática da noite para o dia. Meu sonho era formar um consórcio de empresas de automóveis na Europa, no Japão e nos Estados Unidos. Juntos, criaríamos uma força considerável, que desafiaria a supremacia da General Motors. Eu me considerava o novo Alfred Sloan, o homem que reorganizou a GM no período entre-guerras — e, na minha opi-nião, o maior gênio que jamais existiu no ramo de automóveis.

Os membros que eu tinha em mente para a Global Motors eram a Volkswagen, a Mitsubishi e a Chrysler, embora o piano pudesse admitir também parceiros diferentes, como a Fiat, a Renault, a Nis-san ou a Honda. Mas a Chrysler era a escolha americana lógica. A GM era grande demais para se juntar a qualquer outra empresa ou, pelo menos, era o que eu achava naquela época. A Ford estava fora de cogitação — por motivos óbvios.

A Chrysler, entretanto, poderia fornecer à Global Motors uma base sólida em engenharia. A engenharia podia ser o único ponto forte da Chrysler, mas era vital.

Pedi a um amigo — Billy Salomon, de Salomon Brothers, os banqueiros de investimento de New York — para pesquisar quais seriam as implicações de uma fusão de empresas desse tipo. Duran-te esse processo, aprendi muito sobre várias empresas de automó-veis, inclusive a Chrysler. Para ser preciso, aprendi muito sobre os seus balancetes. Mas, como logo descobri, havia uma diferença e-

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norme entre aquilo que uma empresa parece ser no papel e o modo como ela realmente opera.

De acordo com Salomon Brothers, o maior obstáculo à Global Motors eram as leis americanas antitruste. Como cinco anos fazem diferença! Atualmente, a Casa Branca está admitindo um empreen-dimento corporativo entre a General Motors e a Toyota, as duas maiores empresas de automóveis do mundo. Em 1978, até mesmo uma fusão entre a Chrysler e a American Motors teria sido impossí-vel. Por aí a gente vê como o mundo muda.

Desde que fui demitido pela Ford, passaram a circular boatos

pela cidade de que eu iria para a Chrysler. Eu estava disponível e a Chrysler estava com problemas; então, as pessoas juntaram dois e dois. A primeira proposta veio através de Claude Kirk, ex-governador da Flórida e meu amigo pessoal, que me perguntou se eu concordaria em ir a um almoço, em New York, com Dick Dil-worth e Louis Warren, dois membros do conselho da Chrysler. Dilworth administrava o império financeiro da família Rockefeller e Warren era um advogado de Wall Street, associado à Chrysler há trinta e cinco anos. Concordei em ir ao encontro. Por alguma razão desconhecida, ainda me lembro do que comemos no almoço: maris-cos na concha. Estavam tão bons que comi duas dúzias.

Foi mais um encontro de reconhecimento do terreno do que al-go oficial, e a nossa conversa ficou no nível das generalidades. Dilworth e Warren deixaram claro que estavam conversando comi-go como indivíduos e não como representantes oficiais da empresa. Falaram com muito interesse sobre o negócio de automóveis — e especialmente sobre a Chrysler. Mas, no geral, foi só uma conversa exploratória, mais social do que de negócios.

Enquanto isso, permaneci em contato com George Bennett. Logo percebi que ele tinha sido meu único amigo verdadeiro no conselho da Ford. Além de trabalhar lá, George também fazia parte do conselho da Hewlett-Packard. Bill Hewellet, co-fundador dessa empresa e pessoa muito afável, era membro do conselho da Chrys-ler. Ele sabia da minha amizade com Bennett e quando conversaram George teve a honestidade de dizer o quanto eu tinha sido valioso para a Ford.

Um pouco depois recebi um telefonema de John Riccardo, pre-sidente do conselho da Chrysler. Ele e Dick Dilworth marcaram um encontro comigo no Hotel Pontchartrain, a poucas quadras do Re-

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naissance Center. O objetivo do encontro era conversar, em termos gerais, sobre a possibilidade de eu ir para a Chrysler.

Mantivemos o encontro sob sigilo. Fui dirigindo o meu carro e entrei no hotel por uma porta lateral. Nem Gene Cafiero, presidente da Chrysler, ficou sabendo. Riccardo e Cafiero tinham uma rixa tão aberta que toda a cidade sabia da sua existência.

No encontro, tanto Dilworth como Riccardo ainda foram muito vagos. "Estamos pensando em fazer uma mudança", disse Riccardo, "as coisas não vão bem."

Isto era tão específico quanto eles queriam que fosse. Ambos estavam tentando me oferecer um cargo sem falar diretamente. A-chei isso uma bobagem, e então perguntei de forma direta: "O que, de fato, nos trouxe aqui?"

"A sua contratação", disse Riccardo. "Você estaria interessado em voltar ao ramo de automóveis?"

Eu disse que tinha algumas perguntas a fazer sobre a situação da Chrysler, antes de discutirmos a proposta de modo mais especí-fico. Eu queria saber exatamente onde estaria entrando.

"Não quero andar às cegas", eu disse. "Preciso saber até que ponto as coisas estão ruins. Preciso saber em que pé está a empresa, quanto dinheiro disponível vocês têm, qual o plano operacional para o próximo ano, quais os produtos futuros. E preciso saber principal-mente se vocês acreditam mesmo que é possível seguir em frente."

Nossos dois encontros seguintes foram marcados para o North-field Hilton, na periferia de Detroit. Riccardo me pintou um quadro desanimador, embora tudo indicasse que esse quadro poderia se modificar em um ano. Eu realmente não achei que John, ou qual-quer outra pessoa da Chrysler, estivesse tentando jogar areia nos meus olhos. Um dos maiores problemas da Chrysler, como logo percebi, era que nem mesmo a cúpula administrativa tinha uma i-déia clara do rumo das coisas. Sabiam que a Chrysler estava san-grando. O que eles não imaginavam — e o que logo descobri — é que ela estava com uma grave hemorragia.

Naquele momento, a proposta soava para mim como um desa-fio bom, instigante. Depois dessas reuniões, eu ia para casa e con-versava com Mary. Ela dizia: "Você só é feliz lidando com carros. E você é muito jovem para ficar sentado em casa. Esse sacana do Henry vai receber um golpe que ele nunca vai esquecer". Ela era muito agitada. Também falei com minhas filhas. Elas me disseram: "Se isso o faz feliz, vá em frente!"

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A única coisa que faltava era saber se a Chrysler podia me a-güentar — e não no sentido puramente financeiro. O que eu queria agora era ser meu próprio patrão. Nessa altura da minha vida, eu não tinha interesse em trabalhar para ninguém. Eu fora o número dois durante muito tempo. Se aceitasse o cargo na Chrysler, eu ti-nha que ser o número um dentro de um ano — ou nada feito!

Esse era o meu preço mínimo, até para começar a discutir a minha ida para a Chrysler. Não era apenas por causa da minha ex-periência com Henry, embora isso também pesasse. Eu também precisava ter liberdade total de ação para conseguir que a empresa invertesse o seu processo. Por outro lado, sabia que o meu modo de fazer as coisas era totalmente diferente do modo deles. Se eu não ti-vesse autoridade completa para colocar em prática o meu estilo de administração e a minha política, ir para a Chrysler se transformaria num grande exercício de frustração.

Eu tinha a impressão de que Riccardo queria que eu fosse pre-sidente e diretor operacional principal, enquanto ele próprio seria o presidente do conselho e chefe executivo. Mas, quando eu lhe disse o que queria, descobri que estava errado. "Escute", disse ele, "não vou ficar nesse trabalho por muito tempo. Aqui só há lugar para um chefe. Se você aceitar a proposta, será esse chefe. Caso contrário, nós não teríamos enfrentado todos os problemas de organizar essas reuniões."

De certa forma isso era triste, porque mostrava que ele não ti-nha sido mandado pelos diretores do conselho da Chrysler para me consultar. Tinha feito tudo por conta própria. Obviamente Riccardo percebeu que a empresa estava com problemas sérios e que ele não seria capaz de fazê-la se recuperar. Veio me procurar sem o conhe-cimento de Cafiero, sabendo muito bem que, se eu aceitasse a pro-posta, seus dias como presidente estariam contados.

Acertamos que eu entraria como presidente, mas me tornaria presidente do conselho e chefe executivo no dia 1º de janeiro de 1980. Riccardo viria a renunciar alguns meses antes, e eu me tornei o chefe em setembro de 1979.

John Riccardo e sua esposa, Thelma, foram duas das melhores pessoas que já encontrei. Infelizmente, a crise da Chrysler foi tão grave, que nunca cheguei a conhecê-los melhor. Mas uma coisa fi-cou bastante clara: John sacrificou a si mesmo para salvar a empre-sa. Ele seria passado para trás, e sabia disso. Embora representasse o final da sua carreira, ele se desdobrou para garantir que a transição

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se fizesse da forma mais suave possível. Saiu do caminho para tra-zer a Chrysler de volta à vida. E essa é a prova do verdadeiro herói.

O passo seguinte do processo de contratação foi um encontro com a comissão de finanças da Chrysler, na suíte da empresa situa-da no Waldorf Towers, em New York. Dessa vez, para manter o si-gilo, tomei o elevador e subi ao trigésimo quarto andar, onde ficava a suíte da Ford, e depois desci dois lances de escada até a suíte da Chrysler. Riccardo subiu em outro elevador.

Tínhamos que ter muito cuidado. Se Iacocca, que ainda estava nos noticiários porque acabara de ser demitido da Ford, fosse visto falando com Riccardo e com o conselho da Chrysler, a imprensa se anteciparia e eu estaria contratado antes mesmo que tivéssemos to-mado qualquer decisão. Mas essa história nunca vazou. Houve uma ligeira especulação na revista New York uma semana antes do anún-cio oficial, mas, de modo geral, a segurança foi de primeira ordem.

O anúncio oficial de que eu entraria para a Chrysler em no-vembro deve ter sido um verdadeiro choque para Henry Ford. Em casos como esse, a pessoa demitida costumava pegar a sua pensão e ir morar calmamente na Flórida, e nunca mais se ouvia falar nela. Mas eu fiquei na cidade, e isso deve tê-lo deixado mal.

Quando se anunciou que eu estava indo para a Chrysler, eu soube através de fontes seguras que Henry ficava de fogo todas as noites. Ele sempre foi um grande bebedor, mas me disseram que, durante esse período, ele ficou realmente mal. Diziam os boatos que ele tomava duas garrafas de Château Lafite-Rotschild por noite. A 120 dólares por garrafa, era um drinque muito caro! Mas, baseado na experiência do passado, eu imagino que os acionistas da Ford a-inda pagavam a conta!

Quando Henry Ford me demitiu, meu acordo com a Ford inclu-ía um pagamento por rompimento de contrato de 1,5 milhão de dó-lares. Mas havia uma grande armadilha — o contrato muito restriti-vo da Ford incluía uma cláusula sobre concorrência que estipulava que, se eu viesse a trabalhar em outra empresa de automóveis, per-deria o dinheiro.

"Não se preocupe com isso", disse-me Riccardo. "Vamos cui-dar direitinho de você." Quando a minha nomeação para a Chrysler se tornou pública, a imprensa fez um grande espalhafato, dizendo que eu estava ganhando um bônus de 1,5 milhão de dólares para as-sinar o contrato com a Chrysler. Na verdade, não ganhei um centa-vo pela assinatura. Eu tinha ganho esse dinheiro em muitos anos de

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trabalho na Ford, a título de indenização e de benefícios de aposen-tadoria e pensão. A Chrysler estava simplesmente repondo esse di-nheiro. Na verdade, eles estavam resgatando o meu contrato.

Na Ford, meu salário oficial era de 360 mil dólares, embora, nos anos bons, os bônus aumentassem esse total para cerca de 1 mi-lhão. Eu sabia que a Chrysler não tinha condições de me pagar mais do que isso e, portanto, disse à comissão que aceitava o mesmo sa-lário que recebia quando fui demitido.

Infelizmente o próprio salário de Riccardo na época era de a-penas 340 mil dólares. Isto tornava as coisas um pouco difíceis, pois eu estava começando como presidente e ele ainda era presiden-te do conselho. Não parecia correto eu ganhar mais do que ele. O conselho resolveu o problema garantindo a Riccardo um aumento imediato de 20 mil dólares, o que nos deixou equiparados.

Nunca tive escrúpulos por ter um salário alto. Não sou gasta-dor, mas gosto da realização que um salário alto representa. Por que um sujeito chega a querer ser presidente? Porque gosta? Talvez, mas esse cargo pode torná-lo velho e cansado. Se é assim, por que ele trabalha tanto? Para poder dizer: "Trabalhei até chegar aqui em cima. Realizei alguma coisa".

Meu pai sempre me dizia: "Tome cuidado com o dinheiro. Quando você tem cinco mil, quer dez mil. E quando você tem dez mil, quer vinte mil". Ele tinha razão. Por mais que você tenha, nun-ca é o suficiente.

Por outro lado, sou empresário de coração. Na Ford, eu costu-mava observar com alguma inveja os grandes negócios feitos pelos revendedores de carros. E não é porque eu não tivesse um bom pa-drão de vida. Durante alguns anos, na década de 70, Henry Ford e eu fomos classificados como os dois homens de negócios mais bem pagos dos Estados Unidos. Minha mãe e meu pai acharam isso in-crível, uma verdadeira medalha de honra.

E eu conheço alguns sujeitos na área de imóveis de New York que conseguem ganhar esse dinheiro em um dia. Mas, ao contrário dos grandes negociantes, meu salário é de conhecimento público. Não consigo dar conta da quantidade de cartas e pedidos de dinhei-ro que recebo.

Isso me faz lembrar outra frase favorita de meu pai: "Você pensa que ganhar dinheiro é difícil? Espere até tentar distribuí-lo!" É verdade. Todo mundo me escreve pedindo que eu partilhe minha

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riqueza — todas as universidades, todos os hospitais, todas as boas causas da face da Terra. Parece até um trabalho em tempo integral.

Quando eu trabalhava na Ford, mal sabia da existência da C-hrysler. Só existia a GM — que nós acompanhávamos —, e nin-guém mais. Nunca pensamos muito na Chrysler. Seus produtos nem apareciam nas publicações mensais de venda, que mediam as mar-cas atingidas pelos nossos carros na competição pelo mercado.

Lembro-me apenas de duas ocasiões em que, na Ford, fomos forçados a prestar atenção na Chrysler. A primeira foi a propósito do logotipo. No começo dos anos 60, Lynn Towsend, presidente do conselho da Chrysler, fez uma longa viagem para visitar os re-vendedoras Chrysler espalhados pelo país. Quando voltou, disse a um colega que estava impressionado com o número de lojas Ho-ward Johnson nos Estados Unidos. Ficou mais impressionado ainda quando seu colega lhe respondeu que, na verdade, nos Estados Uni-dos havia mais revendedoras Chrysler do que Howard Johnson.

Towsend então começou a pensar nos brilhantes telhados cor de laranja que identificam as lojas Howard Johnson. Concluiu que, para aumentar a sua visibilidade, as revendedoras Chrysler também deveriam ter um símbolo. A empresa encarregou uma firma de New York de criar um logotipo para a Chrysler. Logo depois, a estrela branca de cinco pontas sobre fundo azul surgia por toda parte.

O logotipo da Chrysler teve tanto sucesso que, depois de um ano, nós da Ford fomos forçados a lhe dar uma resposta. Já tínha-mos o nosso famoso oval azul. Começamos então a colocá-lo nas placas das revendedoras. Mas nós exageramos. A Chrysler usava a estrela de cinco pontas em cima do nome da revendedora. A GM colocava o nome da revendedora direto no emblema. Os revendedo-res da Divisão Ford tinham o oval com a palavra Ford em letra ma-nuscrita e, ao lado dele, outro "Ford" em letra de fôrma; mas não havia lugar para o nome da revendedora nesse emblema. Os reven-dedores passaram a se queixar de que, se o nome de Henry Ford a-parecia duas vezes, o nome do revendedor tinha o direito de apare-cer pelo menos uma vez.

A outra ocasião em que seguimos a Chrysler foi a propósito do aumento da sua garantia, em 1962. Até então, a Ford tinha a melhor garantia do ramo — doze meses ou cerca de 19 mil quilômetros. Na época, não demos muita importância à decisão da Chrysler de es-tender sua garantia para cinco anos ou oitenta mil quilômetros. Mas

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em cerca de três anos a fatia de mercado da Chrysler aumentou tan-to que nós tivemos que lançar um programa semelhante.

A chamada guerra de garantia entre as Três Grandes durou cer-ca de cinco anos. No final, todos nós suspendemos os planos porque eram muito caros. Naquela época, nossos carros não eram suficien-temente bons para que pudéssemos garanti-los por meia década.

A Chrysler gozava então de uma ótima reputação em termos de engenharia. Os engenheiros da Chrysler sempre estiveram um ponto acima dos da Ford e da GM. Eu achava que isso se devia ao Institu-to de Engenharia da Chrysler; sempre insisti com Henry para que organizasse um instituto semelhante, mas ele nunca o fez.

Através dos anos, roubamos alguns dos seus melhores funcio-nários. Em 1962, invadi a Chrysler e levei mais de uma dúzia dos seus principais engenheiros. Muitos chegaram à cúpula da Ford.

Mas, desde que a Ford suplantou a Chrysler no começo dos a-nos 50, toda a nossa atenção se voltou para a General Motors. Eu era, e ainda sou, um observador devoto da GM. Eles são como um país, e eu invejo a sua tremenda força.

De qualquer forma, eu conhecia a história da indústria de au-

tomóveis e sabia alguma coisa sobre as origens da Chrysler Corpo-ration e do homem que a fundou. No início da indústria automobi-lística havia apenas uma figura-chave: Henry Ford. Com todas as suas manhas e idiossincrasias — e com toda a sua intolerância —, o Henry Ford original foi um gênio de inventividade. Começou com funilaria e acabou aprendendo a fabricar automóveis.

Sempre se atribuiu a criação da linha de montagem a Henry Ford, mas, na verdade, ela foi criação de outras pessoas. A verda-deira inovação do velho foi pagar 5 dólares por dia em 1914. Cinco dólares era mais que o dobro do que os trabalhadores recebiam, e a publicidade em torno desse aumento foi esmagadora.

O que o público nem sequer imaginava era que Ford não tinha dado esse aumento por generosidade ou compaixão. Ele não estava preocupado com o padrão de vida dos trabalhadores. O verdadeiro motivo que o levou a pagar 5 dólares por dia foi o desejo de que seus funcionários ganhassem o suficiente para poderem comprar seus próprios carros. Em outras palavras, Henry Ford criou a classe média. Percebeu que a indústria automobilística — e, portanto, a Ford — apenas conseguiria um verdadeiro êxito se os carros fossem alvo do interesse do trabalhador, tanto quanto dos ricos.

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A segunda maior figura da indústria automobilística foi Walter P Chrysler. Foi um inovador nas áreas de motores, transmissões e componentes mecânicos e que até hoje constituem pontos fortes da Chrysler.Walter P. deixou a General Motors em 1920, porque o presidente do conselho, William Durant, não lhe deu liberdade para dirigir a Divisão Buick do jeito que ele queria. Esse era um rebelde do meu tipo!

Acho a continuação da história especialmente interessante. Três anos depois, Walter Chrysler desistiu de sua aposentadoria pa-ra reorganizar as Maxwell and Chalmers Motor Car Companies, que estavam em processo de extinção. Então, o que foi que ele fez? Lançou novos modelos e promoveu-os agressivamente. Ele mesmo aparecia em alguns dos anúncios! Por volta de 1925, tinha trans-formado uma empresa que não era levada a sério na Chrysler Cor-poration.

Mas não parou por aí. Em 1928, comprou a Dodge e a Plymou-th. Sua empresa era agora uma das grandes, e continuou sendo des-de essa época. Quando Walter Chrysler morreu, em 1940, a Chrys-ler tinha suplantado a Ford e perdia apenas para a General Motors, de, tendo 25 por cento do mercado interno.. Como eu adoraria repe-tir essa façanha! Tomar 25 por cento do mercado e liquidar a Ford! Eu daria tudo para conseguir isso.

Embora tenha tido tempos muito difíceis no final dos anos 70, a Chrysler construíra uma longa tradição de inovação nos campos do design e da engenharia. Frederick Zeder, engenheiro-chefe da Chrysler durante a década de 30, concebeu uma forma pioneira de eliminar as vibrações dos carros. A solução proposta consistia em montar os motores sobre uma base de borracha. Zeder inventou também o motor de alta compressão, o filtro de óleo e o filtro de ar.

Fiquei sabendo que os engenheiros da Chrysler em Michigan projetaram o carro de combate mais sofisticado do mundo. Seus en-genheiros em Alabama criaram a primeira ignição eletrônica do mundo. O pessoal da Chrysler apresentou o primeiro conversor de torque para maior economia de combustível, o primeiro freio hi-dráulico e o primeiro computador embutido no capô. Eu já sabia que os automóveis da Chrysler tinham os melhores motores e as melhores transmissões.

Portanto, não havia dúvida de que a Chrysler tinha um passado respeitável. E eu tinha certeza de que teria também um futuro. A empresa já tinha uma sólida organização de revendedores, assim

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como a melhor equipe de engenharia. O único problema era não ter os recursos necessários para a construção de bons produtos.

Eu também confiava na minha capacidade. Conhecia o ramo e sabia que era bom nisso. Eu acreditava honestamente, de todo cora-ção, que em alguns anos a empresa floresceria.

Mas aconteceu o contrário. Tudo entrou em colapso. Tivemos a crise do Irã e depois a crise de energia. Em 1978, ninguém poderia imaginar que na primavera seguinte haveria uma devastação no Irã e que o preço da gasolina dobraria de repente. Então, para comple-tar, sobreveio a maior recessão dos últimos cinqüenta anos.

Tudo isso aconteceu apenas alguns meses depois de eu ter assi-nado contrato com a Chrysler, levando-me a perguntar a mim mes-mo se aquilo não seria uma armadilha do destino. Talvez Deus — o verdadeiro Deus, não Henry — ao me demitir da Ford estivesse ten-tando me dizer alguma coisa. Talvez eu tivesse sido demitido na hora certa, justamente antes de tudo desabar, e eu, na minha estupi-dez, não tenha sido capaz de aceitar a minha sorte.

Por uma série de razões, a Chrysler ficou numa situação pior do que eu esperava. Mas já que eu estava lá e tinha decidido que era aquilo que eu queria, nunca pensei seriamente em ir embora.

É claro que nem sempre essa é a melhor política. Algumas ve-zes, as pessoas chegam a morrer por causa de uma atitude como es-sa. São pegas de surpresa e levadas pelos acontecimentos, e ainda estão tentando se agüentar quando a água as engole. Quando assinei o contrato no novo emprego, nunca imaginei que no ramo automo-bilístico as coisas pudessem chegar a ser tão ruins. Eu estava erra-do. Tenho que admitir que muitas vezes na Chrysler estive a ponto de sucumbir.

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XIV CANOA FURADA

o dia 2 de novembro de 1978, a De-troit Free Press trazia duas manchetes: Prejuízos da Chrysler ainda maiores e Lee Iacocca assina com a Chrysler. Que ótima coinci-dência! No dia em que entrei, a companhia anunciou um prejuízo de quase 160 milhões de dólares no terceiro trimestre, o pior déficit da sua história. "Bem", pensei, "agora as coisas só podem melho-rar." Apesar dos grandes prejuízos, as ações da Chrysler fecharam com um aumento de três oitavos, o que considerei um voto de con-fiança em minha nova administração. Boa piada! Ha, Ha!

No meu primeiro dia de trabalho, tive um pequeno problema para chegar ao escritório. Para ser honesto, não tinha muita certeza da sua localização. Sabia que a matriz da Chrysler ficava em High-land Park, na altura da Davison Expressway. Mas depois tive que me informar. Eu nem sabia qual rampa deveria usar.

Eu só tinha estado na Chrysler uma vez na vida, quando era pre-sidente da Ford. Mas, naquela época, eu tinha motorista, e não prestei muita atenção no caminho. A cada três anos, os chefes das Três Grandes se encontravam no que chamavam de reunião de cúpula, com a finalidade de preparar uma estratégia comum para as negocia-ções trabalhistas. Henry Ford e eu fomos a um desses encontros em

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Highland Park. Reunimo-nos com Lynn Townsend e John Riccardo, da Chrysler, e também com o pessoal da GM e os advogados.

Aliás, os sindicatos se irritavam com essas reuniões. Achavam que estávamos conspirando contra eles. Mal sabiam eles que essas conversas eram sempre um exercício de futilidade total. Como pro-dutora marginal, a Chrysler nunca poderia cogitar em enfrentar uma greve; por isso, toda a nossa conversa sobre como lidar com o sin-dicato acabava não dando em nada.

Quando cheguei lá, naquela manhã, Riccardo me mostrou as instalações e me apresentou a alguns funcionários. Houve uma reu-nião com algumas pessoas da cúpula administrativa e, como eu sempre fazia, acendi um charuto.

Riccardo virou-se para o grupo e disse: "Bem, vocês todos sa-bem que sempre tive preconceito contra fumar charuto nestas reu-niões. A partir desta manhã, fica abolida essa norma". Achei que era um bom sinal. Depois de tudo o que eu tinha ouvido falar da Chrysler, a abolição de algumas normas da casa parecia uma idéia genial.

Antes do fim do dia, notei alguns detalhes à primeira vista in-significantes, que me fizeram parar para pensar. O primeiro era que o escritório do presidente, onde Cafiero trabalhava, estava sendo usado como passagem de um escritório ao outro. Observei surpreso que os executivos com xícaras de café na mão abriam a porta e a-travessavam direto pelo escritório do presidente. Percebi imediata-mente que aquilo era uma anarquia. A Chrysler precisava de um pouco de ordem e disciplina — e depressa.

Além disso, a secretária de Riccardo, ao que parecia, passava um tempo enorme recebendo telefonemas pessoais no seu telefone particular! Quando as secretárias começam a fazer você de bobo, é sinal de que o lugar está em decadência. Durante as primeiras se-manas num trabalho novo, você procura sinais reveladores. Quer saber a que tipo de instituição se ligou. Esses são os sinais de que eu me lembro — e o que eles me contaram sobre a Chrysler me deixou apreensivo.

Descobri que as minhas preocupações tinham fundamento. Lo-go me deparei com a maior revelação: a Chrysler não funcionava, de jeito nenhum, como uma empresa. A Chrysler de 1978 era como a Itália de 1860 — um emaranhado de pequenos ducados, cada um dirigido por uma estrela. Era um grupo de mini-impérios, e nenhum deles dava a menor importância ao que os outros faziam.

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Encontrei na Chrysler trinta e cinco vice-presidentes, cada um com seu próprio território. Não havia nenhuma comissão montada, nenhuma consistência no organograma, nenhum sistema de reuni-ões para levar as pessoas a conversarem umas com as outras. Eu não podia acreditar, por exemplo, que o sujeito que dirigia o depar-tamento de engenharia não estivesse em contato constante com o chefe da manufatura. Mas era assim. Todo mundo trabalhava inde-pendentemente. Dei uma olhada naquele sistema e quase desisti. Então percebi que estava mesmo diante de sérios problemas.

Aparentemente, aquelas pessoas não acreditavam na terceira lei do movimento de Newton — para cada ação há uma reação igual e contrária. Todos trabalhavam no vazio. A situação era tão ruim que nem esta descrição faz justiça a ela.

Se eu chamasse um sujeito da engenharia, ele ficaria bestifica-do se eu dissesse que surgira um problema de projeto, ou qualquer outro, na conexão da engenharia com a manufatura. Ele podia ter a capacidade de inventar uma excelente peça de engenharia, capaz de nos render muito dinheiro. Ele podia até elaborar um novo projeto sensacional. Só havia um problema: ele não sabia se o pessoal da manufatura poderia construir esse projeto. Por quê? Porque nunca tinha conversado com eles a respeito do assunto.

Ninguém na Chrysler parecia compreender que a interação en-tre diferentes funções numa empresa é absolutamente fundamental. As pessoas da engenharia e da manufatura teriam quase que dormir juntas. E os caras nem mesmo namoravam!

Outro exemplo: as vendas e a manufatura estavam sob a mes-ma vice-presidência. Para mim, isso era inconcebível, pois eram duas funções difíceis e separadas por natureza. Para tornar as coisas ainda piores, quase não havia contato entre essas áreas. O pessoal da manufatura podia chegar a construir carros até mesmo sem che-cá-los com o pessoal de vendas. Os carros eram fabricados, estoca-dos no pátio, e ficavam esperando que alguém os tirasse de lá. A em-presa acabava tendo um estoque enorme e um pesadelo financeiro.

O contraste entre a estrutura da Chrysler e da Ford era sim-plesmente espantoso. Ninguém da Chrysler parecia imaginar que é impossível dirigir uma grande empresa sem convocar algumas ses-sões prévias para se fazer o trabalho no quadro-negro. Cada mem-bro da equipe deve compreender o que é o seu trabalho e exatamen-te como se relaciona com as outras funções.

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Mas, ao invés de juntar os fios e analisar um quadro mais am-plo, Riccardo e Bill McGagh, o tesoureiro, passavam o tempo visi-tando todos os bancos que tinham emprestado dinheiro à Chrysler. Estavam sempre correndo de um banco para outro para manter a dí-vida ativa intacta. Isso significava que lidavam com crises diárias, sempre focalizando o mês seguinte, ao invés de focalizar o ano se-guinte.

Uns dois meses depois da minha chegada, fui atropelado pelo que parecia uma tonelada de tijolos. Estávamos trabalhando sem dinheiro! Antes de eu ir para a Chrysler, tinha uma vaga idéia de que a empresa apresentava uma série de problemas, desde deficiên-cias nas técnicas de administração até imperfeições na pesquisa e no desenvolvimento. A única área em que eu tinha alguma confian-ça era a de controles financeiros. Afinal, todo mundo em Detroit sabia que a Chrysler era dirigida por financistas. Imaginávamos, portanto, que os controles financeiros fossem altamente prioritários.

Mas logo descobri, horrorizado, que Lynn Townsend (que se aposentara dois anos antes) e John Riccardo eram basicamente dois contadores da firma de auditoria de Touche Ross, de Detroit. O que é pior, não tinham nenhum analista financeiro sério. Sua atitude pa-recia ser: "Vamos cuidar desse negócio nós mesmos". Mas não ha-via como fazerem isso numa empresa do tamanho da Chrysler.

Aos poucos fui percebendo que a Chrysler não tinha nenhum sistema global de controle financeiro, Para piorar as coisas, nin-guém ali parecia entender muito da área de projeção e planejamento financeiro. Não tinham condições de responder nem às questões mais rudimentares. Mas as respostas não importavam, pois eles nem sabiam as perguntas!

Na Ford, logo que me tornei presidente, pedi uma lista de todas as fábricas, com a taxa de retorno sobre o investimento de cada uma delas. Se pedisse isso na Chrysler, estaria falando outra língua. Eu não conseguiria nada.

Este foi, provavelmente, o maior choque que tive em minha carreira. Quando pensava nisso, sentia-me desolado (é um eufe-mismo, para não dizer que me sentia na merda!). Eu já sabia da má qualidade dos carros. Tinha conhecimento do desânimo e da deca-dência nas fábricas. Mas não tinha idéia de que nunca iria conseguir obter os números certos para podermos atacar alguns problemas bá-sicos da Chrysler.

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Lynn Townsend sempre teve boa reputação como financista, mas acho que suas decisões, a exemplo das de muitos homens de negócios, visavam mais os lucros do trimestre seguinte do que a si-tuação da empresa a longo prazo. Durante anos, a Chrysler tinha si-do dirigida por homens que não gostavam de fato do ramo de auto-móveis. E agora, a crise era manifesta.

O resultado foi que a empresa começou a funcionar na cola de quem estava na frente. Como a menor das Três Grandes, a Chrysler podia, e devia, ter sido a indústria pioneira no desenvolvimento de carros novos. Mas a engenharia, que sempre foi o forte da Chrysler, deixou de ser prioritária sob a direção de Lynn Townsend. Quando os lucros começaram a cair, a engenharia e o desenvolvimento de produto pagaram o preço.

Ao invés de se concentrar na fabricação de bons carros, Lynn Townsend e seu grupo começaram a se expandir para o exterior. Em seu afã de se tornar uma empresa internacional, compraram firmas européias que já estavam basicamente falidas — empresas sem nenhum valor, como a Simca, na França, e a Rootes, na Ingla-terra. Pareciam crianças quando se tratava de operações internacio-nais. Comecei a pensar que havia gente na Chrysler que nem sabia que na Inglaterra os carros andavam no lado esquerdo da rua!

Lynn Townsend sempre gozou de popularidade entre os acio-nistas e, como acionista que era, ficou rico. Mas não creio que ele jamais tenha realmente entendido do negócio fundamental da em-presa. Num determinado período da sua administração, a Chrysler ficou marginalizada ou reduziu suas operações em todos os conti-nentes, exceto na Antártida.

Townsend realizou algumas coisas boas na Chrysler, como, por exemplo, a criação da Financeira Chrysler, uma subsidiária destina-da a fornecer crédito tanto para as revendedoras quanto para os cli-entes no varejo. Hoje a financeira Chrysler é um modelo no gênero. De qualquer forma, Townsend certamente não é o único culpado pela má situação da Chrysler. Eu sempre me perguntava onde teria estado o conselho enquanto tudo isso acontecia.

Quando fui à minha primeira reunião do conselho, comecei a compreender o problema. O conselho de diretores da Chrysler sem-pre tinha menos informações que o da Ford — e isso é dourar a pí-lula. Não havia slides nem revisões financeiras. Riccardo atuava de forma totalmente improvisada. Seria arriscado dizer que aquele era o melhor método de dirigir a décima maior empresa do país.

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Quando me tornei presidente do conselho, pouco a pouco fui questionando seus membros. Eu não seria louco de apontar para o grupo que havia me contratado e dizer: "É culpa de vocês". Mas, uma vez ou duas, perguntei da forma mais delicada possível: "Co-mo foi que a administração conseguiu que seus planos fossem a-provados por um grupo tão respeitável de homens de negócio? Vo-cês nunca conseguiram nenhuma informação?"

Os problemas da Chrysler não se limitavam à cúpula adminis-

trativa. Por toda a empresa, o pessoal se sentia insatisfeito e desa-nimado. Ninguém conseguia fazer nada direito. Eu nunca tinha vis-to nada igual. Os vice-presidentes eram peixes fora d'água. Town-send e seu pessoal pegavam pessoas que haviam trabalhado bem numa determinada área e as transferiam aleatoriamente para outras áreas. Acreditavam que uma pessoa de talento conseguia se sair bem em tudo. Depois de alguns anos de transferências de um lado para outro, todos na Chrysler estavam em funções para as quais não tinham formação. E acredite, os efeitos eram visíveis.

O encarregado de peças e serviços da América do Sul havia si-do contratado como controller e detestava o que estava fazendo. Quando tive de afastá-lo ele se sentiu visivelmente aliviado. Um ex-dirigente das operações na Europa havia sido trazido para os Esta-dos Unidos e nomeado vice-presidente de compras, embora nunca tivesse trabalhado em compras. Era patético.

Eu me sentia muito mal, pois, no lugar adequado, essas pessoas teriam feito um trabalho excelente. Tentavam explicar sua situação dizendo coisas como: "Veja, eu nunca pedi para fazer isso. O se-nhor me faz perguntas sobre o trabalho de um controller e eu não tenho respostas. Entendo é de peças e serviços. Na verdade eu sou goleiro, só que o pessoal me fez jogar no meio de campo. Ora, não sei jogar no meio de campo. Posso aprender, mas preciso de tempo!"

Todos sabiam que eu ia limpar a casa, e todos tinham medo de ser o alvo. Não tinham certeza de nada. Viviam com medo — e ti-nham boas razões para isso. Num período de três anos, tive que de-mitir trinta e três dos trinta e cinco vice-presidentes. Era um por mês!

Em certos casos, tentei aproveitar alguns executivos, mas não deu certo — não conseguiam mudar. Charlie Beacham costumava dizer que, depois que uma pessoa passa dos vinte e um anos, você não consegue mais mudar seu estilo ou seus hábitos. Você pode até

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achar que consegue, mas a auto-imagem da pessoa já está formada. Ninguém é humilde o suficiente para aprender depois de adulto.

Infelizmente, Beacham tinha razão — como sempre. Quando Paul Bergmoser chegou, lembro-me de que recomendei: "Tente sal-var alguns desses rapazes". Ele trabalhou com eles durante seis me-ses. E então me disse: "É impossível. Esse pessoal aprendeu o mo-do Chrysler de dirigir seu próprio espetáculo. Nunca se acostuma-rão às mudanças. É tarde demais".

Problemas sempre provocam mais problemas. Uma pessoa que não tem segurança naquilo que faz nunca vai querer trabalhar com alguém que tenha essa segurança. O sujeito pensa: "Se esse cara aí é tão bom, vai chamar a atenção para minhas deficiências — vai a-cabar ficando no meu lugar". Assim, um gerente incompetente sempre contrata outros também incompetentes. E todos eles escon-dem a deficiência global do sistema.

Não me entendam mal. Não estou querendo dizer que uma pes-soa que fez o curso de contabilidade deva ser condenada a fazer contabilidade pelo resto da vida, independentemente de suas outras possíveis habilidades. Só acho que cada pessoa deve ter um plano de desenvolvimento bem no início da carreira. Deve-se dar a ela tempo suficiente para obter experiência numa determinada ativida-de, até que se comprove que de fato aprendeu a trabalhar naquela área específica.

Não se trata de supervalorizar a especialização, pois se ela for levada a extremos, nunca haverá gerentes gerais. Além disso, nem todo mundo deve ser treinado para ser gerente geral.

Todos os problemas da Chrysler realmente tinham um fundo comum: ninguém sabia quem era o primeiro. Não havia um time, mas um amontoado de jogadores isolados, sendo que muitos ainda nem sabiam jogar na sua posição.

Bem, uma coisa é dizer tudo isso e entender o que em termos teóricos essa situação significa. Mas acreditem que é muito diferen-te ver tudo isso diante dos olhos, ao vivo. É terrível ver uma das maiores empresas do mundo, cujas operações envolvem bilhões de dólares, ir por água abaixo sem que ninguém possa fazer nada. Foi um choque terrível para mim. E a cada dia havia mais notícias ruins.

A única situação semelhante de que me lembro foi a que Henry Ford II enfrentou há trinta e dois anos. Quando o jovem Henry saiu da Marinha para entrar na empresa do avô, esta estava caindo aos

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pedaços. Dizem que num dos seus departamentos as despesas eram estimadas pelo peso das faturas.

A Ford Motor Company tornou-se um desastre porque o velho a dirigia de forma totalmente anômala. Não conhecia nada sobre práticas sistematizadas de administração. Naquela época, era co-mum as empresas serem dirigidas por empreendedores aventureiros e não por planejadores e administradores.

Mas a situação da Chrysler era pior. Ela não podia atribuir as condições em que se encontrava ao seu fundador, que veio de uma outra época. O fiasco da Chrysler ocorreu trinta anos depois do sur-gimento da administração do pós-guerra, da administração científi-ca. É incompreensível que, em 1978, uma empresa daquela enver-gadura fosse dirigida como uma quitanda.

Os problemas não surgiram da noite para o dia. Nos círculos automobilísticos de Detroit, a reputação da Chrysler vinha caindo há alguns anos. A empresa acabou sendo conhecida como o último refúgio: se alguém não conseguia uma vaguinha em outro lugar, sempre podia ir para a Chrysler. Os executivos da empresa eram mais conhecidos pelas suas habilidades no golfe do que pelo seu conhecimento sobre automóveis.

Não é de admirar que o moral em Highland Park estivesse tão baixo. E quando o moral está baixo, o lugar se torna uma central de boatos. Todos os tipos de segredo começam a vazar. Quando o pes-soal está irritado e preocupado com a falência e com a perda de em-prego, as chances de as informações vazarem são triplicadas.

A espionagem industrial na indústria automobilística é um as-sunto que a imprensa adora abordar — e às vezes com um prazer especial. A espionagem já foi problema na Ford. Certo dia, no iní-cio dos anos 70, um amigo meu da Chrysler me mostrou um pacote de documentos confidenciais da Ford que um dos seus empregados havia comprado de um dos nossos. Mostrei os papéis a Henry, e ele ficou fora de si. Tentou implantar um sistema para verificar a exten-são dessa espionagem, para ver se era possível fazer alguma coisa.

Mas é praticamente impossível resolver esse problema. Tenta-mos instalar trituradores de papel e distribuir cópias numeradas de alguns relatórios: número 1 era de Henry, número 2 de Iacocca, etc. Mesmo assim, ocorria vazamento de informação. Você podia até chamar as doze pessoas que tinham tido acesso ao relatório e dizer: "Alguém aqui está mentindo". Mas não adiantava nada. Tentei fazer isso algumas vezes, mas nunca consegui nenhum resultado.

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Sei de alguns casos de empresas que fizeram tudo para conse-guir as fotografias iniciais, apesar de muito granuladas, dos futuros carros de outra empresa. Mas geralmente essas fotografias não são de muita utilidade para a concorrência. Por exemplo, sempre achei que a General Motors tinha fotografias do Mustang dois anos antes de o carro ser posto à venda. O que eles sabiam de fato? Não iriam querer copiar o modelo antes que ele fosse lançado; e aí eles mes-mos poderiam ver se ele estava indo bem.

Por outro lado, às vezes há trabalhos de engenharia muito ex-clusivos em andamento, ou então é descoberta alguma forma de aumentar a economia de combustível. Antes que você perceba, os outros já estão com os resultados na mão. Estas coisas realmente magoam.

Na Chrysler, o moral baixo e a quebra de sigilo se manifesta-vam nos balanços. E por essas razões a empresa estava indo tão mal num momento em que a indústria automobilística encerrava o me-lhor ano da sua história. A GM e a Ford apresentavam registros de vendas e lucros recordes. Só a GM tinha vendido cerca de 5,5 mi-lhões de carros, enquanto a Ford vendeu 2,6 milhões. A Chrysler como sempre estava em terceiro lugar, bem longe das outras. E, o que é mais importante, nossa fatia no mercado americano tinha caí-do de 12,2 para 11,1 por cento em um ano — uma redução impres-sionante. Nossa fatia no mercado de caminhões tinha sofrido uma queda semelhante — de 12,9 para 11,8 por cento.

O pior é que a Chrysler tinha perdido 7 por cento da lealdade dos clientes nos últimos dois anos. Quando entrei em cena, nossa taxa de lealdade dos clientes era de 36 por cento. A Ford tinha 53 por cento, o que significava, para eles, uma grande redução. A GM continuava firme, em torno dos 70 por cento.

Já vínhamos tendo dificuldade para levar as pessoas a conside-rarem a possibilidade de comprar nossos produtos. E agora as pes-quisas nos diziam que quase dois terços das pessoas que atraíamos até então estavam descontentes e não se dispunham a voltar a com-prar um produto da Chrysler.

Outro aspecto que me preocupava com relação aos dados de vendas era o fato de a Chrysler ser conhecida há muito tempo como um fabricante de carros para pessoas mais velhas. Quando assumi, a idade média dos compradores do Dodge e do Plymouth era mais al-ta do que a dos compradores do Buick, do Oldsmobile, do Pontiac e até do Mercury. Nossas pesquisas ainda indicavam que os proprie-

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tários de veículos Chrysler em geral eram operários, mais idosos e menos educados. Havia uma concentração maior nos Estados indus-triais do Nordeste e Centro-Oeste do país, ao contrário do que ocor-ria com os compradores de marcas concorrentes.

A análise demográfica tornava claro o que eu já sabia: os pro-dutos Chrysler eram considerados sóbrios e um pouco sem graça. Precisávamos de carros inovadores imediatamente. Neste ramo, quem pára é superado num piscar de olhos.

Felizmente, eu não iria começar do nada. A Chrysler tinha uma

longa tradição de inovação, uma tradição que eu estava ansioso por continuar. Alguns anos antes, muitos jovens teriam dado preferên-cia ao Chrysler, porque era um carro sensacional. A Chrysler tinha Chargers e Dusters que desciam a Main Street mais depressa que qualquer outro carro. Os carros de alta velocidade, como o Dodge Daytona, de pára-lamas altos, os da série Chrysler 300, os Satellites e os Barracudas, eram os carros que se amontoavam nos drive-in e nas barracas de hambúrguer, do Maine à Califórnia.

Também era da Chrysler o mais avançado carro esporte de alta velocidade, o Road Runner, com seu motor "Hemi" de 1.082 centí-metros cúbicos. Era um clássico dos anos 60 — com motor baru-lhento, veloz, e quase tão potente quanto uma locomotiva. Todas as noites, esses carros possantes desciam e subiam em alta velocidade a Woodward Avenue, em Detroit, e às vezes juntavam-se a eles os engenheiros e executivos da indústria automobilística, na volta do trabalho para os bairros onde moravam.

E agora a Chrysler estava fraca na costa do sol, que tinha moto-ristas mais jovens e mais ricos. Estávamos particularmente fracos na Califórnia — e a Califórnia é um mercado importante. Embora tenha nascido em Michigan, a indústria automobilística amadureceu na Califórnia, que nos deu o primeiro sistema amplo de estradas de alta velocidade. Era o portão de entrada para o mercado jovem — com carros possantes, quatro marchas e alavanca de câmbio no chão, calotas exóticas, furgões residenciais, carros extravagantes e muitas outras variantes do automóvel básico surgido numa fábrica de Michigan.

Mas houve contribuições da Califórnia que nós, em Michigan, não apreciamos tanto. Uma foi o boom de importação de carros. Os californianos são os maiores consumidores de carros importados do país. Em segundo lugar, a Califórnia estabeleceu normas tão rígidas

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de controle da emissão de gases dos automóveis na atmosfera, que quase se tornou um país estrangeiro.

Nunca é demais repetir que a Califórnia é o espelho do futuro. Às vezes não gostamos de tudo que vemos nesse espelho, mas serí-amos loucos se não o olhássemos com muita atenção.

Precisávamos ter sucesso na Califórnia; mas antes de consegui-lo, precisávamos mudar o produto. Não era apenas o estilo dos car-ros Chrysler que tinha má reputação. A empresa também tinha in-corrido em muitos problemas de qualidade. Os exemplos mais evi-dentes disso são o Aspen e o Volaré, os sucessores dos aclamados Dart e Valiant, que permanecerão para sempre e nunca deveriam ter sido tirados de linha. Mas foram substituídos por carros que fre-qüentemente começavam a desmontar depois de um ou dois anos.

O Aspen e o Volaré surgiram em 1975; ambos os lançamentos deveriam ter sido retardados pelo menos por uns seis meses. A em-presa estava atrás de dinheiro e não respeitou o ciclo normal — pro-jeto, teste e construção. Os clientes que compraram Aspens e Vola-rés em 1975 estavam funcionando, na verdade, como engenheiros de desenvolvimento da Chrysler. Quando foram lançados, esses carros ainda estavam em fase de desenvolvimento.

Rememorando os últimos vinte anos, não consigo me lembrar de nenhum carro que tenha decepcionado mais os consumidores do que o Aspen e o Volaré. O caso do Edsel foi diferente: as pessoas simplesmente não o quiseram. Mas esses carros, os consumidores compraram aos montes e foram enganados. Os consumidores deixa-ram-se impressionar pelo estilo, especialmente da perua, que a Ford e a GM não tinham em 1976.

O Aspen e o Volaré simplesmente não foram bem construídos. O motor encrencava quando se pisava no acelerador. Os breques fa-lhavam. O capô levantava de repente. Os clientes reclamavam, e mais de três milhões e meio de carros foram levados de volta aos revendedores para consertos gratuitos — gratuitos para os clientes, é claro. A Chrysler pagava a conta.

Mas mesmo os carros que não davam problemas mecânicos começaram a enferrujar. O programa dos pára-lamas enferrujados do Volaré custou-nos cerca de 109 milhões de dólares — em 1980, quando só conseguíamos pagar a duríssimas penas. Os pára-lamas enferrujaram porque não se tinha dado a devida atenção ao teste de oxidação. Ninguém nos pediu para aceitar devoluções, mas tínha-mos a obrigação de consertá-los. Apesar do nosso apoio, o valor de

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revenda daqueles carros caiu vertiginosamente, o que abalou muito a imagem da empresa.

A Ford tivera um problema semelhante. Em 1957, construímos um carro lindo, o Fairlaine 500, uma jóia de estilo que vendeu co-mo pão quente. Mas, como o Volaré, também não era muito bem construído. Francis Emerson, meu gerente de frotas na Philadelphia, ficou com um dos primeiros Fairlaine de quatro portas para mostrar aos gerentes das frotas que tinham as maiores contas. O carro tinha sido tão mal construído que as portas traseiras se abriam quando ele passava por um trecho acidentado da estrada. Ele resolveu o pro-blema prendendo as portas com barbante, por dentro do carro. "Es-tou sofrendo para fazer a demonstração desse carro", ele dizia. "O pessoal gosta do estilo, mas não posso deixar ninguém sentar no banco de trás!"

Naquela época, o cliente padrão da Ford costumava trocar o carro a cada três anos. Infelizmente, em 1960 lançamos um novo abacaxi, e eu pensei: "Agora realmente estamos com problemas. As pessoas agüentam chupar limão uma vez. Mas e o sujeito que com-prou um carro novo em 1957 porque gostou do estilo e depois des-cobriu que ele hão prestava? Se ele permaneceu fiel e comprou um Ford 1960, saiu perdendo duas vezes seguidas. Esse cara nunca mais vai comprar um Ford. Ele deve ter passado para a GM ou para os importados".

O Volaré 75 estava nesta mesma categoria. Sem dúvida, a GM também tinha seus fracassos, como o Corvair. Nesse ponto concor-do plenamente com Ralph Nader — o que é raro: o Corvair não ti-nha mesmo segurança. O Vega, com seu motor de manteiga, foi ou-tro desastre. O Vega e o Corvair eram carros terríveis, mas a GM é tão grande e poderosa que consegue agüentar um desastre ou dois sem sofrer maiores danos. A pequena Chrysler não podia agüentar nenhum.

Não posso falar de carros ruins sem fazer referência ao Ford Pin-to. Lançamos o Pinto em 1971. Precisávamos de um subcompacto, e ele era o melhor que dava para comprar por menos de 2.000 dóla-res. Muita gente deve ter concordado — vendemos mais de quatro-centos mil Pintos só no primeiro ano, o que fez do carro um grande sucesso e o colocou na categoria do Falcon e do Mustang. O grande defensor dos consumidores norte-americanos. (N- do E.)

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Infelizmente, houve muitos casos de Pintos que se incendiaram

ao sofrerem colisão na traseira. Houve processos contra a empresa — centenas de processos. Em 1978, um grande julgamento em In-diana condenou a Ford Motor Company por homicídio, por negli-gência. A empresa foi absolvida, mas sofreu danos incalculáveis.

O Pinto tinha dois problemas. Primeiro, o tanque ficava atrás do eixo, e por isso uma colisão mais ou menos forte na traseira po-dia provocar incêndio. O Pinto não era o único carro com esse pro-blema. Naquela época, todos os carros pequenos tinham o tanque atrás do eixo. E muitos deles, ocasionalmente, se envolviam em in-cêndios.

Mas o Pinto tinha uma mangueira no tanque de gasolina que às vezes, numa colisão, se arrebentava com o impacto. Quando isso acontecia, a gasolina espirrava, e freqüentemente o carro se incen-diava.

Resistimos a fazer modificações, e isso foi muito ruim. Até John Claybrook, o competente chefe da National Highway Trafic Safety Administration, protégé de Nader, me disse um dia: "É uma pena que você não possa fazer nada com relação ao Pinto. Ele real-mente não é pior que os outros carros. O problema é muito mais de Relações Públicas do que de engenharia".

De quem era a culpa? Uma resposta óbvia é que a culpa era da administração da Ford — inclusive minha. Muita gente diria que as pressões legais e de RP envolvidas numa situação desta natureza justificam a atitude da administração no sentido de se manter im-passível, na esperança de que o problema se resolva sozinho. No entanto, acho razoável exigir da administração um alto padrão e in-sistir em que se faça o que a obrigação e o bom senso exigem, se-jam quais forem as pressões.

Mas não há nenhuma verdade na acusação de que tentamos e-conomizar alguns dólares fazendo um carro perigoso em sã consci-ência. A indústria automobilística muitas vezes se mostra arrogante, mas nunca tão insensível. As pessoas que fizeram o Pinto tinham fi-lhos na universidade que dirigiam o carro. Acreditem, ninguém é capaz de sentar e dizer: "Vou fazer esse carro sem segurança delibe-radamente".

Acabamos por aceitar voluntariamente a devolução de um mi-lhão e meio de Pintos. Isso ocorreu em junho de 1978, um mês an-tes da minha demissão.

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Enquanto isso, na Chrysler, minha iniciação incluiu mais um grande problema. Na primeira semana, fui a uma reunião informal na qual se decidiu reduzir a previsão de produção em dez mil car-ros. Na semana seguinte, houve uma reunião mais formal. Dessa vez, cinqüenta mil carros foram sumariamente cortados da produ-ção do primeiro trimestre de 1979.

Fiquei perplexo e angustiado. Que tipo de mentalidade de lu-cros era aquela, que tirava carros da previsão de produção sem dis-cutir? Fiquei horrorizado ao descobrir que não havíamos recebido pedidos dos revendedores para construir aqueles carros e que não havia espaço para colocar mais carros no estoque da empresa, já abarrotado. O estoque era conhecido como banca de saldos da C-hrysler, o que não passava de uma desculpa para manter as fábricas produzindo sem que houvesse pedidos dos revendedores.

A intervalos regulares, a Divisão de Produção informava à Di-visão de Vendas quantos e quais veículos estava para produzir. En-tão cabia à Divisão de Vendas tentar vendê-los. Para mim, esse pro-cedimento era completamente errado. A empresa contratava jovens brilhantes, que ficavam dias e dias nos quartos de hotel, com os de-dos colados no telefone, tentando passar os carros da banca de sal-dos para os revendedores. E o sistema operava há muitos anos.

Muitos dos carros excedentes ficavam nos amplos estaciona-mentos da área de Detroit. Nunca vou me esquecer da visita que fiz ao Michigan State Fairgrounds, entupido de Chryslers, Dodges e Plymouths que não tinham sido vendidos, um indício claro da inefi-cácia da estrutura da empresa. O volume variava, mas o número de carros geralmente era grande e sempre maior do que o número que podíamos ter esperança de vender.

No verão de 1979, quando a Chrysler, pela primeira vez, se a-proximou do governo para pedir ajuda, na banca de saldos havia oi-tenta mil veículos. Num certo momento, esse número chegou a cem mil, o que representava cerca de 600 milhões em estoque de produ-tos acabados. Num momento em que o nosso capital estava desapa-recendo e as taxas de juros estavam altas, o custo de manutenção destes estoques era astronômico. E o pior é que os carros ficavam ali, ao ar livre, sofrendo uma lenta deterioração.

Fabricar carros tornara-se um imenso jogo de adivinhação. Não tinha nada a ver com o que os clientes queriam do carro, nem com o pedido do revendedor, baseado naquilo que provavelmente o cliente desejaria. Ao invés disso, aparecia alguém no escritório regional di-

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zendo: "Vou colocar direção hidráulica nesse carro e transmissão automática naquele. Vou fazer mil carros azuis e mil verdes". Se al-gum cliente quisesse um vermelho, problema dele!

Era preciso fazer alguma coisa com todos aqueles carros. Por isso, no final de cada mês, os escritórios da área costumavam "re-mover o ferro-velho", e faziam uma liquidação. O pessoal de cada área passava pelo menos uma semana por mês ao telefone, só ten-tando esvaziar os estoques. E os revendedores acabaram se acostu-mando com isso. Logo descobriram que se esperassem até a última semana do mês, alguém do escritório da área ligaria para eles e ten-taria oferecer um pacote de dez carros por um preço especial. De uma forma ou de outra, sempre conseguiriam algum desconto no preço total de venda. Na Ford, tínhamos feito algumas liquidações quando os estoques estavam grandes demais. Mas, aqui, essa era a forma normal de operação.

Como os cães de Pavlov, os revendedores se tornaram depen-dentes dessas vendas especiais. Sabiam que chegaria o dia, e espe-ravam. Quando ouviam o som da campainha, seu coração começava a bater mais forte, pois agora poderiam comprar carros por um pre-ço um pouco menor.

Eu sabia que a Chrysler nunca daria lucro enquanto não aca-bássemos de uma vez por todas com aquele sistema. Também sabia que a tarefa não ia ser fácil. Muita gente da empresa se havia acos-tumado com a banca de saldos. As pessoas contavam com ela. Al-gumas eram literalmente viciadas. Quando me propus a acabar com esse sistema, o pessoal pensou que eu estivesse brincando. Na C-hrysler, a banca de saldos era tão grande e estava tão incorporada à rotina dos negócios, que era difícil imaginar o que aconteceria se ela deixasse de existir!

Fui duro com os revendedores. Expliquei-lhes que a banca de saldos estava afundando a empresa. Disse-lhes que não havia lugar para uma banca de saldos em nossas operações e que essa expressão deveria ser suprimida do nosso vocabulário. Disse que, a partir da-quele momento, quem cuidaria dos estoques seriam eles — e não nós. Também deixei claro que não fabricaríamos nenhum veículo se não tivéssemos um pedido específico e que tanto a empresa como eles lucrariam com a implantação da forma correta de operação.

Mas isso não era suficiente para aperfeiçoar nosso procedimen-to futuro. Ainda estávamos sufocados por todos aqueles carros na banca de saldos. Expliquei aos distribuidores: "Não podemos ven-

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der esses automóveis e caminhões à Sears ou à J. C. Penney. Vocês é que são nossos clientes, e de alguma forma vão ter que comprar esses produtos de nós — e isso tem de ser feito agora. Não posso desmontar os automóveis e devolver as peças. E vocês não podem me deixar com meio bilhão de dólares empregados em estoque — não importa como isso aconteceu —, enquanto fazem pedidos espe-ciais dos carros que acham que gostariam de vender, e o resto que se dane".

Não aconteceu da noite para o dia, mas os revendedores acaba-ram aceitando e terminamos por nos livrar da banca de saldos. Foi incrivelmente difícil fazer isso. Os estoques dos revendedores já es-tavam cheios e as taxas de juros eram altas. Mas os revendedores fizeram o que era necessário e, em alguns anos, estávamos produ-zindo com base nos pedidos reais dos revendedores.

Dentro do novo sistema, o pessoal de vendas senta com cada um dos nossos revendedores. Juntos, planejam o pedido do próximo mês, além de estimar as necessidades para os dois meses seguintes. Os revendedores se comprometem de fato conosco, e isso serve de base para a nossa escala de produção.

O revendedor tem que fazer a parte dele; nós mantemos nossa responsabilidade pela parte que nos cabe. Isso significa que aten-demos direito aos pedidos, mantemos o revendedor informado e en-tregamos um produto de qualidade no dia combinado.

Hoje o sistema tem integridade. Podemos chegar a um reven-dedor e dizer que, se ele quiser participar num determinado pro-grama de descontos, terá que comprar cem unidades. Ele pode pe-gar ou largar. Mas não terá como mudar esse número, e não há uma liquidação no. final de cada mês. Então, já não operamos num clima de pânico diário. Hoje, a não ser que o cliente queira ficar com um carro do próprio estoque do distribuidor, a compra é feita mediante um pedido e ele recebe o carro em algumas semanas.

Como se não bastasse a banca de saldos, descobri que a Chrys-

ler estava se tornando a maior empresa de leasing do mundo. Ao invés de vender carros para a Hertz e para a Aviz, estávamos fazen-do leasing. A cada seis meses recebíamos os carros de volta. Sem protestar, tornamo-nos um depósito de carros usados. Nossos distri-buidores não queriam esses carros e tínhamos que nos livrar deles em leilões. Só no meu primeiro ano na empresa, registrei 88 mi-lhões de prejuízos com carros usados!

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A alternativa foi vender os carros às agências de aluguel, mes-mo que a margem de lucro fosse mínima. Elas que se ocupassem em se livrar dos carros. Sessenta mil carros usados eram a última coisa de que precisávamos.

Negociar com essas locadoras não é muito lucrativo, mas, es-pecialmente para a Chrysler, é importante ter carros nas suas frotas. Um carro da Hertz passa em média por duas ou três pessoas por semana, o que representa duas ou três demonstrações — demons-trações feitas a pessoas que talvez nunca tenham dirigido um carro da Chrysler antes. Entram no carro e perguntam: "Quem é o fabri-cante?" Recebemos um grande volume de correspondência de clien-tes das locadoras perguntando: "Por que vocês não promovem esse carro? Onde ele estava escondido? Aluguei um Reliant para ir de Seattle a São Francisco e gostei muito".

Os carros de aluguel nos expõem. Atraem o mercado jovem, as pessoas ricas, o profissional de alto nível que tradicionalmente nem pensava na possibilidade de comprar um carro nosso. Precisamos aumentar nossa penetração no sudoeste e na Califórnia, e é nesse sentido que os carros de aluguel são importantes.

Além da banca de saldos, dos carros de aluguel e de vários ou-tros problemas, tivemos que dar baixa em 500 milhões de dólares decorrentes de erros de administração, antes de poder começar a a-proveitar o péssimo mercado daquele momento.

Havia tanto a fazer em tão pouco tempo! Eu tinha que eliminar os trinta e cinco ducados. Tinha que criar alguma coesão e unidade na empresa. Tinha que me livrar das pessoas que não entendiam o que estavam fazendo. Tinha que substituí-las por pessoas experien-tes e rápidas. E tinha que implantar um sistema de controle finan-ceiro o mais depressa possível.

Os problemas eram cruciais e as soluções apontavam na mes-ma direção. Eu precisava de uma boa equipe de pessoas experien-tes, que pudesse trabalhar comigo para reerguer essa empresa, antes que ela afundasse de vez. Minha maior prioridade era compor essa equipe antes que fosse tarde demais.

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XV COMPONDO A

EQUIPE

m última análise, todas as opera-ções de negócios podem ser reduzidas a três palavras: pessoas, pro-dutos e lucros. As pessoas estão em primeiro lugar. Se você não ti-ver uma boa equipe, não poderá fazer grande coisa com o resto.

Quando fui para a Chrysler, levei minhas agendas. Nelas, eu ti-nha traçado a carreira de centenas de executivos da Ford. Depois da minha demissão, fiz uma lista detalhada de tudo o que eu queria re-tirar do escritório. Aquelas agendas pretas sem dúvida eram minhas, mas poderiam alegar que elas pertenciam à empresa. Não queria ar-riscar. Henry e eu não estávamos nos falando e eu levei a lista a Bill Ford para que ele me autorizasse a levar aquelas agendas.

Voltei a consultá-las quando vi que a Chrysler precisava urgen-temente de um profissional de alto nível na área de finanças. Al-guns meses antes, como presidente da Ford, pedira a J. Edward Lundy, nosso principal homem de finanças, um relatório sobre os melhores talentos financeiros da empresa. Lundy fora um dos Garo-tos-Prodígio; mais do que ninguém, era o responsável pelo excelen-te sistema de finanças da Ford.

Aparentemente, meu pedido era rotineiro. Mas agora me per-gunto se, a nível consciente, eu já não sabia que logo poderia estar

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numa situação em que essa informação fosse importante. A lista de Lundy revelou-se um presente dos céus.

Abri as agendas e comecei a ler os nomes. Lundy havia classi-ficado todos eles em níveis A, B e C. Havia cerca de vinte nomes na lista A, mas eu tinha dúvidas quanto a eles. Eu respeitava Lundy, mas nossas prioridades eram diferentes. A lista A continha excelen-tes contadores de tostões. Mas o que eu estava procurando era um pouco mais do que isso.

Observando a lista B, vi o nome de Gerald Greenwald. Tinha apenas quarenta e quatro anos, mas já havia realizado muita coisa. Eu o havia encontrado algumas vezes e gostava dele. Lembrava-me de que ele estava sempre tentando sair da área financeira. Certa vez, eu o ajudei a ampliar suas habilidades enviando-o a Paris para diri-gir a Richier, uma empresa de material agrícola e de construção que havíamos comprado. A empresa faliu, mas não por culpa de Gre-enwald. Foi simplesmente uma operação errada da nossa parte e a-cabamos tendo que vendê-la.

Depois enviamos Greenwald para a Ford Venezuela. Ele era um gerente agressivo e conseguiu que a fatia da Ford Venezuela, no mercado de automóveis e de caminhões, fosse maior do que a de qualquer outra subsidiária da empresa. Naquela época, o preço do galão de gasolina na Venezuela era 14 cents, e eu sempre brincava com Jerry dizendo que nessas condições era impossível ele perder. Na Venezuela ele encontrou um filão de ouro. Mas a verdade é que demonstrou ter um verdadeiro instinto para os negócios nas duas áreas — ele era obviamente mais do que um contador de tostões.

Os antecedentes de Jerry são incomuns no ramo de automóveis. Ele é judeu, filho de um criador de galinhas de Saint Louis. Teve uma boa formação em economia, em Princeton, e foi para a Ford com a intenção de trabalhar na área de relações trabalhistas.

"Temos uma idéia melhor", disseram-lhe. Deram-lhe um cargo numa divisão nova — a Edsel. Alguns meses antes daquele fiasco, ele pensava: "Acabei de sair da escola. Como pude ter tanta sorte?"

Jerry tem o talento e o know-how do empreendedor capaz de analisar um problema e de se virar para resolvê-lo. Ele não fica fa-lando nas coisas — ele age. Ele sempre quis ir além das finanças, e seu trabalho na Venezuela deixou claro que suas qualificações tam-bém abrangiam outras áreas. Eu queria Jerry Greenwald porque ele era um grande homem de negócios, e ponto final.

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Em dezembro de 1978, telefonei para Greenwald na Venezue-la. Jerry e a esposa tinham ido a uma festa e eu deixei o recado. Quando voltaram, Glenda Greenwald imediatamente adivinhou por que eu tinha ligado. "Não o procure!", disse ao marido. Os Green-wald estavam muito bem em Caracas, onde Jerry era um peixe grande numa lagoa pequena. A perspectiva de mudar para Detroit e trabalhar numa empresa fracassada não poderia ser muito atraente.

Mas Jerry me telefonou e decidimos encontrar-nos em Miami. Ele estava de barba. Não tinha muita certeza de que desejava ir para a Chrysler e fazia o possível para manter nossas conversas em sigilo.

Nosso segundo encontro foi em Las Vegas, onde fui participar de uma convenção de revendedores Chrysler. Quando chegou ao hotel, Jerry se assustou ao saber que uma reunião da Ford estava sendo realizada ao mesmo tempo. Ficou o tempo todo no quarto pa-ra evitar encontros com conhecidos da Ford. Conversamos a noite inteira. Jerry tinha que tomar o avião de manhã bem cedo e às cinco e meia ligou para o meu quarto perguntando: "Você está acordado?"

"Você perdeu a cabeça?", respondi. Ele disse que não tinha conseguido pregar os olhos e que precisava fazer algumas perguntas antes de tomar uma decisão. Pedi que ele fosse imediatamente ao meu quarto. Fiquei sentado, de roupão, e ele me falou de suas dúvi-das. "Toda a vida lutei para sair desta síndrome de contador de tos-tões", falou. "E na Chrysler estarei justamente voltando para ela."

Expliquei que precisava dele para implantar o sistema de con-trole financeiro, mas que, quando ele tivesse cuidado disso, poderia ir para qualquer outro setor. Quando ele saiu do quarto e começou a descer as escadas, eu o chamei: "Espere um pouco, Jerry. Você po-de chegar à presidência mais cedo do que imagina". Ele me olhou incrédulo, como se eu estivesse querendo aplicar-lhe o conto do vi-gário. Mas eu estava falando sério. Em dois anos, Jerry se tornou o número dois da Chrysler.

Depois de concordar com a transferência, Jerry foi à sede da Ford, em Dearborn, para dar-lhes a notícia. Para sua surpresa, Hen-ry pediu para falar com ele. Tanto Henry quanto Bill Ford sabiam que Jerry era precioso e tentaram demovê-lo da idéia de ir para a Chrysler. Jerry explicou a Henry que não podia resistir ao estímulo que a Chrysler representava — a oportunidade de se envolver com a recuperação de uma grande empresa em apuros. Henry, mais do que ninguém, deveria admirar sua motivação, ele disse, pois havia en-

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frentado um desafio semelhante quando entrou na empresa do avô, em 1946. Henry se calou; parece que a analogia atingiu o alvo.

Uma das primeiras responsabilidades de Greenwald foi centra-lizar as contas a pagar. Vindo da Ford, certamente ficou em estado de choque quando descobriu que as contas estavam sendo pagas em cerca de trinta lugares diferentes.

Nos primeiros dias de trabalho, conversou muito com o pessoal envolvido na direção do controle financeiro. Como era de se prever, descobriu que as pessoas não tinham idéia de como avaliar, sob uma perspectiva financeira, o que a administração estava fazendo, e que não sabiam fazer uma projeção das conseqüências das nossas decisões empresariais. Levou um tempo enorme procurando alguém que pudesse ser identificado como responsável por alguma coisa específica. O pessoal dizia: "Bem, todos são responsáveis pelo con-trole de custos". Jerry sabia muito bem o que isso significava — em última análise, ninguém era responsável por nada.

Uma das várias áreas desastrosas que Greenwald descobriu foi a dos custos de garantia, que estavam em torno da cifra vultosa de 350 milhões de dólares por ano. Greenwald imediatamente pediu uma lista dos dez principais problemas ligados às garantias, com o nome de alguém ao lado de cada um deles, e um plano específico para corrigir as deficiências e reduzir os custos. Para sua decepção, logo confirmou o que eu já sabia. Na Chrysler, para organizar os dados financeiros de modo a resolver um problema, o primeiro tra-balho a fazer era conseguir dados!

Jerry nunca me deixou esquecer que ele queria ser mais do que um controller. Depois de alguns meses, quando vi o quanto ele era competente, eu lhe fiz uma oferta: "Se você conseguir descobrir al-guém tão bom quanto você, posso liberá-lo para fazer outras coisas".

Greenwald imediatamente trouxe Steve Miller, que tinha sido seu principal homem de finanças na Venezuela. Como nosso prin-cipal executivo financeiro, Miller foi uma contribuição brilhante à equipe. Durante nossas negociações aparentemente intermináveis com centenas de bancos, em 1980 e 1981, o trabalho de Miller teve uma importância fundamental. Surpreendentemente, tanto ele como Greenwald conseguiram manter-se calmos e frios durante todo a-quele período caótico. A Chrysler não teria sobrevivido sem eles.

Hal Sperlich já estava na Chrysler quando cheguei — tinha

vindo quando Henry o despediu, em 1977. Ter Hal na Chrysler e-

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quivalia a encontrar um barril de chope, bem geladinho, no meio do deserto. Obrigado, Henry!

Cada vez que colocava alguém na equipe, eu me sentia um pouco culpado. Para recrutar essas pessoas, tinha que enganar a mim mesmo. Se tivesse sido realmente honesto, eu lhes teria dito a verdade: "Afastem-se deste lugar — vocês não podem imaginar como ele é ruim!"

Mas eu não podia fazer isso. Tinha que lhes dizer o que eu de-sejava desesperadamente que fosse verdade: se conseguíssemos formar a equipe certa, poderíamos salvar a empresa.

Com Sperlich, contudo, não havia esse problema. Ele já estava na Chrysler há dois anos quando eu cheguei e sabia perfeitamente como as coisas iam mal. Mais de uma vez eu lhe disse: "Seu filho da mãe, por que você me deixou aceitar este emprego? Por que vo-cê não me avisou?" Ele também tinha enganado a si mesmo para me levar para a Chrysler.

Mas perdoei Hal porque sua experiência na Chrysler lhe dera uma grande vantagem sobre meus recrutados: já conhecia o lugar. Hal era como minha sentinela avançada. Riccardo podia até me fa-lar sobre os balanços, mas Sperlich é quem realmente sabia dos de-talhes das operações.

Assim, ele foi capaz de desenterrar várias pessoas boas que ha-viam sido deixadas de lado pela antiga administração. Muitas esta-vam várias camadas abaixo do solo, e Hal teve que cavar muito. Descobriu jovens brilhantes cujo talento tinha sido jogado fora. Ti-nham a capacidade e o entusiasmo necessários: só precisavam ser descobertos.

Por sorte, o câncer que corroía a Chrysler não havia destruído tudo nos níveis mais baixos. Embora eu tivesse que substituir quase todos os cargos de direção, havia uma quantidade imensa de talen-tos jovens e dinâmicos abaixo deles. Quando começamos a nos li-vrar do pessoal menos competente, ficou mais fácil descobrir os bons. Nunca consegui acreditar que a administração anterior não os tenha percebido. Havia pessoas que tinham fogo no olhar: bastava vê-las para perceber que eram excelentes.

Logo promovi Sperlich a vice-presidente de planejamento de produto. Pouco tempo depois, o promovi a diretor de todas as ope-rações da América do Norte. Hal tinha participado de tudo que ha-via dado certo na Ford durante os anos 60 e 70. Mais recentemente, vem fazendo o mesmo na Chrysler.

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Hal é um visionário pragmático. Sabe como fazer funcionar a máquina registradora e não fica perdendo tempo com bobagens. To-lera um trabalho razoável de coleta de dados e de análise, mas até certo ponto. Então ele diz: "Muito bem, o que estamos tentando fa-zer?" E ele faz. É um sujeito que sabe se virar.

Hal também é dotado daquela misteriosa faculdade de prever o futuro, de saber o que as pessoas vão querer dentro de três ou qua-tro anos. Trabalhamos juntos desde o Mustang e testamos nossos palpites um com o outro. Nós dois já fomos reconhecidos pela nos-sa clarividência. Eu diria que somos pelo menos tão bons quanto qualquer dirigente importante do ramo de automóveis do mundo!

Também temos nossas divergências, mas isso faz parte da nos-sa relação de trabalho. Hal gosta de me provocar. Diz que estou fi-cando muito velho para conhecer o mercado jovem. Talvez ele te-nha razão. Talvez por isso mesmo eu ainda dê ouvidos a ele. Mas nem sempre! Ele só tem cinco anos a menos do que eu: está come-çando a parecer velho, mas depois de ser explorado por mim, du-rante vinte e quatro anos, isto é muito natural.

Desde o início, Greenwald e Sperlich foram excelentes; mas duas pessoas não compõem uma equipe de administração. Eu ainda precisava de mais ajuda. E sabia onde consegui-la. Havia um grupo de pessoas de experiência e capacidade comprovadas e que estavam sendo completamente desperdiçadas: os executivos aposentados da Ford. Eu precisava dos seus cérebros e da sua experiência prática de organização.

Gar Laux tinha experiência tanto na área de marketing quanto nas funções de revendedor da Ford. Quando o Mustang foi lançado, ele era gerente de vendas da Divisão Ford. Depois foi meu gerente geral na Divisão Lincoln-Mercury.

Na era Knudsen, Gar saiu da Ford para assumir a direção da Câmara de Comércio de Dallas. Em poucos anos já estava em outro emprego — era sócio de Arnold Palmer numa revendedora Cadillac na Carolina do Norte. Mas não era apenas a experiência de Gar que me interessava. Sua personalidade também era um fator importante. É daquelas pessoas com quem todo mundo gosta de sair para tomar um trago e trocar confidências, e eu sabia que ele seria excelente para estabelecer melhores relações com os nossos revendedores. Deus sabe o quanto precisávamos disso.

A animosidade entre Highland Park e os revendedores era es-pantosa. Fiquei impressionado e assustado com a forma como os

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dois lados se comunicavam e com o tom grosseiro e insultuoso das cartas trocadas entre os revendedores e a administração da Chrysler. Na Ford eu sempre tinha tido boas relações com os revendedores, mas levei vinte anos para ganhar sua confiança. Fazer contato com um grupo de revendedores totalmente novo era diferente — e eu certamente não tinha vinte anos pela frente. Não podia construir to-das as pontes sozinho. Gar Laux era o homem indicado para essa ta-refa.

Trouxe-o para ajudar os dois lados a baixar a voz e a ouvir um ao outro. Afinal, o que é bom para a Chrysler é bom para os reven-dedores, e vice-versa. Ao invés de deixar que os dois lados alimen-tassem rancores ou continuassem a boicotar-se mutuamente, preci-sávamos criar um ambiente em que alguém da cúpula administrati-va se sentasse com os revendedores e discutisse todas as suas quei-xas e todos os seus problemas, um por um.

E, sem dúvida, os revendedores tinham muito a dizer. Tinham todo o direito de estar com raiva da administração, pois nunca havi-am sido bem tratados. Durante anos, a empresa lhes vinha enviando ferro-velho para que o vendessem. A qualidade da Chrysler era tão ruim que os revendedores já tinham criado a expectativa de ter que reconstruir os carros quando os recebiam. Nestas condições, como podíamos esperar deles gentileza e entusiasmo? Como podíamos pedir que acreditassem em nós?

Estávamos mergulhados em cartas de clientes insatisfeitos que haviam visitado showrooms da Chrysler. Cartas que diziam: "Com estes caras não consigo nem saber as horas", ou: "Vi um comercial que convidava a entrar e comparar. Fui para comparar, mas não consegui conversar com ninguém. Parecia que todos os vendedores estavam tomando café ou lendo The Daily Racing Form. Então, o que eu podia fazer?"

Cada vez que eu lia uma carta dessas, ficava louco da vida. Es-távamos deixando de vender para pessoas que realmente queriam fazer negócio conosco, pelo menos para nos ajudar.

Então enviei Gar para fazer seminários com os revendedores e para lembrá-los de algumas coisas fundamentais: se uma pessoa en-trar pela porta, seja amável com ela. Converse. Forneça a informa-ção de que ela precisa para fazer uma compra de dez mil dólares. Ela nunca tem certeza daquilo que deseja. Talvez ela não saiba o que é um eixo transversal ou quais as vantagens da tração dianteira. Atualmente, cerca de 50 por cento dos carros são comprados por mu-

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lheres e elas nem sempre conhecem a parte técnica. Precisam de aju-da e atenção. O contato com o consumidor exige conhecimento, tem-po, paciência — e, afinal de contas, se um profissional de vendas não tiver essas qualidades, deve procurar outro tipo de trabalho (sempre me lembro dos conselhos que meu pai deu àquela garçonete).

Gar informou aos revendedores que a nova administração iria disciplinar todas as áreas de nossas operações. Disse que reconhecí-amos o problema da qualidade e estávamos dispostos a resolvê-lo. Explicou que pretendíamos honrar nossos compromissos, operar dentro dos orçamentos e respeitar cronogramas. Disse aos revende-dores que toda a empresa estava sendo reformulada e que, a partir daquele momento, poderiam contar conosco.

Originalmente, Gar tinha concordado em se juntar a nós na qualidade de consultor, por alguns meses, mantendo sua revendedo-ra na Carolina do Norte. Pouco depois, nós o convencemos a ficar por alguns anos como responsável pelas vendas e pelo marketing.

Quanto à imagem da qualidade, era uma questão realmente sé-ria da Chrysler. Um problema tão importante não pode ser resolvido na base da varinha mágica! Mesmo que o seu produto melhore ime-diatamente, o público vai levar algum tempo para perceber. É a si-tuação da garota que é pouco séria quando resolve endireitar. Nos primeiros tempos, ninguém acredita nela.

Estilo e valor vendem carros, mas é a qualidade que mantém as vendas. Quando se trata do julgamento da qualidade pelo público, a propaganda, as entrevistas coletivas ou outras aparições públicas não podem ajudar em nada. A única solução é fabricar bons produ-tos, a preços competitivos, ir a campo e lhes prestar assistência. Se você conseguir fazer isso, o público vai começar a caminhar na di-reção da sua porta.

Para nos ajudar na questão da qualidade, tirei Hans Matthias da aposentadoria e o contratei como consultor. Hans havia sido meu engenheiro-chefe na Divisão Ford e mais tarde seria encarregado de toda a produção da Ford. Sua especialidade era controle de qualida-de; até sua aposentadoria, em 1972, foi quem mais fez pela melhoria da qualidade da Ford. Em dois anos na Chrysler, ele fez o mesmo.

Matthias trabalhou com Sperlich para pôr ordem no sistema de produção. Sperlich estava sempre trabalhando em modelos que só seriam lançados três anos depois. "Gaste o que for preciso", eu lhe disse, "por pior que as coisas estejam agora. A única maneira de so-

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breviver é manter os negócios durante as fases de mudança." Hoje nossa qualidade é igual à de qualquer carro americano, ou até me-lhor. E estamos nos aproximando rapidamente dos japoneses.

O público se tornou cético com relação às grandes empresas, e com razão. Às vezes nossos carros eram tão ruins que inúmeras pessoas pensavam que eles eram feitos assim de propósito. Muita gente não percebe que é interesse da empresa fazer carros bons des-de o início. Se descobrirmos um problema na fábrica, sua correção nos custará 20 dólares por hora. Mas se deixarmos o problema pas-sar e o revendedor tiver que corrigi-lo, gastaremos 30 dólares por hora dentro da garantia. E se detesto ter que pagar 20 dólares por hora, detesto mais ainda ter que pagar 30.

O bom projeto sempre envolve um equilíbrio delicado, entre o que o cliente quer e o que lhe podemos oferecer sem comprometer as outras coisas que ele deseja.

Os carros são máquinas muito complexas, e sua complexidade aumenta a cada ano. Vejamos o ar-condicionado, por exemplo. Se você paga 700 dólares a mais para não sentir calor no verão, você quer que o seu gasto valha a pena. Quem projeta o sistema de ar-condicionado tem que levar em conta que o tempo de resfriamento não pode ser de 30 minutos, pois muitas viagens duram menos do que isso. Então, é preciso instalar ventiladores de alta velocidade. Mas não podem ser muito barulhentos, pois o motorista quer ouvir o seu estéreo de 300 dólares com o ar-condicionado ligado. O en-carregado do ar-condicionado não pode simplesmente dizer: "Isso não é problema meu. Eu só cuido do resfriamento". Tem que inte-grar sua parte no sistema global do carro.

O projetista deve ter algumas coisas em mente. Primeiro, a pe-ça tem que ser leve, pois, como tudo no carro, se for pesada, irá afe-tar a velocidade média. Segundo, seu custo deve ser baixo — por motivos óbvios. Por fim, deve ser fácil de fabricar. Montar duas pe-ças é sempre mais fácil e mais seguro que montar três.

Fácil de fabricar — este é o segredo da qualidade. "Meu proje-to é demais." Ouvi esta afirmação durante anos a fio. E sempre pen-so: "Pois é tão bom que não posso fabricá-lo".

Naturalmente, a qualidade não se restringe à engenharia. Deve estar incorporada à consciência dos trabalhadores nas linhas de pro-dução. Com o estabelecimento de "círculos de qualidade", nossos trabalhadores passaram a se envolver muito mais no processo de produção. Sentamos com eles numa sala e dizemos: "O que vocês

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acham desta operação? Podem realizá-la? O engenheiro diz que sim. Mas a fabricação cabe a vocês. O que têm a dizer?"

E então eles tentam fazer aquilo por uns dois dias. Se não der certo, voltam e dizem.- "É uma idéia ruim. Aqui está uma forma melhor de fazer". Logo corre a notícia de que a administração está ouvindo as pessoas, que ela está realmente preocupada com a quali-dade, que está aberta a novas idéias, que não somos um bando de idiotas. Este pode ser o ponto fundamental quanto à qualidade — o trabalhador deve acreditar que suas idéias serão acolhidas.

Também estabelecemos um Programa de Qualidade gerido con-juntamente pelo Sindicato da Indústria Automobilística UAW, — United Auto Workers — e pela administração da empresa. O pro-grama tem como lema: "Olha, podemos discutir tudo, mas, quando se trata de qualidade, não vamos brigar uns com os outros. A qualidade não pode ser misturada com outras questões nem ser comprometida pela relação de conflito entre os trabalhadores e a administração".

Na Ford, Hans Matthias fizera valer a importância da qualida-de. Quando lhe pedi para nos ajudar, mal agüentou esperar para pôr a mão na massa. Em um ano e meio, disciplinou o sistema de pro-dução da empresa. Fez tudo isso como consultor, e todo mundo sa-be que ninguém espera que os consultores façam alguma coisa!

Matthias e eu nos entendíamos. Dez minutos depois de chegar, ele já foi dizendo: "Sabe o que é isto aqui? É uma bagunça, e não sei se vamos conseguir acabar com ela". Mas ele conseguiu. Ia para as linhas de produção toda manhã e retirava da linha cinco unidades ao acaso. Então, levava um Toyota novo e pedia ao pessoal para ver a diferença. Logo levou o encarregado a admitir: "Puxa, nossos car-ros são bem ruinzinhos".

Há também George Butts, que já estava lá quando cheguei. George contribuiu muito para a melhoria da qualidade dos nossos produtos. Eu tinha deixado bem claro para todos que a qualidade era nossa prioridade número um e creio que a mensagem atingiu to-dos os níveis. Criei um departamento especial para George contro-lar a qualidade. Ele é meu cão de guarda — e o meu gerente princi-pal para todas as questões referentes à qualidade.

No auge do debate sobre a garantia de empréstimo em 1979, quando estávamos cortando despesas a torto e a direito, Matthias e Butts levaram-me uma proposta de contratação de 250 pessoas para a melhoria do controle de qualidade na fábrica. Não poderíamos as-

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sumir aquilo, mas, mesmo assim, aprovei o plano. Se a Chrysler pretendia ter algum futuro, precisávamos de produtos de qualidade.

Não posso falar em qualidade sem mencionar também Steve Sharf, que hoje dirige toda a área de produção. Ele também estava na Chrysler quando cheguei. É um diamante bruto, um daqueles que ficaram escondidos durante anos. Assumindo novas responsabi-lidades, ele realmente fez muita coisa boa acontecer.

E havia Dick Dauch, que foi para a Chrysler depois de ter tra-balhado na GM e na Volkswagen. Dauch conseguiu trazer de suas duas "escolas" quinze companheiros de alto nível. Este aspecto muitas vezes não é levado em conta por aqueles que tentam enten-der nossa recuperação. Consegui trazer da Ford todos os meus co-nhecidos da área de marketing, finanças e compras; mas, para cui-dar da qualidade da produção, procurei os melhores profissionais da GM e da Volkswagen. Assim, fiquei com o velho e o novo, a linha de produção e a assessoria, os aposentados — e todos eles se inte-graram. Foi essa combinação excepcional que melhorou nossa qua-lidade tão rapidamente.

Juntos, Matthias, Butts, Sharf e Dauch deram integridade ao nosso sistema de produção. É este compromisso com a produção de boa qualidade — aliado a um grupo brilhante de projetistas e enge-nheiros liderado por Don De La Rossa e Jack Withrow — que nos permite ser a única empresa de automóveis do mundo a oferecer uma garantia de cinco anos, ou cinqüenta mil milhas.

Essa garantia não é um artifício de vendas. Nem poderia ser. Se os motores e as transmissões não fossem bons, teriam que ser repa-rados no quarto ou quinto ano, quando os carros começam a apre-sentar sinais de idade. Esse gasto nos levaria à morte.

Felizmente, a qualidade e a produtividade são faces da mesma moeda. Tudo o que se faz pela qualidade aumenta a produtividade. Quando você aperfeiçoa a qualidade, os custos de garantia diminu-em, assim como os custos de inspeção e de reparos. Se você de iní-cio faz um bom trabalho, os custos de ferramentaria e engenharia também diminuem e a lealdade do comprador começa a aumentar.

Além de Gar Laux e Hans Matthias, trouxe para a Chrysler ou-

tro executivo aposentado da Ford. Paul Bergmoser trabalhou na

Cada milha eqüivale a 1.609 metros. (N. do E.)

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Ford durante trinta anos como vice-presidente encarregado da área de compras. É um homem decidido e inovador; sabia que poderia contar com ele para descobrir uma dúzia de maneiras de fazer coi-sas que todo mundo achava impossíveis.

"Escute, Bergie", eu lhe disse ao telefone, "estou sozinho aqui." Tentei explicar que a Chrysler não tinha nenhum dos sistemas e or-ganizações a que estávamos tão acostumados na Ford. Ele também concordou em entrar no barco — primeiro como consultor e depois, por cerca de um ano, como presidente da empresa.

Quando Paul chegou a Highland Park, ficou impressionado com o que viu. Ele sempre vinha me dizer: "Você sabe, estou fa-zendo a escavação, mas você não vai acreditar no que está apare-cendo debaixo das rochas removidas". Às vezes ríamos, de tão ab-surdo que era tudo aquilo. Depois de um ano na Chrysler, Paul re-clamou: "Lee, estou com um relatório financeiro terrível, que diz que perdemos um bilhão de dólares este ano. Mas não tenho ne-nhuma análise que me explique como tivemos esse prejuízo". A ú-nica coisa que eu podia dizer era: "Bem-vindo à Chrysler, Paul".

Como todos nós que havíamos trabalhado na Ford, Bergie es-tava acostumado a um estilo de trabalho bastante sistemático. Na Chrysler ele não encontrou praticamente nenhum sistema no depar-tamento de compras, que, mesmo dentro dos critérios elásticos de avaliação da empresa, era conhecido pela sua ineficácia. E a Chrys-ler dependia mais de fornecedores externos do que a GM e a Ford, que produziam boa parte de suas próprias peças.

Pelo fato de ser a menor das Três Grandes, a Chrysler nem sempre tinha condições de conseguir os melhores preços. Para pio-rar as coisas, a empresa não sabia tratar bem seus fornecedores, e eles, ao longo dos anos, retribuíam na mesma moeda. Como resul-tado, nem sempre podíamos contar com um fluxo regular de peças. Bergie tinha um bom trabalho pela frente.

Como já mencionei, Laux, Matthias e Bergmoser interrompe-ram a aposentadoria para me ajudar. Eu teria ficado perdido sem es-ses companheiros. Cada um deles tinha muitos anos de experiência e o desejo de colocar esta experiência em prática.

Por que o fizeram? Terá sido, como muita gente insinuou, por

causa da minha grande habilidade de vendedor? Certamente não. Eles eram meus amigos. Eu sabia que eles eram do tipo que aceita desafios, que estariam dispostos a dar uma ajuda. Acharam que po-

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deria ser divertido. Quando não era, tocavam em frente do mesmo jeito. Eles tinham uma qualidade essencial — força interior.

Isto se aplica, com certeza, a todos que se juntaram à nossa e-quipe. Só pessoas com um temperamento especial poderiam agüen-tar aquilo. Era mais que um desafio — era uma aventura. E nin-guém fraquejou no meio do caminho. Ninguém duvidou de si mes-mo. Ninguém caiu em desespero. Ninguém perguntou: "Por que de-sisti de uma carreira promissora numa boa empresa para assumir is-to aqui?" Eram homens corajosos, homens de caráter e de valor. Sou grato a todos e a cada um deles, e jamais os esquecerei.

Tenho ainda um débito especial para com aqueles que inter-romperam a aposentadoria. Convenhamos que a aposentadoria compulsória é uma idéia terrível. Sempre achei ridículo alguém ser mandado embora assim que faz sessenta e cinco anos, sejam quais forem suas condições. Deveríamos depender dos nossos executivos mais velhos. Eles têm a experiência. Eles têm a sabedoria.

No Japão, os mais velhos continuam a dirigir as coisas. Em minha última viagem por lá, o mais novo profissional com quem conversei tinha setenta e cinco anos. Não creio que esta política te-nha feito muito mal ao Japão nos últimos anos.

Se você ainda pode trabalhar bem aos sessenta e cinco anos, por que deveria parar? O executivo aposentado já assistiu a tudo. A-prendeu muita coisa ao longo dos anos. Qual o problema de ter idade, se a pessoa está saudável? Muita gente se esquece de que os nossos padrões de saúde melhoraram de maneira considerável nas últimas décadas. Se alguém está fisicamente bem e possui disposição para trabalhar, por que sua capacidade não haveria de ser utilizada?

Já vi muitos executivos anunciar que se aposentarão aos cin-qüenta e cinco anos. Então, quando fazem cinqüenta e cinco anos sentem-se compelidos a cumprir a promessa. Falaram nisso tantas vezes que acabaram-se comprometendo, embora não se entusias-mem pela idéia. Acho isso trágico.

Muitos desses homens se acabam quando se aposentam. Esta-vam acostumados à luta, a muita agitação e a correr riscos — gran-des sucessos e grandes fracassos. E de repente vêem-se jogando golfe e voltando para casa na hora do almoço. Vi muitos deles mor-rer apenas alguns meses depois da aposentadoria. É verdade que o trabalho pode nos matar. Mas não trabalhar pode ter o mesmo efeito.

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Bem, pode-se dizer que eu estava com a defesa e o meio de campo organizados. Faltava o ataque: para completar a equipe, eu tinha que conseguir um bom pessoal na área de marketing. Esta é a minha especialidade, e não me entusiasmou o nível existente na C-hrysler. Resolvi o problema de uma forma um pouco incomum. No dia 1º de março de 1979, convoquei uma entrevista coletiva em New York para anunciar uma realização muito importante: estáva-mos substituindo nossas duas agências de publicidade, Young & Rubican e BBDO, pela Kenyon & Eckhardt (K & E), a agência de New York que tinha sido tão eficaz no trabalho para a Divisão Lin-coln-Mercury da Ford.

Mesmo dentro dos padrões da Madison Avenue, retirar as con-tas de nossas agências era um ato implacável. Também representa-va a maior mudança de uma única conta na história da publicidade. Era uma decisão de 150 milhões de dólares, e proclamava ao mun-do dos negócios que não tínhamos medo de tomar as medidas es-senciais para manter a empresa de pé.

Naquela época, a K & E ainda tinha a conta de 75 milhões de dólares da Lincoln-Mercury. Para se juntar a nós, teve que desistir dela imediatamente. Tenho certeza de que Henry não ficou nada sa-tisfeito ao saber da notícia, que deve ter sido um choque para ele. Nossa campanha havia sido planejada cuidadosamente e o pessoal da Ford só foi avisado algumas horas antes. A segurança em torno da transação foi impressionante; quase ninguém em Detroit soube da mudança antes de ela ser anunciada. Depois do abalo, a Young & Rubican tornou-se a nova agência da Lincoln-Mercury. Alguns anos depois, quando ficamos grandes demais para uma só agência, a BBDO retomou a conta do Dodge. Assim, tudo acabou como um "jogo das cadeiras" disputado com apostas elevadas.

As duas agências que eu substituí eram perfeitamente compe-tentes. Mas eu tinha tanto a fazer que precisava simplificar as coi-sas. Eu não dispunha do ano que seria necessário para trabalhar di-reito com dois grupos totalmente novos para mim. Não tinha tempo para lhes passar minha filosofia — ou meu jeito de agir. Por isso, levei profissionais que me eram familiares e que me conheciam tão bem que quando eu dava meia ordem já sabiam qual seria o resto. Avenida de New York, onde se concentram as mais importantes agências de pu-blicidade dos EUA. (N. do E.)

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Na minha opinião, a K & E é a melhor do ramo. Na Ford eles tinham criado a frase "Ford tem uma idéia melhor", embora algu-mas pessoas da Ford não tivessem gostado dela. Achavam que seria melhor "Ford tem a melhor idéia".

"Ford tem uma idéia melhor" foi criação de John Morrissey, que até recentemente era presidente do conselho de operações na-cionais da Kenyon & Eckhardt. John começou na J. Walter Thomp-son e depois trabalhou para a Ford antes de entrar na K & E. É um profissional muito criativo e nós estamos juntos há muito tempo.

Foi a K & E que criou o "símbolo do gato", um elemento impor-tante na recuperação da Divisão Lincoln-Mercury. O recorde da K & E, em 1970, quando ajudou a dobrar a parcela de mercado na Lin-coln-Mercury, dispensa qualquer comentário. O trabalho na Lincoln-Mercury foi duro, e durante aqueles anos aprendi que a Kenyon & Eckhardt era capaz de operar em ritmo de crise, sob pressão.

Como a K & E tinha estado envolvida com a Ford durante trin-ta e quatro anos, oferecemos um contrato de cinco anos, que não ti-nha precedentes no mundo da publicidade. Também oferecemos a oportunidade de terem um envolvimento muito maior do que qual-quer outra agência jamais tivera até então.

Conseguir a atenção do público para um carro novo é meio caminho andado. Quanto mais a agência se envolve, tanto melhor para ambas as partes. Os homens da K & E foram nossos parceiros ativos. Tornaram-se membros das nossas comissões empresariais mais importantes, inclusive de planejamento de produtos e marke-ting. Tornaram-se parte integrante da empresa — era quase como se tivéssemos uma agência interna. Na verdade, o pessoal da agência passou a ser nossa área de marketing e de comunicação.

Uma associação tão estreita entre agência e cliente nunca havia sido tentada antes no ramo automobilístico. Mas eu sempre achei que, se você está para gastar 100 milhões de dólares num carro no-vo, não pode esperar que o pessoal da publicidade se torne criativo da noite para o dia. Eles têm que se envolver com todo o processo de desenvolvimento do carro. Têm que participar das reuniões em que o carro é concebido. Desde o início deverão estar dando seus pareceres como "Isto não vai vender porque. . ." ou "Não dê esse nome porque. . .".

Uma grande vantagem desse esquema é a rapidez com que po-demos operar agora. Uma quinta-feira, às quatro horas, decidimos oferecer a nossos clientes uma nova taxa de financiamento de 10,9

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por cento. A K & E começou imediatamente a filmar um comercial. Às cinco da manhã do dia seguinte, ele estava pronto. Na sexta, es-tava no ar. Quando algo tem que ser feito, gosto de fazer depressa. Preciso de uma agência que possa acompanhar meu ritmo.

Uma das primeiras decisões da K & E foi recuperar o símbolo do carneiro, usado anos antes nos caminhões Dodge e depois aban-donado. A pesquisa da K & E demonstrou que o que as pessoas es-peravam de um caminhão é que ele fosse forte, durável, confiável, um produto sóbrio. E trouxeram de volta o carneiro com o lema: "Os caminhões Dodge são resistentes como um carneiro", e coloca-ram o símbolo nos caminhões e nos anúncios. Em pouco tempo, nossos caminhões eram considerados em pé de igualdade com os da Chevrolet e da Ford. Logo estávamos chamando a atenção de pes-soas que nunca tinham pensado num produto Dodge.

Num determinado momento, quando as vendas estavam em baixa, a agência criou um programa em que dizíamos ao público: "Queremos que você pense num produto Chrysler. Venha e teste um de nossos carros. Se você fizer isso e acabar comprando um car-ro dos nossos concorrentes, nós lhe daremos cinqüenta dólares só por ter pensado no nosso produto".

Realmente, esta idéia parecia muito ousada. Muitos revendedo-res se rebelaram. Disseram que isso poderia gerar abusos. Mas es-tavam errados: levamos muita gente aos showrooms e eles vende-ram muitos carros.

Mesmo assim, os revendedores achavam aquilo um artifício bobo, embora a empresa, e não eles, estivesse pagando os cinqüenta dólares. Depois de alguns meses, desistimos do plano por falta de apoio dos revendedores. Mas ainda considero aquela idéia um a-chado.

Outra estratégia de marketing de primeira que lançamos com a K & E foi a garantia de devolução do dinheiro. "Compre um de nossos carros", dizíamos. "Leve-o para casa e se em trinta dias — por qualquer razão — você não gostar dele, traga-o e receba o seu dinheiro de volta." O único prejuízo era uma taxa de depreciação de 100 dólares, já que não podíamos vender os carros devolvidos como novos.

Tentamos esse plano em 1981, e todo mundo em Detroit pen-sou que tínhamos ficado loucos: "E se alguém simplesmente não gostar do carro? E se mudar de idéia? E se a esposa do comprador detestar a cor?"

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Se alguma dessas coisas tivesse acontecido com freqüência, te-ríamos ficado soterrados pelos clientes, que viriam buscar seu di-nheiro. Só a papelada já bastaria para nos matar.

Mas, para surpresa dos céticos, o programa funcionou muito bem. A maioria das pessoas foi razoável; algumas se aproveitaram. Havíamos estimado que 1 por cento dos clientes devolveria os car-ros. Surpreendentemente, o número total de devoluções não chegou a dois décimos dessa previsão.

Também foi uma idéia revolucionária, e fico satisfeito que a tenhamos tentado. O que importa é lembrar que estávamos fazendo tudo para mostrar aos nossos compradores potenciais que sustentá-vamos o que dizíamos.

Com a Kenyon & Eckhardt na nossa equipe, agora estávamos prontos para jogar. Infelizmente, a temporada já estava na metade e nós estávamos em último lugar. Mas, mesmo assim, achei que a nossa volta à disputa pela liderança era questão de tempo. O que eu não percebi é que, antes de chegar a ser um grande time de beisebol como os New York Yankees de antigamente, teríamos de passar por uma longa fase em que seríamos como os velhos Chicago Cubs.

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XVI CAI O XA DO IRÃ. COMEÇA A CRISE.

ma vez organizada a equipe, eu confiava em que a recuperação da Chrysler fosse apenas uma ques-tão de tempo. Mas, naquela época, eu não sabia que a economia so-freria uma grave crise. E certamente não havia contado com o Irã. Como se veio a saber, Jimmy Carter também não.

Logo depois de meu ingresso na Chrysler, nossa fatia no mer-cado diminuiu vertiginosamente. Chegamos a números baixíssimos, como 8 por cento, o que era devastador, mesmo para os padrões da Chrysler. Eu estava começando a perceber que levaria anos para a empresa se reerguer.

Durante a minha carreira na Ford, eu me orgulhava muito da força da minha vida familiar. Acontecesse o que acontecesse no trabalho, sempre conseguia deixar para trás as preocupações do es-critório. Mas isso foi antes de eu ir para a Chrysler. Comecei a a-cordar no meio da noite. Minha cabeça nunca parava de funcionar. Eu estava sempre trabalhando. Houve momentos em que temi pela minha própria sanidade, em que duvidei de que pudesse levar tudo aquilo adiante. Você só pode apostar corridas enquanto tiver fôlego.

Graças a Deus, eu tinha uma esposa compreensiva. E no entan-to, depois de ter acompanhado meus vinte e cinco anos no ramo de automóveis, também ela começou a se preocupar. 220

U

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Eu estava dando o meu sangue, e era uma experiência nova. Ralph Nader costumava dizer que a genialidade de Iacocca na área de marketing levava as pessoas a comprar carros de que não neces-sitavam. Nader reclamava de que as monstruosas Três Grandes, com todo o seu poder de influência, conseguiam fazer uma lavagem cerebral no público para que ele comprasse qualquer coisa. Mas, se isso fosse verdade, onde estaria esse poder especial no momento em que eu realmente estava precisando dele? Onde estava a minha ge-nialidade de marketing no momento em que ninguém comprava nossos carros? Eu poderia ter usado algumas dessas mágicas em 1979, quando era dificílimo vender qualquer coisa.

Naquele momento, os problemas da Chrysler eram tão sérios que todo mundo sabia da precariedade da nossa situação. Assim, a-lém de tudo, tínhamos que lidar com os boatos sórdidos sobre nossa falência iminente. Quando alguém gasta 8 ou 10 mil dólares num carro novo, faz um investimento importante. Tem que se perguntar se a empresa vai continuar funcionando nos próximos anos para re-por peças e para prestar assistência técnica. Se o consumidor está sempre lendo a respeito da possibilidade de bancarrota da Chrysler, não vai sair para comprar um de nossos carros.

Eu assistia à transformação da Chrysler em motivo de piada.

Os cartunistas do país estavam num momento de glória. O mesmo ocorria com o humorista Johnny Carson:

CARSON:

"Puxa, como ele é maldoso!" PLATÉIA:

"O que é que ele fez?" CARSON:

"Olha, ele é tão maldoso que uma manhã dessas ligou para a Chrysler e perguntou: 'Como vão os negócios?'"

OU:

"Não sei o que está acontecendo na Chrysler, mas esta é a pri-meira vez que uma conferência de executivos é interrompida para se telefonar para o 'Dial-A-Prayer'". "Disque uma prece", orações transmitidas pelo telefone. (N. do E.)

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Não fazia ainda três meses que eu estava na Chrysler, quando

tudo virou um inferno. No dia 16 de janeiro de 1979, o Xá perdeu o poder no Irã. Algumas semanas depois, o preço da gasolina dobrou. A crise de energia atingiu primeiro a Califórnia, e em maio foi ma-téria de capa do Newsweek. Um mês depois, chegava ao Leste. No último fim de semana de junho, era preciso ter muita sorte para en-contrar um posto de gasolina funcionando.

Tudo isso teve um efeito devastador sobre as vendas de nossos carros maiores, assim como sobre as vendas das peruas. A Chrysler era líder na fabricação de peruas e furgões residenciais, e aqueles bebedores de gasolina impressionantes foram as primeiras vítimas quando o pânico se instalou. Em junho de 1979, os chassis e moto-res que fornecíamos à indústria de peruas praticamente deixaram de ser vendidos. E as vendas dos nossos furgões, outra parte conside-rável da nossa operação, reduziram-se à metade.

Uma das críticas que o público mais faz à indústria automobi-lística é que deveríamos ter previsto a crise de petróleo pós-Irã. Mas se o próprio governo não tinha idéia do que estava acontecendo por lá, como poderíamos saber?

Bem, não estávamos preparados para o Irã. Mas certamente re-agimos. Em 1979, planejamos nossos modelos de 1983 partindo do princípio de que, na época de seu lançamento, o galão de gasolina estaria custando 2 dólares e meio. Então alguém gritou: "Seus bo-bos! A gasolina está barata outra vez; queremos carros grandes!"

Se alguém tivesse dito que o preço da gasolina dobraria em 1979 mas que quatro anos depois seria o mesmo, apesar da inflação, eu teria dito que estava maluco. Não havia como prever a crise do Irã ou o que se seguiu a ela.

Há um mito generalizado de que as empresas americanas só ti-nham modelos de carros errados, enquanto os fabricantes estrangei-ros tinham justamente os carros que as pessoas queriam quando a crise se abateu sobre nós. Mas isso não é verdade. Até a queda do Xá, havia longas listas de espera de clientes que queriam carros grandes com grandes motores V-8 — na verdade, não havia bebe-dores de gasolina suficientes para atender à procura.

Quanto aos japoneses, será que realmente previram a demanda americana por carros pequenos? Durante trinta anos, não construí-ram outra coisa. Em qualquer momento que a mudança ocorresse, estariam preparados.

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Todos tínhamos carros pequenos, mas em 1978 não podíamos entregá-los. Em janeiro de 1979, apenas algumas semanas antes da explosão do Irã, a Datsun estava oferecendo descontos. A Toyota e a Honda não estavam vendendo nada. Nós mesmos tínhamos milha-res de Omnis e Horizons encalhados. E nosso pequeno Colt, fabri-cado pela Mitsubishi, não vendia nem com um desconto de 1.000 dólares.

Tudo isso mudou da noite para o dia. Apenas dois meses antes, o galão de gasolina estava custando 65 cents. Nossas fábricas de au-tomóveis grandes trabalhavam dia e noite. Os japoneses tinham sete-centos mil carros pequenos parados nas docas de San Diego e Bal-timore. Mas, em abril, aqueles setecentos mil carros pequenos dos japoneses não estavam mais lá; foram comprados por americanos que desejavam economia imediata de combustível. E muitos tinham sido vendidos a preços de mercado negro, 1.000 dólares a mais do que o preço de tabela. Não é que a Ford, a GM e a Chrysler não pu-dessem prever a situação do mercado americano. Ninguém podia.

A GM teve sorte. Tinha previsto um pré-lançamento dos novos carros X para abril. O Chevrolet Citation era baixo, de tração dian-teira, econômico em termos de combustível. Nos primeiros dias, a GM vendeu todos os Citation existentes e ainda recebeu pedidos de mais vinte e duas mil unidades.

A Chrysler foi menos feliz. Depois do recesso da primeira crise do petróleo em 1974, os americanos voltaram furiosamente aos car-ros grandes. Como sempre, a Chrysler tinha acompanhado o merca-do. Assim, não tínhamos modelos próximos dos compactos em nú-mero suficiente quando o público de repente mudou outra vez de in-teresse.

Lembro-me bem das imagens que víamos todas as noites nos noticiários — cenas de filas para comprar gasolina na Califórnia e em Washington, e de verdadeiros tumultos em alguns postos de ga-solina em New York. As pessoas ficaram apavoradas. Passaram a encher o tanque até a boca sempre que podiam. Alguns motoristas até passaram a transportar um galão extra de cinco litros no porta-malas ou a armazenar um galão extra de cinqüenta litros na gara-gem — e que se danasse a segurança.

O Congresso começou a falar em racionamento de gasolina. As revistas faziam matérias de capa sobre o fato de Detroit ter sido a-panhada desprevenida. E assim, seja pelo medo da falta de gasolina,

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seja pelo grande aumento do preço, o mercado de carros familiares, máquinas V-8, furgões, caminhões e peruas ficou paralisado.

Num período de cinco meses, em 1979, a parcela do mercado de carros pequenos aumentou de 43 para cerca de 58 por cento — um acréscimo de 15 por cento. Nesse ramo, um aumento de 2 por cento em um ano representa uma mudança enorme. Um aumento de 15 por cento é catastrófico. Num único mês — maio de 1979 — as vendas de furgões caíram em 42 por cento. Em toda a história da indústria automobilística, ainda não tinha ocorrido uma mudança tão violenta como a daquela primavera.

Por pior que fosse aquela revolução, nós da Chrysler sabíamos que podíamos nos adaptar à nova realidade. Também sabíamos que podíamos chegar na frente de todos os de Detroit. Não era necessá-rio fazer muita coisa. Bastava dobrar nossos investimentos em no-vas fábricas e novos produtos nos cinco anos seguintes e rezar para que sobrevivêssemos!

Mas assim que começamos a dar esses primeiros passos tão ca-ros, o país mergulhou numa recessão. Ainda estávamos recuperan-do as forças após o primeiro golpe. Quando o segundo veio, quase nos nocauteou. A taxa anual de vendas de automóveis no país caiu praticamente para a metade. Nenhuma indústria pode sobreviver numa economia que exige o dobro dos investimentos com apenas a metade da receita. Para nós, todas as bruxas estavam soltas. Não havia regras, pois estávamos numa situação sem precedentes. Eram mares nunca dantes navegados.

Até aquela época sempre se podia dizer: "Consulte o manual".

A GM o criou, a Ford copiou e a Chrysler tem alguns trechos es-parços. Não estou falando em termos literais. O fato é que, entre 1946, quando entrei no ramo, e março de 1979, nunca houve dúvida quanto à melhor forma de encaminhar uma operação com sucesso.

Mas de repente tínhamos que ficar à mercê das ondas e mudar de idéia toda semana. Para abrandar a situação, digamos que era uma forma nova e desconhecida de fazer negócios. Todo mundo fa-la em "estratégia", mas todos nós sabíamos que era uma questão de sobrevivência. A sobrevivência era simples. Fechem as fábricas que estão nos dando mais prejuízos. Demitam quem não for absoluta-mente imprescindível ou quem não souber o que está acontecendo.

Eu me sentia um cirurgião do Exército. O pior trabalho do mundo é o do médico que está no front durante uma batalha. Na

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Segunda Guerra Mundial, meu primo era médico num hospital tipo MASH, nas Filipinas. Voltou contando umas histórias terríveis so-bre a triagem. Ele dizia que era uma questão de prioridades. Há quarenta soldados muito feridos, e o corpo médico tem que pensar depressa: "Temos três horas. Quantos podemos salvar?" Escolhem os que têm mais chances de sobreviver — os outros ficam para trás e são considerados mortos.

A situação na Chrysler era a mesma. Tínhamos que fazer uma cirurgia radical, salvando o que fosse possível. Quando os tempos são bons e você tem uma fábrica marginal, pode estudá-la durante dois anos, analisando os prós e contras. A Ford é incrível nesse senti-do. O pessoal é capaz de ficar analisando assim até a hora da morte.

Mas, em época de crise, não há tempo para estudos. Você tem é que colocar no papel as dez coisas que é obrigado a fazer. É nisso que você se concentra. O resto — é preciso esquecer. O espectro da morte tem a propriedade de fazer a sua atenção se concentrar rapi-damente.

Ao mesmo tempo, você tem que ter certeza de que vai sobrar al-guma coisa, quando o pior da crise tiver passado. Parece muito sim-ples, mas é muito mais fácil dizer do que fazer. Fazer provoca o ran-ger dos dentes. Exige disciplina. Você espera que dê certo, você reza para dar certo, pois você fez o melhor que pôde. Você fica se concen-trando no futuro, o que significa que espera estar vivo amanhã.

Começamos pelo fechamento de algumas fábricas, inclusive uma tapeçaria em Lyons, Michigan; e o de nossa fábrica mais anti-ga, Dodge Main, em Hamtramck — bairro polonês de Detroit. Houve uma grande onda de protestos quando fechamos Dodge Ma-in, situada em plena área urbana, mas não tínhamos escolha.

Ao mesmo tempo, tínhamos que conseguir um meio de conti-nuar recebendo mercadorias, mesmo sem ter dinheiro para pagá-las. A primeira coisa que tínhamos a fazer era convencer os fornecedo-res de que não estávamos à beira da falência. Você não pode enga-nar os fornecedores, pois eles conhecem muito bem o seu negócio. Então, apresentamos a eles os nossos futuros produtos. Mostramos que estávamos no mercado para ficar. Pedimos que ficassem do nosso lado.

Para fazer economia, estabelecemos um sistema em que as pe-ças seriam enviadas só no último momento. Isto se chama estoque "em cima da hora" e é uma boa maneira de reduzir custos. Os japo-neses vêm fazendo isso há muitos anos e provavelmente aprende-

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ram conosco. Por volta de 1920, quando os vagões de minério che-gavam à fábrica da Ford em River Rouge, o minério se transforma-va em aço e este em blocos de motor, em vinte e quatro horas. Mas, durante os anos do boom, a indústria americana adquiriu alguns maus hábitos.

Uma das mudanças que realizamos foi abreviar a chegada das nossas peças e nossos suprimentos à linha de montagem. Por exem-plo, antes enviávamos eixos transversais de Kokomo, Indiana, para Belvidere, Illinois, de trem. Passando a transportá-los de caminhão, conseguíamos entregá-los no mesmo dia, o que dinamizava toda a operação.

Em alguns meses, nosso sistema "em cima da hora" tornou-se tão eficaz que, quando nossa fábrica de motores em Detroit iniciou uma greve não autorizada pelo sindicato, quatro horas depois nossa linha de montagem de Windsor já estava sem motores!

Economizamos dinheiro em tudo o que foi possível. Quando projetamos os carros K, nós os fizemos deliberadamente com me-nos de 176 polegadas de comprimento para que pudéssemos levar um maior número deles em veículos de transporte padrão. Em épo-cas normais, ninguém se lembra de coisas desse tipo. Mas, em tem-pos de crise, procuramos todas as formas de economizar.

Quando chegou a hora de elaborar o nosso relatório anual de 1979, decidimos deixar de lado o tradicional volume colorido que a maioria das empresas envia aos seus acionistas. Ao invés disso, nossos duzentos mil proprietários receberam um documento sim-ples e breve, escrito com tinta preta sobre papel branco reaproveita-do. Isto nos poupou um bom dinheiro — e passou uma mensagem aos nossos acionistas: tanta austeridade deve significar que estamos à beira do empobrecimento. E realmente estávamos!

Mas economizar não bastava. Também tivemos que levantar muito dinheiro só para pagar nossas contas. Em determinado mo-mento, estávamos perdendo tanto dinheiro que vendemos todos os imóveis das revendedoras que eram de nossa propriedade para uma empresa de Kansas, a ABKO. Foram incluídas até mesmo centenas de propriedades em áreas urbanas valorizadas, que garantiam à C-hrysler localizações estratégicas em todo o país. Mas estávamos numa situação péssima e precisávamos do dinheiro, cerca de 90 mi-lhões de dólares. Mais tarde, para instalar os revendedores nos lo-cais onde precisávamos deles, tivemos que comprar novamente quase a metade dessas propriedades — pelo dobro do preço.

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Hoje talvez pareça que a venda dos imóveis foi um grande erro. Por outro lado, precisávamos do dinheiro. Naquela época, 90 mi-lhões tinham para mim o valor de 1 bilhão!

Antes de se aposentar, John Riccardo fez o possível para resol-ver alguns dos erros mais graves da empresa. Fez um acordo com a Mitsubishi referente a nossas instalações na Austrália. Vendeu nos-sas operações na Venezuela para a GM e as do Brasil e da Argenti-na para a Volkswagen. Negociou nossas filiais na Europa com a Peugeot, recebendo 230 milhões de dólares e uma participação de 15 por cento, o que tornou esta companhia a maior empresa auto-mobilística da Europa. No fim, a Chrysler tinha operações nos Es-tados Unidos, no Canadá e no México. E em mais nenhum lugar.

Algum tempo depois, cheguei à conclusão de que não tínhamos outra escolha senão vender nossa operação de carros blindados à General Dynamics, por 348 milhões de dólares. Foi uma decisão muito difícil, pois a Divisão de Defesa era um setor da empresa que tinha um lucro de 50 milhões de dólares praticamente garantido pe-lo governo americano. Mas precisávamos do dinheiro como reserva, para que os fornecedores nos dessem um prazo maior de pagamento.

Relutei em tomar essa decisão, em parte por estar vendendo o único negócio em que, por lei, os japoneses não podiam competir conosco. Na verdade, até fiquei tentado a vender o setor de auto-móveis e continuar com os tanques! Financeiramente, teria sido muito mais vantajoso. Mas fabricar tanques não era nossa atividade principal. Se é que a Chrysler tinha futuro, teria que ser como fabri-cante de automóveis.

Mesmo assim foi uma decisão dolorosa. Nossa Divisão de Tanques era uma subsidiária muito forte, com muita gente boa. Quarenta anos da nossa história estavam ligados à produção de tan-ques. Durante a Segunda Guerra Mundial, tínhamos participado do "Arsenal da Democracia". Nosso pessoal tinha projetado e constru-ído o melhor tanque do mundo; apenas alguns meses antes eu mes-mo tinha dirigido o primeiro tanque a turbina, o M-l, conduzindo-o para fora da linha de montagem. Nas pranchetas havia projetos en-tusiasmantes e lucrativos. E alguns dos maiores talentos da empresa estavam tocando o setor.

Ninguém queria desistir daquilo. Mas, afinal, tivemos que es-colher entre nossa ligação com o setor de blindados e nossa neces-sidade premente de construir uma reserva financeira substancial pa-

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ra sair da recessão. Não tínhamos escolha; devíamos concentrar es-forços nos automóveis e caminhões.

Naquele momento, as taxas de juros eram tão altas que, se não tivéssemos precisado de todo aquele dinheiro para sobreviver, terí-amos ganho 50 milhões de dólares por ano apenas aplicando o que a General Dynamics havia pago. E 50 milhões era quase o que está-vamos ganhando com a própria Divisão de Tanques. Foi naquele momento que tive, pela primeira vez, a idéia de comprar um banco. Pode-se ganhar mais dinheiro com dinheiro do que com automó-veis, caminhões — ou carros de combate!

Essa história teve um desdobramento interessante. Nosso contra-to com a UAW abrangia a fabricação de automóveis e de tanques. Para conseguir sobreviver, tínhamos feito um acordo com o sindicato segundo o qual pagávamos aos trabalhadores pouco mais de 17 dóla-res por hora, ao invés dos 20 que eles estavam reivindicando. Os tra-balhadores da fábrica de carros blindados não ratificaram o contrato, mas estavam presos a ele. Assim, o Departamento de Defesa conse-guiu um bom abatimento. Fui ao Exército e disse: "Aqui está um re-embolso de 62 milhões de dólares — meu presente para vocês como americano patriota". Como um tanque custava 1 milhão, é como se eu estivesse dando sessenta e dois tanques de graça!

Todas as medidas que tomamos para manter a Chrysler viva fo-

ram difíceis. Mas nenhuma foi mais difícil do que as demissões em massa. Em 1979, e novamente em 1980, tivemos que demitir milha-res de funcionários da linha de produção e do escritório. Em abril de 1980, reduzimos os quadros dos escritórios em sete mil pessoas, o que nos permitiu economizar 200 milhões por ano. Alguns meses antes, tínhamos dispensado oitenta e cinco mil assalariados. Só es-tas duas medidas diminuíram os custos anuais em 500 milhões de dólares. Estes cortes foram amplos, atingindo tanto os caciques quanto os índios.

As demissões foram uma tragédia e não há como fingir o con-trário. As do pessoal mais antigo, em sua maioria, foram feitas por mim. É o tipo de coisa que não se pode delegar. Você tem que dizer a verdade. Como eu mesmo já havia sido demitido, tornara-me es-pecialista nas coisas que não se deviam fazer. Eu certamente não diria apenas que não gostava deles! Sempre fiz questão de explicar as razões e de oferecer à pessoa a maior indenização a que tivesse direito. Em alguns casos, até tentei subverter um pouco as regras.

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Demissões nunca são agradáveis, e por isso é preciso ter o má-ximo cuidado ao lidar com elas. Você tem que se colocar no lugar da pessoa e pensar que, seja qual for a reação dela, certamente esta-rá tendo um dia de cão. É ainda mais difícil quando a pessoa sabe que não é demitida por sua própria culpa, que ela é uma vítima da má administração, ou que a cúpula não lhe dá muita importância.

Tenho certeza de que cometemos muitos erros. No primeiro ano, em especial, deve ter havido casos de pessoas demitidas por motivos errados. Talvez o chefe não gostasse delas. Talvez fossem passivas ou falassem demais. Tínhamos que mudar com rapidez e, nesse processo, era inevitável que algumas pessoas boas levassem a pior injustamente. Tenho certeza de que há sangue em nossas mãos. Mas era uma emergência, e tentamos fazer o melhor possível.

A maioria dos que demitimos conseguiu outros empregos mais tarde. Alguns permaneceram no ramo de automóveis. Outros arru-maram emprego nos fornecedores ou como professores e consulto-res. Mandá-los embora me magoou. Enquanto grupo, o pessoal era muito mais amigável do que o corpo de funcionários que eu havia conhecido na Ford. Mas, afinal, isso não era o suficiente.

Ver as pessoas serem chutadas de um lado para outro me cho-cou. Passei a pensar muito mais na responsabilidade social das em-presas, uma lição que eu nunca havia aprendido na Ford. Lá eu es-tava, juntamente com os outros membros da cúpula administrativa, acima dessas coisas. Além disso, nunca passamos por uma crise tão grande. Antes, eu nunca tivera muito a ver com demissões. Não é que de repente eu me tenha tornado um perfeito cristão. Simples-mente havia chegado a um ponto em que era forçado a dizer a mim mesmo: "Será que estou agindo direito com todas essas pessoas que dependem de mim?"

Um dos luxos que tivemos de eliminar foi a manutenção de uma assessoria numerosa demais. Desde que Alfred P. Sloan assu-miu a presidência da General Motors, todas as funções administra-tivas da nossa indústria tinham sido divididas em funções de asses-soria e funções de linha — tal como no Exército. O pessoal de linha cuida das operações. Tem um envolvimento direto e responsabili-dades específicas na engenharia, na produção ou nas compras.

O pessoal de gabinete cuida do planejamento geral. Seus mem-bros é que integram o trabalho do pessoal de linha num sistema vi-ável. A única maneira de um membro da assessoria ser eficaz é pas-sar praticamente por toda a linha antes de chegar à função de plane-

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jamento. Mas a tendência, especialmente num lugar como a Ford, é contratar para a assessoria um graduado da Harvard Business Scho-ol que talvez não saiba a diferença entre um pombo e uma galinha. Ele nunca dirigiu nada, mas começa a dizer ao homem de linha que há trinta anos trabalha naquilo, que tudo o que ele faz está errado.

Perdi tempo demais na minha carreira tentando resolver desen-tendimentos, que nunca deveriam ter ocorrido, entre o pessoal do gabinete e o pessoal de linha. É claro que precisamos dos colegia-dos de planejamento — desde que consigamos evitar sua supervalo-rização. Na Ford, quando Henry estava tentando se livrar de mim contratou a consultora McKinsey & Company. Além de formar a equipe do presidente, a McKinsey criou também um super-Estado-Maior de quase oitenta pessoas. O propósito era checar todo o resto do pessoal de gabinete e de linha para ter certeza de que todos esta-vam fazendo o seu trabalho. Com o passar dos anos, esse pessoal tornou-se uma espécie de poder soberano na Ford — uma empresa dentro da empresa.

Quando a Chrysler entrou em crise, tive que mandar embora a maior parte do pessoal de assessoria. Toda minha vida fui um ho-mem de linha, o que deve ter tornado as coisas mais fáceis. Mas o meu raciocínio era simples: eu precisava de gente para construir e para vender carros. Eu não podia me dar ao luxo de ter um cara só para dizer que, se tivéssemos feito isso ou aquilo, teríamos constru-ído carros um pouco melhores.

Mesmo que tivesse razão, não tínhamos condições de levar em conta a opinião dele. Quando começa o tiroteio, o corpo de assesso-res é sempre o primeiro a ser atingido.

Com todas as demissões, acabamos eliminando vários níveis de administração. Reduzimos o número de pessoas que tinham que es-tar envolvidas nas decisões importantes. Primeiro fizemos isso em nome da necessidade imperiosa de sobreviver. Mas, com o passar do tempo, percebemos que dirigir uma grande empresa com menos gente acabava tornando as coisas mais fáceis. Analisando-se a situ-ação agora, é evidente que a Chrysler estava com gente demais em funções de direção, muito mais gente do que o necessário. Esta é uma lição que os nossos concorrentes ainda têm que aprender — e espero que nunca o façam!

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XVII MEDIDAS DRÁSTICAS:

RECORRENDO AO GOVERNO.

á no verão de 1979, estava claro que só medidas drásticas salvariam a Chrysler Corporation. Está-vamos fazendo todo o possível — e mais um pouco — para reduzir nossas despesas, mas a economia piorava e nossos prejuízos au-mentavam. Estávamos navegando em águas perigosas. Precisáva-mos de ajuda para sobreviver. Já não tínhamos meios para nos sal-var sozinhos do naufrágio,

Eu só via um caminho para sair do buraco. Acreditem, a última coisa no mundo que eu queria fazer era re-

correr ao governo. Mas, uma vez que tomei a decisão, entrei no jo-go para valer.

Ideologicamente, sempre fui partidário da livre empresa; acre-dito na sobrevivência dos mais capazes. Quando eu era presidente da Ford, passava quase tanto tempo em Washington quanto em De-arborn. Mas só ia à capital por uma razão — tentar fazer o governo nos deixar em paz. Assim, naturalmente, quando voltei a Washing-ton como presidente do conselho da Chrysler para pedir ajuda ao governo, todos disseram: "Como é que você pode fazer isso? Como tem coragem?"

"Não tenho outra escolha", respondi. "É a única alternativa."

J

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Já tínhamos tentado tudo. Em 1979 e 1980, houve mais de cem reuniões com investidores potenciais. A maior parte, impostores, escroques e samaritanos bem intencionados mas ingênuos. Ainda assim, me reuni com todos que tivessem alguma possibilidade, por mais remota que fosse, de nos ajudar.

Surgiam então indivíduos que se apresentavam como represen-tantes de árabes ricos. Eu sabia que havia muitos árabes ricos, mas a situação era ridícula. Tivemos que empreender cerca de 156 con-tatos com árabes. Eu dizia ao Departamento Financeiro: "Ainda não estamos livres dos árabes?" Devo ter encontrado uma dúzia de ca-ras, com ar de promessa, ligados aos árabes; quase todos acabaram-se revelando impostores. Todos explicavam que tinham acesso a um determinado príncipe árabe que entraria com montes de dinhei-ro. Mas era tudo papo-furado.

Uma exceção digna de nota foi Adnan Khashoggi, um bilioná-rio da Arábia Saudita que fez fortuna com os lucros da venda de pe-tróleo. Khashoggi é um sujeito inteligente, educado nos Estados Unidos. É um intermediário que se mete em quase todos os tipos de negócios que envolvam material bélico e bens de capital em troca de uma boa comissão.

Tentei mostrar-lhe que a reputação do mundo árabe não era das melhores, por causa da OPEP. Disse-lhe que, em termos de relações públicas, fosse ele representante de Yasser Arafat ou do Rei Faissal, um investimento na Chrysler só podia favorecer a imagem dos ára-bes. Mas minhas conversas com Khashoggi, ou com qualquer outra pessoa do mundo árabe, não resultaram em nada.

Minhas conversas com Toni Schmuecker, diretor da Volkswa-gen, foram muito mais sérias. Toni e eu nos conhecíamos e éramos amigos há quase vinte anos, desde a época em que ele trabalhou comigo como representante de compras na Ford da Alemanha. Ti-vemos algumas conversas confidenciais a respeito de uma socieda-de entre a Volkswagen e a Chrysler, que chamávamos de "O Gran-de Projeto". O plano consistia na fabricação do mesmo carro pelas duas empresas. A Chrysler venderia na América e a Volkswagen, na Europa. Antes já havíamos feito um acordo para comprar trezen-tos mil motores Volkswagen de quatro cilindros por ano para nos-sos Omnis e Horizons, que tinham muito em comum com os Rab-bits. Assim, de certa forma, já havíamos dado o primeiro passo.

O plano tinha algumas vantagens óbvias. Nossa rede de distri-buidores aumentaria muito. Nosso poder de compra seria muito

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maior. Poderíamos distribuir nossos custos fixos por um volume de carros muito maior. Era de fato um casamento abençoado pelos céus. E era tão simples que até uma criança poderia entendê-lo.

Quando fui para a Chrysler, não deixei de pensar na idéia da Global Motors. De vez em quando, Hal Sperlich e eu continuáva-mos a conversar sobre isso. Uma fusão entre a Chrysler e a Volks-wagen teria sido um começo concreto, e eu e Hal estávamos entusi-asmados com essa possibilidade. Se tivéssemos sucesso na fusão com a Volkswagen, poderíamos conseguir um sócio japonês sem maiores dificuldades.

Nossas conversas com a Volkswagen chegaram a ser específi-cas. Era um episódio bem interessante, num momento em que está-vamos morrendo. Mas esse era o problema — estávamos morrendo. Quando a Volkswagen estudou nosso balanço, pulou fora. Estáva-mos seriamente endividados e não tínhamos receita. Naquele mo-mento, o plano era arriscado demais. Ao invés de eles nos levanta-rem, nós os teríamos feito afundar.

Quando nossas negociações estavam chegando ao fim, vazou uma informação sobre os encontros. O boato de uma fusão iminente entre a Chrysler e a Volkswagen foi anunciado pelo Automotive News, o periódico semanal sobre a indústria automobilística. Era uma prova suficiente para Wall Street, onde nossas ações subiram de 11 para 14 dólares. Segundo os boatos, a Volkswagen tinha de-cidido comprar a Chrysler por 15 dólares a ação.

Quando a "notícia" estourou, Riccardo estava em Washington, reunido com Stuart Eizenstat, da equipe de Carter, e com Michael Blumenthal, secretário do Tesouro. Tanto Eizenstat quanto Blumen-thal insistiram para que Riccardo aceitasse a oferta. Infelizmente, não havia oferta a ser aceita.

Schuecker estava sem dúvida interessado, mas Werner Sch-midt, vice-presidente de marketing, era fortemente contra. Schmidt, que havia sido estagiário no meu escritório da Ford, era um bom a-lemão, e me disse, em termos claros, por que a Volkswagen jamais poderia se unir à Chrysler: nossa imagem era ruim, nossos carros não tinham qualidade e nossa estrutura de distribuição não era forte o suficiente. Devo tê-lo treinado bem, pois Schmidt resumiu os ar-gumentos contra a fusão em algumas palavras incisivas.

Quatro anos depois, em 1983, tivemos mais algumas conversas com a Volkswagen. Ironicamente, as posições estavam invertidas.

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Naquele momento, a estrutura de distribuição deles é que estava com problemas: ninguém mais comprava Rabbits.

Uma vez que o nosso governo ainda não tem uma política e-nergética, qualquer empresa que só fabrique carros pequenos está à mercê das flutuações do preço da gasolina. E como a Volkswagen só produz carros pequenos, os japoneses estavam ganhando deles disparado. De um lado, porque o marco alemão, assim como o dó-lar, não pode competir com o controlado iene; de outro, porque, se-jam os Rabbits feitos na Alemanha ou na Pennsylvania, os custos de mão-de-obra são altos. Para completar, a Volkswagen tinha que absorver os custos do transporte dos seus carros da Alemanha, o que é outra grande despesa. Por isso, eles finalmente começaram a construir alguns carros nos Estados Unidos.

A Volkswagen era o pretendente mais sério, mas havia outros, inclusive John Z. DeLorean. Ele havia criado sua própria empresa de automóveis depois de deixar a GM, e veio falar comigo sobre a pos-sibilidade de fundir sua empresa com a Chrysler. Quando John me procurou, as duas empresas estavam cheias de problemas. "Meu pai me dizia para nunca juntar dois perdedores", eu lhe disse. "Por isso, ou você consegue ou eu consigo, e então voltamos a conversar."

DeLorean é um excelente homem de automóveis. Eu o conheci na época em que ele era um superengenheiro da Pontiac, e mais tar-de foi o principal homem da Divisão Chevrolet. Éramos grandes concorrentes, disputando o terreno palmo a palmo. Quando fui capa da Time em 1964, por ter feito o Mustang, ele ficava me gozando: "Por que você foi capa da Time, e não eu, que fiz o GTO?" Em 1982, quando ele foi capa da Time por ter sido acusado de envolvi-mento com drogas, eu pensei: "Bem, John, finalmente você conse-guiu". Senti por ele, pois tinha talento mais do que suficiente para vencer de maneira positiva.

Depois que a idéia inicial da fusão não deu certo, John me pro-curou de novo. Dessa vez ele queria que eu o ouvisse a respeito de um plano de isenção de impostos sobre pesquisa e desenvolvimento (P & D), que ficou conhecido como a "Isenção DeLorean". Esse projeto, que ele havia concebido com alguns sócios, foi muito di-vulgado pela Fortune. Envolvia a liquidação de participações limi-tadas, que eram debitadas ao governo.

Ele achava que a Chrysler deveria seguir este caminho e havia-me preparado um estudo imenso, que lhe custou cinqüenta ou ses-senta mil dólares. Eu disse: "John, agradeço muito. Mas mesmo que

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isso funcionasse" — e o plano deve ter funcionado modestamente — "o Imposto de Renda não vai gostar se eu jogar nas costas deles dois bilhões de dólares". Era o tipo de isenção que seria descartada — por ser muito alta.

Finalmente, depois de muitas reuniões com possíveis salvado-res, ficamos sem alternativas. E foi por isso que acabei procurando o governo. Mas não chegamos a Washington com um pedido com-pleto e formal de garantia de empréstimo.

Eu não era o único a ficar mais ansioso a cada dia: John Ric-cardo estava na mesma situação. Em termos formais, ele ainda era o presidente do conselho, embora estivesse se afastando e eu dirigisse a empresa. Riccardo percebeu que iríamos muito depressa para o buraco se alguma coisa não acontecesse logo. Foi por isso que ele deu início a suas viagens a Washington.

Primeiro, tentou conseguir apoio no Congresso para um conge-lamento das restrições governamentais por dois anos. Assim gasta-ríamos nosso dinheiro na construção de carros novos que consumis-sem pouco combustível, ao invés de tentar retirar pelo tubo de suc-ção da bomba até o último grama de hidrocarbonetos. Mas ninguém em Washington nos deu ouvidos.

Riccardo seguia a abordagem correta. Embora muitos proble-mas da Chrysler fossem resultado direto da má administração, o governo também tinha sua parcela de culpa. Depois de haver esta-belecido para a indústria normas rígidas e um tanto precipitadas so-bre a segurança dos automóveis e a emissão de gases poluentes, o governo disse aos fabricantes americanos: "Vocês não estão autori-zados a se unir para fazer pesquisas e estudos sobre esses proble-mas. Cada um que desenvolva seus próprios métodos". Ora, os ja-poneses estavam seguindo a estratégia oposta. Uma vez que não es-tavam sujeitos às leis antitruste dos EUA, podiam reunir toda a sua engenhosidade.

Washington bem que faz algumas coisas absurdas. Os itens re-gulamentados não deveriam ser objeto de concorrência. Se uma das empresas desenvolve um modo mais eficiente, mais barato e mais eficaz de controlar emissões de gases, esta descoberta deveria ser compartilhada. Não estou querendo dizer que uma empresa tenha que ceder suas descobertas a outras. Mas, por que não poderia vender?

Até um período recente, não podíamos sequer falar disso na mesma sala sem ir para a cadeia. Nem mesmo podíamos ouvir a

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GM descrever o seu sistema. Éramos literalmente obrigados a le-vantar e sair, ou seríamos culpados conforme o decreto consensual segundo o qual operávamos.

Ao tempo em que escrevo estas linhas, Washington está come-çando, afinal, a mudar de conduta. Está percebendo que nossas leis antitruste são demasiado severas e que não poderemos competir com os japoneses enquanto não forem reformuladas. Infelizmente, a nova atitude do governo parece estar começando com um casamen-to entre a Toyota e a General Motors, os dois gigantes da indústria. Precisamos tanto disso quanto de um tiro na cabeça.

De qualquer forma, graças às leis antitruste, a General Motors, a Ford, a American Motors e a Chrysler tiveram que contratar gente e financiar instalações especiais para estudar os mesmos problemas — problemas cujas soluções seriam economicamente benéficas pa-ra todos nós.

Desde a promulgação do decreto referente à segurança dos veí-culos a motor, em 1966, todos os acessórios e dispositivos projeta-dos para evitar que os motoristas se ferissem uns aos outros atingi-ram um custo aproximado de 19 bilhões de dólares. A GM pode distribuir esse custo entre cinco milhões de carros por ano. A Ford os distribui entre dois milhões e meio e a Chrysler, entre cerca de um milhão.

Não é preciso ter uma calculadora para verificar que se as des-pesas da GM com um item específico fossem de 1 milhão de dóla-res e se ela vendesse cem mil carros, cada comprador pagaria um adicional de 10 dólares. Se os custos da Chrysler fossem os mes-mos, mas os compradores apenas vinte mil, cada um pagaria um a-dicional de 50 dólares. Mas isso é só no que se refere a pesquisa e desenvolvimento. Depois temos que fabricar. Aqui ocorre a mesma desproporção, só que os números são maiores. A GM, com seu e-norme volume de vendas, pode construir acessórios mais baratos e vendê-los por um preço menor. E assim a diferença se acentua. Ou-tro fator que nos atrapalhou foi o tempo de trabalho e a papelada necessária para elaborar o relatório de confirmação das regulamen-tações da Agência de Proteção ao Meio Ambiente — EPA, Envi-ronmental Protection Agency. Só em 1978, tivemos que preencher 228 000 páginas destinadas à EPA!

Há inúmeros estudos feitos por instituições econômicas respei-tadas que demonstram, sem sombra de dúvida, que a aplicação de controles governamentais à segurança, emissão de gases e proteção

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ao meio ambiente na fabricação de automóveis e caminhões é dis-criminatória e retrógrada. Por isso, eu e Riccardo chegamos à mes-ma conclusão. O governo contribuiu para entrarmos no atoleiro, en-tão que nos ajude a sair dele.

Mas a proposta de Riccardo para a suspensão das regulamenta-

ções entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Então, ele começou a fazer um lobby para criar um crédito de reembolso de impostos. De acordo com esse plano, o dinheiro que gastávamos para atender aos padrões de segurança e antipoluição fixados pelo governo nos seria reembolsado, dólar por dólar. O valor total chegava a 1,5 bilhão de dólares em 1979 e mais 500 milhões em 1980. Pagaríamos o débito mediante a aplicação de taxas mais altas de impostos sobre nossos ganhos futuros.

Não estaríamos sendo os primeiros a pedir isso. Em 1967, a American Motors teve um crédito especial de impostos de 22 mi-lhões de dólares. A Volkswagen recebeu um incentivo fiscal de 40 milhões de dólares do governo da Pennsylvania para construir uma fábrica. O Estado de Oklahoma havia fornecido recentemente um desconto de impostos à GM. A Renault, uma empresa estatal da França, tinha sido contemplada, naquela época, com um emprésti-mo de 135 milhões de dólares para a montagem de novos carros numa fábrica da American Motors em Wisconsin. Sabe-se, além disso, que os Estados de Michigan e Illinois travam entre si uma guerra de ofertas de isenções fiscais, com o objetivo de atrair novos negócios. A própria cidade de Detroit havia aliviado a Chrysler de uma parcela dos impostos. E, em vários países da Europa, as mon-tadoras americanas geralmente recebem garantias e subsídios signi-ficativos do governo local.

Riccardo propôs que as empresas obtivessem benefícios fiscais quando estivessem em situação crítica. Quando estamos tendo pre-juízo, não podemos debitar mais nada. Tudo nos custa mais caro, desde câmaras de ar até robôs. Com todas as regulamentações go-vernamentais, e mais a crise de energia, quem já tinha prejuízo es-tava passando por maus bocados.

Riccardo foi até Washington tentar conseguir alguma ação do Congresso; mais uma vez, não lhe deram atenção. Ele era um bom sujeito, mas não era um bom comunicador. Tinha pavio curto e ca-beça quente, e com essas qualidades ninguém chega muito longe nos corredores do Congresso.

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John sabia que não havia alternativa viável para obtermos aju-da governamental. Estávamos perdendo dinheiro e não conseguía-mos reduzir as despesas gerais com a rapidez necessária. Os carros volumosos estavam indo para o inferno em conseqüência da crise internacional de energia. E como o preço da gasolina tinha acabado de dobrar, tivemos que nos voltar o mais rápido possível para a produção de carros com tração dianteira e alta capacidade de eco-nomizar combustível.

A Chrysler tinha que gastar 100 milhões de dólares por mês — 1,2 bilhão por ano — só para pensar no futuro. Além disso, toda sexta-feira tínhamos que arranjar 250 milhões de dólares para a fo-lha de pagamento e para pagar as peças que havíamos comprado na semana anterior. Não é preciso ser muito perspicaz para saber onde nos tínhamos metido.

No dia 6 de agosto de 1979, G. William Miller deixou seu car-go de presidente do Federal Reserve Board — geralmente chamado de FED — para tornar-se secretário do Tesouro. Foi uma mudança importante. Como presidente do FED, Miller tinha dito a Riccardo que seria melhor a Chrysler ir à bancarrota do que pedir auxílio ao governo. Mas, em seu novo cargo, Miller parecia ter mudado de o-pinião. Seu primeiro ato oficial foi o anúncio de que era favorável à ajuda governamental à Chrysler, por ser esta uma medida de inte-resse público. Miller rejeitava a idéia de créditos referentes aos im-postos. Mas disse que a administração Carter estava disposta a con-siderar a concessão de garantia de empréstimo se apresentássemos um plano global de sobrevivência.

Só então decidimos pedir garantias de empréstimo. Mesmo as-sim, ainda tivemos discussões difíceis em Highland Park. Sperlich, em particular, era radicalmente contra a idéia. Ele estava convenci-do de que envolver o governo arruinaria a empresa, e eu não tinha certeza de que ele estivesse errado. Mas eu não via outra opção. "Pois bem", disse eu. "Você não quer ir ao governo, certo? Nem eu. Mostre-me outra saída."

Mas não havia alternativa. Alguém se lembrou do caso da Bri-tish Leyland, a empresa inglesa de automóveis. Quando o pessoal recorreu ao governo, destruiu a confiança das pessoas na empresa. Sua parcela de mercado se reduziu pela metade e nunca se recupe-rou. Não era um precedente encorajador, mas a alternativa era a fa-lência. E a falência não era uma alternativa.

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Com grande relutância, decidimos apresentar um pedido de ga-rantia de empréstimo ao governo.

Eu sabia que essa proposta provocaria muita controvérsia e fiz com muito cuidado o meu "dever de casa". Descobri que havia al-guns precedentes com relação ao que queríamos. Em 1971, a Loc-kheed Aircraft havia recebido 250 milhões de dólares em emprés-timos com garantia do governo federal, depois que o Congresso de-cidiu salvar seus empregados e fornecedores. O Congresso criou uma comissão para supervisionar a operação e a Lockheed pagou o seu débito, incluindo 31 milhões de dólares adicionais em comis-sões e taxas, ao tesouro federal. A cidade de New York também ha-via recebido garantias de empréstimos e também ela ia vivendo. Mas esses eram apenas os exemplos mais conhecidos.

As garantias de empréstimo, como logo fiquei sabendo, eram tão americanas quanto a torta de maçã. Dentre aqueles que foram favorecidos por elas estavam empresas de eletrificação, fazendeiros, estradas de ferro, indústrias químicas, estaleiros, pequenos negoci-antes de todo tipo, estudantes universitários e empresas de aviação.

Na verdade, havia um total de 409 bilhões de dólares em em-préstimos e garantias de empréstimos pendentes quando fizemos o pedido de 1 bilhão de dólares. Mas ninguém sabia disso. Todos di-ziam que as garantias de empréstimo para a Chrysler iriam criar um precedente perigoso.

Muitas vezes falei aos editores e repórteres sobre esses 409 bi-lhões a pagar — hoje esse total já ultrapassou os 500 bilhões. Esta-ríamos criando um precedente? Pelo contrário. Estávamos apenas seguindo a multidão.

Quem recebeu todas aquelas garantias? Cinco siderúrgicas fa-vorecidas pelo Decreto de Apoio à Importação (IRA) em 1974, sendo 111 milhões apenas para a Jones & Laughlin. Mais recente-mente, a Wheeling-Pittsburgh Steel Corporation recebeu uma ga-rantia de 150 milhões de dólares para a modernização da fábrica e para a instalação de equipamento antipoluente.

Há ainda a indústria de construção civil, os subsídios para os plantadores de fumo, empréstimos para manter a capacidade da nossa frota mercante — a indústria marítima praticamente navega sobre subsídios governamentais —, empréstimos para empresas aé-reas, tais como a People Express, empréstimos da Farmers Home Administration, do Export-Import Bank e da Commodity Credit Corporation. Sem falar em empréstimos garantidos pela Farmers

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Home Administration, pela Small Business Administration e pelo Departament of Health and Human Services.

Houve até garantias para empréstimos para o metrô de Wa-shington. O metrô recebeu um bilhão para que os senadores, os con-gressistas e seus assessores pudessem circular melhor pela cidade.

O pessoal do Capitólio não gostou quando eu falei dessa garan-tia. Mas não acho que eles irão voltar a ver aquele dinheiro.

"Vamos ser sinceros", eu disse. "O metrô é um objeto de exibi-ção para a capital."

"Objeto de exibição?", eles disseram. "É um sistema de trans-porte."

"Está bem", respondi. "E o que vocês acham que é a Chrysler?" Mas ninguém parecia se lembrar das outras garantias de em-

préstimo. Pelo menos a imprensa deveria ter mostrado esse lado da história. Até hoje, muitos se surpreendem ao saber que o nosso caso teve precedentes.

Para ser honesto, não creio que aceitasse estes argumentos quando era presidente da Ford. Provavelmente eu teria dito à Chrys-ler: "Deixe o governo fora disso. Acredito na sobrevivência dos mais capazes. Deixe o menos capaz se arrebentar".

Naquela época eu tinha uma visão de mundo bem diferente. Mas, se eu ficasse sabendo da existência de algumas garantias de empréstimo que nunca foram muito divulgadas e se acompanhasse a argumentação do grande debate nacional que marcou nossa ida ao Congresso, eu teria passado a ver as coisas de outra maneira. Pelo menos, gosto de pensar que teria mudado de opinião.

Para quem se dispunha a ouvir, eu enfatizava que a Chrysler não era um caso isolado. Ao contrário, éramos um microcosmo do que estava acontecendo de errado nos Estados Unidos e uma espécie de teste de laboratório para todos. Nenhuma indústria do mundo foi tão atingida quanto a de automóveis. As regulamentações governa-mentais, a.crise energética e a recessão quase acabaram conosco.

Como a Chrysler era o elo mais fraco da corrente, foi atingida primeiro. Mas, como já cansei de explicar, o que aconteceu conosco representou apenas a ponta do iceberg que eram os problemas que ameaçavam a indústria dos EUA. Eu acertei em cheio quando previ que a GM e a Ford logo se uniriam a nós na coluna dos prejuízos. (Eu não sabia que se juntariam a nós com um prejuízo de até 5 bi-lhões de dólares. Mas chegaram a esse valor. Em seis meses, esta-vam-nos fazendo companhia na beira do abismo.)

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O que eu tinha a dizer não era o que as pessoas queriam ouvir. Era muito mais fácil encontrar um bode expiatório. E haveria me-lhor candidato do que a décima maior empresa industrial dos Esta-dos Unidos — uma empresa que tivera a coragem de pedir ajuda ao governo do seu próprio país?

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XVIII A CHRYSLER DEVE

SER SALVA?

esde o início, a perspectiva de con-cessão de empréstimos com garantia governamental à Chrysler teve a oposição de quase todos. Como era de se prever, a maior onda de protestos veio da comunidade dos negócios. A maioria de seus líde-res mostrou-se ferozmente contrária ao plano e muitos tornaram pública sua opinião, entre eles Tom Murphy, da General Motors, e Walter Wriston, do Citicorp.

Para a maioria deles, a ajuda federal para a Chrysler era um sa-

crilégio, uma heresia, o repúdio da religião da América das grandes corporações. Os aforismos começaram a jorrar como água da fonte quando todos os antigos clichês se desgastaram. O nosso sistema ba-seia-se em lucros e perdas. A liquidação e o fechamento são a catarse saudável de um mercado eficiente. Uma garantia de empréstimo vio-la o espírito da livre iniciativa, recompensa o fracasso, enfraquece a disciplina do mercado. A água busca seu próprio nível. A sobrevi-vência dos mais capazes. Não se mudam as regras no meio do jogo. Uma sociedade sem riscos é uma sociedade sem recompensas. O fra-casso está para o capitalismo como o inferno está para o cristianismo. Laissez-faire forever. E outras bobagens desse tipo!

D

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A National Association of Manufacturers (Associação Nacio-nal da Indústria) mostrou-se frontalmente contrária às garantias fe-derais de empréstimo. E, na sua reunião de 13 de novembro de 1979, a comissão de política da Business Roundtable (Mesa-redonda Empresarial) aprovou a seguinte declaração a respeito da situação da Chrysler:

Uma premissa fundamental do sistema de mercado é permitir a existência do fracasso e do sucesso, das perdas e dos lucros. Quaisquer que sejam as dificuldades do fracasso para as empresas e para os indivíduos, os interesses sociais e econômicos mais am-plos da nação serão mais bem-atendidos se permitirmos que esse sistema opere do modo mais livre e completo possível.

As conseqüências do fracasso e da reorganização nos termos dos estatutos revisados (em outras palavras, a falência), embora sérias, não são uma coisa impensável. A perda de empregos e de produção deforma alguma seria total. Sob o regime de reorganiza-ção, é válida a expectativa de que os vários componentes viáveis do negócio passem a operar com maior eficácia, enquanto os outros elementos são vendidos a outros produtores.

É nesse estágio que se pode justificar a solicitação da assistên-cia federal para lidar com quaisquer problemas sociais resultantes.

Num momento em que o governo, a comunidade de negócios e o público tornam-se cada vez mais conscientes dos custos e da ine-ficácia da intervenção governamental na economia, seria altamente inadequado recomendar um envolvimento ainda maior deste últi-mo. É chegado o momento de reafirmar o princípio de ''nada de fi-anças federais''.

Esta declaração me deixou furioso. Tentei descobrir exatamen-te quem havia sido favorável a ela no grupo, mas parece que todos os que procurei estavam fora da cidade naquele momento. Ninguém queria assumir a responsabilidade pela rasteira que nos tinham dado.

Em resposta, enviei a seguinte carta:

Senhores: Fiquei profundamente perturbado ao saber que, no mesmo dia

em que fiz um depoimento em Washington a favor do pedido de ga-rantias de empréstimo da Chrysler Corporation, a Business Round-table, da qual a Chrysler é membro, apresentou um comunicado à imprensa contra as "fianças federais".

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Tenho várias observações a fazer. Primeiro — a função básica da Roundtable é conter a infla-

ção. Seus objetivos acabaram por se estender à discussão de outros temas econômicos importantes para o país. Essa discussão tradi-cionalmente ocorria numa atmosfera aberta e livre, com todos os pontos de vista merecendo a mesma consideração. O fato de não termos tido a oportunidade de apresentar os fatos referentes à questão Chrysler aos membros da comissão de política vai direta-mente contra essa tradição.

Segundo — é irônico o fato de a Roundtable não ter assumido a mesma posição a respeito das garantias federais de empréstimo no caso dos fabricantes de aço, estaleiros, empresas aéreas, fazen-deiros e empresas de construção civil. Nem protestou contra o es-tabelecimento de "sobretaxas"para o aço estrangeiro, nem contra as disposições referentes à concessão de assistência federal à Ame-rican Motors.

Terceiro — a declaração da Roundtable invoca os princípios do sistema de livre mercado, que permitem "a existência do fracas-so e do sucesso". Ela ignora totalmente o fato de que a interferên-cia regulatória do governo no sistema contribuiu amplamente para o problema da Chrysler. Na verdade, é perfeitamente coerente com o sistema de livre mercado o fato de o governo compensar alguns dos efeitos adversos da regulamentação federal. Foi precisamente por esta razão que foram concedidas garantias federais de emprés-timo aos fabricantes de aço.

Quarto — a declaração da Roundtable é errônea quando a-firma que é conveniente a reorganização sob o novo estatuto das falências. Nossa necessidade não é a redução proporcional dos dé-bitos, mas sim levantar grandes quantias de novo capital. Seria im-possível levantar a quantia necessária num processo de falência. Consultamos um dos mais importantes especialistas em falências do país, Mr. j. Ronald Trost, da Shutan and Trost. Sua análise da nova lei levou-o a declarar que a falência não é uma solução viável para a Chrysler e provocaria rapidamente a sua liquidação.

A propria equipe da Roundtable deu indicações de que nenhum especialista em falências foi consultado durante a preparação da sua declaração. Se tivesse havido uma consulta, tenho plena certe-za de que as afirmações teriam sido bem menos seguras quanto às virtudes da falência.

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Quinto — é lamentável que a Roundtable tenha dado preferên-cia a se engajar numa batalha de slogans nessa campanha. Pro-clamar uma política de "nada de fianças federais" em um comuni-cado à imprensa é colocar a discussão no seu nível mais baixo. Q futuro de centenas de milhares de trabalhadores de todo o país, que dependem da Chrysler, merece tratamento muito melhor.

E, finalmente, acredito que aceitar o convite que os senhores me fizeram para me tornar membro da Roundtable seria uma fonte de embaraços para os demais membros. Gostaria muito de partici-par de um fórum que discutisse abertamente temas econômicos e sociais vitais numa atmosfera de confiança e respeito mútuos. O comunicado da Roundtable revela que uma tal oportunidade não existe na comissão de política. Assim sendo, peço que aceitem meu sincero pesar e a renúncia da Chrysler Corporation do corpo de in-tegrantes da Business Roundtable.

Foi isso que eu disse à Business Roundtable. Mas o que eu gos-taria de ter dito aos seus membros é: "Espera-se de vocês que cons-tituam a elite dos negócios deste país. Mas vocês são um bando de hipócritas. O grupo foi fundado por alguns caras da indústria de aço que passaram toda a vida tentando tirar proveito do governo. Vocês se lembram do presidente Kennedy quebrando o silêncio em relação à Big Steel e chamando todos de filhos da mãe? Vocês são contra a ajuda federal para a Chrysler? Onde vocês estavam então quando foram dadas garantias de empréstimo aos fabricantes de aço, esta-leiros e empresas aéreas? Por que não falaram das sobretaxas apli-cadas ao aço estrangeiro? Acho que tudo é uma questão de cada um puxar a brasa para a sua sardinha!"

Em todos os casos anteriores, a Business Roundtable ficou em silêncio. Mas quando fui pedir garantias federais de empréstimo, fi-zeram um manifesto! Desde que eles sejam beneficiados, não se in-comodam com uma pequena interferência governamental. Mas quando se trata de salvar a Chrysler, de repente se aferram aos princípios.

Até alguns dos nossos maiores fornecedores juntaram-se ao co-ro do obscurantismo. Estávamos isolados, nas malhas de uma ideo-logia fora de moda.

Quero esclarecer aqui a minha posição. O capitalismo da livre iniciativa é o melhor sistema econômico que o mundo já conheceu. Sou cem por cento a favor dele. Quando as condições de todos são iguais, esse é o único caminho a seguir.

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Mas o que acontece quando as condições de todos não são i-guais? O que acontece quando as causas reais dos problemas de uma empresa não são determinadas pela livre iniciativa, mas pelo seu oposto? O que acontece quando uma empresa — por causa do se-tor de que faz parte e por causa do seu porte — vai à lona em con-seqüência dos efeitos desiguais da regulamentação governamental?

Foi o que aconteceu com a Chrysler. Certamente, os erros ad-ministrativos do passado eram responsáveis por grande parte do problema. A Chrysler jamais deveria ter feito da especulação a base de sustentação dos seus produtos. Não deveria ter tentado expandir-se no exterior. Nunca deveria ter entrado nos negócios de veículos usados. Ela deveria ter dado maior atenção à qualidade.

Mas o que acabou levando a empresa a ficar de joelhos foi a sucessão interminável de regulamentações governamentais.

Passei uma semana infernal no Congresso tentando explicar isso. Diziam: "Por que você continua vindo aqui para se lamentar

contra a 'regulamentação'?" Eu dizia: "Por que vocês fizeram as regulamentações, mas fi-

cam nos acusando". Então eles escapavam dizendo: "Foi erro de administração". Acabei perdendo a paciência. "Está bem", disse-lhes,"vamos

parar com essa confusão. Cinqüenta por cento é culpa de vocês — regulamentação — e cinqüenta por cento é culpa nossa, pois eu sei de todos os pecados da administração. O que vocês querem que eu faça? Que eu crucifique pessoas que não estão aqui? Elas erraram. Agora vamos voltar ao que nos interessa: vocês nos ajudaram a en-trar no atoleiro!"

Por que o nosso sistema de livre iniciativa é tão forte? Não é porque ele se mantém estático, congelado no passado, mas porque sempre se adapta às mudanças históricas. Sou um grande defensor da livre iniciativa, mas isso não significa que eu viva no século XIX. O fato é que, hoje, a livre iniciativa não significa exatamente a mesma coisa que antes.

Em primeiro lugar, o sistema da livre iniciativa se adaptou à Revolução Industrial. Em 1890, adaptou-se a Samuel Gompers e ao movimento operário que ele impulsionava. Os executivos das em-presas lutaram contra o novo movimento, mas são eles os verdadei-ros responsáveis pelo seu surgimento. Implantaram o sistema de exploração máxima do trabalhador, mantiveram crianças trabalhan-

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do o dia inteiro nas mesas de costura e criaram uma centena de ou-tras injustiças que precisavam ser corrigidas.

Lendo os livros de História, veremos que os homens de negó-cios daquela época estavam convencidos de que os novos sindicatos de operários significavam o fim da livre iniciativa. Achavam que o capitalismo estava com os dias contados e que o espectro do socia-lismo nos Estados Unidos estava à espreita na virada da esquina das fábricas.

Mas estavam completamente enganados. Não conseguiram compreender que a livre iniciativa é flexível e orgânica. A livre ini-ciativa adaptou-se ao movimento operário. E o movimento operário adaptou-se à livre iniciativa — tão bem, na verdade, que em algu-mas indústrias o operariado tornou-se quase tão bem-sucedido e poderoso quanto a administração.

A livre iniciativa também sobreviveu à Grande Depressão. Na época, nossos líderes empresariais também acharam que o capita-lismo havia chegado ao fim. Ficaram furiosos quando Franklin Ro-osevelt resolveu criar empregos para quem estava desempregado. Mas os líderes empresariais estavam apenas teorizando, enquanto que Roosevelt estava usando munição verdadeira. Fez o que tinha que ser feito. E quando terminou, o sistema estava mais forte e bem-sucedido do que nunca.

Quando elogio a ação de Roosevelt, vejo os líderes empresari-ais resmungando: "Iacocca é um vira-casaca. Perdeu a cabeça. Ele adora Roosevelt". Mas eles se esquecem de onde estariam se não fosse a perspicácia impressionante de Roosevelt. Ele estava cin-qüenta anos à frente de seu tempo. A SEC (Securities Exchang Comission, Comissão da Bolsa de Valores e Títulos) e a FDIC (Fe-deral Deposit Insurance Corporation, organismo federal de seguro das empresas) são apenas duas das muitas instituições que ele im-plantou para prevenir as coisas terríveis que podem acontecer quan-do os ciclos dos negócios se desajustam.

Hoje em dia, a livre iniciativa tem que passar por mais alguns ajustes. Agora tem que se adaptar a um novo mundo — um mundo que inclui um grande rival, o Japão; um mundo em que ninguém mais segue estritamente as regras do puro laissez-faire.

Enquanto se travavam essas discussões ideológicas, a décima

maior empresa do país afundava. Obviamente, um momento como

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esse não é apropriado para se discutir ideologia. Quando o lobo está batendo à porta, você fica pragmático num instante.

Você certamente não pode se dar ao luxo de dizer: "Bem, espe-re um pouco. Como será que eles discutiriam essa questão no Union League Club em Philadelphia? Será que diriam: "Livre iniciativa para sempre?"

Mas, afinal, o que é a livre iniciativa? Competição. E competi-ção era uma coisa que as garantias de empréstimo certamente iriam promover muito. Por quê? Porque iriam possibilitar que a Chrysler permanecesse de pé para competir com a GM e a Ford.

A indústria automobilística aceita muito bem a competição e até precisa dela. Durante o grande debate a respeito do futuro da Chrysler, um distribuidor Ford escreveu uma carta ao The New York Times: "Nos últimos vinte e cinco anos, fui um concorrente da C-hrysler. Mas não posso concordar com os editoriais que vocês es-creveram contra o pedido de assistência federal feito pela Chrysler. O verdadeiro papel do governo federal num sistema democrático de livre iniciativa não é ajudar a sobrevivência dos mais gordos (sic), mas preservar a competição. Se a Chrysler fracassar no momento em que a indústria está empenhada em reinventar o automóvel o mais depressa possível, será que a Ford estaria muito longe disso?"

Outro distribuidor, do Oregon — desta vez do Chevrolet — co-locou um anúncio de página inteira no jornal da sua cidade com a manchete: "Se não pudermos vender a você um Chevrolet ou um Honda, compre um Chrysler!" O anúncio dizia ainda: "A competi-ção é boa para nós, para a indústria, para o país e para você, consu-midor".

Além de preservar a competição, a salvação da Chrysler tam-bém preservaria empregos — muitos empregos. Em termos globais, contando operários, distribuidores e fornecedores, havia 600 mil empregos em jogo. Muita gente acha que, se tivéssemos liquidado a empresa, nossos empregados teriam conseguido emprego na Ford ou na General Motors. Mas isso não tem fundamento. Na época, a Ford e a GM estavam vendendo todos os carros pequenos que podiam produzir. Não era uma situação em que as fábricas estivessem vazias e preci-

Jogo de palavras com fattest (os mais gordos) efittest (os mais capazes). (N. do T.)

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sassem de trabalhadores para enchê-las. Se a Chrysler tivesse afun-dado, quase todos os nossos empregados teriam ficado na rua.

Só as importações poderiam ter atendido à demanda repentina e insaciável por carros pequenos nos Estados Unidos. Assim, se a Chrysler afundasse, o país não só teria que importar mais carros pe-quenos, como estaria exportando empregos.

Nós nos perguntávamos: "Será que seria melhor para o país se a Chrysler tivesse afundado e o índice de desemprego tivesse subi-do mais meio por cento da noite para o dia? Será que a livre inicia-tiva se fortaleceria se a Chrysler fracassasse e dezenas de milhares de empregos americanos fossem perdidos para os japoneses? Será que o nosso sistema de livre mercado se tornaria mais competitivo se deixasse de contar com mais de 1 milhão de automóveis e cami-nhões que a Chrysler fabrica e vende por ano?"

Fomos ao governo e dissemos: "Se tem sentido tomar medidas para dar segurança aos indivíduos, então tem sentido tomar medidas para dar segurança às empresas. O trabalho, afinal, é o que mantém os indivíduos vivos".

E então discutimos sobre competição e sobre empregos. Mas nossos argumentos mais importantes foram de ordem econômica. Nós os levamos a entregar os pontos de modo muito simples. O Departamento do Tesouro estimava que o fechamento da Chrysler custaria ao país, só no primeiro ano, 2,7 bilhões de dólares em segu-ro-desemprego e pagamentos previdenciários decorrentes de todas as demissões.

Eu disse ao Congresso: "Vocês podem escolher. Querem pagar 2,7 bilhões de dólares agora ou preferem garantir empréstimos num valor correspondente à metade desta quantia, com uma grande chance de recebê-los de volta integralmente? Vocês podem escolher entre pagar agora ou mais tarde".

Esse tipo de argumento nos leva a parar para pensar. E traz uma lição importante aos jovens que estão lendo este livro — sem-pre pense a partir dos interesses dos outros. Acho que foi isso que aprendi com o curso de Dale Carnegie — e foi muito útil para mim.

Nesse caso, eu tinha que pensar em termos do parlamentar no Congresso. Do ponto de vista ideológico, ele deveria ser contra a idéia de nos dar ajuda. Mas, com certeza, mudou de opinião rapi-damente quando nos fundamentamos e fornecemos um levantamen-to, distrito por distrito, de todos os empregos e negócios que tinham relação com a Chrysler em seu Estado. Ao perceber quantas pessoas

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de sua base eleitoral dependiam da Chrysler para viver, a maioria dos congressistas disse adeus à ideologia.

Enquanto a batalha, era travada dentro e fora do Congresso, eu me ocupava fazendo tudo que podia para levantar capital, inclu-sive vendendo debêntures a outras empresas. Sentia-me como um mercador de tapetes que tivesse que levantar algum dinheiro às pressas. E meu moral estava baixo porque, onde eu chegava, não havia ninguém que dissesse: "Vá em frente, você vai conseguir".

Durante o debate, a "solução" da falência para a Chrysler era muito popular. Segundo o Capítulo 11 do Federal Bankruptcy Act, estaríamos protegidos dos nossos credores até colocarmos a casa em ordem. Alguns anos depois, deveríamos emergir como uma em-presa menor, porém mais saudável.

Mas quando consultamos todos os tipos de especialistas, eles nos disseram, como já sabíamos, que no nosso caso a falência seria catastrófica. Nossa situação era específica. Não era igual à da Penn Central, nem à da Lockheed. Não se tratava de discutir com o go-verno contratos relativos à proteção que ele já havia concedido. Não era uma situação igual à do ramo de cereais. Se a Kellogg's estives-se para sair do mercado, ninguém diria.- "Meu Deus, vou devolver a caixa de corn flakes que peguei de manhã no supermercado e re-ceber meu dinheiro de volta". A pessoa continuaria a consumir seu corn flakes preferido, enquanto o encontrasse à venda.

Mas com automóveis é diferente. O simples boato de uma fa-lência é capaz de interromper a entrada de capital na empresa. O-corre um efeito-dominó. Os clientes começam a cancelar pedidos. Ficam preocupados com a cobertura da garantia e com a disponibi-lidade de peças e de serviços — para não mencionar o valor de re-venda do automóvel.

Podemos citar um precedente esclarecedor. Quando a White Truck Company pediu falência, a empresa achou que poderia pro-teger-se dos credores apoiando-se nas regras do Capítulo 11. Tecni-camente teria funcionado. Só que havia um problema. Todos os cli-entes pensaram: "Se eles foram à falência, acho melhor comprar caminhões de outra empresa".

Alguns bancos queriam que seguíssemos esse caminho. "Para que vocês estão procurando o governo? Declarem falência e dirijam Legislação do governo federal sobre as falências. (N. do T.)

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a empresa para sair desse estado." Eles nos davam exemplos de em-presas que tinham feito isso. Mas nós continuamos a dizer: "Somos uma importante empresa consumidora numa indústria de consumo. Não sobreviveríamos duas semanas se tentássemos fazer isso".

Numa situação de falência, nossos distribuidores perderiam a possibilidade de financiar compras feitas na fábrica. Praticamente todo o movimento de financiamento de veículos seria suspenso pe-los bancos e financeiras, em um ou dois dias.

Estimávamos que quase a metade dos nossos distribuidores tam-bém iria à falência. Muitos outros seriam recrutados pela GM e pela Ford, deixando-nos sem canais de venda em mercados importantes.

Os fornecedores passariam a pedir pagamento adiantado — ou no momento da entrega da mercadoria. A maioria dos nossos forne-cedores são pequenas empresas, com menos de quinhentos empre-gados. O choque da falência da Chrysler seria insuportável para mi-lhares de pequenas empresas que dependiam de nós para existir. Muitas delas também seriam forçadas a pedir falência, o que, por sua vez, nos privaria de peças essenciais.

Esqueçamos a Chrysler. O que a maior falência da história dos Estados Unidos teria causado à nação? Um estudo da Data Resour-ces estimou que a liquidação da Chrysler teria custado aos contribu-intes, no final das contas, 16 bilhões de dólares em gastos com o desemprego, Previdência Social e outras despesas.

Essas seriam as implicações da opção pela falência. Enquanto se desenrolava o debate nacional a respeito do futuro

da Chrysler, todos estavam com as armas apontadas para nós. No The New York Times, o articulista Tom Wicker disse que a Chrysler deveria empregar suas energias em produzir transporte de massa, ao invés de produzir automóveis. Para os cartunistas, a história da C-hrysler pedir ajuda ao governo era um prato cheio.

Mas o The Wall Street Journal foi particularmente implacável. Suas objeções à ajuda governamental para a Chrysler foram muito além das páginas dos editoriais. Não conseguiam nos deixar em paz. Faziam um relato sombrio das más notícias, mas não se davam ao trabalho de mencionar qualquer sinal de esperança. Mesmo de-pois de recebermos as garantias de empréstimo, eles disseram que, embora tivéssemos bastante dinheiro e a empresa estivesse reestru-turada, embora tivéssemos uma nova administração, o produto certo e boa qualidade, poderíamos ser atingidos por um raio. A economia

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poderia piorar. A venda de veículos poderia tornar-se ainda mais difícil.

Parecia que quase todo dia o Journal publicava um artigo pes-simista sobre a situação da Chrysler. E, sempre que isso acontecia, tínhamos que gastar um pouco mais de nossas escassas energias pa-ra tentar controlar os efeitos prejudiciais sobre a opinião pública.

No primeiro trimestre de 1981, por exemplo, a Ford perdeu 439 milhões de dólares. A Chrysler estava melhorando, mas ainda per-demos 300 milhões de dólares. Qual foi a manchete do Journal? "Os prejuízos da Ford são menores do que o previsto, e os prejuízos da Chrysler ultrapassam o valor orçado." Era a única maneira pos-sível de escrever uma manchete que nos fizesse parecer piores do que a Ford. Os números não confirmavam essa afirmação.

Alguns meses depois, nossas vendas mensais representavam um ganho de 51 por cento superior ao do ano anterior. Mas o Jour-nal sentiu-se obrigado a dizer que "no entanto, a comparação é dis-torcida, pois as vendas da Chrysler no ano passado quase chegaram a zero". Muito bem. Mas vocês pensam que no ano anterior o Jour-nal justificou nosso baixo nível de vendas pelo fato de os negócios terem sido mais bem-sucedidos no ano anterior?

Isso me faz lembrar uma velha piada judia. Goldberg recebe um telefonema do banco, avisando que sua conta está com um saldo negativo de 400 dólares.

"Veja o extrato do mês passado", diz ele. "O senhor tinha um saldo de 900 dólares", diz o funcionário do

banco. "E um mês antes?", pergunta Goldberg. "Mil e duzentos dólares." "E um mês antes ainda?" "Mil e quinhentos." "Diga-me", diz Goldberg, "em todos esses outros meses, quando

eu tinha bastante dinheiro em minha conta, eu liguei para vocês?" Na faculdade, como editor do jornal, eu tive experiência direta

do poder que o redator de manchetes tem. Já que a maioria das pes-soas nunca lê a história inteira, a não ser quando tem um interesse especial, para a maioria a manchete é a história.

No meio da crise da garantia de empréstimo, depois de termos obtido um empréstimo que cobria apenas uma parte do que a lei nos assegurava, o Journal fez um editorial sugerindo que a Chrysler fosse "abandonada à própria sorte". Foi o famoso editorial "Deixe-

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os morrer com dignidade", que deve entrar para a história como um clássico — pelo menos como exemplo do quanto a liberdade de im-prensa pode tornar-se abusiva neste país. Está bem, eu sei, a Primei-ra Emenda lhes garante esse direito.

Fiquei furioso. Mandei uma carta ao editor, dizendo: "Com e-feito, você diz que, como o paciente ainda não recuperou totalmente a saúde depois de ingerir metade do remédio prescrito, ele deveria ser abandonado até morrer. Fico feliz por você não ser o médico da minha família".

Acho que o The Wall Street Journal está vivendo no século passado. Infelizmente, ele é a única opção na cidade. O Journal é um monopólio, e se tornou arrogante, como a General Motors.

Aliás, os ataques do Journal não pararam quando a Chrysler se recuperou. No dia 13 de julho de 1983, anunciei no National Press Club que até o final do ano pagaríamos todos os empréstimos garan-tidos pelo governo. Dois dias depois, o The New York Times, que se opusera às garantias de empréstimo, apresentou uma matéria intitu-lada "A grande recuperação da Chrysler". O artigo dizia: "É difícil superestimar a magnitude da recuperação... Como foi possível reer-guer tão depressa uma empresa tão desesperadamente doente?"

No mesmo dia, o The Wall Street Journal também trouxe uma extensa matéria sobre a Chrysler. A manchete? "A Chrysler, tendo perdido músculos e gordura, continua fraca." Resta alguma dúvida de que o Journal tinha uma predisposição contra nós? Eles têm todo o direito de dar opiniões, mas as opiniões devem estar na página de editoriais. Poderiam pelo menos ter dito algo como: "É muito ruim eles terem feito as coisas dessa maneira, mas que grande trabalho a Chrysler fez!"

Com esse tipo de cobertura da imprensa especializada do país, não surpreende que tantos setores do público tenham tido dificulda-des para entender o que realmente estava acontecendo.

Grande parte do problema estava na linguagem usada para descrever nossa situação. "Fiança" é uma metáfora eloqüente. Evo-ca a imagem de um barco furado enfrentando mares bravios. Impli-ca que a tripulação não é competente. "Fiança", pelo menos, é uma expressão melhor do que "esmola", que também estava sendo sussurrada.

Uma opinião muito difundida era a de que, por sermos uma empresa grande e monolítica, não merecíamos ajuda. Para desfazer esse mito, explicamos que, na verdade, somos um composto de pe-

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quenos empresários. Somos uma empresa de associados. Temos onze mil fornecedores e quatro mil revendedores. Quase todos são pequenos empresários, e não malandros aproveitadores. Precisáva-mos de uma mãozinha e não de esmola.

Muitas pessoas nem sabiam disso. Pensavam que estávamos pedindo uma doação. Parece que achavam que Jimmy Carter me havia mandado uma pasta recheada com um bilhão em notas novi-nhas de dez e de vinte dólares. Muitos americanos bem-intencionados aparentemente estavam achando que a Chrysler tinha recebido um bilhão de dólares em dinheiro, numa pasta marrom, e que nunca teríamos que devolver nada.

Quem dera fosse verdade!

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XIX A CHRYSLER VAI AO CONGRESSO

ara ser franco, depor diante das comissões do Congresso e do Senado nunca fez parte do meu con-ceito de diversão ou lazer. Estejam certos de que é a última coisa que eu desejaria fazer na vida. Mas, por menor que fosse a nossa chance de levar o Congresso a aprovar as garantias de empréstimo, eu sabia que teria que aparecer pessoalmente para apresentar nosso caso. Nada de delegar poderes desta vez!

As salas de audiências do Senado e da Câmara são projetadas para intimidar a testemunha. Os membros da comissão sentam-se numa mesa semicircular, alguns metros acima do chão, olhando pa-ra baixo. A testemunha está sempre em desvantagem psicológica, pois, para ver a pessoa que a está interrogando, tem que olhar para cima. E, para piorar, há aqueles refletores de televisão nos olhos.

Fui chamado como testemunha, mas era uma designação erra-da. Na realidade, eu era o defensor. Tive que ficar sentado horas e horas para ser julgado, diante do Congresso e da imprensa, por todos os "pecados" administrativos da Chrysler — reais e imaginários.

Às vezes era como um júri fajuto. Os ideólogos se alinhavam e diziam: "O que você está dizendo não nos interessa. Queremos é ar-rasar você".

P

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Eu estava enfrentando aquelas audiências por minha conta. Ti-nha que falar tudo de improviso. As perguntas vinham rápidas e cortantes, e eles se abasteciam continuamente. Os assessores fica-vam o tempo todo passando bilhetes para os senadores e represen-tantes no Congresso e eu tinha que responder tudo na lata. Era um homicídio.

Fomos acusados de não ter a capacidade de previsão dos bri-lhantes japoneses, para construir carros que fizessem doze quilôme-tros por litro de gasolina, mesmo sabendo que o consumidor conti-nuava procurando carros maiores.

Ouvimos sermões por não termos estado preparados para a cri-se decorrente da queda do Xá do Irã. Tive que dizer que Carter, Kissinger, David Rockefeller, o Departamento de Estado também não haviam previsto esse acontecimento, embora estivessem muito mais informados sobre esses assuntos do que eu.

Fomos execrados por não nos termos preparado para o sistema de controle do consumo de combustível concebido pelo Departa-mento de Energia e para os distúrbios subseqüentes nos postos de gasolina. Não interessava que a gasolina estivesse a sessenta e cinco cents o galão no mês anterior à elevação. Pouco interessava que o preço tivesse sido contido de maneira artificial por causa dos con-troles de preços governamentais, que deram precisamente as indica-ções erradas ao consumidor americano. Pouco interessava que esti-véssemos investindo o grosso do nosso capital para atender às regu-lamentações governamentais. Na cabeça do Congresso e dos meios de comunicação, havíamos pecado. Havíamos deixado escapar o mercado e merecíamos ser punidos.

E realmente o fomos. Nessas audiências no Congresso, fomos apresentados a todo o mundo como exemplos vivos de todos os er-ros da indústria americana. Fomos humilhados pelos editoriais por não termos tido a coragem de desistir e morrer na glória. Éramos objeto de escárnio nas mãos dos cartunistas, que não viam a hora de nos desenhar no túmulo. Nossas mulheres e filhos eram alvo de gracinhas nos supermercados e escolas. Foi um preço muito mais alto do que apenas fechar as portas e ir embora. Foi algo pessoal. Foi proposital. E foi doloroso.

No dia 18 de outubro, apresentei-me pela primeira vez diante

da Subcomissão de Estabilização Econômica da Comissão de As-suntos Bancários, Financeiros e Urbanos. Todos os membros esta-

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vam presentes, o que por si só já era incomum. Geralmente, as au-diências eram realizadas sem a presença da maioria dos membros, que costumam ter muitos compromissos na mesma hora. O trabalho efetivo é feito, em geral, pelos assessores do Congresso.

Comecei meu depoimento apresentando nossa questão de for-ma bem simples: "Tenho certeza de que vocês sabem que não estou aqui para falar apenas em meu nome. Falo em nome das centenas de milhares de pessoas cuja sobrevivência depende da manutenção da Chrysler em atividade. A questão é bem simples. Falo em nome dos nossos cento e quarenta mil empregados e dos seus dependen-tes, dos nossos quatro mil e setecentos revendedores e dos seus cen-to e cinqüenta mil empregados que vendem os nossos produtos e dão assistência a eles, dos nossos dezenove mil fornecedores e dos duzentos e cinqüenta mil empregados que constam de suas folhas de pagamento e, também, das famílias e dos dependentes de todas essas pessoas".

Como havia muita confusão quanto ao tipo de ajuda que está-vamos solicitando, deixei claro que não queríamos esmolas. Não es-távamos pedindo doações. Lembrei à comissão que estávamos soli-citando garantias para um empréstimo e que cada dólar emprestado seria pago — com juros.

Na minha fala de abertura, apresentei à comissão os sete pontos essenciais da questão. Primeiro, nossos problemas eram decorrentes de uma combinação de má administração, excesso de regulamenta-ções, crise energética e recessão. Tínhamos modificado completa-mente a administração, mas os outros três fatores estavam fora do nosso controle.

Segundo, já tínhamos tomado medidas imediatas e decisivas para resolver os problemas. Tínhamos vendido propriedades imobi-liárias e outros itens não essenciais de nossos ativos, levantado uma parcela significativa de dinheiro novo, reduzido nossos custos fixos em cerca de 600 milhões de dólares por ano, baixado os salários dos nossos mil e setecentos altos executivos, suspendido todos os au-mentos de salário por mérito, cortado nosso plano de promoção de compra de ações pelos empregados, eliminado os dividendos das nossas ações ordinárias. Tínhamos também firmado compromissos novos e importantes com nossos fornecedores, bancos, revendedo-res e operários, assim como com os governos local e estadual.

Terceiro, para nos manter em operação lucrativa, deveríamos continuar produzindo toda uma linha de automóveis e caminhões

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leves. Não podíamos sobreviver como empresa de um único produ-to. Não podíamos permanecer no negócio só fabricando carros pe-quenos. As margens de lucro dos carros subcompactos chegavam a cerca de 700 dólares por unidade, o que não era suficiente para nos manter em operação — não com os japoneses usufruindo de mão-de-obra mais barata e de vantagens fiscais.

Quarto, não tínhamos condições de sobreviver à falência. Quinto, não tínhamos propostas de fusão com outras empre-

sas, americanas ou estrangeiras; e, se não recebêssemos as garan-tias de empréstimo, seria pouco provável que alguém nos tirasse para dançar.

Sexto, apesar da nossa reputação de construtores de bebedores de gasolina, a Chrysler, entre as Três Grandes, era a que apresenta-va a melhor média de economia de combustível. Oferecíamos maior número de modelos — que faziam, no mínimo, dez quilômetros por litro — do que a GM, Ford, Toyota, Datsun ou Honda.

Finalmente, afirmei que o nosso plano de operações para os cinco anos seguintes tinha bases sólidas e se fundamentava em pre-visões cautelosas. Sabíamos que poderíamos aumentar nossa fatia de mercado e logo voltar a apresentar lucro.

Mais tarde, na audiência, apresentei cada um desses pontos com muito mais detalhes.

As perguntas e as acusações eram intermináveis. Alguns dos membros da comissão simplesmente não conseguiam meter na ca-beça que a Chrysler estava agora com uma nova administração. Não foi surpresa que a maioria deles não quisesse considerar os custos reais das regulamentações federais. Assim, permaneciam com o de-do em riste, apontando os erros cometidos pela equipe administrati-va anterior e me pedindo para defendê-la.

DEPUTADO SHUMWAY, DA CALIFÓRNIA: "Minha preo-

cupação é saber quais as garantias que o senhor pode dar a esta sub-comissão e ao governo de que não vai repetir os erros de ontem. O senhor afirma que as falácias que norteavam a administração da empresa foram resolvidas e que os senhores estão caminhando fir-memente na direção da lucratividade. Francamente, não vejo que ti-po de resposta poderia me convencer de que é isto o que está acon-tecendo".

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SR. IACOCCA: "Deputado, não posso convencê-lo. O senhor vai ter que acreditar na minha palavra. Criei uma nova equipe na Chrysler. Na minha opinião, são os melhores profissionais do setor automobilístico nos Estados Unidos. Temos uma folha de serviços. Conhecemos o ramo. Sabemos construir carros pequenos. Estamos nesse negócio há trinta anos e estamos afirmando que vamos con-seguir. É só o que podemos dizer. O senhor se baseia na folha de serviços, na experiência. Oferecemos a nossa ao senhor. É só o que posso dizer".

SR. SHUMWAY: "Não é na folha de serviços da Chrysler que

o senhor se baseia hoje para nos persuadir".

SR. IACOCCA: "As pessoas é que fazem as empresas. Creio que temos feito bastante para nos ajudar. Continue a nos observar: o senhor verá um bocado de esforço na Chrysler. Verá melhores carros, melhor serviço e melhor qualidade. E, afinal, é isso que importa".

Todos estavam procurando um bode expiatório, mas eu me re-

cusei a acusar a antiga administração da Chrysler pelos nossos pro-blemas. Afinal de contas, no terceiro trimestre de 1979, a Ford ha-via perdido 678 milhões de dólares. Mesmo a GM teve, no terceiro trimestre, um prejuízo de 300 milhões de dólares. O que querem di-zer esses números? Não seria possível que todos tivessem ficado es-túpidos ao mesmo tempo! Obviamente, deveria haver outros moti-vos, razões mais fortes, para explicar esses prejuízos inéditos. E por isso falei muito das regulamentações.

E falei do conceito errôneo de que a Chrysler fosse fabricante de bebedores(de gasolina, e não de carros pequenos e econômicos. Chamei a atenção para o fato de que a Chrysler era o primeiro fa-bricante americano de automóveis pequenos, de tração dianteira; que ela havia chegado na frente da GM e da Ford. Na época do meu depoimento, havia mais de meio milhão de Omnis e Horizons na estrada — mais carros menores, com tração dianteira, do que qual-quer outro fabricante americano era capaz de oferecer. Além disso, o novo carro K estava para ser lançado dentro de um ano.

Expliquei que o problema não era termos bebedores de gasoli-na demais. Na realidade, não os tínhamos em número suficiente.

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É nos carros grandes que estão os lucros. Pela mesma razão, no açougue, o preço da carne é maior do que o preço do hambúrguer.

Eu disse que a General Motors fazia 70 por cento dos carros gran-des, incluindo os Cadillacs Sevilles, que davam um lucro de 5.500 dólares por unidade. Não tínhamos nada que se comparasse a isso. Para obter o mesmo dinheiro que a GM obtinha com um Seville, tí-nhamos que vender oito Ommis ou Horizons. Além disso, a GM era líder dos preços. Ela não iria aumentar o preço dos seus carros pe-quenos em 1.000 dólares só para deixar a Chrysler se equilibrar.

Falei sobre tudo isso, e muito mais. Mas quando relembro as audiências, são as vozes dos outros que eu ouço. Lembro-me niti-damente do deputado Richard Kelly, da Flórida, nosso opositor mais ferrenho. Começou afirmando: "Acho que o senhor está ten-tando nos fazer de bobos. Creio que o senhor fez a sua apresentação no mercado aberto e que as pessoas de lá — não pessoas como estas que estão aqui, mas os reis da indústria, que sabem como fazer as coisas — deliberadamente disseram ao senhor que não chateasse mais. E disseram isso porque, nas mesmas condições em que elas sobreviveram, o senhor não conseguiu sobreviver. E agora o senhor vem aqui, e espera que este bando de patetas da subcomissão caia nessa conversa fiada sofre os sofrimentos das pessoas".

Kelly era esperto. Manipulava os meios de comunicação usan-do as palavras certas para agitar as pessoas no jornal da noite. Ata-cou-nos repetidas vezes. "A fiança da Chrysler será o começo de uma nova era de irresponsabilidade no governo. A fiança da Chrys-ler é uma espoliação do trabalhador americano, da indústria ameri-cana, do contribuinte e do consumidor. A caridade para a Chrysler é a mais escandalosa mentira da nossa época."

Kelly fez um sermão sobre as razões por que a Chrysler fracas-sou na competição. Pediu-nos insistentemente que nos declarásse-mos em falência e se opôs às garantias federais de empréstimo utili-zando todos os métodos, formas e esquemas possíveis.

A propósito, alguns anos depois, o deputado Kelly, o grande defensor do American way oflife, foi condenado duas vezes no caso Abscam e cumpriu sentença na cadeia. Perdeu as eleições e a repu-tação. Que justiça poética!

Kelly não era o nosso único opositor. Em meio ao debate, o deputado David Stockman, da nossa própria delegação de Michi-gan, escreveu um artigo imenso no Washington Post Magazine inti-

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tulado "Dfeixem a Chrysler quebrar". Algumas semanas antes, ele havia escrito para o The Wall Street Journal uma matéria intitulada "A fiança para a Chrysler: recompensa ao fracasso?"

Stockman, que mais tarde se tornou o diretor de orçamento, foi o único membro da delegação de Michigan a votar contra nós. Ele havia sido estudante de teologia, mas provavelmente não foi à aula no dia em que estudaram compaixão.

Felizmente, nem todos eram hostis. Stewart McKinney, o re-presentante da minoria na comissão, deu-nos grande apoio. Aqui desejo fazer um parêntese, pois McKinney tornou-se meu amigo desde o período em que estive na Ford. Na qualidade de republica-no, vindo de um distrito produtor de seda de Connecticut, foi muito atacado por seus colegas de partido, conservadores ortodoxos.

McKinney ficou do nosso lado desde o início, principalmente

porque a alternativa à ajuda federal era muito ruim. Sua posição e-ra: "Conheço automóveis, e sei o que esse sujeito fez na Ford. Ele vai fazer a coisa dar certo". A certa altura da audiência, ele disse: "Se você fizer pela Chrysler o que fez pela Ford, vamos ter que eri-gir uma estátua em sua homenagem".

E então eu pensei: "E você sabe o que acontece com as está-tuas? Os pombos fazem cocô em cima delas!"

McKinney tinha-se fundamentado; mas eu não poderia dizer o mesmo de alguns dos seus colegas. Henry Reuss, presidente da Comissão Bancária da Câmara, afirmou, num determinado momen-to, que a Chrysler devia dedicar-se à construção de vagões ferroviá-rios! Não tínhamos condições de manter as instalações de que dis-púnhamos, e aquele sujeito achava que devíamos entrar numa linha completamente nova de veículos. Este modesto projeto teria exigido um investimento de cerca de 2 bilhões de dólares — num momento em que já estávamos quebrados.

Outro que nos deu um apoio fundamental na subcomissão foi o deputado Jim Blanchard, de Michigan, autor da emenda referente à garantia de empréstimos, que mais tarde viria a ser governador de Michigan. Blanchard era o democrata número dois da comissão; junto com McKinney, formava uma equipe muito boa.

Tip O'Neill foi o verdadeiro fiel da balança. No início, eu me reuni com ele para explicar nossa situação. Ouviu atentamente e en-tendeu o que ouviu. Logo que ele se dispôs a nos ajudar, a maré começou a virar.

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Tip criou uma força-tarefa de porta-vozes, um grupo de cerca de trinta pessoas para pressionar seus colegas. Havia também um pequeno grupo de apoio do lado republicano — seu trabalho era muito mais difícil.

Houve audiências semelhantes no Senado. Lá meu principal opositor era William Proxmire, presidente da Comissão Bancária. Proxmire era duro, mas honesto e razoável. Disse-nos desde o iní-cio que se opunha frontalmente às garantias de empréstimo. Mas foi correto por nos deixar defender nossa causa. Prometeu que apenas votaria contra nós e nada mais.

Tive um bom confronto com Proxmire porque, apesar de toda a sua conversa a respeito do livre comércio, ele havia concordado an-teriormente com a concessão de ajuda especial à American Motors.

Em 1967, a American Motors recebeu um crédito fiscal federal que resultou numa dedução de 22 milhões de dólares.

Em 1970, foi concedida à American Motors uma permissão es-pecial para comprar da GM a tecnologia de controle de emissões de gases, o que constituiu uma exceção a um decreto consensual da corte federal.

Em 1974, o governo federal enquadrou a American Motors na categoria de pequena empresa, para lhe dispensar tratamento prefe-rencial com relação aos pedidos de contratos governamentais.

Em 1977, foi dado à American Motors o direito de solicitar um adiamento de dois anos no atendimento dos padrões definitivos de emissão de óxidos de nitrogênio.

Em 1979, uma solicitação de adiamento da American Motors foi atendida pela EPA. Aliás, um adiamento semelhante, se fosse concedido à Chrysler, teria possibilitado uma economia de mais de 300 milhões de dólares.

Proxmire conseguiu uma boa reputação ao ridicularizar os gas-tos governamentais dos quais discordava. Mas fez uma exceção es-candalosa à American Motors. Por quê? Porque Proxmire é senador por Wisconsin, onde a American Motors tem uma grande linha de montagem. Eu o enfrentei diretamente. Disse-lhe: "Lembro-me de que o senhor foi quem mais se movimentou para que fossem dadas garantias de empréstimos para a American Motors, e os proprietá-rios dela são franceses. Assim, o senhor estava ajudando e favore-cendo o governo francês". Estávamos lutando pela nossa sobrevi-vência, e naquele momento eu não estava me importando muito em ser cortês.

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Proxmire refutou. Tentou me encurralar, acusando-me de agir de forma incoerente com relação à minha própria ideologia. "Mais do que qualquer outro executivo em Detroit", disse, "o senhor lide-rou a campanha anti-Washington, e o que o senhor disse na verdade fazia sentido. Eu o apoiaria, e outros membros o apoiariam de ma-neira ainda mais vigorosa." Prosseguiu dizendo que se as garantias fossem aprovadas, o governo ficaria profundamente envolvido com a Chrysler. "Será que isso não contraria tudo o que o senhor vem pregando de modo tão eloqüente há tanto tempo?"

"Certamente sim", respondi. "Toda a vida fui um livre empre-endedor. Relutei muito em vir até aqui. Não tenho outra alternativa. Não posso salvar a empresa sem algum tipo de garantia do governo federal."

"Não pretendo fazer uma pregação para os senhores", continu-ei. "Os senhores sabem melhor do que eu que não estamos abrindo um precedente. Já há 409 bilhões de dólares em garantias de em-préstimo registrados nos livros; por isso, não parem agora, senho-res. Cheguem a 410 bilhões com a Chrysler, pois ela é a décima maior empresa dos Estados Unidos e há seiscentos mil empregados envolvidos na questão."

Quando eu falava em precedentes, mesmo os que se mostravam hostis a nós ficavam em maus lençóis. O melhor que eles poderiam dizer numa situação como aquela era: "Bem, o fato de termos feito algumas bobagens no passado não faz com que isto seja correto".

No final do meu longo depoimento e do subseqüente interroga-tório, o senador Proxmire me fez um elogio: "Como o senhor sabe", ele disse, "sou contra o seu pedido. Mas poucas vezes ouvi um tes-temunho tão eloqüente, inteligente e bem-informado como o do se-nhor hoje. O senhor fez um trabalho brilhante e nós lhe agradece-mos. Estamos em dívida com o senhor". Pensei: "Não, não, é jus-tamente o contrário. Nós estamos tentando justamente ficar em dí-vida com vocês!

Depois do elogio de Proxmire, sorri por um instante. Mas então ele deixou claro que iria lutar com todas as forças para me derrubar e realmente cumpriu a palavra.

Outro oponente na comissão do Senado foi o senador John He-inz, republicano da Pennsylvania, cuja hostilidade passou dos limi-tes. Ele não gostava dos nossos acionistas e queria que eles sofres-sem. Tivemos que lembrar que as ações da Chrysler não estavam nas mãos de instituições. Trinta por cento dos nossos acionistas e-

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ram empregados da empresa. Os demais eram pessoas físicas. O va-lor das suas ações já tinha diminuído consideravelmente.

Mas Heinz queria que emitíssemos mais cinqüenta milhões de ações imediatamente, o que reduziria o valor de cada ação de 7,5 para 3,5 dólares — preço que as ações alcançaram mais tarde por si mesmas, e sem abalos. Ele não conseguia enfiar na cabeça que, na situação em que nos encontrávamos, ninguém tinha interesse em comprar ações da Chrysler, fosse qual fosse o preço. As audiências na Câmara e no Senado foram apenas uma parte da história. Passei a maior parte do tempo em pequenas reuniões privadas. Tive uma boa conversa com a senadora Nancy Kassebaum, a única mulher do Senado. Fiz uma boa defesa da questão e creio que ela estava co-meçando a se convencer. Mas acabou votando contra nós.

Tive mais sorte com o grupo de italianos da Câmara. O deputa-do Pete Rodino, de Newjersey, me recebeu dizendo: "Quero que você fale aos meus companheiros". Havia trinta e um rapazes ali (bem, na verdade, trinta rapazes e a democrata Geraldine Ferraro), e só um votou contra nós. Alguns eram republicanos, outros demo-cratas, mas nesse caso eles votaram a favor dos italianos. Estáva-mos em desespero e tínhamos que explorar todas as possibilidades. Era a democracia em ação.

Não houve tempo para encontrar o grupo negro, mas eu con-versei com o líder, deputado Parren Mitchel, de Maryland. Em 1979, um por cento dos empregados negros de todo o país estava na Chrysler Corporation. Os negros tiveram um papel muito importan-te na coalizão que tornou possíveis as garantias de empréstimo.

Coleman Young, o prefeito negro de Detroit, foi a Washington várias vezes para testemunhar a nosso favor. Não poupou palavras para mostrar o que a falência da Chrysler provocaria em Detroit. Young havia sido um dos primeiros partidários de Jimmy Carter e falou com vigor ao presidente a respeito da situação da Chrysler.

Nos últimos três meses de 1979, a pressão sobre mim era im-pressionante. Eu ia a Washington cerca de duas vezes por semana e tentava dirigir a Chrysler ao mesmo tempo. Enquanto isso, Mary estava doente e tinha ataques periódicos de diabetes. Em duas ou três ocasiões, tive que largar tudo e voltar depressa a Detroit para ficar com ela.

Toda as ocasiões em que eu ia a Washington, cumpria uma a-genda insana, com oito ou dez reuniões por dia. Cada vez que che-gava lá, tinha que fazer o mesmo discurso, repisar os mesmos pon-

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tos, apresentar os mesmos argumentos. Repetir, só repetir, argu-mento por argumento. Numa dessas visitas, comecei a passar mal num dos corredores de mármore do Congresso. Era como se eu es-tivesse caminhando sobre ovos. Fiquei tonto e quase desmaiei. E comecei a ficar a com a vista embaralhada.

Levaram-me ao consultório do médico-chefe e depois à enfer-maria da Câmara, onde me examinaram. Era vertigem, algo que eu só tinha tido uma vez, vinte anos atrás. Naquela época, eu estava andando no corredor da Ford com McNamara e comecei a dar en-contrões na parede. McNamara perguntou: "O que há, Lee? Você está bêbado, ou o quê?"

"Por quê?", perguntei, sem perceber que havia algo errado. "Porque você está-se chocando contra a parede." A vertigem é um problema de equilíbrio, que provém do ouvi-

do interno, e eu estava tendo uma recaída. Recebi alta da enfermari-a, mas o problema voltou a acontecer. Toda a tensão e toda a pres-são me faziam sentir como se tivesse pedras na cabeça. Mas, de um jeito ou de outro, consegui sobreviver.

Nossa maior prioridade durante aquele período era manter a

confiança do consumidor. Enquanto ocorriam as audiências, nossas vendas caíram dramaticamente. Ninguém queria comprar um carro de uma empresa que estava para ser liquidada. A porcentagem de consumidores que pelo menos consideravam a possibilidade de comprar produtos da Chrysler baixou, da noite para o dia, de 33 pa-ra 13 por cento.

Havia duas correntes de opinião a respeito de como deveríamos responder a essa crise. De maneira geral, nosso pessoal de RP sus-tentava que o silêncio era a melhor política. "Não façam nada", a-conselhavam. "Vai passar. A última coisa que desejamos é chamar a atenção para a nossa situação aflitiva."

Mas a Kenyon & Eckhardt, nossa agência de publicidade, dis-cordava veementemente. "A situação é crítica", dizia o pessoal, "e vocês têm que escolher. Podem morrer em silêncio ou gritando. Re-comendamos que morram gritando. Assim, sempre haverá uma chance de que alguém ouça o que vocês estão dizendo."

Seguimos o seu conselho. Pedimos à K & E para preparar uma campanha que garantisse ao público que seguiríamos em frente. Precisávamos fazer as pessoas entenderem duas coisas — primeiro, que não tínhamos a mínima intenção de sair do mercado; segundo,

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que estávamos fazendo o tipo de automóvel de que os Estados Uni-dos realmente precisavam.

Ao invés de anúncios comuns, com ilustrações e textos descre-vendo nossos novos modelos, apresentamos uma série de editoriais manifestando nosso ponto de vista a respeito das garantias de em-préstimo e dos planos a longo prazo da empresa. Ao invés de pro-mover nossos produtos, estávamos promovendo a empresa e seu fu-turo. Não estávamos divulgando nossa mensagem através dos ca-nais normais — era momento de divulgar nossa causa, e não nossos carros.

Ron De Luca, do escritório da K & E de New York, concebeu uma série de anúncios de página inteira explicando nossa situação. Antes de escrever cada um deles, ele ficava na minha sala durante cerca de uma hora para discutir. Então eu revia o texto dele, e con-tinuávamos o trabalho até os dois ficarmos satisfeitos.

Nestes anúncios, que a K & E chamava de "RP pagas", falamos tudo o que era necessário. Expusemos alguns dos maiores mitos a respeito da Chrysler: "Não fabricamos bebedores de gasolina. Não estamos pedindo esmolas a Washington. A concessão de garantias de empréstimo à Chrysler não constitui um precedente perigoso".

Os anúncios eram excepcionalmente honestos e francos. Ron adotou uma abordagem agressiva, que me agradou muito. Sabíamos muito bem o que o homem comum pensava da Chrysler e tentamos nos colocar no lugar dele e antecipar suas perguntas e dúvidas. Era absurdo ignorar a propaganda negativa. Ao contrário, tínhamos que enfrentá-la de cabeça erguida e substituir boatos por fatos.

Um desses anúncios tinha uma manchete em negrito que dizia o que muitos consumidores estavam imaginando: "Os Estados Uni-dos ficarão melhor sem a Chrysler?" Em outros anúncios, pergun-tamos — respondemos — algumas questões bem difíceis:

• Não é verdade que os carros da Chrysler fazem poucos qui-

lômetros por litro? • Será que os carros grandes da Chrysler são grandes demais? • A Chrysler não demorou demais para fazer carros pequenos? • A Chrysler não estaria fabricando o tipo de carro errado? • Será que a Chrysler está com problemas que ninguém conse-

gue resolver? • A administração da Chrysler será capaz de levantar a empresa?

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• A Chrysler já fez mesmo tudo o que podia por si mesma? • A Chrysler tem futuro? Esses anúncios eram excepcionais por mais uma razão. Deci-

dimos que todos deveriam ter a minha assinatura. Queríamos mos-trar ao público que havia começado uma nova era. Afinal de contas, o presidente executivo de uma empresa que está para quebrar tem que dar segurança às pessoas. Tem que dizer: "Estou aqui, eu existo e sou responsável por esta empresa. E para mostrar que isso é ver-dade, estou assinando embaixo".

Finalmente, poderíamos mostrar que havia alguma responsabi-lidade verdadeira na Chrysler. Colocando a minha assinatura nos anúncios, estávamos convidando as pessoas a me escreverem ex-pondo suas queixas e perguntas. Estávamos anunciando que aquela empresa enorme e complexa era dirigida por um ser humano que estava colocando seu nome e sua reputação em jogo.

A campanha foi um grande sucesso. Tenho plena certeza de que ela teve um papel fundamental no intenso esforço de convencer o Congresso a aprovar as garantias de empréstimo. A grande frus-tração da propaganda, na verdade, é que nunca se sabe realmente o que provoca a diferença na luta pelo apoio das pessoas. Mas ouvi-mos dizer que pessoas da administração Carter e do Congresso cor-riam de um gabinete para outro com aqueles anúncios na mão — furiosas ou satisfeitas, conforme o seu ponto de vista.

E não há dúvida de que os anúncios tiveram um impacto eficaz sobre a opinião pública. As pessoas olhavam as manchetes dos jor-nais, que diziam que estávamos quebrando. E então olhavam dentro do jornal e viam a nossa versão da história.

Ao mesmo tempo, trabalhando em outra frente, nosso escritório em Washington organizou um grande lobby de revendedores. Gru-pos de revendedores Chrysler e Dodge iam a Washington todos os dias. Wendell Larsen, nosso vice-presidente de Relações Externas, reunia-se com eles e lhes dizia quais os membros do Congresso que deviam procurar e o que deviam dizer a eles.

Os revendedores de automóveis em geral têm posses (ou pelo menos tinham) e tendem a ser membros ativos da comunidade; por isso, têm uma boa influência sobre seus representantes. Já que mui-tos são conservadores e republicanos, sua presença teve grande in-fluência sobre os deputados que discordavam de nós em termos ideo-

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lógicos. E muitos revendedores haviam feito contribuições para as campanhas eleitorais, o que um deputado nem sempre pode ignorar.

Quando você envia um grande grupo de revendedores de au-tomóveis a Washington, acontecem coisas muito interessantes. Ha-via até alguns revendedores de outras empresas que diziam que a concorrência era um bem para a indústria como um todo e que a Chrysler merecia uma oportunidade.

Para defender nossa causa, tivemos que forçar os membros do Congresso a pensar em termos humanos reais, e não em termos ide-ológicos. Enviamos a cada representante uma cópia da lista de to-dos os fornecedores e revendedores do seu distrito que faziam ne-gócio conosco. Mostramos as conseqüências efetivas que cada dis-trito sofreria se a Chrysler afundasse. Lembro-me de que só havia dois distritos, de um total de 535, que não tinham nenhum fornece-dor ou revendedor da Chrysler. Essa lista, que fez nosso problema bater à porta de cada um, teve um efeito espantoso.

E houve também Doug Fraser, que fez "pressão" por conta própria. Doug não admitia de forma alguma a falência. Sabia o que iria acontecer ao seu pessoal se a Chrysler fracassasse. E sabia que nós não estávamos mentindo.

Fraser fez um depoimento brilhante. Falou de forma enfática a respeito do custo em vidas humanas e sofrimento que acarretaria a não-aprovação das garantias. "Não vim aqui defender a Chrysler Corporation", disse ele à comissão. "Minha preocupação é com o terrível impacto que uma falência teria sobre os trabalhadores e su-as comunidades."

Fraser fez um trabalho incansável e eficaz, reunindo-se pesso-almente com muitos deputados e senadores. Ele também era amigo do vice-presidente Mondale e fez umas duas visitas importantes à Casa Branca.

Num certo momento, eu mesmo fui à Casa Branca encontrar-me com o Presidente. Carter não se envolveu no debate sobre a C-hrysler, mas apoiou a nossa causa. Durante a visita, disse-me que ele e Rosalynn tinham gostado muito dos meus comerciais na TV. Disse, brincando, que eu estava ficando tão conhecido quanto ele.

Carter entregou o problema da Chrysler ao Departamento do Tesouro, mas deixou claro que estava do nosso lado. Sem a ajuda do Executivo, o decreto jamais teria sido aprovado.

Depois que terminou o mandato, Carter foi me ver duas vezes. Está orgulhoso por ver que a Chrysler está progredindo. Acho que

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ele se sente um pouco o pai da criança. "De todas as coisas que fiz durante minha administração", ele me disse, "esta é uma das que re-almente acertamos ao fazer." Jimmy Carter teve seus erros, mas su-as realizações têm sido subestimadas.

Quando chegou a hora de votar, tínhamos muita gente do nosso

lado no Congresso. Ainda assim, o apoio de Tip CNeill foi funda-mental. Antes de começar a votação, pediu a palavra como presi-dente e falou como representante de Massachusetts. Numa defesa maravilhosa das garantias, lembrou o efeito que a Grande Depres-são teve sobre Boston, quando trabalhadores que perderam o em-prego tiveram que ganhar a vida pedindo às pessoas que pelo amor de Deus os deixassem trabalhar na remoção da neve. "Sempre lutei com vigor para defender uma centena de empregos", disse ele aos colegas. "Não é meio absurdo ficarmos aqui sentados discutindo as garantias quando há mais de meio milhão de famílias lá fora, esta noite, esperando o nosso veredicto?"

Tip usava a emoção pura para vender seu peixe na Câmara. Foi um dos nossos líderes em todo esse episódio. Quando o presidente da Câmara está ao seu lado, você já tem uma boa vantagem. Quan-do a votação acabou, a Câmara aprovou, com uma margem de dois para um (271 a 136), a concessão da ajuda necessária para reerguer a Chrysler.

A votação no Senado teve uma margem menor, 53 a 44, o que é comum nessas situações. A emenda foi aprovada pouco antes do Natal, e muitas famílias tiveram o que comemorar. Eu estava exaus-to e aliviado, mas não estava muito otimista. Muitas vezes, desde a minha ida para a Chrysler, tinha visto uma luz no fim do túnel. E muitas vezes, a luz era apenas mais um trem que vinha na minha di-reção. Eu sabia que muitas peças do quebra-cabeça ainda deveriam ser colocadas no lugar antes de vermos a cor do dinheiro que nos havia sido concedido.

A legislação exigia uma reestruturação na Chrysler, o que, de acordo com o secretário do Tesouro, G. William Miller, seria a mais complicada transação financeira da história dos negócios ame-ricanos. Eu ficava cansado só de pensar.

O ato criou um Conselho de Garantia de Empréstimos que po-dia fornecer até 1,5 bilhão de dólares em garantias de empréstimo nos próximos dois anos, quantia que deveria ser paga por nós até 1990. Mas havia uma série de condições:

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• Nossos credores deveriam fornecer mais de 400 milhões de dólares em dinheiro novo e 100 milhões de dólares na forma de concessão sobre empréstimos existentes.

• Os credores estrangeiros deveriam fornecer créditos adicio-nais de 150 milhões de dólares.

• Tínhamos que levantar 300 milhões de dólares adicionais a-través da venda de ativos.

• Os fornecedores deveriam fornecer pelo menos 180 milhões de dólares, 100 dos quais na compra de ações.

• Os governos de municípios e Estados que contavam com fá-bricas da Chrysler deveriam fornecer 250 milhões de dólares.

• Tínhamos que emitir 50 milhões de dólares em novas ações. • Os membros do sindicato deveriam fazer concessões de

462,2 milhões de dólares. • Os trabalhadores não-sindicalizados tinham que contribuir

com 125 milhões de dólares em cortes ou no congelamento dos salários.

Mais ainda — e pouca gente consegue imaginar o que isso sig-

nifica —, o governo tomou todos os ativos da Chrysler como garan-tia de pagamento. Tudo o que tínhamos — carros, imóveis, fábri-cas, equipamentos, e tudo o mais — foi registrado nos livros com o valor de 6 bilhões de dólares. Os avaliadores do governo estimaram o valor de liquidação dos nossos ativos em 2,5 bilhões de dólares. Na pior das hipóteses, o governo tinha direitos preferenciais. Se a-fundássemos, ele recuperaria 1,2 bilhão de dólares em empréstimos antes que qualquer credor pudesse fazer qualquer alegação.

Embora a estimativa de 2,5 bilhões de dólares fosse generosa, e o verdadeiro valor dos nossos ativos fosse apenas a metade, o go-verno ainda estava protegido. Se não tivéssemos cumprido nossos compromissos, o Conselho de Garantia de Empréstimos poderia ter liquidado nossos ativos e ainda ter um lucrinho. Em outras palavras, o governo não estava assumindo nenhum risco financeiro.

Algumas semanas após a aprovação do ato, os republicanos che-garam ao poder. Sua atitude foi: "Esse é um programa do governo Carter. Vamos honrar a letra da lei, e nada mais. É contra nossa ideo-logia. Se a Chrysler levar a melhor ficaremos em má situação. Não queremos que outras empresas criem idéias fantásticas na cabeça".

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Tivemos sorte, na hora de pedir ajuda, em contar com uma ad-ministração democrata, que dava mais importância às pessoas do que à ideologia. Os democratas geralmente agem assim. Lidam com trabalhadores, lidam com pessoas, lidam com empregos. Os repu-blicanos lidam com teorias ortodoxas de investimento.

Sei que estou generalizando. Sou o primeiro a admitir que, quando as coisas vão bem, quando ganho muito dinheiro, sempre apoio os republicanos. Mas desde que fui para a Chrysler, passei para o lado dos democratas. Em geral, sou a favor do partido do bom senso, e, quando as coisas vão mal, esse partido é, geralmente, o Partido Democrático.

Não tenho nenhuma dúvida de que, se a administração de 1979 fosse republicana, a Chrysler não estaria de pé. Os republicanos nem mesmo diriam "alô" para nós.

A Chrysler teria ido à falência e hoje os republicanos estariam escrevendo livros para descrever como salvaram a livre iniciativa. Não é apenas Reagan; a maioria dos republicanos teria dito: "Em-préstimos garantidos pelo governo federal? Você deve estar louco". Os republicanos simplesmente não conseguem pensar de outra ma-neira.

Se a nossa crise tivesse estourado três anos depois, quando a Ford e a GM também estavam com problemas e a International Harvester estava quebrando, nem mesmo os democratas teriam a-tendido ao nosso apelo. Haveria uma fila de mais de cinqüenta atrás de nós, e não poderiam atender a todos.

Assim, talvez até tenha sido bom a Chrysler ter ficado em apu-ros um pouco antes do que ficaria se tivesse tido uma administração mais enérgica, Se a nossa crise tivesse coincidido com a da Braniff e a da Pan Am, Washington poderia ter dito: "Lamento, rapazes. A fila já está grande demais".

Tenho certeza de que essas empresas pensaram em pedir ajuda ao governo. Afinal, seu pessoal não é louco. Mas elas logo entende-ram a mensagem. O que aconteceria se tivessem solicitado uma concessão como a da Chrysler?

Resposta: "Esqueça". No momento em que estou escrevendo estas palavras, já se

passaram quatro anos desde a concessão das garantias. Nesse perío-do, mantivemos centenas de milhares de pessoas a salvo de neces-sidades. Pagamos centenas de milhares de dólares em impostos.

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Preservamos a competição na indústria automobilística. Pagamos grandes juros ao Conselho de Garantia de Empréstimos. E o gover-no aproveitou bastante a venda das nossas fianças.

Diante disso, é preciso fazer uma pergunta de ordem filosófica: A nossa ida ao Congresso foi realmente uma violação do espírito da livre iniciativa? Ou o nosso sucesso subseqüente foi uma real ajuda à livre iniciativa neste país? Não creio que haja dúvida sobre a res-posta correta. Mesmo alguns dos nossos opositores de 1979 reco-nhecem que a idéia de conceder garantias de empréstimo à Chrysler foi boa.

Bem, é claro que há sempre os recalcitrantes, de direita e de esquerda, como The Wall Street Journal e Gary Hart — mas, que diabo, também não podemos converter todo o mundo!

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XX IGUALDADE DE

SACRIFÍCIOS

om a aprovação do Ato de Garantia de Empréstimos, tínhamos uma chance de lutar pela sobrevivência. E estou falando em "lutar" mesmo!

Nossa missão era o equivalente econômico da guerra. Embora ninguém estivesse sendo morto pela Chrysler, a sobrevivência eco-nômica de centenas de milhares de trabalhadores dependia da nossa capacidade de conseguir as várias concessões que o ato exigia.

Eu era o general na guerra pela salvação da Chrysler. Mas, cer-tamente não fiz tudo sozinho. A ação de que mais me orgulho é a coalizão que fui capaz de formar. Ela mostra o que a cooperação pode fazer por nós em momentos difíceis.

Comecei reduzindo meu próprio salário para 1 dólar por ano. Liderar é dar o exemplo. As pessoas sempre acompanham os míni-mos movimentos do líder. Não digo que elas invadam a privacida-de, embora algumas também o façam. Mas quando o líder fala, as pessoas ouvem. E quando o líder age, as pessoas observam. Assim, devemos ter cuidado com tudo o que dizemos e fazemos. E não a-tribuí a mim um salário de 1 dólar por ano para criar uma imagem de mártir. Fiz isso porque tinha que atacar o nó da questão. Fiz isso para que, quando fosse falar com Doug Fraser, presidente do sindi-

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cato, pudesse olhá-lo de frente e dizer: "É esta a colaboração que espero de vocês", e ele não pudesse me encarar e responder: "Seu filho da mãe, que sacrifício você fez?" Eis porque fiz isso: por mo-tivos frios e pragmáticos. Queria que nossos empregados e fornece-dores pensassem: "Posso seguir um sujeito que dá esse exemplo".

Infelizmente, a austeridade era uma idéia nova na Chrysler. Quando cheguei, ouvi todo tipo de histórias horrorosas a respeito da extravagância da administração anterior. Mas não fiquei impressio-nado. Afinal, eu vivi muitos anos com Henry Ford, que achava que a empresa era dele e que tinha poder suficiente para fazer o que lhe viesse à cabeça. Henry gastava quantias que fariam Lynn Town-send parecer um mendigo. Fazia parecer que o presidente da GM vivia de pensão da Previdência.

Embora o meu reduzido salário não me obrigasse a deixar de comer, causou grande impacto em Detroit. Mostrou que estávamos nisso juntos. Mostrou que só sobreviveríamos se déssemos um jeito de apertar o cinto. Foi um gesto dramático, que logo se difundiu.

Aprendi mais sobre as pessoas em três anos na Chrysler que em trinta e dois na Ford. Descobri que as pessoas suportam muita coisa quando estão todas no mesmo barco. Se todos sofrem da mesma maneira, é possível mover uma montanha. Mas a primeira vez que você descobre alguém fazendo corpo mole ou fugindo da sua parcela de responsabilidade, tudo pode desabar.

Chamo isso de igualdade de sacrifícios. Quando comecei a fa-zer sacrifício, vi outras pessoas fazerem o que era preciso. E foi as-sim que a Chrysler saiu do buraco. Não foram os empréstimos que nos salvaram, embora precisássemos desesperadamente deles. Fo-ram as centenas de milhões de dólares que nos foram dados por to-dos os envolvidos no problema. Foi como uma família se unindo e dizendo: "Recebemos um empréstimo do nosso primo rico e agora vamos provar que somos capazes de devolver cada centavo!"

O que aconteceu na Chrysler foi um dos exemplos mais magní-ficos de,cooperação e de democracia. Não estou falando de um en-sinamento bíblico. Estou falando da vida real. Passamos por isso. Funcionou. Foi como algo mágico, uma coisa que causa pasmo e reverência.

Mas nossa luta também teve um lado negativo. Para reduzir as despesas, tivemos que demitir muita gente. Foi como na guerra: ga-nhamos, mas meu filho não voltou. Houve muita agonia. Muita gente se destruiu, tirou os filhos da escola, muitos começaram a be-

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ber ou se divorciaram. No final, preservamos a empresa, mas às custas de um enorme desgaste de grande número de seres humanos.

Nossa tarefa foi facilitada pelo fato de sabermos que grande parte dos Estados Unidos estava do nosso lado. Já não éramos os gatos gordos pedindo auxílio à Previdência Social. Com o fim das audiências no Congresso, esta parte da saga estava encerrada. Na-quele momento, nossa campanha publicitária estava começando a apresentar resultados. Éramos os coitados engajados numa batalha heróica, e a opinião pública respondeu bem a isso.

Muitos desconhecidos nos escreveram, dizendo de centenas de maneiras diferentes que estavam conosco, que a perda de Henry Ford era o ganho da Chrysler. O povo falou muito e falou muito bem. Compreendeu o que estávamos fazendo.

Tivemos também a ajuda de pessoas de destaque. Bob Hope me procurou. Disse-me que, enquanto estava na massagem, viu um dos meus comerciais na televisão e que queria nos ajudar.

Encontrei Bill Cosby num jantar em Las Vegas. Naquela mes-ma noite, ele me procurou por telefone, no hotel, à uma da manhã.

Eu disse: "Ô rapaz, você me acordou". Ele respondeu: "Caramba, estamos com pressa. Ficamos acor-

dados a noite toda. Bem, eu admiro o que você vem fazendo e gosto do que tem feito pelos negros. Gostaria de fazer algo por você. Ga-nho um monte de dinheiro e há muita gente passando fome". Ele foi fazer um show em Detroit para nossos empregados — para 20.000 deles. Depois pegou um avião e foi embora. Nunca pediu um centa-vo. Nunca pediu um carro. Só queria nos ajudar e manifestar o seu apoio.

Certa noite, Pearl Bailey me procurou, numa reunião de diabé-ticos no centro de Detroit. Disse que precisava falar comigo. Cum-primentou-me por eu estar tentando manter empregos e por dar es-perança às pessoas. Ao invés de fazer um concerto, ela desejava fa-zer uma palestra na fábrica da Jefferson Avenue. Fez uma palestra impressionante sobre o patriotismo e a necessidade de sacrifício. Mas, enquanto ela estava falando, dois provocadores disseram: "É fácil falar, Pearl, você é rica!"

De repente, quase que tudo virou uma enorme confusão. Tive que levantar e encerrar a reunião. Foi um grande gesto da parte de-la, e eu realmente o apreciei.

Frank Sinatra também queria colaborar. Ele me disse: "Lee, se você está trabalhando por um dólar, eu farei o mesmo". Fez alguns

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comerciais para nós e, no segundo ano, oferecemos a ele algumas ações. Gostaria que Frank tivesse aceito, pois teria feito um ótimo negócio.

Houve muitos casos desse tipo. Naquele período, pude conhe-cer o lado bom das pessoas. Eu nunca tinha tido oportunidade de verificar como são capazes de agir quando as coisas vão mal. Cons-tatei que a maioria se esforça muito. Não fica pensando em obter vantagens, embora, ao que parece, a imprensa acredite que a ganân-cia é a única força motivadora nos negócios. Em geral as pessoas, quando solicitadas, atendem — desde que não lhes seja reservada apenas a parte podre da coisa.

Aprendi também que as pessoas podem agir com muita sereni-dade numa crise. Aceitam sua sina. Sabem que a parada é dura, mas cerram os dentes e seguem em frente. Observar essas coisas foi a parte boa — talvez a única — de tudo isso.

Depois que cortei meu próprio salário, comecei a mexer com

os dos executivos. Cortamos o plano de incentivo de compra de a-ções, em que a empresa pagava a metade. Cortei seus salários em dez por cento, o que nunca havia acontecido na indústria automobi-lística. Cortamos salários a torto e a direito, exceto nos níveis mais baixos — não cortamos nada das secretárias. Elas mereciam cada centavo que ganhavam.

Os executivos aceitaram tudo muito bem. Eles liam jornal. Sa-biam que o jogo poderia ser interrompido a qualquer momento. Num momento como aquele, não há lugar para filigranas. Você só tem olhos para uma coisa: o caminho que leva à salvação. Nada faz você parar e você continua na base da adrenalina.

Esse estado começou por mim, mas se infiltrou por todos os níveis da empresa. Pelo bem da nossa causa, eu podia até pedir ao pessoal para pular pela janela — tudo porque havia a clara percep-ção de que o sofrimento de todos nós era o mesmo.

Depois de me entender com os executivos, foi a vez dos sindi-catos. Nessa tarefa contei com a ajuda de um verdadeiro profissio-nal, Tom Miner, encarregado de Relações Industriais. Hoje, o mun-do dos negócios considera as concessões dos sindicatos como ponto pacífico. Mas, naquela época, nosso trabalho era pioneiro.

O sindicato sempre considerou os executivos como gatos gor-dos e os trabalhadores como os que arcavam com todos os proble-

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mas. Falei: "Bem, agora vocês estão vendo uns gatos gordos bem magrinhos, certo? E o que vocês têm a dizer?"

A partir daquele momento, tornei-me amigo íntimo deles. O sindicato me adorava. Eles me adotaram. Diziam: "Esse sujeito vai nos levar para a terra prometida".

Não estou dizendo que foi fácil. Tive que me mostrar firme. Tive que falar duro. "Pessoal", eu disse, "estou com uma arma a-pontada para a cabeça de vocês. Tenho centenas de empregos dis-poníveis a dezessete dólares por hora. Não tenho nenhum a vinte. Portanto, é bom vocês caírem em si."

Um ano depois, quando as coisas ficaram piores ainda, tive que procurá-los mais uma vez. Numa noite terrível de inverno, às 10 ho-ras, falei com a comissão de negociação. Foi um dos discursos mais breves que já fiz na vida: "Vocês têm até amanhã de manhã para decidir. Se vocês não me ajudarem, vou arrancar os seus miolos. Declaro falência de manhã e vocês ficam sem emprego. Vocês têm oito horas para mudar de idéia. Está nas suas mãos".

Não é a forma mais adequada de negociar, mas às vezes não temos alternativa. Fraser disse que aquele foi o pior acordo que ele teve de endossar. Pior do que isso, ele acrescentou, só a única alter-nativa: ficar sem emprego.

Nossos trabalhadores fizeram grandes concessões. De imedia-to, ficaram com 1,15 dólar a menos por hora no bolso. Ao longo do ano e meio de vigência do acordo, essa quantia chegou a 2 dólares por hora. Num período de dezoito meses, o trabalhador médio da Chrysler recebeu cerca de 10.000 dólares a menos.

O sindicato se acostumou ao meu salário de 1 dólar por ano e me atacou quando não permaneci com o mesmo salário no segundo ano. Na verdade, ficou louco da vida com isso. Mas eu nunca vi a cúpula da Ford e da GM cortar seus próprios salários depois de en-trar em acordo com o sindicato.

Depois de uma negociação com o sindicato, em que este con-cordou em desistir de aumentos salariais e de benefícios num valor global de 2,5 bilhões de dólares, o que fez a GM? Roger Smith, presidente da GM, reduziu seu salário em 1.620 dólares por ano! Para juntar o insulto à injúria, no mesmo dia em que o sindicato as-sinou o acordo, que incluía concessões significativas quanto aos sa-lários, a GM anunciou um plano novo e mais vantajoso de gratifi-cação para sua cúpula. É uma empresa que não entende nada mes-mo de igualdade de sacrifícios.

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Pela primeira vez em muitos anos, a atitude dos trabalhadores da Chrysler começou a melhorar. Quando os trabalhadores do Canadá entraram em greve, em 1982, não sabotaram os carros nem quebra-ram os equipamentos da fábrica, o que antes era rotina. Queriam ga-nhar mais, mas não queriam fazer nada que prejudicasse a empresa.

Um dos dispositivos das garantias de empréstimo era um plano de compra de ações pelos trabalhadores. Este plano custou 40 mi-lhões por ano durante quatro anos. Mas era válido em termos eco-nômicos. Se os operários têm participação nos lucros, ficam muito mais motivados para fazer um bom trabalho (cada um deles tem, atualmente, quase 5.600 dólares em sua conta — uma boa quantia).

Quanto a esse aspecto, a turma da livre iniciativa também ficou louca da vida. E mais uma vez eu estava preparado para responder. Disse que os grandes fundos de pensão deste país possuem uma grande quantidade de ações. Têm uma boa parcela da GM e de muitas outras empresas de capital aberto. Assim, o que há de errado em ad-mitir a participação dos trabalhadores enquanto estão trabalhando?

A turma do laissez-faire acha que esse é o primeiro passo para se chegar ao socialismo. Mas eu não vejo nada de mais no fato de os trabalhadores terem uma parte do capital da empresa. Isso certa-mente não atrapalha a boa administração. Que diferença faz se as ações da empresa estão nas mãos de um corretor de Wall Street ou nas mãos de Joe Blow, que trabalha na linha de montagem? Qual deles pode fazer mais por mim? Aliás, hoje os nossos trabalhadores possuem 17 por cento das ações da empresa.

Conseguimos também que o sindicato ficasse do nosso lado na questão das faltas ao trabalho. Há sempre gente que costuma faltar ao trabalho, mas quer receber tudo direitinho. Junto com o sindica-to, estabelecemos normas para punir os faltosos crônicos.

Naquele período, tivemos que fechar várias fábricas. Muitas pessoas foram dispensadas. Quando alguém trabalha na mesma fá-brica há vinte ou trinta anos, cria-se uma ligação emocional. Em al-guns casos, os pais da pessoa também trabalharam no mesmo lugar. E, de repente, a pessoa descobre que as portas da fábrica vão ser fe-chadas.

Houve muitos protestos contra o fechamento das fábricas. Mas o sindicato entendeu que tínhamos que tomar medidas drásticas.

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O pessoal aceitou essas medidas porque sabia que estávamos pedindo concessões aos fornecedores, executivos e bancos.

Durante o ano de 1980, fui a cada uma das fábricas da empresa para falar diretamente com os trabalhadores. Numa série de comí-cios, agradeci-lhes por se manterem conosco naqueles tempos difí-ceis. Disse-lhes que, quando as coisas melhorassem, tentaríamos equiparar outra vez seus salários aos dos trabalhadores da Ford e da GM, mas que isso não poderia acontecer da noite para o dia. Dei-lhes o meu recado, e eles apuparam e gritaram; alguns aplaudiram, outros vaiaram.

Também fiz reuniões com os supervisores de fábrica. Indaguei se alguém queria me perguntar alguma coisa. Nem sempre estáva-mos de acordo quanto às respostas, mas o fato de termos a chance de conversar já era um avanço.

Este é o mais alto nível de comunicação: o presidente conver-sando com o pessoal em pé de igualdade. Todos ouvem e todos par-ticipam. Gostaria de fazer isso com mais freqüência. Fiz muito na Ford, mas naquela época não era difícil — as coisas estavam cor-rendo muito bem.

Na Chrysler, contudo, eu enfrentava uma crise depois da outra. O desgaste era muito grande. E é cansativo passar o dia inteiro a-pertando as mãos de centenas de pessoas. Inevitavelmente, alguns dos trabalhadores da linha de montagem querem vir cumprimentá-lo, ou lhe dar um presente, ou dizer que estão rezando por você porque lhes salvou o emprego.

Nessa época, Lillian Zirwas, que trabalhava na manutenção da fábrica da Lynch Road, de Detroit, escreveu um artigo no jornal da empresa. Incitava seus companheiros a se manterem erguidos. Ela lhes dizia: "Talvez agora, que estão sendo mandados embora, vocês tenham bastante tempo para pensar nos momentos em que fizeram corpo mole ou nos momentos em que ficaram perdendo tempo com bobagens".

Escrevi:lhe uma carta dizendo o quanto tinha gostado do artigo e convidei-a a vir ao meu escritório. Ela veio e trouxe um bolo que havia feito. Lembro-me de que o bolo tinha uma cobertura de cho-colate e que um dos ingredientes era cerveja. Foi o melhor bolo que já comi. Minha mulher escreveu a Lillian Zirwas pedindo a receita.

É verdade que nem todos seguiram o seu exemplo. Não é fácil ficar contente com um corte de 2 dólares por hora no salário. Mas não é bem verdade que esse corte colocava os trabalhadores da C-

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hrysler 2 dólares abaixo dos seus companheiros da Ford e da GM conforme afirmavam os meios de comunicação.

Deve-se isso ao fato de a Chrysler, ao contrário da Ford e da GM, ter um número excepcionalmente grande de aposentados. Para começar, tínhamos uma força de trabalho de idade maior do que a média. Além disso, tivemos que demitir muita gente. A empresa ti-nha que pagar a todos os trabalhadores demitidos pensões, assistên-cia médica e prêmios de seguro de vida. E são os trabalhadores ati-vos que devem produzir o dinheiro que paga essas despesas.

Em tempos normais, isso não é problema. Para cada aposenta-do, há pelo menos dois trabalhadores ativos, gerando o suficiente para cobrir a pensão e outros custos. Mas, em 1980, estávamos com uma taxa ridícula e sem precedentes de noventa e três trabalhadores na ativa para cada cem aposentados. Em outras palavras, tínhamos mais gente em casa do que nas fábricas! Conseqüentemente, cada trabalhador da Chrysler tinha sobre seus ombros o encargo econô-mico de sustentar a si mesmo — e a mais alguém.

Esse é mais um aspecto em que os problemas da Chrysler refle-tem o que está acontecendo em nossa sociedade. É o mesmo pro-blema que está acabando com a Previdência Social. As pessoas se aposentam cada vez mais cedo, vivem mais tempo e não existe uma base de trabalhadores capaz de sustentá-las. Embora nossos traba-lhadores tivessem sofrido uma redução de 2 dólares por hora no pa-gamento, por causa do grande número de aposentados, a redução de custos de mão-de-obra não correspondia a esse valor. Alguns traba-lhadores não tinham essa visão. Sua atitude era: "O problema não é meu. Não sou responsável pelo sustento do meu irmão".

Minha resposta era: "Espere aí. Seu sindicato se baseia na soli-dariedade eterna. Você paga pelos fundos de pensão e há muita gente em casa agora, o que é muito ruim. A indústria está indo por água abaixo. A Chrysler era grande demais e tivemos que reduzi-la a uma dimensão mais adequada. Alguém tem que pagar esses cus-tos. Não podemos renegar os planos de pensão".

Antes mesmo de o sindicato ter feito qualquer concessão, con-videi Doug Fraser a participar do nosso conselho de administração. Apesar das afirmações da imprensa, a indicação de Fraser não foi parte de um pacote definido num acordo com o sindicato.

E verdade que há muitos anos o sindicato reivindicava uma re-presentação dos trabalhadores no conselho. Mas isso havia-se tor-

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nado uma espécie de ritual. Não creio que esperassem consegui-lo. Coloquei Doug Fraser no conselho porque sabia que ele poderia dar uma contribuição especial. Ele é esperto, é politicamente ponderado e diz o que pensa. Como membro do conselho, Doug descobriu di-retamente o que estava acontecendo na Chrysler, do ponto de vista da administração. Viu como nossos fornecedores estavam contribu-indo e que a nossa sobrevivência não estava apenas nas costas dos trabalhadores. Descobriu que nossos demonstrativos de lucros e perdas eram reais e que o lucro não era um trabalho sujo. Aprendeu e compreendeu tanto que alguns trabalhadores passaram a conside-rá-lo um vira-casaca, pois ele lhes disse a verdade quando estáva-mos muito fracos para suportar uma greve.

Ele tem sido muito útil. Quando uma fábrica é fechada, ele nos diz como minimizar o sofrimento e o desequilíbrio que acompa-nham essas medidas. Ele é presidente da nossa comissão de políti-cas voltadas para o público. Também faz parte da comissão de as-sistência médica, juntamente com Joe Califano — ex-secretário do Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar Social da Adminis-tração Carter —, Bill Milloken, ex-governador de Michigan, e eu. Provavelmente sabemos sobre saúde tanto quanto qualquer grupo de quatro pessoas do mundo. Nós quatro representamos a adminis-tração, o governo federal, o governo estadual e o trabalho. Ao longo dos anos, fomos nós que tomamos as decisões que nos levaram à confusão que é a assistência médica do país. Foram os quatro seto-res que representamos que fizeram o sistema de assistência médica virar uma porcaria. Por isso, é a combinação desses quatro setores que poderá corrigir o que está errado.

É claro que, quando levei Doug Fraser para o conselho, a co-munidade empresarial ficou apavorada. O pessoal dizia: "Você está colocando uma raposa no galinheiro. Você perdeu a cabeça!"

"Esperem um pouco", disse eu. "Por que é certo ter banqueiros no conselho, quando se devem 100 milhões de dólares aos banquei-ros, e é errado ter um trabalhador? Por que é certo ter fornecedores no conselho? Não haverá aí também um conflito de interesses?"

Até então, nenhum representante dos trabalhadores havia parti-cipado do conselho da administração de uma grande empresa ame-ricana. Mas isso é muito comum na Europa. E no Japão também é assim. Então, qual é o problema? O problema é que os presidentes do conselho nos Estados Unidos são, em geral, prisioneiros da ideo-

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logia. Querem manter-se puros. Ainda acham que o trabalhador é necessariamente inimigo natural, inimigo mortal do administrador.

Essa é uma idéia ultrapassada. Quero que os trabalhadores co-nheçam intimamente a empresa. Graças a Deus os velhos tempos já se foram. Muitos não acreditam nisso, mas logo vão descobrir. O fu-turo econômico do país depende de uma cooperação cada vez maior entre o governo, os sindicatos e a administração. Só trabalhando jun-tos poderemos nos manter atuantes no mercado internacional.

Não foram só os homens de empresa que se opuseram à indica-ção de Fraser. Muitos membros do sindicato foram contrários. Te-miam que a presença de Fraser no conselho pudesse comprometer sua habilidade, como líder, de extrair até a última gota de sangue das empresas. A posição deles sempre foi: tire tudo o que puder, porque a empresa nunca fará nada pelo bem do trabalhador, a não ser que seja forçada a isso pela violência ou pelo derramamento de sangue.

Para que esse tipo de visão mude, é preciso haver pessoas razo-áveis, que possam discutir a idéia de que haja distribuição dos lu-cros apenas quando houver lucros a serem distribuídos, e aumento salarial apenas quando houver aumento de produtividade. Talvez ainda não seja o momento dessa concepção. Mas sua hora terá que chegar pois, se continuarmos a perder tempo com bobagens e a lutar uns contra os outros por uma fatia maior de torta enquanto a torta está diminuindo a cada dia, os japoneses continuarão a nos almoçar.

Quando eu estava na Ford, os trabalhadores e a administração encontravam-se apenas a cada três anos, quando chegava o momen-to de negociar um novo contrato. E a cada três anos íamos para a reunião com um pé atrás. Você nem conhecia o sujeito que estava à sua frente, e já pensava: "Não gosto dele, é meu inimigo".

É como uma troca de espiões entre dois países. Você odeia o lado adversário, mesmo sabendo que a troca é uma medida positiva.

Estou muito satisfeito por ter posto Doug Fraser no conselho, pois ele é um sujeito excelente. Eu o colocaria em qualquer conse-lho de que participasse. Ele é realmente muito bom. Sabe negociar. Sabe assumir um compromisso. Sabe a diferença entre um bom e um mau negócio. Ele é tão bom que certa vez o recomendei ao pre-sidente Reagan como negociador do governo.

Se Doug Fraser estivesse no conselho de Lynn Townsend, tal-vez a Chrysler não tivesse comprado as piores empresas da Europa. Algumas dessas compras teriam sido deixadas de lado diante das

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perguntas de um homem ousado: "Por que estamos fazendo isso? Vale realmente a pena?"

Além disso, o que temos a esconder do sindicato? O que que-remos que os trabalhadores não saibam? Precisamos construir um carro melhor por um preço menor. E quem mais pode nos ajudar a atingir esse alvo senão o dirigente do sindicato?

Sempre que fui questionado por ter colocado Fraser no conse-lho, apresentei meu argumento básico: "Por que vocês ficaram tão contrariados? De qualquer forma, só terão a ganhar. Se for um erro, aprenderão a não tentar repeti-lo. Poderão comentar o caso no clube de campo, e dizer: 'Como Iacocca foi burro!' Mas, se der certo, en-tão eu terei sido a cobaia e vocês me felicitarão por ter aberto o ca-minho. Alguns de vocês poderão até tirar algum proveito disso!"

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XXI A PROVA DE FOGO:

OS BANCOS.

enhum grupo ligado a nós achava fácil fazer concessões. Mas, uma vez que entendiam a gravidade da situação, e se convenciam de que os outros também estavam fazen-do a sua parte, todos logo se dispunham a contribuir.

Todos... menos os bancos. Foi mais difícil conseguir 655 milhões de dólares em concessões dos nossos quatrocentos credores bancá-rios do que conseguir 1,5 bilhão de dólares de garantias de emprés-timo de todo o Congresso americano. Comparadas às negociações com os bancos, as audiências no Congresso foram brincadeira.

Fiquei decepcionado com a atitude dos bancos, mas nem um pouco surpreso. Durante as sessões na Câmara e no Senado, os banqueiros tiveram uma atitude bastante negativa. Walt Wriston, diretor do Citibank, Tom Clausen, presidente do Bank of America, e Pete Peterson, diretor de Lehman Brothers, testemunharam contra as garantias. Peterson até se deu ao trabalho de comparar nossa si-tuação ao Vietnã, sugerindo que a Chrysler poderia representar um pântano interminável.

Tive alguns encontros tensos com Peter Fitts, representante do Citibank, e com Ron Drake, do Irving Trust. Fitts e Drake eram homens de ação, especialistas em reestruturações financeiras. Sua

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atitude geral era de que nós, da Chrysler, éramos uns tontos que não sabiam o que estavam fazendo. Eles são pessoas que não se preocu-pam com empregos ou investimentos. A única coisa que lhes inte-ressa é o retorno do seu capital.

A exemplo de quase todo mundo no setor bancário, queriam que pedíssemos falência. Mas eu resisti. Fiz o que pude para con-vencê-los de que, com a igualdade de sacrifícios e com a nossa no-va equipe administrativa, a Chrysler conseguiria dar a volta por cima.

Ron Drake e eu tivemos algumas discussões pesadas, mas de-pois aconteceu uma coisa engraçada: hoje, ele é meu conselheiro fi-nanceiro particular na companhia Merrill Lynch. Em 1980 nós che-gamos a nos odiar, mas também passamos juntos pelo inferno e a-cabamos nos tornando bons amigos.

Quando o Ato de Garantia de Empréstimos foi aprovado, no fi-nal de 1979, a Chrysler Corporation e a Chrysler Financial, nosso ramo financeiro, estavam em débito com mais de quatrocentos ban-cos e companhias de seguro, num total de mais de 4,75 bilhões de dólares. Os empréstimos se acumularam anos a fio, durante os quais nossos banqueiros devem ter perdido muitas noites de sono. Ne-nhum deles jamais pareceu preocupado com a saúde da empresa, embora os sinais do desastre fossem evidentes.

A Chrysler havia sido um filão para os banqueiros, e ninguém quis olhar os dentes de um cavalo dado. Durante mais de cinqüenta anos, a Chrysler fez empréstimos altíssimos nos bancos sem nunca deixar de fazer um pagamento.

Tradicionalmente, a Chrysler era uma empresa muito audacio-sa, que pagava dividendos generosos e fazia grandes empréstimos junto aos bancos — o que pode ter sido bom para os bancos, mas nem sempre o foi para a Chrysler. Quando uma empresa é muito audaciosa, tudo é exagerado. Os bons tempos são, por isso, melho-res — mas os tempos ruins são muito piores.

Isso significava também que o nosso crédito nunca foi tão bom quanto o da Ford ou da GM. Em resultado, sempre tivemos que pa-gar altos juros sobre o capital que tomávamos emprestado. Ao con-trário da General Motors, que é suficientemente grande e lucrativa para funcionar como seu próprio banco, a Chrysler tinha sido obri-gada a fazer empréstimos aos juros do mercado. E os bancos não ti-nham do que se queixar.

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Nos anos das vacas gordas, os bancos estiveram sempre do nosso lado. Mas, nos anos da crise, desapareceram rapidamente. Como bons republicanos conservadores, os banqueiros desconfia-vam do Ato de Garantia de Empréstimos. Como boa parte dos em-préstimos era para a Chrysler Financial e não para a Chrysler Cor-poration, imaginavam que, se nos enquadrássemos no Capítulo II, eles ainda poderiam sair ganhando.

Mas ainda iriam passar por um grande susto. No final de 1979, Jerry Greenwald pediu a Steve Miller e a Ron Trost, um especialis-ta em falências, de Los Angeles, que preparassem um "protocolo de liquidação". O documento deixava claro que não havia diferença essencial entre os empréstimos feitos à Chrysler Corporation ou à Chrysler Financial. No caso de uma falência, todos os empréstimos ficariam subjudice durante uns cinco ou dez anos e os bancos per-deriam uma porcentagem significativa do investimento. E sob um artifício permitido pela lei de Michigan, as taxas de juros dos em-préstimos pendentes cairiam para 6 por cento ao ano, até que a questão fosse resolvida. Não demorou muito para os bancos perce-berem que era de grande interesse para eles a garantia das conces-sões que nos manteriam em operação.

Mesmo assim, estavam muito menos propensos do que nossos fornecedores e trabalhadores a aceitar um acordo — por um lado, porque sua sobrevivência não dependia da nossa recuperação; por outro, porque o número de bancos envolvidos era enorme. Quando a Lockheed recebeu garantias federais de empréstimo em 1971, ape-nas vinte e quatro bancos estavam envolvidos e todos eram ameri-canos. Nossos bancos, contudo, estavam espalhados pela maioria dos cinqüenta Estados — e pelo mundo. Entre eles estavam desde o Manufacturers Hanover Trust, de New York, a quem devíamos 260 milhões de dólares, até o Twin City Bank de Little Rock, Arkansas, a quem devíamos meros 78 mil dólares. Devíamos a bancos de Lon-dres, Toronto, Ottawa, Frankfurt, Paris, Tóquio — e até do Teerã.

Cada banco tinha um programa de trabalho. O Manufacturers Hanover, conhecido no mundo dos negócios como Manny Hanny, estava ligado à Chrysler há muitos anos. Lynn Townsend tinha par-ticipado do seu conselho durante nove anos e dois dos presidentes do Manny Hanny tinham sido do nosso conselho. Mais de uma vez eles nos ajudaram em tempos difíceis. John McGillicuddy, atual presidente geral, havia feito para a Chrysler um acordo de crédito rotativo da ordem de 455 milhões de dólares. Além disso, havia tes-

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temunhado no Congresso a favor das garantias governamentais. "A-cho que a Chrysler deve sobreviver", disse ele à comissão. "Não sou categoricamente contra a assistência governamental em todos os casos e não acho que seu emprego esporádico seja uma ameaça ao sistema da livre iniciativa."

John McGillicuddy foi um dos nossos santos patronos. Manny Hanny era o nosso principal credor e McGillicuddy levou seus co-legas a aceitarem nosso pacote de concessões.

Outro defensor foi G. William Miller, secretário do Tesouro. Atestou diante da comissão da Câmara que a Chrysler era um caso excepcional e que as garantias de empréstimo eram uma boa idéia. Miller foi duro com os bancos. Achava que eles tinham que assumir suas perdas e curar suas feridas.

Mas, no Citibank, Walter Wriston estava totalmente contra as garantias. Como banqueiro mais influente do país, Wriston foi nos-sa ave de mau agouro. O Citibank tinha certeza de que iríamos à fa-lência e não viam a hora de receber seus quinze cents por dólar — o acordo que havíamos proposto. (Estávamos oferecendo também mais quinze cents em ações preferenciais.) O Citibank parece gostar de sua reputação de osso duro de roer. Sempre que pôde, fez ques-tão de colocar uma pedra no nosso caminho.

O conflito entre o Citibank e o Manny Hanny era, entretanto,

apenas a ponta do iceberg. Nossos credores incluíam tanto bancos riquíssimos quanto pequenos bancos locais, bancos nacionais e es-trangeiros e ainda algumas companhias de seguro. Havia emprésti-mos à Chrysler Corporation, à Chrysler Canadá e à Chrysler Finan-cial. Havia ainda empréstimos a várias subsidiárias estrangeiras e cadernetas de crédito contra cobranças futuras.

Para piorar, tínhamos empréstimos pendentes seguindo as mais variadas taxas de juro. Havia empréstimos a juros baixos, com taxa fixa de 9 por cento. E havia empréstimos a juros altos, com taxas variáveis conforme a Prime Rate, que oscilavam de 12 por cento em janeiro, quando começamos a tratar com os bancos, a 20 por cento em abril, quando fizemos um acordo, caindo para 11 na época em que o acordo final foi firmado.

Havia bancos cujas linhas de crédito estavam abertas integral-mente, e outros com abertura parcial. Havia empréstimos vencidos há seis meses, como um de 5 milhões de dólares, tomado a um ban-co espanhol em julho de 1979, e que devia ter sido pago noventa

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dias depois. E outros com prazos maiores, incluindo alguns de em-presas de seguro, que só venceriam em 1995.

Naturalmente, havia muita tensão e divergência entre os bancos quanto à solução mais acertada. De modo geral, os bancos não esta-vam querendo comprometer-se. Os seus maiores conflitos não eram com a Chrysler, mas entre eles mesmos. Cada um tinha uma razão para imaginar que algum outro banco deveria assumir o peso das concessões.

Os bancos americanos diziam: "Os bancos estrangeiros que vão para o inferno". E eu mal fazia idéia de que os grandes bancos ame-ricanos estavam preocupados, de fato, com os seus empréstimos ao México, à Polônia e ao Brasil. Com todas as prorrogações e falta de pagamento dos seus empréstimos internacionais, os grandes bancos americanos agora estão passando pelos mesmos problemas da C-hrysler. Mas, ao contrário do que aconteceu conosco, eles têm um tio rico que os tira do apuro — sem o alarde e a publicidade que nos cercou.

Há pouco tempo, quando o México necessitou de um bilhão de dólares para evitar o não-pagamento de empréstimos a bancos de New York, Paul Volcker, do FED, limitou-se a dar-lhes um cheque, num fim de semana. Isso é que eu chamo de ação entre amigos em nome da fraternidade dos bancos. Não houve audiências nem tenta-tivas de impor restrições. Não houve penalidades impostas aos ban-cos. E, é claro, esse um bilhão de dólares saiu diretamente do bolso dos contribuintes.

Os bancos certamente não gostaram da idéia de garantias de empréstimo para a Chrysler. Mas garantias a favor deles é outra coisa. É claro que cometeram muitos erros ao garantir empréstimos a outros países, mas o Fundo Monetário Internacional os tirou do aperto. Os bancos queriam que cortássemos os salários dos executi-vos, que não distribuíssemos dividendos e tudo o mais. Mas não ve-jo ninguém repreendê-los por terem feito maus empréstimos. Eu gostaria de ser o cara decidido que pedisse ao Citicorp para come-çar a não pagar dividendos e que pedisse aos seus executivos que aceitassem cortes de salário!

Há uma orientação engraçada no Federal Reserve Board — e-les são só banqueiros, não homens de negócios. Se um banco afun-da por ter tomado decisões erradas, recebe atenção imediata. Dois bancos pequenos afundam em Oklahoma, e logo vem Paul Volcker falando de uma crise de liquidez e suspendendo as restrições refe-

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rentes ao uso do dinheiro público. Mas quando a Chrysler e a Inter-national Harverster, duas empresas com quase um milhão de em-pregos, estão afundando, é o velho espírito da livre iniciativa que entra em cena.

Não é bem isso. Trata-se da adoção de dois pesos e duas medi-das, o que está completamente errado.

Enquanto isso, os bancos estrangeiros também tinham suas

queixas. Os bancos japoneses diziam: "Veja, quando há um pro-blema no Japão, os bancos nacionais cobrem a dívida e os bancos estrangeiros recebem seus pagamentos. Esse problema é americano — os bancos americanos que o resolvam".

Os bancos canadenses diziam: "Não vamos deixar que os ame-ricanos nos digam o que devemos fazer. Já fomos levados para mui-to longe ao sabor da corrente".

O governo canadense apoiou essa posição. Em troca de em-préstimos garantidos pelo governo, o Canadá queria que déssemos garantias de manter um nível fixo de empregados contratados.

Os canadenses se sentiram como o irmão caçula da família, que recebe todas as roupas usadas dos irmãos mais velhos. Estávamos construindo veículos de tração traseira no Canadá — nosso furgão e o New Yorker. Naquela época, parecia que esses carros eram uma raça em extinção. No entanto, acabamos chegando a um acordo. Ao invés de números absolutos, demos aos canadenses uma percenta-gem dos nossos empregos na América do Norte e estabelecemos que o nível seria de 11 por cento. Essa promessa acabou sendo fácil de cumprir. Como os Estados Unidos nunca elaboraram uma políti-ca energética, assim que o preço da gasolina baixou, as vendas des-ses carros maiores dispararam. Num certo momento, os trabalhado-res canadenses constituíam 18 por cento dos empregos da Chrysler na América do Norte.

Os bancos europeus diziam: "Não vamos acompanhar vocês. Lembram-se da Telefunken?" Uns dois anos antes, o governo ale-mão havia elaborado um plano de recuperação para a Telefunken, mas os bancos americanos tiraram o corpo fora, deixando aos ban-cos alemães a tarefa de financiar tudo. Como aconteceu com os ja-poneses, a posição dos bancos alemães era: "O problema é dos ame-ricanos. Os bancos de vocês é que devem assumir tudo".

Quando perceberam que os bancos estrangeiros estavam contra eles, os bancos americanos se uniram. Sua posição passou a ser a

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mesma que tínhamos: "Assim não dá, estamos todos juntos neste negócio. Caso haja falência, a justiça vai nos tratar do mesmo jei-to". Estavam começando a perceber que a única maneira possível de resolver o problema era pedir contribuições razoáveis e justas de todos os bancos envolvidos.

Mas ainda havia problemas. Os bancos menores diziam: "New York que vá para o inferno! Nossos empréstimos à Chrysler consti-tuem um percentual maior dos ativos do que o percentual dos em-préstimos dos grandes bancos de New York. Por isso, é melhor que as concessões tenham como base o tamanho do banco".

Para induzir os bancos a fazerem as concessões de que precisá-vamos, oferecemos um pequeno estímulo: 12 milhões de ações em fiança, válidas até 1990, e que poderiam ser resgatadas quando as ações alcançassem 13 dólares. Quando a Comissão de Garantia de Empréstimos soube disso, pediu um acordo semelhante, com base na teoria de que eles também eram credores, com uma quantia cin-qüenta por cento superior à dos bancos correndo riscos. Assim, o governo acabou recebendo 14,4 milhões de ações em fiança.

No final demos 26,4 milhões de ações em fiança, o que repre-sentava uma grande diluição potencial do nosso patrimônio. Naque-le momento, não pensamos muito nessas fianças. Precisávamos da cooperação de todos e, com nossas ações a 3,50 dólares, uma cota-ção de 13 dólares parecia um sonho impossível.

Levamos muitos meses para chegar a um plano aceitável para os bancos. Deixei o resto de lado e participei de algumas reuniões iniciais. Mas o grosso do trabalho ficou nas mãos de Jerry Green-wald e Steve Miller.

As negociações com os bancos foram tão complicadas que Jerry

pouco mais podia fazer do que coordenar o plano principal em Hig-hland Park. Criou vinte e duas forças-tarefa que se reuniam toda sex-ta-feira com ele e com Steve Miller. Miller, enquanto isso, corria de um lado para outro: ia a New York ou a Washington e, nos interva-los, viajava para Ottawa, Paris, Londres e dezenas de outras cidades.

A agenda de compromissos de Miller era inacreditável. Ele passava a maior parte do tempo em New York, onde seu dia em ge-ral começava às seis e meia, com o café da manhã em reunião com um dos nossos advogados. Esse café da manhã era a primeira de uma série de reuniões ao longo do dia com os banqueiros e seus ad-vogados.

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Às seis da tarde, Miller se reunia com um outro grupo de ban-queiros para alguns drinques. Às oito, jantava com mais alguns. Às dez, voltava ao hotel, tentando preparar-se para as reuniões do dia seguinte. Por volta de meia-noite, estava falando por telefone com o Japão, tentando conseguir acordos com a Mitsubishi e com os ban-cos"japoneses.

Steve trabalhou como um louco e acabou gostando da tarefa. Sua atitude com relação aos banqueiros era: "Bem, essa proposta é um osso duro de roer e eu sei que vocês nunca fizeram nada desse tipo. Mas eu também nunca fiz e por isso vamos ver se a gente con-segue passar juntos por esses mares desconhecidos".

Steve Miller tinha a personalidade perfeita para essa missão. Ele era rígido e bem organizado, mas sabia quando era hora de re-laxar. Numa reunião em que os vários bancos se puseram a brigar uns com os outros, ele apontou um revólver de brinquedo para a ca-beça e disse: "Se vocês não chegarem a um acordo, vou me matar".

Em outra reunião, o grupo mandou buscar sanduíches numa lanchonete das redondezas. A resposta foi imediata: "Vocês são da Chrysler? Sinto muito, mas só mando os lanches se vocês pagarem adiantado!" Esse era o clima em que vivíamos. Estávamos tentando conseguir centenas de milhões de dólares em concessões dos ban-cos, e o botequim da esquina não quer esperar meia hora para rece-ber o dinheiro dos nossos sanduíches de mortadela e salame!

No início Steve se reunia com os banqueiros em pequenos gru-pos. Mas esse método só serviu para aumentar o desacordo entre e-les! Então ele decidiu reunir todos na mesma sala. Assim, cada um teria que falar com o outro e ver com os próprios olhos como os a-dultos conseguem se comportar como criancinhas.

Este foi um divisor de águas. Foi também a primeira vez em que alguns banqueiros se encontraram. Steve fez um pequeno dis-curso: "Sei que de modo, algum meu plano vai ser considerado bom", disse aos banqueiros. "Só espero que ele seja igualmente ru-im para todos. Gostaria que vocês levassem o plano para casa e o examinassem no fim de semana. Teremos outra reunião na terça-feira, 1º de abril, e vocês me dirão sim ou não. Mas não podemos discutir isso por mais tempo. Se vocês não gostarem do plano, é melhor esquecermos tudo."

Alguns banqueiros ameaçaram não aparecer na terça-feira, mas todos compareceram. Ficamos sabendo que o encontro aconteceu num momento terrível para a comunidade de banqueiros. O merca-

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do da prata tinha enlouquecido com os Hunt Brothers. A Bache es-tava com grandes problemas. As taxas de juros haviam chegado a 20 por cento e tudo indicava que chegariam a 25 por cento.

Se não conseguíssemos fazer os banqueiros aceitar o acordo naquela reunião, estaria tudo acabado. E com a economia do país profundamente abalada, é bem possível que a falência da Chrysler tivesse dado início a uma torrente de desastres econômicos.

Quando todo o grupo estava a postos para a reunião de 1º de abril, Steve deu início aos trabalhos com um grande choque: "Se-nhores", começou, "ontem à noite, o conselho de administração da Chrysler teve uma reunião de emergência. Diante do terrível estado da economia, da rápida desagregação do patrimônio da empresa e do aumento absurdo das taxas de juros — para não mencionar a fal-ta de apoio por parte dos nossos credores —, às nove e meia da ma-nhã de hoje decidimos iniciar os trabalhos para solicitar a nossa fa-lência".

A sala ficou em silêncio. Greenwald estava estupefato. Ele fa-zia parte do conselho, é claro, mas era a primeira vez que ouvia fa-lar dessa tal reunião. Então Miller acrescentou: "Talvez seja bom alertar os senhores de que hoje é 1º de abril".

Houve um profundo suspiro de alívio. Infelizmente, os euro-peus nunca tinham ouvido falar em 1º de abril. Continuaram parali-sados, tentando imaginar que relação haveria entre a data e tudo a-quilo.

Miller tinha inventado a brincadeira uns cinco minutos antes da reunião. Era arriscada, mas funcionou — levou todos os presentes a se concentrarem no quadro mais amplo e a pensar nas conseqüên-cias de não se chegar a um acordo. O plano de Steve foi aceito por todos os bancos presentes: um total de 660 milhões de dólares em reduções e adiamentos do pagamento dos juros, mais quatro anos de empréstimos, num total de 4 bilhões de dólares a juros de 5,5 por cento.

Mas o plano só poderia funcionar se todos os bancos credores concordassem em cooperar. Alguns deles, como o Bank Tejarat, do Irã, nos deixavam bastante tensos. Devíamos ao Tejarat apenas 3,6 milhões de dólares, mas a reunião aconteceu pouco depois do pro-blema dos reféns, quando o governo americano havia congelado 8 bilhões de dólares de depósitos iranianos. Para nosso grande alívio, os iranianos concordaram sem qualquer problema. Em junho, quase todos os bancos já haviam aceito o plano. Quando todos estivessem

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de acordo, poderíamos finalmente pôr as mãos nos primeiros 500 milhões de dólares de empréstimos com garantia federal. Mas está-vamos ficando rapidamente sem caixa para pagar as contas. Em 10 de junho de 1980, tivemos que suspender o pagamento aos fornece-dores. Mais uma vez a falência se tornava uma possibilidade real.

Faltavam poucos dias para recebermos os 500 milhões de dóla-res, mas até quando os fornecedores teriam paciência para esperar? Mesmo que não nos levassem de imediato à falência, poderiam pa-rar de enviar as mercadorias, o que seria quase tão ruim quanto a fa-lência. Nossos estoques eram bem limitados, e qualquer falta de pe-ças poderia tornar-se um desastre. Felizmente, quando estávamos à beira do precipício, os fornecedores vieram em nossa ajuda.

Naquele momento, mais de 90 por cento dos bancos havia acei-to o nosso plano. Representavam mais de 95 por cento dos emprés-timos. Mas ainda precisávamos de 100 por cento da participação dos bancos, senão tudo iria por água abaixo. O tempo corria rapi-damente contra nós. Mesmo que todos os bancos concordassem, a-inda havia o problema da documentação e da coleta de assinaturas.

Por exemplo, um banco do Alaska havia assinado o acordo, mas enviara os papéis pelo correio comum e não pelo correio ex-presso. Os papéis iam chegar tarde demais, e por isso tivemos que enviar ao banco outro conjunto para assinar.

Em Minnesota, um funcionário do banco colocara os papéis numa caixa perto da sua mesa, para assiná-los na manhã seguinte. Mas, à noite, o pessoal da limpeza havia jogado os papéis no lixo.

Um banco do Líbano assinou os documentos, mas por causa da guerra civil não podia enviá-los pelo aeroporto de Beirute. Final-mente conseguimos que o envio fosse feito através da Embaixada Americana. A Comissão de Garantia de Empréstimos aceitou o tes-temunho da Embaixada de que todos os papéis estavam assinados e em ordem.

Num processo de reorganização financeira, a praxe é que os grandes bancos aceitem a compra da dívida dos pequenos com um desconto especial, para facilitar o andamento do processo. Mas nós mantivemos firme a posição de que todos deveriam receber o mes-mo tratamento. Sabíamos que, se aceitássemos uma exceção, estarí-amos abrindo as comportas. Alguns dos pequenos banqueiros acre-ditavam seriamente que a renegociação dos empréstimos era o mesmo que jogar dinheiro bom sobre dinheiro ruim. Para eles, a questão era contabilizar as perdas agora ou mais tarde.

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Em maio, Steve Miller fez uma viagem frenética pela Europa com o objetivo de visitar os bancos mais recalcitrantes. O Financial Times publicara um artigo afirmando que a Chrysler tinha um plano secreto para pagar os que não entrassem no acordo. Isso não facili-tou em nada a tarefa de Miller. Quando ele chegava a cada banco, todos queriam saber os detalhes desse novo plano. Todos ficavam decepcionados ao saber que as alternativas ainda eram as mesmas: aceitar o acordo proposto ou nos levar à falência.

Nos Estados Unidos, os mais recalcitrantes eram os pequenos bancos rurais. Um deles ameaçava pôr tudo a perder por causa de 75 mil dólares. Aí também havia boatos de que estávamos pagando por baixo do pano aos bancos que ficavam fora do acordo. Esses boatos fizeram aparecer muitos bancos querendo ficar de fora, mas nós os trouxemos de volta um por um. Quanto menor o número dos que ficavam fora, maior era a pressão que os outros faziam para que aceitassem o acordo.

Mesmo assim, no final de maio, eu só me perguntava quando terminaria toda aquela agonia.

O maior conflito ocorreu em Rockford, Illinois, com o Ameri-can National Bank Trust Company. David Knapp, presidente do banco, achava que, mesmo com as garantias do governo federal, a Chrysler ia quebrar. Ele não queria se meter nisso. Seu banco tinha entrado com uma ação para receber 650 mil dólares e ele pretendia chegar às últimas conseqüências.

Para nossa sorte, em Rockford estava instalada uma das nossas maiores fábricas e muitos moradores de lá trabalhavam na Chrysler ou nos fornecedores dela. Assim que souberam do problema, come-çaram a pressionar o banco para que ele entrasse no acordo.

Mas, como isso não adiantasse, Steve Miller tomou um avião para se encontrar com Knapp. Miller nem mesmo tinha certeza de que seria recebido; se Knapp se recusasse, ele pretendia ir ao jornal local declarar que Mr. Knapp iria causar o desemprego de cinco mil pessoas de Rockford.

O prefeito da cidade marcou um encontro entre Miller e Knapp na Prefeitura. Miller tentou convencer Knapp explicando que, em-bora não fosse bom para ninguém, os outros bancos estavam en-trando no acordo. Disse que não tinha a mínima condição de fazer acordo especial com qualquer banco envolvido. Knapp ouviu tudo, mas não mudou de idéia. Sua posição era: "Lamento, mas acho que, se você fez um empréstimo, você tem de pagar".

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Alguns dias depois, o banco de Rockford também concordou. David Knapp havia recebido inúmeros telefonemas de empresas que dependiam da sobrevivência da Chrysler. Políticos de todos os níveis haviam falado com ele. Milhares de membros do sindicato dos trabalhadores da indústria automobilística haviam ameaçado re-tirar seu dinheiro do banco de Knapp. E houve até a ameaça de co-locar uma bomba no banco, o que ele tinha certeza de que fora tra-mado por nós.

Depois da viagem para Rockford, Miller reuniu-se com alguns outros recalcitrantes. No final de junho, conseguira o acordo de to-dos eles. E assim acabou a agonia.

Pelo menos, era o que imaginávamos. Uma vez conseguido o aval de todos os bancos, faltava apenas assinar todos os documentos e fazer o encerramento. Geralmente o encerramento é uma reunião de um monte de advogados que olham alguns documentos e decla-ram que o negócio está fechado.

Mas o caso da Chrysler era um pouco mais complicado. Para começar, havia dez mil documentos diferentes. Só a impressão dos papéis do acordo final ficou em 2 milhões de dólares! Se fossem colocados um em cima do outro, os documentos formariam uma pi-lha da altura de um prédio de sete andares.

Além do mais, os documentos estavam espalhados por escritó-rios de advogados de toda a cidade de New York e de algumas ou-tras cidades. A maioria, entretanto, estava no edifício Westvaco, na Park Avenue, 299, em Manhattan. Ali ficavam os escritórios dos nossos advogados: Debevoise, Plimpton, Lyons & Gates.

Na manhã de 23 de junho, uma segunda-feira, havia uma reu-nião marcada nesse escritório para conferir todos os papéis para o encerramento, a ser realizado no dia seguinte. Tínhamos um grande grupo de advogados à disposição, pois a falta de um único docu-mento poria tudo a perder.

Por volta de 7:30 da manhã, Steve Miller estava no café do tri-gésimo terceiro andar do Westvaco, quando avistou um rolo de fu-maça preta saindo pela janela. Achou que era alguma coisa na cozi-nha, mas logo percebeu que havia um incêndio no vigésimo andar do prédio.

Steve disse que se viu tentado a ignorar o incêndio, para não a-trapalhar o encerramento do acordo. Mas alguns minutos depois o prédio foi evacuado e quem pôde desceu os trinta e três andares até a rua.

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Enquanto as pessoas desciam, a Park Avenue ficou completa-mente bloqueada por carros de bombeiros. Havia chamas saindo pe-las janelas. A primeira coisa que Steve pensou foi: "Isso é definiti-vamente uma mensagem de Deus. Ele está dando seu voto contra o acordo. Acho que não devíamos ter brincado com o sistema da livre iniciativa".

Nosso pessoal e os advogados observavam angustiados o fogo tomando conta de cada um dos escritórios do prédio, enquanto os vidros das janelas caíam na rua. Felizmente, o fogo estava sendo contido no vigésimo andar. Todos os nossos documentos estavam acima do trigésimo andar. O incêndio acabou sendo controlado, e o pessoal da Chrysler foi jantar num restaurante perto dali. Quando Miller estava andando pela rua, encontrou Jerry Greenwald, que a-cabava de chegar à cidade para assinar os documentos. Jerry estava indo para o prédio quando encontrou Steve.

"Rapaz", disse Greenwald, "o trânsito aqui está impossível. Há um incêndio em algum lugar por aqui. Você já pensou se fosse no nosso prédio?"

Steve respondeu: "É no nosso prédio!" Greenwald estava acostumado ao senso de humor de Miller e

naturalmente achou que ele estava brincando. Jerry continuou a caminhar até ser barrado; percebeu, então, que não havia nenhuma brincadeira. Finalmente, às duas da madrugada, Jerry, Steve e os advogados se encontraram no Citicorp Center. Decidiram que era essencial retirar os documentos do prédio em chamas, senão todo o negócio estaria ameaçado. Às duas e meia, estavam abrindo cami-nho entre as barreiras policiais. Muitos bombeiros haviam sido feri-dos no incêndio, mas nosso pessoal foi autorizado a entrar, diante da insistência em que a sobrevivência da Chrysler dependia da re-moção daqueles documentos.

E assim vinte caras subiram pelo elevador. Colocaram todos os documentos em caixas e carrinhos de correspondência. Uma hora depois, no meio da noite, um comboio de advogados começou a empurrar seus carrinhos pelo meio da Park Avenue, em direção ao prédio do Citicorp, para os escritórios de Shearman & Sterling, um dos escritórios de advocacia que representavam os bancos. Passa-ram o resto da noite juntando todos os documentos para que o en-cerramento ocorresse conforme o combinado.

Os papéis foram reorganizados no dia seguinte, entre nove ho-ras e meio-dia. Por milagre, nada foi perdido ou danificado. Ao

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meio-dia, um grande grupo de advogados e banqueiros fez uma e-norme reunião nos escritórios da Shearman & Sterling para realizar o encerramento. Havia telefones ligados com Paris, Detroit, Wall Street, Toronto e Washington — onde a Comissão de Garantia de Empréstimos estava reunida.

Bill Mateson, nosso principal advogado, fez a chamada nomi-nal. Leu a longa lista dos bancos que tinham representantes na sala e daqueles que estavam acompanhando tudo pelo telefone. Pronto para encerrar, Toronto? Pronto, Paris? Todos disseram sim.

As 12:26 do dia 24 de junho, o acordo foi encerrado sob aplau-so geral. Finalmente poderíamos receber a primeira parcela dos nossos empréstimos com garantias federais. Mais tarde, naquele mesmo dia. depois que Salomon Brothers, nossos conselheiros fi-nanceiros, descontaram seus honorários de 13.250.000 dólares. Ste-ve Miller endossou um cheque de 486.750.000 dólares. Caminhou ate o Manny Hanny e preencheu um recibo de deposito, como qual-quer outro depositante.

Finalmente, a New Chrysler Corporation estava nos negócios para ficar.

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XXII O CARRO K

urante os piores anos, a promessa do carro K sempre foi a luz no fim do túnel. Por alguns anos, a perspectiva de um carro americano que gastasse pouco combustível e tivesse tração dianteira era quase tudo o que podíamos oferecer. Ao longo das sessões no Congresso e durante as intermináveis ne-gociações com os bancos, nossas expectativas com relação ao K e-ram o que nos dava condições de prosseguir.

O K é um produto sensacional. Estou à vontade para falar bem dele, pois cheguei à Chrysler tarde demais para ter uma grande par-ticipação na sua criação.

Foi neste carro que Hal Sperlich trabalhou desde que foi para a Chrysler em 1977. Em muitos aspectos, é o carro que Hal e eu sem-pre quisemos construir na Ford. É o carro que teríamos feito se Henry não fosse tão teimoso com relação aos carros pequenos.

O K era e é um carro confortável, de tração dianteira, que fun-ciona perfeitamente com apenas quatro cilindros. Faz uns 10 qui-lômetros por litro na cidade e uns 17 na estrada. Esses números fa-lam por si. Mas, o que é mais importante, o K era um pouco melhor do que o carro X da GM, que foi lançado um ano e meio antes. De-troit já tinha construído carros pequenos antes, mas o K foi o pri-

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meiro com espaço suficiente para acomodar uma família de seis pessoas e permanecer bastante leve, podendo oferecer uma supere-conomia de combustível.

A grande cartada de Sperlich é que o carro era forte e bem montado. Era sólido e não tinha uma aparência frágil, como alguns outros compactos do mercado. A exemplo do Mustang, o K era pe-queno e de linhas atraentes. A única diferença é que o K tinha um motor bem menor.

Na campanha publicitária, dizíamos que o K era uma alternati-va americana. Para reforçar esse argumento, muitos dos anúncios foram feitos em vermelho, branco e azul. Dissemos também que o K tinha espaço para transportar "seis americanos" — um pequeno ataque aos nossos concorrentes japoneses. Até tivemos que instalar seis cintos de segurança em cada carro, o que aumentou um pouco o seu custo.

Mas o nosso golpe de mestre foi usar o termo "o carro K", ao invés dos nomes reais — Aries (para a linha Dodge) e Reliant (para a Chrysler). Eu gostaria de ficar com os méritos dessa decisão, mas ela foi o resultado de um daqueles acasos felizes que acontecem por si mesmos. Com todas as dificuldades por que estávamos passando, bem merecíamos um golpe de sorte.

Quando um novo carro está nos primeiros estágios de desen-volvimento, os estilistas costumam dar-lhe um nome em código, pa-ra uso interno. Na Ford, sempre usamos nomes de animais. A C-hrysler e a GM usam letras do alfabeto. Mais tarde, a equipe de marketing examina uma lista de nomes possíveis e faz uma pesqui-sa detalhada para escolher o melhor.

Na Chrysler, o carro K era o último cartucho. Se falhássemos, seria o nosso fim. Com esta consciência, começamos a falar do car-ro já nos estágios bem iniciais de desenvolvimento, muito antes de escolhermos os nomes reais.

E, sem que ninguém tivesse planejado, descobrimos que o no-me K era um forte apelo ao consumidor.

Naturalmente, uma vez que o público se ligou ao "carro K", nós lançamos anúncios dizendo que "os carros K estão chegando". Decidimos também fazer uma promoção com um grande revende-dor, que chamamos "O carro K chega a K-Mart". Logo o nome "K" ficou tão popular que os nomes reais, Reliant e Aries, tornaram-se uma espécie de subtítulos. Em 1983, quando finalmente tiramos a

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letra K da traseira dos carros, nossa agência de publicidade achou que era um grande erro.

O Aries e o Reliant são definitivamente os carros adequados ao nosso tempo. Possibilitam uma grande economia de combustível e são confortáveis e bonitos. Aliás, esta opinião não é só minha. A Motor Trend Magazine elegeu o Aries e o Reliant os carros do ano de 1981, prêmio que havíamos ganho três anos antes com o Omni e o Horizon.

"Esses são os carros de que precisamos", escreveu a revista. "Certamente, devem ser os indicadores de qualidade, sinais dos tempos que chegaram. E, mais do que isso, eles revelam que talvez pela primeira vez um fabricante americano de automóveis tenha en-tendido direito o comportamento do público consumidor de auto-móveis. Com o Aries e o Reliant, a Chrysler será capaz de oferecer um carro substancialmente melhor, que vai suportar por mais tempo as estradas ruins e a tradicional negligência dos usuários."

E Jim Dune, editor de automobilismo da Popular Science, ob-servou: "Se a Chrysler tivesse projetado há três semanas, e não há três anos e meio, um carro ideal para o mercado de hoje, ela teria projetado esse mesmo carro".

Hoje, o K serve de base para quase tudo o que fazemos. Prati-camente todos os outros carros foram derivados da sua estrutura, inclusive o Le Baron, o Chrysler E Class, o Dodge 600, o New Yorker e, em menor grau, nossos carros esporte, o Dodge Daytona e o Chrysler Laser.

Como fizemos tanta coisa com base na estrutura do K, fomos atacados pela imprensa — especialmente pelo The Wall Street Jour-nal. Pelo modo como eles falam, parece até que inventamos alguma nova maneira de enganar o consumidor!

É verdade que o ideal de Detroit sempre foi criar um carro completamente novo para todas as faixas de preço. Mas, hoje, um modelo completamente novo exige um investimento de cerca de um bilhão de dólares. Hoje, carros "novos" são uma ilusão. Cada carro "novo" é o resultado da mistura de peças antigas e novas. As novas peças podem incluir a lataria, a transmissão ou o chassi. Mas nin-guém, nem mesmo a GM, pode se dar ao luxo de fazer um carro a partir do zero.

A construção de um carro novo com base na estrutura de outro modelo vem ocorrendo em Detroit há cinqüenta anos. Os japoneses fizeram isso desde o início. A GM domina esse recurso, e muitas

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peças do Chevrolet foram aproveitadas nos Buicks e Cadillacs. Na Ford, como já vimos, o Mustang foi um Falcon com um novo estilo. Os profissionais de maior habilidade utilizam peças intercambiáveis para diminuir os custos de produção. Isso é não só permissível co-mo essencial. Hoje, construir um carro novo a partir do nada, quan-do você não tem certeza do volume de produção, é um caminho cer-to para a falência.

Por outro lado, também é arriscado exagerar. A GM aprendeu isso da pior forma em duas ocasiões. Em 1977, a GM estava com falta de motores V-8 para o Oldsmobíle e começou a instalar moto-res V-8 de Chevrolet em alguns Oldsmobiles, Pontiacs e Buicks.

Infelizmente, esqueceram de avisar os clientes sobre a mudan-ça. Alguns ficaram tão furiosos que acionaram a empresa. No fim, a mudança acabou custando à GM mais de 30 milhões de dólares.

Um problema semelhante aconteceu com o Cadillac Cimarron. A produção do Cimarron foi iniciada às pressas, quando alguns ca-ras do marketing perceberam que a idade média dos compradores de Cadillac se situava entre setenta anos e "mortos".

Mas o novo modelo era pouco mais do que um Chevrolet Ca-valier aperfeiçoado. Mesmo Pete Estes, um ex-presidente da GM, reclamou que o Cimarron parecia muito mais um Chevrolet. Os bancos forrados de couro e o controle automático de farol alto/farol baixo não eram suficientes para distinguir o Cimarron do carro J básico. Os consumidores perceberam que algo estava errado e o Cimarron afundou no mercado.

Mesmo com o produto perfeito, você pode cometer erros. O carro K acabou nos salvando. Mas o seu primeiro ano no mercado coincidiu com alguns dos piores problemas que tivemos.

Para nossa grande tristeza, o carro K não começou muito bem. Em outubro de 1980, quando lançamos o Aries e o Reliant, não ti-vemos sucesso. Tivemos alguns problemas inesperados com os no-vos robôs de.soldagem nas fábricas, o que levou a paralisações da produção. Para o lançamento, precisávamos de trinta e cinco mil carros para os showrooms no dia da apresentação. Mas só tínhamos dez mil.

O pior é que tínhamos surpreendido o consumidor com o preço do carro. Naquele momento, estávamos numa dura guerra de preços com o carro X da GM, nosso principal concorrente interno. Seu Ci-tation Hatchback básico foi lançado a 6.270 dólares e por isso colo-camos o carro K básico a 5.880 dólares.

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A única maneira de ter um preço mais baixo que o da GM e sobreviver era recuperar a diferença nos acessórios opcionais. E por isso fabricamos um monte de carros com ar-condicionado, trans-missão automática, estofamento de veludo e janelas elétricas, o que aumentou o preço em alguns milhares de dólares.

Deveríamos ter dado maior atenção à nossa pesquisa. Tínha-mos informações de que os consumidores dariam preferência aos modelos básicos, cujo preço era de aproximadamente 6 000 dólares. Mas estávamos com espírito de crise. Como resultado, soltamos um grande número de carros com preços entre 8 e 9 mil dólares.

Foi um erro que nos custou muito. Deveríamos ter esperado que o carro K ganhasse uma aceitação inicial antes de lançar as op-ções. Não tinha sentido procurar os consumidores com maior poder aquisitivo. Não eram as pessoas que comprariam o K em primeiro lugar.

O bom foi que identificamos o problema bem no início e fomos capazes de corrigi-lo. Sabíamos que os consumidores vinham en-trando nos showrooms, o que provava o seu interesse. Mas também sabíamos que a maioria saía sem fazer o pedido. Quando entrevis-tamos as pessoas, perguntando por que saíam sem comprar, todas disseram a mesma coisa: "Pensei que esse carro tinha sido concebi-do para ser barato. Mas depois vi o preço". Logo que foi possível, começamos a fabricar mais modelos básicos. E as vendas subiram.

Mas em dezembro tivemos um novo problema. A prime rate subiu de repente para 18,5 por cento. Dois meses antes, quando foi feito o primeiro lançamento dos carros K, as taxas de juros estavam 5 por cento mais baixas. Se elas tivessem ficado em 13,5 por cento, teríamos vendido muitos carros. Mas, naquela época, as taxas de ju-ros se alteravam quase diariamente. E os carros e as casas estavam ficando sem compradores.

Eu estava furioso com o comportamento irracional do FED com relação às taxas de juros, mas não havia nada que pudesse fa-zer para mudar. Poderia, contudo, responder à situação. Foi o que fiz.

Para afugentar o fantasma das altas taxas de juros, lançamos um plano de descontos variáveis. Garantimos um reembolso a quem financiasse a compra de um carro nosso — com base na diferença entre 13 por cento e a taxa de juros vigente no momento da compra. Taxa prioritária de juros. (N. do E.)

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Quando anunciei o novo plano, disse: "Deus ajuda a quem cedo madruga". Deus deve ter escutado, embora Paul Volcker não tenha ouvido nada, pois nosso jogo deu bom resultado. Logo a Ford e a GM também estavam oferecendo descontos.

No início de 1981, as vendas aumentaram consideravelmente. Apesar do começo desastroso, os carros K terminaram o ano com uma fatia de mais de 20 por cento do mercado de compactos. E eles têm vendido bem desde então. Enquanto algumas pessoas ainda es-tavam registrando nossos débitos, vendemos um milhão de Aries e Reliant, o que nos deu o capital necessário ao desenvolvimento de novos modelos.

Mas isso aconteceu mais tarde. Como os carros K tiveram um

começo difícil, começamos 1981 em péssima forma. Embora te-nhamos lutado o ano inteiro para não deixar as más notícias da C-hrysler chegarem à primeira página dos jornais, logo fomos força-dos a ir a Washington pedir mais 400 milhões em garantias.

Quando se tratou de realmente emprestar esse dinheiro, a Co-missão de Garantia de Empréstimos havia colocado vários obstácu-los no nosso caminho. Por exemplo, não podíamos retirar o emprés-timo de uma vez, mas em parcelas. As duas primeiras parcelas fo-ram bem próximas em 1980.

Mas a terceira retirada, um ano depois, foi um completo desas-tre do ponto de vista das relações públicas. Muitas pessoas sim-plesmente não entenderam o que estava acontecendo. Viram a notí-cia na TV e pensaram: "Começou tudo de novo. Esse pessoal aca-bou de receber 1,5 bilhão de dólares. Por que está pedindo mais?"

Eu nunca deveria ter concordado em retirar os empréstimos em três parcelas. A cada retirada, éramos forçados a enfrentar as man-chetes. Era terrível. Não creio que a comissão nos tivesse permitido retirar tudo de uma vez, mas, ao invés de três parcelas, provavel-mente teríamos conseguido duas parcelas de 600 milhões.

Sempre que íamos retirar mais dinheiro, nossas vendas caíam. Para a opinião pública, a Chrysler era um sorvedouro de dinheiro. Muita gente que estava pensando em comprar nossos carros mudou de idéia, para comprar carros da concorrência. É impossível saber com certeza, mas creio que cerca de um terço dos 1,2 bilhão que re-cebemos em garantias de empréstimo foi gasto em vendas perdidas em função da publicidade negativa. Mesmo assim, não sei de ne-nhuma outra forma que pudesse nos manter vivos.

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Para atender aos critérios para recebimento dos 400 milhões fi-nais dos nossos empréstimos, tivemos que conseguir algumas con-cessões adicionais. Solicitamos aos bancos um adicional de 600 mi-lhões através da conversão da dívida em ações preferenciais. Pedi-mos a colaboração dos trabalhadores com relação aos reajustes sala-riais. Pedimos aos nossos fornecedores um maior prazo de paga-mento e um desconto de 5 por cento durante o primeiro trimestre de 1981. E. G. William Miller, secretário do Tesouro, pediu aos ban-cos o perdão da metade da nossa dívida remanescente. Mais uma vez, a alternativa era a falência.

Desta vez, os bancos perdoaram um total de 1,1 bilhão de dóla-res da dívida em troca de ações preferenciais da empresa. Geral-mente, as ações preferenciais pagam um dividendo, mas no nosso caso isso só ocorreria depois do pagamento dos empréstimos feitos. Os bancos não levaram nossa oferta de ações tão a sério. Mas os o-timistas sabiam que, se algum dia a Chrysler conseguisse ressusci-tar, acabariam recuperando uma boa parte do dinheiro.

Ao longo de 1981, nossa sobrevivência não passou de uma proposta reformulada a cada semana. Mesmo com o carro K, nossos prejuízos ainda eram impressionantes — 478,5 milhões por ano. Pa-ra piorar as coisas, a comissão de garantias estabeleceu novas res-trições, que não contribuíram em nada para levantar nosso moral.

Uma das normas da comissão nos obrigava a lhe pagar uma ta-xa administrativa de 1 milhão de dólares por mês. Isso me deixou enraivecido, pois o pagamento de janeiro era suficiente para cobrir todas as despesas anuais da comissão; assim, os 11 milhões de dóla-res restantes eram puro lucro para o Tesouro. Que diabo, se eu ti-vesse tido condições de conseguir um acordo desse tipo para a C-hrysler, nem teria precisado recorrer às garantias de empréstimo!

Nos termos do ato, o governo deveria cobrar de nós uma taxa anual de 5 por cento do valor total para administrar o empréstimo. Mas William Miller tinha autoridade para aumentar esse valor, se achasse que os empréstimos estavam correndo riscos. Ele o fez — e 1 por cento de 1,2 bilhão são 12 milhões por ano. Não tivemos ne-nhuma oportunidade de negociar isso, nenhuma chance de dizer: "É um valor muito alto, não queremos". Esses 6 milhões adicionais poderiam ter servido para alguma coisa mais produtiva, que ajudas-se a garantir nossa sobrevivência a longo prazo.

Minha segunda divergência com a comissão foi a quantidade brutal de papéis com que ela nos bombardeou. Um bom relatório

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exaustivo por mês teria dado à comissão todas as informações que lhe eram necessárias. Mas nos pediam sempre um monte de docu-mentos, e era dificílimo conseguir apresentar tudo aquilo.

Para piorar as coisas, eles nem mesmo liam os documentos. Se tinham dúvidas, simplesmente nos telefonavam. Posso entender que, no início de todo aquele processo, a comissão estivesse tensa e que fosse importante para seus membros a certeza de que todos sa-biam o que estava acontecendo. Mas, à medida que fomos ficando mais fortes, não havia mecanismo que mudasse as regras.

E então nos deparamos com um problema que de fato só pode-ria ter vindo da mente fértil de um verdadeiro burocrata. A comis-são nos ordenou que vendêssemos nosso jato Gulfstream. Para as cabecinhas privilegiadas de Washington, o jato era o símbolo do esbanjamento de uma grande empresa. Pouco importa que o gover-no tenha uns cem jatos particulares — às custas dos contribuintes — para ajudar a resolução dos problemas deles. Ninguém pisca quando se gastam 100 milhões de dólares em novos robôs, mas quando você envia um dos seus principais executivos às fábricas para ensinar os trabalhadores a usarem os novos robôs, está tudo bem, desde que o executivo utilize uma linha aérea comercial.

E o que acontece quando é preciso ir de Highland Park, Michi-gan, para Rockford, Illinois, ou Kokomo, Indiana? Não é muito fá-cil chegar a algumas das nossas fábricas através das linhas aéreas comerciais. E se pago para um cara 200 mil dólares por ano, não vou querer que ele fique perdendo tempo em aeroportos.

Os aviões particulares economizam muita mão-de-obra. As pessoas que estão fora do mundo dos negócios muitas vezes têm a impressão de que a maioria dos executivos passa o dia sem fazer nada. Não é o caso dos executivos que conheço. Eles trabalham de doze a catorze horas por dia e seu tempo é valioso.

O jato da empresa não é um luxo. É uma necessidade. Acredi-tem que seria muito mais agradável voar na primeira classe de um avião comercial, com uma aeromoça gentil servindo drinques. Mas o jato da empresa é uma grande economia de tempo — assim como uma forma de evitar o stress,

Para ser justo, nem tudo o que a comissão nos pediu para fazer

foi bobagem ou intromissão indevida. Entre as suas exigências mais razoáveis estava a de procurarmos um parceiro para uma fusão. Quando cheguei à Chrysler com a idéia da Global Motors na cabe-

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ça, eu achava que qualquer fusão concebível envolveria uma em-presa estrangeira como a Mitsubishi ou a Volkswagen. Mas, depois de verificar o nosso balanço, ninguém se interessaria nem mesmo em me ouvir.

Em 1981, quando o terreno não parava de ceder, parecia que a fusão era a única saída. Dizem que a necessidade é a mãe da inven-ção. Bem, quando ficamos de novo com a corda no pescoço, nós nos tornamos inventivos ao extremo. Concebemos um plano como último recurso, uma idéia que aparentemente era maluca, mas que na verdade fazia sentido. Como tínhamos o carro K e a Ford não ti-nha nenhum equivalente a ele, propusemos uma fusão entre a C-hrysler e a Ford. Havia milhares de obstáculos a esse plano, mas a primeira coisa que surgiu na cabeça de todos foram as razões de or-dem pessoal. "Digamos que isso funcione", disseram os nossos banqueiros. "Mas Henry ainda está lá, e você aqui — como vocês poderiam fazer um negócio desse tipo?"

"Escutem", respondi, "vejam o que vou fazer. Henry já anun-ciou que vai deixar a empresa. Estou disposto a fazer o mesmo. Gostaria de ficar por mais doze meses para ajudar a realizar esse negócio. Depois que tudo estiver pronto, vou embora. É evidente que tudo isso é muito maior do que nós dois."

O outro grande problema é que uma fusão desse tipo seria, normalmente, uma violação às leis antitruste. Assim, consultei Pete Rondino, que atuou no caso Watergate, e outras pessoas da Comissão de Justiça. Todos acharam que, como estávamos à beira da ruína, as restrições poderiam ser suspensas. Também consultei Bob Strauss, um grande advogado e personalidade importante do Partido Demo-crático. Ele também achou que poderíamos levar a idéia adiante.

Uma vez que o problema das leis antitruste estava resolvido — pelo menos teoricamente —, podíamos considerar o aspecto positi-vo. O ano anterior, 1980, havia sido um desastre para nós: tínhamos terminado com um prejuízo de 1,7 bilhão de dólares. Mas 1980 também não havia sido nenhuma festa para a Ford. Seus prejuízos foram quase tão grandes quanto os nossos — mais de 1,5 bilhão de dólares. E, o que é mais importante, o mercado da Ford estava em franca decadência. Em 1978, tinha alcançado a alta porcentagem de 28 por cento. Três anos depois, estava muito baixo: 15 por cento. Pedi a Tom Denomme, do nosso gabinete, que elaborasse alguns planos. Em algumas semanas, Tom elaborou uma proposta bastante razoável.

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Nos termos dessa proposta, a Ford assumiria fisicamente a C-hrysler. Como a Ford era muito maior e mais saudável, devia ser a empresa sobrevivente. A Chrysler e a Dodge continuariam a operar, mas como a terceira e a quarta divisões da Ford, ao lado das divi-sões Ford e Lincoln-Mercury.

Tom e eu achávamos que uma fusão traria grandes benefícios para ambas as empresas. Nos aspectos em que eles eram fortes, nós éramos fracos, e vice-versa. Nós dois tínhamos passado muitos anos na Ford antes de virmos para a Chrysler e por isso entendíamos os problemas e necessidades de ambos os lados.

Se a fusão se concretizasse, os benefícios para a Chrysler seriam óbvios — tão óbvios, na verdade, que poderiam ser resumidos numa única palavra: sobrevivência. Mas, o que a fusão significava para a Ford? Um grande negócio. Naquela época, a Ford era muito forte na Europa, onde estava gastando uma quantia desproporcional. Mas, nos Estados Unidos, a Ford estava morrendo para o mercado. Depois da segunda crise do petróleo, estava sendo duramente atingida pelas im-portações de automóveis. Além do subcompacto Escort/Lynx — o "carro mundial" da Ford e o equivalente ao nosso Omni/Horizon — não tinham nenhum outro carro pequeno de tração dianteira.

Além disso, a Ford estava em vias de fazer um grande investi-mento, de bilhões de dólares, para produzir o Tempo e o Topaz — só para fazer uma cópia do carro espaçoso, de tração dianteira, que já existia na Chrysler, na forma do carro K. Se fizéssemos a fusão, poderíamos começar a vender uma versão do Escort para substituir o nosso Omni/Horizon e eles poderiam começar a vender uma ver-são dos nossos Aries e Reliant. Segundo o nosso plano, a Ford fa-bricaria um novo carro grande, de tração dianteira, originalmente proposto para 1987, e a maioria dos modelos grandes e dos cami-nhões. Nós forneceríamos o minifurgão 1984.

Para a Ford, uma fusão com a Chrysler representava a maneira mais rápida e fácil de voltar à posição original no mercado: um signi-ficativo segundo lugar. Com um pequeno impulso, a Ford suplantaria a GM na venda de caminhões e ainda seria a primeira nos mercados canadense e mexicano. Internamente, uma fusão representaria um aumento de fatia de mercado da Ford de 17 para 27 por cento.

Se ocorresse uma fusão com a Chrysler, a Fcrd estaria com 75 por cento da força da GM nas vendas de carros nos EUA. E aí assis-tiríamos a uma verdadeira competição. Alfred Sloane se reviraria no túmulo, pois a nova empresa teria quatro divisões contra as cin-

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co divisões da GM. Teria sido fantástico ver essas duas grandes empresas disputando o terreno palmo a palmo. Teria sido grandioso para os Estados Unidos. E os banqueiros e advogados adorariam a fusão, pois seria o maior negócio da história da indústria norte-americana.

Por outro lado, se a Chrysler simplesmente acabasse, nossa pesquisa mostrava que a parcela da Ford aumentaria muito pouco. A maior parte da nossa fatia ficaria com os carros importados e com a GM.

Mostramos o plano a alguns dos principais banqueiros de New York e eles exultaram. "Isso caiu do céu", disseram. "Os produtos são compatíveis. A estrutura de revendas é compatível. Tudo se en-caixa perfeitamente."

Tínhamos feito projeções de balanços hipotéticos e tudo pare-cia mesmo excelente. Tínhamos um plano operacional. Com a fusão tínhamos condições de aumentar os lucros em 1 bilhão de dólares. Havia muita força naqueles números.

Salomon Brothers, nossos banqueiros de investimento, acharam o plano ótimo. Jim Wolfensohn, que cuidava das contas da Chrysler, concordou em contactar Goldman Sachs, que representava a Ford. Usando os dados financeiros da Chrysler e mais todos os dados da Ford que pôde conseguir, Salomon Brothers deram forma à idéia e fizeram um relatório detalhado a respeito das vantagens da fusão para ambas as partes e do modo como poderia ser realizada com sucesso.

Goldman Sachs mostrou algum interesse pela proposta e pas-sou tudo para os principais dirigentes da Ford. Até então, o plano era absolutamente secreto. Como se tratava de uma oportunidade excepcional, fui procurar Bill Ford e lhe falei a respeito. Mas, exce-to por esse encontro, tomamos todo o cuidado para ninguém saber de nada. Tudo foi feito nos bastidores, por baixo do pano, sem que nada vazasse para a imprensa.

Mas de repente tudo veio abaixo. Philip Caldwell, presidente do conselho da Ford, abriu o bico. Esvaziou toda a discussão ao fa-zer uma declaração à imprensa. O que ele disse, na verdade, foi que a Chrysler lhes tinha proposto uma fusão, mas que eles nunca seri-am burros de aceitar.

A Ford fez essa declaração para nos expor ao ridículo. Mas nunca fez uma análise cuidadosa da proposta. Caldwell limitou-se a anunciar que o conselho tinha votado unanimemente contra a aber-tura de negociações com a Chrysler. Mais tarde, um dos membros

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do conselho nos disse que eles só tinham dado uma olhada rápida no plano. Tiveram que responder em vinte e quatro horas, quando teriam sido necessários vinte e quatro dias para um estudo adequa-do da proposta. Num único dia, o máximo que poderiam fazer era dizer que o plano era ruim e seguir a orientação da administração.

Em minha opinião, os dirigentes da Ford se opuseram ao plano porque sabiam que já havíamos levado a maioria dos seus bons fun-cionários e achavam que, se o negócio se realizasse, poderiam ser deixados de lado. Imagino que Henry, que teoricamente estava apo-sentado, também tenha sido contra a idéia. Assim, só pensaram na pior das hipóteses. Acho que perderam uma grande oportunidade.

Respondi com uma declaração afirmando que a fusão proposta teria sido muito boa para o país e que os Estados Unidos precisa-vam de um concorrente de verdade para a GM. Foi uma pena, pois eu já havia falado com as pessoas certas em Washington, que teri-am tornado o plano possível. Disseram que se a Ford fosse levada a concordar, fariam todo o possível para que tudo se realizasse. Mas o plano foi jogado no lixo pela Ford, sem ter tido a chance de ser tes-tado.

Se tivéssemos, de alguma forma, realizado o negócio, os únicos que ficariam loucos para fazer as coisas não irem para a frente seri-am os responsáveis pela General Motors. Sua atitude teria sido: "Já fizemos isso nos anos 20. Não devemos permitir que ninguém mais o faça. Um cartel Ford-Chrysler? De forma nenhuma! As coisas fi-cariam bem difíceis para nós".

Se a fusão tivesse sido realizada, a indústria automobilística americana sofreria uma mudança permanente. Na manhã seguinte, não haveria mais cópias entre a Chrysler e a Ford. Estaríamos eco-nomizando três ou quatro bilhões em investimentos. As compras se-riam mais fáceis para uma empresa maior. E os custos fixos seriam drasticamente diminuídos, já que, como a GM, teríamos muitas pe-ças intercambiáveis.

Era o momento certo. Talvez ainda seja. Mas não creio que o Departamento de Justiça permitisse a fusão agora. Protestariam e negariam a aprovação, porque isso seria uma perfeita integração ho-rizontal de dois gigantes num oligopólio que só tem três adversá-rios. O plano seria derrotado no Departamento de Justiça com base em razões ligadas às leis antitruste. Mas, com o negócio entre a GM e a Toyota e com a nova filosofia de Washington com relação às fu-sões, quem sabe?

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Uma fusão ainda faria sentido, mesmo a Chrysler tendo voltado a se fortalecer. A GM tem cinco divisões, mas a Ford e a Chrysler só têm duas cada uma. Esta é a receita certa para ter prejuízo devido aos custos fixos.

Do jeito como vão as coisas, no ano 2000 só teremos dois ad-versários: a GM e a Japan, Inc. Uma fusão entre a Ford e a Chrysler talvez seja a única providência mais drástica a ser tomada para que a indústria automobilística americana se imponha diante da japonesa.

É verdade que tudo depende da perspectiva que se adote. Na Ford, o pessoal ainda acredita que a indústria possa voltar aos bons tempos e que a empresa recupere sua antiga força. Mas vão ficar sempre no meio, com os japoneses ganhando no preço dos carros mais baratos e com a GM de posse dos carros mais luxuosos e de preço mais alto. A Ford é a salsicha do cachorro-quente, que vai sendo consumida pouco a pouco.

Mesmo sem uma fusão com a Ford, eu esperava que estivés-

semos plenamente recuperados e com força total no final de 1981. Mas eu não tinha contado com o aumento contínuo das taxas de ju-ros e com a situação terrível da economia. No dia 1º de novembro, chegamos a outro ponto crítico: começamos a gastar nosso último milhão de dólares!.

Na Chrysler, gastamos normalmente 50 milhões por dia. Ter apenas 1 milhão é absurdo. E o mesmo que ter um dólar e meio na conta corrente. Na indústria automobilística, 1 milhão de dólares equivale aos trocados que deixamos na gaveta.

Naquele momento, qualquer um dos nossos grandes fornecedo-res poderia levar-nos à ruína completa. É preciso considerar que nossas contas a pagar aos fornecedores somavam cerca de 800 mi-lhões de dólares por mês. A única forma de sair dessa situação era pedir um prazo maior aos fornecedores. Mas isso cai melhor no pa-pel que na prática. Se lhes disséssemos: "Bem, vamos demorar um pouquinho mais para pagar vocês", poderíamos iniciar uma reação em cadeia. A confiança é o que mantém a empresa e seus fornece-dores trabalhando juntos. Se a confiança começa a acabar, os forne-cedores passam a agir em função dos seus próprios interesses. Fi-cam tensos, e seus receios podem facilmente levar a um desastre.

Alguns fornecedores menores chegaram a suspender as remes-sas. Tivemos que parar nossa fábrica da Jefferson Avenue por al-guns dias. Mas conseguimos fazer alguns acordos com eles para

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ampliar os prazos de pagamento em vinte e dois ou vinte e três dias e, em alguns casos, até trinta dias. A Goodyear Tire e a National Steel fizeram conosco alguns acordos adicionais. Chuck Pilliod e Pe-te Love, lembrarei de vocês eternamente — vocês conservaram a fé!

Também fiquei muito preocupado com nossa folha de paga-mentos, mas não deixamos de pagar uma única vez. E mais, sempre pagamos nosso pessoal nos dias certos. Curiosamente, nunca dei-xamos de pagar em dia os fornecedores, embora tenhamos aumen-tado os prazos e algumas vezes tenhamos pago devagar — mas sempre a partir de um acordo prévio. Houve momentos em que eu disse: "Meu Deus, temos que vender mais mil carros para conseguir dinheiro para um pagamento de 28 milhões na quinta-feira, ou um pagamento de salários de cinqüenta milhões na sexta". Dia após dia era essa tensão — e como os valores eram grandes!

Tínhamos que ser mágicos. Tínhamos que saber exatamente os pagamentos que poderíamos adiar e os telefonemas que teríamos de fazer. Quando você quer se safar, você se vira como pode.

Hoje, é bem verdade, eles vêem nossas contas no banco e nos concedem sessenta dias de prazo. Agora podemos obter crédito até sem pedir.

É o velho Catch-22. Quer um empréstimo? Mostre-nos que vo-cê não precisa dele e nós o concederemos. Se você é rico, se tem dinheiro no banco, sempre há muito crédito. Mas se você não tem dinheiro, então não há dinheiro para emprestar a você.

Meu pai me ensinou isso há trinta anos, mas acho que não ouvi bem. Mas certamente percebi a verdade em novembro de 1981!

Só Dói Quando Eu Rio. Entre todas as formas de dar uma notícia, a mais concisa e cor-

tante são as chafges dos jornais. Durante a crise da Chrysler, apare-ceram centenas delas. Uma caricatura e uma legenda transmitem no ato uma notícia. A cronologia ao longo dos quatro anos mostra as mudanças da nossa situação. Aqui vão algumas das melhores — ou piores, conforme o ponto de vista.

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Primavera de 1983

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XXIII HOMEM PÚBLICO, FUNÇÃO PÚBLICA.

m meados de 1983, quando a em-presa estava sólida outra vez, correram boatos de que eu estaria concorrendo à Presidência dos Estados Unidos. Acho que esses bo-atos começaram por causa dos vários comerciais de TV que fiz para a Chrysler. Muita gente pensa agora que eu sou ator. Mas isso é ri-dículo. Todos sabem que o fato de ser ator não qualifica uma pessoa para ser presidente!

Durante o debate no Congresso, os anúncios que fizemos para explicar nossa posição foram assinados por mim. A campanha foi muito satisfatória e, quando acabou, a agência decidiu levar a idéia da minha disponibilidade um pouco mais longe, apresentando meu rosto nos comerciais de televisão.

Não foi a primeira vez que a idéia surgiu. Antes de a K & E en-trar em ação, o pessoal da Young & Rubican também me pediu para aparecer na TV. Fui contra e pedi a opinião do meu velho amigo Leo Arthur Kelmenson, presidente da Kenyon & Eckhardt.

Leo compartilhava do meu ceticismo. "Lee", ele disse, "se eu fosse você não faria. Não é o momento." Kelmenson afirmou que a única razão válida para eu aparecer nos anúncios seria o fortaleci-mento da credibilidade da Chrysler. Mas naquele momento, segun-

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do ele, eu ainda era muito novo no cargo e a empresa era muito fra-ca. A credibilidade é algo que só se ganha com o tempo. E se você não a tem, não pode usá-la.

Quando a agência Kenyon & Eckhardt me chamou para apare-cer na televisão, apresentou argumentos mais fortes. Havia passado um ano e muita coisa tinha acontecido. Durante as audiências no Congresso, eu me tornara conhecido nacionalmente. A Chrysler era notícia constante e o pessoal da publicidade estava ansioso para ca-pitalizar em cima desse fato.

Em nossas reuniões de estratégia em Highland Park, a agência foi contundente: "Todos pensam que a Chrysler está indo à falência. Alguém tem que dizer que não é verdade. A pessoa com maior cre-dibilidade é você. Em primeiro lugar, você é bastante conhecido. E, em segundo lugar, os espectadores sabem muito bem que, depois de ter feito o comercial, você vai ter que voltar ao trabalho e fazer os automóveis de que acabou de falar. Isso é uma garantia adicional de que a Chrysler vai cumprir tudo o que anunciar".

Tenho que admitir que eles estavam com a razão. É claro que a minha aparição na televisão foi parte essencial da recuperação da C-hrysler. Mas quando a idéia foi apresentada pela primeira vez, tive uma visão totalmente negativa. Assinar os anúncios impressos era uma coisa. Era como escrever uma série de cartas abertas ao público americano. Mas aparecer em comerciais de televisão era algo muito diferente. Entre outros problemas, eu não conseguia achar tempo para fazer os comerciais. Não é à toa que os comerciais são a melhor coisa da televisão — eles são feitos com muito mais cuidado e criatividade que a maioria dos programas que aparecem na TV. Mas esse cuidado e essa criatividade exigem um tempo enorme. Fazer comerciais é a coisa mais entediante do mundo. É como ficar observando a grama crescer. Gosto de andar depressa, mas um único comercial de sessen-ta segundos pode facilmente exigir uma carga de trabalho de oito a dez horas. Cada dia em frente às câmaras da televisão significava menos tempo dedicado ao meu trabalho no negócio de automóveis. Não é possível ser um alto executivo e um ator no mesmo dia.

Eu também achava que qualquer dirigente de empresa que apa-recesse nos seus comerciais só podia estar cultuando a própria per-sonalidade. Sempre que eu via um deles empurrando sua própria empresa, eu sentia um gosto amargo na boca. Eu passara trinta anos trabalhando com marketing e conheci algumas normas gerais que não deveriam ser violadas. Uma delas diz mais ou menos o seguinte:

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Se o seu cliente gemer e suspirar, O logotipo você deve duplicar. Se mesmo assim não houver aprovação, Ponha a fábrica na ilustração. E se sentir que a derrota é iminente, Apele: ponha a foto do cliente. Naturalmente, eu tinha medo de que a minha aparição nos co-

merciais desse a impressão de um ato final de desespero, o que po-dia pôr tudo a perder.

Durante anos, as celebridades anunciavam produtos na TV. Na Chrysler, usamos Joe Garagiola e Ricardo Montalban. Depois en-traram John Houseman e Frank Sinatra. Mas até recentemente, só poucos líderes do mundo dos negócios tinham aparecido nos co-merciais de suas empresas — e os três mais notáveis chamavam-se Frank: Frank Borman, da Eastern Airlines; Frank Sellinger, da S-chilitz; e também Frank Perdue, o rei do frango.

Além de credibilidade, há mais uma razão para mostrar o chefe no anúncio. Se o anúncio fracassar, é ele que se desgasta. Sempre se poderá acusar o grande ego do chefe. Afinal de contas, o público geralmente acha que a idéia foi dele — mesmo quando não foi.

Alguns meses antes, o pessoal da K & E me havia pedido para deixar que um deles fosse às nossas reuniões com uma câmara por-tátil, para filmar uma reportagem sobre a nossa recuperação. Filma-ram o momento em que eu me dirigia a um grupo de revendedores e, como experiência, usaram alguns segundos no final dos nossos comerciais.

Gostaram do resultado e pediram que eu mesmo fizesse alguns comerciais. Embora entendesse a argumentação deles, eu ainda não estava gostando da idéia. Mas certo dia, eu estava no avião com John Morrissey, diretor da agência em Detroit, e ele falou direta-mente: "Temos que dizer ao público que somos uma nova empresa, diferente da antiga Chrysler. A melhor maneira de fazer a mensa-gem acertar no alvo é mostrar o novo chefe. Acho que só mesmo você poderia fazer isso". Assim, eu concordei em fazer uma tentati-va. Só houve um aspecto que me deixou intrigado. Ao contrário de alguns porta-vozes que usamos no passado, meu trabalho é barato. Certa vez fiz 108 tomadas em umas dez horas, e tudo o que ganhei foi um sanduíche e uma xícara de café!

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No início eu só dizia umas palavrinhas no final dos comerciais, tais como: "Não estou pedindo que vocês comprem um carro nosso em confiança. Estou pedindo que comparem". Ou: "Se você com-prar um carro sem dar uma olhada nos da Chrysler, vai ser muito ruim — para nós dois".

Mais tarde fomos aumentando o texto e tornando-o mais agres-sivo, incluindo coisas como: "Você pode ir com a Chrysler, ou com outra empresa — correndo riscos, é claro"; e a famosa cena em que eu apontava para a câmara e dizia: "Se você conseguir encontrar um carro melhor — compre-o". Essa frase fui eu mesmo que inventei, o que talvez explique por que a disse com tanta convicção.

"Se você conseguir encontrar um carro melhor — compre-o" já foi parodiada de mais de cem formas diferentes. A frase deve ter si-do muito eficaz, pois até hoje continuo a receber cartas dizendo: "Fiz o que você falou. Procurei e não consegui encontrar carro me-lhor".

Mas há também as que dizem: "Segui o seu conselho. Encon-trei um carro melhor, e garanto que não era seu!" Mas esta é uma parte do risco — e uma parte da brincadeira. Minha frase passou a fazer parte do jargão. Tentei ignorar centenas de sugestões inovado-ras, que exploravam o mesmo filão. Era o caso de um grande cartaz, em Dallas, que dizia: "Se você conseguir encontrar um Bourbon melhor, beba-o"; ou a carta que dizia: "Se você conseguir encontrar um limão melhor, chupe-o".

Quanto mais eu fazia comerciais, maior se tornava minha habi-lidade em decidir exatamente o que diria. Sem dúvida, quando é um executivo que encontra uma frase boa, os profissionais da agência ficam meio constrangidos. Começam a pensar: "Puxa, se essa frase é tão boa, por que nós não pensamos nela?"

Num outro comercial, que também ficou famoso, eu começava dizendo: "Houve uma época em que Made in America significava alguma coisa. Significava que fazíamos o melhor. Infelizmente, muitos americanos já não acreditam nisso". Nesse ponto eu queria acrescentar o seguinte: "E com razão. Provavelmente merecemos essa reputação, pois hoje mandamos um monte de porcaria para fo-ra de Detroit".

Quando o pessoal da agência ouviu isso, mesmo na versão de-purada, entrou em pane. Disseram: "Isso não é lugar para fazer con-fissões. Se você disser isso, o telespectador que tiver um Volaré 1975 que enferrujou vai pedir uma reforma de dois mil dólares".

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Então, entramos em acordo. Acrescentei as palavras: "E talvez com razão" — e foi só.

Naquela época, esses anúncios eram incomuns. Mas, dada a

nossa situação, precisávamos de alguma coisa dramática. Por cir-cunstâncias independentes do nosso controle, a Chrysler já tinha uma identidade própria. Já éramos considerados muito diferentes do resto da indústria automobilística norte-americana.

Em termos de marketing, a escolha era simples — ou tentáva-mos nos unir à massa e nos tornávamos mais um membro do grupo, ou aceitávamos nossa identidade distinta e tentávamos aproveitá-la em nosso benefício. Mostrando o presidente da companhia nos a-núncios, escolhemos a segunda alternativa. Nos comerciais de TV, assim como nos anúncios impressos que os precederam, decidimos trabalhar com as reservas e dúvidas do público. Não era segredo que os consumidores americanos não tinham uma opinião favorável sobre os carros americanos. Muitos achavam que os carros alemães e japoneses eram, por princípio, melhores que qualquer outro pro-duzido em Detroit.

De início, fizemos o público saber que isso já não era tão ver-dadeiro. E apoiamos nosso argumento com uma oferta de 50 dóla-res a quem comparasse um dos nossos carros com qualquer outro — mesmo que a pessoa acabasse comprando o carro dos concorrentes.

Ao mesmo tempo, tivemos o cuidado de não ser ousados de-mais. Queríamos projetar um espírito de confiança, e não de arro-gância. Dada a imagem que se tinha dos produtos Chrysler, não queríamos dizer diretamente que os carros da empresa eram os me-lhores — embora acreditássemos nisso.

Na verdade, queríamos que o consumidor chegasse a essa con-clusão por si mesmo. E por isso sustentamos que quem estivesse pensando em comprar um carro deveria pelo menos considerar um dos nossos como candidato. Acreditávamos que a qualidade dos nossos carros ficaria evidente para quem fizesse um teste. Se con-seguíssemos pelo menos encher os showrooms de gente, nossas vendas teriam um aumento proporcional.

E foi isso que aconteceu. Mas eu não podia ficar fazendo anúncios eternamente. Acabei

ficando cansado, e o público também. Numa sociedade descartável como a nossa, não há verdadeiros heróis. Ninguém dura muito. A

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cada semana, a revista People nos traz um novo lote de celebrida-des. Em alguns meses, a maioria delas já desapareceu.

Por isso, não quero jogar fora a boa aceitação que tive. Já entrei na sala das pessoas muitas vezes e quero parar antes que elas di-gam: "Ah, não! Lá vem aquele cara outra vez!"

Desde que comecei a fazer comerciais estou tentando parar. Mas a K & E sempre encontra uma maneira de me fazer prosseguir. Soube recentemente que eles tinham um plano secreto de criar um Muppet Lee Iacocca para se unir a Miss Piggy, Kermit e os outros. Sem me dizer nada, eles testaram a idéia com alguns tipos de públi-co pelo país afora. As pessoas acharam os comerciais divertidos, mas inteligentes demais. Graças a Deus.

A crise da Chrysler já acabou há alguns anos e eu quero mostrar

isso nos comerciais. Quando eu desaparecer da televisão, espero que as pessoas digam: "Nunca mais ouvimos falar daquele cara porque agora ele está bem outra vez. Ele veio até nós quando estava mal, mas agora está bem". Caso contrário, corro o risco de não acredita-rem em mim se eu precisar de ajuda de novo. O outro problema com relação aos comerciais é que eles invadiram minha privacidade.

Numa cidade de uma única indústria, como Detroit, sou uma celebridade há anos. Mas hoje, por causa dos comerciais, nem pos-so andar na rua em New York. Caminho uma quadra e encontro cinco pessoas boquiabertas, outras seis querendo falar comigo e se-te motoristas gritando o meu nome. Foi divertido durante uma se-mana. Depois, tornou-se um suplício.

Há alguns anos, eu estava assistindo a um show de televisão em Detroit. O entrevistador disse a um colunista local: "Eu gostaria de dizer alguns nomes e queria que você me dissesse o que eles sig-nificam nesta cidade".

O primeiro nome foi "Iacocca". Imediatamente, o colunista respondeu: "Fama". "Fama?", perguntou o entrevistador. "O que isso significa? Que

ele é poderoso?" "Não", disse o colunista. "Ele não tem poder. Ele é apenas fa-

moso — famoso por causa dos comerciais de TV que fez." Balancei a cabeça e pensei: "Concordo". É como alguém disse

há alguns anos: em nossa sociedade, uma celebridade é uma pessoa famosa por ser muito conhecida.

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A fama é transitória. Para mim, ela significou principalmente a perda da privacidade. Não me entendam mal — há momentos em que a fama é deliciosa. Lembro-me de uma ocasião, no elevador do Waldorf de New York, em que uma mulher entrou e apontou para mim: "Iacocca", ela disse, "estamos tão orgulhosos de você. Conti-nue o que você vem fazendo. Você é um verdadeiro americano". Apertou minha mão e saiu.

Um dos membros do nosso conselho virou-se para mim e per-guntou: "Isso não faz você se sentir bem?" Mas é claro como água que faz.

Alguns minutos depois, eu estava na rua quando uma senhora idosa se aproximou e disse: "Sei quem você é. Sou de Porto Rico, só vim aqui algumas vezes, mas acho que você tem feito muito bem a este país. Você é tão forte e tão americano!" Há um elemento de patriotismo envolvido em muitos desses encontros, provavelmente por causa do comercial do Made in America, ou simplesmente por-que a América aplaude os que lutam contra os poderosos.

Mas a fama tem outras facetas. Toda vez que tento jantar num restaurante, recebo a visita, a cada cinco minutos, de alguém que quer falar sobre seu Mustang 65 ou seu Dodge Dart que ainda está rodando — ou que não está rodando mais!

Acreditem ou não, na realidade sou uma pessoa muito reserva-da. Não gosto nem de me lembrar da ocasião em que, há alguns a-nos, fui convidado para mestre de cerimônias do grande desfile do Dia do Descobrimento da América, em New York. Foi uma grande honra, mas fiquei muito tenso ao me ver exposto daquele jeito, di-ante de um milhão de pessoas, acenando para todos como se fosse Douglas McArthur ou alguém que estivesse voltando da guerra.

É claro que gosto de que reconheçam o que fiz, mas sempre me lembro de que minha fama tem muito pouco a ver com as coisas que realizei. Sou famoso por causa do Mustang? Por ter dirigido a Ford nos anos mais lucrativos da sua história? Por ter levantado a Chrysler? É uma constatação horrorosa, mas tenho a impressão de que serei lembrado por meus comerciais de TV. Aquele maldito a-parelho!

Há vinte e cinco anos, descobri uma coisa impressionante. Fi-quei sabendo que nas casas americanas a televisão ficava ligada, em média, durante 42,7 horas por semana! Desde então, tenho ficado cada vez mais espantado com o poder da televisão. Comecei gas-tando milhões na compra de comerciais. Num certo momento, na

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Ford, eu me deixei entusiasmar e comprei 100 por cento dos co-merciais dos jogos de futebol da NFL. Isso seria impossível, hoje em dia, a meio milhão de dólares por minuto.

Eu já sabia o poder que a televisão tinha naquela época, mas ainda não o havia experimentado pessoalmente. Como resultado dos meus comerciais para a Chrysler, tenho ouvido falar de todo ti-po de gente. Vários especialistas em óculos examinaram meus ócu-los e concluíram que a armação era de fabricação francesa. Acha-ram que não era adequada a um sujeito que apresenta um comercial Made in America. E três cirurgiões-dentistas me escreveram falan-do das minhas dentaduras soltas. Fiquei ofendido e respondi que to-dos os meus dentes eram naturais — e estavam muito bons. Eles fi-caram preocupados porque meus dentes não apareciam nem quando eu sorria, mas achavam que a cura era simples. Tinham o que cha-mavam de "procedimento estético" para puxar meus dentes para fo-ra ou para cortar um pouco meus lábios! É verdade que eu faço tudo para vender carros, mas isso também já é demais.

A julgar pela minha correspondência, parece que também aju-dei a popularizar as camisas azuis com colarinho branco. Aliás, embora nunca tenha fumado um charuto em qualquer comercial de TV, fui visto algumas vezes na televisão com um charuto na mão. E isso é mentira, acreditem! A imprensa insiste em dizer que eu fumo de 12 a 100 charutos por dia. Pura ficção. Três charutos por dia são mais do que suficientes para mim.

Foram aqueles malditos comerciais que deram origem aos boa-

tos de que eu estaria para me candidatar à Presidência. Eu me fiz patriota e disse: "Façamos os Estados Unidos significarem alguma coisa outra vez", e as pessoas se identificaram com isso. Eu realmen-te não sabia que os comerciais seriam vistos sob essa perspectiva.

Os boatos sobre a Presidência cresceram muito em 1982, com uma matéria de capa do The Wall Street Journal, cuja primeira li-nha dizia: "Lee Iacocca, segundo se diz em Detroit, está pretenden-do ocupar um cargo público, mas um cargo suficientemente impor-tante para satisfazer a um homem com um ego tão grande quanto todos os out-doors. Dizem que Lee Iacocca, presidente do conselho da Chrysler Corporation, gostaria de ser o presidente de todas as pessoas. Se um ator de Hollywood pode, por que não um vendedor de automóveis de Detroit?"

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A lógica era um pouco mais do que forçada. Iacocca faz uma série de palestras. Ele faz aqueles comerciais de TV. Está envolvido com a Estátua da Liberdade. É uma figura colorida numa indústria de homens sem rosto. É evidentemente um grande egocêntrico. Por-tanto, ele é candidato à Presidência.

No entanto, a história chamou muita atenção. Muitos artigos, muitas cartas. Como começou? Para mim, o mais provável é que alguns jornalistas de Detroit estivessem bebendo juntos e inventas-sem isso como piada. Quando me perguntaram pela primeira vez se eu queria ser presidente, eu não soube o que dizer e fiz uma brinca-deira: "Claro que quero ser presidente, mas só se for nomeado, e só por um ano". Eu nem disse que era por um mandato, pois isso enve-lhece. Já envelheci o suficiente no primeiro mandato da Chrysler.

O artigo de Amanda Bennett apareceu na coluna semi-humorística do Journal, no meio da primeira página. Amanda havia feito uma reportagem sobre o último bordel de Michigan, e essa história saiu na mesma seção. Isso descreve muito bem o que achei do artigo.

Alguns meses depois, saiu uma matéria na Time a respeito de possíveis candidatos à Presidência em 1984, e mais uma vez o meu nome apareceu. A revista dizia que eu poderia me candidatar, pois tenho "um rosto expressivo". Mais um exemplo de lógica política persuasiva.

Há algo curioso nessa expressão. Em 1962, a Time deu uma grande recepção em Detroit, e Henry Luce, seu fundador, estava presente. Fui convidado porque era um jovem vice-presidente da Ford, em ascensão, embora isso tivesse acontecido alguns anos an-tes do aparecimento do Mustang.

A certa altura fui apresentado a Mr. Luce. Ele me olhou e dis-se: "Rosto expressivo". Alguns minutos depois, um dos seus asses-sores me disse: "Um dia ele vai colocar você na capa da revista. Ele adora rostos expressivos". E quero que me caia um raio na cabeça se não foi o espírito de Henry Luce que usou a mesma expressão para me descrever vinte anos depois. Isso me atingiu como uma pe-drada. Então é assim que escolhemos nossos líderes?

As pessoas terminam na Casa Branca por várias razões. Certa vez perguntei a Jimmy Carter por que ele se tinha candidatado e ele me disse: "Como governador da Geórgia, eu recebia visitas de ou-tros candidatos à Presidência e eles não me pareciam muito esper-tos". Sei do que ele estava falando.

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Mas embora eu gostasse de ser presidente, tudo não passa de fantasia, pois não me imagino concorrendo ao posto. Os candidatos são programados como robôs, dezesseis horas por dia — almoços, jantares, circuitos de banquetes, apertos de mãos, visitas às portas das fábricas —, é uma maratona interminável. Para se candidatar a presidente, é preciso ter entusiasmo. Para agüentar tudo o que é ne-cessário, é preciso querer demais o cargo.

Já apertei milhões de mãos. Nem consigo me lembrar de quan-tas foram as convenções e reuniões de que participei nos últimos quarenta anos. Já peguei tantos copos de coquetel que minha mão direita está sempre fechada. Sinto-me como se já tivesse visitado todas as fábricas do mundo.

Até agora já fiz cerca de cem palestras só no salão do Waldorf-Astoria. Hoje, os funcionários do hotel sabem a história da Chrysler quase tão bem quanto eu. Numa das minhas palestras mais recentes, vi alguns garçons repetindo em voz baixa meu discurso, à medida que eu ia falando. Mais tarde, um deles veio me pedir uma garantia de empréstimo de 200 dólares até o dia do pagamento!

Mas, falando sério, estou exausto. Envelheci durante meus a-nos na Chrysler. Se eu tivesse dez anos a menos, talvez entrasse na política. Há dez anos eu tinha disposição e entusiasmo de sobra. Mas a dispensa da Ford e a longa crise da Chrysler, e especialmente a perda da minha querida esposa, me deixaram em péssimo estado.

Além disso, não tenho temperamento de político. Observei McNamara, e se ele não conseguiu agüentar e ajudar de fato o país possivelmente eu também não conseguiria, pois ele é mais discipli-nado que eu. Por outro lado, sou impaciente demais. Sou rigoroso com os erros e não sou nada diplomático. Nem posso me imaginar esperando durante oito anos pela aprovação de uma emenda relativa a energia.

Sou muito franco para ser um bom político. Se um cara vem com bobagem, já vou dizendo para ele ficar quieto, porque está er-rado. Acho que a Presidência não funciona bem desse jeito.

Mas, de fato, acho que entre nossas lideranças há muitos advo-gados e muito pouca gente do mundo de negócios. Gostaria de ver um sistema em que houvesse vinte administradores excelentes para dirigir o setor de negócios do país e que até mesmo recebessem 1 milhão de dólares por ano, com isenção de impostos. Seria um ver-dadeiro incentivo, e então teríamos muita gente mais talentosa inte-ressada na vida pública.

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Há alguns anos, um grupo poderosíssimo de políticos de Mi-chigan tentou me lançar como candidato a governador. Por quê? Porque ser governador é o melhor caminho para ser presidente. Eles me disseram: "Você salvou a Chrysler, e agora ela está indo muito bem. Que tal fazer o mesmo com Michigan? Ele tem os mesmos problemas, e agora é o seu Estado".

Dei-lhes uma boa resposta: "Vejam, se algum dia eu me candi-datar a governador, dêem-me um Estado rico como o Arizona. Tal-vez então eu pense em aceitar. Mas nada de me meter com pessoas que não tenham um pouco de dinheiro no banco. Uma vez já basta!"

Desde que aquela matéria foi publicada no The Wall Street

Journal, em 1982, tenho gasto muito tempo desmentindo minha candidatura à Presidência. Mas não adianta, pois mesmo os verda-deiros candidatos dizem que não o são, até decidirem tornar públi-cas suas ambições. Por isso, muitos não acreditam em mim. "Se ele não quer ser presidente", perguntam, "então por que está escreven-do um livro? Por que ele estaria envolvido com a Estátua da Liber-dade se não estivesse pensando em se enrolar na bandeira?"

Quando percebi que ninguém acreditava nos meus desmentidos, resolvi me divertir um pouco. Sempre que me perguntam se pretendo me candidatar, digo: "É preciso acabar com esses boatos. Eu os acho injustificados e perturbadores. Além disso, provocam muita inquie-tação entre os membros da equipe da minha campanha".

Eu não podia fazer quase nada para acabar com as especula-ções. Se você só fala de carros, dizem que você é limitado. Se você fala de assuntos de interesse nacional ou internacional, dizem que você está querendo um cargo político.

Finalmente, assinei um contrato de três anos com a Chrysler, em fins de 1983. E isso, mais do que tudo, pôs fim às minhas pre-tensas ambições políticas.

Embora eu nunca tenha sido candidato, aprendi muito com toda essa conversa sobre a Presidência. Pouco depois de tudo isso come-çar, eu estava conversando com um publicitário que me disse uma coisa interessante: "Já sei por que todos falam que você vai se can-didatar à Presidência. Já não acreditam em ninguém mais. Você lhes fala e os faz acreditar que está defendendo alguma coisa e luta por isso. Você não os engana, e a opinião pública americana já foi enganada demais".

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Ao que parece, também transmito às pessoas a imagem do bom administrador. Sou capaz de cortar custos, ganhar dinheiro e gerir uma grande instituição, e, se há alguma coisa que eu sei fazer bem, é isso. Sei controlar um orçamento e passei pela experiência de le-vantar uma empresa à beira da falência. Os americanos devem estar à procura de um líder capaz de equilibrar o orçamento e de restabe-lecer o sentimento de um objetivo comum a todo o país.

Recebo muitas cartas falando da minha candidatura a presiden-te. Elas me fizeram tomar consciência de que há um vazio de lide-rança. As pessoas estão ansiosas por ver alguém que lhes diga a verdade — que os Estados Unidos não se encontram tão mal, que são um grande país ou que, pelo menos, poderão voltar a ser um grande país se voltarmos a trilhar o caminho certo. As pessoas me escrevem porque apareço na TV, porque faço palestras e porque a Chrysler está em forma outra vez. Um rapaz me escreveu: "Por que você não levanta este país? Por que perde seu tempo vendendo au-tomóveis?"

As pessoas estão ansiosas por ser lideradas por alguém. Não acredito nem um pouco que vivemos numa sociedade de anti-heróis. O que acontece é que, desde Eisenhower, não encontramos um líder em quem possamos confiar. Kennedy foi assassinado! Johnson nos fez entrar em guerra. Nixon nos desgraçou. Ford foi um líder nomeado, interino. Carter, por todas as virtudes que tinha, mostrou-se inadequado ao seu tempo. Reagan vive no passado.

Acabaremos encontrando alguém capaz de ser um verdadeiro líder. Sinto-me profundamente honrado pelo fato de muitas pessoas terem achado que eu pudesse ser esse líder. Só isso já me dá toda a satisfação de que eu possa vir a necessitar. •

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XXIV UMA VITÓRIA

AMARGA

m 1982, quando a fumaça da bata-lha se dissipou, começaram a acontecer coisas boas.

Apenas três anos antes, a Chrysler Corporation teria que vender 2,3 milhões de carros para equilibrar suas despesas e receitas. Infe-lizmente, estávamos vendendo apenas cerca de 1 milhão. Basta um cálculo simples para perceber que esse número de carros vendidos não adiantava muito.

Mas, em 1982, graças ao esforço combinado de um grande número de pessoas, reduzimos nosso ponto de equilíbrio para 1,1 milhão de unidades. Pouco depois estávamos até admitindo novos funcionários e fazendo contratos com novos revendedores.

Em outras palavras, estávamos a postos para uma grande vira-da. Infelizmente, a economia não estava.

Mas, no final de 1982, quando a economia voltou a se aquecer, as vendas de carros começaram a aumentar. Quando o ano termi-nou, até apresentamos um modesto lucro.

Meu primeiro impulso foi convocar a imprensa para contestar todos os adjetivos usados para nos qualificar durante a longa crise por que passamos. Atenção, repórteres. Noticiem imediatamente que a Chrysler já não está "com fome de dinheiro", "debatendo-se"

E

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ou "financeiramente arrasada". Se quiserem insistir, podem conti-nuar a nos chamar de "o terceiro fabricante americano de automó-veis". Mas as outras expressões estão banidas para sempre!

No ano seguinte, 1983, conseguimos um autêntico lucro opera-cional de 925 milhões — o melhor de toda a história da Chrysler.

Percorremos um longo caminho desde as audiências referentes às garantias de empréstimo, quando tivemos que fazer tantas pro-messas. Prometemos modernizar nossas fábricas e implantar nelas a mais avançada tecnologia. Prometemos converter toda a nossa linha de carros para a tecnologia de tração dianteira. Prometemos ser os líderes em economia de combustível. Prometemos manter os em-pregos de meio milhão de trabalhadores. E prometemos oferecer produtos irresistíveis.

No período de três anos, cumprimos cada uma dessas promessas. Na primavera de 1983, estávamos, na verdade, em condições

de fazer uma nova oferta de ações no mercado. Originalmente haví-amos planejado vender 12,5 milhões de ações, mas nossas ações e-ram tão procuradas que acabamos emitindo mais do que o dobro.

Os compradores faziam fila de espera. Os 26 milhões de ações que oferecemos foram vendidos em uma hora. Com um valor de mercado equivalente a 432 milhões de dólares, esta foi a terceira maior oferta de ações da história americana.

É verdade que, toda vez que se faz uma emissão de ações, pro-voca-se uma natural diluição do valor de cada ação. Mas então a-conteceu uma coisa curiosa. Na época da oferta, nossas ações ti-nham um valor unitário de 16 5/8 dólares. Em algumas semanas, ha-via tanta procura pelas ações da Chrysler que o preço subiu rapida-mente para 25 dólares — e pouco depois para 35 dólares. Se é esse o resultado da diluição, sou totalmente a favor dela.

Pouco tempo depois da oferta de ações, pagamos 400 milhões de dólares — um terço do total. Esta parcela representava a mais cara das três retiradas que fizemos, pois as taxas de juros que inci-diam sobre ela eram da ordem de 15,9 por cento.

Algumas semanas depois, tomamos uma decisão importante — pagar imediatamente todo o valor emprestado, sete anos antes do vencimento. Nem todos na Chrysler acharam essa medida correta. Afinal, é preciso ter muita certeza do que vai acontecer nos anos seguintes para lançar mão de uma quantia como essa.

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Mas naquele momento eu estava confiante no nosso futuro. A-lém disso, estava decidido a tirar o governo do nosso pé o mais rá-pido possível.

Anunciei o pagamento integral do empréstimo no National Press Club, no dia 13 de julho de 1983 — por uma misteriosa coin-cidência, exatamente cinco anos depois do dia em que Henry Ford me demitiu.

"Esse dia vale pelos três anos miseráveis por que passamos", eu disse. "Nós, da Chrysler, fazemos empréstimos à moda antiga. Nós pagamos."

Eu estava passando por um bom momento. "O pessoal de Wa-shington tem muita experiência em fornecer dinheiro", falei no meu pronunciamento, "mas muito pouca em recebê-lo de volta. Por isso, talvez seja necessário que o médico esteja alerta para o caso de al-guém desmaiar quando entregarmos o cheque."

Na verdade, o governo nem podia aceitar o cheque naquele dia. Por questões de burocracia, ele levou mais de um mês para desco-brir o que fazer para recebê-lo. Parece que nunca ninguém havia pago desta forma antes.

Numa cerimônia em New York, apresentei aos nossos banquei-ros o cheque de valor mais alto que jamais vi: um cheque de 813.487.500 dólares. Também ganhei uma caixa de maçãs que ha-via apostado. Durante as discussões no Congresso, o prefeito Koch, de New York, havia apostado essa caixa de maçãs dizendo que a cidade pagaria seus empréstimos com garantias federais antes de nós. Mas quando liquidamos nossa dívida, a cidade de New York ainda estava devendo mais de 1 bilhão de dólares.

Agora que estávamos fora de perigo, era hora de pensar em di-

versões outra vez. Desde que Detroit havia deixado de fabricar con-versíveis, há quase dez anos, eu havia me esquecido da existência deles. O último conversível nacional foi o Cadillac Eldorado, cuja produção parou em 1976. O último conversível da Chrysler fora o Barracuda, de 1971.

Muita gente teve a impressão de que os conversíveis haviam sido proibidos pelo governo. Isso não é bem verdade, embora as coisas estivessem de fato caminhando nessa direção. Em Washing-ton, os regulamentadores realmente haviam feito força para proibir o conversível — ou, pelo menos, para provocar mudanças significa-tivas em sua estrutura. Naquela época, as regulamentações gover-

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namentais já nos davam dores de cabeça suficientes e ninguém es-tava querendo arranjar mais problemas; por isso o conversível foi suspenso.

O que realmente acabou com o conversível foi o ar-condicionado e o estéreo. Nenhum deles faz sentido se você está di-rigindo um carro sem teto.

Em 1982, quando começamos a nos recuperar, decidi trazer o conversível de volta. A título de experiência, construí um artesanal-mente, a partir de um Le Baron. Eu o dirigi durante o verão — e as reações foram bastante significativas.

Motoristas de Mercedes e Cadillacs corriam atrás de mim e me faziam parar, como se fossem policiais. "Que carro é esse que você está dirigindo?" "Quem o fabricou?" "Onde posso comprar um?" Todos faziam essas mesmas perguntas.

Quando reconheciam meu rosto por trás do pára-brisa, queriam assinar o pedido de um carro igual na hora. Certa vez fui ao shop-ping center local e uma multidão se reuniu em volta de mim e do meu conversível. Daria até para pensar que eu estava distribuindo notas de 10 dólares. Não era preciso ser gênio para perceber que aquele carro estava agitando muita gente.

No escritório, decidimos acelerar a pesquisa. Nós pensávamos: "Vamos construir um conversível. Não vamos ganhar dinheiro, mas teremos uma grande publicidade. Se tivermos sorte, empataremos despesas e receita".

Assim que souberam que iríamos lançar um novo Le Baron conversível, pessoas de todo o país começaram a fazer reservas. Uma dessas pessoas foi Brooke Shields, e nós lhe enviamos o pri-meiro conversível produzido, como promoção especial. Estava cla-ro, então, que venderíamos um número razoável daqueles bebês. Acabamos vendendo 23.000 unidades no primeiro ano, e não as três mil que havíamos planejado.

Pouco tempo depois, a Ford e a GM estariam lançando seus próprios conversíveis. Em outras palavras, a pequena Chrysler pas-sava a liderar o mercado, ao invés de pegar as rebarbas.

O conversível foi fabricado principalmente por diversão — e

para obter publicidade. Mas, em 1984, lançamos um novo produto que era divertido e lucrativo — o minifurgão T-115.

O minifurgão é um veículo inteiramente novo, maior que uma camioneta convencional e menor que um furgão convencional.

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Transporta sete passageiros. Tem tração dianteira, faz 12 qui-lômetros por litro e, o que é melhor, cabe numa garagem comum.

Sempre que falo aos estudantes das escolas de administração do país, alguém me pergunta como eu consegui produzir o minifur-gão tão rapidamente, depois da longa crise por que passamos. "Co-mo o senhor pôde, como administrador, dispor de 700 milhões de dólares, com três anos de antecedência, enquanto vocês estavam quase quebrados?"

Boa pergunta. Mas, na verdade, não tive escolha. Eu sabia que não podíamos ficar parados. Nossa luta não teria sentido se não ti-véssemos nada de novo para vender quando estivéssemos recupera-dos. E, meio de brincadeira, eu costumava dizer: "Ainda estou ato-lado até o pescoço. Que tal mais uns 700 milhões entre amigos?"

O minifurgão, na verdade, nasceu na Ford. Pouco depois da primeira crise da OPEP, enquanto eu e Hal Sperlich estávamos tra-balhando no Fiesta elaboramos um projeto que chamamos de Mini-Max. Tínhamos em mente um pequeno furgão com tração dianteira, compacto por fora e espaçoso por dentro. Construímos um protóti-po e nos apaixonamos por ele.

Gastamos 500 mil dólares, a seguir, em pesquisas sobre ele. E concluímos três coisas: primeiro, o estribo deveria ser suficiente-mente baixo para atender às mulheres, que, em sua maioria, usavam saias naquela época; segundo, o carro deveria ter uma altura que lhe permitisse caber numa garagem; e, terceiro, deveria ter um "nariz" com o motor na parte frontal superior, de modo a deixar alguns cen-tímetros de espaço de amortecimento em caso de acidente.

Segundo a pesquisa, se atendêssemos a esse ponto, teríamos em perspectiva um mercado de 800 mil unidades por ano — e isto em 1974! Naturalmente, fui ver o rei no mesmo momento.

"Esqueça", disse Henry. "Não quero fazer experiências!" "Experiências?", falei. "O Mustang foi uma experiência. O

Mark III foi uma experiência. Este carro é outro vencedor." Mas Henry não quis saber de mais nada. Pelos meus princípios, se você não é o número um, tem que i-

novar. Se você é a Ford, você tem que atingir a GM em algum pon-to fraco. Tem que descobrir fatias de mercado em que eles não pen-saram. Com eles, você não pode disputar de igual para igual — são grandes demais. Você tem que atacá-los pelos flancos.

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Assim, ao invés de fazer o minifurgao na Ford em 1978, Hal e eu o fizemos na Chrysler em 1984. E agora são os clientes da Ford que nós estamos roubando.

Desta vez, aliás, a pesquisa foi mais convincente ainda. Hoje, meados de 1984, as unidades do novo veículo já foram todas ven-didas.

Enquanto isso, a Ford e a GM estão brigando uma com a outra para lançar suas próprias versões. Creio que a imitação é a forma mais sincera de aplauso.

Mesmo antes de o novo minifurgao ser lançado, a revista Con-noisseur o escolheu como um dos carros mais bonitos que já foram projetados. A Fortune considerou-o um dos dez produtos mais ino-vadores do ano. E as revistas especializadas em automóveis o apre-sentaram na capa meses antes de ele ter sido posto à venda.

Desde que lançamos o Mustang, em 1964, eu não ficava tão entusiasmado com um novo produto — e tão confiante no seu su-cesso. Ainda me lembro da primeira vez em que o dirigi nas pistas de provas. Ninguém conseguiu me fazer sair de lá. Fiquei dando voltas e voltas. Adorei o que os engenheiros fizeram com o manejo e o molejo. Era realmente muito agradável dirigi-lo.

Lucros recordes, pagamento dos empréstimos, o minifurgao — tudo isso fez parte do nosso triunfo.

Mas o nosso sucesso também teve seu lado ruim. Quando fi-nalmente fizemos o desfile da vitória, faltavam muitos soldados nossos. Ganhamos a guerra, mas tivemos um grande número de baixas. Muitas pessoas — da produção, da administração e das re-vendedoras — que estiveram conosco em 1979 já não estavam por perto para saborear os frutos da vitória.

Houve também o problema dos 14,4 milhões em títulos que

emitimos a favor da Comissão de Empréstimos em junho de 1980, pouco antes de recebermos nossos primeiros 500 milhões de dólares de empréstimos garantidos.

Esses títulos asseguravam a compra de 14,4 milhões de ações da Chrysler a 13 dólares cada uma. Quando os emitimos para facili-tar as coisas, nossas ações estavam valendo cerca de 5 dólares. Na-quela época, 13 dólares por ação era algo muito remoto. Mas agora, com as nossas ações a um preço próximo de 30 dólares, o governo esfregava as mãos de contentamento. Ele poderia exercer o direito de compra até 1990, quando os empréstimos venciam oficialmente.

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Essas garantias eram uma espada suspensa sobre a nossa cabe-ça. A qualquer momento, nos sete anos seguintes, o governo — ou quem quer que estivesse de posse das garantias — poderia solicitar a emissão de 14,4 milhões de ações extras da Chrysler a um preço privilegiado.

Na nossa opinião, já estávamos pagando um pouco demais pe-los empréstimos garantidos pelo governo. Tínhamos tomado em-prestado 1,2 bilhão por dez anos, mas pagamos em três. Durante aqueles três anos, pagamos 404 milhões de juros, 33 milhões de ho-norários administrativos ao governo federal e mais 67 milhões aos advogados e bancos de investimento.

Conforme o preço das ações, as garantias poderiam valer até 300 milhões de dólares. Juntando os juros e as taxas, estaríamos pa-gando ao governo e aos bancos o equivalente a 24 por cento de ju-ros ao ano. Quando se considera que o dinheiro do governo jamais esteve em risco — na verdade, tinham acesso a tudo que possuía-mos, que valia muito mais que 1,2 bilhão —, esse tipo de lucro era quase indecente. E o mais importante é que, entre todas as pessoas que nos ajudaram em nossa recuperação, ninguém estava em condi-ções de tirar proveito,do nosso sucesso. Quando estávamos com problemas, o sacrifício tinha sido dividido; deveríamos dividir tam-bém as recompensas. Se o governo descontasse as garantias da C-hrysler, que tipo de exemplo estaria dando aos trabalhadores e for-necedores — e aos revendedores que se haviam empenhado tanto?

Por isso, pedimos discretamente ao governo que nos devolves-se as garantias em troca de um pequeno pagamento — ou nenhum.

Que grande erro! Houve uma enorme onda de protestos contra nosso pedido. "Chutzpah", disse o The Wall Street Journal, bufan-do. "Não há outra palavra para definir o pedido da Chrysler." Desta vez, entretanto, o Journal não estava sozinho. Todos achavam que estávamos sendo gananciosos. Do ponto de vista das relações pú-blicas, foi um desastre. Num determinado momento, éramos heróis por termos pago o empréstimo sete anos antes do prazo; no momen-to seguinte, éramos imprestáveis. Foi uma experiência dolorosa.

Logo recuamos. Para chegar a um acordo, oferecemos à Co-missão de Empréstimos 120 milhões de dólares pelos títulos. Nada feito. Então aumentamos a oferta para 187 milhões. Nada. Expressão iídiche, de gíria, que significa afronta total. (N. do T)

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Finalmente, no dia 13 de julho, no mesmo dia em que pagamos os empréstimos, oferecemos 250 milhões de dólares pelos títulos.

"Nada disso", respondeu a comissão. "Vamos vendê-los a quem fizer a melhor oferta."

E assim fizeram. Don Regan, um ex-corretor de ações, encarre-gou-se do caso. Insistiu em que se fizesse um leilão — o que gerou bons honorários para o pessoal de Wall Street. Mas já era de se es-perar. Desde o início ele fora contra as garantias de empréstimo por motivos ideológicos. Em três longos anos, nunca foi a uma reunião da Comissão de Empréstimos e nunca fez nada para nos ajudar.

O pessoal do Reagan, liderado por Don Regan, ficava dizendo sempre: "Vocês só vão ter o que a administração Carter prometeu. Não vamos mover uma palha para mudar nada. Se isso prejudica ou ajuda vocês, não nos interessa".

Quando começamos a nos recuperar, eu disse: "Confiem em mim. Dêem algum crédito ao nosso sucesso. Pelo menos porque se-ria uma boa política". Mas Donald Regan e a maioria da adminis-tração disseram: "Fomos ideologicamente contra a operação, e ain-da somos. Não acreditamos em resultados". Até o triste final, man-tiveram a opinião de que os empréstimos governamentais para a Chrysler haviam criado um mau precedente.

A coisa esquentou tanto que fui duas vezes conversar com o presidente Reagan. Ele reconheceu que, em termos de eqüidade, minhas alegações eram fortes. Numa viagem que fizemos no Força Aérea Um a St. Louis, ele pediu a Jim Baker para cuidar do assunto.

Baker de fato cuidou, mas não muito. Limitou-se a devolver o caso a Don Regan, que fez de mim o que quis. Não sei o que acon-teceu na Casa Branca, mas Regan acabou vencendo.

Até agora não consigo acreditar. No lugar de onde vim, se eu, como chefe, digo a alguém para fazer alguma coisa e nunca recebo resposta, eu demito essa pessoa. É incrível que o Regan não preste contas ao Reagan.

Afinal, fomos forçados a fazer contra-ofertas à nossa própria oferta de 250 milhões e terminamos comprando os títulos por mais de 311 milhões de dólares. Na época, fiquei furioso. Na verdade, ainda estou furioso. Por que deveria o governo ficar brincando no mercado de ações com nossos títulos? Eu havia oferecido 250 mi-lhões de dólares, que era um preço generoso. Mas não era o sufici-ente. Sua atitude era: "A Chrysler que se dane. Vamos aproveitar ao máximo".

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Um deputado disse: "Que oportunidade! Vamos usar esses 311 milhões de dólares no treinamento de trabalhadores desempregados da indústria de automóveis. O dinheiro veio da Chrysler; por isso, vamos colocá-lo de novo na indústria de automóveis. Vamos ajudar o pessoal que perdeu o emprego quando a Chrysler teve que fazer cortes". Mas o governo não estava interessado.

Propus outro plano: "Já que vocês não esperavam esta bolada, multipliquem esse dinheiro por 10 e usem os três bilhões para aju-dar nossa indústria a competir com o Japão".

Mas o governo decidiu devolver o dinheiro ao fundo geral. Temo que os nossos 311 milhões de dólares não tenham feito gran-de coisa pelo déficit federal. Mas cada pouquinho já é uma ajuda!

O episódio dos títulos me deixou um gosto amargo na boca.

Mas o que realmente fez da vitória da Chrysler uma bênção doloro-sa para mim foi que ela coincidiu com a maior tristeza pessoal da minha vida.

Em toda a minha carreira na Ford, e mais tarde na Chrysler, minha esposa, Mary, foi a maior fã e líder da torcida. Éramos muito unidos e ela sempre estava ao meu lado.

Mas Mary tinha diabetes, o que provocava muitas outras com-plicações. As nossas filhas, por exemplo, nasceram por cesariana. Mary também sofreu três abortos. Uma pessoa com diabetes deve evitar, acima de tudo, o stress. Infelizmente, com o caminho que es-colhi, isso não era possível.

Mary teve o seu primeiro ataque cardíaco em 1978, logo depois que fui demitido da Ford. Ela ficou doente só por algum tempo, mas o trauma piorou ainda mais a sua saúde.

Em janeiro de 1980, teve um segundo ataque. Ela estava na Flórida, e eu num restaurante de Washington com todos os nossos companheiros. O presidente Carter havia acabado de assinar o Ato de Garantia de Empréstimos e nós estávamos comemorando a vitó-ria. No meio do jantar, recebi um telefonema da Flórida avisando que Mary havia tido um ataque cardíaco. Dois anos depois, na pri-mavera de 1982, ela teve um derrame. Sempre que ela teve proble-mas de saúde, estávamos passando por um período de grande tensão na Ford e na Chrysler.

Quem sofre de diabetes, ou vive com um diabético, reconhece-rá os sintomas. Mary era uma diabética bastante frágil. Seu pân-creas só trabalhava parte do tempo. Ela controlava muito bem sua

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dieta, mas suas injeções de insulina, que ela aplicava em si mesma duas vezes ao dia, eram outra história. Era muito comum ela ter choques insulínicos, principalmente no meio da noite. E era suco de laranja com açúcar, endurecimento do corpo, calafrios, e algumas vezes a correria dos enfermeiros no quarto e a ida às pressas para o hospital.

Quando eu tinha que viajar, o que era freqüente, ligava para Mary duas ou três vezes por dia. Eu era capaz de adivinhar seu ní-vel de insulina só pela sua voz. Nas noites em que eu não estava em casa, sempre deixávamos alguém com ela. Havia perigo permanen-te de choque ou de coma.

Lembrarei eternamente que minhas filhas, além de ter aceito a doença da mãe, sempre atenderam às suas necessidades como duas pequenas santas.

Na primavera de 1983, Mary piorou muito. Seu coração cansa-do simplesmente parou. No dia 15 de maio, ela faleceu. Tinha ape-nas 57 anos e ainda era muito bonita.

Sempre lamento que ela não tenha vivido para ver o pagamento do empréstimo, apenas dois meses depois, o que a teria deixado muito feliz. Mas ela sabia que nós íamos conseguir isso. "Os carros estão realmente melhorando", ela me dizia. "Não são como o ferro-velho que você trazia para casa há uns dois anos atrás."

Seus últimos anos não foram fáceis. Mary nunca entendeu co-mo eu conseguia agüentar Henry Ford. Depois da investigação de 1975, ela queria que eu trouxesse tudo a público e, se necessário, que eu o processasse. Mas, embora não tenha concordado com a mi-nha decisão de continuar, ela a respeitou e continuou a me apoiar.

Nos meus dois últimos anos na Ford, protegi Mary e as garotas da maior parte do que estava acontecendo no escritório. Quando fui demitido, senti mais por elas do que por mim mesmo. Afinal de contas, elas realmente não sabiam até que ponto as coisas estavam ruins.

Depois da demissão Mary foi mesmo uma fortaleza. Sabia que eu queria ficar no ramo de automóveis e me encorajou a ir para a Chrysler — se era o que eu queria. "Deus faz tudo acabar bem", ela dizia. "Talvez a demissão da Ford tenha sido a melhor coisa que a-conteceu a você."

Mas depois dos primeiros meses na Chrysler, nosso mundo começou a desabar novamente. A gasolina é o sangue da indústria automobilística e as taxas de juros são o oxigênio. Em 1979, sofre-

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mos tanto pela crise do Irã quanto pelo aumento das taxas de juros. Se esses dois eventos tivessem ocorrido um ano antes, eu jamais te-ria ido para a Chrysler.

Eu não queria desistir, mas talvez os acontecimentos tivessem superado a nossa capacidade de lidar com eles. Num certo momen-to, Mary me pediu para sair. "Amo você e sei que você consegue fazer tudo em que se concentrar", ela disse. "Mas esta montanha é alta demais. Não há mal em desistir de uma tarefa impossível."

"Sei disso", eu disse, "mas as coisas vão melhorar." Eu não sa-bia que as coisas ainda iriam piorar muito antes de começar a me-lhorar. Como aconteceu comigo, Mary ficou chocada pelo fato de velhos amigos nos abandonarem depois da minha demissão da Ford. Mas ela não se deixou abater. Sempre foi uma pessoa forte e decidida — e assim permaneceu.

Certo dia, pouco depois de eu ter entrado na Chrysler, ela leu no jornal que a filha de uns ex-amigos nossos muito próximos ia se casar. Nós dois gostávamos muito da garota.

"Eu vou ao casamento", disse Mary. "Você não pode", repliquei. "Você é persona non grata e não

foi convidada." "Isso é o que você pensa!", disse Mary. "É claro que posso ir à

cerimônia. Gosto da garota e quero assistir ao casamento dela. Se os pais não querem nada conosco porque você foi demitido, o proble-ma é deles."

Ela também foi ao encontro anual da Ford depois que eu saí. "Há muitos anos eu vou", ela disse. "Por que não iria agora? Afinal, depois da família Ford, somos os maiores acionistas."

Mary se saía muito bem nas ocasiões difíceis. Nas épocas ru-ins, ela agüentava tudo. Certa vez, quando fomos visitar nosso grande amigo Bill Winn, ele teve um ataque cardíaco. Enquanto eu entrava em pânico, ela conseguiu chamar a equipe de emergência dos bombeiros, com um Pulmotor, e providenciar um cardiologista com seus equipamentos — tudo isso em vinte minutos.

Outra ocasião, uma grande amiga nossa, Anne Klotz, telefonou para Mary queixando-se de fortes dores de cabeça. Mary correu pa-ra a casa de Anne e a encontrou inconsciente no chão; chamou a ambulância, foi para o hospital e ficou com ela até o fim da cirurgi-a, de emergência, no cérebro.

Nada a impressionava. Se Mary presenciasse um acidente e visse alguém com a cabeça decepada, diria: "O que eu faço agora?"

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Ela sabia responder a crises; graças a isso, há duas pessoas que de-vem a sua vida a ela. Quando nossa filha Kathi tinha dez anos, os freios de sua bicicleta emperraram. Ela voou por cima do guidão e caiu de cabeça. Alguns anos antes, o médico havia dito que uma maneira segura de saber se alguém havia sofrido uma comoção ce-rebral era ver se as pupilas estavam dilatadas a ponto de ocupar to-do o olho, formando uma massa negra. Dei uma olhada nas pupilas de Kathi — estavam grandes e negras. Comecei a desmaiar. Mary, enquanto isso, saiu voando, colocou Kathi na cama de um hospital em meia hora, voltou para casa, fez meu prato favorito e me colo-cou na cama em meia hora, sem dizer uma palavra, Ela era a essên-cia da graça sob pressão.

Hoje, lembrando-se de Mary, os amigos dirão: "Deus, sempre me lembro de uma coisa nela — sua força diante de condições difí-ceis. Seu permanente bom humor".

Mary se preocupava muito com a pesquisa sobre o diabetes e ela mesma era voluntária para cuidar de outros diabéticos. Aceitava sua condição com muita coragem e encarava a morte com naturali-dade. "Você acha que eu estou mal?", costumava dizer. "Você devia ter visto o pessoal que estava comigo no hospital."

Acreditava que era importante informar as pessoas a respeito do diabetes, e instituímos juntos a bolsa de estudos Mary Iacocca no Joslin Diabetes Center, em Boston. Mary explicava que o diabe-tes é a terceira maior causa de mortes no país, depois dos ataques cardíacos e do câncer. Mas, como a palavra "diabetes" raramente aparece no atestado de óbito, o público subestima a gravidade do problema. Quando ela morreu, eu quis ter certeza de que seu atesta-do dizia a verdade: complicações provocadas por diabetes.

Passávamos muito tempo juntos, mas Mary nunca se envolveu com a vida da empresa. Não tentava competir com os japoneses. Para nós, a família era sagrada. Com relação às responsabilidades de esposa de executivo, ela fazia o que era necessário e o fazia com um sorriso. Mas os seus valores — e os meus — eram o lar e o a-mor. Fizemos muitas viagens juntos, especialmente para o Havaí, que era o lugar do qual ela mais gostava. Mas quando estávamos na cidade, passávamos as noites e os fins de semana em casa, com as crianças. Jogar golfe com o pessoal do escritório nunca foi meu i-deal de divertimento. Além disso, acho que todo esse aspecto co-munitário da vida da empresa tem sido levado ao exagero. Não es-tou dizendo que você deve ser um recluso. Mas, afinal, o que vale é

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o desempenho. O tempo tomado pelo trabalho já prejudica o sufici-ente a sua vida em família.

Nós quatro costumávamos fazer muitas viagens de carro, prin-cipalmente quando as crianças eram pequenas. Era nessa ocasião que realmente estreitávamos laços de família. Não importa o que mais eu tenha feito todos esses anos, sei que dois sétimos de toda a minha vida — fins de semana e muitas noites — foram dedicados a Mary e às crianças.

Muita gente acha que, quanto mais subimos numa empresa, mais somos obrigados a negligenciar a família. De jeito nenhum! Na verdade, é o pessoal de cúpula que tem a liberdade e a flexibili-dade para passar bastante tempo com a esposa e os filhos.

Mesmo assim, conheço muitos executivos que negligenciam a família, e isso sempre me deixa triste. Depois que um jovem morreu em plena mesa de trabalho, McNamara, então presidente da Ford, enviou um memorando dizendo: "Quero que todos saiam do escri-tório até as 9 da noite". O próprio fato de ele ter que dar uma ordem como essa já mostra que alguma coisa estava errada.

Você não pode deixar a empresa virar um campo de concentra-ção. Trabalhar muito é essencial. Mas há sempre um momento de descanso e de relaxamento, o momento de ir ver os filhos na peça te-atral da escola ou num torneio de natação. Se você não fizer isso en-quanto as crianças forem pequenas, não vai poder fazer mais tarde.

Certa noite, duas semanas antes de morrer, Mary ligou para mim em Toronto para dizer que estava orgulhosa de mim. Tínha-mos acabado de anunciar a receita do primeiro trimestre. Mas eu, durante todos aqueles anos difíceis, nunca lhe disse o quanto me orgulhava dela.

Mary me apoiou e deu tudo o que tinha para Kathi e Lia. Sim, tive uma carreira maravilhosa e bem-sucedida. Mas, comparado à minha família, isso não teve a mínima importância.

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CONVERSA

FRANCA

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XXV COMO SALVAR VIDAS

NA ESTRADA

e modo geral, nós, americanos, so-mos bons motoristas. E, comparados aos motoristas de outros paí-ses, somos ótimos. Embora um grande número de pessoas morra a cada ano, nas estradas e rodovias, nossa taxa de mortes no trânsito — 3,15 por l60 milhões de quilômetros percorridos — é a mais bai-xa do mundo.

Não me considero um especialista em trânsito. Mas sei alguma coisa sobre veículos. E quero explicar por que os cintos de seguran-ça — e não os colchões de ar — são fundamentais para reduzir as mortes em acidentes de trânsito nos Estados Unidos.

Durante anos tenho defendido uma causa muito impopular: o uso obrigatório do cinto de segurança. Em 1972, como presidente da Ford, eu mesmo escrevi aos cinqüenta governadores para levar ao seu conhecimento que a nossa empresa endossava o uso obriga-tório do cinto de segurança e para incitá-los a defender essa causa salvadora de vidas.

Doze anos depois, quando estou escrevendo estas palavras, es-sa lei não foi aprovada em nenhum Estado do país. Algum dia ainda vamos recobrar a razão. Mas está demorando demais.

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A oposição ao uso obrigatório do cinto de segurança vem de várias direções. Mas aqui, como acontece com relação a muitos ou-tros assuntos, o argumento principal é ideológico. A idéia de tornar obrigatória a segurança vai contra a natureza de algumas pessoas. Muitos acham que esse é mais um exemplo de intervenção gover-namental nos direitos civis.

E isso acontece especialmente na administração Reagan. Infe-lizmente, a sua concepção de economia — ultrapassada, defensora do laissez-faire — estende-se também à segurança.

É difícil acreditar, mas ainda existe muita gente que acha que dizer a um cara que ele deve evitar se matar (ou matar o vizinho) contraria o modo de ser americano. Em nome da ideologia, querem deixar que milhares de pessoas morram e que outras dezenas de mi-lhares fiquem feridas. Na minha opinião, essas pessoas estão viven-do no século dezenove.

No entanto, cada vez que publico uma declaração a favor do uso obrigatório do cinto de segurança, posso ter certeza de que vou receber uma pilha de cartas de pessoas se queixando de que estou interferindo no seu direito de matar a si mesmas se quiserem.

Mas estarei interferindo mesmo? A gente precisa de licença pa-ra dirigir, não precisa? E precisa parar no sinal vermelho, não é? Em alguns Estados a gente precisa usar capacete para andar de mo-tocicleta, não precisa?

Essas leis seriam exemplos de interferência governamental ex-cessiva? Ou são regras necessárias numa sociedade civilizada? Te-ríamos um massacre em cada esquina se não tivéssemos algumas regras de conduta.

E o que dizer de algumas leis .estaduais que prescrevem o uso de óculos para algumas pessoas? Eu sou uma delas. Se um guarda me pegar na Pennsylvania e eu não estiver de óculos, recebo uma multa. Acho que está na hora de acrescentar mais uma observação à carta de motorista: "Não é válida sem cinto de segurança".

Desculpem, mas não consigo encontrar na Constituição nada que me diga que dirigir é um direito inerente. Certamente porque não o é. Dirigir automóvel é um privilégio. E, como todos os privi-légios, implica certas responsabilidades.

O uso obrigatório do cinto de segurança constituiria uma inter-venção governamental desmedida? É óbvio que não. Quando se tra-ta de intervenção do governo, muita gente acha que tem que ser oito ou oitenta — completamente a favor ou completamente contra.

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Mas, como em qualquer assunto, é preciso levar em conta as circunstâncias. Existem setores da vida sobre os quais o governo deve agir para proteger a sociedade. Só nos Estados Unidos se per-mite que os ideólogos prevaleçam sobre as exigências da segurança.

O que esses puristas parecem esquecer é que o prejuízo causa-do pelo não-uso do cinto de segurança eleva os nossos impostos, aumenta o preço dos seguros e causa problemas para nós e para as pessoas de quem gostamos. E se isso não interfere na minha liber-dade, não sei então o que interferiria.

Mas não quero entrar numa discussão filosófica sobre cintos de segurança, porque seria fazer o jogo dos ideólogos. Temos que con-siderar o que é prático, o que é válido para o mundo real.

A verdade cristalina é que é quase impossível morrer num aci-dente de trânsito, se você estiver usando um cinto de segurança de três pontas e estiver dirigindo a uma velocidade inferior a cinqüenta quilômetros por hora. Entre outras razões, os cintos de segurança podem prevenir a perda de consciência ocasionada por batidas — o que, sem o cinto, pode ocorrer mesmo em velocidades relativamen-te baixas.

O que me surpreende é que mesmo os adversários do uso dos cintos de segurança admitem que eles salvam vidas. Caso alguém ainda precise de provas, um famoso estudo da Universidade da Ca-rolina do Norte examinou acidentes de tráfego e determinou que os cintos de segurança reduzem em até 50 por cento os ferimentos graves e em cerca de 75 por cento os ferimentos fatais. E, nos últi-mos anos da década de 60, um estudo na Suécia examinou quase vinte e nove mil acidentes entre os usuários de cintos de segurança e descobriu que em nenhum deles houve mortes.

A National Highway Traffic Safety Administration (NHTSA) estima que o número de ocorrências fatais cairia em pelo menos 50 por cento, da noite para o dia, se todas as pessoas usassem cintos de segurança. Mas, atualmente, apenas uma em cada oito pessoas os utiliza.

Vivem me dizendo que o uso obrigatório do cinto de segurança é um sonho impossível. Mas não acredito que sejam muitas as pes-soas que se opõem frontalmente ao uso do cinto. Elas apenas não se dão ao trabalho de usá-lo. As pesquisas têm demonstrado que os consumidores não são contra a idéia dos cintos de segurança. O que acontece é que muita gente acha que eles atrapalham, ocupam lugar e são incômodos — e, de fato, isso é verdade.

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Essas reclamações nem sequer são novas. Em 1956, quando a Ford ofereceu pela primeira vez a opção dos cintos de segurança, cerca de 2 por cento dos clientes os encomendaram. A indiferença dos outros 98 por cento custou-nos muito dinheiro.

E eu queria que vocês ouvissem as razões que as pessoas ale-garam para não adotar os cintos de segurança. Algumas se queixa-ram de que eles destoavam da cor do interior do carro. Nunca vou me esquecer de uma carta que dizia: "São volumosos e é desconfor-tável sentar em cima deles!"

Vamos citar os outros argumentos também, embora não sejam mais convincentes. Tenho ouvido as pessoas dizerem que não que-rem ficar presas no caso de o carro se incendiar e elas não consegui-rem se soltar. Bem, é verdade que isso poderia até acontecer. Mas, hoje em dia, os incêndios são responsáveis por apenas 0,1 por cento das mortes no trânsito.

Além disso, mesmo que você esteja preso em um incêndio, sol-tar o cinto de segurança é tão fácil quanto abrir a porta. E ninguém nunca sugeriu que você deve dirigir por aí com as portas abertas.

Outro argumento contra o uso obrigatório do cinto de seguran-ça é que, às vezes, numa colisão, você pode sair ileso se for jogado para fora do carro ao invés de ficar preso dentro dele. Isso também tem seu fundo de verdade. Afinal de contas, há acidentes em que a pessoa é mesmo atirada para fora do carro e, de fato, sai ilesa.

Mas isso não acontece com muita freqüência. Na verdade, a pro-babilidade de você morrer é vinte e cinco vezes maior se for jogado para fora do veículo do que se permanecer protegido dentro dele.

Outro argumento é de que os cintos de segurança só são real-mente necessários nas estradas. Mas o que muita gente não percebe é que 80 por cento do total dos acidentes com danos graves ocorrem nas áreas urbanas, em velocidades inferiores a 60 quilômetros por hora.

Percorremos um longo caminho desde a época em que os cin-tos de segurança eram usados apenas em aviões. Eles foram desen-volvidos no início da aviação, quando um dos maiores desafios do vôo era permanecer em segurança no assento. Por volta de 1930, as leis federais passaram a exigir o uso de cintos em todos os aviões de passageiros.

Atualmente, embora os aviões comerciais sejam bem mais a-vançados e seguros do que antes, a lei ainda determina que é obri-gatório o uso do cinto de segurança na decolagem e aterrissagem

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dos aviões. É porque os cintos de segurança ainda são mais eficazes em terra do que no ar. Se você violar essa lei, a companhia de avia-ção tem o direito de tirar você do avião.

Originalmente, os cintos de segurança em carros eram usados

apenas para corridas. Quando a Ford e a Chrysler ofereceram cintos de segurança em seus modelos 1956, houve pouca procura. Oito anos depois, em 1964, os cintos de segurança tornaram-se equipa-mento padrão em todos os carros de passageiros.

Venho fazendo campanha a favor dos cintos de segurança há quase trinta anos. Comecei em 1955, quando participava do grupo de marketing da Ford, que decidiu oferecer acessórios de segurança nos modelos 1956. Esses acessórios parecem muito primitivos se comparados aos atuais equipamentos de segurança, mas naquela época eram revolucionários. Além dos cintos, havia também fechos de segurança, pára-sóis, volante com a parte interna recuada e esto-famento à prova de choque no painel. Em nossa campanha publici-tária para os modelos 1956, acentuamos o fato de que os carros da Ford eram seguros.

Naquela época, a promoção da segurança nos automóveis era uma atitude revolucionária em Detroit — tanto que, ao que parece, alguns altos executivos da GM telefonaram para Henry Ford pedin-do para ele parar com aquilo. Segundo eles, a nossa campanha de segurança era ruim para a indústria, porque evocava imagens de vulnerabilidade e mesmo de morte — o que dificilmente seria maté-ria-prima para um marketing de sucesso. Robert McNamara, cujos valores eram totalmente diferentes daqueles dos outros executivos da Ford — e de outras empresas — tinha sido o responsável pela campanha de segurança. Quase perdeu o emprego por causa disso.

Enquanto vendíamos segurança, o Chevrolet, nosso principal concorrente, promovia rodas extravagantes e motores V-8 de alta potência. Naquele ano, o Chevrolet nos derrotou. No ano seguinte, mudamos a nossa estratégia para carros "quentes" com aceleração rápida. Ao invés de segurança, promovemos o desempenho e a po-tência e obtivemos um sucesso muito maior.

Desde a campanha de 1956, foram atribuídas a mim as palavras "a segurança não vende", como se eu estivesse dando uma desculpa para não construir carros seguros. Mas esta é uma grande distorção das minhas palavras e, mais ainda, das minhas crenças. Depois do fracasso da nossa campanha de promoção de acessórios de seguran-

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ça eu disse mais ou menos isso: "Bem, companheiros, acho que, embora tenhamos feito o possível, a segurança não vendeu".

E de fato tínhamos feito o possível. Gastamos milhões de dóla-res e demos tudo o que tínhamos, mas o público nem se mexeu. De-senvolvemos a estrutura básica, anunciamos, promovemos e de-monstramos, e não conseguimos vender. Tínhamos clientes que di-ziam coisas do tipo: "Está certo, levo o carro, mas vocês vão ter que tirar esses cintos de segurança; caso contrário, não me interessa".

Quando fui pela primeira vez a Detroit, em 1956, era um faná-tico por segurança. Ainda sou, mas aprendi na prática que a segu-rança é um elemento de marketing muito fraco — é por isso que o governo tem que se envolver na questão.

Com relação a isso, pelo menos, os cínicos têm razão: se você acentua o aspecto da segurança, o cliente começa a pensar em aci-dente, que é a última coisa no mundo em que ele quer pensar. Ins-tintivamente ele diz: "Esqueça. Nunca vou sofrer um acidente. Pode ser que meu vizinho sofra, mas eu não".

Embora essa campanha em particular não tenha tido bom resul-tado, ainda estou orgulhoso por ter sido um dos pioneiros na con-cepção de acessórios de segurança. E isto em 1956, época em que, pelo que sei, Ralph Nader ainda passeava de bicicleta.

Apesar do fracasso da nossa campanha de 1956, a Ford conti-nuou a oferecer, todos os anos, cintos de segurança como opção, mesmo depois de os nossos concorrentes os terem descartado, por não terem aceitação do público. Lembro-me de que muita gente a-chava que tínhamos ficado loucos: "Cintos de segurança, como num avião? Mas estamos dirigindo, não voando!"

Mas também me lembro de reuniões matinais em que os pes-quisadores de segurança nos mostravam slides coloridos de aciden-tes de automóvel para que pudéssemos entender exatamente o que acontecia numa colisão. Era horrível, e certa vez tive que sair da sa-la pois senti enjôo. Mas também foi instrutivo. Concluí que o fator de segurança mais eficaz é o cinto de segurança — contanto que se-ja usado.

As vezes você precisa assustar as pessoas para atingir um obje-tivo. Em 1982, almocei com os editores do The New York Times. Falei bastante sobre cintos de segurança e mostrei a eles algumas ilustrações gráficas que comprovavam a sua importância na preven-ção de ferimentos graves e mortes.

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Poucos dias depois, recebi uma carta de Seymour Topping, o editor de administração. Até o nosso almoço, ele tinha ignorado completamente os cintos de segurança. Mas, depois de ouvir mi-nhas histórias assustadoras, decidiu usá-los.

Mais tarde, naquela mesma semana, quando ele estava indo pa-ra sua casa durante um temporal, o carro da frente derrapou e blo-queou a passagem. Ele freou violentamente para evitar um acidente, mas, por causa da chuva, o carro virou e bateu num muro de arrimo. Graças ao cinto de segurança, Seymour escapou ileso. Hoje ele é um defensor do cinto de segurança.

Mesmo que você seja um ótimo motorista, precisa usar o cinto de segurança. Ninguém pensa na possibilidade de sofrer um aciden-te. Mas 50 por cento do total de acidentes são causados por motoris-tas embriagados. E, se eles baterem no seu carro, você poderá ter grandes problemas se não estiver protegido.

Há quase dez anos, percebi que, a curto prazo, não teríamos

leis de regulamentação do uso obrigatório do cinto de segurança. Por isso arquitetei um plano que forçaria os motoristas e passagei-ros a usá-los. Com a ajuda dos engenheiros da Ford, desenvolvi um mecanisno chamado Interlock, que impedia o acionamento da igni-ção do carro se o motorista e o passageiro do banco dianteiro não tivessem colocado seus cintos. A American Motors uniu-se a nós para apoiar a Interlock, mas a GM e a Chrysler assumiram uma po-sição contrária.

Depois de controvérsias acaloradas, a National Highway Traf-fic Safety Administration estipulou, em 1973, que todos os novos carros deveriam ser equipados com o Interlock. Mas a lei foi um fracasso. O público detestou o Interlock e logo encontrou maneiras de inutilizar sua ação. Muita gente fechava os cintos, mas sem usá-los. E como quase qualquer peso no banco do passageiro da frente podia desligar a ignição, até uma sacola pesada cheia de doces cau-sava problemas se não estivesse presa pelo cinto.

A rejeição do público ao Interlock foi tão grande que a Câmara dos Deputados, dirigida por Louis Wyman, um republicano de New Hampshire, logo o arrasou. Em resposta à pressão popular, o Con-gresso levou cerca de vinte minutos para banir o Interlock. Foi substituído por uma campainha de oito segundos que deveria recor-dar aos passageiros que usassem o cinto de segurança.

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O Interlock tinha mesmo alguns problemas. Mas ainda acho que poderia ser aperfeiçoado e salvar vidas. Quando ele foi derrota-do pelo Congresso, lancei um outro plano: uma luz verde se acen-deria, no carro, quando o cinto de segurança estivesse sendo usado; caso contrário se acenderia uma luz vermelha — e aí o motorista seria multado. O que eu tinha em mente era algo semelhante a um radar, através do qual os policiais não precisariam nem mesmo de-ter o carro: mandariam a multa ao motorista pelo correio. Mas, co-mo acontecera no caso do Interlock, ninguém se interessou.

Quando se trata de segurança, as pessoas nem sempre conside-ram seus próprios interesses. Como muitas vidas correm perigo, a única solução é uma legislação sobre o uso do cinto de segurança.

Evidentemente, não sou a única pessoa do mundo que pensa assim. Mais de trinta países, e cinco das dez províncias do Canadá, já possuem uma legislação nesse sentido. Em Ontário, a apenas poucos minutos de onde trabalho, os acidentes de automóvel fatais diminuíram em 17 por cento desde que foi aprovada a lei sobre o uso do cinto de segurança. Na França, depois que uma lei seme-lhante foi aprovada, o número de mortes em acidentes de trânsito diminuiu em 25 por cento.

Em alguns lugares, o não-cumprimento da lei é punido com multa. Em outros, você perde o seu seguro e, em alguns casos raros, são aplicadas essas duas penalidades. Mas os Estados Unidos ainda não apoiaram essa legislação. O governo federal geralmente susten-ta que isso cabe aos Estados, mas os Estados não se mexem. Quan-tas pessoas ainda terão que morrer para nos conscientizarmos da necessidade do uso dos cintos de segurança?

Alguns Estados têm agora uma lei que obriga o uso do cinto de segurança para crianças. Já é hora de proteger também os pais. Não há nada mais trágico do que fazer as coisas pela metade — produzir um monte de órfãos.

De qualquer maneira, sempre achei que, como berço do auto-móvel, Michigan deveria ser pioneiro nesse projeto. Quando a ques-tão do uso obrigatório do cinto tiver precedência na legislatura em Lansing, testemunharei e o apoiarei publicamente.

Muita gente acha que os colchões de ar são a solução. Eu dis-

cordo. Tenho me colocado contra eles desde que foram desenvolvi-dos pela primeira vez, há quase vinte anos. Às vezes tenho a sensa-ção de que quando eu morrer — e admitindo-se que eu vá para o

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céu — São Pedro irá me receber no portão para conversar comigo sobre os colchões de ar.

Este dispositivo de segurança foi desenvolvido nos anos 60 por um grupo de engenheiros da Eaton Corporation, uma empresa de acessórios para automóveis em Cleveland. Em 1969, a National Hi-gh-way Traffíc Safety Adminístration concluiu que os colchões de ar eram o melhor meio de aumentar a segurança nas auto-estradas e começou uma campanha para promover a sua instalação obrigatória em todos os carros americanos.

No mesmo ano, o Congresso aprovou uma lei que autorizava a Secretaria de Transportes a tornar obrigatórios os acessórios de se-gurança nos automóveis. Os colchões de ar foram finalmente torna-dos obrigatórios em 1972, mas a decisão regulamentar foi logo anu-lada por um tribunal federal. A administração Gerald Ford aboliu os colchões de ar, mas a equipe de Jimmy Carter os ressuscitou. Em 1977, a NHTSA exigiu que os fabricantes de automóveis instalas-sem "mecanismos de restrição passiva" — o que significa colchões de ar — até 1982. A questão está parada nos tribunais e no Con-gresso desde essa época.

O colchão de ar é feito de náilon revestido de neopreme. É co-locado no centro do volante e sob o porta-luvas, juntamente com quase cem gramas de nitrato de sódio. Em caso de acidente, são a-tivados sensores especiais que levam o nitrato de sódio a se infla-mar de imediato e a soltar nitrogênio suficiente para encher o col-chão. Quando o sistema entra em funcionamento, o colchão de ar age como um balão gigantesco, que amortece o impacto da pancada.

Os colchões parecem ser a solução ideal, mas há problemas — e grandes —, que não costumam ser discutidos pelos defensores do método. Em primeiro lugar, embora se espere que os colchões de ar sejam um tipo de "restrição passiva", o que significa que o usuário não precisa fazer nada para ativá-los —, eles só são eficazes se usa-dos juntamente com o cinto de segurança. Sem os cintos, os colchões de ar funcionam apenas em colisões frontais. Por si só, os colchões de ar não ajudam muito em mais de 50 por cento dos acidente.

Muita gente ainda acredita, erroneamente, que os colchões de ar eliminam a necessidade do uso dos cintos de segurança. Temo que nós, em Detroit, não tenhamos sido muito felizes ao explicar o problema.

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Os colchões podem também ser perigosos. Há sempre a possi-bilidade de que não sejam inflados quando é necessário ou que se-jam inflados quando não é necessário. Os colchões podem esvaziar-se inadvertidamente; quando isso acontece, podem provocar feri-mentos e até a morte. Um colchão que se enche de ar no momento errado é capaz de lançar o motorista para trás e causar um acidente. Mesmo em casos relativamente inofensivos, pode ser bastante dis-pendioso o reparo de um colchão que se enche de ar prematuramen-te. Além disso, não é conveniente ficar andando com nitrato de só-dio no carro.

A situação provocada pela falha de um colchão de ar, ou pelo seu funcionamento antes do momento adequado, é um prato cheio para os advogados especializados em averiguação de responsabili-dades. Como muitas pessoas consideram os colchões de ar uma pa-nacéia, não hesitam em processar os fabricantes quando ocorrem morte e lesões em carros que têm esse equipamento — e, sem dúvi-da, estes eventos não são inevitáveis.

Para ser justo, a tecnologia atual torna os colchões de ar bastan-te seguros. Pode-se dizer que eles funcionam em 99,99 por cento dos casos. Isso significa porém, que 0,01 por cento dos colchões de ar não são seguros. Assim, se todos os 150 milhões de carros que estão rodando atualmente tivessem colchões de ar, cerca de quinze mil vezes em um ano — o que equivale a cerca de quarenta vezes em um dia — um colchão de ar poderia não funcionar da maneira correta. Se apenas 1 por cento das pessoas atingidas abrisse proces-so contra os fabricantes, ainda assim seria uma proposta bem cara.

A solução dos colchões de ar pode realmente ser pior que o problema em si. Afinal de contas, são um produto muito poderoso da tecnologia. Certa vez, quando eu estava na Europa, fiquei sur-preso ao ler num jornal inglês a seguinte manchete: "Ianque sugere colchões de ar para pena capital". Achei que fosse piada, mas, ao que parecia, a proposta era séria. O sujeito que a fizera era um en-genheiro de segurança aposentado, de Michigan, e estava sugerindo que os colchões de ar poderiam ser uma alternativa humana para a cadeira elétrica e para outras formas de pena capital.

Em sua solicitação, feita ao U. S. Patent Office, o inventor a-firmou que, ao inflar um colchão de ar diretamente sob a cabeça do condenado, uma força de cerca de seis toneladas poderia quebrar instantaneamente o pescoço do sujeito. O método de execução fun-cionaria de modo muito mais eficaz do que o laço do carrasco e

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com rapidez suficiente para evitar que o executado sofresse qual-quer dor. Não tenho muita certeza de que gostaria de ter uma gerin-gonça dessas no meu carro.

Os colchões de ar não constituem a solução. E, na verdade, já que a legislação vigente nunca fala realmente de "colchões de ar", mas apenas de "restrições passivas", ela poderia ser cumprida com cintos passivos — um tipo de cinto de três pontas que se fixa auto-maticamente quando as portas do carro estão fechadas. Este tipo de cinto foi desenvolvido pela Volkswagen: você levanta a parte de baixo da peça até o ombro e o cinto se aperta de maneira automáti-ca. Hoje o Rabbit oferece, como equipamento opcional, cintos que você só usa se quiser.

Os colchões de ar foram oferecidos apenas uma vez por uma fábrica de carros americana. Em 1974, a GM investiu 80 milhões de dólares num programa de colchões de ar e se equipou para produzir trezentas mil unidades. Foram oferecidos como opção em alguns Cadillacs, Buicks e Oldsmobiles de 1974 a 1976. Mas apenas dez mil clientes os encomendaram, o que significa que o preço final de cada colchão de ar foi, para a empresa, de 8.000 dólares. Como dis-se um funcionário da GM na época: "Teríamos feito melhor ven-dendo os colchões de ar e dando os carros de graça".

Desconfio que, dez anos depois da publicação deste livro, o governo ainda vai estar debatendo a questão dos colchões de ar. Quando os cruzados montam seus cavalos brancos, é impossível de-tê-los. Os colchões de ar têm sido um pretexto desde o início. A não ser que apareçam novas invenções, o ponto central da questão pro-vavelmente continuará sendo o mesmo durante muito tempo.

Mas não é de colchões de ar que nós precisamos. Precisamos de leis que estabeleçam o uso obrigatório do cinto de segurança. Quanto antes nós as tivermos, mais vidas salvaremos.

Enquanto essas leis não vêm, você e as pessoas que lhe são ca-ras, por favor, apertem o cinto!

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XXVI O ALTO CUSTO

DA MÃO-DE-OBRA

omo filho de imigrantes que se es-forçaram a vida inteira, acredito firmemente na dignidade do traba-lho. A meu ver, os trabalhadores devem ser bem pagos pelo seu tempo e esforço. Sem dúvida, não sou um socialista, mas sou a fa-vor da distribuição da renda — desde que a empresa esteja ganhan-do dinheiro.

Por volta de 1914, o primeiro Henry Ford decidiu pagar aos seus operários 5 dólares por dia — e, nesse processo, criou uma classe média. Ele estava certo, pois, se os trabalhadores deste país não tiverem boas condições de vida, a nossa classe média estará sendo eliminada. A base da democracia atual é o trabalhador que ganha 15 dólares por hora. É ele quem vai comprar casa, carro e ge-ladeira. Ele é o lubrificante da engrenagem.

Os meios de comunicação tendem a dar mais atenção aos muito ricos e aos muito pobres, mas é a classe média que nos dá estabili-dade e mantém a economia. Se um sujeito ganhar dinheiro suficien-te para pagar suas contas, comer razoavelmente bem, dirigir um carro, mandar os filhos para a escola e sair uma vez por semana com a mulher para jantar fora e ir a um show, ele estará satisfeito. E, se a classe média estiver satisfeita, nunca teremos uma guerra ci-vil ou uma revolução.

C

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Os Estados Unidos são diferentes da Europa. Aqui, os traba-lhadores da indústria automobilística são tão capitalistas quanto os administradores. E não é de admirar. Quanto aos horistas, os traba-lhadores sindicalizados da UAW são a elite do mundo. E quando o dinheiro fala, a ideologia cala.

Mas a remuneração não é o problema real entre a diretoria e o sindicato. O problema está em todos os benefícios adicionais.

Desde que Detroit estivesse ganhando dinheiro, sempre foi fá-cil para nós aceitarmos as exigências do sindicato e recuperá-las mais tarde, sob a forma de aumentos de preços. A alternativa era termos uma greve e correr o risco de arruinar a empresa.

Os executivos da GM, da Ford e da Chrysler nunca estiveram muito interessados em planejamento a longo prazo. Sempre estive-ram demasiado preocupados com as oportunidades imediatas au-mentando os lucros para o semestre seguinte — e ganhando uma gorda gratificação.

Eles? Eu faria melhor dizendo "nós". Afinal de contas, eu era um deles. Fazia parte daquele sistema. Pouco a pouco, cedemos a praticamente todas as exigências do sindicato. Estávamos ganhando muito dinheiro para pensar duas vezes. Poucas vezes quisemos um confronto e, portanto, nunca brigamos por princípios.

Eu estava sentado lá, no meio deles, e disse: "A prudência é es-sencial à estabilidade. Dêem a eles o que eles desejam. Se entrarem em greve, perderemos centenas de milhões de dólares, perderemos as nossas bonificações e eu, pessoalmente, perderei meio milhão de dólares em dinheiro".

Nossa motivação era a cobiça. A atitude instintiva era sempre acalmar rapidamente e chegar à etapa final. Nesse ponto nossos crí-ticos estavam certos — estávamos sempre pensando no trimestre seguinte.

Dizíamos a nós mesmos: "O que significa um dólar a mais por hora? Vamos deixar que as gerações futuras se preocupem com is-so. De qualquer modo, não vamos estar por aqui".

Mas o futuro chegou e alguns de nós ainda estamos por aqui. Hoje estamos todos pagando õ preço da nossa complacência.

Fazendo um retrospecto, percebo três áreas chave em que a

administração cedeu e pelas quais está agora sendo arrasada: ajuda de custo de vida ilimitada; aposentadoria por tempo de serviço; be-nefícios médicos vitalícios.

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A primeira delas é a compensação de custo de vida. A COLA é um mecanismo que incentiva a inflação descontrolada. Os dois milhões de trabalhadores que a receberam originalmente faziam parte da indústria de automóveis. Hoje, milhões de trabalhadores americanos da indústria e do governo são protegidos pela COLA.

Por mais que eu desejasse culpar os sindicatos pela COLA, ela não foi idéia deles. A COLA foi, na verdade, uma invenção dos e-xecutivos, não dos trabalhadores. Em 1946, Charlie Wilson, presi-dente da General Motors, propôs uma ajuda de custo de vida como forma de lidar com a inflação temporária que ocorreu quando o go-verno suspendeu o controle de preços.

A inflação logo baixou, mas os sindicatos se alarmaram. No acordo de 1948, a GM lançou a COLA, uma cláusula de escalona-mento que oferecia compensações de salário baseadas nas mudan-ças no custo de vida, medido pelo índice de Preços ao Consumidor.

Como acontecia com todas as novas fixações de acordos, a Ford e a Chrysler logo lançaram planos semelhantes. Durante al-guns anos, conseguimos colocar um limite à COLA, mas logo os trabalhadores da indústria automobilística fizeram greve e esse li-mite foi eliminado. Foi quando a COLA se tornou traiçoeira. A pre-texto de combater a inflação, a COLA, na verdade, cria inflação.

A COLA se auto-alimenta: quanto mais você tenta se adaptar à alta de preços, mais inflação você cria. Mas, como qualquer outro benefício, depois que a COLA foi lançada, tornou-se impossível e-liminá-la ou mesmo modificá-la. É como uma bola de neve.

Durante as décadas de 50 e 60, ela não chegou a ser um pro-blema. Foram os. anos do boom. A indústria americana desfrutava de grandes mercados. A Europa Ocidental e o Japão estavam devas-tados pela guerra e levariam anos para se recuperar.

Durante as décadas de 50 e de 60, o nosso índice de inflação era baixo — cerca de 2 por cento ao ano. Enquanto isso, a nossa produtividade nacional era alta — crescendo em uma média de 3 por cento ao ano. Isto significava que a COLA não era realmente inflacionária, pois que os aumentos podiam sempre ser pagos pelo aumento de produtividade.

Iniciais de "cost-of-living allowance" (ajuda de custo de vida). (N. do T.)

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Mas, nos últimos anos, tem ocorrido o oposto: a inflação subiu, enquanto a produtividade baixou. Se não conseguirmos inverter es-sa tendência, a COLA se tornará um problema ainda maior do que já é.

A adoção da COLA foi, originalmente, um grande benefício contratual. Mas, ao longo dos anos, ela transformou-se num ritual. Em compensação, os aumentos de produtividade antes eram um ri-tual. Agora, pertencem à história. É de admirar, então, que os custos da mão-de-obra estejam fora de controle?

Hoje a COLA é adotada na Previdência Social, no Medicare, nas Forças Armadas e nos planos para funcionários públicos. Ensi-namos a eles os maus hábitos. Os problemas que esses grupos enfren-tam hoje são conseqüência dos custos descontrolados da COLA.

Ao contrário da COLA, a aposentadoria por tempo de serviço foi idéia do sindicato — e também foi uma idéia ruim. Walter Reu-ther, fundador do UAW, fez dela o principal item de negociação com a GM, pouco antes de morrer, em 1970. Ao lado da exigência da COLA, essa questão foi a base da grande greve na GM, no outo-no daquele ano.

A aposentadoria por tempo de serviço determina que, após ter trabalhado durante trinta anos, o trabalhador tem direito a aposen-tar-se, qualquer que seja a sua idade, e receber uma pensão integral — de 60 por cento do salário —, como se já estivesse com sessenta e cinco anos.

A aposentadoria por tempo de serviço parece, à primeira vista, uma coisa ótima. Foi concebida com o objetivo de criar empregos para os novos contingentes que entram no mercado, mas é um pro-grama que torna os Estados Unidos cada vez menos competitivos. Por quê? Pegamos um sujeito bom, trabalhador, aos dezoito anos; durante anos nós o treinamos, e aos quarenta e oito ele volta para casa. Não só perdemos um trabalhador especializado, como ainda temos que pagar a ele uma pensão pelo resto da vida — o que, nor-malmente, significa mais uns trinta anos!

Segundo as normas, esse sujeito "aposentado" não pode traba-lhar mais. Se trabalhar, perde a pensão. Mas se ele tiver quarenta e oito anos, não vai ficar em casa por muito tempo. Geralmente ele se torna motorista de táxi ou biscateiro. Certa vez, um alto funcionário do sindicato admitiu: "Eles não param de trabalhar. Só mudam de emprego. Segundo as normas, o sujeito não pode trabalhar, mas quem vai checar isso?"

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Assim, alguns dos melhores eletricistas que já trabalharam para mim na Ford e na Chrysler agora são motoristas de táxi. Mas a iro-nia disso tudo é que, se eu quiser contratar gente nova para a função de eletricista, vou ter que treinar um monte de motoristas de táxi que não sabem nada sobre o ramo de automóveis. É uma coisa de louco! O país virou de cabeça para baixo e caminha a passos largos para a mediocridade.

A aposentadoria por tempo de serviço me deixa furioso. É um crime aposentar um sujeito só porque ele trabalhou trinta anos. Aos cinqüenta, ele está em plena forma. Tem uma rica experiência e i-númeras qualificações. Ao invés de usá-las, fica dirigindo táxi ou falando com os botões, em casa.

Não sou contra a idéia de uma boa pensão. Mas não temos condições de continuar a dar pensões para indivíduos de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos. Gostaria que o regulamento fosse modi-ficado, no sentido de que a pessoa pudesse se aposentar com pensão integral após trinta anos de trabalho — desde que tivesse, pelo me-nos, sessenta anos.

Por outro lado, estamos pagando oitocentos dólares por mês a pessoas que nos poderiam ajudar a vencer os japoneses — para elas não virem trabalhar. Isso tem algum sentido?

O terceiro maior problema do sistema são os benefícios médi-

cos. Quando vim para a Chrysler, verifiquei que a Blue Cross/Blue Shield já era nosso maior fornecedor. Cobravam, de fato, mais do que os fornecedores de aço e borracha! A Chrysler, a Ford e a GM estão pagando atualmente três bilhões por ano apenas em assistên-cia hospitalar, cirúrgica, médica e odontológica e mais todas as despesas com remédios. Na Chrysler, são pagos 600 milhões de dó-lares, ou cerca de 600 dólares por carro, ou seja, mais de um milhão por dia!

Tal como outros benefícios oferecidos ao trabalhador, os pla-nos de assistência médica tiveram um começo modesto. Mas, ao longo dos anos, passamos do não-pagamento de nenhuma consulta para a situação em que pagamos tudo o que se possa imaginar: dermatologia, psiquiatria, ortodontia — até óculos.

Para piorar, não se podem deduzir honorários médicos ou cus-tos hospitalares. Há uma pequena dedução para medicamentos: o trabalhador paga os primeiros 3 dólares. Esta foi a minha única conquista. Antes, o trabalhador pagava os primeiros 2 dólares, e eu

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consegui aumentar para 3- Vinte e cinco anos de negociações, e es-sa foi a minha única vitória indiscutível.

O verdadeiro xis do problema é que não há uma relação com-prador-vendedor no fornecimento de bens e serviços médicos. A a-titude é sempre deixar Tio Sam ou Tio Lee Iacocca pagar a conta. "Não importa que me cobrem demais por exames ou por cirurgias — não sou eu que pago."

A exemplo do Medicaid, esse sistema leva a abusos incríveis. Descobri recentemente quatro pedicuros que estavam ganhando, cada um, 400 mil dólares por ano, só com as famílias de trabalhado-res da Chrysler. Como é que um pedicuro consegue atender tantos pacientes? Deve tratar de um dedo de cada paciente por consulta! Descobri também que, em apenas um ano, pagamos duzentos e qua-renta mil exames de sangue. É muito sangue examinado para uma empresa de sessenta mil funcionários.

A assistência médica nos custa 600 dólares por carro e cami-nhão produzido. Em alguns de nossos carros, isso corresponde a 7 por cento do preço de tabela. Em 1982, por exemplo, pagamos 373 milhões em prêmios de seguro médico para empregados aposenta-dos e dependentes. Pagamos ainda vinte milhões em taxas do Medi-care. E, finalmente, calculamos que 200 milhões de dólares dos nossos pagamentos a fornecedores serviram para cobrir prêmios de seguro médico dos empregados deles.

Cada vez que fazemos um acordo com o sindicato, temos que dar os mesmos benefícios aos funcionários da administração, do presidente para baixo.

Há alguns anos, Mary ficou no hospital por duas semanas. O total chegou a 20 mil dólares. Adivinhem quanto eu paguei? A so-ma enorme de 12 dólares (e essa foi a conta da TV). A Chrysler re-cebeu a conta de 19.988 dólares. O fato de não me terem pedido nem para pagar os primeiros mil dólares é um escândalo. Mas é as-sim que o sistema funciona.

Trabalhamos bastante para acabar com alguns dos abusos do sistema, mas ainda há muito a fazer. Uma solução pode ser a cobran-ça de impostos dos empregados sobre as contribuições que fazemos para os seus prêmios de seguro de saúde. Assim, as pessoas pensari-am duas vezes antes de fazer exames extras. Do jeito que o sistema funciona agora, os médicos e hospitais estão acabando conosco.

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Essas são as três grandes áreas em que cedemos rápido demais às exigências do sindicato. Mas quase houve uma quarta — a se-mana de quatro dias. O sindicato vem falando nisso há anos, embo-ra não lhe dê o nome correto, que é cinco dias de pagamento por quatro dias de trabalho.

Sempre que surge essa questão, lembro-me da Segunda Guerra Mundial: a França tinha uma semana de quatro dias e a Alemanha, uma semana de seis. Adivinhem quem perdeu?

O sindicato é esperto demais para falar nisso abertamente. Ele sabe muito bem que a opinião pública nunca aceitaria. Leonard Woodcock, ex-presidente do UAW, disse-me certa vez: "Lee, vou conseguir a semana de quatro dias e você nem vai perceber". Seu plano era conseguir tantos dias de folga que logo o sindicato teria o equivalente a uma semana de quatro dias.

Essa foi a origem da brilhante invenção chamada ' 'folgas re-muneradas", em que cada trabalhador tira um certo número de dias de folga para não fazer nada. Em 1976, o sindicato ganhou doze folgas remuneradas — cinco no segundo ano de contrato e sete no terceiro. Por algum tempo, até o aniversário era uma folga remune-rada. Mas isso deu muita dor de cabeça, e o sindicato concordou em voltar atrás. Agora comemoramos o aniversário de todo mundo ao mesmo tempo — geralmente contando o último domingo antes do Natal como dia trabalhado.

Todos esses planos — COLA ilimitada, aposentadoria por tempo de serviço, benefícios médicos ilimitados e folgas remunera-das — são contrários ao bom senso. Por mais sofisticada que pareça a adoção de uma medida do gênero das folgas remuneradas, não há lógica em se pagar uma pessoa para ela ficar em casa.

Se quisermos sobreviver, será absolutamente essencial que os trabalhadores e a administração concebam um método novo e mais prático para trabalhar juntos. O tipo de esforço coletivo que salvou a Chrysler deverá tornar-se um procedimento operacional padrão.

Sei que não,vai ser fácil. De um lado, porque os trabalhadores têm memória. Alguns dos confrontos violentos com as empresas de automóveis no início do século ainda não foram esquecidos. Não faz tanto tempo que a Guarda Nacional foi chamada a Flint, em 1937, para conter a rebelião dos trabalhadores da GM e dos seus lí-deres sindicais.

Por outro lado, os trabalhadores e a administração são de clas-ses sociais, diferentes, o que é sempre uma fonte de tensões. O tra-

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balhador da linha de montagem tem ressentimentos contra os geren-tes, que, na imaginação dele, passam o dia tomando café e nunca trabalham muito.

O sistema de proteção ao trabalhador mais antigo é outro fator que influi sobre a militância sindical. Os jovens sempre são os pri-meiros a ser demitidos em tempos difíceis. No UAW, os trabalha-dores desempregados têm direito a votar sobre questões contratuais por seis meses depois do término dos benefícios do seguro-desemprego. Depois disso, eles terão que preencher formulários to-dos os meses se quiserem manter o direito de voto. A maioria não se dá ao trabalho de fazer isso.

Por isso, sempre que há um referendo de um novo contrato ou de uma concessão, quem vota é o pessoal mais antigo. Estes podem se dar ao luxo de ser militantes, pois seus empregos estão protegi-dos, a não ser que a empresa feche. E o trabalhador jovem tempora-riamente desempregado? Ele se dispõe a fazer concessões para con-seguir emprego, mas em geral não pode dar opinião.

O sindicato foi criado para proteger os direitos dos trabalhado-res, que eram maltratados e mal pagos. E ele tem sido muito bem-sucedido nessa tarefa. Mas hoje representa um grupo de elite, bem pago e bem protegido. De certa forma, o UAW piorou as coisas pa-ra o trabalhador jovem e não-especializado que pretenda conseguir um emprego na indústria automobilística. Em muitos casos, o sindi-cato literalmente o coloca fora do mercado de trabalho.

Como se chegou a essa situação lamentável? Ela começou nos anos dourados da indústria automobilística.

Mesmo quando deixei a Ford, em 1978, estávamos no fim dos três anos mais lucrativos da nossa história. Até então, com poucas exceções, a história das Três Grandes fora uma série de variações sobre o mesmo tema: sucesso.

Isso foi especialmente verdadeiro na época da Segunda Guerra. Naquele tempo, os carros eram tão importantes quanto a comida, e a capacidade de produzi-los equivalia a uma licença para imprimir dinheiro. A GM mais parecia — e ainda parece — um país do que uma empresa. A Ford era a terceira maior empresa industrial dos Estados Unidos. Até a Chrysler, a menor das Três Grandes, era, até recentemente, a décima empresa manufatureira do mundo.

Foram necessários dois grupos muito diferentes para produzir esse sucesso tão grande. De um lado, estava a administração, lide-rada por um grupo de executivos muito bem-pagos. Hoje, os escri-

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tórios são dominados por quadros com mestrado em administração de empresas. Mas nem sempre foi assim. Na maior parte da sua his-tória, a indústria automobilística foi liderada por um grupo de gran-des individualistas — arrogantes, altamente poderosos e ricos.

Do outro lado, estavam os sindicatos. O UAW, que realmente desabrochou depois da Segunda Guerra Mundial, era, à sua manei-ra, tão poderoso quanto a administração. O UAW foi sempre um monopólio — fornece, sozinho, a força de trabalho para toda a in-dústria automobilística.

O UAW (United Auto Workers) foi fundado nos anos 30, co-mo parte do Congresso de Organizações Industriais (CIO), que se desligou da Federação Americana do Trabalho (AFL) em 1935. An-tes disso, a AFL tentou várias vezes sindicalizar a indústria de au-tomóveis, mas não teve sucesso. Finalmente, após grandes batalhas, freqüentemente violentas, com cada um dos grandes fabricantes de automóveis, o UAW estabeleceu-se como uma força a ser levada em consideração.

Eu era muito jovem para ter conhecido Walter Reuther, o fun-dador do sindicato e seu presidente entre 1946 e 1970. Ele morreu num acidente aéreo mais ou menos na época em que me tornei pre-sidente da Ford. Mas sei que ele era muito esclarecido. Sua atitude pode ser resumida de forma simples: a tarefa dos trabalhadores era fazer a torta da maneira mais vantajosa possível. Quanto maior a torta, maior a parcela de dinheiro para os trabalhadores.

Segundo os veteranos de Detroit, Reuther chegava a desenhar uma torta quando se encontrava à mesa de negociações. "É tarefa da administração fazer essa torta", ele anunciava. Então apontava para as várias partes da torta e explicava — como se falasse com crian-ças numa escola: "Esta parte grande é da matéria-prima; esta, das despesas gerais e do aluguel; esta outra, dos salários dos executivos; e esta, dos trabalhadores. Estamos aqui hoje, senhores, porque não estamos inteiramente satisfeitos com o modo de divisão dessa torta. Gostaríamos de cortá-la de um modo um pouco diferente".

Os discursos de Walter Reuther tornaram-se motivo de piada na cidade, pois ele dizia sempre a mesma coisa em todas as reuni-ões. Era como uma gravação. Alguns repórteres escreviam as repor-tagens sobre elas de antemão, e nunca erraram.

Reuther preocupava-se com os lucros e com a produtividade e entendia que o destino dos trabalhadores estava intrinsecamente li-gado ao destino da empresa. Por isso, ganhou o respeito tanto da

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administração quanto dos trabalhadores. De fato, às vezes gosto de lembrar a sua atitude aos atuais líderes sindicais. Embora ele tenha fundado o UAW, o pessoal de lá, hoje em dia, não cita muito o seu nome. E com razão. O sindicato ainda está reivindicando uma me-lhor divisão da torta, mas o tamanho da torta tem diminuído.

Reuther nunca ignorou a automação. Nunca foi contrário ao progresso industrial, mesmo quando os interesses a curto prazo dos trabalhadores pareciam ameaçados. Desde o início, foi a favor da instalação de robôs. "Nunca combatam o novo maquinário", ele di-zia ao seu pessoal, "pois ele é a forma de aumentar a produtividade. E se as empresas ficarem mais produtivas e obtiverem maiores lu-cros, estaremos em uma melhor posição nas negociações."

Com essa atitude, a administração e os trabalhadores prospera-ram juntos. E ambos os grupos ganharam mais dinheiro em Detroit que seus equivalentes em todos os outros lugares do mundo.

Apesar de todas as minhas queixas contra o UAW, devo reco-nhecer que a visão esclarecida de Reuther colocou seu sindicato muito à frente dos outros, como o dos ferroviários ou o dos gráfi-cos, defensores da política de forçar a contratação de gente demais e de mostrar serviço. Quando a locomotiva a diesel foi desenvolvi-da, por exemplo, as ferrovias não precisaram mais de foguistas para abastecer as máquinas com carvão. Mas o sindicato insistiu na per-manência do foguista, apesar de a função ter-se tornado obsoleta.

Walter Reuther pode ter sido duro, e até mesmo pouco razoá-vel. Mas, ainda assim, foi um verdadeiro visionário. O jornalista Murray Kempton disse certa vez que Reuther foi o único homem que ele conheceu capaz de ter reminiscências do futuro.

Em 1948, sob a liderança dele, a administração e o sindicato desenvolveram um padrão de negociações de contratos por mais de um ano. Antes disso, havia as sessões anuais de barganha, prática que tendia a criar ambiente de trabalho instável. O contrato de 1948 teve validade por dois anos e não por um.

Foi seguido, em 1950, por um contrato de cinco anos. O sindi-cato acabou fazendo uma série de contratos de três anos com cada uma das Três Grandes.

Na indústria do aço, da borracha e em alguns outros setores, as empresas às vezes se uniram e fizeram negociações coletivas. Mas os trabalhadores da indústria de automóveis sempre negociaram em separado com a General Motors, com a Ford e com a Chrysler. A cada três anos, o sindicato escolhe uma empresa — freqüentemente

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depois de uma greve, ou pelo menos depois de uma ameaça de gre-ve, e com ela faz um acordo, que servirá de modelo para o acordo com as outras.

A negociação-modelo facilitou a vida de todos. Uma vantagem é que nenhuma empresa poderia vencer a concorrência com base nos salários. Por outro lado, a negociação-modelo tornava a admi-nistração complacente quando se tratava de lidar com os sindicatos. Afinal, se o mesmo acordo estivesse valendo para as quatro empre-sas (a American Motors faz parte desse arranjo), haveria menos in-centivo para a administração recusar uma boa proposta durante as negociações.

Participei de algumas reuniões de negociação durante os anos 70, quando era presidente da Ford. Todos esses anos, sempre achei que as empresas estavam em desvantagem ao lidar com o sindicato. Ele nos deixava acuados, pois contava no seu arsenal com a arma decisiva: a ameaça de greve. E a simples ameaça de suspender o trabalho era a coisa mais temível que podíamos conceber.

Todos em Detroit têm uma clara lembrança da greve de 1970 contra a General Motors, que durou sessenta e sete dias nos Estados Unidos e noventa e cinco no Canadá. Foi um desastre tanto para a administração quanto para os trabalhadores. Os quatrocentos mil trabalhadores parados perderam 760 milhões de dólares em salários. O fundo de greve do sindicato logo acabou e os trabalhadores tive-ram que viver das suas economias.

A GM também sofreu muito. Sua receita em 1970 caiu em 64 por cento com relação ao ano anterior. Como resultado da greve, a GM deixou de produzir 1,5 milhão de automóveis, que teriam resul-tado em mais de 5 bilhões de dólares. Sempre me lembro de que na época, eu pensava que um sindicato capaz de pôr a GM de joelhos deveria ser muito forte.

Por volta de 1950, a Chrysler sofreu uma greve de 104 dias. Foi naquela época que a Ford a superou; de certa forma, os efeitos daquela greve se fazem sentir até hoje. Na Ford também tivemos nossas greves, durante as quais perdemos quase 100 milhões de dó-lares por semana. Desse jeito, você logo começa a negociar.

Como as greves tiveram efeitos devastadores, os líderes da in-dústria farão quase tudo para evitá-las. Naquela época, podíamos nos dar ao luxo de ser generosos. Como tínhamos liberdade no mercado, sempre podíamos gastar para atender aos trabalhadores e

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simplesmente repassar os custos adicionais para o consumidor, sob a forma de aumentos dos preços.

O lockout, um tipo de greve ao contrário, em que as empresas fecham suas fábricas, poderia ser uma resposta a isso. É verdade que o custo teria sido alto, mas o confronto sangrento poderia ter ti-do conseqüências de longo alcance. É possível que tivéssemos con-seguido mudar o relacionamento entre o sindicato e a administração antes que fosse tarde demais.

Mas nunca houve lockout na indústria automobilística. Quando eu estava na Ford, insisti em que fizéssemos isso. Mas a GM sem-pre é a favor de aceitar as exigências do sindicato, pois para ela di-nheiro não é problema. A Chrysler também queria fazer um acordo, mas pela razão contrária — como o jogador menos privilegiado, ela seria a primeira a quebrar no caso de uma greve prolongada.

Antes de cada reunião de negociação, quando os dirigentes das Três Grandes se reuniam para planejar a estratégia, a possibilidade, de se fazer um lockout era sempre ventilada. Discutíamos muitas coisas, mas estávamos demasiado divididos para tomar alguma me-dida conjunta. A Ford, a GM e a Chrysler não concordavam em na-da durante todo o ano — não havia razões para pensar que fizessem uma exceção, mesmo num assunto dessa importância. O sindicato não tinha absolutamente nada a temer.

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XXVII O DESAFIO JAPONÊS

ogo depois que entrei na Chrysler, fui ao Japão para uma série de encontros com altos executivos da Mitsubishi Motors. Por volta de 1971, a Chrysler comprou 15 por cento da Mitsubishi e firmou um contrato para importar alguns de seus excelentes carros pequenos sob a denominação de Dodge e Chrysler. Somos sócios desde aquela época.

Os encontros ocorreram na cidade sagrada de Kyoto. Em um dos intervalos, saí a passeio com o Dr. Tomio Kubo, o dinâmico presidente do conselho da Mitsubishi. Enquanto andávamos pelos santuários privados e pelos jardins do templo da cidade, perguntei a meu novo amigo por que a sua empresa construíra sua gigantesca fábrica de motores naquele lugar pacato e rural.

Kubo sorriu e respondeu: "Realmente, a nossa fábrica de Kyoto começou como a maior fábrica de aviões do Japão. Foi aqui que construímos os bombardeiros durante a guerra".

"Mas por que aqui", perguntei, "no meio de toda essa beleza?" "Justamente por isso", ele respondeu. "O senhor sabe, antes da

guerra, o seu Presidente e a senhora Roosevelt passaram férias aqui. Eles se apaixonaram por esta cidade, e quando veio a guerra, Roo-sevelt deu ordens para que Kyoto não fosse bombardeada. Quando

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essas ordens chegaram ao conhecimento do nosso serviço militar de informação, decidimos construir nossa fábrica de aviões num lugar cuja segurança já estava garantida."

Quando ouvi essa história, balancei a cabeça. "Acho que, no amor e na guerra, vale tudo."

Kubo concordou. "O que o senhor teria feito?", perguntou. "Nós, no Japão, defendemos nossos interesses. O que eu não enten-do é por que o seu país nem sempre faz o mesmo."

E eu também não entendo. Justamente agora estamos no meio

de uma outra grande guerra com o Japão. Desta vez não se trata de uma guerra com tiroteios, e creio que devemos agradecer por isso. O atual conflito é uma guerra comercial. Mas, como o nosso gover-no se recusa a ver essa guerra como ela realmente é, estamos nos encaminhando para a derrota.

Não tenham ilusões: nosso conflito econômico com os japone-ses é fundamental para o nosso futuro. Estamos lutando contra uma competição terrível e, se as condições forem iguais, será uma sorte se conseguirmos empatar com eles.

Mas nem todas as condições são iguais. O campo em que o jo-go está sendo disputado não é plano. Ao contrário, é fortemente in-clinado a favor do Japão. Resultado: estamos jogando com uma das mãos amarrada às costas. Não é de admirar que estejamos perdendo a guerra!

Para começar, a indústria japonesa não está jogando sozinha. É sustentada de todas as formas por sua estreita relação com o gover-no japonês, através do MITI, o Ministério da Indústria e Comércio Internacional. A função do MITI é determinar quais as indústrias fundamentais para o futuro do Japão e ajudá-las em suas pesquisas e desenvolvimento (P & D).

Para o observador americano, o MITI pode parecer um bando intrometido de burocratas de baixo nível. Mas não é. No Japão, o serviço do governo atrai alguns dos melhores e mais brilhantes jo-vens. Se você considerar, além disso, que os ministérios do Comér-cio, da Economia e das Finanças são as áreas de maior prestígio no governo, terá uma idéia do tipo de talento que o MITI apresenta. O MITI cometeu alguns erros clássicos, mas sua influência geral so-bre a indústria japonesa foi incrível.

Quando o Japão começou a sua reconstrução depois da guerra, o governo elegeu os automóveis, o aço, os produtos químicos, a

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construção naval e as montadoras de maquinário como as indústrias fundamentais. Em outras palavras, o destino econômico do Japão não foi deixado à mercê da economia do laissez-faire. Sem dúvida, o Japão não é a Rússia, cuja economia é totalmente planejada. Mui-to pelo contrário. Mas o Japão dispõe de um sistema de objetivos e prioridades que permite ao governo e à indústria trabalhar em con-junto, para atingir seus objetivos nacionais.

Como resultado, a indústria automobilística do Japão foi en-volvida num casulo protetor: empréstimos do governo, depreciação da moeda para favorecer as exportações, assistência à P & D, prote-ção contra as importações e uma proibição contra o investimento estrangeiro. Em virtude desses esforços combinados, a produção automobilística do Japão passou de cem mil veículos, por volta da metade da década de 50, para onze milhões hoje.

Mas, independentemente de como os industriais japoneses te-nham sido ajudados, eles também merecem o nosso respeito e ad-miração. Demonstraram ser planejadores e engenheiros prudentes. Não se entregaram às dificuldades.

De fato, a administração, os acionistas, o governo, os banquei-ros, os fornecedores e os trabalhadores operaram conjuntamente. Projetaram produtos de categoria internacional, utilizando tecnolo-gia avançada. Construíram carros econômicos, motivados por uma política energética nacional de altos impostos sobre a gasolina em nome da escassez. Não surpreende que os japoneses estivessem preparados para a guerra árabe-israelense de 1973 e para a queda inesperada do Xá em 1980.

Outra vantagem do Japão é que seus impostos são mais baixos que os de qualquer país industrial do mundo. E uma das razões pe-las quais esses impostos podem ser mantidos baixos é o fato de não gastarem muito com defesa. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, cuidamos disso para eles. Depois de sua derrota, nós lhes dissemos: "Escutem, parem de fabricar armas. Vocês estão vendo a que isso os levou. Não se preocupem, defenderemos o seu país. Queremos que vocês comecem a fazer coisas bonitas e pacíficas, para variar — carros, por exemplo. Mostraremos a vocês como se faz isso. O pessoal de Detroit vai lhes dar uma mão!"

E assim o fizemos. Nesse processo, geramos um monstro. Hoje ele tem cerca de 35 anos, é completamente desenvolvido, tem mús-culos fortes, reina absoluto no mercado americano de automóveis e vai continuar a fazê-lo, a menos que haja um basta.

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Mas como é possível competir com um país cujo gasto anual com defesa é de 80 dólares por cidadão, quando estamos gastando mais de dez vezes essa quantia? Enquanto estamos ocupados em defender os dois países, os japoneses estão livres para gastar o seu dinheiro em pesquisa e desenvolvimento.

Outra grande vantagem para os japoneses é a fraqueza artificial do iene. A manipulação da sua moeda é de deixar qualquer um bo-quiaberto. Os bancos e a indústria conspiraram no sentido de man-ter o iene fraco, de maneira que o preço de seus bens de exportação pudesse permanecer atraente para os mercados ocidentais.

Infelizmente, a manipulação do iene é difícil de ser comprova-da. Quando me queixo dela em Washington, o governo me pede provas. Todo mundo quer saber exatamente como o Japão consegue fazer isso.

Não tenho a menor idéia. E não tenho uma embaixada em Tó-quio ou em Londres ou em Zurique que me ajude a encontrar res-postas. O Tesouro dos Estados Unidos tem 126000 empregados. Vamos deixar essa tarefa para eles!

Tudo o que eu sei é que se alguma coisa anda como um pato e grasna como um pato, é muito provável que seja um pato. E consi-derando-se que a prime rate vai de 10 a 22 por cento e baixa nova-mente a 10 por cento e, durante todas essa flutuações, o iene per-manece estável em 240 por dólar — conclui-se que alguma coisa está errada em Tóquio.

No mínimo, o iene está subvalorizado em 15 por cento. Pode não parecer muito, mas representa uma vantagem de mais de 1000 dólares no custo de um Toyota novo. Como esperar que nós, em Detroit, possamos competir com uma coisa dessas?

Quando este assunto vem à tona, os japoneses sempre dizem que não é o iene que está muito fraco, e sim o dólar que está muito forte. Certamente há alguma verdade nesta acusação, e nossa atual política fiscal não tem ajudado. A administração Reagan deve acei-tar parte da culpa, uma vez que a sua política de dinheiro curto e al-tas taxas de juros tornou o nosso dólar muito atraente para o capital estrangeiro.

Uma das minhas maiores preocupações é que, em dez anos, te-remos uma operação incrivelmente eficaz na Chrysler, com um au-mento da margem de lucro de 1000 dólares por carro. E então, de repente, o iene sofrerá uma grande oscilação e liquidará a vantagem que lutamos tanto para criar.

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Assim não dá para continuar. É hora de o governo chamar a criança depois da aula e exigir que ela explique o seu comporta-mento. Suas desculpas não convencem há muito tempo e as suas ações estão arrebentando a nossa economia. Devemos dar aos japo-neses noventa dias para nos dizer por que o iene está subvalorizado — e o que eles pretendem fazer com relação a isso.

Finalmente, existe o problema do livre comércio. Ou talvez eu devesse dizer o mito do livre comércio. Pelo que sei, o livre comér-cio só foi praticado quatro vezes em toda a história. Uma é nos li-vros de histórias. Nas outras três vezes foi praticado, concretamen-te, pelos holandeses, durante um curto espaço de tempo; pelos in-gleses, no começo da Revolução Industrial; e pelos Estados Unidos, depois da Segunda Guerra Mundial.

Os ingleses puderam fazê-lo há dois séculos, porque não ti-nham competição real. Logo que as outras economias industriais se desenvolveram, a Inglaterra abandonou o livre comércio.

Do mesmo modo, os Estados Unidos já tiveram o mundo em suas mãos. Através dos anos, nosso predomínio se desgastou, mas, na nossa cabeça, ainda estamos em 1947.

O livre comércio é bom — desde que todos se guiem pelas mesmas regras. Mas o Japão tem as suas regras próprias e, por isso, estamos constantemente em desvantagem.

Veja como funciona. Quando um carro japonês é colocado num navio com destino aos Estados Unidos, o governo japonês reembol-sa cerca de 800 dólares ao fabricante. É um reembolso do imposto sobre produtos industrializados e é perfeitamente legal nos termos do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT). Em outras pa-lavras, uma dona-de-casa em Tóquio paga mais por um Toyota do que pagaria em San Francisco.

Como poderíamos responder a isso? Na Europa eles geralmen-te cobram uma sobretaxa de entrada para compensar o incentivo que os japoneses dão às suas exportações.

Isso é livre comércio? Claro que não. Dá para perceber? É óbvio! Um Toyota que é vendido no Japão por 8000 dólares, assim

que chega em San Francisco, tem o preço reduzido para 7200 dóla-res. Mas se esse mesmo Toyota for para Frankfurt, seu preço irá su-bir para 9000 dólares. Se for para Paris, será vendido por 10500 dó-lares. Como nos consideramos o último baluarte da livre empresa, estamos fazendo papel de bobos.

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Ora, como podemos dar aos importados 25 por cento de um mercado de doze milhões de carros e pedir que eles não peguem 35? Ninguém iria imaginar que algum dia ofereceríamos nossos bens geradores de trabalho e diríamos aos japoneses: "Peguem o que vocês quiserem. Deixem para nós a preocupação com as conse-qüências sociais".

Até que a nossa balança comercial se equilibre, precisamos li-mitar a parcela dos japoneses em nosso mercado interno de auto-móveis, dizendo-lhes: "Vocês podem ter 15 por cento, e é só".

A Europa é bem mais velha e bem mais experiente que nós. Se o livre comércio é tão importante, por que os europeus estão im-pondo limites aos produtos importados?

A Itália diz que dois mil carros japoneses por ano é o máximo que vai tolerar. A França diz que o limite é de 3 por cento. E o que dizer da Alemanha, a grande defensora do livre comércio? Eles não gostam de limites restritos. Mas quando a importação japonesa a-tingiu 11 por cento na Alemanha, o que eles fizeram? Disseram: "Dez por cento e nada mais". A Inglaterra fez o mesmo.

Infelizmente, nosso governo acha difícil imaginar tal atitude. Parece que muitos de nossos líderes acham que ainda somos os úni-cos produtores do mundo e que temos de ser magnânimos. Mas já se passaram quarenta anos desde a Segunda Guerra Mundial, e é hora de tomarmos consciência de que a situação mudou.

Enquanto isso, os japoneses agiram corretamente com os pro-dutos importados dos Estados Unidos? De jeito nenhum. Há pouco tempo, alguns de nossos representantes comerciais se encontraram com os japoneses para discutir essas desigualdades. Nosso pessoal queria conversar sobre a carne bovina e os produtos cítricos, que são protegidos no Japão, e sobre a abertura de novos mercados para as nossas exportações.

Mas os japoneses disseram que nada disso era negociável. Sem esboçarem um sorriso, disseram que estavam dispostos a retirar a sobretaxa do extrato de tomate. Imagine você, não dos tomates — apenas do extrato de tomate. Incrível! Isto diminuiria o nosso défi-cit comercial com o Japão — que é de 30 bilhões de dólares — em pouco mais de mil dólares.

Enquanto isso, o Japão restringe a venda de produtos farmacêu-ticos americanos, bloqueia nosso equipamento de telecomunicações e as nossas fibras ópticas. Os japoneses criaram uma rede de quase quinhentos cartéis protegidos pelo governo que seguem uma prática

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de preços duplos e de contratos negociados em concorrências fe-chadas. O mercado japonês é protegido por um festival de exigên-cias malucas de desempenho e de rotinas burocráticas que tornam impossível vender lá muitos dos produtos americanos.

Por exemplo, o seu sistema de reclassificação de produtos é uma fraude completa. As batatas fritas, de que os japoneses tanto gostam, foram classificadas de início como alimento industrializa-do, incidindo sobre elas uma taxa de 16 por cento. Mas quando um fabricante americano ameaçou fazer pequenas incursões no merca-do japonês, o que aconteceu? As batatas fritas foram subitamente redefinidas como "confeitos", e passou a incidir sobre elas uma taxa de 35 por cento. Meu exemplo favorito são os cigarros. A venda dos nossos cigarros é permitida no Japão — mas só em 8 por cento das tabacarias. Além disso, há um imposto de 50 cents por maço. Isto tem alguma coisa a ver com livre comércio?

Até 1981, os anúncios de fabricantes de cigarros americanos só podiam ser feitos, no Japão, em inglês. Talvez, para compensar, de-vêssemos forçar a Datsun e a Toyota a anunciar aqui só em japonês. Imaginem a aflição que isso provocaria. Eu gostaria de saber como se diz "Oh, what a feeling" em japonês.

Quando as pessoas me perguntam se sou a favor do livre co-

mércio ou do protecionismo, minha resposta é: de nenhum dos dois. Não concordo com o protecionismo. Também não concordo com a legislação local de contenção. Mas os Estados Unidos são pratica-mente o único país industrial do mundo que não tem uma política comercial esclarecida e adequada. Somos o único país do mundo que está próximo da prática do livre comércio — e estamos entran-do pelo cano.

E por isso que prefiro um meio-termo, que chamo de fair tra-de. O fair trade envolve algumas restrições seletivas — e temporá-rias — contra o único país do mundo que está impondo a nós uma balança comercial negativa e desequilibrada.

Vamos ver o que realmente está acontecendo. Nós mandamos para eles trigo, cereais, soja, carvão e madeira.

E o que eles mandam para nós? Carros, caminhões, equipamentos de perfuração de petróleo e artigos eletrônicos.

Comércio leal. (N. do E.)

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Pergunta: Que nome você dá a um país que exporta matérias-primas e importa produtos manufaturados?

Resposta: Uma colônia. Ora, é esse o tipo de relação que queremos manter com o Ja-

pão? Já estivemos antes numa situação semelhante e,acabamos jo-gando um monte de chá nas águas do porto de Boston.

Mas, desta vez, estamos sentados vendo os japoneses fazer pontaria em uma indústria atrás da outra.

Já tomaram a indústria eletrônica. Já tomaram os artigos de es-porte. Já tomaram as impressoras. Já tomaram as máquinas fotográ-ficas. Já tomaram um quarto da indústria automobilística.

Nesse processo, tomaram também um quarto da indústria do aço. Os japoneses têm um modo inteligente de introduzir clandesti-namente o seu aço nos Estados Unidos. Eles o pintam e o colocam em cima de quatro rodas — e lhe dão o nome de automóvel.

Quando os japoneses nos enviam Toyotas, estão, na verdade, exportando algo mais importante do que carros. Estão nos enviando desemprego. Os seus subsídios visam a manter o pleno emprego no Japão, e esta política está funcionando. Sua taxa de desemprego é de 2,7 por cento. A nossa é três ou quatro vezes maior.

Qual é o próximo passo? Não é segredo, pois eles já tiveram a gentileza de nos dizer: aviões e computadores.

Bem, não quero dar uma impressão errada da minha atitude com relação aos japoneses. É claro que não gosto da desigualdade que tem marcado a nossa competição com eles. E também fico furi-oso por ficarmos sentados, passivamente, enquanto tudo isso está acontecendo. Mas, na verdade, o Japão não está fazendo nada de er-rado. Como disse Kubo, eles estão apenas agindo de acordo com os seus próprios interesses. Cabe a nós começar a agir de acordo com os nossos.

Como eu falo sobre essas injustiças, enquanto muitos dos meus colegas da indústria automobilística se mantêm calados, as pessoas têm a impressão de que sou contra os japoneses. Há até uma piada que corre o país, sobre uma aula de História da terceira série em que o professor faz uma pergunta:

"Bem, meus alunos, de quem é a frase 'só lamento ter apenas uma vida para doar ao meu país'?"

Uma menininha japonesa da primeira fila levanta-se e respon-de: "Nathan Hale, em 1776".

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"Excelente", diz o professor. "Agora, quem disse 'dêem-me a liberdade ou a morte'?"

A menininha japonesa levanta-se novamente: "Patrick Henry, em 1775".

"Muito bem", diz o professor. "Pessoal, é ótimo que Kiko saiba as respostas. Mas vocês deviam ter vergonha. Lembrem-se, vocês são americanos e ela é japonesa!"

Então, um menino no fundo da sala resmunga: "Ah, os japone-ses que se danem!"

"Ora", esbraveja o professor. "Quem disse isso?" Uma voz responde: "Lee Iacocca, em 1982!" É uma piada inteligente, mas na verdade sou grande admirador

dos japoneses. Por quê? Porque eles sabem de onde vêm, onde es-tão e para onde vão. E, o que é mais importante, têm uma estratégia nacional para chegar lá.

Eles também sabem fazer bons carros. Na década de 70, os seus carros eram, de fato, melhores que os nossos. Isso não aconte-ce atualmente, mas muitos americanos ainda acreditam nisso.

Como os carros japoneses se tornaram tão bons? Começa pelos trabalhadores. Os custos de mão-de-obra são muito mais baixos que os nossos. Os trabalhadores japoneses ganham cerca de 60 por cen-to do salário de seus equivalentes americanos. Eles não têm reajus-tes automáticos conforme o aumento do custo de vida, de acordo com o índice de Preços ao Consumidor, como os trabalhadores a-mericanos. E eles não têm o mesmo arsenal de benefícios médicos pagos pelas empresas, que custam ao consumidor muitas centenas de dólares por carro.

Os trabalhadores do Japão são também mais produtivos que os nossos. Não quero dizer que eles sejam melhores, apenas que traba-lham segundo normas diferentes.

Na verdade, no Japão existem apenas duas categorias de profis-sões: especializadas e não-especializadas. Dependendo do que pre-cisa ser feito num determinado dia, um mesmo trabalhador pode re-alizar diversas tarefas. Se o chão está sujo, ele pega uma vassoura e varre, sem se preocupar se é obrigação sua. Naturalmente, esse sen-so de responsabilidade leva a uma eficiência muito maior.

Um sistema nesses moldes seria impensável em Detroit, onde cada trabalhador tem um conjunto específico de atribuições. Perto da simplicidade e do bom senso da fábrica japonesa, nosso sistema

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de normas e regulamentos sindicais parece extremamente ridículo. O UAW tem atualmente cerca de 150 categorias profissionais. En-quanto a atitude do trabalhador japonês é: "Como eu posso aju-dar?", a atitude do trabalhador americano, na maioria das vezes, é: "Não é minha função".

Os sindicatos japoneses trabalham ligados à administração. Cada lado entende que sua sorte depende do sucesso do outro. As relações entre os trabalhadores e a administração são caracterizadas pela cooperação e pelo respeito mútuo. É completamente diferente do antagonismo e da desconfiança recíproca que têm sido tradicio-nais em nosso país.

O trabalhador japonês é altamente disciplinado. Se alguma coi-sa está errada, ele a conserta. Se há algum problema na linha de montagem, ele pára a linha até o reparo ser realizado.

O pessoal lá tem muito orgulho. O trabalho é considerado co-mo uma missão. No Japão você não ouve falar de trabalhadores que aparecem no emprego de ressaca. Não existe sabotagem industrial e nenhuma alienação visível do trabalhador.

Na verdade, certa vez li que algumas empresas japonesas tive-ram que multar os seus supervisores, porque muitos insistiam em trabalhar durante as férias e nos dias de folga. Dá para imaginar isso acontecendo em Michigan ou Ohio?

A administração japonesa também funciona de acordo com um conjunto de normas que nos parece estranho, mas que contribui pa-ra o sucesso global. O executivo japonês típico da indústria auto-mobilística não ganha nem sombra do salário de um equivalente a ele em Detroit. Também não recebe opções de compra de ações nem compensações adicionais.

Em algum momento da sua carreira ele deve, necessariamente, ter trabalhado na linha de produção. É provável que os administra-dores americanos fiquem chocados ao saber que o presidente execu-tivo da Mitsui já foi dirigente do sindicato da sua empresa. Ao con-trário dos executivos de Detroit, o executivo japonês vive no mesmo mundo dos trabalhadores e não num ambiente exclusivo e seleto.

Para resumir, no Japão, o governo, os trabalhadores e a indús-tria trabalham todos do mesmo lado. Em nosso país, a indústria e os trabalhadores são adversários tradicionais. E, embora o público tal-vez ache o contrário, a indústria privada e o governo também não trabalham conjuntamente.

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Também neste ponto eu culpo os ideólogos, que parecem achar que qualquer envolvimento do governo na economia nacional debi-lita, de alguma forma, o nosso sistema de livre mercado. Certamen-te isso pode ocorrer quando a intervenção é exagerada. Mas, na me-dida em que continuamos a perder para o Japão, fica cada vez mais claro que o mesmo pode ocorrer quando a intervenção é insuficiente.

Precisamos agir. Precisamos substituir o livre comércio pelo fair trade. Se o Japão — ou qualquer outro país — protege os seus mercados, devemos fazer o mesmo. Se os outros estimulam a indús-tria local, devemos reagir da mesma forma. E se eles usam de artifí-cios com sua moeda, precisamos tomar medidas para equalizar a ta-xa de câmbio.

Não sei quando vamos acordar, mas espero que seja logo, se-não, dentro de poucos anos, nosso arsenal econômico irá consistir de pouco mais do que bancos drive-in, pontos de venda de hambúr-guer e galpões de videogame.

É nisso que desejamos ver os Estados Unidos transformados no final do século vinte?

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XXVIII REDESCOBRINDO

O SONHO AMERICANO

oje em dia, todo mundo fala no dé-ficit nacional. Mas, como quase perdemos a Chrysler há poucos a-nos, cabe a mim a honra duvidosa de ter começado a me preocupar com esse problema um pouco antes da maioria das pessoas. Está-vamos sendo destruídos pelas altas taxas de juros e ficou claro que, enquanto o governo continuasse utilizando mais de 50 por cento do crédito da nação, as taxas de juros nunca poderiam baixar muito.

No verão de 1982, escrevi um artigo para a Newsweek onde propunha um método simples para reduzir à metade o déficit nacio-nal. Naquela época, o déficit era de apenas — apenas! — 120 bilhões de dólares. Meu plano envolvia um corte de 30 bilhões de dólares dos gastos do governo e um aumento de 30 bilhões em sua receita.

Compreendi na prática que a Chrysler só se mantinha viva em função dos esforços combinados da administração, dos trabalhado-res, dos bancos, dos fornecedores e do governo. Então pensei: "Por que o princípio da 'igualdade de sacrifícios' não pode ser aplicado também ao déficit federal?"

Meu plano era simples. Primeiro, seriam cortados 5 por cento por ano do orçamento da defesa. Isto representava 15 bilhões de dó-lares e poderia ser feito sem afetar nenhum programa estrutural.

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Então chamaríamos os democratas e diríamos: "Bem, queremos que vocês compensem esse corte de 15 bilhões de dólares com um corte igual nos programas sociais que vêm mantendo nos últimos quarenta anos".

Aí viria a parte difícil. Uma vez cortados os 30 bilhões em gas-tos, compensaríamos esse corte dólar por dólar na parte da receita. Primeiro, levantaríamos 15 bilhões de dólares com uma sobretaxa sobre o petróleo importado, para ajudar a OPEP a manter os preços do petróleo a 34 dólares por barril. Acrescentaríamos então uma ta-xa de quinze cents à gasolina na bomba, o que levantaria outros 15 bilhões de dólares.

Mesmo com esses novos impostos, a gasolina e o petróleo a-mericanos ainda estariam mais baratos do que em qualquer outro lugar fora do mundo árabe. E, além de toda essa receita, estaríamos finalmente criando uma política de energia. A próxima vez que a OPEP atacasse, estaríamos preparados.

Tomados em conjunto, esses "quatro quinzes" reduziriam o dé-ficit anual em 60 bilhões de dólares. A grande qualidade desse pro-grama está em que ele repartiria o sacrifício igualmente entre todos — republicanos e democratas, empresas e trabalhadores.

Quando elaborei esse plano, procurei todos os chefes executi-vos que conhecia em Wall Street e perguntei a cada um: "O que a-conteceria se o Presidente fosse à TV e anunciasse que estava redu-zindo o déficit federal à metade?" Todos concordaram em que esse anúncio desencadearia o maior festival de investimentos da nossa história. Restauraria a nossa credibilidade como país e provaria que sabíamos o que estávamos fazendo.

E desnecessário dizer que não o pusemos em prática. Mas não foi porque ninguém tivesse prestado atenção. Milhares de leitores da Newsweek escreveram para dizer que gostaram do meu plano. Até recebi um telefonema da Casa Branca pedindo-me para falar com o Presidente.

Quando entrei no Escritório Oval, o presidente Reagan me re-cebeu com o artigo da Newsweek na mão: "Lee", disse ele, "gostei do que você escreveu aqui. E também estou preocupado com a ex-tensão do déficit. Mas Richard Wirthlin, meu perito em opinião pú-blica, disse-me que a fixação desse imposto sobre a gasolina seria a medida mais impopular que eu poderia tomar".

"Espere um pouco", pensei. "Este país está sendo dirigido pelas pesquisas de opinião? É isso que é liderança?"

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O Presidente queria falar a respeito do orçamento da defesa. "Gastamos muito pouco na administração Carter", ele me disse. "Precisamos gastar muito mais com a segurança nacional. Você não tem a visão do quadro global."

"É verdade", respondi. "Não tenho a visão do quadro global. E não quero ser pretensioso. Mas o orçamento da defesa é, atualmen-te, superior a 300 bilhões de dólares. Sou um homem de negócios. Acredite, posso cortar 5 por cento de qualquer coisa, e o senhor nunca saberá que o fiz. Na verdade, tenho feito isso durante toda a vida."

Bem, nós não cortamos o déficit em agosto de 1982. E agora ele aumentou para mais de 200 bilhões de dólares. No momento em que estou escrevendo estas palavras, na primavera de 1984, ainda estamos torcendo as mãos, sem saber o que fazer.

Infelizmente, o déficit do orçamento é apenas a ponta do ice-

berg. Se alguém ainda duvida de que perdemos o nosso poder eco-nômico, que considere as seguintes questões:

Por que o país que produziu Walter Chrysler, Alfred Sloan e o original Henry Ford tem tanta dificuldade em fabricar e vender car-ros competitivamente?

Por que o país de Andrew Carnegie tem tanta dificuldade na competição do aço?

Por que o país de Thomas Edison tem que importar a maioria dos seus aparelhos de som, rádios, televisores, videocassetes e ou-tros tipos de equipamentos eletrônicos de consumo?

Por que o país de John D. Rockefeller tem problemas com o petróleo?

Por que o país de Eli Whitney tem que importar tantas máquinas? Por que o país de Robert Fulton e dos irmãos Wright tem que

enfrentar uma competição tão forte na área de equipamentos de transporte?

O que aconteceu com a máquina industrial que já foi alvo da inveja e da esperança do resto do mundo?

Como conseguimos, em menos de quarenta anos, desmantelar o "arsenal da democracia" e acabar com uma economia que está fraca em muitas áreas fundamentais?

A nossa perda de liderança não aconteceu da noite para o dia. A erosão gradual da nossa força e do nosso poder começou naque-les anos de calmaria que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.

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Mas, em nenhum período da nossa história, os Estados Unidos se mostraram tão vulneráveis quanto na década passada.

Primeiro, uma manhã acordamos e descobrimos que uma coisa chamada OPEP tinha o poder de derrubar os Estados Unidos. Como Pavlov, que tocava uma campainha para conseguir os resultados que desejava, a OPEP tocou a sua campainha e nós respondemos. E agora, mais de dez anos depois, ainda não temos nenhum programa real para responder a esse perigo econômico monumental.

Em segundo lugar, em nome do livre comércio, estamos senta-dos, vendo o Japão tomar sistematicamente a nossa base industrial e tecnológica. Juntando as habilidades e a eficiência de sua cultura a um conjunto completo de vantagens econômicas injustas, o Japão parece capaz de saquear com impunidade os nossos mercados.

Em Washington, isso é conhecido como economia do laissez-faire, e eles a adoram. Em Tóquio, é o que se chama de economia do Veni, vidi, vici — e, acreditem, eles a adoram ainda mais. Os ja-poneses chegaram, viram e estão vencendo. E a nossa dependência com relação ao Japão continuará a crescer até que sejam estabeleci-dos alguns limites práticos ao uso que eles fazem do nosso merca-do. Em terceiro lugar, a União Soviética nos ultrapassou em termos de capacidade nuclear geral. Os Estados Unidos já não têm uma vantagem militar decisiva. Definimos agora um programa para re-cuperar essa vantagem, mas seu predomínio sobre toda a agenda nacional é tão grande que começo a me perguntar o que todas essas novas armas irão proteger. Sem uma infra-estrutura industrial forte, vital, somos uma nação cheia de mísseis que circundam uma terra de fábricas vazias, trabalhadores desempregados e cidades decaden-tes. Onde está a sabedoria desta política?

Finalmente, em algum momento do seu passado recente, os Es-tados Unidos perderam de vista a sua verdadeira fonte de poder e grandeza. De uma nação cuja força sempre derivou de investimen-tos na produção e no consumo de bens, nós nos transformamos, de certa forma, numa nação apaixonada por investimentos especulati-vos.

Assim, nossas maiores empresas estão gastando altas quantias na compra de ações de outras empresas. Em que é empregado todo esse capital? Em fábricas novas? Em novos equipamentos de pro-dução? Na inovação de produtos?

Uma parte desse dinheiro, sim, mas não muito. A maior parte acaba indo para os bancos e para outras instituições financeiras, que

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o emprestam a países como Polônia, México e Argentina. Isto não ajuda muito os Estados Unidos. Mas, pelo menos quando esses paí-ses quebraram e os bancos gritaram, eles conseguiram o que a C-hrysler, a International Harvester e a construção civil nunca conse-guiram: persuadiram a Reserva Federal a afrouxar as restrições ao crédito.

A cada mês se cria algum novo tipo de instrumento financeiro com o propósito expresso de absorver o poder de compra do con-sumidor e de enriquecer os agiotas. Fazendo uma retrospectiva des-se período caracterizado pelo "desconta aqui, perdoa ali", não posso deixar de pensar que nunca antes na História tanto capital produziu tão pouco valor durável.

Atualmente, nossos maiores empregadores estão nas indústrias automobilística, de aço, eletrônica, de aviões e têxtil. Se quisermos salvar milhões de empregos, precisamos preservar essas indústrias. Só elas criam mercados tanto para o setor de serviços quanto para o de alta tecnologia. Também são fundamentais para o nosso interes-se nacional. Será que podemos manter a base do nosso sistema de defesa sem que as indústrias de aço, de maquinaria e de automóveis sejam fortes?

Sem uma base industrial forte, podemos dizer adeus à nossa segurança nacional. Podemos também nos despedir da maioria dos nossos empregos de altos salários. Se privarmos os Estados Unidos dos empregos industriais com salários de 10 a 15 dólares por hora, estaremos acabando com toda a nossa economia. Zás — lá vai a nossa classe média!

Assim, precisamos tomar algumas decisões básicas. Se não a-girmos rapidamente, vamos perder o aço e os automóveis para o Ja-pão, por volta do ano 2000. E o pior é que teremos cedido sem lutar.

Parece que muita gente julga essa derrota inevitável. Chega a

acreditar que devemos acelerar o processo, abandonando nossa base industrial e concentrando-nos na alta tecnologia.

De fato, a importância da alta tecnologia para o futuro industri-al dos Estados Unidos é indiscutível. Mas, sozinha, a alta tecnologia não vai nos salvar. Ela é importante para a nossa economia preci-samente porque muitos outros segmentos da indústria americana são seus clientes.

É o caso, em especial, da indústria automobilística. Somos os únicos a empregar todos os robôs. Temos utilizado, mais que qual-

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quer outro setor, os projetos e meios de produção assessorados por computador. Estamos usando computadores para conseguir maior economia de combustível, reduzir o poder poluente das emissões de gases dos automóveis e dar maior precisão e qualidade ao modo de construção de carros.

Quase ninguém sabe que os três maiores clientes da indústria de computadores (excluindo a defesa) são a GM, a Ford e a Chrys-ler. Não existiria o Vale do Silício sem Detroit. Se estão sendo produzidos chips de silício, alguém tem que usá-los. E nós o faze-mos. Hoje há pelo menos um computador a bordo de cada carro que produzimos. Alguns dos nossos modelos mais exóticos chegam a ter oito computadores!

Não se pode vender chips de silício em cartuchos de papel nas mercearias. Eles precisam ter um uso. E as indústrias de base dos Estados Unidos são seus usuários. Fechem nossas fábricas, e esta-rão fechando o próprio mercado. Fechem a indústria automobilísti-ca, e estarão fechando a indústria de aço e de borracha — e estare-mos perdendo cerca de um em cada sete empregos do país.

A que conclusão isso nos leva? Teremos um país cujos habitan-tes servem hambúrgueres uns aos outros e chips de silício ao resto do mundo.

Não me entendam mal: a alta tecnologia é fundamental para o nosso futuro econômico. Mas, por mais importante que seja, nunca empregará o número de pessoas que nossas indústrias de base em-pregam hoje. É uma lição que deveríamos ter aprendido com a mor-te da indústria têxtil. Entre 1957 e 1975, 674000 trabalhadores têx-teis foram demitidos na Nova Inglaterra. Mas apesar das indústrias de alta tecnologia que se concentram nessa região, apenas 18000 desses trabalhadores — cerca de 3 por cento — foram admitidos na indústria de computadores.

Um número quase cinco vezes maior de trabalhadores terminou no comércio varejista ou em empregos de prestação de serviços, com baixos salários. Em outras palavras, se você perder o emprego numa fábrica têxtil em Massachusetts, terá cinco vezes mais chan-ces de acabar trabalhando no K-Mart ou no McDonaWs do que na Digital Equipament ou na Wang. Não se pode simplesmente vestir um guarda-pó branco num encanador de quarenta anos, de Detroit,

Área onde se concentram, nos Estados Unidos, as fábricas de equipamentos de informática. (N. do E.)

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Pittsburg ou Newark, e esperar que ele programe computadores no Vale do Silício.

A solução, portanto, não está em promover a alta tecnologia em detrimento das nossas indústrias de base. A solução é promover as duas conjuntamente. Existe espaço para todos nós na riqueza, mas precisamos de um esforço nacional coordenado para que isso acon-teça.

Em outras palavras, o nosso país precisa de uma política indus-trial racional.

Hoje em dia, "política industrial" é um termo carregado. É co-

mo gritar "fogo" num cinema lotado. Muitas pessoas entram em pâ-nico só de ouvir essa frase.

Elas não querem que os Estados Unidos sejam um país forte e promissor? Claro que sim. Mas querem que isso aconteça sem ne-nhum planejamento. Querem que os Estados Unidos sejam grandes por acaso.

Os ideólogos argumentam que a política industrial marcaria o fim do sistema de livre empresa tal como o conhecemos. Bem, o nosso maravilhoso sistema de livre empresa inclui agora um déficit de 200 bilhões de dólares, um programa de gastos que está fora de controle e um déficit comerciar de 100 bilhões de dólares. A verda-de cristalina é que o mercado nem sempre é eficiente. Vivemos num mundo complexo. Às vezes é preciso lubrificar a engrenagem.

Ao contrário de algumas pessoas que falam sobre política in-dustrial, não quero dizer que o governo deveria separar ganhadores e perdedores. O governo tem mostrado repetidas vezes que não tem inteligência suficiente para fazer isso.

E não quero o governo interferindo nas operações da minha empresa — e, na verdade, nenhuma outra empresa. As regulamen-tações já são suficientemente ruins.

Na minha opinião, política industrial significa reestruturação e revitalização das chamadas indústrias decadentes — as indústrias mais antigas, que estão em dificuldade. O governo deve participar mais ativamente da ajuda à indústria americana, frente ao desafio da competição estrangeira e de um mundo em mudança.

Quase todos admiram os japoneses, com sua visão clara do fu-turo, a cooperação entre o seu governo, os bancos e os trabalhado-res, e o modo como dirigem suas forças. Mas quando alguém suge-

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re que devíamos seguir o seu exemplo, a imagem subitamente se desvia para os soviéticos e para os seus planos qüinqüenais.

Mas planejamento governamental não significa necessariamen-te socialismo. Significa apenas ter um plano de ação, um objetivo. Significa coordenar todas as peças da política econômica ao invés de fixar cada peça em separado, em compartimentos estanques, a-través de pessoas que só têm em vista os seus próprios interesses.

O planejamento seria antiamericanismo? Fizemos muito plane-jamento na Chrysler. Qualquer outra empresa bem-sucedida faz o mesmo. Os times de futebol fazem planejamento. As universidades fazem planejamento. Os sindicatos fazem planejamento. Os bancos fazem planejamento. Os governos do mundo todo fazem planeja-mento — exceto o nosso.

Não caminharemos rumo ao progresso enquanto não se desfi-zer a idéia ridícula de que qualquer planejamento a nível nacional representa um ataque ao sistema capitalista. Por causa desse medo, somos o único país avançado do mundo que não conta com uma po-lítica industrial.

Na realidade, isso não é inteiramente verdadeiro. Os Estados

Unidos já têm uma política industrial, mas é uma política ruim. Ninguém que saiba como é Washington pode alegar que o governo violaria de alguma forma a livre empresa se ajudasse a indústria americana. Washington é a cidade dos subsídios! E cada subsídio contribui para a formação de uma política industrial.

Comecemos com as garantias de empréstimo governamental. (Sou um especialista nessa área.) A Chrysler não foi a primeira. An-tes de nós houve 409 milhões de dólares em empréstimos garanti-dos. Esse número é agora superior a 500 bilhões de dólares e conti-nua subindo. Isso é política industrial.

E há a defesa. Eisenhower nos chamou a atenção para isso quando falou sobre o complexo militar-industrial. Este complexo está nos fazendo gastar mais de 300 bilhões de dólares por ano. É a única indústria protegida que sobrou neste país. É a única indústria onde, por lei, não é permitida a concorrência dos japoneses.

É por isso que, quando nós, na Chrysler, vendemos nossa divi-são de carros de combate à General Dynamics, muita gente pergun-tou: "Por que vocês não venderam a seção de automóveis e manti-veram os tanques? Eles renderiam 60 milhões de dólares por ano, garantidos e protegidos!"

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E há também a NASA e o programa espacial. Isso é política industrial também. A exploração da Lua foi o que impulsionou a nossa indústria de computadores.

Há ainda o EXIMBANK (Export-Import Bank). Oitenta por cento de tudo o que ele faz sustenta quatro companhias de aviação. Posso até entender, mas o que me preocupa é o seu empréstimo de 95 milhões de dólares, do dinheiro dos contribuintes, a Freddie La-ker. Para fazer o quê? Para comprar DC-10 no valor de 95 milhões de dólares para superar a Pan Am e a TWA, duas empresas ameri-canas, nas rotas transatlânticas. Mas Freddie Laker foi à falência, e aqueles 95 milhões de dólares se foram. Que tipo de política indus-trial é essa?

E o que dizer do Fundo Monetário Internacional? Ele ajuda pa-íses estrangeiros que têm uma dívida externa acima de seus meios e que não podem manter os seus pagamentos. Há pouco tempo, Paul Volcker deu ao México outro bilhão de dólares para manter o seu crédito intato e desobrigar alguns grandes bancos americanos que foram os primeiros a emprestar dinheiro a esse país. Volcker fez es-se empréstimo da noite para o dia, sem escutar ninguém. Mas para conseguir 1,2 bilhão de dólares para salvar a Chrysler — uma em-presa americana — nós tivemos que paralisar o Congresso durante várias semanas. Que tipo de política industrial é esta?

No passado, o governo dos Estados Unidos fez empréstimos à Polônia a 6 por cento, enquanto nós pedimos aos poloneses ameri-canos para comprarem casas a 14 por cento. Se os democratas não conseguem resolver isso, eles merecem perder.

E o que dizer da política fiscal? A indústria de automóveis paga ao todo 50 por cento de sua receita em impostos. O setor bancário paga somente 2 por cento. Esse é outro tipo de política industrial.

Portanto, nós realmente temos uma política industrial — ou,

mais exatamente, centenas de políticas industriais. O único proble-ma é que elas são muito gerais e pouco fazem, se é que fazem al-guma coisa, por nossas indústrias básicas.

Será que política industrial é algum tipo de idéia nova e radi-cal? Absolutamente. Tivemos uma política industriai nos Estados Unidos antes mesmo de termos uma nação. Por volta de 1643, Mas-sachusetts garantiu a uma nova companhia de fundição privilégios exclusivos de produção de ferro por vinte e um anos, para estimular essa indústria em desenvolvimento.

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Mais recentemente, no século dezenove, nossa política indus-trial incluiu um extenso apoio governamental às ferrovias, ao Canal Erie e mesmo às universidades.

No século vinte temos assistido ao apoio governamental a nos-sas auto-estradas, à borracha sintética, às modernas viagens de avi-ão, às viagens à Lua, às indústrias de circuitos integrados, à alta tecnologia e a muito mais.

Nas três últimas décadas, tivemos uma política industrial muito bem-sucedida — na agricultura. Três por cento dos americanos a-limentam não apenas os demais habitantes do país mas também grande parte do mundo. Isso sim é produtividade!

Como foi possível esse resultado? Ora, é mais do que uma questão de bom clima, solo rico e agricultores esforçados. Já tínha-mos tudo isso há cinqüenta anos e só conseguíamos obter redemoi-nhos de poeira e fracassos.

A diferença está na grande quantidade de projetos patrocinados pelo governo. Existem verbas federais para pesquisas, agentes mu-nicipais para instruir as pessoas, fazendas experimentais do gover-no, projetos de eletrificação rural e de irrigação, tais como o da TVA, seguro de colheitas, créditos de exportação, garantia de pre-ço, controles do tamanho das propriedades e, agora, Pagamento em Espécie — um pagamento aos agricultores para não cultivarem cer-tos cereais. Só esse programa chega, atualmente, a mais de 20 bi-lhões de dólares por ano.

Com toda esta ajuda governamental (ou, como alguns diriam, interferência) nós criamos um milagre. Nossa política industrial-agrícola faz inveja ao mundo.

Ora, se conseguimos uma política industrial-agrícola e uma po-lítica industrial-militar, por que não podemos ter uma política in-dustrial-industrial?

Suponho que minha atitude favorável a uma política industrial seja a mesma de Abraham Lincoln. Quando alguém lhe disse que Ulisses S. Grant estava bebendo demais, Lincoln disse: "Descubra que tipo de uísque ele bebe e mande-o para os meus outros generais".

Tenho um programa, composto de seis pontos, que seria a base

para uma nova política industrial. Em primeiro lugar, deveremos conseguir a independência e-

nergética, por volta de 1990, taxando a energia estrangeira, tanto nos portos quanto nos postos, a fim de restabelecer a ética da con-

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servação e reaquecer os investimentos em fontes alternativas de e-nergia. Não devemos nos deixar levar pela atual redução da deman-da. A OPEP sempre agirá em seu próprio interesse, e esse interesse será sempre atendido por preços altos e fornecimento restrito. Os americanos estão dispostos a pagar pela independência energética. Sabem que não se pode conseguir isso sem sacrifício.

Em segundo lugar, precisamos impor limites específicos à fatia de mercado do Japão em certos setores industriais fundamentais. Devemos colocar esses setores em situação de emergência econô-mica e ignorar unilateralmente as determinações restritivas do GATT durante esse período. Não temos que nos desculpar por as-sumir essa posição sensata em relação ao comércio com o Japão. A esta altura da nossa história, não podemos ter um parceiro comerci-al que insiste no direito de vender mas se recusa a comprar.

Em terceiro lugar, temos que enfrentar, como nação, a realida-de dos custos e dos mecanismos de financiamento de programas fe-derais de incentivo. Em Washington estão estudando isso exausti-vamente, pois é uma batata quente política. Mas a resposta sempre esteve bem diante do nosso nariz: não podemos continuar a pagar mais do que recebemos, e fazer isso significará alguns ajustes muito dolorosos.

Em quarto lugar, os Estados Unidos precisam de mais enge-nheiros, cientistas e técnicos. Em proporção à população, no Japão formam-se cerca de quatro vezes mais engenheiros do que nos Es-tados Unidos (mas aqui formam-se quinze vezes mais advogados!). Devem ser oferecidos empréstimos e verbas especiais para a forma-ção em campos de estudo ligados à alta tecnologia. Os soviéticos e os japoneses dedicaram-se à formação da sua competência tecnoló-gica — e nós não os estamos acompanhando.

Em quinto lugar, precisamos de novos incentivos para estimu-lar os esforços de pesquisa e desenvolvimento no setor privado e para acelerar a modernização das fábricas e a produtividade nas in-dústrias fundamentais. Uma possibilidade é oferecer incentivos fis-cais para investimentos em P & D e a possibilidade de contabilizar, nos investimentos ligados à produtividade, a depreciação no próprio exercício.

Finalmente, precisamos estabelecer um programa a longo prazo para reconstruir as artérias de comércio dos Estados Unidos — nos-sas estradas, pontes, ferrovias e sistemas fluviais. Nossa infra-estrutura, que é vital para qualquer fortalecimento e expansão do

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nosso poder industrial, está-se deteriorando a um nível alarmante. Alguma coisa precisa ser feita. Esse programa poderia ser financia-do em parte pelo imposto sobre a energia da OPEP. Ele também poderá ser muito importante para a solução do problema do futuro deslocamento de empregos, resultado inevitável do aumento da produtividade e da automação industrial.

Para colocar todos esses programas em prática, precisaríamos formar uma Comissão das Indústrias Fundamentais — um fórum onde o governo, os trabalhadores e a administração pudessem en-contrar juntos uma saída para a situação confusa em que nos encon-tramos. Precisamos aprender a conversar uns com os outros, antes de empreender uma ação conjunta.

Essa coalizão tripartite recomendaria medidas específicas para fortalecer nossas indústrias vitais e para recuperar e aumentar a sua competitividade nos mercados internacionais.

Quero deixar claro que não estou propondo um sistema de pre-vidência para as empresas que estejam em dificuldade. Precisamos de um programa válido apenas para as empresas americanas em dificuldade que concordem com a igualdade de sacrifícios para a administração, os trabalhadores, os fornecedores e os bancos fi-nanciadores. Esse programa funcionou para a Chrysler e poderá funcionar para o resto dos Estados Unidos.

Quando uma indústria ou uma empresa pede ajuda, como fiz há cinco anos em Washington, a comissão deve perguntar, em defesa dos contribuintes, quem vai assumir o risco: "O que nós ganhamos com isso? O que o contribuinte ganha com isso?" Em outras pala-vras: "Qual a contribuição da administração e dos trabalhadores?"

Vivi essa experiência, e é simples. É preciso que a administra-ção concorde em fazer alguma coisa antes que o governo faça qual-quer coisa — garantias de empréstimo, por exemplo, ou restrições de importações, ou incentivos fiscais aos investimentos, ou auxílio à P & D. A administração terá que concordar em reaplicar seus ga-nhos em investimentos capazes de gerar empregos — no nosso país. Terá que concordar em dividir os lucros com os trabalhadores e concordar até mesmo em manter os preços dentro de determinados limites.

Os sindicatos, por sua vez, terão que sair da idade das trevas. Terão que concordar em mudar normas de trabalho que atrapalhem a produtividade — a exemplo das normas que definem 114 funções nas linhas de montagem, quando cerca de 6 seriam suficientes. De-

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verão concordar até mesmo com restrições aos custos incontrolá-veis de assistência médica que hoje existem no nosso sistema.

Se nem a administração nem os trabalhadores se dispuserem a fazer sacrifícios, a conversa estará encerrada. Você não poderá es-perar ajuda do governo se não estiver disposto a colocar em ordem a sua própria casa. Em outras palavras, ninguém come de graça. Quem pede assistência tem que entender que terá de atender, algu-mas determinações.

Tudo isso soa como uma espécie de Plano Marshall para os Es-tados Unidos. E é exatamente isso. Se os Estados Unidos foram ca-pazes de reconstruir a Europa Ocidental depois da Segunda Guerra Mundial, se foram capazes de criar o Fundo Monetário Internacio-nal e vários bancos de desenvolvimento para ajudar a reconstrução do mundo, teremos que ser capazes, hoje, de reconstruir nosso pró-prio país. Se o Banco Mundial — uma instituição que produz lucros — pode ajudar com sucesso países subdesenvolvidos, por que um novo banco nacional de desenvolvimento não poderia fazer o mes-mo pelas indústrias americanas que estão em dificuldade?

Talvez precisemos de um Fundo Monetário Americano. O que há de tão horrível no fato de um banco nacional de desenvolvimen-to com capital de 5 bilhões de dólares fazer nossas indústrias volta-rem a ser competitivas?

No início de 1984, a Comissão Kissinger solicitou 8 bilhões de dólares para õ desenvolvimento econômico da América Central. Ora, sempre achei que América Central significava lugares como Michi-gan, Ohio e Indiana (isso mostra como minha mente é limitada!). Que tal pensar na nossa América Central? Como podemos gastar 8 bilhões de dólares para fortalecer a economia de outros países, en-quanto deixamos de lado empresas doentes no nosso próprio quintal?

Tem gente que acha que política industrial nada mais é do que . socialismo disfarçado. Se isso for verdade, acho ótimo o socialismo disfarçado. Se não agirmos prontamente, o coração industrial do nosso país se tornará um deserto industrial.

Qualquer política industrial realista para os Estados Unidos de-

verá incluir uma reforma monetária fiscal.

O autor faz um jogo entre "heartland" — região central, coração — e "wasteland" — ermo, deserto. (N. do T.)

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Não se pode ter uma economia estável e saudável com altas ta-xas de juros — ou com taxas de juros que flutuam a cada dez minu-tos. As altas taxas de juros são desastres provocados pela mão do homem. E o que o homem faz, o homem pode desfazer. Considero o dia 6 de outubro de 1979 como um dia de infâmia para o nosso país. Foi nesse dia que Paul Volcker e o FED permitiram que a pri-me rate flutuasse. Foi então que os monetaristas disseram: "A única forma de conter a inflação é controlar a circulação do capital — e as taxas de juros que se danem".

Como todos nós sentimos na própria carne, esta decisão deu o-rigem a uma grande onda de destruição econômica. Com certeza há uma forma melhor de controlar a inflação do que jogá-la nas costas dos trabalhadores da indústria automobilística e da construção civil. Quando os futuros historiadores estudarem a nossa forma de curar a inflação e todo o sofrimento causado pelo tratamento, certamente irão fazer comparações com a sangria da Idade Média!

Detroit foi atingida primeiro. Sofremos a mais longa depressão das vendas de automóveis dos últimos cinqüenta anos. A constru-ção civil foi a segunda vítima. Depois disso, quase todos neste país foram atingidos.

Antes de a prime rate se descontrolar, a única vez na nossa his-tória em que as taxas de juros chegaram a 12 por cento foi durante a guerra civil. Mas agora os juros não só chegaram a 12 por cento, como continuaram a subir. Num certo momento, chegaram a 22 por cento. Esta é uma forma de usura legalizada. Alguns Estados têm leis que estabelecem 25 por cento de juros como indício de intenção criminosa. A Máfia acha isso excesso de rigor.

Mas por mais duro que seja 20 por cento de juros, pior ainda é o efeito "ioiô". De 6 de outubro de 1979 a outubro de 1982, as taxas subiram (e desceram) oitenta e seis vezes, o que significa uma alte-ração a cada 13,8 dias. Como se pode planejar qualquer coisa quan-do se está exposto a isso?

Quando as taxas de juros estão altas, os consumidores aplicam muito dinheiro a curto prazo. Mas ganhar dinheiro com dinheiro não é produtivo. Não cria empregos. E aqueles que de fato criam empregos investem na produtividade, querem expandir seus negó-cios e se dispõem a pagar um valor razoável em impostos, acabam sendo levados pela corrente, esperando receber algumas migalhas de créditos para continuar atuando de forma a dar trabalho para mais algumas pessoas.

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As altas taxas de juros encorajam os ricos a fazer o seu novo joguinho: ganhar dinheiro com dinheiro. Quando o dinheiro é caro, os investimentos era pesquisa e desenvolvimento são arriscados. Quando as taxas são altas, é mais barato comprar do que construir uma empresa.

De cada dez grandes fusões de empresas da história dos Esta-dos Unidos, nove ocorreram durante a administração Reagan. Uma das maiores envolveu a U. S. Steel. Protegida por sobretaxas (o que nos custa 100 dólares a mais por carro para comprar aço america-no), a U. S. Steel pagou 4,3 bilhões de dólares para comprar a Ma-rathon Oil. A maior parte desse dinheiro foi obtida em emprésti-mos. Esse dinheiro poderia ter sido usado para construir modernas fornalhas de oxigênio e máquinas de fundição contínua que nos te-riam permitido competir com os japoneses.

Quando os metalúrgicos viram o que estava acontecendo, fica-ram tão furiosos que exigiram que todas as concessões salariais que eles fizessem fossem reaplicadas na indústria do aço. É quase ina-creditável que os administradores americanos precisem receber au-las dos trabalhadores sobre o funcionamento do nosso sistema.

E o que dizer da Du Pont ter comprado a Conoco por 7,5 bi-lhões e, no processo, ter aumentado seu débito para 4 bilhões? Essa operação custou à Du Pont 600 milhões de juros por ano só para a-tender ao serviço da dívida. Não teria sido melhor se a Du Pont ti-vesse usado esse dinheiro para desenvolver o tipo de produtos no-vos e criativos que a tornaram mundialmente famosa?

E a Bendix, a United Technologies e a Martin Marietta, que tomaram empréstimos de 5,6 bilhões para sustentar seu canibalismo empresarial — sem terem criado um único emprego em todo o pro-cesso? Esse círculo vicioso só terminou com a entrada da Allied.

Pensem no seguinte: na década de 1972-1982, o número total de empregados das quinhentas maiores indústrias americanas sofreu um decréscimo real. Todos os novos empregos — mais de dez mi-lhões — foram gerados por outras fontes. Uma dessas fontes foi a pequena empresa. A outra, lamento informar, foi o governo — tal-vez tenha sido o único crescimento real que a indústria produziu. Por que não aprovamos uma lei estabelecendo que, quando se toma dinheiro emprestado para comprar outra empresa e canibalizá-la, os pagamentos de juros referentes a esses empréstimos não são dedutí-veis? Isso acabaria rapidamente com os excessos do sistema.

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Atualmente, se você quiser comprar uma empresa concorrente em princípio não lhe será permitido. Isso viola as leis antitruste. Mas se você quiser comprar uma empresa que faça uma coisa com-pletamente diferente, não há nada que o impeça.

Qual o sentido disso? Por que alguém que atua no negócio de aço se tornaria, de uma hora para outra, um homem do petróleo? É um universo completamente diferente. O entrosamento levaria vá-rios anos. E, o que é mais importante, isso não é produtivo.

Se reduzíssemos as taxas de juros e parássemos com a loucura das fusões, poderíamos expulsar os mercadores de dinheiro do tem-plo da economia nacional. Poderíamos voltar a fazer negócios ao modo americano, através do investimento produtivo e da competi-ção e não da compra irracional dos negócios dos outros; através da criação de mais empregos, de modo que mais pessoas pudessem participar do crescimento econômico. Os custos previdenciários, a nível municipal, estadual e federal, poderiam diminuir. O capital começaria a se acumular e as fábricas, a se expandir.

Como todos sabem, para reduzir as taxas de juros é preciso fa-zer grandes cortes no déficit federal. Está na hora de alguém tomar o cartão de crédito das mãos do governo. Hoje Washington usa mais da metade do crédito disponível (para ser exato, 54 por cento) para financiar a dívida pública.

Apesar de todas as promessas de campanha do presidente Rea-gan, a dívida pública está fora de controle. Por volta de 1835, o dé-bito federal era de apenas 38000 dólares. Em 1981, passou da mar-ca dos 100 milhões, pela primeira vez na história. Hoje, ele está por volta de 200 bilhões. Nos próximos cinco anos, deverá chegar perto de 1,5 trilhão!

Só uma vez já tivemos um déficit tão alto — durante o período entre 1776 a 1981. Imaginem só: foram necessários 206 anos, oito guerras, duas grandes depressões, cerca de uma dezena de reces-sões, dois programas espaciais, a abertura do Oeste e o mandato de trinta e nove presidentes para chegar a isso. Agora vamos duplicar este recorde em apenas cinco anos, num período de paz — e duran-te um período de chamada recuperação econômica.

Em outras palavras, existem sessenta e um milhões de famílias neste país e vamos pendurá-las em 3000 dólares anuais, sem sua autorização. É como se Tio Sam estivesse usando nosso cartão de crédito sem nos pedir licença. Como resultado, estamos hipotecan-do o futuro dos nossos filhos e netos. Como a maioria deles obvia-

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mente ainda não pode votar, deram-nos uma procuração. E nós não a estamos usando corretamente. Se dependesse de mim, todo o pes-soal de Washington tiraria zero em orçamento.

Temos que atacar o problema orçamentário e nossos demais problemas econômicos antes que eles nos dominem completamente. Com efeito, para resolver nossos imensos problemas é preciso ha-ver disposição para tomar medidas impopulares. Como criança da Grande Depressão, sempre fui grande fã de Roosevelt. Ele fez muito por este país, embora os ideólogos o tenham combatido a cada passo que ele dava. Ele virou a mesa. Incluiu os excluídos. Teve a audácia de pôr para trabalhar as pessoas que vendiam maçãs nas esquinas.

Acima de tudo, ele era pragmático. Quando estava diante de grandes problemas, fazia alguma coisa — e isso é sempre mais co-rajoso do que não fazer nada. Roosevelt não atacou os problemas da Depressão com gráficos e quadros, com curvas de Laffer ou com teorias da Harvard Business School. Tomou medidas concretas. Sempre se mostrava disposto a tentar coisas novas e, se as tentati-vas não dessem resultados satisfatórios, tentava outra coisa.

Precisamos, hoje, ter um pouco mais desse espírito em Wa-shington. Nossos problemas são grandes e complicados. Mas exis-tem soluções para eles. Nem sempre essas soluções são fáceis e nem sempre são agradáveis. Mas existem.

Os grandes temas que nos desafiam atualmente não são temas republicanos ou democratas. Os partidos políticos podem discutir sobre os meios, mas ambos devem abraçar o objetivo final,, que é devolver a grandeza aos Estados Unidos.

Será que conseguiremos sucesso nesse empreendimento? Al-guém disse que, nos grandes projetos, sempre há glória, mesmo no fracasso. Por isso, devemos tentar e, se o fizermos, estou certo de que seremos bem-sucedidos.

Afinal, somos um povo de recursos numa nação que foi premi-ada com a abundância. Com direção, liderança e o apoio do povo americano, não poderemos perder. Tenho certeza de que este país voltará a ser aquele símbolo claro e brilhante de poder e de liberda-de — que não é desafiado por ninguém e que é invejado por todos.

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EPÍLOGO A GRANDE DAMA

uando o presidente Reagan me convidou para presidir a Comissão do Centenário da Estátua da Li-berdade-Ilha Ellis, eu estava em apuros com a Chrysler. Mas, de qualquer forma, aceitei. As pessoas me perguntaram: "Por que você assumiu essa incumbência? Você já não tem muito que fazer?"

Mas era um trabalho de amor pela minha mãe e pelo meu pai, que sempre me falavam da Ilha Ellis. Meus pais eram pessoas sim-ples. Não sabiam a. língua do país. Não sabiam o que fazer quando chegaram aqui. Eram pobres, não tinham nada. A ilha foi uma parte de mim — não o local em si, mas seu significado e sua relação com as dificuldades da experiência dos meus pais.

Meu envolvimento com a restauração desses dois grandes sím-bolos é, na verdade, mais do que um trabalho em memória dos meus pais. Também me identifico com sua experiência. E agora que estou envolvido, descobri que quase todos os americanos sentem a mesma coisa.

Aqueles dezessete milhões de pessoas que passaram pelos por-tões da Ilha Ellis tiveram muitos filhos. Deram aos Estados Unidos cem milhões de descendentes, o que significa que quase a metade do nosso país tem suas raízes aqui.

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E é de raízes que esse país está precisando. As pessoas estão querendo retornar aos valores básicos. Trabalho duro, a dignidade do trabalho, a luta pelo que é certo — é isso que a Estátua da Liber-dade e a Ilha Ellis significam.

Com exceção dos índios americanos, todos nós somos imigran-tes ou filhos de imigrantes. Assim, é importante superarmos os este-reótipos com que temos convivido. Os italianos trouxeram para este país mais do que a pizza e o spaghetti. Os judeus trouxeram mais que bagels. Os alemães trouxeram mais que knockwurst e cerveja.

Todos os grupos étnicos trouxeram sua cultura, sua música, sua literatura. Fundiram-se no cadinho da cultura americana — mas de alguma forma, conseguiram manter sua identidade cultural nesse contato.

Nossos pais vieram para cá e participaram da revolução industri-al que mudou a face do mundo. Hoje estamos passando por uma no-va revolução, a da alta tecnologia, e todos estão com medo das suas conseqüências. Quando se passa por um momento de mudanças, co-mo estamos passando agora, o grande medo é que muitas pessoas se machuquem — e que uma delas seja justamente você. Por isso tantas pessoas estão preocupadas. Elas se perguntam: "Conseguiremos lidar com essas mudanças tão bem quanto nossos pais, ou seremos deixa-dos de lado?" E nossos filhos começam a se perguntar: "Deveremos reduzir nossas expectativas e nosso padrão de vida?"

Ora, eu quero lhes dizer: as coisas não têm que ser assim. Se os nossos avós conseguiram vencer, talvez vocês também consigam. Talvez vocês nunca tenham pensado nisso, mas eles sofreram as pe-nas do inferno. Renunciaram a muita coisa. Eles queriam que a vida de vocês fosse melhor que a deles.

Quando as coisas iam mal, minha mãe não achava nada de mais em trabalhar nas fábricas de seda para que pudéssemos levar lanche para a escola. Ela fez o que tinha de fazer. Quando fui para a Chrys-ler encontrei uma confusão imensa, mas fiz o que tinha que fazer.

Pensem nisso. Os últimos cinqüenta anos podem nos revelar o que está por acontecer nos próximos cinqüenta. O que os últimos

Palavra derivada da palavra iídiche "beygel", espécie de bolo de farinha cozido, preparado de uma forma especial. (N. do T.) Do alemão "knackwurst", salsicha. (N. do T.)

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cinqüenta anos nos ensinaram foi a diferença entre o certo e o erra-do, foi que apenas o trabalho duro dá resultados, que ninguém come de graça, que é preciso ser produtivo. São esses valores que torna-ram grande este país.

E são esses valores que a Estátua da Liberdade representa. A Estátua da Liberdade é justamente isso — um belo símbolo do que significa ser livre. A realidade é a Ilha Ellis. A liberdade é apenas o passaporte, mas, se você quiser sobreviver e prosperar, é preciso pagar o preço.

Tive uma carreira magnífica, e foi este país que me deu a chan-ce de fazer essa carreira. Aproveitei a oportunidade, mas não fiquei de braços cruzados. Foram necessários quase quarenta anos de tra-balho duro.

As pessoas me dizem: "Você é um grande sucesso. Como você conseguiu?" E eu me volto para aquilo que meus pais me ensina-ram. Seja esforçado. Obtenha toda a instrução possível, mas, de-pois, pelo amor de Deus, faça alguma coisa! Não fique parado, faça alguma coisa acontecer. Não é fácil, mas se você se mantiver num caminho determinado e trabalhar para chegar ao seu final, é impres-sionante como, numa sociedade livre, você pode se tornar tão gran-de quanto desejar. E, é preciso não esquecer, seja sempre grato por todas as bênçãos que Deus lhe der".

Como a maior parte da minha vida foi dedicada a vendas — produtos, idéias ou valores — creio que não teria cabimento encer-rar este livro sem tentar vender alguma coisa. E aqui vai:

Por favor, ajudem-me na restauração da Ilha Ellis e da Estátua da Liberdade. Enviem a sua contribuição dedutível do Imposto de Renda para:

Statue of Liberty-Ellis Island Foundation, Box 1986, New York, NY 10018. Não deixem a chama da Estátua se apagar!

Lembrem-se de que, pelo menos, Cristóvão Colombo, meu pai e eu seremos eternamente gratos. ***