17
Leilões de livros na capital imperial entre 1836-1868 um mercado paralelo? WILLIAM DE OLIVEIRA TOGNOLO A Literatura vem de longa data sendo objeto de estudos que visam retirar sentido das obras literárias e dos livros produzidos pelo engenho criativo do Homem. Dentre os diversos modos possíveis de se analisar as obras literárias, um deles vem ganhando força notável nas últimas décadas, o que Franco Moretti chamou de Distant Reading em seu livro A literatura vista de longe (...).Mas a literatura é, não obstante, “vista de longe” no sentido de que o método de estudo aqui proposto substitui a leitura de perto do texto (o close Reading da tradição de língua inglesa) pela reflexão sobre aqueles objetos artificiais com os quais se intitulam os três capítulos que se seguem: os gráficos, os mapas e as árvores. (...) Distant Reading chamei uma vez, um pouco por brincadeira e um pouco não, a este modo de trabalhar em que a distância não é o obstáculo, mas sim uma forma específica de conhecimento. A distância faz com que se vejam menos os detalhes, mas faz com que se observem melhor as relações, os pattern, as formas. (MORETTI, 2008, p.7-8) Moretti nos apresenta uma forma alternativa aos Estudos Literários centrados principalmente nos textos. A aproximação demasiada em relação às obras e às suas construções formais, pode ter influenciado uma visão única de análise literária, restringindo, desse modo, as conclusões e as percepções acerca das obras literárias. Investigar a literatura de forma mais distante, observando padrões, formas e relações impossíveis de serem notadas atentando-se somente nas minúcias, traz novos elementos para pensarmos o campo dos Estudos Literários. Diversas pesquisas foram amparadas nesta nova abordagem e nos estudos da História do Livros e da Leitura 1 . Aqui destacaremos o projeto A Circulação Transatlântica dos impressos a globalização da cultura no século XIX (1789-1914) 2 , que vigorou principalmente entre 2011 e 2016 e teve como coordenadores Márcia Abreu (Universidade de Campinas) e Jean-Yves Mollier (Université de Versailles Saint-Quentin). A finalidade principal do projeto foi (...) conhecer os impressos e as ideias em circulação entre Inglaterra, França, Portugal e Brasil, no “longo século XIX” (1789-1914), identificando e analisando as práticas culturais inerentes aos processos de circulação dos impressos e ideias em Universidade Estadual de Campinas Mestrando em Teoria e História Literária CAPES. 1 Cf. por exemplo, DARNTON, Robert. O que é a história dos livros? In: O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.109-131; DARNTON, Robert. “O que é a História do Livro?” revisitado. ArtCultura, Uberlândia, v.10, n.16, p.155-169, jan-jun 2008; BESSONE, Tânia. A história do livro e da leitura: novas abordagens. Floema, Ano III, n.5, p.97-111, out 2009. 2 Disponível em: http://www.circulacaodosimpressos.iel.unicamp.br/

Leilões de livros na capital imperial entre 1836-1868 um ... · anos de 1848 e 1868. A partir deste trabalho inicial, pode-se ter acesso a algumas respostas acerca dos leilões de

Embed Size (px)

Citation preview

Leilões de livros na capital imperial entre 1836-1868 – um mercado paralelo?

WILLIAM DE OLIVEIRA TOGNOLO

A Literatura vem de longa data sendo objeto de estudos que visam retirar sentido das

obras literárias e dos livros produzidos pelo engenho criativo do Homem. Dentre os diversos

modos possíveis de se analisar as obras literárias, um deles vem ganhando força notável nas

últimas décadas, o que Franco Moretti chamou de Distant Reading em seu livro A literatura

vista de longe

(...).Mas a literatura é, não obstante, “vista de longe” no sentido de que o método de

estudo aqui proposto substitui a leitura de perto do texto (o close Reading da tradição

de língua inglesa) pela reflexão sobre aqueles objetos artificiais com os quais se

intitulam os três capítulos que se seguem: os gráficos, os mapas e as árvores. (...)

Distant Reading chamei uma vez, um pouco por brincadeira e um pouco não, a este

modo de trabalhar em que a distância não é o obstáculo, mas sim uma forma

específica de conhecimento. A distância faz com que se vejam menos os detalhes, mas

faz com que se observem melhor as relações, os pattern, as formas. (MORETTI, 2008,

p.7-8)

Moretti nos apresenta uma forma alternativa aos Estudos Literários centrados

principalmente nos textos. A aproximação demasiada em relação às obras e às suas construções

formais, pode ter influenciado uma visão única de análise literária, restringindo, desse modo,

as conclusões e as percepções acerca das obras literárias. Investigar a literatura de forma mais

distante, observando padrões, formas e relações impossíveis de serem notadas atentando-se

somente nas minúcias, traz novos elementos para pensarmos o campo dos Estudos Literários.

Diversas pesquisas foram amparadas nesta nova abordagem e nos estudos da História

do Livros e da Leitura1. Aqui destacaremos o projeto A Circulação Transatlântica dos impressos

– a globalização da cultura no século XIX (1789-1914)2, que vigorou principalmente entre 2011

e 2016 e teve como coordenadores Márcia Abreu (Universidade de Campinas) e Jean-Yves

Mollier (Université de Versailles Saint-Quentin). A finalidade principal do projeto foi

(...) conhecer os impressos e as ideias em circulação entre Inglaterra, França,

Portugal e Brasil, no “longo século XIX” (1789-1914), identificando e analisando as

práticas culturais inerentes aos processos de circulação dos impressos e ideias em

Universidade Estadual de Campinas – Mestrando em Teoria e História Literária – CAPES. 1 Cf. por exemplo, DARNTON, Robert. O que é a história dos livros? In: O beijo de Lamourette: mídia, cultura e

revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.109-131; DARNTON, Robert. “O que é a História do

Livro?” revisitado. ArtCultura, Uberlândia, v.10, n.16, p.155-169, jan-jun 2008; BESSONE, Tânia. A história do

livro e da leitura: novas abordagens. Floema, Ano III, n.5, p.97-111, out 2009. 2 Disponível em: http://www.circulacaodosimpressos.iel.unicamp.br/

2

escala transnacional. Seu interesse é, também, analisar as apropriações dessas ideias

nos quatro países, por meio da observação dos escritos e das ações dos letrados, bem

como das atividades de censores, editores, impressores e livreiros.(ABREU, 2011,

p.115).

Este projeto de cooperação internacional abrangeu várias subdivisões que tinham como

missão observar alguns aspectos mais específicos como, por exemplo, investigar os agentes que

realizavam o intercâmbio cultural entre os países.3 Toda a minha pesquisa de iniciação científica

que culminaria na minha monografia de conclusão de curso foi gestada dentro deste grupo4,

principalmente na subdivisão que esmiuçava mais a fundo a circulação e a recepção da literatura

e dos espetáculos.

A minha monografia foi centrada nos anúncios de leilões de livros presentes no jornal

Correio Mercantil, e Instructivo, Político e Universal5 que circulou na capital imperial entre os

anos de 1848 e 1868. A partir deste trabalho inicial, pode-se ter acesso a algumas respostas

acerca dos leilões de livros e das obras que eles punham em circulação no Rio de Janeiro nesse

período. No mestrado estou aprofundando o escopo da minha investigação anterior, incluindo

mais dois importantes diários do período, o Diário do Rio de Janeiro (1821-1878) e o Jornal

do Commercio (1827-2016), bem como alargando o tempo de pesquisa de 1836 até 1868. A

entrada desses dois novos periódicos se dá, principalmente, pela relevância deles na época e a

quantidade notável de anúncios veiculados em suas páginas. Já em relação à datação da

pesquisa de mestrado, inicia-se em 1836, quando surgem os primeiros romances-folhetins na

França (MEYER, 1996), e encerra-se em 1868 quando o Correio Mercantil fecha suas portas.

A dissertação visa investigar com profundidade esta forma de compra e venda de livros

tão pouco explorada nas pesquisas literárias ou até mesmo naquelas sobre a História do Livro

e da Leitura. Tendo em vista que se trata ainda de work in progress, neste texto operei um

recorte no tempo total de análise, em alguns casos me restringindo entre os anos de 1836 e

1845, e nas indagações que serão mais detalhadas na dissertação. Para este trabalho, focarei em

três assuntos principais: a) qual a importância dos leilões de livros no período? b) quais obras

3 O primeiro livro do projeto já foi lançado, outros dois estão no prelo: Abreu, Márcia. (Org.). Romances em

movimento: a circulação transatlântica dos impressos (1789 -1914). Campinas: Editora da Unicamp, 2016. 4 TOGNOLO, William. Atiro de martelo!: estudo de anúncio de leilões de livros no Correio Mercantil (1848-

1868). Monografia – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015. (Disponível em:

http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=74314&opt=1) 5 De agora em diante somente Correio Mercantil.

3

eram postas em leilão? c) qual a relevância dos livros de prosa ficcional em meio às outras obras

à venda nos pregões?

Porém, antes de explanar quaisquer possíveis respostas às questões anteriores, cabe

inicialmente apresentar como eram esses anúncios de leilões de livros. Para isto utilizaremos o

anúncio abaixo retirado do jornal Correio Mercantil no dia 4 de agosto de 1857:

Imagem 1: Anúncio de leilões de livros.

Este anúncio pode servir de protótipo para explicar algumas informações que poderiam

ser encontradas nesses reclames. Na primeira linha temos em destaque “LEILÃO”, ou seja, o

anúncio quer chamar atenção para que tipo de propaganda é esta que o leitor está colocando

seus olhos. Em seguida há uma breve descrição de itens à venda “fazendas de seda, lã (...)”, o

que nos indica que nessa venda em hasta pública estaria sendo posto à em leilão diversos itens,

tais como roupas, ferragens, objetos de armarinho, trastes etc., logo, itens variados. Mais abaixo

aparece o nome do leiloeiro que se encarregará desta venda, “H. Cannell”, a data, a hora e o

local no qual o pregão será realizado. Contudo, antes de dar o anúncio por encerrado ainda

somos informados de mais alguns itens que compõem os bens em leilão, tratam-se de “diversos

4

volumes” de livros, “constando de Monte-Christo, Judeu Errante, Mysterios de Paris e 7

volumes do Panorama de Lisboa com estampas”.

Esta última forma de descrição dos itens nos interessa de perto, uma vez que cita

“diversos volumes”, ou seja, obras em quantidade, o Panorama, por exemplo, consta de 7

volumes. E importa ainda pelo fato de mencionar textualmente o título delas, o que nos dá

indícios sobre algumas obras que estavam sendo postas em circulação no período por

intermédio dos leilões, indicando ainda que provavelmente haveria interessados nessas obras

citadas, pois se o anunciante, muito provavelmente o leiloeiro, pagava pelo anúncio intentando

trazer o máximo de pessoas para o pregão, faria o máximo para mencionar itens, no caso livros,

que despertassem o interesse do público em geral ou pelo menos grande parte dele.

Assim, tendo exposto a estrutura básica que perpassava os anúncios divulgados nos três

periódicos, podemos começar a pensar nos três questionamentos propostos inicialmente.

a) Qual a importância dos leilões de livros no período?

Antes, é necessário questionar se as vendas em leilões em si eram comuns no período

para medir se essa forma de compra e venda de bens era relevante ou não nesta época. Ou seja,

os anúncios de leilões eram frequentes em meados do século XIX no Rio de Janeiro?

Para responder esta e todas as outras questões da dissertação, foi necessário o

levantamento de todos os anúncios de leilões de livros no período entre 1836 e 1868 presentes

nos três jornais aqui abordados. Assim, recorrendo à Hemeroteca Digital6, investiguei dia-a-dia

os três diários durante os 33 anos de meu recorte temporal. Nem todos os anos contaram com a

presença simultânea dos três jornais, pois o Correio Mercantil só lançou seu primeiro número

em 1848, ou seja, entre 1836 e 1847 as minhas análises se detiveram somente no Jornal do

Commercio e no Diário do Rio de Janeiro.

Em minha investigação, notei que os anúncios de leilões, normalmente, tinham uma

coluna própria nos jornais, geralmente aparecia na terceira página dos três diários, e tinha como

título em caixa alta e negrito “LEILÕES”.

6 Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/

5

O gráfico abaixo apresenta a porcentagem de edições dos três periódicos nos quais

foram encontrados anúncios de leilões, ou seja, em quantas edições os leitores do período

poderiam ter tido acesso a propagandas que continham avisos e descrições dos pregões que

ocorreriam nos dias posteriores.

Gráfico 1: Porcentagem de edições nas quais havia anúncios de leilões de livros.

Fonte: Diário do Rio de Janeiro, Jornal do Commercio e Correio Mercantil.

Ao pôr os olhos no gráfico acima, o leitor logo percebe que as porcentagens referentes

às edições que continham anúncios de leilões são bem altas. Estabelecendo a média entre os

três jornais, temos que 92% das edições dos diários continham propagandas de vendas em hasta

pública. O próprio desenho do gráfico deixa patente essa informação, à medida que a maior

parte dos registros se encontram na faixa entre 80 e 100% de edições.

Somente em 1848, 1866 e 1868 foram contabilizadas porcentagens abaixo dos 60%,

alcançando um registro mínimo de 44,6%. Mas mesmo o menor índice representa quase a

metade das edições, ou seja, no ano de menor quantidade de anúncios de leilões disponíveis e

no jornal que menos apresentou esse tipo de reclame, em aproximadamente a metade das

edições os leitores da época poderiam se servir de anúncios de leilões. Se o menor índice parece

expressivo, o que dizer da média, na qual de cada 100 edições em ao menos 92 os leitores

6

abririam a terceira página dos jornais e se deparariam com as propagandas dos pregões a ser

realizados na capital nos próximos dias.

O Gráfico 1 ainda nos ilustra a quantidade de porcentagem por jornal no período, o que

nos permite matizar mais ainda a média de 92%. Se ela já parece significativa, temos que levar

em conta que o Correio Mercantil, e em alguma medida o Diário do Rio de Janeiro, puxam

consideravelmente essa média para baixo, tomando somente o Jornal do Commercio como

referência, a média de edições que continham anúncios de leilões é de 99,3%. Ou seja, para os

leitores do período já calejados com o que os jornais apresentariam em suas colunas, as

propagandas de leilões deveriam ser muito comuns.

Se os reclames de pregões eram corriqueiros nos três diários aqui investigados, os

anúncios que mencionavam livros eram comuns também? Os interessados em comprar coisas

por intermédio dos leilões em meados do XIX no Rio de Janeiro poderiam ter acesso a livros?

Para responder essas questões apresentamos o Gráfico 2. Nele tomamos por base

somente e tão somente as edições dos jornais que continham anúncios de leilões, ou seja, agora

o nosso valor máximo de base se torna as porcentagens apresentadas no Gráfico 1. Logo,

trabalharemos em cima das edições que continham leilões no geral e a partir delas

estabelecemos a porcentagem de edições nas quais foram registrados anúncios de leilões de

livros. Assim, se uma edição que contivesse 15 anúncios de leilões e em cinco deles

encontrássemos livros, valeria como uma ocorrência, e, do mesmo modo, se em outra edição

de 15 anúncios de leilões encontrássemos somente uma propaganda que mencionasse livros,

mesmo assim valeria como uma ocorrência. Dito isto, nesse momento estamos excluindo a

quantidade de anúncios e partindo da existência ou não de anúncios de leilões de livros por

edição de cada jornal.

Gráfico 2: Porcentagem de anúncios de leilões que continham livros

7

Fonte: Diário do Rio de Janeiro, Jornal do Commercio e Correio Mercantil.

Dentre todas as edições que continham anúncios de leilões, em uma média de 14% delas

era possível encontrarmos livros entre os bens anunciados em pregão. À primeira vista, esta

média parece estar muito baixa, no entanto, como também foi notado no Gráfico 1, os números

apresentam algumas discrepâncias entre os jornais, por exemplo em 1848, mostrando que a

média de 14% não seja tão representativa. O Correio Mercantil apresenta índices bem abaixo

dos outros dois jornais, o que puxa essa média para baixo. O Jornal do Commercio, por outro

lado, traz registros mais animadores, mantendo-se em grande parte do tempo entre 15% e 25%

de seus anúncios de leilões com a presença de livros, alcançando em 1851 consideráveis 34%.

Assim, no jornal que mais estampou anúncios de leilões, quase em todos as edições do

periódico havia propagandas de leilões, houve anos em que quase um terço desses anúncios

continham leilões de livros.

Pode ser que mesmo esses quase 35% de anúncios de leilões de livros aparentemente

não sejam representativos, no entanto, excetuando-se móveis, nenhum bem parecia ser

constante nos anúncios de leilões investigados nesses três jornais. Para ter certeza disso,

teríamos que fazer um levantamento de todos os bens que foram anunciados para serem

vendidos em leilão e depois estabelecer quantas vezes cada um deles foi anunciado, porém,

daria um trabalho descomunal, pois a quantidade de itens propagandeados é muito grande e eles

8

se repetiam muitas vezes. Portanto, nos parece que os livros eram anunciados quase que na

mesma proporção que os demais itens, não eram recorrentes como os móveis em que

praticamente todos os dias havia anúncios de leilões, mas os livros não eram tão incomuns como

carne, por exemplo, que, mesmo tendo aparecido algumas vezes nos anúncios, era algo um

tanto quanto raro de se ver na coluna de “LEILÕES”.

Tive a oportunidade de conversar com o professor Roger Chartier7 sobre leilões de livros

no século XIX. Ele disse a mim que sabia da existência dessa forma de venda de livros no

século XIX, mas que a prática começou anteriormente, havia registros desde o século XVII e

XVIII e que neste período se tratava de um “mercado paralelo” de venda de livros.

Partindo desse ponto, a pergunta inicial se a presença de leilões de livros em meados do

século XIX no Rio de Janeiro era representativa, pode ser respondida que, aparentemente, sim.

Outros dados serão analisados para confirmar ainda mais ou não os resultados aqui

apresentados, mas até o momento, partindo dos dois gráficos apresentados, pode-se dizer que

anúncios de leilões de livros eram comuns no período e, consequentemente, os pregões físicos

também eram.

Um leitor do período poderia, somente seguindo o Jornal do Commercio, por exemplo,

ficar a par dos anúncios de leilões de livros que ocorreriam na cidade, locomover-se até lá e

comprar obras que o interessassem. A regularidade de tais vendas8 poderia permitir que os

leitores nem necessitassem recorrer a outras fontes de compra de livros, como os livreiros por

exemplo. Assim, tomando “paralelo” no sentido de “semelhante” ou “igual”, parece que os

leilões de livros podem ser considerados sim uma forma de compra e venda de obras paralela e

de expressiva presença em meados do XIX na capital imperial.

Tendo em vista que já identificamos a presença de leilões de livros no período, podemos

passar agora para a fase na qual observamos mais atentamente quais livros eram postos à venda

nestas ocasiões, respondendo assim a nossa pergunta b) feita no começo deste texto.

7 Conversei com Roger Chartier quando ele esteve no III Colóquio de Pesquisa Educação e História Cultural:

Leituras da história e da cultura, que ocorreu entre 13 e 15 de junho de 2016 na Universidade Estadual de

Campinas. 8 Como disse anteriormente, com o desenrolar da pesquisa outros dados virão à tona, inclusive a periodicidade de

anúncios de leilões de livros no período de 1836-1868, porém, acredito que ao menos haveria em média de 3 a 4

leilões de livros por mês no Rio de Janeiro nessa época.

9

Se olharmos para as informações que estão contidas na Imagem 1 deste texto,

percebemos que o anunciante fez questão de destacar na parte inferior do reclame que seriam

postos em leilão especificamente alguns títulos como “Monte-Christo, Judeu Errante, Mysterios

de Paris e 7 volumes do Panorama de Lisboa”, ou seja, dentre as diversas descrições sobre os

acervos a serem vendidos em hasta pública, o anunciante poderia resolver destacar

especificamente o título de algumas obras. Esses elementos são fundamentais se quisermos

entender quais obras estavam em circulação na capital imperial naquela época. Eles atestam

que haveria algum público interessado nas obras citadas no período, à medida que, tendo em

vista que os anúncios eram cobrados, principalmente por linha9, os leiloeiros, possíveis

anunciantes de leilões nos jornais, ao compor as propagandas a serem veiculadas nos periódicos

deveriam colocar ali informações que agradariam o público, trazendo-o para o leilão na data e

no local especificado. Assim, não podemos tomar as informações contidas nos anúncios de

leilões de livros como elementos fortuitos, e sim como uma estratégia utilizada pelos leiloeiros

para atrair compradores, logo, gastar linhas a serem pagas citando títulos seria interessante

somente se esses tivessem algum valor atrativo de público.

Mas uma questão que podemos fazer é se era comum nos anúncios de leilões de livros

serem citados os títulos de algumas obras que compunham o acervo em pregão. A resposta é

que, em média, 23% das propagandas que mencionavam a presença de livros entre os bens em

leilão especificavam parte dos títulos que integravam o acervo à venda, como na Imagem 1. Ou

seja, não era muito comum entre os anúncios de leilões citarem títulos de obras, o que torna

ainda mais relevante os livros mencionados, seriam eles fruto de uma escolha deliberada do

leiloeiro anunciante que ao analisar o acervo em leilão resolve pinçar alguns títulos e destacá-

los nos anúncios ao invés de outras informações.

Traremos agora uma tabela indicando quais obras foram as mais citadas nos anúncios.

Por se tratar de um trabalho ainda em andamento, não conseguimos ainda cobrir todo o arco

temporal proposto na dissertação (1836-1868), pois até o momento conseguimos levantar os

9 A título de exemplo podemos citar o Jornal do Commercio que em 6 de julho de 1843, em sua primeira página,

afirmava que na seção dos anúncios seria cobrado 80 réis por linha de 40 letras de quem quisesse ter algum

produto anunciado. Na primeira metade da década de 1850 podemos encontrar a mesma referência no Correio

Mercantil também.

10

dados específicos sobre títulos somente entre os anos 1836-1845. Porém, somente estes dados

já podem ser muito interessantes e trazerem algumas reflexões sobre as questões aqui propostas.

A quantidade de obras mencionadas nos anúncios de leilões entre 1836-1845 é muito

grande, alcançando algumas centenas, no entanto, o mais comum era um título ser mencionado

apenas uma ou duas vezes neste período. Logo, seria impossível neste artigo trazer uma tabela

que trouxesse a listagem de todos os títulos arrolados. Assim, as Tabela 1 e 2 apresentam

aqueles que foram mencionados três ou mais vezes no Diário do Rio de Janeiro e no Correio

Mercantil10.

Tabela 1: Diário do Rio de Janeiro – 1836-1845

Fonte: Diário do Rio de Janeiro.

Tabela 2: Jornal do Commercio – 1836-1845

10 Lembrando que o Correio Mercantil não aparece nesta comparação porque ele foi criado somente em 1848.

11

Fonte: Jornal do Commercio.

As tabelas apresentam semelhanças e diferenças. Começando com as diferenças, fica

claro que os dois jornais não mencionaram a mesma quantidade de títulos nem os mesmos

títulos. Enquanto a Tabela 1 do Diário tem 15 títulos, a do Commercio apresenta 18, o que é

compreensível, pois o Jornal do Commercio, levando-se em conta dados que não podem ser

devidamente apresentados neste artigo, registrou mais anúncios de leilões de livros e mais

títulos no geral que o Diário. Somente na tabela do Diário podemos visualizar as obras Vida de

João de Castro, História Universal escrito por Millot, Histoire de Napoleon do historiador

Norvins e História de Portugal ou seja, dos 15 títulos mencionados, somente quatro aparecem

entre os mais citados somente no Diário11, todos eles fazendo referência direta a personagens

históricos ou à história em si. O Jornal do Commercio também traz títulos que só constam na

sua tabela de mais citados e não na do Diário, como é o caso de História do Brazil, Os Lusíadas,

História Natural de Buffon, o Correio Braziliense, Telêmaco de Fénelon, Magasin Universel,

Histoire d’Angleterre por Hume e Spetacle de la nature escrito por Pluche12. Diferente do

11 Também foram citados no Jornal do Commercio, porém de modo mais tímido: Vida de João de Castro ganhou

duas menções; História Universal de Millot, uma; Histoire de Napoleon de Norvins, duas e História de Portugal,

duas. 12 Quase todas essas obras também foram citadas no Diário, só que menos vezes: História do Brazil foi citada

duas vezes; Os Lusíadas, duas; História Natural de Buffon, duas; o Correio Braziliense, nenhuma; Telêmaco de

12

Diário que concentra seus títulos específicos13 basicamente nas obras históricas, percebe-se que

o Jornal do Commercio apresenta títulos específicos dispares em relação ao Diário, englobando

diferentes temas como jornais, poesia, história, prosa e história natural.

Já em relação às semelhanças, podemos apontar a relativa igualdade nos títulos mais

citados. A Bíblia, os Mistérios de Paris e a Enciclopédia aparecem em ambas as tabelas e nas

duas colunas de títulos mais mencionados. Os livros mais anunciados, logo provavelmente mais

procurados, eram diferentes entre si: o primeiro é o livro sagrado de uma das mais influentes

religiões mundiais, o segundo é um romance folhetim e o terceiro é o livro base do Iluminismo.

Dom Quixote também merece ser mencionado entre os mais relevantes, porém essa

preponderância aparece mais na Tabela 1 e menos na Tabela 2.

Outra mescla perceptível nas duas tabelas é a presença de obras muito antigas como Os

Lusíadas de 1572, passando por obras mais próximas do século XIX, a exemplo de História

Natural de Buffon escrita em meados do século XVIII, até chegar em títulos contemporâneos

à metade do século XIX, tais como Les français peint par eux mêmes.

Esses apontamentos indicam que uma das apostas dos leiloeiros em relação aos títulos

era arriscar vários gêneros e temas do conhecimento, de vários períodos, para atrair interessados

em todas as matérias, antigas e novas.

Contudo, e ainda tentando responder à nossa pergunta b) sobre quais obras circularam

por intermédio dos leilões de livros no período, podemos lançar mão de um outro indicativo

por vezes apresentado nas propagandas de pregões: a menção aos nomes de autores que

compunham os conjuntos de livros à venda. Se por vezes os anunciantes eram específicos e

apresentavam o título de determinadas obras, em outras eles optavam por serem mais

generalistas e citavam apenas os nomes de autores. Este elemento também é vital para entender

quais obras estavam à venda em hasta pública, à medida que aponta para uma nova estratégia

dos leiloeiros em atrair leitores, pois se ao indicar, por exemplo, o Conde de Monte Cristo o

anunciante deixaria os admiradores e aqueles que gostariam de ler tal livro desejosos de

comparecerem ao leilão, ao estampar que no pregão estariam à venda obras de Alexandre

Fénelon, nenhuma; Magasin Universel, duas; Histoire d’Angleterre por Hume, duas; e Spetacle de la nature escrito

por Pluche, nenhuma. 13 Estou chamando e títulos específicos aqueles que só ocorrem em uma tabela de mais citados e não na outra.

13

Dumas o leiloeiro alcança o público não somente interessado em o Conde de Monte Cristo,

como também todos aqueles desejosos de ter um livro de Dumas.

Esta forma de organizar os anúncios esteve presente em 17% dos anúncios de leilões de

livros do período, ou seja, não era tão comum os pregoeiros investirem dinheiro nos anúncios

indicando o nome dos autores que estariam em leilão. Novamente, como no caso dos títulos,

centenas de nomes foram arrolados nos anúncios de leilões de livros entre 1836 e 1845, porém

somente alguns alcançaram mais que 10 menções, o que indica, de novo, a gama de obras que

circularam por via dos anúncios de leilões de livros no período. Assim, as Tabelas 3 e 4 listam

aqueles autores que, no caso do Diário, receberam mais de 10 menções e, no caso do

Commercio, tiveram seus nomes citados mais de 11 vezes.

Diário do Rio de Janeiro – 1836-1845 Jornal do Commercio – 1836-1845

Autores Citações Autores Citações

Shakespeare 15 Voltaire 23

Walter Scott 15 Shakespeare 22

Voltaire 15 Walter Scott 21

Victor Hugo 15 Jean-Jacques Rousseau 17

Lord Byron 14 Lord Byron 16

François-René de

Chateaubriand

12 Victor Hugo 15

Alphonse de Lamartine 11 Alphonse de Lamartine 13

Jean-Jacques Rousseau 11 François-René de

Chateaubriand

13

Adolphe Thiers 11 Alexandre Dumas 11

Honoré de Balzac 10

Fonte: Diário do Rio de Janeiro. Fonte: Jornal do Commercio.

14

Observando as tabelas notamos que elas são bem parecidas, somente Adolphe Thiers,

Honoré de Balzac e Alexandre Dumas não correspondem nas duas listagens. Shakespeare,

Voltaire e Walter Scott estão entre os três primeiros das duas tabelas, somente alterando a ordem

em que aparecem, ou seja, ao menos em relação a esses três autores, podemos sugerir que eles

eram conhecidos e que havia algum público interessado em consumir suas obras.

Os autores listados nas duas tabelas se dividem entre franceses e britânicos, com

considerável prevalência dos franceses, à medida que somente Lord Byron, Shakespeare e

Walter Scott representam os britânicos nas tabelas.

Nas tabelas também notamos a quase divisão igualitária entre autores que ainda estavam

vivos em 1845 e aqueles que já estavam mortos nessa época. Dos 11 autores citados, seis ainda

estavam vivos em 1845 e cinco já estavam mortos. Este índice aponta para o convívio entre as

obras antigas e as obras modernas, também percebido nas listagens de títulos mais

mencionados.

Depois destas tabelas, já podemos responder de modo razoável à nossa pergunta b),

sobre quais obras eram postas em leilão. Uma quantidade enorme de títulos e autores foram

citados, o que indica a grande circulação de obras propiciada pelos leilões. Diversos títulos e

autores dos mais variados campos do saber foram propagandeados. Títulos e autores modernos

e antigos estavam entre os mais citados, com predomínio de autores franceses e britânicos. Esta

heterogeneidade se mostra observando os três títulos mais citados e os três autores mais

mencionados. Como títulos mais citados temos um religioso, Bíblia, um romance, Os Mistérios

de Paris, e a enciclopédia iluminista, Enciclopédia. Os autores mais citados por sua vez são,

um poeta inglês, Shakespeare, um romancista britânico, Walter Scott, e um iluminista francês,

Voltaire.

Podemos partir agora para responder à pergunta c), acerca da relevância das obras de

prosa ficcional em relação às outras obras mencionadas em leilão.

Nas tabelas sobre títulos podemos notar a presença marcantes de quatro obras escritas

em prosa de ficção, Dom Quixote, Gil-Braz, Os Mistérios de Paris e Telêmaco. Percebemos

também nelas os embates de gerações notados nas quatro tabelas, à medida que salvo Os

Mistérios de Paris, os outros três livros tinham vindo à luz a mais de um século. Já os Mistérios

15

era um romance-folhetim que foi publicado inicialmente pelo Jornal des Debats entre 19 de

junho de 1842 e 15 de outubro de 1843, circulando no Rio de Janeiro provavelmente

primeiramente na forma de tomo e posteriormente no rodapé do Jornal do Commercio entre 1

de setembro de 1844 e 20 de janeiro de 1845 (SCHAPOCHNIK, 2010). Ou seja, era uma obra

extremamente contemporânea aos leilões registrados até 1845.

Há de se destacar, novamente, também como nas tabelas sobre os títulos, a

preponderante posição de autores que dentre suas obras havia alguns livros em prosa ficcional,

como é o caso de Voltaire, por exemplo, que publicou Cândido e Zadig, ou até mesmo aqueles

autores que publicaram muitos romances, como Victor Hugo. Levando-se em consideração as

duas tabelas, somente Lord Byron, Shakespeare, Adolphe Thiers e Alphonse de Lamartine não

tinham prosa ficcional em seus repertórios de livros publicados. Lamartine iria lançar seus

livros em prosa de ficção somente no final da década de 1840. Dos três autores mais citados

nas duas tabelas, dois deles escreviam obras de prosa ficcional, Walter Scott e Voltaire.

Devemos destacar também a presença dos romances-folhetins nas quatro tabelas.

Mesmo se tratando de um gênero romanesco lançado a pouco tempo, na França em 1836, já em

1845 podemos ver a influência desta modalidade de produção nos anúncios de leilões de livros.

Seja na presença meteórica de Os Mistérios de Paris como um dos dois títulos mais citados,

mesmo tendo em consideração que havia sido lançado em 1842, ou seja, em três anos conseguiu

ser tão conhecido e chamar atenção do público de tal maneira que os leiloeiros acharam por

bem citar seu título a mesma quantia de vezes que a Bíblia. Nota-se também na tabela de autores

mais citados, a presença de dois representantes dos romances folhetins, Honoré de Balzac e

Alexandre Dumas.

Conclusão

A conclusão deste texto não poderia ser outra senão sintetizar novamente a resposta das

três perguntas feitas inicialmente.

Os leilões eram atividades comerciais comuns em meados do século XIX no Rio de

Janeiro e os leilões de livros eram comuns nessa atividade de compra e venda. Tendo em vista

a quantidade de anúncios de pregões e de obras ofertadas, podemos considerar os leilões de

livros como um importante mercado paralelo ao mercado livreiro tradicional.

16

As obras e autores mais diversos foram postos em circulação por intermédio das vendas

em hasta pública, livros e autores antigos e modernos, principalmente franceses e britânicos,

com destaque à Bíblia, aos Os Mistérios de Paris e à Enciclopédia, bem como a Shakespeare,

Voltaire e Walter Scott.

As obras de prosa ficcional e os autores que escreveram obras em prosa de ficção se

destacaram nas tabelas, estando entre os mais citados e até mesmo nas primeiras colocações.

Sendo preciso salientar a presença dos romances-folhetins e seus autores, com realçada menção

à obra Os Mistérios de Paris.

Referências Bibliográficas

ABREU, Márcia. A circulação transatlântica dos impressos: a globalização da cultura no século

XIX. In: Livro - revista do núcleo de estudos do livro e da edição. Departamento de

Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicação e Artes - Universidade de São

Paulo, 2011.

______________ (Org.). Romances em movimento: a circulação transatlântica dos impressos

(1789 -1914). Campinas: Editora da Unicamp, 2016.

BESSONE, Tânia. A história do livro e da leitura: novas abordagens. Floema, Ano III, n.5,

p.97-111, out 2009.

DARNTON, Robert. O que é a história dos livros? In: O beijo de Lamourette: mídia, cultura e

revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.109-131;

_________________ “O que é a História do Livro?” revisitado. ArtCultura, Uberlândia, v.10,

n.16, p.155-169, jan-jun 2008.

MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª edição, 1996.

MORETTI, Franco. A literatura vista de longe. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2008.

SCHAPOCHNIK, Nelson. Edição, recepção e mobilidade do romance Les mystères de Paris

no Brasil oitocentista. Varia História (UFMG. Impresso), v. 26, p. 591-617, 2010.

17

TOGNOLO, William. Atiro de martelo!: estudo de anúncio de leilões de livros no Correio

Mercantil (1848-1868). Monografia – Universidade Estadual de Campinas, Campinas,

2015. (Disponível em:

http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=74314&opt=1)