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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO MARIA RAQUEL BAETA MEIRELES LEGITIMAÇÃO DO PODER POLÍTICO NO ESTADO MODERNO A PARTIR DOS CONCEITOS DE REPRESENTAÇÃO DAS TEORIAS DE HANS KELSEN E ERIC VOEGELIN ORIENTADOR: PROF. ASSOC. NUNO MANUEL MORGADINHO DOS SANTOS COELHO RIBEIRÃO PRETO SÃO PAULO 2014

LEGITIMAÇÃO DO PODER POLÍTICO NO ESTADO MODERNO … · Legitimação do poder político no Estado Moderno a partir dos ... Teoria Geral do Estado. 2. Filosofia Política. 3. Hans

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO

MARIA RAQUEL BAETA MEIRELES

LEGITIMAÇÃO DO PODER POLÍTICO NO ESTADO MODERNO A

PARTIR DOS CONCEITOS DE REPRESENTAÇÃO DAS TEORIAS DE

HANS KELSEN E ERIC VOEGELIN

ORIENTADOR: PROF. ASSOC. NUNO MANUEL MORGADINHO DOS SANTOS

COELHO

RIBEIRÃO PRETO – SÃO PAULO

2014

1

MARIA RAQUEL BAETA MEIRELES

LEGITIMAÇÃO DO PODER POLÍTICO NO ESTADO MODERNO A

PARTIR DOS CONCEITOS DE REPRESENTAÇÃO DAS TEORIAS DE

HANS KELSEN E ERIC VOEGELIN

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à

Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da

Universidade de São Paulo, sob a orientação do

Professor Associado Nuno Manuel Morgadinho

dos Santos Coelho.

RIBEIRÃO PRETO – SÃO PAULO

2014

2

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio con-

vencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

FICHA CATALOGRÁFICA

Meireles, Maria Raquel Baeta.

Legitimação do poder político no Estado Moderno a partir dos

conceitos de representação das teorias de Hans Kelsen e Eric Voegelin

/ Maria Raquel Baeta Meireles; orientador Nuno Manuel Morgadinho

dos Santos Coelho. Ribeirão Preto, 2014.

98 p.

Trabalho de Conclusão de Curso. Faculdade de Direito de Ribeirão

Preto da Universidade de São Paulo.

1. Teoria Geral do Estado. 2. Filosofia Política. 3. Hans Kelsen. 4.

Eric Voegelin. 5. Legitimidade. 6. Representação política.

3

MEIRELES, Maria Raquel Baeta. LEGITIMAÇÃO DO PODER POLÍTICO NO ESTA-

DO MODERNO A PARTIR DOS CONCEITOS DE REPRESENTAÇÃO DAS TEO-

RIAS DE HANS KELSEN E ERIC VOEGELIN. Trabalho de Conclusão de Curso apre-

sentado à Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo para obtenção

do grau de bacharel em Direito.

Aprovado em: _______________________________________________________________

BANCA EXAMINADORA

Professor: __________________________________________________________________

Instituição: _____________________________________ Julgamento: __________________

Assinatura: _________________________________________________________________

Professor Associado Nuno Manuel Morgadinho dos Santos Coelho

Instituição: Faculdade de Direito de Ribeirão Preto/USP. Julgamento: __________________

Assinatura: _________________________________________________________________

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5

Dedico este trabalho aos meus pais, José Carlos e Maria Amélia,

e aos meus irmãos, Helena e Pedro.

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer àquilo que faz as coisas serem como são,

pois disso parte todo o resto que se segue. Depois, agradeço aos meus pais, José Carlos e Ma-

ria Amélia por serem meu maior exemplo em tudo. Mas principalmente no amor incondicio-

nal que deles recebo. Agradeço ao apoio tanto nas condições físicas, materiais, quanto nas

emocionais, sem as quais eu não seria quem sou e não chegaria onde chego. Agradeço tam-

bém aos meus irmãos Helena e Pedro que, assim como meus pais, me são exemplos de supe-

ração, força e determinação. São minha Ohana e incrivelmente perfeitos em suas imperfei-

ções.

Gostaria também de agradecer o meu orientador, Professor Assoc. Nuno M. M. dos

Santos Coelho, por ter sempre demonstrado apoio às minhas ideias, tanto na escolha do tema,

quanto à estrutura do trabalho e principalmente do meu intercâmbio. Aproveito também para

demonstrar minha gratidão àqueles que tornaram tal aventura possível, a Universidade de São

Paulo pela concessão de minha bolsa de estudos e ao Prof. António Mendo Castro Henriques

que gentilmente me recebeu nas terras lusitanas.

Dentre os professores gostaria de destacar aqueles que me impressionam pela paixão à

arte que é ensinar: Professores Nuno e Nojiri e Professoras Flávia e Cynthia. Para além dos

professores também dependi bastante de outros profissionais na faculdade, aos quais sou grata

pela atenção, presteza, competência: Éder, Renata, Ariadne, Márcia, Érica, Omar, Marco e

Rubens.

Agradeço ao meu amigo Ricardo, exemplo de dedicação e competência, com quem ti-

ve o privilégio de dividir desde risadas a anseios, dúvidas e discussões teóricas dos mais dife-

rentes tipos.

E, por último mas não mesmos importante, àqueles que fizeram do meu cotidiano e da

minha vida nesses últimos anos algo para ser sempre lembrado com carinho e muito afeto:

Carina, Brenner, Letícia, Ruth, Sara, Raysa, Jéssica, Octávio, Gabriel, Paschoal, Sônia, Bruna,

Maisa, Francisco, Juliana e Heloísa. Aqueles que são do núcleo de convívio universitário não

deixam de me surpreender pelo fato de pessoas tão distintas e plurais poderem ser também tão

semelhantes.

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“Sem o jogo permanente entre os opostos, o

mundo não existiria.”

Jostein Gaarder.

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11

RESUMO

Partindo do pressuposto de que a representação é elemento básico e essencial da legitimidade,

este trabalho aborda a análise do que é considerado representação e da relação entre esse con-

ceito e o de legitimidade para as teorias de Hans Kelsen e Eric Voegelin. Há o estudo dos

pressupostos metodológicos de cada autor, e depois a análise das teorias, para que se possa

contextualizar ambos os conceitos e compreendê-los da forma mais completa e ampla possí-

vel. Da teoria de Hans Kelsen trata-se o conceito de Estado, Direito, poder político, formas de

organização governamental, representação na democracia parlamentar, o fato dela ser consi-

derada uma ficção e por fim a legitimidade. Para Eric Voegelin, apresenta-se as diferentes

fases de seu pensamento, suas críticas ao positivismo, e a representação é abordada pelos es-

critos de História das Ideias e A Nova Ciência da Política. A teoria de Hans Kelsen fornece

um panorama mais estrito e de fácil apreensão na realidade, enquanto que a de Eric Voegelin

traça um panorama mais amplo, envolvendo desde a consciência humana até o transcendental.

Por fim há a crítica de Kelsen a Voegelin e por último a análise crítica de ambas as teorias.

Palavras-chave: Teoria Geral do Estado. Filosofia Política. Hans Kelsen. Eric Voegelin. Legitimi-

dade. Representação política.

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ABSTRACT

Assuming that representation is a basic and essential element of legitimacy, this paper dis-

cusses the analysis of what is considered representation and the relationship between this con-

cept and the legitimacy in the theories of Hans Kelsen and Eric Voegelin. There is the study

of the methodological assumptions of each author, and then the analysis of theories, making it

possible to contextualize both concepts and understand them the most complete and compre-

hensive way. In Hans Kelsen's theory is presented the concept of state, law, political power,

forms of government organization, representation in parliamentary democracy, the fact that

representation is considered a fiction and, ultimately, legitimacy. Eric Voegelin, presents the

different stages of his thought, his criticism about positivism, and the representation is spoken

by the writings of the History of Ideas and The New Science of Politics. Hans Kelsen's theory

provides a more strict and easy to grasp on reality panorama, while Eric Voegelin traces a

wider panorama, ranging from human consciousness to the transcendental. Finally there is the

critique of Kelsen about Voegelin and the last, a critical analysis of both theories.

Keywords: General Theory of the State. Political Philosophy. Hans Kelsen. Eric Voegelin.

Legitimacy. Political representation.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 17

1. Hans Kelsen ........................................................................................................................ 21

1.1. Biografia ....................................................................................................................... 21

1.2. Sobre o Positivismo ...................................................................................................... 22

1.3. Sobre o Estado ............................................................................................................... 23

1.3.1. O Direito e o Estado ................................................................................................ 23

1.3.2. O território do Estado .............................................................................................. 26

1.3.3 O tempo como elemento do Estado.......................................................................... 27

1.3.4. O povo ..................................................................................................................... 29

1.4. Sobre o poder político e os três poderes ....................................................................... 30

1.5. Sobre as diferentes formas de governo e a importância da democracia ....................... 33

1.6. Representação na democracia parlamentar ................................................................... 38

1.7. Representação como ficção .......................................................................................... 40

1.8. Solução do problema da representação ......................................................................... 41

1.9. O que é Legitimidade ..................................................................................................... 43

2. Eric Voegelin ....................................................................................................................... 47

2.1. Biografia ........................................................................................................................ 47

2.2. As três fases ................................................................................................................... 48

2.2.1. A História das Ideias ............................................................................................... 49

2.2.2. Ordem e História ..................................................................................................... 50

2.2.3. Anamnese e últimos volumes de Ordem e História ................................................ 56

2.3. Críticas ao Positivismo .................................................................................................. 56

2.4. Representação na História das Ideias – Período Moderno............................................. 64

2.5. Representação na Nova Ciência da Política .................................................................. 70

2.6. Representação e Legitimidade ....................................................................................... 82

3. Crítica de Kelsen à Nova Ciência da Política ................................................................... 85

CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 91

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 95

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho surgiu por causa da observação e incompreensão sobre a realidade

que se impõe. O contexto histórico brasileiro à época da realização do projeto era de manifes-

tações populares que, a despeito dos temas reivindicados, ecoava um constante grito de “não

me representa”. “O governo não me representa”, “os partidos não me representam” e, por ve-

zes, nem o colega de passeata representava o cidadão ao lado. Não foi necessária uma atenção

redobrada para perceber que o mesmo fenômeno insurgia, ou já havia insurgido, em outras

sociedades ou países. Mesmo durante o ano de realização do trabalho, novas situações seme-

lhantes emergiram.

A questão comum em todos os movimentos é uma insatisfação generalizada das popu-

lações com seus representantes governamentais. Em sociedades de aparente calma e estabili-

dade, em determinado momento, a população ia às ruas demonstrar seu descontentamento

com seus líderes políticos, as vezes chegando até a realizar a mudança dos governos. E neste

ponto o trabalho poderia seguir dois diferentes rumos: ou se escolhia algum caso emblemático

para estudo, ou se buscava compreender alguma possível causa comum a tais movimentos

populares. Optou-se pela segunda orientação.

Neste direcionamento, a percepção foi de que a questão de base desses movimentos é

a legitimidade. A primeira pergunta que surge é “o que torna o governo de um Estado algo

legítimo?”. Esta é uma questão ampla, que pode ter diferentes respostas, a depender da época

ou autor que se estuda. Dessa forma, compreende-se ser melhor restringir a legitimidade ao

modelo de Estado Moderno e que seria positivo escolher autores mais contemporâneos. O

primeiro contato com o tema se deu, por indicação do orientador Prof. Assoc. Nuno M. M. S.

Coelho, com o texto de Hans Kelsen, chamado “A New Science of Politics”, que consiste na

crítica ao texto homônimo de outro autor, Eric Voegelin. Após a leitura desses dois textos,

percebeu-se uma relação intrínseca, ao menos para os dois autores, do conceito de representa-

ção com o de legitimidade. Assim, estabeleceu-se o pressuposto metodológico de que o estu-

do da legitimidade, para esse trabalho, seria circunscrito principalmente ao conceito de repre-

sentação e teria por base a teoria desses dois autores.

Pela leitura dos dois autores, se percebeu uma grande dicotomia no que tange aos

pressupostos metodológicos de Kelsen e Voegelin. O primeiro autor é uma referência do mé-

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todo positivista dentro da teoria do direito, enquanto o segundo autor é um crítico do positi-

vismo, havendo até certa discussão sobre qual pressuposto metodológico sua teoria se encai-

xaria. De forma ampla ele poderia ser classificado como filósofo metafísico, com um direcio-

namento ontológico. Para Kelsen, Voegelin seria classificado como autor teológico. Por isso,

entendeu-se que caberia antes do estudo das teorias dos autores, a compreensão dos seus pres-

supostos metodológicos.

Quanto à questão de estruturação do trabalho, se preferiu apresentar primeiro a teoria

de Hans Kelsen, depois a de Eric Voegelin, a seguir a crítica feita por Kelsen e por fim um

comparativo das teorias. A abordagem do tema na parte de Kelsen se iniciará com a explana-

ção do positivismo, que é a concepção metodológica adotada em seus estudos, e depois a teo-

ria do autor será abordada dos conceitos mais amplos aos mais restritos. Dessa forma, primei-

ro será apresentado o conceito de “Estado”, depois o de “Poder Político”, incluindo breve

explanação sobre os três poderes do Estado (legislativo, executivo e judiciário). A seguir há a

apresentação das diferentes formas de governo para se compreender a importância da demo-

cracia dentro da teoria de Kelsen. Após esse percurso será possível tratar sobre o tema da re-

presentação dentro de um Estado democrático, com destaque à democracia parlamentarista. E

por fim caberá a análise do ponto fulcral do trabalho, que é a de legitimidade. Se analisará a

relação da legitimidade com a representação e se é possível dizer que a representação é fator

essencial da legitimidade ou não e se não for, o que é então?

Já a abordagem do tema na teoria de Eric Voegelin não seguirá dos conceitos mais

amplos aos mais restritos, em decorrência do fato de que este autor não manteve um pensa-

mento tão linear durante a vida, sendo sua teoria marcada por duas rupturas, ou seja, consiste

em três fases. Após essa contextualização, haverá o enfoque metodológico, abordando a críti-

ca de Voegelin ao positivismo. E então sim, será possível a apresentação da teoria, que partirá

da análise do conceito de representação na primeira fase do autor e depois o da segunda fase.

A transição entre as duas primeiras fases é maior do que entre as duas últimas, de forma que

se entendeu não ser necessário tratar da última fase neste trabalho, principalmente pelo fato de

que o autor passou a se dedicar principalmente à filosofia da consciência, que é um assunto

muito complexo para ser trazido desde a consciência individual até a legitimidade do Estado.

Dessa forma, o conteúdo sobre a consciência será apenas brevemente pincelado neste traba-

lho. Por fim, haverá a relação entre o conceito de representação e legitimidade para esse au-

tor.

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A seguir há um capítulo com as críticas de Hans Kelsen ao livro “A Nova Ciência da

Política” de Eric Voegelin. Nessa parte será tratada a crítica ao método bem como à teoria.

Por último, haverá as conclusões retiradas das teorias tratadas no trabalho, com levan-

tamento de qualidades e críticas de ambas em separado e comparativamente. Mais do que

conclusões taxativas, que não são necessariamente as melhores, principalmente em um tema

abrangente como o deste trabalho, a pretensão é que se consiga levantar a importância da aná-

lise da sociedade por diferentes métodos e compreensões possíveis. Por vezes, a análise da

sociedade por diferentes lentes, mesmo que opostas, pode fornecer uma visão mais completa e

ampla da própria sociedade, já que todo estudo voltado para um critério ou método diferente é

específica e, portanto, excludente. Ou seja, toda delimitação de tema gera exclusão e por ve-

zes o estudo de delimitações opostas pode fornecer um panorama mais completo do tema

abordado.

20

21

1. HANS KELSEN

1.1. Biografia

Kelsen nasceu em 11 de outubro de 1881, em Praga, na parte austríaca do império

Austro-Húngaro, mas mudou-se com a família para Viena com três anos de idade. Ele inici-

almente pretendia estudar filosofia, mas teve que considerar por causa das perspectivas eco-

nômicas da carreira, e decidiu por fazer faculdade de Direto na Universidade de Viena. Na

universidade acabou desenvolvendo um interesse crescente pela área, principalmente nos âm-

bitos de Direito Internacional e Constitucional, e após a licenciatura e o doutorado, em 1911

começou a ensinar Direito do Estado e Filosofia. Em 1918 tornou-se professor associado na

Universidade de Viena.

Durante a 1ª Guerra Mundial, Kelsen serviu como conselheiro legal do Ministro da

Guerra. Depois da Guerra, foi criada a República (independente) da Áustria e o chanceler do

Estado Provisório, Karl Renner, confiou à Kelsen a tarefa de ajudar a realizar o anteprojeto da

nova Constituição Austríaca.

Para a realização da nova constituição, ele priorizou que houvesse uma suprema corte

constitucional. Em 1921 Kelsen foi nomeado membro da Corte Constitucional. Mas como ele

apoiava o divórcio, havia contra ele fortes oposições políticas, como a frente católica, o que

resultou em sua destituição em 1930. Em seguida ele decidiu sair permanentemente do país.

Mudou-se para Genebra e em seguida para Praga, sendo professor universitário em ambas as

cidades. Em Praga havia fascismo e antissemitismo, de forma que Kelsen, que era judeu, dava

aulas sob proteção policial. Quando foi descoberto um plano para matá-lo, decidiu deixar o

país. Dessa forma, em 1940 ele se mudou para os Estados Unidos, sendo pesquisador e pro-

fessor em Harvard e na Universidade da Califórnia. Em 1945, tornou-se conselheiro legal da

Comissão para Crimes de Guerra dos Estados Unidos, em Washington. Seu trabalho consistia

em preparar legal e tecnicamente os aspectos dos julgamentos de Nuremberg.

Ele sempre teve uma vida muito produtiva academicamente, escrevendo diversos li-

vros e aproximadamente 400 artigos, escritos em alemão, inglês e francês. Ele morreu em 20

de abril de 1973, com 92 anos1.

1 Introdução feita por A. Javier Treviño, em 2004 ao livro “General Theory of Law and State” (KELSEN, 2004)

22

1.2. Sobre o Positivismo

No ano de 1911, Kelsen publica um trabalho intitulado Hauptprobleme der Staats-

rechtslehre, entwickelt aus der Lehre vom Rechtssatz, cuja tradução é “Principais problemas

da teoria do direito público, desenvolvidos a partir da teoria da norma jurídica”. Nesse traba-

lho, o autor desenvolve a perspectiva de que a essência do direito é ser norma, de que a teoria

jurídica deve ter como objeto de estudo as proposições normativas (KELSEN, 2012, p. 24-

25). Disso ele depreende que todo direto subjetivo provém de um direito objetivo e que, por-

tanto, não se pode falar em uma “vontade do Estado”, pois ela nada mais é do que uma perso-

nificação do “dever-ser” do ordenamento estatal.

A respeito do positivismo, é uma teoria que surge para se contrapor à teoria jusnatura-

lista. A teoria naturalista possui um âmbito transcendente, de caráter metafísico e, de acordo

com Kelsen, teve predomínio no período do desenvolvimento do Estado na monarquia abso-

luta. Mas quando a burguesia liberal no século XIX ascende ao poder, passa a questionar as

teorias naturalistas, criticando principalmente o aspecto religioso delas e passando a valorizar

os estudos empíricos, típicos das teorias positivistas. Nesse momento a teoria jusnaturalista é

suplantada pela juspositivista, mas não de forma total, de modo que o que se percebe é uma

mescla entre as duas vertentes, tanto que Kelsen afirma haver na teoria do Direito uma junção

com âmbitos da psicologia, biologia, ética e a teologia (KELSEN, 2006, p. 52). A “Teoria

Pura do Direito” de Kelsen surge justamente como uma crítica a essa mistura da ciência jurí-

dica com elementos considerados estranhos ao que deve ser uma ciência do direito.

Kelsen afirma que uma ciência do direito é aquela que “se propõe a investigar causas e

efeitos daqueles eventos naturais que, qualificados pelas normas jurídicas, se apresentam co-

mo atos públicos” (KELSEN, 2006, p. 58), e afirma que uma teoria que queira, por exemplo,

entender as causas de um legislador promulgar uma norma e não outra, ou quais os efeitos

dessa norma, ou como os fatos econômicos ou religiosos influem na aplicação das leis ou co-

mo o comportamento dos homens se modifica pela ordem jurídica, é uma teoria que não pode

ser qualificada como ciência jurídica, e sim como sociologia jurídica ou filosofia política.

O autor critica essas análises sociológicas e filosóficas por serem conhecimentos que

fazem um juízo de valor e disso resulta que classificam o objeto de estudo, ou seja, o Direito

como sendo justo ou injusto. Por meio dessa análise valorativa, afirma Kelsen que o teórico

ou a teoria não se compromete com nada, ou seja, que os valores dados ao ordenamento ser-

vem de instrumento para interesses políticos, criando uma ideologia que pode servir tanto

para legitimar quanto para desqualificar a ordem social (KELSEN, 2006, p. 63). Dessa forma,

23

Kelsen classifica a Teoria Pura do Direito como sendo anti-ideológica, e portanto uma “ver-

dadeira ciência do direito” (KELSEN, 2006), porque a ideologia encobre a verdade, buscando

ou preservá-la ou destruí-la. A ideologia tem por base a vontade e não o conhecimento.

Esse mesmo processo ocorre quando da análise do conceito de justiça, pois como é um

conceito valorativo, de acordo com Kelsen a “Justiça é um ideal irracional. Seu poder é im-

prescindível para a vontade e o comportamento humano mas não o é para o conhecimento. A

este só se oferece o direito positivo, ou melhor, encarrega-se dele.” (KELSEN, 2006, p. 62). E

em relação a busca de saber se o conteúdo do direito é justo ou injusto, ou mesmo compreen-

der o conceito de direito como associado ao de “justiça”, afirma o autor que “o direito – e isso

é provado pela história do espírito humano, que há milênios se preocupa inutilmente com a

solução desse problema – não pode ser de modo algum alcançado através do conhecimento

racional” (KELSEN, 2006, p. 61).

O autor afirma que embora os questionamentos sobre o Direito Natural feitos pela

burguesia tenham modificado a teoria do direito, direcionando-a ao positivismo, ainda não

houve uma teoria pura, pois mesmo no positivismo adotado se fazia uso de análises éticas,

pelo chamado “mínimo ético” ou “mínimo moral”. E é assim, portanto, que Kelsen busca em

sua “Teoria Pura do Direito”, fazer um estudo dos fatos da realidade, dissociando-os de juízos

valorativos.

1.3. Sobre o Estado

1.3.1. O Direito e o Estado

Kelsen afirma que um problema da teoria política, que é essencialmente uma teoria do

Estado, decorre do fato de que a palavra “Estado” é utilizada tanto em sentido amplo, como

“sociedade”, ou em restrito, como “nação”, ou “governo” ou “órgãos do governo” e por isso

autores tratam assuntos diferentes com o mesmo termo e alguns ainda fazem uma mescla,

empregando a mesma palavra com significados diferentes. E é por esse motivo que Kelsen

deixa claro que pretende valer-se da palavra no sentido puramente jurídico.

O autor defende que o Direito e o Estado são unos, mas explica que na teoria política

moderna eles são considerados em um dualismo. Dessa forma, ele analisa vários modos de

compreender o Estado, começando pelas teorias dualistas, a fim de as criticar. A primeira de-

las é o Estado como ordem e como comunidade constituída pela ordem, na qual o Estado é

uma realidade, um fato, e surge anteriormente ao Direito, sendo este “criado “por” um Estado

24

ou válido “para” um Estado” (KELSEN, 2005, p. 262). Entretanto, Kelsen afirma que tal dua-

lidade não é defensável pelo fato de que o próprio termo “comunidade” significa que determi-

nado grupo de indivíduos tem a conduta regulamentada por um sistema normativo, ou seja, o

ordenamento jurídico seria a característica básica e essencial para a existência de um Estado,

de forma que não se pode dissociar os dois elementos, o Estado é a “sua” (própria) ordem

jurídica.

Para poder dissociar o conceito de Estado do de Direito, se deveria pressupor que o

Estado existisse independentemente da ordem jurídica. Os que defendem tal teoria afirmam

que o fator de união entre os indivíduos não é o sistema ordenador das condutas, mas pode ser

ou a interação entre os indivíduos; uma vontade ou interesse comum da comunidade; ou que o

Estado é um organismo ou uma dominação. Kelsen analisa e critica cada uma dessas teorias.

A respeito da interação, o autor afirma que esse fator não é suficiente para afirmar que

haja uma comunidade, pois todos os humanos e até mesmo fenômenos interagem de alguma

forma. Tão pouco se pode afirmar que a interação seria maior entre indivíduos de um mesmo

Estado pois há muitas vezes maior interação, seja econômica, política ou cultural, entre indi-

víduos de diferentes Estados do que dentro de um só.

Quanto à teoria da vontade ou interesse comum, nela se defende que essa “vontade”

ou “interesse” constituiria uma unidade, que o autor afirma ser uma ficção. É uma ficção pois

é muito improvável que todos os cidadãos queiram as mesmas coisas, principalmente em co-

munidades grandes, mas mesmo nas pequenas as pessoas dificilmente têm uma vontade una.

Isso ocorre porque os indivíduos estão em constante mudança e portanto as vontades compar-

tilhadas seriam válidas apenas nos momentos em que essa identificação prevalece, já que os

cidadãos podem decidir de uma forma e posteriormente mudar de opinião, acabando com a

unicidade.

Há ainda uma teoria muito semelhante à da vontade, na qual haveria um sentimento ou

consciência coletiva, uma espécie de alma coletiva. Kelsen, entretanto, critica essa teoria

afirmando que a vontade coletiva não pode formar um ser diferente dos indivíduos que per-

tencem a um Estado, e que se assim o fosse, haveria uma transcendência aos dados da experi-

ência e isso degeneraria em uma especulação metafísica. O autor afirma que tal teoria tem

caráter ideológico por querer mascarar a oposição de interesses de diferentes grupos dentro de

uma mesma comunidade, tanto que se todos quisessem as mesmas coisas, obedeceriam volun-

tariamente ao ordenamento jurídico e ele não precisaria mais ser coercitivo.

25

Na teoria do Estado como órgão, o Estado é visto como um organismo natural, em

analogia com o corpo humano, que é composto por órgãos que possuem funções diferentes e

possuem hierarquia entre si. Kelsen critica o fato de que tal teoria serve para justificar a auto-

ridade dos órgãos do Estado e consequentemente para aumentar a obediência à eles e não para

explicar cientificamente o fenômeno do Estado. Já na teoria do Estado como dominação, o

autor concorda que um fator da essência do Estado é a dominação daqueles que governam

sobre os que são governados, mas critica o fato de que na teoria sociológica, só se concebe

como Estado aquele que possui uma dominação considerada legítima e somente é legítima a

dominação estabelecida com base em uma “ordem jurídica cuja validade é pressuposta pelos

indivíduos atuantes” (KELSEN, 2005, p. 270). Assim, mesmo nessa teoria sociológica, antes

de haver a dominação, deve-se pressupor a existência de um ordenamento que legitime tal

dominação.

A definição de Estado que Kelsen considera válida é a jurídica, na qual Direito e Esta-

do são elementos indissociáveis. De forma clara e sucinta, a definição do autor é a seguinte:

“o Estado é aquela ordem da conduta humana que chamamos de ordem jurídica, a ordem à

qual se ajustam as ações humanas, a ideia à qual os indivíduos adaptam a sua conduta.”

(KELSEN, 2005, p. 272), e afirma que existe apenas um conceito jurídico de Estado, qual

seja, o de ordem jurídica, centralizada.

Para reiterar o fato de que o Estado é uma ordem jurídica, Kelsen analisa a expressão:

o “Estado é uma sociedade politicamente organizada” e afirma que nessa concepção o caráter

político do Estado significa ser uma ordem coercitiva, que regula e monopoliza o uso da for-

ça. E essa ordem coercitiva é justamente o Direito, ou seja, o Estado é uma sociedade organi-

zada pelo sistema normativo. Mesmo que o caráter político se deva a uma relação de “poder”,

esse poder só é possível de ser exercido se houver uma estrutura de ordem normativa que in-

vista alguém no poder e obrigue outro a obedecer. Só quando a ordem coercitiva, ou seja, o

Direito, é eficaz, que se pode dizer que há esse poder político que se manifesta pelo monopó-

lio do uso da força.

Kelsen então questiona de que forma o Estado se manifesta na vida social, haja vista

ele ser invisível e intangível. E a resposta é que sua manifestação ocorre através de ações de

seres humanos que sejam consideradas ações do Estado. Mas nem todos os indivíduos são

capazes de realizar ações que sejam consideradas do Estado e mesmo para os que podem rea-

lizar tais ações, não se pode dizer que todas as ações por eles realizadas sejam necessariamen-

te ações do Estado. Sob esse questionamento acerca das ações, Kelsen conclui que o problema

26

do Estado é um problema de imputação: “uma análise demonstra que imputamos uma ação

humana ao Estado apenas quando a ação humana em questão corresponde, de uma maneira

específica, à ordem jurídica pressuposta” (KELSEN, 2005, p. 276). Cabe o destaque de que a

ação humana é considerada como sendo do Estado quando a ordem jurídica da qual ela pro-

vém é uma ordem válida, ou seja, determinada por autoridade competente.

As partes cujos atos são considerados como sendo do Estado são denominadas órgãos

do Estado. Em outras palavras, são órgãos do Estado aqueles que são determinados pela or-

dem jurídica a cumprir funções de criação e aplicação das normas. Especificar o que são e o

que fazem os órgãos do Estado serve para compreender que o Estado não é uma entidade su-

pra individual que age e tem vontade própria, mas é uma estrutura formada por órgãos, que

são compostos por pessoas que atuam com determinadas funções prescritas em normas. Esses

órgãos podem ser compostos por uma coletividade de pessoas bem como por uma pessoa só.

Kelsen trata também da questão de como pode o Estado ter obrigações e direitos. Ele

afirma que em uma teoria que admita a dualidade (Direito-Estado) a questão é posta como de

difícil resolução por questionar como pode o Estado que cria e emana a ordem jurídica estar

ele mesmo sujeito a essa ordem? Mas Kelsen afirma que esse é um pseudoproblema, haja

vista que para esse problema existir, deve-se entender o Estado como sendo um ser supra-

individual, e que não faz sentido que se submeta à ordem que ele mesmo cria. O autor soluci-

ona a questão afirmando que não é o Estado que cria o ordenamento jurídico, são os órgãos

que o compõem que criam e esses órgãos são formados por pessoas e nesse sentido, os órgãos

criam um ordenamento jurídico regulando a conduta humana. O autor afirma que a única coi-

sa que pode ser objeto de regulamentação do sistema normativo é a conduta humana e que

não há o menor motivo para duvidar que os seres humanos, mesmo que investidos em função

de órgãos do Estado, devam ter sua conduta regulamentada pelo Direito. Em síntese, quando

se diz dos direitos e obrigações do Estado, significa direitos e deveres dos órgãos do Estado.

1.3.2. O território do Estado

O território de um Estado deve ser entendido como a área na qual há uma mesma or-

dem jurídica que é válida em toda ela. Dessa forma percebe-se que o território não é uma uni-

dade geográfica ou natural e sim jurídica, podendo não ser contígua geográfica ou natural-

mente. Há uma limitação territorial na esfera de validade da ordem jurídica, diferentemente da

ordem moral ou do Direito internacional, que não possuem uma esfera territorial de validade

27

limitada, a princípio, já que existem onde houver seres humanos. Essa limitação territorial de

validade da ordem jurídica significa que somente dentro desse território o Estado pode exercer

sua coerção e executar suas sanções. É o Direito internacional que “delimita as esferas territo-

riais de validade das várias ordens jurídicas nacionais.” (p. 301)

Kelsen também trata dos aumentos e diminuições dos territórios, de ocupações, anexa-

ções e cessões, questões que se relacionam com a eficácia da ordem jurídica dentro do territó-

rio. A depender dos processos de modificação de um território pode-se falar do surgimento ou

não de um novo Estado, a esse respeito, cabe a transcrição do trecho:

“Um modo de perda de território que não corresponde a um modo de aquisição é o estabe-

lecimento de um novo Estado em uma porção do território de um Estado antigo por parte de

sua população. O nascimento de um novo Estado tem lugar, como veremos mais tarde, de

acordo com o princípio de eficácia, quer seja o estabelecimento de um novo Estado resulta-

do de uma secessão revolucionária de uma parte da população como, por exemplo, no caso

dos Estados Unidos, quer seja resultado de um tratado internacional como, por exemplo, no

caso de Danzig ou do Estado do Vaticano. O fato constitutivo é o de que uma nova ordem

jurídica se torna eficaz para um território que, anteriormente, integrava o território de um

Estado existente; e que, em consequência, a ordem jurídica nacional anteriormente válida

deixa de ser eficaz para esse território.” (KELSEN, 2005, p. 312)

Esse entendimento de Kelsen de que quando ocorre a mudança da ordem normativa

que passa a ser eficaz e quando também mude o território, estabelecendo-se um novo Estado,

é um assunto relevante para a questão principal do presente trabalho. É relevante pelo fato de

que o surgimento de um novo Estado pode ser contraposto ao surgimento de um novo gover-

no e as mudanças que ocorrem nesses casos decorrem de transformações nos âmbitos de vali-

dade, eficácia e legitimidade do Estado.

1.3.3 O tempo como elemento do Estado

Outro elemento do Estado é o tempo. Podem existir dois Estados diferentes em um

mesmo território mas não ao mesmo tempo, de forma que um Estado existe no espaço de

tempo no qual a ordem jurídica é eficaz. A eficácia do ordenamento é determinante tanto na

questão do território quanto na do tempo. Assim como o território é limitado, o tempo tam-

bém o é, de forma que Kelsen trata a respeito do nascimento e morte do Estado e há que se

diferenciar entre o nascimento de um novo Estado e a mudança para um novo governo:

“É de reconhecimento geral que a questão de saber se um novo Estado começou a existir ou

se um antigo Estado deixou de existir deve ser respondida com base no Direito internacio-

nal. Os princípios relevantes do Direito internacional são comumente formulados da se-

guinte maneira: um novo Estado no sentido do Direito internacional, passa a existir caso

um governo independente tenha se estabelecido proclamando uma ordem coercitiva para

um determinado território, e se o governo for eficaz; i.e., se for capaz de obter a obediência

permanente a essa ordem por parte dos indivíduos que vivem nesse território. Pressupõe-se

28

que o território no qual foi posta em vigor a ordem coercitiva não formou previamente, jun-

to com os indivíduos que nele vivem, o território e a população de um Estado. Ele deve ser

um território que, junto com os indivíduos que nele vivem, não pertenceu, até então, a Es-

tado algum, ou então a dois ou mais Estados, ou apenas faz parte do território e da popula-

ção de um Estado. Caso haja se estabelecido um governo capaz de obter obediência perma-

nente à sua ordem, em um território e por parte de uma população que já eram o território e

a população de um único Estado, se o território e a população forem idênticos, então ne-

nhum novo Estado, no sentido do Direito internacional, começou a existir; apenas foi esta-

belecido um novo governo. Admite-se um novo governo apenas se ele for estabelecido

através de revolução ou coup d’état.”2 (KELSEN, 2005, p. 315-316).

Para Kelsen a existência do Estado está essencialmente identificada com a eficácia da

ordem jurídica e ele afirma que mesmo que haja uma revolução ou golpe de estado, se estes

forem bem sucedidos, mantêm a identidade da ordem jurídica. Se o golpe ou revolução man-

tiverem o território da mesma forma que era, essa situação é considerada pelo Direito interna-

cional como sendo um governo legítimo e que mesmo que a modificação do ordenamento não

ocorra de acordo com a constituição anterior, a mudança de governo é apenas um procedi-

mento para modificar a ordem jurídica nacional.

O reconhecimento de uma comunidade como “Estado” se dá por meio de um proce-

dimento de Direito internacional, no qual “competentes para determinar a existência desse

fato [o Estado] são os governos dos outros Estados interessados na existência do Estado em

questão” (KELSEN, 2005, p. 319). Há dois tipos de reconhecimento, um deles é como ato

jurídico e outro como ato político. O político significa que o Estado reconhecedor está dispos-

to a travar relações políticas com o outro Estado e embora tal ato possa ter grande significado,

ele não é o bastante para constituir a existência do outro Estado. Já o ato jurídico depende

exclusivamente do Estado em questão cumprir os requisitos do direito internacional, ou seja,

possuir um ordenamento jurídico eficaz, em um território. A diferença entre um ato e outro

consiste no fato de o ato político poder ser condicionado e o jurídico não. O ato político pode

ser condicionado no sentido de, por exemplo, um Estado exigir o cumprimento de determina-

dos atos do outro Estado para reconhecê-lo, ou então decidir não o reconhecer para mostrar

insatisfação com a mudança de governo ou a anexação do outro território, ao passo que o re-

conhecimento jurídico não pode ser condicionado, ou seja, se o Estado em questão possuir um

ordenamento jurídico eficaz, ele cumpre os requisitos do Direito internacional e existe juridi-

camente, independentemente da forma como o ordenamento foi instituído.

Assim como há o reconhecimento jurídico e político de um Estado, há também o reco-

nhecimento de um governo. E “o primeiro ato, como foi assinalado, é o estabelecimento do

fato de que um indivíduo ou um corpo de indivíduos é efetivamente o governo de um Estado.

2 Coup d’etat significa “golpe de estado ou subversão da ordem constitucional”.

29

O segundo ato é a declaração de disposição para travar relações mútuas com esse governo.”

(KELSEN, 2005, p. 327). O que torna um governo representante do Estado em âmbito inter-

nacional é a constituição eficaz dele. Há que se ressaltar que para que um Estado seja reco-

nhecido, deve-se subentender que ele possui governo, ou seja, o reconhecimento jurídico de

um Estado é também o reconhecimento de seu governo.

Como se percebe, o tempo como elemento do Estado serve para diferenciar as mudan-

ças, surgimento de Estados ou governos diferentes do que havia antes em dado território. O

autor trata sobre a sucessão de Estados e elas ocorrem quando há mudança territorial do Esta-

do, pois do contrário, se o território se mantiver, a identidade do Estado também é mantida.

No caso de haver manutenção do território do Estado, pode haver uma mudança de governo.

Kelsen fala em manutenção da identidade do Estado porque entende que a mudança de gover-

no, quando eficaz, é somente um meio de transformação do ordenamento jurídico do Estado,

mesmo que por meio de um golpe de Estado.

1.3.4. O povo

Assim como em relação ao território, o povo não é um elemento determinado pela na-

tureza, mas é uma unidade jurídica. Essa unidade reflete o conjunto de pessoas que tem a sua

conduta regulamentada pela mesma ordem jurídica nacional. E tem sua conduta regulamenta-

da aquelas pessoas que estão dentro do território de um Estado, que é a esfera de validade pra

ordem jurídica, e é o local onde essa ordem pode ser coercitiva, executar as sanções estabele-

cidas.

Entretanto, se nota que mesmo dentro de um território no qual há uma mesma ordem

jurídica coercitiva para os que ali estejam presentes, há diferenças entre aqueles que são de-

nominados cidadãos e os que não são, cabendo, portanto, analisar em que consiste tal diferen-

ça. Kelsen afirma que a cidadania ou nacionalidade é um status pessoal, do qual decorrem

direitos e obrigações específicas. Dentre os direitos comumente reservados aos cidadãos, cabe

destacar os direitos políticos, sendo o principal deles o direito de votar, de participar das elei-

ções, assim como o de ser eleito. O autor afirma que os direitos políticos têm, portanto, maior

importância para a criação e execução das leis do Estado e que aos cidadãos é dada a possibi-

lidade jurídica de participar desses processos. Ele ressalva o fato de que apenas na democracia

todos os cidadãos tem direitos políticos, ao passo que nas autocracias, os direitos políticos são

reservados a grupos maiores ou menores de cidadãos, de forma que algumas pessoas são con-

30

sideradas cidadãs enquanto outras são somente sujeitos à ordem jurídica do Estado. A questão

da democracia e da autocracia é um assunto que será tratado mais adiante.

Outro destaque que pode ser feito é o de que os direitos políticos podem não ser exclu-

sivos de cidadãos. O autor exemplifica que são direitos políticos estendidos à não nacionais,

por exemplo, a segurança, liberdade de expressão, direito contra busca e apreensões desarra-

zoadas. Nesse sentido, a diferença entre cidadãos e não cidadãos, ou seja, sujeitos, não é tão

importante, é diminuída, já que a tendência é haver uma equalização entre os residentes em

um mesmo Estado. Ele afirma que diversos são os casos em que possuir ou não cidadania não

é fator relevante quando se consideram os deveres e direitos dentro de um só Estado, e que a

cidadania é um conceito mais importante nas relações internacionais. Isso é percebido porque

a determinação de cidadãos e sujeitos serve para estabelecer quais pessoas podem ser protegi-

das contra a violação de seus direitos por parte de outros Estados, como por exemplo, o fato

de um Estado não poder extraditar seu nacional, mas poder fazer isso com um estrangeiro.

1.4. Sobre o poder político e os três poderes

O estudo do poder do Estado deve começar com a concepção mais ampla. Na análise

comumente feita, o poder é identificado como a soberania do Estado. Kelsen, entretanto, en-

tende que é mais preciso analisar o poder como a validade e eficácia da ordem jurídica nacio-

nal. Por eficácia entende-se a capacidade coercitiva da ordem jurídica, que se manifesta pelo

monopólio do uso da força e aplicação das sanções, sendo este um fator importante do poder

político.

Embora Kelsen analise os três poderes de forma separada, ele entende que essa sepa-

ração não se sustenta em relação aos fatos. Isso ocorre porque na teoria kelseniana não há três

funções básicas do Estado, e sim duas, quais sejam a criação e a aplicação do Direito (legis

latio e legis executio). O autor defende ainda que não se pode afirmar que haja uma separação

tão clara desses poderes, pois todos os órgãos em certa medida criam e aplicam o Direito. A

criação e aplicação do Direito são intimamente ligadas à validade e eficácia, que representam

o poder político, como já dito. A criação diz respeito à validade, pois o ordenamento só é cor-

retamente criado, e portanto válido, se cumprir com certas formalidades, como ser feito por

uma autoridade competente. Já a eficácia está diretamente relacionada com a aplicação das

normas, pois só é eficaz um ordenamento coercitivo, que seja aplicado. Dada essa visão ampla

dos poderes políticos, que ainda serão mais analisados no trabalho, cabe agora destacar a fun-

31

ção de cada um dos três poderes e perceber como na teoria de Kelsen eles todos acabam por

possuir as duas funções, ou seja, em maior ou menor medida, criam e aplicam as normas jurí-

dicas.

Em relação ao poder legislativo, Kelsen afirma que em nenhum Estado moderno se

pode dizer que a criação de normas jurídicas é feita somente por órgãos desse poder. O que se

pode dizer é tão somente que a criação de normas jurídicas gerais são válidas independente-

mente do órgão que a criou, desde que o órgão do poder legislativo tenha dado autorização ao

órgão de outro poder para gerar normas. Nesse sentido, o órgão legislativo é “a fonte de todas

as normas gerais, em parte diretamente e em parte indiretamente, através dos órgãos aos quais

delega competência legislativa” (KELSEN, 2005, p. 387).

Para explicitar em que medida os órgãos do executivo e do judiciário atuam como ór-

gãos do poder legislativo, Kelsen dá alguns exemplos. Os órgãos do executivo exercem essa

função quando podem regulamentar positivamente questões que o órgão legislativo ainda não

positivou, mas isso não exclui a competência dos órgãos do legislativo depois positivarem a

mesma matéria. Além disso, o chefe do executivo também apresenta competência legislativa

quando pode ter a iniciativa dentro do processo legislativo, ou então quando a aprovação de

uma lei depende de sua sanção ou veto. Já em relação aos órgãos do judiciário, eles exercem

função legislativa quando podem anular leis inconstitucionais ou um decreto-lei, ou mesmo

quando uma decisão judicial passa a servir de precedente para o julgamento de outras causas

que sejam similares.

Resulta que a maior diferença entre os órgãos do legislativo e os outros é o fato de que

somente as normas emitidas pelo legislativo são denominadas “lei” ao passo que as dos outros

poderes possuem diferentes denominações, como “decreto-lei” ou “súmula”. Embora as no-

menclaturas sejam diferentes, a função normativa é a mesma.

Com relação ao poder judiciário, na teoria das duas funções do Estado de Kelsen, ele é

na verdade um poder executivo na medida em que executa as normas. Desse modo, cabe es-

pecificar em que medida essa função executiva difere daquela atribuída ao poder executivo. A

função executiva do poder judiciário consiste no estabelecimento de um fato como sendo um

delito tanto civil quanto criminal e a respectiva aplicação da sanção. Essa função é caracteri-

zada também por possuir uma controvérsia entre as partes envolvidas. A função executiva do

poder executivo pode ser caracterizada pela aplicação das leis que tenham caráter administra-

tivo, como as relativas ao fisco ou vigilância sanitária. Uma diferença entre os órgãos desses

32

poderes consiste no fato de que os juízes possuem independência ao passo que os órgãos do

poder executivo devem obedecer a autoridade hierarquicamente superior.

Uma função específica do poder executivo é o ato administrativo. Os atos administra-

tivos são atos unilaterais de vontade, por exemplo, as ordens decretadas por um órgão, como a

de pagamento de impostos, ou a concessão de licenças ou alvarás para a realização de deter-

minadas atividades, mas podem ocorrer atos bilaterais também, como contratos. Os atos ad-

ministrativos quando não cumpridos podem dar ensejo a procedimentos judiciários, mas estes

ocorrem ou podem ocorrer em órgãos administrativos, que estabelecem as sanções, pois de

acordo com a teoria de Kelsen, o que se verifica é que os órgãos do judiciário atuam quando

as causas são civis ou criminais. Os atos realizados coercitivamente pelos órgãos do poder

executivo podem não ser necessariamente sanções. Medidas como a evacuação forçada de

habitantes de construções que ameaçam desabar ou o sacrifício de animais, como o gado, in-

fectados por doenças e que possam trazer perigo à população são exemplos de medidas coer-

citivas administrativas que não são sanções, por serem decorrentes de situações que dependam

da vontade humana.

Tanto os atos do poder executivo quanto os do legislativo podem ser analisados e jul-

gados pelos órgãos do poder judiciário. Os tribunais ordinários (em oposição aos que são do

poder administrativo) podem julgar tanto a constitucionalidade de uma lei que o poder execu-

tivo quer aplicar quanto os próprios atos administrativos e em relação ao poder legislativo,

julgam a constitucionalidade de leis ou decretos. Kelsen afirma que essa característica do po-

der judiciário se deve a questões históricas e surge na mudança da monarquia absoluta para a

constitucional, pois no início a independência dos órgãos do judiciário se deu em relação ao

monarca, que continuou com as funções executiva e legislativa. Posteriormente a função le-

gislativa do monarca passou a depender da atuação do parlamento, que em determinado mo-

mento o ultrapassou em importância para a criação das leis. E por meio dessa contextualiza-

ção histórica é possível notar que “o controle da legislação e da administração por tribunais

tem nítido significado político dentro de uma monarquia constitucional” (KELSEN, 2005, p.

402), pois pretendia uma distribuição das funções do Estado em diferentes órgãos e uma des-

centralização do poder do monarca. Para Kelsen não houve uma “separação dos poderes”,

tanto que os diferentes poderes cumprem determinadas funções que supostamente seriam de

responsabilidade de outro órgão e dessa forma o autor afirma que o ocorrido foi uma divisão

de competências entre o monarca, o parlamento e os tribunais. Historicamente o que houve

33

não foi uma intenção de separação de poderes, mas uma descentralização das competências

do monarca.

Mais especificamente, em relação à democracia, Kelsen afirma que essa divisão dos

poderes deve ser entendida como resultante do processo histórico, mas que não significa que a

separação é uma característica da essência da democracia. A característica essencial da demo-

cracia é o poder estar totalmente concentrado no povo e preferencialmente de forma direta,

mas quando isso não é possível, deve haver uma eleição dos membros dos órgãos dos poderes

e eles passam a ser juridicamente responsáveis para com o povo. Nesse sentido, Kelsen enfa-

tiza a eleição do órgão colegiado do parlamento e afirma que mesmo que os outros órgãos

também sejam eleitos pelo povo, eles são responsáveis em relação ao legislativo porque é por

meio das leis que ele edita que se estabelecem as competências dos outros órgãos, e é dessa

forma que o legislativo exerce controle sobre os outros. Por fim, a conclusão é de que a divi-

são de competências dos órgãos depende do que estiver estabelecido na constituição de cada

Estado e que esse processo só pode ser entendido de forma histórica, não precisamente pelo

estudo dos elementos democráticos.

1.5. Sobre as diferentes formas de governo e a importância da democracia

Até este ponto, o presente trabalho analisou o que se poderia chamar de teoria ampla

ou das bases do Estado – o que se entende por Estado, governo, poder, qual a fundamentação

do Estado. E a partir de agora a explanação será em um sentido mais restrito, começando-se

pela análise das diferentes classificações de governos, a seguir, a importância que Kelsen dá

para a democracia e onde está a representação dentro dessa teoria. Esse percurso será feito

com o fim de observar se a representação é um fator determinante nas questões práticas de

crise e modificação do ordenamento normativo, do governo, constituição e do próprio Estado,

ou seja, em que pontos pode-se relacionar a representação com a legitimidade.

Dentro da teoria clássica de classificação dos governos, há três espécies que são a

monarquia, a aristocracia e a democracia. Kelsen afirma que na teoria clássica o fator

qualificativo é a organização do poder soberano, pois na monarquia o poder pertence ao rei,

na aristocracia à uma minoria da população e na democracia à maioria da população. Mas o

autor entende que o critério de classificação não deve ser o poder soberano, pois em uma

teoria jurídica, o que difere as formas de Estado são as constituições. Nesse sentido, a

34

depender de como é criada a constituição, há dois tipos de governo, duas formas de Estado,

que são a democracia e a autocracia.

O que difere esses dois tipos de constituições é a liberdade política. Há liberdade

quando a constituição é criada de modo que “o que ele [indivíduo] “deve” fazer, segundo a

ordem social, coincide com o que ele “quer” fazer” (KELSEN, 2005, p. 406), pois do

contrário o indivíduo não participa da criação do ordenamento, ou participa de forma precária.

No primeiro caso a constituição é democrática e há liberdade dos sujeitos e no segundo é

autocrática, não havendo liberdade. Quanto à democracia, Kelsen afirma que ela significa que

a ““vontade” representada na ordem jurídica do Estado é idêntica às vontades dos sujeitos”

(KELSEN, 2005, p. 406), ao passo que na autocracia não, pois os sujeitos são excluídos da

criação da ordem jurídica. O autor esclarece que esses dois tipos de constituição não são os

tipos historicamente verificados, mas sim tipos ideais, e o que ocorre na realidade é que

nenhuma sociedade é puramente autocrática ou democrática, o que há é uma mistura entre os

dois fatores e a depender do grau de cada um deles, se verificam diferentes formas de

governo. Outros fatores que também incidem sobre o governo ser classificado como

democrático ou autocrático são não só a criação da constituição, mas do ordenamento como

um todo, nos diversos processos legislativos, além da responsabilização jurídica dos chefes do

executivo ou órgãos governamentais por seus atos.

Quanto à autocracia, a forma mais evidente historicamente verificada é a monarquia

absolutista, na qual a ordem jurídica é criada e aplicada ou pelo rei ou por órgãos que ele

nomeou. E o monarca não está sob a lei e portanto não é sujeito à sanções jurídicas, além de

que é um governo hereditário, ou seja, aqueles que são sujeitos ao ordenamento não podem

escolher o monarca. Outra forma de autocracia é a monarquia constitucional, nela já há a

independência dos tribunais, que não estão, portanto, sujeitos às vontades do monarca, assim

como há a participação de um parlamento que é em geral composto por duas câmaras e há

também ministros de gabinete. Cabe o destaque à esses últimos por atuarem como chefes da

administração em diferentes campos e pelo fato de que embora eles sejam nomeados pelo

monarca, são responsáveis perante o parlamento. Destaca-se a responsabilidade jurídica, pois

de acordo com Kelsen, os ministros estão sujeitos a “impeachment” por violação da

constituição ou mesmo outras leis. O autor também menciona uma responsabilização política,

no sentido de que os ministros seriam obrigados a renunciar caso perdessem a confiança de

uma das casas do parlamento. A monarquia constitucional apresenta características de

autocracia pelo fato de que o monarca ainda não pode ser responsabilizado, entretanto, seus

35

atos devem ser ratificados pelos ministros de gabinete, embora ele continue representando o

seu Estado em relação aos outros Estados e seja o comandante-em-chefe das forças armadas.

Kelsen ainda classifica como autocracia as repúblicas presidencial ou com governo de

gabinete. Em relação à república presidencial, ele afirma que ela é estruturada de forma

semelhante à monarquia constitucional, se diferenciando no que tange à legislação, pois neste

caso o monarca possui mais poderes do que o presidente, já que enquanto este pode vetar um

projeto de lei, o outro deve aprovar o dispositivo para que ele seja promulgado. Mas em

comum com o monarca, o presidente também não responde ao parlamento por seus atos, nem

respondem os membros do gabinete que foram por ele nomeados. Já na república com

governo de gabinete, ou o chefe do executivo é eleito pelo legislativo e os membros do

gabinete que forem nomeados pelo chefe do executivo respondem por seus atos, ou então há

um colegiado eleito pelo legislativo e o chefe do Estado não é chefe do executivo, apenas

cabendo a ele dirigir esse colegiado.

A última forma governamental que Kelsen trata sob o título de autocracia são as

ditaduras de partido. O autor usa como exemplo o “bolchevismo” russo, o “fascismo” italiano

e o Estado social-nacionalista da Alemanha. O “bolchevismo” proveio do partido que

defendia os interesses do proletariado, já o “fascismo” decorreu de um partido de classe

média. Nesses três casos há um culto ao líder, a censura da imprensa e a proibição da

liberdade de expressão, podendo tanto os órgãos do Estado quanto os do partido intervir na

liberdade dos cidadãos. Kelsen afirma que a manutenção de tais regimes só é possível por

meio de propagação sistemática de uma ideologia pelo governo e que enquanto na ditadura do

proletáriado a ideologia é o socialismo, nas ditaduras burguesas é o nacionalismo. O autor

ainda afirma que embora nessas ditaduras possa haver eleições ou órgãos democráticos, eles

servem somente para dissimular a ditadura, já que no final ninguém poderia exprimir a sua

opinião se ela não fosse condizente com as idéias do partido, sob o risco de danos ao

patrimônio, liberdade e vida.

Para a análise da democracia, o autor começa a teoria explicando a respeito do

conceito de liberdade. Retomando um pouco, deve-se entender que dentro de um governo

democrático aqueles que são sujeitos ao ordenamento normativo participam ativamente na

criação dele, mas essa participação na formação da sociedade não é um processo livre de

conflitos, como se verá a seguir.

As sociedades são compostas por seres humanos e estes possuem algumas necessida-

des, com destaque para a liberdade, que deve estar contida na organização social.

36

Independentemente do tipo de regime governamental e das estruturas de organização do

poder, em toda forma de convivência coletiva dos seres humanos se observam questões a

respeito da liberdade e seu cerceamento. Isso ocorre pelo fato de que ao mesmo tempo em que

o ser humano é um ser que naturalmente demanda e tem necessidade de liberdade, vive

organizado em sociedades e a vida em conjunto depreende um esforço individual de limitação

dessa liberdade.

Há então a necessidade de organizar a amplitude de liberdade individual a fim de que

a sociedade organizada possa compreender a coletividade de liberdades individuais, ou seja,

buscar-se equalizar a liberdade das pessoas, de forma que a liberdade de um não impeça a de

outro. Esta não é um elemento de simples realização, pois os indivíduos possuem vontades

divergentes, podendo ser até opostas, e portanto a realização da vontade de um pode significar

a não realização da de outro. Para organizar essas diferentes vontades, as sociedades

estabelecem um poder centralizado, seja em uma ou algumas pessoas, que passam a ordenar,

gerir e até certo ponto controlar a sociedade.

Em relação à essa centralização surge o questionamento: “Ele é homem como eu,

somos iguais, então que direito tem ele de mandar em mim?” (KELSEN, 2000, p. 27). A

solução apontada por Kelsen para esse impasse consiste no fato de que a pessoa pode ser livre

mesmo submetida à ordem do Estado. E que, pelo contrário, “o indivíduo que cria a ordem do

Estado, organicamente unido a outros indivíduos, é livre justamente nos laços dessa união, e

apenas nela” (KELSEN, 2000, p. 33). Há aqui uma transformação da ideia de liberdade, que

deixa de ser natural para se tornar política, pois enquanto no problema levantado a liberdade

teria um caráter de que os seres humanos, por serem iguais, não devem governar uns aos

outros, ao transformar o conceito, passa a ser justamente na organização estruturada da

sociedade que se garante e pode-se fiscalizar o cumprimento do direito à liberdade, o direito

de se auto-governar em sua vida particular e de participar politicamente da sociedade. Dentro

desse contexto, é livre politicamente aquele que participa da formação do ordenamento

normativo.

Kelsen analisa a teoria de Rousseau, na qual há o ideal de autodeterminação, do qual

se depreende que a ordem social deve ser criada por meio de uma decisão unânime dos que

são sujeitos à essa ordem. A ordem seria válida enquanto houvesse unanimidade, e para haver

modificação, seria necessária a aprovação de todos os sujeitos. No caso de discordância de um

indivíduo, ele poderia simplesmente se retirar da sociedade, já que essa sociedade não com-

preende contradições entre a ordem social e a vontade dos sujeitos. Mas Kelsen critica essa

37

teoria afirmando que nessa sociedade um ordenamento normativo seria desnecessário, pois se

houver plena sobreposição entre a conduta dos indivíduos e a ordem social, a própria ordem

não existiria ou seria útil, já que somente quando um indivíduo viola a ordem é que ele passa

a estar sujeito à ela. Nesse sentido o autor conclui que “uma ordem social genuína é incompa-

tível com o grau máximo de autodeterminação” (KELSEN, 2005).

Considerando o fato de que os indivíduos já nascem em ordens sociais preestabeleci-

das, a autodeterminação e liberdade individual existem quando há a possibilidade de modifi-

cação dessa ordem. O autor entende que o grau máximo de autodeterminação existe quando a

modificação da ordem da sociedade se dá pelo consentimento da maioria simples dos sujeitos

que pertencem à ela, pois assim o número dos que aprovam a ordem será sempre maior do

que os que desaprovam. A justificativa de tal teoria é de que se não fosse assim, se houvesse a

necessidade de uma maioria qualificada ou da unanimidade, um único sujeito ou uma minoria

de sujeitos bastaria para impedir a modificação da sociedade e a ordem estaria, portanto, em

discordância com a vontade da maioria da população.

O autor ressalva o fato de que o princípio da maioria não significa que deva haver uma

ditadura da maioria sobre a minoria. Muito pelo contrário, o direito da maioria implica que

haja uma minoria e que só há realmente uma democracia se a minoria puder participar, pois a

democracia implica a participação de todos. Não obstante, uma minoria pode tentar influenci-

ar outros grupos por meio da livre argumentação, e se tornar posteriormente uma maioria.

Essa multiplicidade de opiniões consiste em característica essencial da democracia.

Kelsen une o conceito de autodeterminação máxima com a discussão livre da maioria

com a minoria. Ele afirma que por meio da argumentação entre os diferentes grupos todos

participam da criação do ordenamento, se autodeterminando, e assim criam-se compromissos

entre as partes e todos passam a aceitar de maneira voluntária e mais facilitada a sujeição à

ordem jurídica que seja democrática.

Cabe um parêntese para clarear alguns pontos da teoria de Kelsen, pois ele descreve os

elementos sociais com base no pressuposto da antítese entre ideologia e realidade. Ele afirma

que há pessoas que fazem a análise da sociedade ignorando um aspecto ou o outro, mas os

dois devem ser analisados, porque as teorias ideais possuem impedimentos de ordem prática,

ao mesmo tempo em que a prática busca alcançar os objetivos ideais da melhor forma

possível. E essa divisão entre a “ideologia” e a “realidade” acompanha todas as ideias que

estão compreendidas dentro de uma teoria sobre a democracia, ou seja, os conceitos de

“povo”, “representação”, e mesmo “democracia”.

38

Já foi tratada aqui a antítese do conceito de liberdade. O plano ideal consiste na teoria

da liberdade natural, na qual os indivíduos tem uma demanda de liberdade, ou seja, a possibi-

lidade de exercerem suas vontades sem que haja interferência externa. O plano real, no entan-

to, evidencia que os seres humanos vivem em comunidade e que para tanto não é possível

viver em plena liberdade, pois isso poderia acarretar a supressão da liberdade de outros. As-

sim, a síntese consiste na transformação do conceito de liberdade natural para o político, no

qual somente há liberdade quando a pessoa participa ativamente da construção de sua comu-

nidade e que haja uma organização tal que a liberdade individual de todos seja garantida por

meio de um controle de condutas num nível social, ou seja, as ações realizadas no nível da

comunidade são controladas de modo a garantir a liberdade das ações do indivíduo em sua

vida privada e particular.

Outra antítese apresentada na teoria kelseniana é em relação ao conceito de “povo”.

Vale retomar que em um plano ideal o povo seria aquele que é unido por meio de uma vonta-

de conjunta, geral que se une para a realização da ordem social. Já no plano real, o povo é

aquele conjunto de pessoas que estão submetidos ao mesmo sistema normativo. Em relação à

democracia, a atuação ideal do povo seria a participação de cada indivíduo, de forma direta,

opinando e influenciando pela argumentação os outros indivíduos. Já no plano real, a atuação

dos indivíduos não tem existência real, pois não exerce influência sobre a formação da vonta-

de do Estado. A síntese desses fatores é a união dos indivíduos com aqueles que possuem

opiniões políticas assemelhadas e assim diferentes grupos dialogam e negociam, buscando

influenciar-se mutuamente para a construção de compromissos e tomadas de decisão e os gru-

pos formam a vontade do Estado e não de pessoas individuais. Esses grupos de pessoas são os

partidos políticos que serão melhor analisados adiante.

1.6. Representação na democracia parlamentar

Para compreender o estudo do parlamentarismo dentro da teoria de Kelsen, é

necessário partir da compreensão de que, para este autor, o regime parlamentar surgiu como

alternativa prática de tornar possível a transição de governos autocráticos para democráticos,

do final do século XVIII e início do XIX. “A luta pelo parlamentarismo foi uma luta pela

liberdade política” (KELSEN, 2000, p. 46), tanto que a eleição do parlamento feita pelo povo

era o máximo que a população conseguia na sua atuação ante o monarca absoluto.

Deve-se diferenciar parlamentarismo de democracia. É possível haver uma democracia

sem parlamento quando a democracia é direta, pois o parlamento serve como um órgão que

39

atua no lugar, representando o povo. Kelsen afirma que no Estado moderno a democracia

direta é praticamente impossível, pois seria necessária a formação da vontade estatal na

assembléia do povo. Dessa forma, a importância do parlamento é a de conseguir realizar a

democracia. O autor define o parlamentarismo como a “formação da vontade normativa do

Estado mediante um órgão colegiado eleito pelo povo com base no sufrágio universal e igual

para todos, isto é, democraticamente, portanto segundo o princípio de maioria” (KELSEN,

2000, p. 113).

O parlamento representa a união do postulado da liberdade democrática com a divisão

do trabalho, que é uma condição do progresso da técnica social. Explicando melhor, há na

união desses dois elementos uma espécie de paradoxo. Com base exclusivamente no princípio

de liberdade, a vontade estatal, em todos os níveis de sua expressão e manifestações deveria

emanar exclusivamente da assembléia popular, onde se reuniriam todos os cidadãos com

direito de votos. A partir desse ponto, ressalta-se que a manifestação de vontade coletiva da

sociedade não significa a unanimidade de votos, mas sim decorrente de decisões majoritárias.

Além disso, o ponto de maior destaque deve ser feito no sentido de que os Estados modernos

mostraram a necessidade de divisão do trabalho e ela se expressa pela formação de um órgão

que se torna responsável por emanar a vontade geral, ou seja, o parlamento. Ele, ainda que

eleito pelo povo, cria a vontade estatal de forma indireta. Há nesse processo, como se percebe,

certa limitação da liberdade.

Percebe-se então que o parlamentarismo surgiu de uma necessidade do povo. Para

fazer cumprir alguns direitos e se poder atuar perante os monarcas, criou-se esse órgão que

deveria representar as vontades das pessoas. Nesse primeiro momento a representação nao foi

questionada e nem pensada, pois significava uma abertura política e um maior alcance de

direitos. Entretanto, quando esse órgão adquiriu maior poder de atuação, começou-se a

questionar mais a respeito da forma, o meio pelo qual a população era representada e tinha a

sua participação e vontade políticas realizadas. Ou seja, o parlamento surge para suprir uma

demanda de ordem prática, sendo um órgão que atua conjuntamente com o monarca e

pretende limitar a atuação dele. A representação criada pelo parlamentarismo foi um avanço

no sentido de democratizar o sistema autocrático que havia, mas posteriormente esse órgão

passou a ser questionado e se pode notar que é sim uma maneira de representação, mas que

possui falhas práticas que devem ser revistas. A principal crítica a esse órgão consiste no fato

dele criar a ficção de que seja representativo.

40

Ainda assim, o autor afirma que o parlamentarismo é uma boa forma de organizar

politicamente a sociedade e ela serve bem para manter a democracia. A democracia indireta é

a forma mais viável de organizar o poder político, aliando a liberdade democrática com a

divisão do trabalho, que se mostra necessária devido à dimensão dos Estados modernos.

1.7. Representação como ficção

Dentro do governo democrático, a democracia direta seria o mais alto grau de

realização do tipo ideal. Nela, as principais funções executivas, legislativas e judiciárias

seriam exercidas em assembléias populares pelos cidadãos. Mas esse procedimento é

dificultado pelo fato de que somente funcionaria em grupos pequenos de pessoas, além de que

o autor também esclarece que historicamente é difícil encontrar exemplos de democracias

diretas, pois mesmo naqueles ususalmente citados, como a democracia grega ou de tribos

germânicas, muitos indivíduos eram proibidos de participar politicamente da comunidade, o

que o autor entende que é uma forma de exclusão de minorias. A democracia direta não

possui papel importante na vida política moderna, principalmente por causa do tamanho dos

Estados.

Como forma de solucionar essa questão da democracia direta, surgiu, como ja foi

visto, o parlamentarismo. Ele foi criado como um órgão alternativo aos poderes absolutos do

monarca e, em relação ao povo, seria a forma de um grupo menor de indivíduos, eleitos,

representarem a vontade do restante da população, cuja atuação direta seria impossibilitada

por razões práticas. E ao mesmo tempo em que havia esse impasse prático, a impressão que se

intencionava transmitir era a de que no parlamento se realizava a liberdade democrática e foi

então que surgiu a ficção da representação. Essa ficção consiste na afirmação de que o

parlamento é o representante do povo e que este só pode manifestar a sua vontade no e por

meio do parlamento, mas que, ao mesmo tempo, ele é um órgão juridicamente independente

do povo, ou seja, os deputados não são responsáveis perante a população que os elegeu.

Kelsen aponta para o fato de que a divulgação de que o parlamento é um órgão que expressa a

vontade do povo é uma forma de mascarar o fato de que na verdade criou-se um órgão

independente que atua expressando uma vontade própria e que a atuação do povo seria restrita

ao ato de escolher os membros do parlamento.

Há então a questão de saber se os membros eleitos para o parlamento representam a

vontade daquele grupo que os elegou ou se deve representar toda a popuação. Passou-se a

41

entender que o membro do parlamento não é representante daqueles que o elegeram, mas de

toda a população. Dessa maneira o eleito não é responsável perante seus eleitores e não pode

ser destituído por eles. Mas Kelsen afirma que essa independência é uma ficção política, pois

a representação do povo pelo parlamento significa que este exerce o poder legislativo da

população como se fosse por procuração, já que o povo não pode exercê-lo de forma direta. E

essa independência é incompatível com a representação jurídica, pois se não houver nenhuma

garantia de que a vontade do eleitorado será executada, a relação jurídica não existe. Assim, o

órgão representaria a vontade da população tanto quanto um monarca hereditário. Kelsen

afirma que os teóricos que defendem a independência dos órgãos eleitos de seus eleitores não

estão fazendo ciência e sim defendendo ideologias políticas, dissimulando a realidade de que

o povo tem apenas a função de criar o órgão legislativo, sob o véu de que o legislador é o

próprio povo, e este atua por meio de seus eleitos.

Esta relação entre democracia e parlamentarismo é, em síntese, que no Estado

moderno a democracia é indireta e parlamentar e “a vontade geral diretiva só é formada por

uma maioria de eleitos pela maioria dos titulares dos direitos políticos. Os direitos políticos –

isto é, a liberdade – reduzem-se a um simples direito de voto” (KELSEN, 2000, p. 43),

todavia quando o parlamento surgiu, a ficção da representação servia para legitimar o

parlamento do ponto de vista da soberania popular. Ainda que a representaçaõ seja uma

ficção, Kelsen não desqualifica a importância do parlamento, e, ao contrário, se vale dos

problemas advindos dessa representação para sugerir algumas formas de melhorar o sistema

parlamentarista para que haja maior representatividade.

1.8. Solução do problema da representação

Kelsen entende que o sistema parlamentarista está posto em diversas sociedades e que

não seja possível criar a ordem estatal desde o início, então ele propõe uma série de medidas

modificativas da ordem parlamentar existente. Assim, ao longo de sua teoria, ele apresenta

algumas soluções em diferentes níveis que serão tratadas neste tópico.

Nos Estados Modernos a autodeterminação passou a ser limitada à liberdade de

escolha dos órgãos do governo, pela eleição, havendo então a democracia indireta ou

representativa. Kelsen afirma que o governo, segundo a definição tradicional, seria

“representativo” pois os funcionários eleitos, enquanto estivessem no poder, refletiriam a

vontade dos eleitores e seriam responsáveis para com eles. A crítica de Kelsen é bem

explicada a seguir:

42

“Não pode haver qualquer dúvida de que, julgadas por este teste, nenhuma das democracias

existentes ditas “representativas” são de fato representativas. Na maioria delas, os orgãos

administratio e judiciário são selecionados por outros méodos que não a eleição popular, e

em quase todas as democracias ditas “representativas”, os membros eleitos do parlamento e

outros funcionários popularmente eleitos, em especial o chefe de Estado, não são

responsáveis juridicamente perante o eleitorado” (KELSEN, 2005, p. 414).

A solução apontada por Kelsen para essa questão é de que não basta que os órgãos do

governo sejam eleitos pela população, eles devem ser responsáveis juridicamente perante os

eleitores, sendo obrigados a executar a vontade dos representados. O autor afirma que uma

garantia para tanto é a possibilidade dos representados de cassar o mandato do representante

caso a sua atuação esteja em desacordo com os desejos dos representados, mas ressalva que

tal medida não é usual nas constituições modernas, citando que há alguns casos de Estados

membros dos Estados Unidos da América, como a Califórnia, que criaram essa possibilidade,

mas que em via de regra os representantes não são juridicamente responsáveis para com seu

eleitorado e não podem ser destituídos por ele.

Além da responsabilidade jurídica dos parlamentares em relação ao seu eleitorado,

Kelsen também critica a imunidade dos deputados perante os tribunais, ou seja, a autoridade

do Estado. Essa imunidade remonta à monarquia feudal e de acordo com Kelsen ela era justi-

ficada inclusive até a época da monarquia constitucional, pois como nessas épocas o poder do

monarca era muito forte, em conflitos entre parlamentares e o monarca, este poderia abusar de

seu poder e retirar os deputados de suas funções. Mas dentro das repúblicas parlamentares tal

imunidade se mostra desnecessária, pois não há mais esse risco de abuso de poder, já que o

próprio governo consiste na comissão do parlamento e há um controle mais rigoroso da opo-

sição. Kelsen afirma que não há nenhum caso em que se possa justificar tal imunidade e que

se o parlamento deixou de possuir a simpatia tanto das massas quanto de pessoas cultas, isso

em grande parte se deve aos abusos cometidos em decorrência desse privilégio da imunidade.

Outro aspecto que o autor aponta falhas e que deve ser solucionado é o fato de a atua-

ção popular se restringir ao direito de voto para a escolha da composição do parlamento. Kel-

sen entende que além de escolher o parlamento, os eleitores deveriam ser consultados a res-

peito das próprias matérias que são decididas pelo parlamento, pois isso indicaria uma melho-

ria na formação da vontade do Estado. O autor indica que seria positivo se houvesse consultas

ao eleitorado por meio de referendos ou plebiscitos legislativos (e não somente em matérias

constitucionais), mesmo que fossem facultativos. Outra medida de ingerência direta da popu-

lação são as iniciativas populares de projetos de lei, que seriam posteriormente analisados

pelo parlamento.

43

O autor também chega a mencionar que uma medida que poderia funcionar seria a

transformação do parlamento em um órgão técnico. Ele continuaria sendo escolhido por meio

de eleições, mas seus candidatos seriam aqueles que possuem formação técnica para a criação

de leis, ou então com formação em economia ou política. Essas medidas seriam uma forma

não de diminuir o âmbito democrático do parlamento, mas tornar suas decisões melhor

embasadas e mais eficientes.

1.9. O que é Legitimidade

A legitimidade dentro da teoria de Kelsen pode ser encontrada em dois níveis diferen-

tes. No primeiro e mais amplo, ela se dá quando o Estado e seu ordenamento normativo pos-

suem validade e eficácia. Já em um segundo plano, mais restrito, a legitimidade nos Estados

Modernos ocorre nas democracias parlamentares, e será realmente verificada quando a repre-

sentação do povo deixar de ser uma ficção para se tornar juridicamente existente.

Quando se trata de legitimidade a partir da validade e eficácia do ordenamento, pensa-

se em um plano internacional, no que dá legitimidade de um Estado em face a outro. Assim,

quando um ordenamento é feito por uma autoridade competente e consegue ser coercitivo, o

Estado existe e é legítimo. Neste plano o que ocorre é o reconhecimento de um Estado por

outro e Kelsen afirma que a discordância de algum dos Estados a respeito da legitimidade de

outro, de seu governo, são decisões políticas. Essas decisões podem influenciar nas relações

entre os dois Estados mas não significa que um dos Estados não seja legítimo. Isso ocorre

porque nesse plano a legitimidade é um fator jurídico e não político, ou seja, tão logo quanto

se cumpra os requisitos jurídicos de validade e eficácia do ordenamento, o Estado existe inde-

pendentemente da vontade ou aprovação dos outros.

Toda vez que Kelsen se aproxima de tratar sobre o poder político, ou decisões

políticas e suas consequências, ou do aspecto político das ações e vontades da população, ele

se afasta sob a justificativa de que essas teorias políticas buscam justificar o comportamento

ou ações humanas e que a teoria positivista não compreende justificações desse tipo. A teoria

positivista de Kelsen aborda o Direito sob a perspectiva de “ciência” e dessa forma, analisa

aspectos de causa e efeito e não a justificação dos fenômenos. Dentro dessa teoria não se deve

analisar os aspectos políticos do poder do Estado, mas sim os jurídicos. Ele afirma que “um

Estado é livre para constituir para si qualquer governo que desejar, contanto que, ao fazê-lo,

não sejam violados direitos de outro Estado e o governo seja eficaz” (KELSEN, 2005, p. 329).

44

Embora em certa medida o autor esteja correto, não se pode deixar de criticar o fato de que

posteriormente à 2ª Guerra Mundial tal entendimento já não é mais aceitável, já que um esta-

do não deve poder ser livre o suficiente para decidir dizimar parte de sua população. Pela aná-

lise histórica percebe-se que a coerção pode ser imposta, pois é simples alcançá-la pelo mo-

nopólio do uso da força, com a atuação do exército ou polícia, haja vista o Estado ser muito

mais equipado e preparado do que a população civil.

No mundo pós 2ª Guerra Mundial, essa teoria não é bem acolhida, pois ela dá ensejo a

que regimes autoritários sejam legitimados, desde que haja eficácia do ordenamento, o que

seria facilmente conseguido por meio do uso do monopólio da força, que os Estados possuem,

ou seja, por meio de imposições das forças armadas, por exemplo. Essa é uma decorrência

prática da separação entre teoria e juízos de valor. A valoração é “perigosa” tanto se for usa-

da, pois como Kelsen afirma, ela serve para justificar ou rejeitar uma ordem imposta, mas ao

mesmo tempo, a abstenção de valoração faz com que, na prática, qualquer valor possa ser

utilizado para preencher as lacunas que uma teoria livre de valorações possui, pois o ser hu-

mano não é livre de fazer juízos de valor e a tomada de decisões sempre implica uma valora-

ção. Este é o impasse de se valorar ou não as teorias. Mas o fato é que após a Segunda Guerra

Mundial não se pode mais ignorar que o Estado não pode fazer uso de sua força para oprimir,

perseguir e dizimar partes de sua população, mesmo sob a garantia de um ordenamento que

seja válido, eficaz e que parte da população concorde com ele.

Percebe-se que, embora a teoria de Kelsen seja criticada dessa forma exposta, ele, na

verdade, também não defendia que qualquer governo ou Estado fosse bom ou ideal. Ele não é

hipócrita, pois reconhece que Estados autoritários existem e atuam de forma legítima perante

os outros Estados. Mas também não defende que toda forma de governo é ideal, muito pelo

contrário, ele entende que sempre há divergências entre o plano ideal e suas realizações práti-

cas. É de suma importância frisar que a Teoria Pura do Direito teve sua primeira edição e pu-

blicação em 1933, ao passo que o livro A Democracia foi publicado pela primeira vez em

1954.

As ideias concernentes à valorização da democracia, do parlamentarismo e da repre-

sentação surgiram em um período pós-guerra e o avanço da teoria nesse sentido faz com que

não se possa analisar a teoria de Kelsen cobrindo com um pano opaco esta segunda parte. E é

nesse ponto que se percebe uma nova fonte de legitimação, que não é mais voltada aos aspec-

tos internacionais dos Estados, e sim internos. Há uma valorização da forma democrática de

criação e execução do ordenamento normativo. Kelsen expressamente afirma que a melhor

45

forma de democracia é aquela que inclui o maior número de pessoas possível dentro do con-

ceito de cidadãos, de indivíduos com direitos políticos. Ele afirma que a maneira que melhor

se conseguiu realizar a democracia foi através do parlamentarismo, que unia a liberdade de-

mocrática com a técnica da divisão do trabalho. Entretanto, ocorreu que esse método apresen-

ta diversos pontos com problemas, destacando-se a ficção da representação. Ela surgiu para

legitimar a atuação do parlamento, mas não é mais suficiente para manter essa legitimidade.

Dessa forma, a representação é sim um instrumento que legitima a atuação do poder do Esta-

do, mas deve ser revista e modificada, pois da forma como está posta, já não consegue suprir

as demandas da população e perde a força do seu caráter legitimador. Assim, é possível con-

cluir que quando o instituto for reformado, e deixar de ser somente uma ficção teórica, ele

dará as bases de legitimação do poder político de um Estado democrático.

46

47

2. ERIC VOEGELIN

2.1. Biografia

Erich Hermann Wilhelm Voegelin nasceu em 03 de janeiro de 1901, na cidade de Co-

lônia, na Alemanha. Em 1910 ele se muda para Viena, onde termina os estudos básicos e fre-

quenta a Universidade de Viena, na qual posteriormente será professor associado de ciência

política na Faculdade de Direito. Na adolescência vivenciou o fim do Império Austro-

húngaro.

Fez doutorado em ciência política e nesse período participou de seminários ministra-

dos por Hans Kelsen, professor que Voegelin afirma ser decisivo para sua vida e formação

posterior, principalmente no exemplo dado por Kelsen quanto ao rigor de suas análises. (VO-

EGELIN, 2008, p. 22 e p. 44). Seus orientadores no doutorado foram Hans Kelsen e Othmar

Spann, pesquisadores com diretrizes teóricas consideradas incompatíveis, já que Spann era

universalista e Kelsen Neokantista. Após o doutorado, passou dois anos estudando nos Esta-

dos Unidos e um na França.

Após seu retorno, ocorre a anexação da Áustria pela Alemanha e a princípio, Voegelin

permanece no país por acreditar que os países ocidentais tomariam medidas contrárias à tal

anexação. Como isso não ocorreu, o pesquisador se viu obrigado a emigrar de seu país, pois

embora não fosse comunista, católico ou judeu, já havia por diversas vezes se manifestado em

palestras, aulas e escritos de forma contrária aos regimes totalitários, especialmente ao nacio-

nal-socialismo. Quando da invasão alemã ele perdeu o seu emprego de professor na universi-

dade e em 1938 conseguiu fugir da Áustria para a Suíça, se mudando posteriormente para os

Estados Unidos, onde tinha a oferta de emprego para ser professor em Harvard, universidade

na qual possuía amigos em decorrência dos anos que tinha passado estudando nesse país. A

sua carreira acadêmica, entretanto, se desenvolveu por um período maior na Universidade da

Louisiana, onde ensinou por dezesseis anos.

Em 1958 ele se muda para Munique, onde funda o Instituto de Ciência Política, que

até então não existia. Muitos alunos se interessavam pelos seminários e a biblioteca formada

incluía livros sobre a filosofia clássica, história moderna, ideias políticas modernas, judaísmo

e cristianismo, Oriente Próximo, China, Índia, África e até estudos da pré-história, todos as-

suntos que Voegelin considerava de suma importância para uma biblioteca de ciências huma-

nas e sociais. Em 1969 regressa aos Estados Unidos, morando na Califórnia, onde permane-

ceu até o seu falecimento em 19 de janeiro de 1985.

48

Uma das causas de Voegelin não ser muito estudado e divulgado consiste em sua opo-

sição às teorias de Karl Marx e Hegel. Ele afirma que ambos são teóricos ideólogos, o que

significa que são desonestos intelectualmente, já que ambos fogem da discussão de suas pre-

missas. Ele afirmou que Marx e Hegel eram “charlatões intelectuais” e isso chocou os discí-

pulos desses autores, levando Voegelin ao ostracismo.

Apaixonado pelo estudo e pelo conhecimento, Voegelin é um autor que desenvolveu a

sua teoria com o passar do tempo sem receio de mudar de opinião e interpretações filosóficas

quando compreendeu que suas teorias não respondiam adequadamente aos questionamentos

supervenientes. Desse modo, ele não é um autor linear, pelo contrário, é um autor com três

fases distintas, as quais se fará uma análise mais detalhada a seguir.

2.2. As três fases

O autor passou por duas mudanças em sua visão filosófica. A primeira ocorreu entre a

realização da coleção “História das Ideias Políticas” e da “Ordem e História”. Nesta transição

o autor passou a entender que não havia uma história das ideias, já que não eram as ideias que

tinham história, e sim o ser humano, suas formas de organização social, cultural, filosófica.

Assim, o que é passível de estudo é a ordem das sociedades e as ideias que surgem nelas e não

as ideias em si, afinal elas são o fruto da dinâmica das sociedades. Nesse processo o autor

passa a dar mais importância ao papel do homem na construção da história, pois o ser humano

não é somente um elemento de estudo, mas é um ator, um agente na história. A obra que mar-

ca a transição entre essas duas formas de pensar é “A Nova Ciência da Política”. A partir des-

se ponto, o foco dos estudos não é mais a história das ideias e as diferentes sociedades que

emergem de ideias diversas, e sim que há a ordem das sociedades e em diferentes ordens

emergem diferentes ideias. Em ambas as fases, o autor se dedica a compreender a relação da

humanidade com o tempo, assunto que será melhor tratado a diante.

A outra mudança ocorreu entre os três primeiros volumes de “Ordem e História” e os

dois últimos, pois houve imersão na filosofia da consciência. A transição ocorre da análise da

ordem das sociedades para a percepção de que a busca pela ordem é, em si, uma forma de

exploração da consciência. O autor passa a entender que a filosofia da consciência é “a peça

central de uma filosofia da política” (VOEGELIN, 2009, p. 43). Essa mudança ocorre porque

Voegelin passa a entender que, pela análise da realidade, o que há são as meditações e rela-

ções de seres humanos individuais com o Ser, ou seja, experiências pessoais de consciência. A

obra que marca essa última transição é “Anamnese”.

49

Agora que as transições foram brevemente explanadas, cabe uma análise mais deta-

lhada de cada período de Voegelin.

2.2.1. A História das Ideias

Quando de sua ida para os Estados Unidos, o autor foi convidado a escrever um volu-

me sobre a história das ideias políticas para uma série. Então ele percebeu que em geral o te-

ma não era tratado com a devida propriedade, de modo que passou a se dedicar ao estudo das

fontes, não somente à Platão e Aristóteles, mas também ao surgimento de Israel e a respeito

das civilizações orientais antigas. Ele acreditava que as ideias do “povo de Deus” eram muito

importantes para as ideias dos povos ocidentais e nunca haviam sido tratadas com a devida

vênia. Esse estudo durou de 1939 a 1954, de modo que ele não conseguiu produzir o seu pe-

queno volume para a série, mas acabou por escrever a sua “História das Ideias Políticas”, pu-

blicada postumamente.

Durante a produção de sua História das Ideias Políticas, em uma carta a um editor,

Voegelin explica a estrutura do texto, que na época possuía três volumes, da seguinte manei-

ra:

“O primeiro volume trata das três grandes formas simbólicas desenvolvidas na Antiguida-

de, ou seja, Mito, História e Filosofia; ele termina com Aristóteles. O segundo volume co-

meça com Alexandre, e trata das ordens respectivas do império e do cristianismo, até o

momento de sua crise na Reforma. O terceiro volume é uma unidade sistemática, na medida

e que lida com o desenvolvimento da gnose moderna e sua crise em nosso tempo. A se-

quência do tema, portanto, não é mais uma sequência simples de autores e ideias no tem-

po.” (VOEGELIN, 2012, p. 35)

O trabalho do autor resultou não em três volumes, mas em oito. Nessa coleção, as

ideias políticas são entendidas não como proposições teóricas, mas como as próprias consti-

tuintes da realidade. Isso porque as ideias são ordenadoras da existência política, já que a

“comunidade política torna-se real no processo de atualização da ideia que presidiu à sua for-

mação” (HENRIQUES, 1994, p. 54) e a essas ideias que ordenam e põem a sociedade, Voe-

gelin chamou de “evocações”.

De acordo com António Mendo Castro Henriques, em sua introdução à obra História

das Ideias Políticas, o objetivo de Voegelin era “compreender de que modo as ideias políticas

se tornam socialmente eficazes” (VOEGELIN, 2012, p. 15), e para tanto, estudava os “pro-

cessos espirituais que conferem significado à existência em sociedade e os processos contra-

espirituais que as destroem.” (VOEGELIN, 2012, p. 15). Ainda de acordo com Mendo Henri-

50

ques, se tratava de uma “história das ideias, porque a “ideia” é considerada como autointer-

pretação da sociedade” (VOEGELIN, 2012, p. 16).

Na teoria da História das Ideias, no momento em que as ideias se atualizam e criam a

realidade política, há o processo de evocação, no qual os seres humanos criam os símbolos e

conseguem expressar e interpretar a realidade. Entretanto, quando o autor estava escrevendo a

coleção, ele mudou os pressupostos da teoria, pois, como explicado no livro “Reflexões auto-

biográficas”, “Enquanto preparava o capítulo sobre Schelling, ocorreu-me que a concepção de

uma história das ideias era uma deformação ideológica da realidade. Não haveria ideias se

antes não houvesse símbolos de experiências imediatas.” (VOEGELIN, 2008, p. 102). Em

outras palavras, as ideias não são autônomas, não podem ser consideradas como tais, mas sur-

gem a partir das experiências humanas, que podem ser expressadas tanto pelo desenvolvimen-

to filosófico, teológico, bem como pelos mitos.

E é assim que o autor passa a estudar as sociedades, por meio das experiências e sím-

bolos por elas produzidos e com o objetivo de compreender as ideias que surgem em cada

sociedade. Essa mudança paradigmática levou o autor a entender um novo papel do próprio

teórico quando da análise de uma sociedade. Ao analisar a realidade, o teórico deve conseguir

diferenciar os símbolos de autointerpretação da sociedade daqueles que são os símbolos da

teoria política, e dessa forma, ele acaba por escrever outra coleção, com base nesses novos

pressupostos, a “Ordem e História”, que será tratada a seguir.

2.2.2. Ordem e História

A frase mais emblemática para expressar a transição metodológica das duas obras do

autor é trazida logo no prefácio de Ordem e História, volume I: “A ordem da história emerge

da história da ordem” (VOEGELIN, 1981, p. IX). Em outras palavras, as sociedades possuem

uma ordem e é ela que muda com o passar do tempo e o estudo da ordem e das suas mudanças

que permite que se apreenda uma ordem na história.

Para Voegelin, toda sociedade cria uma ordem que dota a sua existência com signifi-

cados em termos de fins divinos e humanos. Os símbolos são criados pelas sociedades como

uma forma de possibilitar a sua existência e autointerpretação e eles mudam, sendo a história

uma sequência de ordens inteligivelmente conectadas umas às outras por meio de progressos e

regressos em relação às anteriores. Mas isso não significa que toda ordem bem sucedida tenha

uma relação de progresso ou regresso em relação à anterior.

51

O autor entende que embora não haja uma simples marca de progresso ou de que haja

ciclos ocorrendo através da história, o processo é inteligível como um esforço para a ordem

verdadeira. Essa estrutura inteligível da história, de qualquer forma, não pode ser encontrada

dentro da ordem de qualquer uma das sociedades concretas participantes do processo. É uma

realidade a ser entendida retrospectivamente em um fluxo de eventos.

Se pretensiona compreender a ordem do homem, da sociedade e da história, por meio

dos símbolos que servem para a auto-expressão, e conforme esses símbolos foram sucedendo

uns aos outros. As ordens e formas simbólicas ocorreram na seguinte ordem: (i) impérios do

antigo oriente e a sua existência no mito cosmológico, (ii) o povo escolhido e a sua existência

na forma histórica, (iii) a polis e o seu mito, bem como o desenvolvimento da filosofia como a

forma simbólica da ordem, (iv) os impérios multicivilizacionais desde Alexandre e o desen-

volvimento do Cristianismo, e por fim (v) os Estados Modernos Nacionais e o desenvolvi-

mento da gnose como a forma simbólica da ordem.

O primeiro volume explora não apenas as formas cosmológica e histórica da ordem,

mas também a emergência de um Povo Escolhido do ambiente dos impérios cosmológicos.

Trata, portanto, das sociedades Mesopotâmicas, do Canaã, e do Egito, cujos símbolos se arti-

cularam, na formação de Israel, para um ponto de claridade no qual um Deus transcendente se

revelou como a original e última fonte de ordem no mundo e no homem, na sociedade e na

história, ou seja, em todos os aspectos imanentes do mundo.

O autor afirma que é obrigação do homem entender a sua condição, e parte dessa con-

dição é a ordem social na qual ele vive, e essa ordem se tornou, hoje em dia, mundial. Essa

ordem não é recente nem simples e contém uma força de efetividade social com sedimentos

da ordem milenar.

Analisando a ordem atual, Voegelin chama a atenção do leitor para o problema metas-

tático, presente no volume de Israel e a Revelação. O problema metastático consiste em que-

rer mudar a natureza fundamental da realidade, que é uma situação de caráter profético de

uma mudança na constituição do ser e repousa no topo das crenças contemporâneas na perfei-

ção da sociedade, tanto através do progresso quanto através da revolução comunista. Essa fé

metastática é uma das grandes forças de desordem, se não a principal, no mundo contemporâ-

neo, e é um assunto que o autor entende ser de vida ou morte para que todos entendam o fe-

nômeno e achem remédios contra isso antes que destrua a humanidade. Um dos remédios é o

próprio questionamento filosófico. Essa solução é conhecida desde Platão, que descobriu, na

52

desordem do seu tempo, a importância do questionamento filosófico como uma das formas de

estabelecer ilhas de ordem dentro de uma era de desordem.

Afirma ainda o autor que o ser humano não é um espectador contido da realidade, mas

um ator, fazendo parte da peça da existência, comprometido em atuar sem saber o que é a

existência, qual é a peça e qual o seu papel, sendo a participação do homem iluminada pela

sua consciência. Há uma experiência da participação, uma tensão reflexiva na existência radi-

ando sentido na proposição: o Homem, em sua existência, participa no ser. O ser humano ex-

periência a si mesmo e é capaz de usar a linguagem para chamar essa experiência consciente

pelo nome de “Homem”, sendo que chamar por um nome é um ato fundamental de evocação.

Há alguns elementos típicos no processo de simbolização. O primeiro deles é a pre-

dominância da experiência de participação. Nesse sentido, como já dito anteriormente, o ser

humano é um ator na sociedade e como tal ele tem a capacidade de alterá-la, ele dá nomes e

significados às coisas e as modifica. O segundo é a preocupação com a duração e a passagem,

ou seja, a durabilidade e a transitoriedade, no sentido de que os que existiam foram substituí-

dos pelos que existem e isso também acontecerá em relação aos que ainda existirão e a socie-

dade a qual o ser humano pertence sobreviverá a ele e as sociedades passarão enquanto o

mundo existir e o mundo não é apenas ultrapassado em duração pelos deuses, mas talvez até

criado por eles. Há aqui uma hierarquia na existência, desde o efêmero e solitário homem até

a eternidade dos deuses.

Isto cria uma hierarquia e a experiência da hierarquia fornece um pedaço importante

do conhecimento sobre a ordem do ser. E esse conhecimento pode se tornar uma força orde-

nadora da existência do homem. O que tem duração e passagem é na verdade a existência,

mas como a existência está em conexão com o ser, revela algo do ser. A existência humana é

de curta duração, mas o “ser” com o qual ela tem parceria não cessa com a existência. Na

existência os humanos experimentam a mortalidade; no ser, experiencia o que pode ser sim-

bolizado pela imortalidade (VOEGELIN, 1981, p. 04). Assim se alcança os limites que são

dados pela perspectiva da participação, entre o existir e o ser. Há o mistério do ser, no qual o

ser humano participa. A existência é a pegada sutil que as pessoas deixam no ser, já que há

parceria entre os dois. Na existência pode-se atuar o papel na peça maior do divino “ser”, que

perpassa a existência no sentido de buscar a eternidade.

Outro elemento típico do processo de simbolização é a tentativa de fazer a essencial-

mente desconhecida ordem do ser se tornar inteligível tanto quanto possível através da criação

de símbolos que interpretam o desconhecido por analogia com a realidade, ou com o supos-

53

tamente conhecido. Nesse sentido, o conhecimento caminha buscando encontrar blocos com-

pactos das coisas conhecidas e dentro desses blocos diferencia suas partes componentes, de

forma que o conhecimento acaba por gradualmente se distinguir do que é essencialmente des-

conhecido. Desse modo, percebe-se que a história da simbolização é uma progressão desde

compactas a diferenciadas experiências e símbolos.

Voegelin menciona duas formas básicas de simbolização que caracterizam grandes pe-

ríodos da história. A primeira é a simbolização da sociedade e a sua ordem como sendo aná-

loga ao cosmos e da sua ordem, enquanto a segunda é a simbolização da ordem social pela

analogia com a ordem da existência humana que está em harmonia com o ser. Sob a primeira

forma a sociedade será simbolizada por um microcosmos e, sob a segunda, como uma forma

de macroanthropos (macro-humano).

A simbolização cosmológica surgiu primeiro historicamente é percebida nas socieda-

des da antiguidade oriental, sendo essas sociedades tratadas como um microcosmos. A segun-

da forma simbólica tende a aparecer quando o império cosmologicamente representado se

desintegra e o seu desastre engloba a confiança na ordem cósmica. Quando isso ocorre e o

cosmos deixa de ser um referencial de duração da existência humana e a força da ordem passa

a se voltar para algo que pareça mais durável do que o mundo existente visível, ou seja, o in-

visível e existente “ser” além de todo o “ser” da existência tangível. Esse invisível e divino

“ser” transcende todo o ser no mundo e o mundo em si mesmo e pode ser experienciado ape-

nas como um movimento na alma do homem; e então a alma, quando ordenada em harmonia

com o deus não visível, se torna um modelo de ordem que irá fornecer símbolos para ordenar

a sociedade analogamente à sua imagem.

Esse é um modelo que acaba se repetindo na história, tanto que é classificado por

Toynbee como o “tempo dos problemas” e Voegelin cita diversos exemplos, como no Egito

entre o antigo e o médio reino, quando emergiu a religiosidade sobre Osiris, ou a desintegra-

ção feudal da China, quando apareceram escolas filosóficas como de Lao-Tse e Confúcio, ou

o período anterior à fundação do Império Maurya, marcado pelo aparecimento de Buda e Jai-

nism, ou quando o mundo helênico da polis foi desintegrado e os filósofos apareceram ou

mesmo os problemas subsequentes do mundo Helênico, que foi marcado pelo surgimento do

Cristianismo.

O autor toma o cuidado de afirmar que embora esse processo tenha acontecido em di-

versos períodos da história, isso não significa que ele se torna uma “lei” da história, citando

54

até exemplos nos quais esse processo não ocorreu, como na Babilônia, já que Israel não surgiu

com nenhuma quebra institucional específica conhecida ou após algum período de problemas.

Um outro elemento típico dos processos de simbolização é a repulsa dos homens do

caráter analógico de seus símbolos, pois cada símbolo é utilizado para significar outros sím-

bolos e assim sucessiva e eternamente. Todo símbolo concreto é verdade na medida em que

contempla a verdade, mas nenhum é completamente verdade na medida em que a verdade

sobre o “ser” é essencialmente além do alcance humano. O ser é único, ao passo que os sím-

bolos são muitos e dessa forma, diversos símbolos acabam representando as mesmas coisas e

isso acrescido do fato de que nenhum símbolo é realmente a verdade, faz com que eles te-

nham todos sentidos parecidos ou os mesmos e ao chegar à essa conclusão e faltar o poder de

diferenciação, o ser humano sente horror, por acreditar que não tenha feito progresso e relação

ao passado.

Essa dissonância entre o ser e o poder simbólico do humano em nomear o ser faz com

que ele perceba que sua participação no ser é imperfeita. A participação do humano no ser

tem então a sua estrutura modificada, de modo a dar ênfase à parceria com Deus, enquanto a

participação mundana passa ao segundo plano. Essa mais perfeita harmonia com o ser através

da conversão não é um aumento na mesma escala, um aumento quantitativo, mas um salto

qualitativo. E a sociedade que fizer esse salto experienciará a si mesma de forma qualitativa-

mente diferente de todas as outras sociedades que não fizeram o salto. A comunidade será,

como no caso de Israel, um povo escolhido, peculiar, um povo de Deus. E essa nova comuni-

dade cria o seu próprio simbolismo, para expressar a sua peculiaridade. Essa comunidade pas-

sa então a fazer parte da história sacra, e a sua parceria com Deus retira a sociedade do posto

da profana existência e a constitui como representante da comunidade de Deus na história da

existência.

Entretanto, o salto no ser não é um salto para fora da existência, ou seja, embora haja

parceria com Deus, o ser humano continua a fazer parte da existência. E ao invés de criar ten-

sões entre essas duas esferas, o homem as separa, criando pares de símbolos, a teologia civilis

e a teologia supranaturalis, ou seja, os poderes temporais e espirituais, do estado secular e da

igreja.

Pelo que se sabe, a primeira forma simbólica criada pelas sociedades ao saírem do

nível de organização tribal é a cosmológica. Como exemplos de sociedades cosmológicas

estão as da antiguidade oriental. Quando o homem cria o cosmion da ordem política, ele ana-

logamente repete a criação divina no cosmos. A simbolização cosmológica não é uma teoria

55

ou uma alegoria. Ela é a expressão mítica da participação, experienciada como real, da ordem

da sociedade no ser divino que também ordena o cosmos. Para comprovar, o cosmos e o cos-

mion político mantém existências separadas, mas um fluxo de ordem e criação corre do ser

através deles de forma tão massiva que, o deus é o dono de um templo, estabelecido no céu,

enquanto o aumento do poder do rei terrestre é apenas a implementação da nomeação divina;

e a ordem geográfica na terra é a imagem do original nos céus. A participação é tão íntima, de

fato, que ao invés da separação das existências, império e cosmos são partes de uma ordem

conjunta.

Essa unidade, compreendendo as existências separadas como partes, necessitava da

criação de um símbolo que expressasse o ponto de contato físico entre as duas partes separa-

das, o ponto em que a corrente do ser fluía do cosmos até o império. Um estilo de simboliza-

ção, uma vez que um núcleo é formado e aceito, por sua lógica interna, requer a criação de

novos símbolos.

Após essas sociedades politeístas, surgem as sociedades monoteístas. Pode-se observar

que em outras civilizações, ainda que cosmológicas, se desenvolveu uma concepção de mo-

narquia global com uma analogia terrestre de um único deus que governa o cosmos, como na

China; no Império Mongol no século XIII a.c. surgiu com bastante clareza racional o princí-

pio de “um deus no céu, um imperador na terra” (VOEGELIN, 1982, p 35). A mudança de

uma sociedade politeísta para uma sociedade monoteísta parece compreender uma transfor-

mação simbólica e dessa forma, não foi um processo fácil para aqueles que estavam passando

por ele. Nessa época havia uma união do cristianismo e do judaísmo contra as crenças do poli-

teísmo babilônico.

A coerência interna e a luta pelo poder do império, além disso, dependeu do grau no

qual a racionalização dos símbolos pode ser transferida para técnicas de um governo centrali-

zado. Assim, as sociedades que tinham maior facilidade em adequar os seus símbolos de mo-

do a centralizar o poder do governo foram as que conseguiram durar mais.

Posteriormente, a simbolização cosmológica foi substituída pela antropológica. Nesse

sentido, ao invés de fazer uma analogia com o cosmos, a sociedade era entendida em analogia

com o ser humano, como um organismo no qual havia diferentes órgãos, que atuavam em

diferentes funções e o Homem passou a ser a medida de todas as coisas. Já com o surgimento

do Cristianismo, a simbolização que surge é denominada por Voegelin de soteriológica, ou

seja, surge a ideia de salvação humana. Serão melhor analisadas adiante as consequências do

Cristianismo e a separação dos símbolos seculares e imanentes em relação a representação,

56

bem como a caracterização do período moderno e contemporâneo como o surgimento e esta-

belecimento do gnosticismo.

2.2.3. Anamnese e últimos volumes de Ordem e História

O livro marca a transição de uma filosofia da história para uma filosofia da

consciência. Voegelin afirma que busca por meio da anamnese entender a consciência interna

do tempo, e que ele se sente descontente com os resultados das inestigações filosóficas nesse

campo de estudo.

Por fim, os estudos de Voegelin resultaram na compreensão de que a busca pela ordem

era antes de uma busca da ordem na sociedade, a busca da ordem no ser humano. Nesse senti-

do, o que vem primeiro não são mais as ideias, como em História das Ideias Políticas, ou as

experiências, como no Ordem e História, mas o surgimento da própria consciência. Antes

mesmo de criar os símbolos e expressá-los, ou seja, antes da evocação, há uma compreensão

do ser humano sobre ele mesmo.

Para a filosofia da consciência, Voegelin destaca as dúvidas de Leibniz: “por que exis-

te o ser e não o nada?” e “por que as coisas são como são?”. E por meio delas o autor percebe

que o próprio questionamento é a forma de buscar a ordem na sociedade, ou seja, a consciên-

cia surge como o centro onde o ser humano experiencia a ordem. A consciência é o primeiro

fator que aparece no ser humano e ao surgir se dá por meio de questionamentos que deman-

dam a estruturação do próprio pensamento e da apreensão da realidade e é assim que surge a

experiência da ordem. Aqui, portanto, o objeto de estudo é o próprio sujeito que estuda e é por

isso que o livro Anamnese é repleto de memórias do próprio Eric Voegelin. A ordem que o

ser humano busca na vida e na realidade externa deve ser também e primeiramente compre-

endida no próprio ser humano.

2.3. Críticas ao Positivismo

Eric Voegelin é um crítico e opositor do positivismo. Suas críticas decorrem desde pe-

lo menos 1936, quando o autor escreveu o livro “The Authoritarian State: An Essay on the

Problem of the Austrian State”, do qual cabe o destaque para a parte em que critica a Teoria

Pura do Direito de Hans Kelsen. Este foi o livro que causou um abalo na relação entre os dois

autores. As críticas recaem principalmente sobre os aspectos metodológicos da teoria, ou seja,

57

a escolha do paradigma positivista. A respeito da teoria em si, o próprio Voegelin, em 1973,

quando da publicação de “Reflexões Autobiográficas”, afirmou que nunca divergiu de Kelsen

a respeito da validade de tal teoria, sendo ela a “mais gloriosa realização de um analista bri-

lhante” (VOEGELIN, 2008, p. 44), mas também afirmou que era indefensável que a teoria

política precisasse se transformar em uma teoria jurídica e que tudo que fosse excedente à

teoria jurídica não faria parte da teoria política. E são os argumentos que embasam essa teoria

de Voegelin que serão analisados a seguir.

A crítica que é feita até os dias de hoje sobre a possibilidade da teoria pura do direito

ser usada para embasar regimes autoritários, já era feita por Voegelin. O autor afirma que a

ideia de que os atos de criação de leis serem considerados unicamente sob o viés de sua regu-

lação pelas normas, fez com que a teoria fosse adotada não somente pelos seguidores da teo-

ria, e estudiosos, mas por seus oponentes e políticos, e isso fez com que a teoria servisse in-

clusive para a transição da democracia parlamentar para uma constituição autoritária e até

mesmo para o estabelecimento dessa constituição autoritária3. Nesse ponto, o autor se refere

especificamente ao contexto austríaco, afirmando que a constituição de 1920, na qual Kelsen

participou da formulação, foi substituída por uma autoritária, em 1934.

Voegelin afirma que Kelsen se insere no grupo de pensadores neo-kantianos, que

transferem os problemas relativos ao método das ciências inorgânicas de forma acrítica e sem

qualquer mudança essencial para todas as outras áreas da ciência4. Voegelin contesta essa

transposição de método para outras ciências e, em especial para as teorias do Estado, pois tal

generalização resulta em limitações significativas para o objeto de estudo de tais teorias5. A

teoria neo-kantiana, para a preservação da pureza e unidade do objeto de estudo, demanda que

haja unidade do sistema de categorias, ou a unidade do método, e Voegelin afirma que para

conseguir atingir tal objetivo, as questões ontológias, que deveriam ser preliminares, são evi-

tadas. Nesse sentido, parte-se do estabelecimento do método de forma que não há uma estru-

tura perceptível além do objeto perceptível que está sob a formação categórica, ou seja, o es-

tudo de determinado objeto deve ser feito de acordo com seu respectivo método e nada além

desse método possibilita a pureza do estudo. A crítica de Voegelin é no sentido de afirmar que

3 “The idea survived the founding situation, taking on crucial importance even for the transition from the parlia-

mentary-democratic to the authoritarian constitution and for the estblishment of the authoritarian constitution

itself” (the authoritarian state, pg. 164] 4 “Neo-Kantianism (and Kelsen in the same spirit), however, transfers the problems belonging to the method of

the sciences of the inorganic realm uncritically and essencially unchanged to all other scientific subject matters,”

(the authoritarian state, pg. 166) 5 “we can state that generalizing the methodolog derived from the model of mathematical physics must result in

very significant limitations for the object of a theory of the state.” (the authoritarian state, p. 167)

58

esse é um pensamento tautológico, já que o objeto de estudo é percebido como categorica-

mente constituído e até que tenha passado por um julgamento que o categorize, ele não é per-

cebido. De forma simples, o método dá a forma de conhecer o objeto mas ao selecionar o ob-

jeto e como estudá-lo, já há uma análise prévia que é realizada e essa própria análise não é

estudada, é, ao contrário, ignorada.

Voegelin afirma que o estudo do Estado inclui objetos como “sistema de normas”,

“massas e elites”, “relações de poder”, “legitimidade”, “ideia política” e que todos esses as-

pectos não podem ser incluídos em um sistema que analise uma só categoria. Afirma ainda o

autor que nessa percepção da realidade, qualquer demanda por “pureza” pode apenas signifi-

car que diversos objetos devem ser distinguidos uns dos outros e que não se deve criar falsas

relações entre eles6. Assim, Voegelin afirma que a escolha de um dos elementos como sendo

puro, em detrimento de todos os outros que constituem o conjunto complexo do Estado, signi-

fica um sério empobrecimento da totalidade do objeto7. Dentro da teoria de Kelsen o objeto

que é escolhido como “puro” é a “norma”, e Voegelin afirma que, exatamente por causa dessa

limitação do objeto, a própria norma (na verdade, é o ordenamento normativo) pode ser vista

como sinônimo do fenômeno “Estado”8. E o autor vai ainda além e afirma que quando a

“norma” é identificada com o “Estado”, não é somente os outros objetos que desaparecem,

mas a própria teoria do Estado.

Voegelin destaca o fato de que o Estado, ainda que seja entendido como um sistema de

normas, é mais do que isso, já que consiste em um complexo sistema de normas e de atos. E a

inclusão dos atos dentro da teoria, de acordo com a crítica de Voegelin, faria com que se per-

desse a pureza e dessa forma, Kelsen opta por excluir os atos, já que eles seriam objetos estra-

nhos à lei e o estudo dos atos caberia a disciplinas como a sociologia. Dessa forma, Kelsen

considera as reflexões intelectuais e os atos simplesmente como ideologias, e quando não,

devem ser objeto de estudo da sociologia e não de uma teoria positivista sobre o Estado.

6 “The realm of being called state includes such objects as “system of norms”, “masses and elites”, “power rela-

tions”, “legitimacy”, and “political idea”, which quite certainly cannot be included in a single object-constituent

system of categories. In this perceptual situation any demand of “purity” can mean only that the several objects

must be neatly distinguished from each other and not brought into false relations to each other.” (author. State

pag. 169) 7 “Thus, without asking which object is to be chosen as the one pure object out of the total complex of objects

that together form the perception of the essence called “state”, we can say that the positivist requirement leads to

a serious impoverishment of the total object.” (a.s. p. 169) 8 “this struggle limits the phenomenon of “state” to only one of this several objects, namely, to the phenomenon

purê theory of law calls law and which, precisely because of the limitation, can then be seen as synonymous with

the phenomenon “state”.” (the auth st p. 169)

59

Além dessa crítica, Voegelin também questiona a norma hipotética fundamental. Ele

afirma que este ato original que produz a primeira norma deve ser também delegado por uma

norma, mas como essa norma não existe, ela é hipotética. Essa norma fictícia, que é posta

pelo percebedor, delega o primeiro ato que emerge da realidade da norma e tudo se segue a

partir desse primeiro ato. Ele então afirma que é possível demonstrar que a construção dos

atos serve para auxiliar a demanda por uma “pureza” da teoria, já que o objeto legal é a nor-

ma, e a ordem legal é um sistema de normas e o Estado é idêntico à lei, e que o ponto de iní-

cio do sistema é a norma fundamental, que é por sua vez produzida pelo sujeito que percebe

(o teórico), e que portanto a ordem legal é constituída como o contexto da percepção9. Disso

se pode inferir que a norma hipotética fundamental acaba por ser um elemento que entra em

contradição com o restante da teoria, que tenta ao máximo excluir a análise dos atos humanos

e cria uma teoria toda baseada em uma norma que foi dada pelo próprio teórico.

Voegelin então critica que um teórico que estude as questões da teoria do Estado fora

da moldura delineada por Kelsen, de acordo com esta própria teoria, deve se conformar com o

fato de que suas preocupações não têm lugar na teoria do estado e que pertencem à sociologia.

Ou então que ele está perdendo tempo com tempos remotos e sem importância, com “pseudo-

problemas”, ao invés de produzir algum conhecimento científico útil. Outra hipótese que recai

sobre aqueles teóricos que não se encaixam na delimitação da teoria de Kelsen é que seus

esforços são baseados em uma “ideologia” que ele proclama ser uma realidade, como a defesa

da ordem capitalista. E, por fim, tal teórico não tem lugar na ciência como um todo, já que

tudo que saísse de sua caneta devesse ser classificado como uma cientificamente irrelevante

construção de postulados ético-políticos10.

Dando continuidade ao que já foi argumentado em relação à limitação do objeto às

normas legais, Voegelin afirma que as pressuposições que consideram o conteúdo das normas

são colocadas fora da área de investigação legítima na ciência política11. O autor entende co-

9 “The auxiliary construction of the “acts” can be dropped once this elevation of the systems has been reached

and the demand for “purity” has been realized: the legal object is the norm, the legal order is the norm system,

the state is identical with the law, the starting point of the system is the basic norm, the basic norm is produced

by the subject of perception, the legal order is constituted as the contexto of perception” (aut st. P. 177) 10 “The scholar who examines problems of theory of the state that do not fit into the framework delineated by

Kelsen has to put up with being told that (1) his concerns have no place in theory of the state and belong to “so-

ciology”; that (2) he is waisting his time on the idle pastimes, the “pseudoproblems”, rather than performing

some kind of valuable scientific work; that (3) his efforts are based on na “ideology” that –for irreleant motives,

such as defending the capitalista social order or to please a political party – he loudly proclains to be reality; and

that finally (4) he has no place in Science at all, since everything that comes from his pen must be classified as a

scientifically irrelevante constructo of “ethical-political postulates”.” (p. 179 aut st) 11 P. 180

60

mo essencial a inclusão em uma teoria do Estado das ações humanas e consequentemente o

estudo da realidade da mente ou do espírito, que são relacionados com as ações.

Por fim, ainda no livro sobre o Estado autoritário, o autor afirma que a teoria do direito

de Kelsen é chamada de “pura” de forma incorreta. Isso porque não preza pela pureza, e sim

por uma limitação da interpretação às normas positivas, e principalmente a uma parte do con-

teúdo dessas normas, que é a coerção sobre condutas humanas. Voegelin afirma que nem toda

lei trata de coerção de condutas, tanto que em uma constituição uma minoria das normas teria

esse caráter. De tudo argumentado, ele conclui que a racionalidade da limitação é um dogma

metafísico, cuja legitimidade não pode ser admitida dentro da esfera da ciência das leis positi-

vas12.

Os argumentos trazidos até este ponto sobre o positivismo decorreram exclusivamente

do livro “The authoritarian state” e foram escritos quando Voegelin ainda era jovem, sendo

aprimorados em textos posteriores. Então se irá a seguir tratar de outras críticas feitas pelo

autor nos livros “A natureza do Direito e outros textos jurídicos” e “A Nova Ciência da Políti-

ca”, que reiteram alguns argumentos, mas também aperfeiçoam a crítica e trazem elementos

novos.

O livro “A Natureza do Direito” foi elaborado em 1957, e servia de base para os uni-

versitários inscritos na disciplina de introdução ao Direito, ministrada na Faculdade de Direito

de Louisiana. Neste período o autor já tinha compreendido que as ideias não tem história, que

são as pessoas que têm e que ela consiste em êxitos e fracassos e nas experiências. Esse pen-

samento é estendido ao Direito, já que ele não poderia ter uma história separada da da socie-

dade, já que ele articula a ordem. A partir disso o autor se propõe a estudar a ordem humana

através das fontes que possam determinar os critérios pelos quais se pudesse julgar os fenô-

menos tanto da sociedade quanto do direito.

Como se percebe, a teoria do direito para Voegelin não parte da norma, mas é anterior

à ela, tendo início, portanto, no estudo da sociedade. Mas ainda para além do estudo da socie-

dade, o autor também entende “que a ordem da sociedade provém de um todo maior e anterior

à mesma, a ordem do mundo (Kosmos), que se identifica com a própria ordem do ser” (VO-

EGELIN, 1998, p. 16). O direito é entendido “como tendo por sua natureza ontológica a estru-

tura da sociedade” (VOEGELIN, 1998, p. 28), ou seja, a essência do direito é organizar a so-

12 “Kelsen’s theory of law is incorrectly called “pure” because in fact it does not call for the “purity” of examina-

tions of positive law but for the “limitation” of the norminterpretation in positive law to a particular parto d the

contente of this very norm. the rationale for the limitation, how-ever, is a metaphysical dogma, and we cannot

admit its legitimacy in the sphere of the Science of positive law.” (aut st. P. 207)

61

ciedade existente e posta, ele é mais do que as regras jurídicas, abrangendo todos os esforços

para estabelecer a ordem da sociedade.

Nesse sentido, as fontes extrajurídicas “incluem a autoridade da estrutura de poder na

sociedade articulando uma ordem que se pretende conforme com os critérios ontologicamente

verdadeiros para a ordem humana substantiva sob as condições existenciais” (p. 29). Assim,

tal como os filósofos clássicos, ele busca compreender a estrutura da sociedade pelo processo

no qual os seres humanos e as sociedades se autoconstituem, através da forma como a socie-

dade dá a si mesma e busca a sua preservação. Ao contrário de defender que possa haver uma

teoria única do direito, ou seja, que abrangeria de forma geral todas as sociedades, pela análi-

se da estrutura delas, Voegelin acredita que não se pode falar em direito no singular, mas em

direitos, já que em cada sociedade há um conjunto de normas que compõem a singularidade

dela. Além disso, mesmo que se pudesse escolher um conjunto de normas que aparentemente

sejam iguais em todas as sociedades, não se pode dizer que aquelas normas seriam essenciais,

já que para cada sociedade, cada uma de suas normas é essencial. Como se percebe, então, as

teorias do direito e do estado de Voegelin abrangem questões mais amplas do que somente o

estudo das normas, valorizando as especificidades de cada sociedade e buscando entender o

papel dos seres humanos e seus atos em uma análise ontológica e do ser no tempo.

Já no livro a Nova Ciência da Política, o autor afirma que embora hoje em dia não seja

comum unir os princípios da política com os da filosofia da história, quando a ciência política

foi fundada, por Platão, esses dois aspectos eram indissociáveis. O autor afirma ainda que, em

momentos de desintegração das sociedades, a filosofia tende a voltar-se à questões

existenciais e históricas, ao passo que em momentos de estabilidade há a degradação da

ciência política, que passa a servir como forma de instrumento do poder, consistindo em

ideologias. Exemplos de momentos de crise nos quais houve maior desenvolvimento das

teorias filosóficas e políticas são evidenciados pelas teorias de Platão e Aristóteles, Santo

Agostinho e Hegel.

Voegelin afirma que o positivismo, a partir do século XIX, destruiu a ciência e que

cabe aos novos estudiosos criar uma nova teorização, de forma a recuperar a consciência dos

princípios da política e da filosofia da história, que eram presentes antes do positivismo.

Sobre a destruição da ciência, a melhor explicação de Voegelin está em:

“A destruição causada pelo positivismo é consequencia de duas premissas fundamentais.

Em primeiro lugar, o esplêndido desenvolvimento das ciências naturais foi responsável,

juntamente com outros fatores, pela premissa segundo a qual os métodos utilizados nas

ciências matematizantes do mundo exterior possuiam uma virtude inerente, razão por que

62

todas as demais ciências alcançariam êxitos comparáveis se lhe seguissem o exemplo e

aceitassem tais métodos como modelo. Essa crença, por si só, era uma idiossincrasia

inofensiva, e teria desaparecido quando os entusiasmados admiradores do método-modelo

se pusessem a trabalhar em sua própria ciência e não obtivessem os resultados esperados.

Ela tornou-se perigosa por se haver combinado com uma segunda premissa, qual seja a de

que os métodos das ciências naturais constituíam um critério para a pertinência teórica em

geral. A combinação desses dois conceitos resultou na bem conhecida série de afirmações

no sentido de que qualquer estudo da realidade somente poderia ser qualificado como

científico se usasse os métodos das ciências naturais; de que os problemas colocados em

outros termos eram apenas ilusórios; de que as questões metafísicas, em especial, que não

admitem resposta através dos métodos das ciências fenomenológicas, não deveriam ser

formuladas; de que os domínios da existência que não fossem acessíveis à exploração por

meio dos métodos-modelo não eram pertinentes; e num ponto extremo, de que tais

domínios da existência nem ao menos existiam.” (VOEGELIN, 1982, p. 19).

A seguir, Voegelin afirma que o real problema do positivismo está na segunda

premissa, haja vista ela subordinar “a pertinência teórica ao método” (VOEGELIN, 1982, p.

19). O autor, ao contrário, acredita que se a ciência é a busca pela verdade, o método que

conseguisse alcançá-la é o que deveria ser considerado o pertinente. Sobre o positivismo, o

autor afirma que, de fato, esse movimento nunca tentou matematizar as ciências sociais, e que

se assim fosse, poderia-se dizer que esse movimento nunca existiu. Mas o que ocorre é a

subordinação da pesquisa social ao método das ciências naturais, e nesse sentido, a depender

do método, obtém-se diferentes resultados.

Ele afirma que o positivismo passou por diferentes fases e que uma generalização do

movimento seria errada. Mas ressalta que para a “destruição da ciência”, o fator primordial foi

a “tentativa de tornar “objetiva” a ciência política (e as ciências sociais em geral) através de

exclusão metodologicamente rigorosa de todos os “julgamentos de valor” (VOEGELIN,

1982, p. 23). Voegelin afirma que esse conceito surgiu apenas na segunda metade do século

XIX e ele contrapõe os fatos do mundo exterior, que seriam “objetivos” com o que chamou de

“ordenamento correto da alma da sociedade”, que seriam os fatores “subjetivos”. E assim,

pelo positivismo se considerou que os primeiros seriam científicos e os últimos não,

representando decisões pessoais que não seriam passíveis de verificação crítica, e portanto

sem objetividade. E o autor ressalta que a ética e a política tanto clássica quanto cristã não

possuiam o chamado “juízo de valor”, mas sim tinham como objeto as questões de filosofia

antropológica e que a confusão entre esses dois aspectos faz com que se acredite que os

problemas antropológicos não passariam de decisões individuais.

Os efeitos da tentativa de se fazer uma ciência isenta de valores foram duplos, afirma

Voegelin. Ao mesmo tempo em que serviu para diminuir a existência de teorias políticas não-

críticas, também resultou em uma contraposição às teorias metafísicas clássica e cristã, de

63

forma que não existiria uma ciência que fosse humana ou social, já que a antropologia

filosófica foi rejeitda.

É então que a metodologia voegeliana dá aso à própria teoria política. O autor afirma

que a sociedade é algo que está posto e é dado antes da ciência e dessa forma o ser humano

interpreta a sociedade a qual ele pertence e cria símbolos para exprimir a sua experiência. A

esse processo ele chamou de auto-interpretação da sociedade. Assim, quando o cientista vai

estudar a sociedade, ela já criou símbolos e estes passam a compôr a realidade social. Resume

ele então que “a ciência política não parte de uma tabula rasa na qual pudesse inscrever seus

conceitos; começa inevitavelmente a partir do rico conjunto de auto-interpretações da

sociedade e prossegue através do esclarecimento crítico dos símbolos sociais preexistentes.”

(VOEGELIN, 1982, p. 33).

Assim, o estudo das ciências políticas cria um outro conjunto de símbolos. Voegelin

afirma que há dois conjuntos de símbolos: o que resulta da auto-interpretação da sociedade e

aqueles que são criados pelo teórico político ao analisar a sociedade. O autor afirma que há

bastante confusão entre esses símbolos e por isso muitas teorias que são consideradas

científicas não poderiam ser precisamente definidas assim. Elas seriam apenas o resultado da

auto-interpretação da sociedade, consistindo no que Platão chamou de “doxa”, ou no que hoje

em dia poderia ser chamado de “ideologia”, embora o conceito de “ideologia” também tenha

se confundido, tornando-se ele mesmo um termo pertencente ao grupo de símbolos da

realidade social e não da teoria política. Ao se fazer uma teoria política então, é necessário

distinguir esses dois grupos de símbolos.

É possível dizer que a nossa realidade contemporânea confunde os símbolos da

realidade social com os símbolos teóricos e isso faz com que haja uma “crise” na ciência. Para

contextualizar o problema dos símbolos, Voegelin afirma que a primeira forma simbólica

criada para compreender a sociedade foi a de um microcosmos, e a segunda surge no(s)

momento(s) de desintegração da(s) sociedade(s), pois quando o império cosmologicamente

representado é destruído, isso gera uma desconfiança sobre os símbolos existentes. Desse

modo, outros símbolos devem ser criados para interpretar a ‘nova’ sociedade que surge depois

desse período de desintegração. E nesse processo o cosmos é substituído por um símbolo que

pareça ser mais duradouro do que o mundo existente e visível da existência humana, ou seja, é

trocado pelo símbolo do “ser”, que é invisível e existe para além do mundo tangível. Voegelin

afirma que esse invisível e divino “ser” transcende todo o ser no mundo e o mundo em si

mesmo e pode ser experienciado apenas como um movimento na alma do homem. Então a

64

alma, quando ordenada em harmonia com o deus não visível, se torna um modelo de ordem

que irá fornecer símbolos para ordenar a sociedade analogamente à sua imagem.

Como se percebe pelo discorrido até aqui, a forma de solucionar o problema criado

pelo positivismo, conclui Voegelin, é a filosofia. Na Antiguidade descobriu-se a “psique

como centro de percepção da transcendência” (VOEGELIN, 1982, p. 63) e a metodologia

proposta pelo autor é a da retomada do pensamento filosófico nas áreas da metafísica,

fenomenologia e ontologia. Isso porque essas áreas levantam questionamentos do ser humano

a respeito de si próprio e sua vida em sociedade e é por meio dessa auto-consciência que é

possível a transposição das barreiras científicas criadas pela metodologia positivista. A auto-

iluminação do ser humano funciona de forma que ele passa a perceber que possui um papel na

existencia e no ser e que não é possível tentar excluir esse aspecto da sociedade, devendo esse

aspecto ser estudado, já que o importante para ordenar a alma é o desenvolvimento da psique.

Para concluir os preceitos metodológicos do autor, cabe retomar o entendimento dele

de que o problema da ciência atual é subordinar a pertinência teórica ao método. Para ele a

ciência é:

“a busca da verdade com respeito aos vários domínios da existência. Para ela, é pertinente o

que quer que contribua para o êxito dessa busca. Os fatos são pertinentes na medida em que

seu conhecimento contribua para o estudo da essência, enquanto que os métodos são

adequados na medida em que possam ser usados efetivamente como meios para chegar

esse fim. Objetos diferentes requerem métodos diferentes.” (VOEGELIN, 1982, p. 19)

2.4. Representação na História das Ideias – Período Moderno

Percebe-se que já na História das Ideias Políticas, o autor destaca a função da repre-

sentação dos governantes dentro das sociedades. A maior ênfase na distinção dos símbolos

essenciais, existenciais e transcendentais ocorre no processo de transição que acarretou nos

primeiros livros de Ordem e História, mas ainda assim, na História das Ideias houve o estudo

do poder dos governantes dentro das sociedades. Do período da História das Ideias, destacou-

se para o presente estudo a comparação dos regimes francês e inglês, na transição de monar-

quias para as bases dos estados modernos. Esse destaque é feito com o intuito de compreender

os modelos de estado moderno e os elementos que surgiram nessa época e como eles afetaram

períodos posteriores.

A França e a Inglaterra foram escolhidos pelo autor pelo fato de seus sistemas gover-

namentais e representativos terem se desenvolvido de formas diferentes e até mesmo opostas.

Enquanto a Inglaterra pode ser descrita como sendo o lugar onde surgiram os paradigmas mo-

65

dernos de “representação” e “governo parlamentar”, a França deve ser entendida como o mo-

delo do desenvolvimento de diversos Estados continentais, no que tange à instituição da mo-

narquia absolutista.

A diferença básica entre esses dois Estados deve-se ao fato de que, enquanto a monar-

quia inglesa teve uma centralização precoce, a francesa foi tardia. A centralização precoce

possibilitou que na Inglaterra houvesse o desenvolvimento de instituições governamentais e

de uma política nacional forte. Ao passo que na França não havia um sentimento nacional

forte, nem tão pouco instituições nas quais a população pudesse se unir e debater as suas idei-

as, de forma a poder fazer valer a sua vontade e toda essa desarticulação política resultou nu-

ma maior centralização do poder régio.

Para explicar melhor o desenvolvimento do poder centralizado nesses dois países cabe

fazer uma contextualização histórica dos Estados. A Inglaterra, por ser uma ilha, não

enfrentou diversos problemas internos e externos que acometeram os Estados continentais,

como por exemplo, disputas fronteiriças, que na França demandava muitos esforços devido às

ambições imperiais deste Estado. Além disso, na Inglaterra o territorialismo dos senhores

feudais não era tão forte quanto o francês, que durou até o sec. XVII ou o alemão, que durou

até o sec. XIX. O isolamento geográfico da Inglaterra também se reflete na cultura, por meio

de uma diversificação dos costumes em relação aos paises continentais. No tangente à leis e

costumes, houve uma unificação dos costumes por meio da lei inglesa, que a princípio tinha

por base o direito romano e depois foi substituído por códigos das leis comuns.

Além da cultura há também a questão da religião, pois com o protestantismo a

Inglaterra não se envolveu, por exemplo, com disputas sobre o controle do papado, de forma

contrária à França e Alemanha, que participaram do conflito, ou também com as querelas da

Reforma presentes nestes dois últimos Estados. No que diz respeito à religião, pode-se

concluir que a menor força do poder temporal, quando encarada sob a representação pela

Igreja Romana nos países continentais, foi um fator que possibilitou uma “simplificação e

auto-concentração da política”, haja vista o poder régio não necessitar disputar o poder com a

Igreja.

Por esses aspectos, o poder régio da Inglaterra centralizou-se anteriormente aos outros

Estados e até o século XIV os fatores integradores do estado inglês eram predominantemente

a realeza e a lealdade feudal, além do apoio religioso do papa ao rei. Nessa época ainda havia

a aliança entre esses dois poderes, o que conferia maior legitimidade ao monarca, mas cabe

ressaltar que quando o apoio papal foi retirado, a legitimidade não resultou prejudicada. Após

66

o séc. XIV outro fator integrador a surgir foi o sentimento nacional, que, afirma Voegelin,

embora tenha sido cronologicamente posterior aos outros, os superou em importância.

Nessa estrutura governamental centralizada sob um poder régio forte, os reis tinham

condições de exigir que se cumprissem os deveres de vassalagem por parte dos nobres. Entre

os deveres de vassalagem estava o de os cavaleiros enviarem às assembléias do reino seus

representantes, o que acabou resultando em uma experiência de interdependência e ação

comunitária. Posteriormente isso acarretou o sentimento de pertencimento à um Estado, o que

“preparou a sociedade inglesa para uma capacidade invulgar de participação política”

(VOEGELIN, 2013, p. 152). E já nesse período as cidades se tornaram cidades livres com

direitos feudais.

Da experiência inglesa Voegelin destaca pontos muito importantes, como o fato de

que a participação política e a representação foram impostas pelo rei, ou seja, houve uma

“super-imposição”, um fenômeno que ocorreu “de cima para baixo” e não o contrário, como

se poderia imaginar. Essa situação é bem explicada na frase “a participação frequente e

regular de representantes dos condados e dos burgos no Parlamento inglês não se deve a um

desenvolvimento precoce dos direitos cons-titucionais, mas à força menor dos feudatários e

das comunidades feudais inglesas.” (VOEGELIN, 2013, p. 156), que eram obrigadas a

cumprir as ordens do rei. E Voegelin afirma que as instituições da “força do poder régio” e da

“integração do corpo político”, que são paradigmáticas do sistema constitucional parlamentar

modernas, surgiram assim.

Ainda a respeito da articulação e integração políticas na Inglaterra, o autor afirma que

os grupos chamados a representar os condados e as vilas, ou seja, os barões, cavaleiros,

burgueses e supervisores do clero, organizavam-se de forma que negociavam com o rei e

deliberavam coletivamente, por meio de ações comunais, comunitárias. Nesse sentido, a

experiência de sentimento nacional, a percepção da importância de ações coletivas e a força

que tais ações têm, surgiu por esse contato entre os representantes. Mas o autor não deixa de

ressaltar que tal experiência só existiu porque “a pressão para a articulação parece ter vindo

do topo da pirâmide social e não da base”. (VOEGELIN, 2013, p. 157)

Ainda dentro da contextualização do modelo inglês, cabe um breve resumo a respeito

da Magna Carta. Ela surgiu num momento em que o poder régio interferia de forma abusiva

principalmente na administração de florestas e pescas, o que gerou descontentamentos. Foi o

estopim das insatisfações a criação de taxas para a guerra francesa, que os barões do norte se

recusaram a pagar. A Carta surge então da articulação política dos Vassalos, o que Voegelin

67

chama de consciência de uma ordem política. Mas ao contrário do que outros estudiosos

afirmam, para ele a Carta é um documento que não corresponde nem ao início do governo

constitucional inglês, nem à evolução teleológica das instituições inglesas, e tão pouco é

somente um exemplo de documento feudal.

A Magna Carta é um doumento que expressa não só questões políticas institucionais,

mas também econômicas e comerciais, tanto nos aspectos interno e externo. Além da já

mencionada expressão de uma consciência política, ela é, principalmente, a manifestação do

desejo de rivais em gerar uma quebra no poder. Por um lado, os barões, embora não

quisessem cortar as relações com o rei, queriam ter o poder dele melhor controlado e

enfraquecido. Já por outro lado, há a libertação da Igreja inglesa, por meio da renúncia da

Inglaterra ao Papa, que exprimia uma vontade não somente da nobreza, mas também do

próprio rei. Conclui então Voegelin que a Magna Carta era, na verdade, uma forma de

restaurar a ordem jurídica, pois por meio dela todos os homens livres do reino poderiam se

reger por meio de um conjunto de normas jurídicas.

A contraposição ao desenvolvimento do regime representativo inglês é feita pelo do

francês, que cabe agora analisar. Voegelin faz uma síntese dos problemas enfrentados pela

monarquia francesa, sendo esta escolhida pelo fato de que, embora questões do poder régio

tenham sido um problema em toda a Europa, foi na França que elas surgiram primeiro. Dessa

forma, destaca Voegelin que “por várias razões, o rei da França tornou-se o modelo da

monarquia nacional independente do império, e a França, o modelo de nação soberana”

(VOEGELIN, 2013, p. 69).

O primeiro problema abordado diz respeito à relação entre o poder temporal francês

com o Império Bizantino. Por um lado, se pode perceber as pretensões francesas em assumir o

Império no lugar dos imperadores alemães, e por outro houve a negação do poder imperial por

parte dos reis da França. Afirmava-se que não haveria poder temporal superior ao do rei, de

forma que cada rei teria em seu reino o mesmo direito que o imperador tem no império, tanto

que Luis IX afirma que “o rei recebe o poder só de Deus e de si mesmo” (VOEGELIN, 2013,

p. 67). Ainda para reiterar o poder do rei, João de Paris, nesta mesma época (século XIII),

afirmava que a comunidade ideal seria uma governada por um rei, já que este proporciona

uma coesão social e guia a comunidade para um “bem civil comum” (VOEGELIN, 2013, p.

68). Disso, percebe-se que o rei possui o poder temporal, na busca do bem comum, e também

o espiritual, por receber o poder de Deus.

68

Desses pressupostos, aumenta-se gradualmente o afastamento do poder régio francês

do poder da Igreja Romana, e avança para o sentido de que o primeiro se torna independente e

superior ao segundo. No início não havia uma dissociação completa dos poderes secular e

temporal, pois ainda era fator legitimador do poder régio a idéia de concessão de poder

espiritual dada por Deus diretamente ao rei. Assim, a Igreja mantém uma posição de destaque

na sociedade, mas deixa de possuir tanta força quanto o poder régio.

A importância da união dos poderes secular e temporal na figura do monarca fica clara

pelo fato de que muitos reis entre pelo menos os séculos XI e XIII realizavam a cura de

doenças, sendo considerados milagrosos e até por vezes santos (como Luis IX, o santo). Essa

habilidade de curar doenças era interpretada como algo provido ao rei por Deus e isso lhe

garantia legitimidade.

Há que se dizer que essa independência e supremacia do poder régio também resultou

em uma ruptura com o poder imperial. Esse aspecto Voegelin resumiu em: “A ideia imperial

está morta, e o reino e sua cultura nacional secular sob o comando régio erguem-se como

novo centro político” (VOEGELIN, 2013, p. 70).

Ainda que na monarquia Francesa se buscasse negar e diminuir o poder do Império,

isso de maneira alguma significava que para os reis franceses os limites ter-ritoriais da

abrangência de seu poder fossem suficientes. Pelo contrário, a monarquia fran-cesa idealizava

um dia conseguir unir sob seu poder os Impérios do Oriente e do Ocidente. Uma tentativa

para conseguir tal feito foi a união por meio de casamentos entre os filhos de reis franceses

com filhas de reis de outras nações, como a húngara. Outra tentativa foi por meio de alianças,

como no caso dos sérvios e dos búlgaros. E por fim as Cruzadas também representavam essa

vontade de expansão do poder real.

No século XIV, através do pensamento de Pierre Dubois, percebe-se a mudança de

paradigma enfrentada pela sociedade na época. Dentre os pensamentos de Dubois sobre o

poder hegemônico que a França deveria ter, há que se destacar a ideia de Confederação que

ele defendia. Ele acreditava que a estrutura organizacional da europa devia compreender uma

Confereração dos diversos Estados europeus soberanos, sob a organização do poder régio

francês, e nela haveria um tribunal que arbitraria os conflitos surgidos entre os Estados,

podendo aplicar sanções como embargos de alimentos e suprimentos e até mesmo a guerra.

Voegelin afirma que o pensamento de Dubois evidencia não somente o surgimento da ideia de

uma constituição internacional, mas principalmente o fato de que:

69

“mais importante do que o conteúdo dessa estrutura é o fato de naquele tempo já existirem

jurisconcultos intelectuais progressistas, para quem a ideia cristã imperial tinha perdido sua

força evocativa tão completamente que parecia aconselhável uma reconstrução da europa a

partir das forças das nações particularizadas sob uma hegemonia” (VOEGELIN, 2013, p.

77).

Em síntese, as mudanças sofridas na França refletem uma vontade de abolir as

instituições existentes na época, pois não mais condiziam com as evocações da sociedade. E

isso gerou uma transformação que resultou na monarquia absolutista.

Agora que foram expostas as características das monarquias inglesa e francesa, cabe

apresentar a comparação entre ambas para que resultem claras suas diferenças. Na Inglaterra

houve o crescimento de instituições e a formação precoce de uma sociedade política nacional

forte, que se sobrepôs à administração régia, no século XVII, diferentemente da França, que

teve a sua centralização no poder régio mais tardia, o que acabou resultando em uma

sociedade cujo crescimento nacional teve forte caráter régio e absolutista.

Na Inglaterra o poder régio era forte e centralizado e impunha aos diferentes grupos

sociais o dever de participação em assembléias, nas quais representavam os condados e vilas.

Assim, os diferentes extratos acabaram por agir ativamente como grupos, por meio de

deliberações, criando uma consciência de participação política. Enquanto isso, em países

continentais como a França, o poder régio não era forte e centralizado e as funções reais

foram delegadas, de forma que os grupos sociais não precisavam se unir e não adquiriram a

noção de participação social e quando a monarquia passou a ser absolutista, a sociedade não

sabia se organizar como uma força coletiva e coesa, o que fez com que os movimentos sociais

se tornassem revoltas. Nesse sentido, resume Voegelin:

“Quando a monarquia francesa alcançou a fase do absolutismo após a Guerra dos Cem

Anos, não dispunha de uma sociedade articulada que pudesse contrabalançar o poder régio

concentrado e salvar as liberdades feudais durante o período perigoso, de modo a que

reemergissem como as liberdades da nação. Quando o terceiro estado finalmente se

articulou, o processo tomou a forma de uma revolta social.” (VOEGELIN, 2013, p. 80)

A conclusão acerca da representação e consequentemente da legitimidade desses dois

exemplos de diferentes organizações políticas é a de que na Inglaterra houve o surgimento de

um sistema no qual os vassalos do rei tinham o dever de enviar representantes que

deliberariam e negociariam com o rei. Tal sistema foi criado e imposto “de cima para baixo”,

ou seja, foi determinado por quem tinha mais poder político, cabendo o cumprimento a quem

tinha menos poder político. Mesmo que a ideia de tal sistema tenha surgido das camadas com

maior poder político, a longo prazo isso criou uma consciência de articulação política e

identidade nacional, fortacelendo o instituto da representação indireta por meio dos membros

70

do parlamento, o que grantia legitimidade ao poder político. E quando surgiram problemas

entre a população inglesa e o monarca, a solução encontrada foi através da articulação política

que resultou na promulgação da Magna Carta, na qual o não-rompimento da nobreza com o

poder régio demonstra que este, embora apresentasse vícios em aspectos práticos, como o

abuso de poder, ainda era legítimo e podia continuar a ser representativo, desde que se

corrigissem os problemas.

Já na monarquia francesa, a falta de centralização do poder dos monarcas antes do

absolutismo fez com que eles não possuíssem condições de exigir de seus vassalos o

cumprimento de deveres como os de deliberação junto ao rei. Assim, a alternativa que surgiu

como legitimidora do poder régio foi a imanentização do poder secular na figura do monarca,

que passava a assumir esse poder junto com o temporal. Dentro desse sistema de “legitimação

religiosa”, o rei não sentia necessidade de convocar seus vassalos a opinar sobre questões

políticas, pois o respaldo religioso lhe bastava para conseguir centralizar o seu poder de forma

legítima. Destaca-se que, assim como houve abuso de poder na Inglaterra, também o houve na

França, mas em decorrência de a população não estar habituada a uma organização articulada

e não possuir uma estrutura representativa montada de forma que ela pudesse manifestar a sua

insatisfação, a alternativa que restou foram as revoltas. Só que estas não dão margem à que se

corrigissem os problemas, de forma que o governo pudesse se manter legítimo.

2.5. Representação na Nova Ciência da Política

O livro foi escrito a partir de conferências realizadas em 1951 na Universidade de Chi-

cago e, como já visto, serve de marco para a mudança de paradigma do pensamento de Voe-

gelin. Antes de iniciar a análise da obra, cabe introduzi-la com as palavras do próprio autor,

anos depois de ter escrito o livro, quando de suas reflexões autobiográficas:

“Concentrei-me no problema da representação e na relação entre a representação e a verda-

deira existência pessoal e social. Era óbvio, por exemplo, que o governo da União Soviética

não estava no poder em virtude de eleições representativas no sentido ocidental; isso no en-

tanto não impedia que fosse representativo do povo russo, mas em virtude de quê? Na épo-

ca, chamei a isso o problema da representação existencial. Descobri que a representação

existencial sempre é o núcleo central do governo bem-sucedido, independentemente dos

procedimentos formais que alçam o governo existencialmente representativo à sua posição.

Em uma sociedade comparativamente mais primitiva, onde o grosso da população é incapaz

de debater racionalmente e organizar partidos políticos que determinem quais as questões

de interesse público, um governo deitará suas bases sobre forças tradicionais ou revolucio-

nárias sem o recurso à instituição eleitoral. A tolerância, pela população, de um governo

nesses moldes dependerá de seu maior ou menor sucesso na consecução dos objetivos que

orientam a instituição de qualquer governo: a garantia da paz interna, a defesa do reino, a

administração da justiça e o cuidado com o bem-estar da população. Se o governo desem-

penha de forma moderadamente satisfatória essas funções, os procedimentos que lhe permi-

71

tem chegar ao poder são de importância secundária. Descobri depois que essa representação

existencial era empiricamente complementada, em certas sociedades históricas, por uma

reivindicação do que à época denominei representação “transcendental”. Por representação

transcendental entendia a simbolização da função governamental como representante da or-

dem divina no cosmos. É este o simbolismo fundamental, que aparece pela primeira vez

nos impérios do Antigo Oriente Próximo, onde o rei representa o povo perante o deus e o

deus perante o povo. Nada mudou nessa estrutura fundamental da ordem política, nem

mesmo nos impérios ideológicos modernos. A única diferença é que o deus foi substituído

por uma ideologia da história, agora representada pelo governo investido de sua função re-

volucionária.” (VOEGELIN, 2008, p. 105)

A mudança paradigmática que esse livro representa, como já visto, é o câmbio de uma

teoria das ideias políticas pelo estudo da existência histórica do homem na sociedade e no

mundo, pois se passa a entender que as ideias não têm história, quem tem são os humanos e

sua existência nas sociedades e é nessas organizações humanas que, posteriormente, surgem

as ideias. Assim, a existência e atuação na sociedade é o que faz com que os seres humanos se

sintam participantes da história, por meio da união com outras pessoas. Então, existir em uma

sociedade é se perceber em conexão com a história e essa conexão permite ainda a vinculação

com algo que vai para além da história, que é eterno, o Ser.

Mas esta é uma análise ampla e complexa que deve ser vista desde as primeiras liga-

ções humanas até a expansão mais ampla que foi tratada acima. Para compreender todos esses

níveis de relacionamentos, Voegelin analisa o conceito de representação, pois é por meio dela

que o ser humano passa a atuar e existir na história e é por isso que ele classifica o problema

da representação como sendo o problema central da teoria política. Como a abrangência do

estudo do autor é bem ampla, para ele não basta o estudo das instituições, precisando-se en-

tender a forma pela qual os humanos atuam na história. Essa conexão do homem com o eterno

cria no próprio ser humano o que Voegelin chama de representação de uma verdade transcen-

dente. Para compreender toda essa estrutura não basta, como já dito, o estudo das instituições,

mas é preciso que se entenda a interpretação que as pessoas fazem da realidade.

Retomando o que já foi tratado no tópico de crítica ao positivismo, Voegelin percebe

que antes de haver uma “ciência” que explique a realidade, há uma autointerpretação das so-

ciedades e é desse ponto que o autor inicia seus estudos da representação. O estudo dos sím-

bolos pelos quais a sociedade se autointerpretam é uma forma de produzir conhecimento se-

melhante à dos clássicos, como Platão e Aristóteles, pois naquela época os princípios da teoria

política e da filosofia eram unidos. Dessa forma, percebe-se que o autor entende que a filoso-

fia e a política devem prosseguir juntas, já que a sua separação resultou em uma degradação

da ciência política em um instrumento do poder.

72

O autor explica que em momentos de estabilidade a ciência política tende a se degra-

dar em instrumentos de poder, ao passo que em momentos de revolução e crise há um estudo

mais amplo da ciência política, pois ela passa a abranger a existência humana na sociedade, na

história e na ordem em geral, indicando períodos mais férteis ao estudo dos problemas fun-

damentais da existência. Para exemplificar períodos de crise nos quais há uma ampliação da

teoria política, ele indica três grandes crises no ocidente. A primeira é a crise helênica, que é

explicitada pelos pensamentos de Platão e Aristóteles; a segunda é a crise de Roma e do cris-

tianismo, que possibilitou a teoria do Civitas Dei, de Santo Agostinho; e como terceira ele

indica que seja atual e cujo início se percebe na filosofia de Hegel sobre a lei e a história.

Para compreender melhor o que é uma sociedade que se auto-interprete como

representante de uma verdade transcendente, cabe fazer referência à introdução de “Ordem e

Historia”, vol. 1. Em relação à interpretação, Voegelin não exclui a subjetividade do ser

humano e, pelo contrário, afirma que é uma obrigação do indivíduo compreender a sua

condição e parte dessa condição é a ordem social na qual ele vive. Só que essa ordem é

constantemente modificada pelas pessoas, pois o ser humano é um ator social e não somente

um espectador. E como ator social, age através do processo de dar significação à realidade e

assim a altera. O ser experiencia a si mesmo e é capaz de usar a linguagem para chamar essa

experiência consciente pelo nome de “Homem”. E para Voegelin a experiência e a significa-

ção são questões muito importantes que não podem ser postas à parte.

Deve-se explicar também a relação entre a autointerpretação dos seres humanos e a

sociedade como representante de uma verdade transcendente. Os seres humanos ao interpreta-

rem a sua participação na existência, o fazem por meio da análise da duração e passagem do

tempo. Os homens percebem que os seres que aqui estão substituíram os que já existiram e os

que virão no futuro substituirão os do presente. Assim, há o que Voegelin chama de hierarquia

na existência, desde a efemeridade dos homens individuais até a eternidade dos deuses, e

afirma que a experiência da hierarquia fornece um pedaço importante do conhecimento sobre

a ordem do ser. E esse conhecimento pode se tornar uma força ordenadora da existência do

homem e ele também representa um mistério.

Esse mistério que o ser humano enfrenta é a relação com a duração e passagem do

tempo. Ao mesmo tempo em que se enxerga como um ser de curta duração, ele possui um

papel na sociedade e no mundo, e a sociedade permanecerá para além de sua existência, assim

como também o mundo continuará mesmo que as sociedades existentes deixem de existir e

novas surjam. Isso faz com que ele, como participante da “existência”, tenha contato e um

73

papel também com algo maior e mais duradouro que ele, o “ser”. Na existência se experiencia

a mortalidade, ao passo que no ser, a imortalidade. E esse ponto de contato entre o existir e o

ser, que é típico do ser humano, é o limite dado pela perspectiva de participação, entre o exis-

tir e o ser. Voegelin afirma, de forma poética, que a existência é uma pegada sutil que deixa-

mos no ser. E é nesse sentido que a sociedade deve se interpretar como sendo representante de

uma verdade transcendente.

Esclarecidos esses pontos, cabe voltar à análise dos diferentes tipos de representação

no livro A Nova Ciência da Política. No início do livro, o autor trata dos conceitos de repre-

sentação elementar e existencial. Primeiro analisa-se os elementos essenciais, que consistem

naqueles que são exteriorizados pela sociedade, ou seja, compreendem os símbolos criados

para a auto-interpretação da sociedade. Neste nível os conceitos referem-se aos dados do

mundo exterior, à construção descritiva das instituições.

A simples análise descritiva das instituições é importante para compreender a autoin-

terpretação, mas é também considerada por Voegelin como um fator problemático no que

tange aos conceitos políticos. Como exemplo de problema, ele trata dos sistemas representati-

vos e faz uma análise descritiva das instituições com o objetivo de compreender o que pode

ser considerado um sistema representativo. O autor explica que as pessoas facilmente concor-

dariam que os sistemas americano, inglês, suíço e francês são sistemas representativos para os

seus cidadãos, e que portanto as instituições são consideradas representativas quando os

membros da assembleia legislativa ocupam seus lugares em decorrência de eleições popula-

res.

E em relação ao poder executivo, o critério poderia ser o mesmo, como as eleições

presidenciais dos Estados Unidos, mas também seria representativo o sistema inglês no qual a

maioria do comitê parlamentar comporia o ministério, ou mesmo pelo sistema suíço, no qual

há a eleição do executivo pelas duas casas em conjunto ou até se concordaria com um sistema

monárquico, desde que as decisões do monarca tivessem convalidação de um ministro respon-

sável. Outro exemplo que o autor dá em relação a diversidade de conceitos que podem ser

aceitos pelo âmbito elementar da teoria política é o fato de alguns defenderem questões dife-

rentes também em relação à outra instituição política, os partidos políticos. Ele afirma que

seria possível argumentar que “um sistema representativo é verdadeiramente representativo

quando não há partidos, quando há um partido, quando há dois ou mais partidos, quando dois

partidos podem ser considerados como facções de um mesmo partido.” (VOEGELIN, 1982,

p. 37).

74

De maneira simplificada, a conclusão sobre a análise dos elementos essenciais que o

autor pretende demonstrar é a de que “o tipo elementar das instituições representativas não

exaure o problema da representação.” (VOEGELIN, 1982, p. 38). A análise das instituições

ilumina uma parte importante da teoria política, que é a questão empírica e descritiva da reali-

dade, mas ela não é suficiente para criar um conceito dentro da teoria política e é neste ponto

que inicia o próximo nível dentro da teoria política, o da “existência”. A representação exis-

tencial surge do trabalho do teórico, ou seja, a partir da análise dos símbolos elementares o

cientista político cria outros símbolos e analisa as sociedades e seus símbolos autointerpretati-

vos e o papel da sociedade no contexto histórico.

Para ilustrar o ponto de transição entre a análise da representação elementar e da exis-

tencial, o autor cita outra questão polêmica, que é o caso do governo da União Soviética. Po-

de-se questionar se o governo representa efetivamente o povo ou não, já que ele opera por

meio de uma enorme máquina militar. Mas não se pode questionar que ele representa uma

sociedade política capaz de atuar na história, já que os atos tanto do legislativo quanto do exe-

cutivo são efetivos internamente. Assim, percebe-se que a representação existencial busca não

somente responder as questões de autointerpretação, mas vão além e questionam a capacidade

de atuação da sociedade na história.

Para compreender a atuação das sociedades na história, o autor afirma que a condição

para que a atuação seja possível é a articulação. Este ponto é bem analisado quando “a socie-

dade está prestes a começar a existir, quando está prestes a se desintegrar, ou quando está

atravessando uma fase crucial de sua história.” (VOEGELIN, 1982, p. 41). O processo de

articulação gera um representante que age pela sociedade. O autor afirma que as questões da

articulação foram analisadas por Fortescue para compreender os reinos da Inglaterra e da

França, questões que neste trabalho foram analisadas na parte de representação política da

História das Ideias Políticas. E afirma também que, posteriormente, quando da consolidação

das sociedades políticas da Idade Média, o assunto da articulação foi tratado por Hauriou.

Neste ponto, cabe maior destaque ao que Voegelin diz a respeito da teoria de Hauriou.

Para Hauriou o poder é legítimo por funcionar como representante da instituição que é o Esta-

do e a primeira tarefa do poder governante é a criação de uma comunidade politicamente uni-

ficada, ou seja, pela transformação da sociedade de um todo desorganizado preexistente em

um corpo organizado para agir. O governante é encarregado de realizar essa ideia historica-

mente e isso se aperfeiçoa quando há o consentimento dos membros da sociedade, sendo que

o governante tem autoridade quando ele consegue se tornar o representante dessa ideia. Já a

75

análise que Hauriou faz da relação entre o poder e a lei permite concluir que para um governo

ser representativo, não basta que ele o seja no sentido constitucional, que é o que Voegelin

chama de representação elementar, mas é preciso que o governante seja representativo no

sentido existencial. Se isso não ocorrer, independentemente do governo ser representativo

constitucionalmente, se não for existencialmente, um governo que seja o substituirá, e o re-

presentante existencial não necessariamente será dos mais representativos no sentido constitu-

cional. A relação entre o poder e a lei em Hauriou é retratado abaixo:

“A partir dessa concepção, Hauriou deriva um conjunto de proposições referentes às rela-

ções entre o poder e a lei: (1) A autoridade do poder representativo precede existencialmen-

te a regulamentação desse poder pelo direito positivo. (2) O poder, propriamente dito, é um

fenômeno jurídico em virtude de sua base institucional; na medida em que o poder tiver au-

toridade representativa, poderá produzir o direito positivo. (3) A origem do direito não pode

ser encontrada nas regulamentações legais, senão que deve ser buscada na decisão pela qual

uma situação litigiosa é superada pelo poder organizado.” (VOEGELIN, 1982, p. 45).

Neste ponto, Voegelin traça a crítica de que somente um tipo de articulação seja con-

siderado representativo. O exemplo é que não se pode considerar que somente são representa-

tivas as sociedades cuja legitimidade tenha por base a legalidade constitucional, pois ele con-

sidera isso um “provincianismo político e civilizacional” (VOEGELIN, 1982, p. 46). O autor

ainda afirma que essa forma de pensar gera distúrbios internos em algumas sociedades, pois

tenta-se aplicar um modelo das instituições representativas no sentido elementar em socieda-

des que as vezes não possuem as condições existenciais para esse tipo de representação ele-

mentar.

Neste ponto do livro o autor volta a questionar então sobre o papel do teórico dentro

da construção da teoria. As questões envolvem principalmente saber como que pode o teórico,

que está na realidade social, analisá-la de forma existencial? E a resposta é que não basta que

se emitam opiniões, ou que se busque a diferenciação e comparação dos símbolos, mas é ne-

cessário que se tente “formular o sentido da existência, explicando o conteúdo de um gênero

definido de experiências. Os argumentos usados não são arbitrários, e sim derivam sua vali-

dade do conjunto de experiências ao qual a teoria deve permanentemente referir-se para pos-

sibilitar o controle empírico.” (VOEGELIN, 1982, p. 56). A formulação do sentido da exis-

tência deve ser entendida como a ordem da alma, haja vista ela fornecer o “padrão para a me-

dida e a classificação da variedade empírica dos tipos humanos” e com isso é possível enten-

der também a ordem social na qual estão inseridos os seres humanos.

Esta análise que relaciona o ordenamento da alma humana com a posterior ordenação

da sociedade é o que se pode chamar de representação transcendente. Para compreender me-

lhor este terceiro tipo de representação, Voegelin explica que “Tornar-se-ia então necessário

76

distinguir entre a representação da sociedade por seus representantes articulados e uma se-

gunda relação, na qual a própria sociedade se torna o representante de algo que está além dela,

de uma realidade transcendente” (VOEGELIN, 1982, p. 50). Neste nível já não bastam as

autointerpretações que os seres criam para poder viver em sociedade e nem tão pouco bastam

os símbolos criados pelo teórico político para analisar as sociedades. É preciso, então, com-

preender a ordem da alma humana e a relação dessa ordem com o que é exteriorizado e dá aso

à sociedade e, ainda além, o papel da sociedade dentro da história. É nesta parte da teoria que

se percebe a relação do ser humano imortal como pertencente de algo eterno, que vem antes

dele e que continuará depois, ou seja, que ele atua na história por meio da sociedade que está

inserido. Este é o estudo da psique, onde a transcendência é experimentada. O filosofo místi-

co, que experiencia a transcendência, se torna o representante de uma nova verdade e os sím-

bolos que ele cria para explicar a ordem social formam o núcleo dessa teoria e é assim que,

por meio desses filósofos, é possível o contato com o mistério do esclarecimento.

Vistas estas questões teóricas e metodológicas, cabe o retorno do estudo da represen-

tação. No âmbito transcendental, governar significa assegurar a harmonia entre a ordem da

sociedade e a ordem cósmica e nesse sentido o representante representa a sociedade, já que

ele “representa na terra o poder transcendente que mantém a ordem cósmica” (VOEGELIN,

1982, p. 50). O exemplo de uma sociedade a qual se atingiu na prática esse âmbito transcen-

dental, de acordo com Voegelin, foi a civilização grega clássica, na qual a articulação da soci-

edade política ia até o nível do cidadão como unidade representável, já que cada cidadão ex-

perienciou individualmente a responsabilidade de representar a verdade da alma.

E neste momento da teoria, Voegelin passa a transcorrer sobre as verdades, para que

seja possível compreender a relação entre os humanos e da vida em sociedade com o trans-

cendental. O autor afirma que há uma verdade do homem que é oposta a verdade representada

pela sociedade e que o conflito entre essas verdades se ampliou com o surgimento do cristia-

nismo. Há três tipos de verdades, a “cosmológica”, que surge nos antigos impérios, a “antro-

pológica”, que aparece em Atenas e abrange os problemas ligados à psique, que é entendida

como a parte de percepção da transcendência e, por fim, há a verdade “soteriológica”, que

surge com o cristianismo. De acordo com o autor, os três tipos de verdade encontravam-se em

conflito no período do Império Romano, para decidir sobre o monopólio da representação

existencial.

Explicando melhor, mais ainda assim de forma breve, a verdade cosmológica a que o

autor se refere é a dos impérios existentes antes do período grego clássico, e também se pode

77

dizer das sociedades orientais. O que em comum havia em todas elas era uma percepção da

realidade mundana como análoga à ordem cósmica, de forma que o mundo é entendido como

um cosmion. Há então um período de crise, pois os símbolos existentes já não correspondem

às necessidades das comunidades. Essa crise ocorre no âmbito dos elementos essenciais, ou

seja, nos símbolos autointerpretativos. E então a analogia com o cosmos é substituída pela

analogia com os próprios seres humanos, e é quando surge a verdade antropológica, na qual o

Homem é a medida de todas as coisas. Quando surge o cristianismo, e este é um ponto que diz

mais respeito às comunidades ocidentais, havia ainda elementos da verdade cosmológica, da

antropológica e surgiu o que Voegelin denominou verdade soteriológica. Os elementos são

imiscuídos por causa do contato de diferentes povos, devido à conquistas e guerras. A verdade

soteriológica trata da salvação dos seres humanos. Essas formas de verdade devem ser perce-

bidas na representação pública da verdade transcendente, ou seja, no papel do representante

existencial e da verdade que a própria comunidade representa na história.

O autor afirma que quando ocorreu o conflito entre essas diferentes verdades, estava

acontecendo uma disputa política a respeito do culto público do Império. No plano elementar,

havia por parte dos teólogos cristãos a oposição entre a verdade cristã e a inverdade pagã, mas

Voegelin afirma que na verdade essa era uma luta pela representação existencial, embora os

autores da época não percebessem isso com tanta clareza. O autor também afirma que havia

no cristianismo uma substância revolucionária incompatível com o paganismo, e que esse

elemento era a desdivinização do mundo (VOEGELIN, 1982, p. 79). A crença cristã é a de

que deve-se adorar e servir somente a Deus e há uma separação entre Ele e a sociedade huma-

na e o autor afirma que há uma facção religiosa e metafísica no cristianismo já que há uma

divisão contra a divindade que anima o mundo de forma harmoniosa. Voegelin diz que esses

fatores constituem uma revolta política (VOEGELIN, 1982, p. 80), já que o ataque contra os

diferentes cultos existentes, vindo de uma religião monoteísta, significa o ataque a própria

estrutura do Império Romano.

O que resultou dessa separação foi o que o autor chamou de dupla representação do

homem na sociedade. Ele se refere à representação feita pelo império e a pela igreja, já que no

sentido cristão, o homem não poderia ser somente representado pela organização do poder de

uma sociedade política, necessitando da representação feita perante Deus pela igreja. O que

resulta disso é que a esfera de poder imperial é radicalmente desdivinizada e se torna tempo-

ral, e a análise de Voegelin é a de que os problemas modernos da representação dizem respei-

78

to à redivinização da sociedade. A desdivinização significou a separação entre as religiões

politeístas e a monoteísta, mas a redivinização não significa o retorno ao estado anterior.

As ordens espiritual e temporal, para a sociedade ocidental cristã, tinham como repre-

sentantes existencial e transcendental o papa e o imperador. E é a partir dessa comunidade

que, de acordo com Voegelin, surgem os problemas de representação das sociedades moder-

nas.

O autor afirma que o conjunto de símbolos auto-interpretativos da sociedade moderna,

foram criados por Joaquim de Flora e presidiriam até hoje. A parte essencial da teoria de Joa-

quim que se manteve é a estrutura da história dividida em três eras. Isso ocorre porque, de

acordo com Voegelin, após a teoria de Joaquim, as teorias de diversos outros autores também

compreendem uma sociedade com três fases históricas. Para Joaquim, houve a era do Pai,

depois a de Cristo e posteriormente a do Espírito e Voegelin afirma que é possível reconhecer

variações desse símbolo na história antiga, medieval e moderna, bem como nas teorias de

Comte, Hegel e Marx. Para Comte havia a fase teológica, a metafísica e a científica, para He-

gel havia três estágios da liberdade e realização espiritual auto-reflexiva, enquanto que para

Marx havia a comunismo primitivo, a sociedade de classes e o comunismo final.

Na época de Joaquim de Flora, no século XII, a sociedade ocidental estava em rápido

crescimento, e já no século XVIII surge a ideia de progresso como um processo intramunda-

no, sem irrupção transcendental. Assim, a imanência que tem por base Deus, ou um ser su-

premo, é substituída por um outro misticismo, que é o de um estado de perfeição, alcançado

pelo ser humano através do progresso. Nesse processo, o ser humano seria capaz de criar um

paraíso terrestre, mas para tanto, os teóricos criam em suas teorias uma “transfiguração revo-

lucionária da natureza” (VOEGELIN, 1982, P. 93) do ser humano, que Voegelin critica por

acreditar que o ser humano não pode transformar sua natureza, como se fosse por um milagre.

E dessa forma ele entende que as teorias que envolvem conceitos nesse sentido são instrumen-

tos do poder.

Explicando um pouco melhor esse processo e a crítica de Voegelin, com a ideia de

progresso, o ser humano passa a acreditar que conseguiria realizar na terra uma sociedade

perfeita, equivalente às ideias de paraíso terrestre. Mas para que isso fosse possível, as pesso-

as teriam que alterar a sua natureza para que ela consiga estar de acordo com o paraíso criado

na terra. Só que como houve historicamente a separação entre o elemento divino e o ser hu-

mano, ao buscar realizar um paraíso terrestre, as pessoas são confrontadas com sua incapaci-

dade de preencher o espaço do divino, que foi deixado. E assim surge o que o autor chamou

79

de “redivinização” da sociedade, pois no espaço que anteriormente foi deixado pelo ser divi-

no, passou a ser ocupado pelo próprio ser humano e a sua busca por uma participação mais

concreta na essência divina, por meio de experiências gnósticas. Essas experiências gnósticas

consistem em uma forma de conhecimento intuitivo, que é criado pelo ser humano enquanto

ser divino, sendo, portanto, um conhecimento apresentado como incontestável. O autor ressal-

ta que há diferentes gnoses que surgem nas sociedades com o passar do tempo.

O autor também ressalta que no século XVIII, ao mesmo tempo que surgiu a ideia de

progresso, surgiram os primeiros textos retratando o declínio da civilização ocidental. E então

se pergunta como pode uma sociedade progredir e declinar ao mesmo tempo. E a resposta que

ele dá é que “a morte do espírito é o preço do progresso” (VOEGELIN, 1982, p. 99), expli-

cando melhor, quanto mais os seres humanos empenharem suas energias na salvação pela

ação imanente no mundo, mais eles se afastam da vida do espírito, de forma que “o próprio

êxito da civilização gnóstica é a causa de seu declínio” (VOEGELIN, 1982, p. 99). Mas esse

processo tem um limite, que é atingida quando uma “seita” ativista se diz representante da

verdade gnóstica e organiza a sociedade sobre seu domínio, criando o totalitarismo.

Percebe-se então que a crítica recai sobre as experiências gnósticas, que são uma for-

ma de conhecimento que está dissociado do divino. Primeiro o conhecimento era ligado ao

divino, depois houve uma separação entre o que seria o mundo e as ideias divinas do que é

imanente. Os homens então se afastaram do que era divino e o espaço que era ocupado pelo

divino foi substituído pelo ser humano, que passa a ter, ele mesmo, um caráter divino. Assim

acredita-se ser possível construir na terra uma sociedade que com base nos conhecimentos

humanos dissociados do divino, seria uma sociedade perfeita, alcançada pelo progresso. Esse

processo no qual há a divinização do ser humano e do conhecimento por ele mesmo produzi-

do é chamado de “redivinização” e esses conhecimentos passam a ter um peso muito grande,

sendo considerados inquestionáveis. O que Voegelin critica é o processo de “redivinização”

da sociedade e o afastamento que ocorre entre o homem e Deus, assim como faz severas críti-

cas à inquestionabilidade imposta pelos seres humanos ao conhecimento por eles mesmos

produzidos. O autor chega a falar da proibição de perguntar, e que quem se recusa a seguir

essa forma de conhecimento que ele chama de gnóstica é posto ao exílio e ao esquecimento

intelectual.

Os movimentos gnósticos geraram uma erupção revolucionária, afetando a representa-

ção existencial. As revoluções gnósticas tinham algumas características, sendo a primeira que

elas precisavam de uma causa. Hooker, no século XVI, analisa as causas dos movimentos

80

puritanos, e afirma que para promover uma causa a pessoa deveria criticar severamente os

males sociais em algum lugar onde pudesse ser ouvida pela multidão e de forma frequente.

Isso levaria os ouvintes a crer que os oradores fossem pessoas de grande integridade, já que

somente homens bons se preocupariam tanto para combater o que fosse mal. E, depois disso,

os oradores deveriam concentrar os ressentimento popular sobre o governo instituído, gerando

insatisfação generalizada e posteriormente insurgindo com uma nova forma de governo, como

uma forma de solução dos problemas do governo anterior.

A princípio esses revolucionários gnósticos baseavam suas afirmações nas escrituras

bíblicas, mas posteriormente, com o afastamento do cristianismo, outros métodos foram cria-

dos. Voegelin aponta que dois métodos foram criados, sendo o primeiro a criação do que ele

chamou de “alcorão”, mas na verdade compreende as teorias que vieram substituir as teorias

que tinham por base o cristianismo, ou seja, aquelas que eram baseadas em conhecimentos

humanos que fossem considerados dignos de serem preservados, como a enciclopédia preten-

dida por Diderot e D’Alembert, que conteria todos os conhecimentos humanos, ou a teoria de

Comte e até mesmo os trabalhos de Karl Marx. O segundo recurso consiste no fato de a codi-

ficação criada ser identificada como possuidora da verdade, sendo um alimento espiritual e

intelectual. O autor afirma que nos regimes totalitários esse recurso é bastante eficaz, pois cria

uma censura voluntária por parte dos seguidores, que se recusam a ler o que pudesse ser uma

crítica ou desrespeito de suas crenças. Assim, há um prejuízo do debate público das questões

que envolvam a verdade da existência humana em sociedades nas quais o gnosticismo atingiu

um grande nível de influência social, principalmente se ele atingir os meios de comunicação,

ou instituições educacionais, por exemplo. Para Voegelin, a “revolução dos gnósticos objetiva

o monopólio da representação existencial” (VOEGELIN, 1982, p. 111).

O autor entende que a tensão da verdade da alma e da verdade da sociedade não po-

dem ser eliminadas, nem uma das duas. Os dois tipos de verdades existem e existirão sempre,

e a tensão entre eles é uma estrutura permanente na civilização. Não adianta tentar resolver da

mesma forma que Platão, que tentou fazer da ordem da alma a ordem da sociedade, já que a

polis encarnaria a verdade da alma sob o governo dos filósofos místicos. Ou também de nada

adiantou tentar transformar a Igreja em uma instituição civil, pois isso gerou uma competição

pela representação existencial e diversas guerras. Voegelin destaca o pensamento de Hobbes,

no qual a “ordem pública só era genuína se o povo a aceitasse livremente e que a livre aceita-

ção só era possível se o povo entendesse a obediência ao representante público como seu de-

ver de conformidade com a lei eterna” (VOEGELIN, 1982, p. 116).Para Voegelin, esse pen-

81

samento revela uma pretensão gnóstica de que houvesse uma constituição eterna e isso só

faria sentido se a verdade da alma deixasse de agitar o homem, mas essa “agitação” não pode

ser anulada, já que as experiências de transcendência pertencem a própria natureza humana,

como se percebe pela existência da filosofia ou do cristianismo.

De todo esse panorama das teorias gnósticas, Voegelin conclui que a Modernidade es-

tá no fim. Cabe retomar a ideia de que a desdivinização da sociedade e da alma humana, pelo

afastamento criado após o surgimento do cristianismo, não faz com que se retorne ao paga-

nismo, mas cria uma redivinização. A verdade da alma é reprimida em dogmas criados pelos

gnósticos e isso gerou a atrocidade dos governos totalitários. Outras formas de apreensão dos

resultados do gnosticismo consistem no comunismo, no progressivismo, positivismo e cienti-

ficismo e ainda, de acordo com Voegelin, “estão penetrando em outras áreas sob o nome de

“ocidentalização” e desenvolvimento dos países atrasados” (VOEGELIN, 182, p. 120).

O autor afirma que a natureza do homem não muda e que embora se tente reprimir a

verdade da alma, ela sempre se fará presente. Essas teorias que tentam reprimir esse aspecto

do ser humano podem ser atuais e durar na história, mas o autor acredita que não é possível

que a repressão dure para sempre, de forma que a estrutura gnóstica da realidade como está

posta, tende ao seu fim, ela é autodestrutiva.

Além do problema da supressão da verdade da alma humana, o autor também critica o

que ele chama de “imanentização do eschaton”, que é a tentativa de criação de um paraíso

terrestre. Esse elemento é falacioso porque as sociedades humanas apresentam, assim como

tudo que existe na terra, uma fase de crescimento e declínio, não se podendo falar em uma

sociedade que seja ideal a ponto de ser perfeita e imutável. A manutenção da sociedade gnós-

tica é autodrestrutiva por precisar manter medidas que aumentam as perturbações que condu-

zem à guerra, que são a repressão da verdade da alma humana e a ideia fantasiosa de um para-

íso terrestre. Para sintetizar essa ideia, afirma Voegelin: “Não pode haver paz, porque o sonho

não pode ser transformado em realidade e a realidade ainda não rompeu o sonho” (VOEGE-

LIN, 1982, p. 125).

Por fim, o autor termina o texto retomando que primeiro ocorreu a imanentização do

Espírito, que abandonou Deus em sua transcendência e depois houve a imanentização do es-

chaton, ou seja, do paraíso na terra. Voegelin afirma que as sociedades que aderiram ao gnos-

ticismo na primeira imanentização foram menos afetadas por ele em relação as que aderiram

posteriormente, já que o movimento gnóstico ganhou força. Ele afirma que a modernidade é

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um tumor na sociedade ocidental e que, como já visto, o gnosticismo tende a autodestruição.

Mas quando, de que forma e o que acontecerá depois são fatores que Voegelin deixa em aber-

to, afirmando que o desfecho é incerto e preferindo não especular sobre o futuro. Ele afirma

que possivelmente a destruição da sociedade gnóstica se dará por meio de guerras, mas que a

libertação da verdade da alma só pode ocorrer com a disciplina do intelecto, o desenvolvimen-

to da cultura teórica e da vida do espírito e a educação filosófica.

2.6. Representação e Legitimidade

Para Voegelin, os conceitos de representação e legitimidade estão intimamente

relacionados. O autor entende que só pode ser legítimo um governo que seja representativo.

No entanto, ele aborda diferentes conceitos de representação, devendo-se entender todos os

conceitos para conseguir explicar a legitimidade.

A representação elementar é a proveniente da autointerpretação da sociedade. Como as

sociedades e as pessoas que as compõem são bastante diversas, analisando a autointerpretação

não é possível chegar a um consenso sobre o que seja ou não legítimo, de forma que esse

âmbito da análise não serve para responder a questão central do trabalho sobre qual poder

seria legítimo ou não. Na sociedade moderna ocidental, o símbolo de autointerpretação que

seria mais condizente com a legitimidade é o de governos constitucionais, instituídos por

meio de eleições.

Já a representação existencial é formulada pelo teórico que analisa a sociedade e cria

símbolos específicos para a explicação política da sociedade. Nesse patamar a representação

não diz respeito ao que as pessoas entendem como sendo representativo, mas da relação entre

o ser humano e a história e como ele consegue atuar na história pelo pertencimento a uma

sociedade. Neste nível existir ou não um governo constitucional não é o bastante para

responder a questão da legitimidade. Um governo pode ser legítimo sem ser constitucional,

como por exemplo, o das sociedades cosmológicas ou da Grécia antiga. Assim como pode ser

constitucional sem ser legítimo, ou representativo, e nesse caso, um outro governo que seja

representativo no nível existencial toma o lugar do que seja representativo no nível

constitucional, já que só a constitucionalidade não basta. O critério que se entende como

principal é a capacidade de articulação social. E assim, estuda-se os fenômenos de

surgimento, desintegração e crises da sociedade.

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O último nível de representação, transcendental, é o que possui maior carga de

legitimidade. Neste âmbito se observa a capacidade de atuação da sociedade na história. O ser

humano é entendido como um primeiro elemento, que é finito, mas que tem contato com o

infinito por meio da sua atuação na história, que se dá pela participação na sociedade. Aqui a

verdade da alma humana está ou pelo menos deveria estar em conformidade com a sua

sociedade para a atuação na história.

A crítica que se faz é a de que essa relação transcendental com o que é eterno foi

reprimida e dessa forma outros tipos de relações tomaram o lugar da transcendental, criando

uma instabilidade em todos os seres humanos da sociedade ocidental de forma geral. O ser

humano se sente desconectado com a sua participação em algo maior e por isso a parte da

alma que foi reprimida está em desconformidade com o restante da existência humana, o que

gera insatisfações e guerras. Há a paz, mas ao custo da repressão do elemento transcendental

do ser humano, e o autor entende que isso cria uma situação de briga de forças que pode dar

margem a guerras. Dessa forma, o que se percebe é que embora haja legitimidade tanto nos

sentidos elementar e existencial, quando a análise passa ao nível transcendental, o ser humano

se encontra em conflito com ele mesmo e consequentemente com a realidade ao seu redor, de

forma que não é de se espantar de diversos conflitos e guerras surjam de formas muitas vezes

inesperadas e inexplicadas, já que a explicação não é aparente, mas interna no ser humano, na

sua parte que é relacionada com a transcendência.

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85

3. Crítica de Kelsen à Nova Ciência da Política

Após Eric Voegelin ter escrito e publicado o livro “A Nova Ciência da Política”, Hans

Kelsen escreveu uma crítica a esse livro. O primeiro aspecto que Kelsen trata no seu texto é

sobre a “cruzada contra o positivismo”. Ele defende que os avanços que a ciência fez nos

tempos modernos foi resultado da separação entre a ciência e a teologia. E que o positivismo é

a explicação da realidade feita sem recorrer à teologia ou qualquer outra especulação

metafísica.

O autor afirma que o positivismo não atribui valores absolutos, e que o absoluto em

geral e os valores absolutos em particular pertencem a uma esfera transcendental que está

além da experiência científica, que é o campo da teologia e de outras especulações

metafísicas. Ele acredita que em momentos de guerras, as fundações da ordem social

estabelecida precisam de uma justificação absoluta e é quando surgem especulações

metafísicas que servem como instrumentos ideológicos da política.

A primeira crítica que Kelsen faz a Voegelin é rebatendo que este último tinha

afirmado que o positivismo destruiu a ciência. Kelsen lembra que existem diferentes tipos de

positivismo e que Voegelin não define qual tipo está criticando, o que seria importante já que

o positivismo compreende diferentes tipos de sistemas teóricos, tendo todos eles em comum

somente o fato de que negam o recurso da especulação metafísica, que inclui a teologia e a

religiosidade. Para Kelsen, embora Voegelin esteja propondo uma nova ciência política, o que

ele quer é voltar à uma muito antiga, que já se provou ser uma pseudo-ciência, um

instrumento de definição dos poderes políticos, que é a especulação metafísica e teológica de

Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino.

Kelsen busca desconstruir as duas proposições contra o positivismo que são utilizadas

por Voegelin. A primeira é de que há a matematização das ciências humanas, já que os

métodos das ciências naturais são aplicados às ciências humanas. Kelsen afirma que esse

argumento é errado, porque embora o positivismo seja anti-metafísico e anti-teológico, há

uma escola de pensamento que distingue os problemas das ciências sociais para os quais se

deve usar métodos das ciências naturais com mais ou menos modificações, daqueles que outro

método totalmente diferente deva ser aplicado. Além de que Kelsen distingue as ciências

naturais entre aquelas que devem aplicar o método da causalidade, como a sociologia,

daquelas que devem fazer uso da imputação, que são as ciências que lidam com as normas,

como a ética e a jurisprudência.

86

A segunda proposição de Voegelin é de que o positivismo faz do uso do método o

critério para a ciência, ao invés de adequar o método à ciência estudada. De acordo com

Kelsen, ninguém mais insistiu nessa falácia do sincretismo de métodos, já que houve

preocupação com o fato de que o objeto das ciências sociais é totalmente diferente das

ciências naturais, de forma que outro método deve ser aplicado.

Kelsen acha estranho que Voegelin pretenda restaurar a ciência de modo que ela volte

a ser como era para Platão, Aristóteles ou Tomás de Aquino. Para ele, a ciência que esses

autores representam é imbuída de especulação metafísica e teológica, sendo resultado da

imaginação de uma esfera transcendental que é resultado dos desejos e temores dos seres

humanos. De acordo com a história da humanidade, se percebe que esses fatores eram

impeditivos do progresso da ciência. O autor, entretanto, faz uma ressalva no tangente às

questões das ciências sociais, já que recorrer à metafísica ou religião seria uma forma de

alcançar a solução para um dos maiores problemas dessas ciências, que é a questão da justiça,

a determinar o que é certo e errado. Mas afirma também que o retorno a essas teorias não

resultaria em solucionar as questões propostas, pois elas podem ser usadas para justificar

qualquer sistema social positivo.

Depois de criticar a teoria de Voegelin sobre o positivismo, Kelsen passa para a

análise crítica de teoria da representação. O livro de Voegelin remete às diversas fontes que

ele estudou ao longo dos anos para escrever a História das Ideias Políticas, desde as

sociedades mesopotâmicas e mongóis até autores contemporâneos a ele. E as críticas de

Kelsen por diversas vezes recaem sobre a interpretação que Voegelin faz das teorias de

diversos autores, como Max Weber, Maurice Hauriou, Fortescue e até mesmo Platão e

Aristóteles, sendo criticadas desde a má interpretação, omissões intencionais ou não até a

própria distorção das teorias dos autores. O presente trabalho não entrará nesses méritos por

diversos motivos, como o fato de que anteriormente o nível de detalhamento abordado não foi

tão minucioso quanto é o da escrita dos dois autores, prevalecendo as ideias de ambos e não

as interpretações que eles fazem às suas fontes.

Assim, o primeiro ponto a ser tratado é o da auto-interpretação da sociedade, que

Kelsen afirma ser rejeitado pelo positivismo por ser considerada uma má interpretação

ideológica da realidade. Há o destaque para o fato de que é difícil separar o que seja um

conceito resultante da auto-interpretação da realidade do que seja um conceito da teoria

política, já que ambos existem ao mesmo tempo na sociedade e se influenciam mutuamente.

Um exemplo que o autor cita é o da teoria de Marx, já que Voegelin interpreta que esta teoria

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consiste em um símbolo auto-interpretativo, pois os movimentos comunistas-marxistas atuam

na sociedade, ao passo que Kelsen afirma que a teoria marxista é uma teoria política, que

influencia as pessoas que atuam na sociedade, outro exemplo que o autor levanta é o da teoria

de Tomás de Aquino, que foi apropriada pela igreja católica na realidade política e social.

Kelsen afirma que quando uma teoria for considerada errada, isso deve acontecer porque até

mesmo uma teoria errada é uma teoria, e não porque foi baseada em símbolos auto-

interpretativos, sendo que nesse caso, os conceitos criticados por outra teoria. Ainda que um

símbolo seja usado na realidade política, não quer dizer que ele deva ser privado de seu

caráter de conceito teórico.

O fato de rejeitar uma teoria afirmando que os conceitos criados são somente auto-

intepretativos e que portanto não são conceitos teóricos é errado, de acordo com Kelsen. Para

ele, o que Voegelin tenta fazer é afirmar que somente uma teoria correta é uma teoria, se

valendo da dificuldade em separar o que seja um conceito teórico e o que seja

autointerpretação, e ignorando o que considerasse como um conceito autointerpretativo. Mas

que dessa forma, não haveria nenhuma teoria até hoje, porque não há uma que seja correta,

verdadeira ou absoluta, já que a história da ciência é feita por mudanças. Para Kelsen, a

distinção que Voegelin faz, ou deveria fazer, é a de que os conceitos de uma teoria política

devem ser objetivos, ao passo que os símbolos auto-interpretativos são subjetivos.

Kelsen afirma que o perigo que se corre é a de uma teoria política ser usada na

realidade política por aqueles que exercem o poder, tanto os governos quanto as oposições,

como um instrumento político. Ele afirma que tal perigo é ainda mais proeminente quando a

ciência política se recusa a ser livre de valores.

Em relação a representação elementar, Kelsen afirma que ela é uma forma de

incorporar na teoria política o fator auto-interpretativo que o próprio Voegelin quis afastar.

Isso porque a representação elementar é definida como sendo um símbolo autointerpretativo e

é também considerado um conceito pertencente a teoria política da Nova Ciência da Política.

Uma crítica ao conceito de Voegelin é que ele define a representação elementar como sendo

um conceito autointepretativo, mas se vale da definição da ciência política tradicional, mais

precisamente das instituições representativas democráticas, para formular esse conceito, ou

seja, a definição da ciência tradicional nada mais seria do que uma autointerpretação. Para

Kelsen, a sociedade como objeto social não existe se não no mundo exterior, ou seja, não

existe dentro do cientista.

88

É verdade que há dois diferentes conceitos, o da representação do estado e o da

representação das pessoas da comunidade, e que a teoria política tradicional nem sempre faz

essa distinção. Mas ressalta Kelsen que a única forma de unir os dois conceitos e eles se

fazerem presentes na realidade política é se a representação se referir à órgãos eleitos

democraticamente. Mas mesmo assim não se pode dizer que a vontade do povo seja igual a

vontade do órgão do estado, principalmente se a população for formada por grupos diferentes

de pessoas, sendo essa união de vontades uma ficção.

De acordo com Kelsen, quando Voegelin trata da representação elementar

relacionando-a com as instituições democráticas, a intenção é demonstrar que ela tem pouco

valor cognitivo. Isso ocorre porque a eleição dos órgãos pelo povo não seria garantia, ou pelo

menos, a garantia satisfatória da existência do estado. Assim, a crítica de Voegelin

confundiria duas questões, o que é uma representação democrática e se uma representação

democrática assegura a existência satisfatória do estado. Essa é uma confusão que Kelsen

afirma ser entre o fenômeno e o seu valor, o que, para ele, é um erro metodológico.

A seguir Kelsen trata da representação existencial. Para ele, Voegelin transformou o

princípio de que para o estado existir ele precisa ter grande efetividade, ou seja, ser

obedecido, no próprio conceito de representação existencial. Kelsen afirma que o conceito de

representação não tem ligação direta com a efetividade do estado. Para ele, a efetividade é

decorrente de uma ordem legal válida que determine os representantes, ou seja, a efetividade

se relaciona com a ordem legal e não com os órgãos do estado, já que não são estes, mas

aquela, que é efetiva. A efetividade é uma condição de existência do Estado.

Para Kelsen, Voegelin trata da representação elementar para se referir ao tipo

democrático de representação e da existencial para a representação do estado. Na existencial

haveria efetividade e implicaria na representação do povo. Quando Voegelin diz que a

representação existencial depende da articulação da sociedade, Kelsen entende que o autor se

refere a uma substância mística de emerge da sociedade e faz com que ela se una. Essa teoria

é tratada por Voegelin com base nos escritos de Fortescue, mas Kelsen afirma que a teoria foi

interpretada de forma errônea, já que Fortescue nunca teria afirmado que qualquer elemento

místico une a sociedade. É possível entender que nem Voegelin afirma que o elemento que

une os seres humanos é místico, já que haveria diferença entre misticismo e ontologia.

Embora ele use a palavra “mistério” para se referir ao contato dos homens imortais, com algo

que é eterno, ou seja, a existência na história, ele não afirma que esse mistério ocorra por

meio do misticismo, podendo-se comprovar, como ele mesmo faz em suas teorias, de que o

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pertencimento a uma sociedade e a atuação da sociedade na história, que é eterna, faz com

que o ser humano, ainda que de forma sutil, tenha um contato com o eterno. E isso não é

misticismo, é, ousa-se dizer, tão metafísico quanto a norma pressuposta fundamental.

Ainda no que tange à crítica sobre o misticismo de Voegelin, Kelsen afirma que

apresentar a ordem social como a realização da justiça divina na terra é uma forma de

justificar a ordem social, bom como confirmar e fortalecer a autoridade do governante. Essa

crítica surge do fato de Voegelin tratar das sociedades cosmológicas e afirmar que o mundo

seria como a imagem de um macrocosmo (KELSEN, 19xx, p. 53), e que os representantes das

sociedades cosmológicas legitimam o seu poder com base em argumentos divinos. Ao afirmar

que a sociedade é representante de uma verdade transcendente, algo para além de si própria,

Kelsen novamente critica Voegelin, afirmando que esta verdade sendo considerada como um

fator científico, ou seja, em um sentido lógico e epistemológico consiste em uma ideologia na

qual a ordem social é uma imitação da ordem cósmica. Kelsen afirma que ao tratar sobre uma

verdade transcendente, na verdade não há essa cientificidade pretendida e que ao invés de o

termo corresponder à epistemologia, na verdade o que se busca é o esclarecimento de um

valor político e moral, mais precisamente, a justiça. E que a confusão entre justiça e verdade é

característico da especulação teológica.

Voegelin quando tratou do problema da representação tinha em mente a questão da

União Soviética e tal questão também é tratada por Kelsen em sua crítica à Nova Teoria da

Política. Kelsen afirma que nenhum governo pode se dizer representante do povo ou que o

poder surge do povo se o estabelecimento do governo não for legalmente independente da

vontade de seus sujeitos, organizados em assembleias populares ou eleitorados. Quando um

governo não for instituído dessa forma, mas mesmo assim se dizer representante do povo, por

agir para e não contrário à população, isso é uma ficção. É nessa ficção que Kelsen encaixa a

União Soviética, que apresentaria o seu governo comunista ditatorial como democrático

porque diz que governa no interesse da população. Isso faz Kelsen questionar se Voegelin, ao

criar a representação existencial não estaria tentando dar legitimidade à essa ficção.

Kelsen afirma que a teoria teológica de Voegelin não serve para resolver os problemas

que envolvem os valores sociais, como decidir questões sobre a democracia ou autocracia, se

a melhor forma de organização econômica é o capitalismo ou o comunismo. A teoria de

Voegelin apenas serviria para afirmar que existe uma verdade da alma e de Deus e que ambas

estão conectadas, ou seja que existe Deus. Além disso, nenhuma questão sobre os julgamentos

envolvendo as instituições sociais poderia ser deduzida dessas fórmulas que são vazias. A

90

teoria formulada por Voegelin tem como problema o teórico, diz Kelsen, já que ele é o

representante de uma nova verdade, que é a verdade de Deus e da alma e que só é alcançada

pelo filosofo. Kelsen critica ainda que Voegelin baseia sua teoria na expressão “verdade da

alma” e não afirma o que é essa verdade, criando uma fórmula vazia.

No que diz respeito à parte do gnosticismo, Kelsen explica que essa expressão tem

uma forte tendência ao misticismo e se refere estritamente ao conhecimento esotérico baseado

em uma revelação misteriosa feita por Jesus. O termo foi posteriormente empregado em um

tipo de maniqueísmo, no qual a esfera da vida humana é considerada demoníaca e oposta à

esfera divina. Kelsen critica o fato de que Voegelin em momento algum fornece a definição

ou sentido no qual ele está adotando o termo, o que seria essencial já que ele não parece estar

empregando o termo no seu uso comum, pois os autores que ele afirma ser gnósticos não são

místicos, além de que ele emprega o termo para se referir a uma redivinização da sociedade,

enquanto que em seu sentido original, a palavra gnose significaria o oposto, ou seja, uma

desdivinização da esfera humana.

Quando Voegelin trata da gnose como uma forma de repressão da verdade da alma, e

afirma que este é um fator que provoca guerras, Kelsen entende que o teórico místico é uma

pessoa que busca que a sociedade seja organizada por uma teologia civil, na qual a alma não

seria reprimida. Além disso, Kelsen também entende que a forma de redivinizar a sociedade é

por meio da volta de fundamentos místicos, religiosos e principalmente cristãos, de forma a

realizar a libertação da alma. No entanto, entende-se que Voegelin se referia em ambas as

situações, não precisamente a uma volta à religião, mas sim à dedicação dos seres humanos a

busca pela sua consciência, por meio de estudos filosóficos e de questionamento dos dogmas

da sociedade atual. O autor embora empregue símbolos típicos do cristianismo, não defende

especificamente essa forma de religiosidade, e sim um contato com a transcendência. Dentro

da filosofia isso se daria pelo estudo da consciência ou da ontologia. O autor questiona a

realidade posta, mas não indica qual caminho deve ser seguido pelo teórico, se é por alguma

religião ou não. Apenas afirma que esse caminho deve ocorrer no sentido de buscar um

significado maior à sua existência, à retomada com o “ser”, que é o contato da existência

humana com a eternidade.

De todo o exposto, conclui-se que Kelsen critica principalmente aspectos que ele

considere teológicos ou místicos da teoria de Voegelin. Entretanto, quando da leitura do texto

e com base em outras obras de Voegelin, sua teoria não se refere exatamente à teologia, mas à

filosofia da consciência ou ontologia.

91

CONCLUSÃO

Da mesma forma que no desenvolvimento do trabalho se tomou o cuidado de analisar

primeiro as questões metodológicas e posteriormente a teoria, na conclusão se seguirá a mes-

ma estrutura. Kelsen segue a metodologia positivista e pretende em sua teoria analisar as

questões de causa e efeito das matérias pertinentes ao Direito e ao Estado, excluindo-se nessa

teoria o que se consideram “valores” ou análises valorativas. Esta metodologia compreende e

responde satisfatoriamente os assuntos que tangem aos mecanismos que se verifica nas socie-

dades. Entretanto, resulta que a teoria por diversas vezes se depara com questionamentos rele-

vantes e, ao invés de buscar respondê-los, o autor afirma que o estudo desses campos fere os

pressupostos metodológicos que foram estabelecidos, devendo esses conteúdos ser analisados

por outras áreas do conhecimento (principalmente a sociologia, que é constantemente citada).

Observa-se que os aspectos que são evitados na teoria positivista consistem, em sua maioria, a

fatores que envolvem as ações humanas. Toda ação humana é resultado de uma ponderação

de valores, já que o ser humano não é um animal puramente instintivo e que para agir toma

decisões que envolvem a escolha entre dois ou mais comportamentos.

Dessa forma, a teoria positivista em sua essência e pureza serve para o estudo dos me-

canismos mas não do que se faz com eles na prática. Isso é questionável pois o vácuo de valo-

res dentro de uma teoria permite que nela se insira qualquer tipo de valor, podendo ser facil-

mente desviada para ser aplicada em práticas que sejam lesivas a contingentes populacionais.

Crítica semelhante é feita pelos adeptos do positivismo às teorias que se valham de ju-

ízos de valor, como é, por exemplo, a teoria de Voegelin, já que este autor nega que se possa

dissociar os valores das ciências humanas e que quando se busca fazer isso há uma destruição

da própria ciência. A crítica feita às teorias que não são positivistas é a de que elas servem não

para explicar uma realidade, mas para justificá-la ou atacá-la e dessa forma, elas são meros

instrumentos do arbítrio do teórico que busca ou a manutenção ou a modificação da ordem

social. Entretanto, ao colocar o ser humano como pertencente à teoria e como um agente ativo

na sociedade, essas teorias conseguem abranger aspectos sociais que são resultantes da ação

humana e que não são respondidos por uma teoria positivista pura.

A história já demonstrou que, independentemente da vontade dos teóricos quando da

escolha de suas metodologias, qualquer fórmula pode ser usada como uma ideologia, ou para

prejudicar seres humanos. Se a teoria for isenta de valores, ela pode ser adotada com a instru-

ção de que na prática se aplique com um ou outro valor. Se a teoria não for isenta de valores,

92

eles são repetidos de modo a criarem uma atuação prática pouco crítica, como verdades in-

questionáveis (o que pode ocorrer também na outra metodologia), ou mesmo os valores po-

dem ser interpretados à conveniência do intérprete, modificando a teoria.

Então não importa se a teoria apresentará valores ou não, o que importa é que toda es-

colha de método consiste na exclusão de fatores materiais que não serão abordados ou ao me-

nos não com a precisão adequada. Entretanto, isso não quer dizer que uma metodologia seja

melhor do que a outra, mas delimita quais perguntas serão respondidas e quais não. Nos auto-

res estudados, Kelsen responde de forma magistral a estrutura e dinâmica do Estado Moderno

em suas relações internacionais e na eficácia e validade do ordenamento jurídico e do Estado.

Mas o método do positivismo puro não permite dizer que uma forma de organização social

seja mais adequada ou justa do que outra, ou que a injustiça contra determinados grupos –

como o genocídio – seja considerado bom ou ruim, justo ou injusto, pois para chegar a uma

conclusão dessas é necessário fazer um juízo de valores. Tanto é assim que pode-se afirmar

que Kelsen posteriormente se viu em situações de realizar uma ponderação de valores, esco-

lhendo a democracia como melhor forma de organização governamental, principalmente se

for pela via direta.

Por outro lado, Voegelin responde de forma excelente a questão de sentimento de des-

locação, vazio e crise que os seres humanos parecem enfrentar nos últimos tempos em relação

a eles mesmos e consequentemente em relação à sociedade e realidade nas quais estão inseri-

dos. O ser humano é por muitas vezes esvaziado de um sentido maior de sua própria existên-

cia, vivendo na repetição de valores que foram determinados a muito tempo e que se mostram

insustentáveis e insuficientes aos anseios humanos, como a ideia de progresso ou de realiza-

ção pessoal, que se tornou sinônimo de realização econômica. Estes conflitos internos dos

seres humanos refletem na forma como eles se percebem em relação à coletividade na qual

estão inseridos, resultando também em atitudes conflituosas. Mas a teoria parte de um nível

tão íntimo e pessoal e avança para um tão amplo e abrangente, que não responde satisfatoria-

mente as questões presentes e atuais das sociedades, da forma como Kelsen faz, analisando as

estruturas e suas dinâmicas.

Percebe-se portanto que os resultados obtidos a partir da escolha metodológica dos au-

tores foram duas teorias que, embora os próprios autores pretendessem opostas, se mostram

complementares. O estudo somente de uma das teorias ou da outra resultaria em um panorama

menos abrangente e crítico do que é possível de se criar pela análise de ambas.

93

No que diz respeito à legitimidade, a teoria de Hans Kelsen fornece um bom panorama

de como é a estrutura do Estado que a possibilita. Os conceitos de eficácia e validade estabe-

lecem critérios objetivo pelos quais é possível analisar e identificar uma sociedade legítima,

principalmente para questões tangentes ao direito internacional. Especificamente tratando

sobre o conceito de representação para que ele possa servir de base para a legitimidade, em

um primeiro momento pode-se entender que não há relação entre os dois conceitos, pois a

representação seria apenas uma ficção criada para justificar que a democracia não seja exerci-

da de forma direta, já que há impossibilidade física para tanto, por causa do tamanho dos Es-

tados e da consequente necessidade de divisão de tarefas dentro da organização do Estado.

Mas apesar da aparente não relação entre os dois conceitos, percebe-se que, ao menos

em determinado momento da vida de Kelsen, a representação ganhou força como fator de

base da legitimidade. Isso é notado pela valorização da democracia parlamentar e pela indica-

ção de que é preferível que se busque aplicar métodos de democracia direta, como referendos

e plebiscitos, de modo que haveria maior legitimidade do parlamento.

A crítica que se pode fazer no que diz respeito às pretensões deste trabalho é a expli-

cação dada para a queda e emergência dos governos. Kelsen afirma que a mudança de gover-

no nada mais significa do que uma forma possível e legítima de modificação do ordenamento

normativo. Quanto às questões do Direito a resposta é satisfatória, mas no que tange aos an-

seios e motivações dos seres humanos, ela parece incompleta. Essa incompletude é proposital

e responde aos pressupostos metodológicos escolhidos pelo autor, que não pretende e não

analisa as motivações humanas, por serem elas imbuídas de valores, devendo tais estudos fi-

car a cargo da sociologia. Mas sem esse aspecto, o ser humano parece ser apenas um fator em

uma equação, algo sem vontades, servindo apenas de instrumento para a modificação do or-

denamento.

Essa questão das intenções humanas é, por outro lado, bem tratada na teoria de Voege-

lin. Não porque ele analise quais podem ser as pretensões individuais ou de certos grupos,

mas porque ele traça um panorama histórico que abrange o ser humano como um elemento

ativo e passível de estudo. Independentemente de se concordar com o aspecto transcendental

do ser humano e na existência de uma verdade da alma, fato é que o autor consegue responder

o que leva a insatisfações coletivas das sociedades com seus governantes: a ordenação da al-

ma humana tem se dado de forma que há uma repressão de alguns valores e outros são institu-

ídos como sendo ideais e preferíveis. Mas essa imposição externa de valores internos criou

uma estrutura da realidade que é insustentável. Pretende-se que a absorção de conceitos como

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o “progresso” seja ele tecnológico ou econômico se dê de forma a não questionar os meios

pelos quais ele se impõe. Considera-se então o progresso como algo necessário, bom e que

traz bem estar e satisfação, mas se desconsidera todos os elementos negativos que vão sendo

percebidos no cotidiano e esses defeitos são organizados de modo a parecerem insignificantes.

Esses fatores funcionam a curto prazo mas a longo prazo criam uma crise nos próprios huma-

nos que é posteriormente exteriorizada na sociedade.

Quanto aos conceitos de representação, na teoria voegeliana, há íntima relação entre a

representação e a legitimidade. Mas a análise dos casos situacionais concretos deve levar em

consideração a representação em todos os níveis, pois como já foi visto, é possível uma socie-

dade ser legítima e representativa em um nível dentro da teoria da representação e não em

outro e isso gera uma crise e conflitos que resultam na substituição dos governos.

A conclusão a que se chega pela teoria de Voegelin é que todos os governos cujas so-

ciedades são organizadas e baseadas em governos ou estruturas gnoseológicas estão em crise

constante e no plano transcendental não são representativas. A grande questão é a de que, nes-

se caso, ao menos todas as sociedades ocidentais são, em maior ou menor medida, ilegítimas

transcendentalmente. Esse é um fator que possivelmente explica o fato de nos últimos anos

terem surgido pelo menos um caso de insatisfação da população em relação à representativi-

dade e legitimidade de seus governos. Como, de acordo com Voegelin, há uma situação de

autodrestruição das sociedades, a tendência é ainda aumentar a insurgência de guerras no que

diz respeito à representatividade e legitimidade dos governos, que se mantém no poder a um

muito alto custo: a repressão da verdade da alma.

Os aspectos que Voegelin não desenvolve com tanto primor são justamente aqueles

bem trabalhados por Kelsen, ou seja, os elementos estruturais dos Estados Modernos e o seu

funcionamento. Novamente aqui, como no que tange à metodologia escolhida pelos autores,

se percebe e conclui que o melhor panorama que se pode ter das sociedades atuais é aquele

que engloba a teoria de ambos os autores. Uma teoria abarca os assuntos que a outra falha e a

quem estuda ambas é possibilitada a noção de completude, que seria impossível pela análise

apenas uma vertente ou a outra.

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