LEITURA COMPLEMENTAR_Semiótica_filosófica_introdução

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MINISTRIO DA EDUCAO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS MESTRADO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

Introduo Semitica Filosfica de Charles S. Peirce

[texto de apoio didtico]Profa. Eluiza Bortolotto Ghizzi [DAC/CCHS]

CAMPO GRANDE - MS [2007, revisado em 2009]

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Profa. Dra. Eluiza Bortolotto Ghizzi/DAC/CCHS Semitica Filosfica de Charles S. Peirce (1839-1914) [texto de apoio didtico]

ApresentaoEste um texto desenvolvido para uma introduo semitica filosfica de Charles Sanders Peirce (1839-1914) e tem por objetivo especfico servir de apoio didtico a apenas parte do contedo dessa introduo. Assume a caracterstica de uma reviso bibliogrfica altamente sinttica, que toma por referncia os ttulos indicados no final deste caderno. Justamente por seu carter sinttico, tem o poder de perpassar rapidamente por diversos conceitos importantes dessa semitica. Na primeira parte deste caderno apresentado ao leitor o Pragmatismo de Peirce, o que pertinente para um enfoque dessa semitica que a coloque na perspectiva histrica dessa grande corrente de pensamento que tem Peirce como um de seus personagens principais. Alm disso, tanto o fato de o pragmatismo de Peirce ser dado como um critrio de significao, quanto a relao que se estabelece no pragmatismo entre pensamento e ao o colocam no leque de interesses da semitica. Em seguida, abordada a fenomenologia de Peirce que, como de conhecimento de todo estudioso desse autor e como se poder ver no seu diagrama das cincias, a primeira das cincias da filosofia, onde ele vai estabelecer as bases tanto das cincias normativas quanto da metafsica; alm de outras de suas ideias. A insero sua semitica propriamente dita fica limitada aqui gramtica especulativa, primeira parte da semitica de Peirce e mais amplamente conhecida, bem como a mais pertinente a um curso introdutrio. Alm dessa, o curso trabalhar sobre a lgica crtica, segunda parte dessa semitica, que trata dos modos de raciocnio. Esta uma parte que vem sendo estudada mais recentemente, entre outros, por esta pesquisadora. A Gramtica especulativa ser meramente apresentada como a terceira parte, menos desenvolvida por Peirce, bem como por seus estudiosos at o momento. Por fim, o conjunto de textos aqui reunidos s poder introduzir - de fato - o leitor nos assuntos dos quais trata se complementado pelas aulas ministradas no curso, bem como pelos demais textos indicados para leitura. Prope-se que o acadmico leia os ttulos indicados na bibliografia, de autoria do prprio Peirce e de estudiosos da sua obra. Estes ltimos so indispensveis para a assimilao dos conceitos fundamentais da semitica peirciana na sua complexidade.

Profa. Eluiza Bortolotto Ghizzi Departamento de Comunicao e Artes/CCHS/UFMS Maro de 2009

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SumrioApresentao ..............................................................................................................................2 Sumrio.......................................................................................................................................3 Peirce e o Pragmatismo ..............................................................................................................4 Quem Charles Sanders Peirce? ............................................................................................4 Surgimento do pragmatismo...................................................................................................5 Pragmatismo em sentido amplo..............................................................................................5 O pragmatismo de Peirce........................................................................................................6 O pragmatismo de Peirce no segundo perodo .......................................................................6 A semitica filosfica de Peirce .................................................................................................9 Por que a semitica de Peirce dita filosfica? .....................................................................9 Qual o lugar da semitica no sistema filosfico de Peirce? ..............................................10 O que se quer dizer quando se diz que a semitica de Peirce geral?.................................12 As bases da semitica de Peirce na sua fenomenologia ...........................................................14 Primeiridade .........................................................................................................................15 Secundidade..........................................................................................................................16 Terceiridade ..........................................................................................................................17 As categorias e ideias a elas associadas ...............................................................................18 O signo tridico, a ideia de semiose e a trade cone-ndice-smbolo ...................................21 Semitica ..............................................................................................................................21 Signo.....................................................................................................................................23 Signo Genuno e Signo Degenerado.....................................................................................29 cone .....................................................................................................................................32 ndice ....................................................................................................................................34 Smbolo.................................................................................................................................36 Diagramas representativos da ideia de signo em Peirce...........................................................43 Tipos de associao entre signos dentro de uma lgica tridica ..............................................44 As dez classes principais de signos analisadas por Peirce........................................................45 Bibliografia...............................................................................................................................49

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Peirce e o Pragmatismo1

Quem Charles Sanders Peirce?Charles Santiago Sanders Peirce (1839-1914), fsico, qumico, matemtico e filsofo norteamericano, exerceu sua prxis terica em diferentes campos do conhecimento, contudo, fez questo de dizer que seu interesse em tudo podia ser resumido como um interesse de lgico. Enquanto fsico e qumico foi um homem de laboratrio; seus estudos de matemtica resultaram em contribuies reconhecidas pela histria dessa cincia e, na filosofia, desenvolveu um sistema filosfico, como era comum entre os grandes filsofos com os quais teve contato atravs de leituras. Seu sistema filosfico , todavia, distinto de todos esses, tendo exigido dele, para marcar essa distino, rigorosa preocupao com a terminologia e o significado dos termos por ele utilizados. amplamente conhecido como criador da mais importante corrente de ideias surgida na Amrica do Norte e que se estendeu por todo o mundo durante o sculo XX: o pragmatismo (PEIRCE E FREGE, 1980: VI), que ele denominou posteriormente de pragmaticismo, a fim de distinguir seus conceitos de entendimentos divergentes.Embora at a bem pouco tempo geralmente desconhecido para um pblico mais amplo, a influncia de Peirce sobre os filsofos americanos de sua poca foi duradoura e profunda. Particularmenter Josiah Royce (1855-1916), Willian James (1842-1910) e John Dewey (18591952) devem grande parte da origem de suas idias ao contato intelectual extremamente estimulante que tiveram com ele (PEIRCE E FREGE, 1980: VI).

Essa influncia teria representado o primeiro exemplo de um filsofo norteamericano maior influenciando o pensamento de outros filsofos maiores. Sua importncia para o incio de uma filosofia americana autnoma tem sido reconhecida mais recentemente. Sua obra foi mais amplamente divulgada nos Collected Pappers, organizados em 8 volumes, os quais passam, aps contribuio de diversos estudiosos sobre a obra do autor, por uma reorganizao, coordenada pelo Peirce Edition Project (Universidade de Indianpolis EUA).

1 Texto resumo de partes da obra de DE WAAL, 2007. Desenvolvido para palestra na graduao em Filosofia da UCDB em 10 de abril de 2008.UFMS - Cidade Universitria, Av. Costa e Silva, s/n - Caixa Postal 549 CEP 79070-900 Campo Grande/MS (67) 3345-7000 http://www.ufms.br

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Surgimento do pragmatismoDe acordo com De Waal (2007:17):O pragmatismo surgiu nos primeiros anos da dcada de 1870, quando um pequeno grupo de rapazes de Cambridge, Massachussets, se encontrava regularmente para conversar sobre filosofia. O grupo inclua, entre outros, Willian James, Charles Sanders Peirce, Oliver Wendell Holmes Jr. e Nicholas Saint John Green. Esses homens chamavam a si mesmos, meio desafiadora, meio ironicamente, O Clube Metafsico, j que nos primeiros anos de 1870 a metafsica era considerada fora de moda. A definio de crena de Alexandre Bain, segundo a qual uma crena aquilo com base em que um homem est preparado para agir, era central em suas discusses. Quando essa definio aceita, Peirce mais tarde lembrou, o pragmatismo segue quase imediatamente como seu resultado natural. Isso no significa que esses homens acreditassem que o pragmatismo era algo radicalmente novo, um mtodo revolucionrio nunca antes descoberto. Em vez disso, o pragmatismo era a adoo sistemtica e consciente de um mtodo que os filsofos vm praticando desde a Antigidade. Peirce ousadamente declarou que a novidade de uma idia filosfica um dos sinais mais certos de sua falsidade. E, para mostrar a nobreza de pedigree do pragmatismo, at Jesus ele chamou de pragmatista, lendo sua mxima conhece-os pelos teus frutos como uma verso precoce da mxima pragmtica. James buscou resumir o mesmo ponto quando ps, em seu famoso livro Pragmatismo, o subttulo: Um novo nome para algumas antigas maneiras de pensar. O pragmatista britnico Ferdinand Schiller via Protgoras como o primeiro pragmatista, situando, com isso, o nascimento do pragmatismo no sculo V a.C.

Pragmatismo em sentido amploAinda de acordo com De Waal, em sentido amplo, o pragmatismo [...] desenha uma conexo ntima entre teoria e prtica, entre pensamento e ao (2007: 18). Alm de Peirce, James e outros membros do Clube Metafsico tratam da questo do pragmatismo. James tem uma concepo mais ampla que a de Peirce. Para James o pragmatismo uma teoria do significado, mas tambm, e de maneira mais proeminente, uma teoria da verdade (DE WAAL, 2007: 18). A concepo mais estreita, de Peirce, sustenta o pragmatismo como um critrio de significao, que estipula ser o significado de qualquer conceito nada mais do que a soma total de suas conseqncias prticas concebveis (DE WAAL, 2007: 18). importante ressaltar que o pragmatismo, para Peirce, um mtodo e no uma teoria. Enquanto uma teoria permite alegaes acerca de como so as coisas em relao s quais ela uma teoria, o pragmatismo, embora permita concluir certas coisas, chegar a certos contedos, diz respeito, primeiramente, ao mtodo, [...] a como devemos realizar nossas atividades como filsofos, cientistas, detetives de homicdios, contabilistas, etc., todas as vezes que nos engajamos na inquirio (DE WAAL, 2007: 22).UFMS - Cidade Universitria, Av. Costa e Silva, s/n - Caixa Postal 549 CEP 79070-900 Campo Grande/MS (67) 3345-7000 http://www.ufms.br

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Seu objetivo primeiro era um mtodo para determinar o significado de termos filosficos ou cientficos, com o objetivo de mostrar que certos termos filosficos no tinham significado e que certos problemas filosficos centrais eram causados por falta de clareza terminolgica (DE WAAL, 2007: 22).

O pragmatismo de PeirceO pragmatismo de Peirce tem dois perodos. Um, primeiro,[...] culmina no artigo intitulado Como tornar nossas idias claras, o segundo da srie Illustrations of the Logic of Science [Exemplificaes da lgica da cincia]. Nesse artigo, publicado em 1878, Peirce desenvolve um mtodo para determinar o significado dos conceitos, mtodo que ele sumariza na forma de uma mxima. essa mxima que Willian James tornou famosa vinte anos mais tarde, em sua fala de 1898, em Berkeley, quando a chamou de princpio do pragmatismo (DE WAAL, 2007: 25).

O segundo perodo coincide com a virada do sculo XIX para o XX. No significa uma mudana de pensamento do autor, mas, um esforo para esclarecer e diferir sua proposta do que se tornou a corrente principal do pragmatismo. A necessidade de preciso terminolgica leva Peirce a definir seu pragmatismo com base em um novo termo: pragmaticismo (DE WAAL, 2007: 128). Esse perodo pode ser representado por seis conferncias sobre pragmatismo, ministradas em Harvard, em 1903 e pela publicao (dois anos mais tarde) de trs artigos intitulados: Wat Pragmatism Is [Que pragmatismo], Issues of pragmatism [Questes de pragmatismo] e Prolegomena to an Apology of Pragmaticism [Prolegmenos a uma apologia do pragmaticismo].

O pragmatismo de Peirce no segundo perodoWillian James escreve seu A vontade de acreditar, dedicando-o ao seu velho amigo Peirce. Este lhe enviou uma longa carta de agradecimento, na qual explica algumas mudanas no seu ponto de vista. A parte do texto da carta, que faz referncia ao ensaio que deu ttulo ao livro registra:Que tudo deva ser testado por seus resultados prticos era o grande texto de meus primeiros artigos; assim, at onde compreendo seu objetivo geral em muito do que li do seu livro, estou completamente de acordo com voc nos pontos principais. Em meus ltimos artigos, vejo de maneira mais inteira do que estava habituado que no a mera ao, como exerccio de fora, que o propsito de tudo, mas, digamos, a generalizao, a ao conforme tende regularizao e atualizao do pensamento, que, sem ao, permanece impensado. (DE WAAL, 2007: 130-131).

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O que Peirce explica no texto delineia uma diferena central entre seu pensamento e o de James. De Waal escreve que:[...] embora Peirce concordasse com James em que a ao individual [] a nica significao que est no conceito, ele imediatamente acrescentava que no a mera fora arbitrria na ao, mas a vida que ela d idia que valiosa. A nfase est no geral, no no particular (DE WAAL, 2007: 131).

Se de um lado James se concentrava nas experincias, de outro, Peirce estava interessado no que chamava de hbitos. Especificamente vontade de acreditar de James Peirce argumentava que aquilo de que precisamos no uma vontade de acreditar, mas uma vontade de aprender (DE WAAL, 2007: 135). Peirce no via no pragmatismo um mtodo para solucionar problemas prticos (para os quais ele considerava mais apropriado nos basearmos nos nossos instintos), mas, um mtodo do raciocnio para problemas de ordem geral. Ele dizia que uma caracterstica importante do raciocnio que, se lhe for dado tempo suficiente, ele se autocorrigir.Aps as conferncias de Peirce em Cambridge (1898), James apresenta seu discurso em Berkeley, no qual ele introduzia o pragmatismo, enquanto, ao mesmo tempo, insistia que o pragmatismo devia ser chamado de praticalismo" (DE WAAL, 2007: 135).

Peirce, de sua vez, tendo tomado o pragmatismo como uma questo de lgica, considerou o desenvolvimento de uma prova do pragmatismo uma questo central. Ele buscou essa prova por vrios anos e, apesar de t-la deixado inacabada, sua busca perpassou pela sua organizao das cincias, incluindo a fenomenologia e as cincias normativas. Na Fenomenologia desenvolveu ideias puras de primeridade, segundidade e terceiridade em um nvel hipottico. Paralelamente, afirmou que todas as categorias esto presentes em todos os fenmenos. Decorre da que a generalidade um constituinte bsico de todos os fenmenos, o que era importante para a nfase do pragmatismo na generalidade. As cincias normativas, por sua vez, que estudam os fenmenos com relao a fins especficos (que tradicionalmente foram a beleza, a bondade e a verdade) na medida em que podemos agir sobre eles e eles sobre ns (TURRISI, apud DE WAAL, 2007: 144) -, ou seja, na sua segundidade, foram divididas em esttica, tica e lgica. A esttica considera aquelas coisas cujos fins deveriam incorporar qualidades de sentimento; a tica considera aquelas coisas cujos fins esto na ao, e a lgica, aquelas cujo fim representar alguma coisa (EP 2, 200, apud DE WAAL, 2007: 144). Peirce ainda se pergunta sobre o objetivo do raciocnio e conclui sobre trs tipos de resposta: (1) a pura satisfao esttica; (2) nos levar a certas experincias concretas preordenadas e (3) nos levar s relaes reais dentro da natureza e treinar a razo para se conformar a elas. As duas primeiras respostas ele considerou inapropriadas a um realista. A terceira tem, alm do cunho realista, um evolucionista, que est de acordo com sua filosofia. Para Peirce, esse fimUFMS - Cidade Universitria, Av. Costa e Silva, s/n - Caixa Postal 549 CEP 79070-900 Campo Grande/MS (67) 3345-7000 http://www.ufms.br

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do pensamento um caso de adaptao: O raciocnio no algo externo ao universo, mas no curso de seu desenvolvimento o organismo humano (como qualquer outro organismo) internalizou mesmo que imperfeitamente parte da ordem dinmica do universo, um universo que ainda est, ele mesmo, em evoluo (DE WAAL, 2007: 147).De acordo com a interpretao realista do pragmatismo, o significado de um conceito, assim, no alguma experincia ou ato singular (essa sendo somente uma fase intermediria), mas como tais efeitos prticos contribuem para o desenvolvimento da razoabilidade do universo (CP 5, 3). No se ganha entendimento coletando fatos desconexos, mas entrando em afinao com a razoabilidade concreta do cosmos. (DE WAAL, 2007: 147)

Da mxima pragmatista de 1878 permanece o ponto central, todavia, torna-se mais especfica. No incio do sculo XX (28 de maio de 1912),Peirce escreveu a Howes Norris Jr. que quando batizara o pragmatismo derivara seu nome de pragma (comportamento), para mostrar que o pragmatismo se refere viso segundo a qual a nica significncia real de um termo geral est no comportamento geral que ele implica (apud DE WAAL, 2007: 149).

Posteriormente, Peirce apresentou uma formulao da mxima nos termos de sua semitica ou doutrina dos signos e que ele acreditava ser equivalente de 1878:O teor intelectual inteiro de qualquer smbolo consiste no total de todos os modos gerais de conduta racional, condicionalmente sob todas as possveis condutas e desejos diferentes que se seguiram da aceitao do smbolo (EP 2, 346, apud DE WALL, 2007: 151).

Nessa definio Peirce associa o significado do pragmatismo com o smbolo, terceiro signo da trade - cone ndice, smbolo correspondente s relaes convencionais entre signo e objeto, ou seja, daquelas baseadas nas regras (naturais ou adquiridas) e cujo significado est no hbito.

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A semitica filosfica de PeirceNessa introduo semitica de Charles Santiago Sanders Peirce pretendemos oferecer ao leitor um panorama dessa que , nas palavras do autor, uma quase necessria, ou formal, doutrina dos signos (PEIRCE, 1977:45). A partir deste texto o leitor poder avanar nos seus estudos acerca dessa semitica. Para subsidi-lo nesse caminho oferecemos uma bibliografia tambm inicial, na qual esto includos tanto textos do prprio Peirce quanto de estudiosos do seu pensamento filosfico ou da sua semitica no Brasil.

Por que a semitica de Peirce dita filosfica?A semitica como doutrina dos signos em sentido estrito uma cincia relativamente recente, embora uma semitica avant la lettre remonte filosofia antiga (NTH, 1995: 20):A semitica propriamente dita tem seu incio com filsofos como John Locke (1632-1704) que, no seu Essay on human understanding, de 1690, postulou uma doutrina dos signos com o nome de Semeiotik, ou com Johann Heirich Lambert (1728-1777) que, em 1764, foi um dos primeiros filsofos a escrever um trabalho especfico intitulado Semiotik. A doutrina do signo, que pode ser considerada como semitica avant la lettre, compreende todas as investigaes sobre a natureza dos signos, da significao e da comunicao na histria das cincias. E a origem dessas investigaes coincide com a origem da filosofia: Plato e Aristteles eram tericos do signo e, portanto, semioticistas avant la lettre.

Ainda de acordo com Nth (1995: 23), a semitica como teoria geral dos signos teve vrias denominaes no decorrer da histria da filosofia, sendo seu maior rival terminolgico semiologia; termo surgido alguns decnios antes que Locke, em 1690, postulasse uma doutrina dos signos com o nome Semeiotik. J em 1659, o filsofo alemo Johannes Schulteus falou de uma doutrina geral do signo e do significado, sob o ttulo Semeiologia Metaphysik (NTH, 1995: 25). Em que pese essa origem filosfica, Nth explica que no sculo XX,[...] o termo semiologia ficou ligado tradio semitica fundada no quadro da lingstica de Ferdinand de Saussure e continuada por semioticistas como Louis Hjelmslev ou Roland Barthes. Sob essas influncias, semiologia permaneceu durante muito tempo como o termo preferido dos pases romnicos, enquanto autores anglfonos e alemes preferiram o termoUFMS - Cidade Universitria, Av. Costa e Silva, s/n - Caixa Postal 549 CEP 79070-900 Campo Grande/MS (67) 3345-7000 http://www.ufms.br

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semitica. Alguns semioticistas, porm, comearam a elaborar distines conceituais entre semiologia e semitica: semitica, designando uma cincia mais geral dos signos, incluindo os signos animais e da natureza, enquanto semiologia passou a referir-se unicamente teoria dos signos humanos, culturais e, especialmente, textuais. [...] A rivalidade entre esses dois termos foi oficialmente encerrada pela Associao Internacional de Semitica que, em 1969, por iniciativa de Roman Jakobson, decidiu adotar semitica como termo geral do territrio de investigaes nas tradies da semiologia e da semitica geral.

Apesar da unificao do termo, a distino entre semitica de origem filosfica e semitica de origem lingstica foi mantida durante o sculo XX e at hoje (incio do XXI) decorrente das diferentes concepes de signo e, consequentemente, dos modos de entender o processo de significao, bem como seus objetos. Diferentemente da tradio fundada no quadro da lingstica de Saussurre, a semitica de Peirce segue dentro da tradio filosfica. Atualmente, outras correntes da semitica j so amplamente conhecidas, como se pode conferir em Nth (1996), contudo, as correntes filosfica (de Peirce) e lingsitica (de Saussure) permanecem sendo as mais importantes do sculo XX.

Qual o lugar da semitica no sistema filosfico de Peirce?Na arquitetura filosfica de Peirce filosofia concebida como parte das cincias tericas e, dentre essas, das heursticas (ou cincias da descoberta). O diagrama abaixo representa parte da cartografia das cincias2 elaborada por Peirce, onde se pode visualizar o lugar da filosofia e, tambm, da semitica.1. Heursticas (cincias da descoberta) a. b. Matemtica Filosofia i. Fenomenologia

ii. Cincias Normativas 1. 2. 3. Esttica tica Lgica ou semitica a. b. c. iii. Metafsica c.2

Gramtica. Especulativa Lgica Crtica Retrica Especulativa (Metodutica)

Cincias Especiais

Ver mais sobre a classificao das cincias em: Santaella, Lcia. A Assinatura das Coisas: Peirce e a Literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992 (cap.5).UFMS - Cidade Universitria, Av. Costa e Silva, s/n - Caixa Postal 549 CEP 79070-900 Campo Grande/MS (67) 3345-7000 http://www.ufms.br

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A filosofia, localizada como a segunda das cincias heursticas, precedida pela matemtica e seguida pelas cincias especiais. As posies primeira, segunda e terceira nesse diagrama seguem a lgica das categorias fenomenolgicas de Peirce e, portanto, tem um sentido de evoluo. O fato de a filosofia ser precedida pela matemtica implica dizer que essa primeira lhe fornece certa base e que essa , tambm, a mais independente (livre) das cincias heursticas. Sobre isto Santaella esclarece:Enquanto a Matemtica estuda o que logicamente possvel sem se fazer responsvel pela existncia atual desse possvel, a Filosofia tem por funo descobrir o que realmente verdadeiro, limitando-se porm, verdade que pode ser inferida da experincia comum que est aberta a todo homem, a qualquer instante. A Filosofia tambm uma cincia, e assim deve ser tratada, no no sentido de emprestar de qualquer outra cincia um modelo para seu funcionamento reconhecidamente cientfico. Ao contrrio, a Filosofia precisa encontrar, dentro dela mesma, seu modo prprio de ser cincia, isto , tambm deve empregar mtodos de observao, hiptese e experimento, tanto quanto toda e qualquer outra cincia deve, mas modificando-os e adaptando-os ao perfil que lhe especfico (SANTAELLA, 1992:121, grifos nossos)

As cincias especiais, diferentemente dessas primeiras, so cincias factuais, especializadas em certos tipos de fatos (fsica, qumica, biologia), os quais requerem mtodos especficos (no diretos) de observao (microscpios, telescpios) e experimentao (laboratorial ou outra); portanto, no abertos a qualquer homem comum. A Semitica, uma vez localizada entre as cincias filosficas, concebida, tambm, como uma cincia baseada na experincia comum. Alm disso, note-se que (1) ela tambm entendida como lgica, (2) a terceira entre as cincias normativas e (3) estas ltimas so, por sua vez, segundas dentre as cincias filosficas, precedidas pela fenomenologia. A relao entre as trs cincias filosficas fenomenologia, cincias normativas e metafsica segue, tambm, a lgica tridica e evolutiva. Assim, em certo sentido, a fenomenologia deve fornecer as bases para o pensamento nas cincias normativas e este para o metafsico. A fenomenologia se interessa pelos fenmenos em geral reais, existentes ou meramente possveis , que esto presentes na experincia; por descrev-los e classific-los, sem perguntar se eles correspondem ou no a uma realidade ou a algum tipo de fato. A fenomenologia peirceana vai classificar os fenmenos em trs grandes tipos: os de primeiridade (firstness), os de secundidade ou segundidade (secondness) e os de terceiridade (thirdness). Essa denominao emprestada da matemtica e contm a ideia evolutiva - de que um primeiro aquele que independe de qualquer outro, um segundo depende da existncia de um primeiro, do mesmo modo que um terceiro depende de um segundo e, consequentemente, de um primeiro. As cincias normativas subdivididas em esttica, tica e lgica ou semitica - estudam os fenmenos, segundo certas especificidades e normas. Nas palavras de Peirce,[...] a esttica considera aquelas coisas cujos fins devem incorporar qualidades do sentir, enquanto que a tica considera aquelas coisas cujos fins residem na ao, e a lgica, aquelas coisas cujo fim o de representar alguma coisa (PEIRCE, 1977:201).UFMS - Cidade Universitria, Av. Costa e Silva, s/n - Caixa Postal 549 CEP 79070-900 Campo Grande/MS (67) 3345-7000 http://www.ufms.br

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Seu carter normativo est em procurar chegar, respectivamente, ao que deve ser o admirvel em si mesmo (esttica), a como deve ser a conduta para que ela seja correta (tica) e a como deve ser o pensamento para que ele seja correto. Sobre a relao de dependncia (evolutiva) entre as trs Peirce escreve que o mago da lgica reside na classificao e na crtica dos argumentos (PEIRCE, 1977:201); em ltima anlise, no raciocnio em si. Mas o raciocnio envolve essencialmente autocontrole e, considerando que (1) um pensador lgico um pensador que exerce um grande autocontrole sobre suas operaes intelectuais (PEIRCE, 1977:202); (2) que o autocontrole pressupe aprovao e (3) que a aprovao de um ato voluntrio uma aprovao moral [...] [sendo a tica responsvel pelos] estudos sobre quais as finalidades de ao que estamos deliberadamente preparados para adotar (PEIRCE, 1977:201), ento o bem lgico simplesmente uma espcie particular do bem moral (PEIRCE, 1977:202). Estabelece-se a uma dependncia do bem da lgica (ou semitica) para com o bem da tica. De modo anlogo, se estabeleceu uma dependncia deste ltimo bem (da tica) para com o bem esttico, conforme se pode ler a seguir:[...] um fim ltimo da ao deliberadamente adotada isto , razoavelmente adotada deve ser um estado de coisas que razoavelmente se recomenda a si mesmo em si mesmo, parte de qualquer considerao ulterior. Deve ser um ideal admirvel, tendo o nico tipo de bem que um tal ideal pode ter, ou seja, o bem esttico. Deste ponto de vista, aquilo que moralmente bom surge como uma espcie particular daquilo que esteticamente bom (PEIRCE, 1977:201).

A metafsica, como terceira das cincias filosficas, tem a tarefa de estudar a realidade. No tal como o fazem as cincias especiais como a fsica, a qumica ou a biologia. Enquanto estas ltimas estudam caractersticas particulares da realidade, cabe metafsica estudar aquilo que mais geral (e, portanto, comum a tudo). Alm disso, diferentemente dessas cincias especiais (que utilizam mtodos especiais de observao e experimentao), a metafsica deve (como uma cincia filosfica) limitar-se observao direta. A metafsica peirciana vai classificar essa realidade como permeada por trs princpios ativos acaso, existncia e lei cuja relao evolutiva seria responsvel por todas as coisas no Universo. Alm disso, uma vez que esses princpios continuam sempre ativos, sua ideia de Universo necessariamente a de algo em evoluo. O acaso seria responsvel por um princpio segundo o qual a variao e a diversificao so sempre possveis; a existncia pela atualizao tornar ato, tornar fato, tornar existente daquilo que o acaso torna possvel; a lei por aquilo que percebido como regular ao longo do tempo no universo existencial.

O que se quer dizer quando se diz que a semitica de Peirce geral?Como se disse acima com base em Nth, no sculo XX a semitica seguiu principalmente duas tendncias, que podem ser resumidas em lingsiticas e filosficas. Essas tendncias tm relao com a origem a base - dessas semiticas, ou seja, com aquilo que se observa para abstrair dele sua generalidade sgnica.

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Sabe-se, ainda segundo Nth, conforme citado acima, que a semitica de origem lingstica e baseada no pensamento de Saussure vem de uma tradio de estudo dos signos humanos, culturais e, especialmente, textuais. Em que pese o fato de essa semitica ampliar seu campo de abrangncia, como de fato tem feito, dada a noo ampla de texto (entendido no apenas como lingstico, mas, tambm, como visual e outros), o que contribui para um maior generalidade, ainda se mantm o fato de ela ter sido originada com base na observao de um tipo especfico de fenmeno: a lngua. Deve decorrer da que sua aplicao deve estar limitada ocorrncia, nos demais tipos de texto, de uma semitica anloga a essa especfica, de modo a se poder aplicar seus mtodos de anlise. A semitica peirceana, por sua vez, tem a pretenso de tomar por base a observao de todo tipo de fenmeno (sem distino sobre se ele lingstico ou no; ou mesmo se ele humano ou no). Fundamentada nessa fenomenologia ampla, ela elabora sua ideia de signo como o elementos base por meio do qual o pensamento age. E, assim como o fenmeno, o pensamento entendido como algo que no se limita ao humano. Para Peirce o pensamento no algo que nasce com o humano (como se o mundo antes dele no pensasse); , por outro lado, algo que caracteriza a mente do mundo e, portanto, toda e qualquer mente que dele nasce, sendo a humana apenas um tipo especfico de mente em pensamento. Assim, a semitica de Peirce se prope como de uma generalidade do mais alto grau. Saliente-se que ela no se apresenta como definitiva, dado que toma por base a hiptese de um Universo em pensamento e, portanto, em evoluo. Essa generalidade, parece recomendar que a aplicao de seus conceitos a semiticas especficas seja acompanhada de um estudo das classes de signos que definem essas semiticas, sob vrios aspectos, de modo a desenvolver apropriaes especficas dos conceitos.

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As bases da semitica de Peirce na sua fenomenologiaA Fenomenologia, tambm nomeada por Peirce de Doutrina das Categorias ou Faneroscopia, foi definida pelo filsofo como a descrio do faneron: [...] por faneron eu entendo o total coletivo de tudo aquilo que est de qualquer modo presente na mente, sem qualquer considerao se isto corresponde a qualquer coisa real ou no (apud IBRI, 1992:4.). Decorre da que: (1) no compete Fenomenologia inventariar categorias como modos de ser da realidade, mas da aparncia, do modo como esta possvel realidade , por ns, experienciada quotidianamente e (2) a Fenomenologia no faz qualquer discriminao entre experincia interior ou exterior; assim, um sonho, uma lembrana, uma dor, um pensamento qualquer ou todo o mundo exterior so igualmente fenmenos. Tambm no compete a esta cincia aquilo que particular na experincia, visto que o que a entretecer um modo geral de ser que permeia toda experincia (IBRI, 1992:4). Os fenmenos (fanerons) esto abertos experimentao de qualquer homem comum; e so as caractersticas do que comum a todos eles que a fenomenologia se prope a distribuir em classes gerais, capazes de dar conta do todo daquilo que aparece. Como doutrina filosfica, a Fenomenologia no busca qualquer anlise especial (por exemplo, laboratorial) dos fenmenos, apenas observa os modos pelos quais esses aparecem mente (esto na experincia). A experincia , tambm, o campo de teste das suas concluses; como escreve Ibri, as descobertas da Fenomenologia, podero ser postas prova pelo prprio leitor, j que o universo da experincia fenomnica identifica-se com a experincia cotidiana de qualquer ser humano (IBRI, 1992:4.). Cabe ao estudante de fenomenologia, nas palavras de Ibri,[...] abrir os olhos mentais, olhar bem para o fenmeno e dizer quais so as caractersticas que nele nunca esto ausentes, seja este fenmeno algo que a experincia externa fora sobre nossa ateno, ou seja o mais selvagem dos sonhos ou a mais abstrata e geral das concluses da cincia (1992:5):

As faculdades que ele deve ter para essa tarefa so, segundo Peirce (apud IBRI, 1992: 5-6):A primeira e principal aquela rara faculdade, a faculdade de ver o que est diante dos olhos, tal como se apresenta sem qualquer interpretao... Esta a faculdade do arista que v, por exemplo, as cores aparentes da natureza como elas se apresentam...

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A segunda faculdade de que devemos nos munir uma discriminao resoluta que se fixa como um bulldog sobre um aspecto especfico que estejamos estudando, seguindo-o onde quer que ele possa se esconder e detectando-o sob todos os seus disfarces. A terceira faculdade de que necessitamos o poder generalizador do matemtico, que produz a frmula abstrata que compreende a essncia mesma da caracterstica sob exame, purificada de todos os acessrios estranhos e irrelevantes.

Essas faculdades podem ser sintetizadas em (1) simplesmente ver, (2) atentar para, e (3) abstrair3. Nos seus estudos Peirce chegou concluso de que o todo fenomnico poderia ser classificado em trs categorias; denominadas primeiridade (firstness), secundidade4 (secondness) e terceiridade (thirdness). A primeira exposio sistemtica das categorias est no artigo On a New List of Categories (CP 1.545-67), publicada no Journal of Speculative Philosophy (1867). Desde ento Peirce passou a estud-las e tratou delas em outros textos (a exemplo de: A Guess at the Ridle CP 1.354-1.416, de 1980 e The Logic of Mathemathics: An Attempt to Develop my Cathegories from Within CP 1.417-1.520), at depois de 1900, quando suas categorias passam a fazer parte da sua Fenomenologia. Nesse tempo Peirce tentou se ver livre da sua triadomia (mania de ver trs em tudo), contudo, os estudos aprofundados de Lgica apenas reforavam a necessidade de aceitar a trade das categorias (cf. CP 1.568-70, 8.328 ou SS.24). Examinemos, em seguida, cada uma delas.

PrimeiridadeA primeira categoria traz em si a ideia de primeiro: A prpria palavra primeiro sugere que sob esta categoria no h outro (IBRI, 1992:10). A ideia de primeiro tambm est associada de liberdade; Livre aquilo que no tem outro atrs de si determinando suas aes [...] (PEIRCE apud IBRI, 1992:11). A liberdade da primeiridade exemplarmente caracterizada quando admiramos certos fenmenos da natureza; dado que uma experincia comum, diante de uma paisagem, como um pr-do-sol, um sentimento (uma experincia) de deslumbramento. Sem pedir licena, esse sentimento se sobrepe a tudo o que eventualmente ocupasse nossas mentes, colocando-a em estado no (auto) controlado; livre. Nesse libertar-se da razo tendemos a devanear por lembranas (experincias) da nossa mente as mais diversas; s vezes esquecidas no tempo. De modo semelhante, isso acontece diante das grandes produes do homem, seja no mundo da arte (pintura, msica, teatro, arquitetura) ou, mesmo, de grandes descobertas cientficas. Elas so, tambm, capazes de ativar esse estado de total liberdade da mente, faze-la vagar por um mundo de mltiplas possibilidades, como que vivenciando uma fuso de si prpria (da mente) com o objeto da experincia.3

A esse respeito, tambm, SANTAELLA (1983: 33) escreve:[...] 1) a capacidade contemplativa, isto , abrir as janelas do esprito e ver o que est diante dos olhos; 2) saber distinguir, discriminar resolutamente diferenas nessas observaes; 3) ser capaz de generalizar as observaes em classes ou categorias abrangentes. 4 Tambm traduzida para o portugus como segundidade, conforme o autor.UFMS - Cidade Universitria, Av. Costa e Silva, s/n - Caixa Postal 549 CEP 79070-900 Campo Grande/MS (67) 3345-7000 http://www.ufms.br

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Nesse estado de conscincia a experincia sente as meras qualidades das coisas - como uma cor ou um som, um odor ou um sabor -, em si mesmas, de modo puro, sem se perguntar a que pertencem, se so reais ou se de fato existem. Isso porque nessa experincia, que se caracteriza por ser imediata, no h, para esta mesma conscincia, fluxo de tempo. [...] Ela uma conscincia que, por ser o que sem referncia a mais nada, est absolutamente no presente, na sua ruptura com passado e futuro (IBRI, 1992: 10). Seu universo o das coisas meramente possveis, do sonho, da livre imaginao... A ela denominamos conscincia de primeridade. Passada a experincia e perguntando, a ns mesmos, em que consistiu aquele momento? no podemos precisar exatamente. Podemos apenas represent-lo de alguma forma em nossa mente, como pura indeterminao. evidente que, quando isso ocorre, aquele estado j se foi e um outro momento presente tem lugar. quele estado de conscincia, Peirce denomina primeiridade e a pura presentidade uma das ideias tpicas a ele associadas. Essa pura presentidade quebrada quando quela unidade na mente (com as puras qualidades), segue-se uma sensao de dualidade, dada por algo que lhe externo (segundo) e que se percebe associado quela qualidade (primeira). Essas qualidades, portanto, deixam de ser sentidas em estado puro e passam a ser percebidas como pertencentes a um objeto qualquer. A sensao de que uma qualidade existe em uma coisa outra (que no ela mesma), j prpria da ideia de secundidade. Adentramos, portanto, no terreno da segunda categoria.

SecundidadeNote-se que [...] a qualidade apenas uma parte do fenmeno, visto que, para existir, a qualidade tem de estar encarnada numa matria (SANTAELLA, 1983: 47). O vermelho vermelho do sangue, da rosa; da que, o que antes era sentido como pura experincia interna da mente percebido como propriedade de outro. Esses fatos externos, que atingem nossos sentidos (tato, olfato, viso...), so as nossas sensaes. Enquanto a conscincia de primeiridade transita sem discriminao pelas meras qualidades dos fenmenos, e por ideias a elas associadas de modo livre pela mente, a conscincia de segundidade forada a experienciar o outro (a alteridade) na sua caracterstica material, factual, dura; que no cede pura liberdade da mente e contra os quais ela forada a reagir. A nossa experincia de vida est repleta de fatos externos outros para nossa mente - contra os quais estamos continuamente reagindo. Perceber este mundo existencial confrontar-se com aquilo que se ope ao meramente aparente, imaginrio, possvel, potencial que caracteriza a experincia de primeiridade. assim que esta experincia se d como uma relao de ao e reao, vivida a um s tempo na conscincia:Voc tem esse tipo de conscincia de uma maneira pura, com alguma aproximao, quando coloca seu ombro contra uma porta e tenta for-la a se abrir. Voc tem um sentimento de resistncia e, ao mesmo tempo, um sentido de esforo. No pode haver resistncia sem

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esforo; no pode existir esforo sem resistncia. Eles so apenas dois modos de descrever a mesma experincia. uma dupla conscincia. (PEIRCE apud IBRI, 1992: 7)

Este o territrio prprio daquilo que efetivamente configura-se como alteridade. Outro no fenmeno aquilo que, embora pensvel, independe de ter sido pensado; portanto, das nossas criaes ou vontades.Parece ser evidente que, desde nossa mais precoce experincia de estar no mundo, percebemos que o transcurso deste mesmo mundo no se sujeita nossa vontade e, muitas vezes, contraria a idia que dele fazemos. (PEIRCE apud IBRI, 1992: 7)

Neste territrio se pode localizar, tambm, toda a experincia pretrita sobre a qual no se tem qualquer poder modificador (IBRI, 1992: 7). Considere-se que cada evento de nossa vida passada tem uma existncia, na sua individualidade e no seu espao-tempo, tal qual os objetos do mundo material. Na sua condio de fato passado, permanece sendo tal qual , independente do que se possa pensar que seja. oportuno observar, j introduzindo a terceira categoria fenomenolgica, que os fatos individuais da nossa experincia passada, como colocado acima, diferem de uma interpretao dessa mesma experincia. No primeiro caso, aquela experincia assume o modo de ser da segunda categoria (secundidade); e no segundo, o modo de ser da terceira categoria (terceiridade). Sob a segunda categoria os fatos (passados) tm seu ser localizado no espao e tempo passado, permanncia e independncia de nossa vontade. Conforme Peirce, Se voc se queixar ao Passado que ele est errado e no razovel, ele se rir. Ele no confere a menor importncia Razo. Sua fora bruta (apud IBRI, 1992: 8). Quando, entretanto, esses fatos so interpretados de modo a gerar uma ideia geral do vivido, estamos sob o terreno da terceira categoria (terceiridade). O mesmo ocorre quando interpretamos em uma ideia geral as coisas materiais s quais pertencem aquelas qualidades antes sentidas sem relao a qualquer materialidade ou factualidade.

TerceiridadeA terceira categoria traz a ideia de um terceiro mediador interpondo-se entre um primeiro e um segundo: a experincia de mediar entre duas coisas traduz-se numa experincia de sntese, numa conscincia sintetizadora (IBRI, 1992: 13). De acordo com Peirce, essa mediao um tipo de ideia geral que representa uma relao entre aquela experincia de liberdade com os fenmenos e os fatos: A terceira categoria tal qual por ser um Terceiro ou Meio entre um Segundo e seu Primeiro. [...] Terceiridade, como eu uso o termo, apenas um sinnimo para Representao... (apud IBRI, 192: 15). O processo caracterizado a tomado como a prpria natureza daquilo que chamamos de pensamento e essencial para tornar as coisas inteligveis. Nas palavras Ibri (1992: 14),Experienciar a sntese, [...] traz consigo o sentido de aprendizagem, de deteco de um novo conceito na conscincia fazendo a mediao ser da natureza da cognio. Esta experinciaUFMS - Cidade Universitria, Av. Costa e Silva, s/n - Caixa Postal 549 CEP 79070-900 Campo Grande/MS (67) 3345-7000 http://www.ufms.br

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como terceiro modo do fenmeno, traz, ao contrrio das experincias imediatas de primeiro e segundo, um sentido de fluxo do tempo caracterizado na urdidura do processo de cognio.

A ideia de tempo em processo aparece, portanto, vinculada ao pensamento em processo e vice versa, o que enfatizado por Ibri (1992: 14) em: Todo fluxo de tempo envolve aprendizagem; e toda aprendizagem envolve fluxo de tempo. Este sentido de fluxo de tempo que coloca ideia de aprendizagem como um processo no tempo corresponde tambm ideia geral de evoluo. Em resumo, a conscincia de qualidade - sem qualquer relao ou anlise - primeira, a conscincia do outro - que reage - segunda, e a conscincia sintetizadora - que aprende - terceira. No h dvida que o curso da vida est repleto de experincias desta natureza e evidente que tudo isto est de algum modo interligado. Para Peirce, isto s possvel porque esses estados da conscincia esto em continuidade. Essa passagem pela Fenomenologia evidencia que qualquer fenmeno, interno ou externo, para ser compreendido, deve produzir uma ideia geral (pensamento) a qual deve representar experincias fenomnicas anteriores (ao pensamento) de primeiridade e secundidade. Isso caracteriza essa ideia como resultado de um processo que envolve transformao, crescimento e complexificao (evolutivo). Cabe aqui salientar que, em que pese essa viso do processo, que lhe confere certa linearidade, os estados de conscincia caracterizados na Fenomenologia permeiam nossa mente simultaneamente: enquanto pensamos, estamos simultnea e continuamente, sentindo e reagindo contra o mundo nossa volta.

As categorias e ideias a elas associadasNas trs categorias fenomenolgicas de Peirce, os tipos de experincia e estados de conscincia que as caracterizam so:PRIMEIRIDADE Experincia imediata Experincia com as qualidades puras e simples; de unidade da mente com essas qualidades. Qualeconscincia So ideias associadas: Possibilidade qualitativa positiva. Pura liberdade: O livre aquele que no tem outro atrs de si, determinando suas aes. SECUNDIDADE Experincia direta Experincia com o outro; com a existncia do outro. Conscincia de alteridade Negao que se ope pura liberdade. Modo de ser do que apenas em relao a um segundo. Causa e efeito. TERCEIRIDADE Experincia de mediao Experincia de mediao (representao) Conscincia de sntese Meio entre os absolutos primeiro e ltimo; o comeo primeiro, o ltimo segundo e o meio terceiro. Mediao.

Exemplos clssicos das categorias so:PRIMEIRIDADE Sentir o vermelho (sem perceber ou se perguntar se ele o vermelho de alguma outra coisa). SECUNDIDADE Perceber o objeto que vermelho (meramente como outro, sem fazer relao). TERCEIRIDADE Interpretar esse objeto como sendo vermelho (relacionar).

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A validade das trs categorias confirmada por Peirce, entre outras coisas, pela sua ideia de reduo tridica; ou seja, de que tudo, at o mais complexo dos fenmenos, pode ser reduzido a (desmembrado em) relaes de trs, e estudado como tal. Essa ideia est apoiada na Matemtica, onde por meio de diagramas ele demonstra que toda relao que ttrade ou pentaedral (CP 1.347) pode ser reduzida a relaes tridicas. As trades foram observadas por Peirce em diferentes ramos da matemtica (lgebra, geometria, lgica dos relativos):PRIMEIRIDADE 1 - Primeiro (sem precedente ou relao) (ponto) Mnada. Uno (sem partes). SECUNDIDADE 2 - Segundo (implica a precedncia de um 1) (linha) Dade. (que combina dois elementos). TERCEIRIDADE 3 - Terceiro (entre um 1 e um 2) < (bifurcao) Trade (que combina dois ou um nmero qualquer de elementos).

Em resposta s perguntas Por que no dois? ou Por que parar no trs? e Por que no seguir at encontrar uma nova concepo em quatro, cinco e assim indefinidamente? Peirce afirma ser impossvel formar um trs genuno pela modificao do par, sem introduzir algo de natureza diferente da unidade e do par. E, medida que toda combinao pode ser obtida por combinaes de trades, no temos ttrades, ou outras n-ades enquanto elementos indecomponveis do fenmeno (PEIRCE, CP 1.363). dele o seguinte exemplo: imagine um fato qudruplo como A vende B a C pelo preo D. Isto composto de dois fatos: primeiro A faz com C uma certa transao que eu chamo de E; segundo essa transao E a venda de B pelo preo D. Cada um desses dois fatos um fato triplo e sua combinao to genuna quanto um fato qudruplo pode ser (CP 1.363). No estudo em detalhes das categorias da primeiridade (CP 1.300 1.321) secundidade (CP 1.322-1.336) e terceiridade (CP 1.337-1.353), essas foram associadas a diferentes ideias. A tabela a seguir est organizada com base em algumas delas:

PRIMEIRIDADE Na mente humana QUALIDADE DE SENTIMENTO Variedade de qualidades de sentimento na interioridade. Incondicionalidade do sentimento em relao conscincia e ao tempo. Novidade, originalidade, espontaneidade, vagueza. Na psicologia INDIFERENCIAO ENTRE SER E NO SER Anterior ruptura entre o ser e o no ser (ausncia total do problema).

SECUNDIDADE AO Compulso para agir/reagir, levado por impulso, fora bruta, fora binria, esforo e resistncia, conflito, ao mtua, oposio entre pares, constrangimento. NO-EGO

TERCEIRIDADE PENSAMENTO Cognio, inteligibilidade, generalizao, conceituao, interpretao, aprendizagem, anlise. Hbitos de pensamento.

EGO

No-Eu o OUTRO alter que Eu como o resultado cognitivo do denuncia a existncia do Eu e que o viver (Homem). prprio piv do pensamento. Modelador da ao e da conduta.

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PRIMEIRIDADE No espao-tempo PRESENTE ABSOLUTO

SECUNDIDADE

TERCEIRIDADE FLUXO DO TEMPO Conscincia de um processo. Intencionalidade para o futuro. Tempo e espao passados representados. Previso segundo probabilidades. LEI Mundo como regularidade. Os fatos reduzidos a uma regularidade constituem as leis da natureza. Mundo como um conjunto de leis (hbitos) que governam os fatos (no futuro).

RUPTURA ENTRE PASSADO E PRESENTE Presente absoluto, sem aqui e agora e Aqui e agora, em oposio a um sem fluxo do tempo. passado que aparece como fora Ruptura com o passado e o futuro ou bruta, por meio da memria. com qualquer delimitao de espao. Definio de um espao tempo que Espao e tempo meramente pertence ao fenmeno. possveis. Na Metafsica (princpios atuantes na realidade) ACASO EXISTNCIA Mundo como interioridade, Mundo material. potencialidade. Responsvel pela Mundo como exterioridade/fato, variedade e diversidade na natureza, evento aqui e agora/atual. pela livre (sem regularidade) Mundo como atualizao daquilo distribuio das coisas na que era mera potncia. exterioridade (existncia).

No campo da Filosofia, as contribuies mais importantes do entendimento dessas categorias esto, talvez, na Semitica, a cincia dos signos e da significao. Peirce no apenas concebeu que o elemento mnimo da significao o signo um fenmeno de terceiridade, como concluiu pela sua natureza tridica composto ele mesmo de trs constituintes - analisou cada um deles fundamento, objeto e interpretante - segundo uma concepo tridica. Com base nisso, elaborou sries de tricotomias combinaes trs a trs dos elementos do signo considerando suas variaes lgicas - segundo as quais os signos so classificados. Essas fornecem a base tanto para o entendimento da significao em geral quanto para uma semitica aplicada a sistemas de signos especiais (embora Peirce no tenha se dedicado a essa ltima tarefa; seu intuito foi sempre conceber uma lgica geral).

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O signo tridico, a ideia de semiose e a trade cone-ndicesmbolo

SemiticaA Fenomenologia, como primeira das cincias da Filosofia, constitui a base de todo o pensamento filosfico de Peirce. A descoberta das trs categorias universais de toda experincia e todo pensamento, lembra Santaella, fez parecer ao prprio Peirce fantasia absurda e detestvel reduzir toda multiplicidade e diversidade dos fenmenos ao nmero de trs e, sobretudo, a uma gradao 1, 2, 3 (SANTAELLA, 1983: 35). Entretanto, o prprio autor acaba convencido de sua descoberta, tendo, como escreve Ibri, demonstrado, em mais de uma passagem, sua irredutibilidade e suficincia (1992:6). A fim de comprovar a veracidade das categorias, o autor realizou diversos estudos, tendo encontrado suas correspondentes em outras cincias, da lgica e psicologia, metafsica, fisiologia e fsica (SANTAELLA, 1995: 17). Na Lgica ou Semitica (Lgica em sentido amplo) reside grande parte do potencial desta filosofia para as demais investigaes e, especialmente, para o estudo das linguagens de um modo geral. O pesquisador, na Fenomenologia, busca estudar os aspectos mais gerais do modo como o mundo aparece: Como cincia das aparncias, a Fenomenologia nada afirma sobre o que , nem sobre o que deve ser, prescindindo, por isso, de uma Lgica que valide seus argumentos; ela apenas constata aquilo que est de modo ubquo diante da conscincia (IBRI, 1992:20). O caminho para a verdade das coisas, na Filosofia ou em qualquer cincia, requer um raciocnio capaz de conduzir tal busca, um raciocnio correto. A Lgica, como Peirce a concebeu, insere-se neste ponto, como o ramo da Filosofia que tem por tarefa investigar aquilo que de um modo geral determina como deve ser nosso raciocnio para que ele seja correto. A Lgica, ou Semitica ocupa, na classificao das cincias de Peirce, o lugar da terceira das cincias normativas, ao lado da Esttica e da tica5. Como observa Santaella (1995: 101-140), em toda a classificao das cincias de Peirce, e tambm na ordenao das cincias normativas, h uma importante correspondncia com as categorias universais inventariadas na5 Sobre as relaes entre Esttica, tica e Lgica, consultar SANTAELLA (1992), pp. 101-140.UFMS - Cidade Universitria, Av. Costa e Silva, s/n - Caixa Postal 549 CEP 79070-900 Campo Grande/MS (67) 3345-7000 http://www.ufms.br

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Fenomenologia. Assim, Esttica, tica e Lgica mantm relaes com a primeiridade, segundidade e terceiridade, respectivamente. Lgica, coube uma correspondncia com a terceira categoria e, portanto, com aquilo que da natureza do pensamento. Na sua condio de cincia normativa, evidencia-se, como escreve Ibri, o aspecto normativo em [...] lgica a teoria do raciocnio correto, de como o raciocnio deve ser, no de como ele [...] (apud IBRI, 1992:23). Observe-se aqui que, embora a investigao puramente semitica tenha como finalidade o dever ser do pensamento em geral, as investigaes especiais - de sistemas especiais de signos ou de signos particulares - tm como finalidade sugerir hipteses sobre o modo como o pensamento nesses sistemas ou no signo em questo. Trata-se, nesses casos, de aplicar as categorias da semitica geral a esses sistemas de signos e sugerir hipteses sobre como eles atualizam certas formas de pensamento. O uso da semitica como uma cincia formal para investigao das formas de pensamento se justifica na complexidade de certas formas de pensamento e nos casos em que a investigao busca cunho cientfico. Isso fica claro na distino que Peirce elabora entre Lgica utens e Lgica docens (SANTAELLA, 1992:124):Peirce achava que qualquer pessoa, na vida comum, tem um instinto para o raciocnio ou hbitos de raciocnio com os quais forma sua opinio relativa a muitos assuntos de grande importncia. Alis, para tpicos vitalmente importantes e prticos, no h nada melhor do que uma Lgica do bom senso, guiada pela sensibilidade e sentido de eficcia. No apenas temos um instinto de raciocnio, como possumos uma teoria instintiva dos raciocnios. Essa teoria, anterior e independente de qualquer estudo sistemtico do assunto, se constitui na Lgica utens, ou lgica implcita do homem comum. No entanto, quando o homem se defronta com fatos surpreendentes, no usuais, que reclamam por uma capacidade inventiva, generalizao, teoria, [que], em sntese, exigem aperfeioamento do estado de coisas, a Lgica utens no suficiente, embora ela nos leve a adivinhar corretamente em muitos casos. nesse momento que o estudo dos processos de raciocnio e a investigao dos mtodos, que nos dem mais confiana e apressem o avano de nosso conhecimento para os resultados desejados, so exigidos. Essa a Lgica docens.

Esta distino, paralelamente ao fato de nos aproximar da concepo da Lgica em Peirce, , tambm, evidenciadora do amplo papel que a Lgica est apta a desempenhar, nas mais diversas reas de investigao. A par desta primeira distino, todavia, encontramos dois sentidos possveis para a Lgica como semitica nos escritos de Peirce:No sentido mais estreito, a cincia das condies necessrias para se atingir a verdade. No sentido mais amplo, a cincia das leis necessrias do pensamento, ou melhor (o pensamento sempre ocorrendo por meio de signos), a Semitica geral, que trata no apenas da verdade, mas tambm das condies gerais dos signos sendo signos...tambm das leis de evoluo do pensamento, que coincide com o estudo das condies necessrias para a transmisso de significado de uma mente a outra, e de um estado mental a outro.6

6 CP, 1.444, apud. SANTAELLA, op. cit., p. 132.UFMS - Cidade Universitria, Av. Costa e Silva, s/n - Caixa Postal 549 CEP 79070-900 Campo Grande/MS (67) 3345-7000 http://www.ufms.br

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Santaella, no seu livro O que Semitica, escreve: O nome Semitica vem da raiz grega semeion, que quer dizer signo. Semitica a cincia dos signos (SANTAELLA, 1992: 124); e ainda A Semitica a cincia geral de todas as linguagens (SANTAELLA, 1992: 7). Este paralelo entre signo e linguagem, entretanto, s poder ser compreendido adequadamente se entendermos o termo linguagem do modo mais amplo possvel e, principalmente, se no o restringirmos quelas expresses por meio de palavras, verbalizadas ou escritas com base na lngua de um povo. Estas, embora indubitavelmente importantes para a ideia de linguagem, cobrem apenas uma parte do que este termo est apto a representar. Considere-se que podemos nos referir a inmeras linguagens prprias do homem ou, mesmo, alheias a ele. Temos a linguagem musical, pictrica, escultrica, arquitetnica, matemtica, de mquina, gestual, dos pssaros, etc. A Semitica aplica-se, ento, ao estudo da linguagem, nas mais diversas reas, e aos seus processos significativos. Peirce no desenvolveu nenhuma semitica especial, a exemplo de uma semitica lingstica, da cultura, biosemitica, ou outra. Pelo contrrio, a cincia que desenvolveu uma cincia abstrata, que se preocupou com os signos e os processos de semiose de um modo geral e no com um ou outro em particular. E exatamente esta sua generalidade que a torna apta a embasar investigaes em campos to diversos, como os mencionados por Nth:Frente ao desenvolvimento de uma rea de investigaes que se estende da semitica da arquitetura, da biosemitica ou da cartosemitica at a zoosemitica, uma resposta possvel e pluralista frente questo [o que semitica?] : a semitica a cincia dos signos e dos processos significativos (semiose) na natureza e na cultura (NTH, 1995:19)

A escritura de Nth refora a ideia de que, em linhas gerais, a Semitica no est apenas preocupada com a identificao dos tipos possveis de signos, mas tambm com seus processos significativos (semioses). na ideia de semiose que Peirce localiza aquilo que chamou de ao do signo e que d base para o entendimento de como, de um modo geral, o pensamento ocorre por meio de signos e, em ltima instncia, as linguagens crescem, se diversificam e se complexificam.

SignoSaliente-se de incio que as definies acima e as que vm a seguir - embora aplicveis a signos em geral - so apropriadas ao que Peirce chamou de signo genuno ou smbolo. Apenas esse apresenta a estrutura completa do signo peirciano; apenas esse pode ser interpretado em outros signos e crescer. Acima frisamos o aspecto evolutivo implcito na ideia de semiose a fim de justificarmos porque, dentre tantas definies de signo formuladas por Peirce, elegemos para iniciar essa discusso exatamente aquela que Santaella (1992: 189) considerou a mais ricamente evidenciadora da trama lgica da semiose:

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Um signo intenta representar, em parte (pelo menos), um objeto que , portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo que o signo represente o objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto, implica que ele afete uma mente, de tal modo que, de certa maneira, determina naquela mente algo que mediatamente devido ao objeto. Essa determinao da qual a causa imediata ou determinante o signo e da qual a causa mediata o objeto pode ser chamada de interpretante (PEIRCE apud SANTAELLA, 1992: 189).

Entenda-se por signo algo que tem existncia sempre na relao com uma mente receptora e no um objeto qualquer exterior a essa mente. O signo participa de um processo mental; o modo pelo qual uma mente estabelece contato com as coisas do mundo. E um signo s pode ser signo se puder representar, estar no lugar de alguma coisa (seu objeto) para uma mente qualquer, ainda que falsamente. Guardemos da definio de Peirce, por enquanto, o seguinte:1 - a ideia de que o signo s signo se houver um objeto; 2 - que ele no o objeto, mas um modo de manifestao deste; 3 - que ele s representa o objeto parcialmente (pois representar o objeto totalmente os faria iguais: signo = objeto); 4 - para representar, o signo precisa de um intrprete (que no necessariamente um indivduo) e 5 - o signo deve causar na mente desse intrprete um processo que o relacione (signo primeiro) com seu objeto (segundo), ou seja, ambos devem causar um interpretante (terceiro).

A fim de contribuirmos para a clareza destas ideias, preciso conhecer qual a concepo peirciana de objeto e de interpretante. Peirce referiu-se ao objeto do signo da seguinte maneira:Ora, por um objeto, sem especificar se o objeto de um signo, ou da ateno, ou da viso etc. [...] eu quero dizer qualquer coisa que chega mente em qualquer sentido; de modo que qualquer coisa que mencionada ou sobre a qual se pensa um objeto (apud SANTAELLA, 1995: 47). [...] deve-se considerar que o uso comum da palavra objeto como significando uma coisa tambm incorreto. O nome objectum entrou em uso no sculo XIII como um termo da psicologia. Ele significa primariamente aquela criao da mente na sua relao com algo mais ou menos real, criao esta que se torna aquilo para o qual a cognio se dirige; e secundariamente um objeto aquilo sobre o qual um esforo desempenhado; tambm aquilo que est acoplado a algo numa relao, e mais especialmente, est representado como estando assim acoplado; tambm aquilo a que qualquer signo corresponde (apud SANTAELLA, 1995: 47).

Da noo de objeto como uma criao da mente, temos que, aquilo que est na mente, como sendo objeto do signo, pode muito bem ser uma fico. Todavia, a mente s realiza esta criao (fico ou no), na relao com algo mais ou menos real; e esse algo deve ser um existente qualquer. Da distino entre aquilo que est no signo e aquilo que lhe externo (est no mundo existencial), Peirce constri a distino entre o que chamou de objeto imediato e objeto dinmico. Tratando do signo (genuno) Peirce escreve: O objeto tem plenamente duas faces. O Objeto Dinmico o Objeto Real [...]. O Objeto Imediato o Objeto apresentado noUFMS - Cidade Universitria, Av. Costa e Silva, s/n - Caixa Postal 549 CEP 79070-900 Campo Grande/MS (67) 3345-7000 http://www.ufms.br

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Signo (apud SANTAELLA, 1995: 53). O que chamamos de objeto imediato o modo como o objeto dinmico (que est fora do signo e que, de algum modo, o determina) est nele representado. Se tivermos em conta um mapa, por exemplo, o objeto imediato a ideia do lugar a que o mapa se refere e que pode ser abstrada a partir daquele mapa. O objeto dinmico o prprio lugar. O mesmo ocorre com fotografias de um lugar e, de modo semelhante, se eu olho diretamente para um lugar, meu olho registra uma imagem desse lugar, que uma espcie de fotografia (signo) para minha mente que, com base nela elabora uma ideia (objeto imediato) do lugar (objeto dinmico). Se eu continuo olhando, cada novo olhar contm virtualmente novas fotografia (signos novos) revelando outras faces do objeto. Quanto mais complexo o objeto maior a quantidade e variedade de signos necessrias para nos aproximar da sua realidade. O outro componente do signo, o interpretante, tambm recebeu na Semitica peirciana uma noo prpria. Por interpretante do signo no se deve entender aquele que interpreta; a este chamamos de intrprete. Tambm no se deve limitar o entendimento do interpretante do signo quilo que chamamos de interpretao. Embora toda interpretao se constitua em um tipo de interpretante, est limitada atividade mental de um indivduo em particular (que interpreta o signo), enquanto que a noo de interpretante do signo mais ampla. O interpretante, como Peirce define,[...] uma criatura do signo que no depende estritamente do modo como uma mente subjetiva, singular possa vir a compreend-lo. O interpretante no , ainda, o produto de uma pluralidade de atos interpretativos, ou melhor, no uma generalizao de ocorrncias empricas de interpretao, mas um contedo objetivo do prprio signo (apud SANTAELLA, 1995: 85).

Vimos na definio de signo (acima) que o interpretante uma determinao do signo, assim como o signo uma determinao do objeto. H aqui duas determinaes. Retomemos, neste ponto, a definio de signo, para mostrar, com clareza, o seguinte: no processo de representao, o signo primeiro. Embora sofra uma determinao do objeto, aquilo que imediatamente est na mente, que representa para esta mente o objeto, o signo. O objeto afeta a mente, mediatamente, atravs do signo. O signo, por sua vez, tem a propriedade de gerar, naquela mente, uma ideia que deve ser lida como resultado de um vetor lgico que vai do objeto ideia e no da ideia ao objeto. Assim entendido, o interpretante , primeiramente, aquilo que o objeto, ele mesmo, atravs do signo (mediado pelo signo), est potencialmente apto a determinar. A esse nvel (primeiro) do interpretante Peirce chamou de imediato. Embora para representar de fato (realizar semiose) o signo precise de um intrprete; o que quer dizer que ele precisa gerar uma interpretao, que necessariamente influenciada pela perspectiva desse intrprete sobre o signo, a ausncia desses elementos no significa que o signo no existe. Os signos esto no mundo, e como tais tm em si a estrutura tridica definida acima. O fato de afetarem uma mente qualquer, (um intrprete ou um conjunto de intrpretes) os coloca em ao. O(s) intrprete(s) atualiza(m) um ou mais interpretantes potenciais do signo. Essa atualizao, contudo, no depende meramente do signo; ela influenciada pelas potencialidades interpretativas do intrprete (que decorrem da suaUFMS - Cidade Universitria, Av. Costa e Silva, s/n - Caixa Postal 549 CEP 79070-900 Campo Grande/MS (67) 3345-7000 http://www.ufms.br

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experincia de vida). Est relacionado a caractersticas particulares desta mente, que por sua vez exerce uma determinao na escolha do interpretante que ser atualizado. Cabe dizer que escolha no o termo mais adequado, pois nunca se sabe que tipo de associao o intrprete far, de modo que se deve considerar uma ao criativa na interpretao. A esse nvel (segundo) do interpretante Peirce chamou de dinmico. Esse interpretante ou mesmo um conjunto de interpretantes dinmicos, embora atualize(m) possibilidades interpretativas do signo, no esgotam o todo daquilo que o signo est apto a representar (ou o todo dos interpretantes possveis para o signo). A totalidade das interpretaes de um signo constituiria aquilo que Peirce chamou de interpretante final; todavia, como um signo sempre pode vir a sofrer novas interpretaes, especialmente no caso dos smbolos que esto sempre em crescimento, esse interpretante ltimo algo concebido ad infinitum. A fim de tornarmos isso mais claro, retomemos o exemplo daquele nosso olhar para um lugar qualquer. Cada imagem gravada pelo nosso olho (suas qualidades, sua capacidade de remeter ao lugar e suas potencialidades interpretativas) pode ser entendida como um signo. Se pudssemos isolar o pequeno fragmento de tempo em que o primeiro signo afetou nossa mente, identificaramos, neste ato singular, a primeira realizao do interpretante. bvio que qualquer que seja a nossa interpretao da imagem naquele momento, ela est longe daquela que um olhar mais prolongado pode nos levar a realizar. E ainda, quanto mais nosso olhar se demora no signo, mais interpretantes podero ter lugar, de modo a podermos elaborar uma ideia do lugar cada vez mais completa. Esta tende a, cada vez mais, aproximar-se do todo que o signo est apto a representar, ou da realidade que ele, o signo, intenta representar. Esse todo, porm, no algo que possa se esgotar por esse conjunto de imagens; ou mesmo por um conjunto de signos de outra natureza (desenhos, pinturas, fotografias, etc.). As denominaes do interpretante - imediato, dinmico e final - correspondem a momentos do interpretante, a estgios da evoluo do interpretante, e esto relacionadas s categorias fenomenolgicas: imediato (primeiridade), dinmico (segundidade) e final (terceiridade) (SANTAELLA, 1995: 91). Santaella, em A Teoria Geral dos Signos, traduz vrias passagens da obra de Peirce que podem elucidar esta diviso tridica do interpretante. O interpretante imediato, como sua relao com a primeira categoria j pode nos levar a concluir, uma abstrao consistindo numa possibilidade [ou] [...] consiste na Qualidade da Impresso que um signo est apto a produzir, no diz respeito a qualquer reao de fato (PEIRCE apud SANTAELLA, 1995: 96). Reao um termo prprio quilo que est associado ao interpretante dinmico: O Interpretante Dinmico qualquer interpretao que qualquer mente realmente faz do Signo. Este interpretante deriva seu carter da categoria didica, a categoria da ao [...] O significado de qualquer Signo sobre algum consiste no modo como esse algum reage ao signo (PEIRCE apud SANTAELLA, 1995: 98). E ainda: Meu interpretante Dinmico aquilo que experienciado em cada ato de interpretao e em cada um diferente daquele de qualquer outro [...] O interpretante dinmico um evento real, singular (apud SANTAELLA, 1995: 98).

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Observe-se que, no toa, os termos imediato e dinmico, usados na denominao dos dois primeiros nveis de interpretante so, igualmente, utilizados da diviso do objeto do signo. O interpretante imediato, assim como o objeto imediato, tem existncia dentro do signo, na sua independncia da interpretao e na sua condio potencial, prpria daquilo que da primeira categoria. O interpretante dinmico, assim como o objeto dinmico, tem no seu carter de realidade a ligao com a segunda categoria fenomenolgica. Finalmente, ao terceiro nvel do interpretante, denominado interpretante final, fica destinada a correspondncia com a terceira categoria fenomenolgica: Meu Interpretante Final o efeito que o Signo produziria sobre uma mente em circunstncias que deveriam permitir que ele extrojetasse seu efeito pleno (apud SANTAELLA, 1995: 99). Os termos produziria e pleno evidenciam seu carter ideal. A noo de que h algo que tende para um futuro ideal, requer que pensemos em algo que evolui, que muda e se atualiza. Em Filosofia, a ideia de atualidade est associada de ato e de atividade:A mudana, que para Aristteles apenas uma forma de movimento, seria ininteligvel se o objeto que muda no possusse, em algum sentido, a potencialidade de mudar. A mudana , pois, a passagem de um estado de potncia ou potencialidade a outro de ato ou atualizao de uma substncia. (MORA, 1994: 55).

Tendo isso em mente verifiquemos que, embora o interpretante final no se confunda com o interpretante imediato - cuja caracterstica principal sua potencialidade - ou com o interpretante dinmico - que se caracteriza por ser o modo pelo qual aquela potencialidade se realiza em um ato concreto, singular e atual -, tambm no pode prescindir de ambos para seguir em direo sua idealidade. O ideal do interpretante final pode ser compreendido, ento, como aquilo para o qual a contnua realizao da potencialidade do signo tende. A realizao da potencialidade do signo aquilo que chamamos de ao do signo, que se d na relao com uma ou mais mentes interpretantes. Cada ato de interpretao , portanto, um estgio de atualizao do interpretante; o que nos leva a compreender por que o interpretante que caracteriza este ato chamado dinmico, uma vez que muda constantemente. Os exemplos mais prximos de um interpretante final so alguns dos nossos conceitos estabelecidos simbolicamente, especialmente os conceitos cientficos, os hbitos e as crenas, dado que eles so tomados como verdades para ns. Alm disso, os conceitos cientficos, por exemplo, so acordos de uma comunidade de investigadores, portanto, considerados em vrios aspectos. Embora eles tambm passem por revises, elas tendem a acontecer em perodos amplos de tempo; por isso so diferentes daqueles interpretantes particulares que fazem parte do nosso dia-a-dia. Note-se ainda que o interpretante dinmico, o nico que tem existncia, apenas o modo como o signo se atualiza. Isso o mesmo que dizer que o prprio signo existindo realmente em uma mente. Sendo assim, o interpretante ele mesmo um signo representado, que Peirce chamou de signo interpretante. Este signo interpretante, como vimos, realiza a potencialidade do signo apenas em parte, visto que o todo desta potencialidade algo ideal, aproximvel, mas inatingvel (SANTAELLA, 1995: 99). Dizer que o interpretante realiza a potencialidade do signo apenas em parte dizer que ele representa o objeto do signo apenas parcialmente.UFMS - Cidade Universitria, Av. Costa e Silva, s/n - Caixa Postal 549 CEP 79070-900 Campo Grande/MS (67) 3345-7000 http://www.ufms.br

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Um signo, ou representamen, aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para algum. Dirige-se a algum, isto , cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto no em todos os seus aspectos, mas com referncia a um tipo de idia que eu, por vezes, denominei fundamento do representamen (PERICE, 1977: 46).

A ao do signo no processo interpretativo Peirce chamou de semiose. A semiose um processo contnuo sempre buscando aproximar a representao ao objeto. Ocorre, ento, que nosso conhecimento do objeto cresce com a semiose:A ao do signo s se consuma no momento em que ele determina um interpretante, isto , no momento em que ele gera um outro signo. Este novo signo-interpretante ter como objeto tanto o signo do qual ele se gerou, quanto o objeto original, passando ambos a compor um objeto complexo. Concluso, o objeto no esttico e inerte, mas cresce com a semiose (SANTAELLA, 1992: 190).

Este o processo pelo qual o pensamento adquire conhecimento, atualiza-se e evolui. E, como se pode facilmente deduzir, tambm um processo temporal, tal qual aquele que est na ideia de terceiridade. Ele se d infinita e ininterruptamente num continuum, sempre gerando ideias mais complexas. Entender isso, que o conhecimento cresce, ver reafirmada sua incompletude - a incompletude dos interpretantes; em outras palavras, das nossas representaes acerca de alguma coisa. constatar nossa condio de seres em permanente aprendizado diante do mundo. Podemos viver centenas de anos e nunca teremos parado de aprender, no porque no tenhamos nos esforado o suficiente, mas porque isto foge ao nosso controle. E foge ao nosso controle porque esta uma lei do mundo, que independe da nossa vontade e sequer da nossa existncia enquanto indivduos. Apreendemos o signo, na instncia do interpretante dinmico que, nas palavras de Santaella, [...] o nico interpretante que funciona diretamente num processo comunicativo (1995: 98). Nessa instncia, o signo pode gerar interpretantes de naturezas diferentes, conforme seja a natureza do seu fundamento, o tipo de relao que estabelece com o objeto ou, ainda, o tipo de interpretante que atualiza. Peirce verificou a existncia de trades nas trs instncias: do fundamento (do signo em si mesmo), do objeto (da relao do signo com seu objeto) e do interpretante (da relao do signo com seu interpretante). O estudo dessas trades, das usas subdivises tambm tridicas e das relaes entre elas lhe permitiu classificar alguns tipos gerais de signos. Sobre essa classificao tratamos a seguir. Antes, porm, cabe dizer que essa classificao pressupe uma ideia anterior, de que nem todos os signos so genunos, ou seja, nem todos so tridicos no mesmo grau definido at ento.

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Signo Genuno e Signo DegeneradoParalelamente ideia de signo, Peirce constri uma quase destruio dessa ideia, fazendo a distino entre signo genuno e signo degenerado. O termo degenerado tem como referncia, o seu significado na geometria (SANTAELLA, 1992:82). No signo genuno ou smbolo, h sempre trs envolvidos: signo, objeto e interpretante. Ideias tpicas a ele associadas so: terceiridade, cognio, aprendizado, lei, generalizao, hbito, crescimento e complexificao, entre outras. Este o terreno da semiose infinita, da continuidade do pensamento. Alm desse tipo de signo h, todavia, outros, como o ndice e o cone, cuja natureza representativa difere da do smbolo. Alm disso, cada um desses tipos de signo pensado como tendo sutis variaes, que so degeneraes internas. Assim, cada um deles classificado como tendo uma natureza genuna paralelamente a outras ditas degeneradas. Isso ocorre com o prprio smbolo (alm de ocorrer, tambm, com o ndice e o cone):[...] Um smbolo genuno um smbolo que tem um significado geral. H duas espcies de smbolos degenerados, o Smbolo Singular, cujo Objeto um existente individual, e que significa apenas aqueles caracteres que aquele individual pode conceber; e o Smbolo Abstrato, cujo Objeto nico um carter (PEIRCE, 1977: 71).

Enquanto o smbolo conforme dito acima - corresponde ideia de signo autntico, o ndice corresponde ideia de signo uma vez degenerado. No signo que um ndice, h necessariamente dois envolvidos (signo-objeto), podendo o terceiro (interpretante) existir ou no:Um signo degenerado no menor grau um Signo Obsistente, ou ndice, que um signo cuja significao de seu Objeto se deve ao fato de ter ele uma Relao genuna com aquele Objeto, sem se levar em considerao o Interpretante. o caso, por exemplo, da exclamao Eh! como indicativa de perigo iminente, ou uma batida na porta como indicativa de uma visita (PEIRCE, 1977: 28).

As ideias tpicas a ele associadas so: segundidade, ao, individualidade, fato, existente, contigidade, outro, compulso, entre outras. Este signo, por sua vez, tambm apresenta degeneraes internas. Ele pode apresentar-se como sendo um ndice genuno ou um ndice degenerado:Um ndice ou Sema (a) um Representamen cujo carter Representativo consiste em ser um segundo individual. Se a Segundidade for uma relao existencial, o ndice genuno. Se a Segundidade for uma referncia, o ndice degenerado. Um ndice genuno e seu Objeto devem ser individuais existentes (quer sejam coisas ou fatos), e seu Interpretante imediato deve ter o mesmo carter (PEIRCE, 1977: 66-67).

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O cone, por sua vez, corresponde ideia de signo duas vezes degenerado. Nele h apenas um elemento definido (o signo - primeiro), estando os outros dois (objeto - segundo e interpretante - terceiro), colocados como virtuais:Um Signo Degenerado no maior grau um Signo Originaliano ou cone, que um signo cuja virtude significante se deve apenas sua Qualidade. o caso, por exemplo, das suposies de como agiria eu em determinadas circunstncias, enquanto me mostram como um outro homem provavelmente agiria.7

As ideias tpicas a ele associadas so as de: primeiridade, sentimento, similaridade, individualidade, possibilidade, acaso, liberdade, entre outras. Um signo que um cone j tem em si o maior grau de degenerao possvel, no havendo variaes como no ndice ou smbolo. Apesar disso, mesmo no caso desse tipo de signo Peirce classificou pequenas variaes, como se ver mais adiante. Esta diviso tridica dos signos em cones, ndices e smbolos corresponde a apenas uma parte das divises elaboradas por Peirce:Tomando como base as relaes que se apresentam no signo, por exemplo, de acordo com o modo de apreenso do signo em si mesmo, ou de acordo com o modo de apresentao do objeto imediato, ou de acordo com o modo de ser do objeto dinmico etc., foram estabelecidas 10 tricotomias, isto , 10 divises tridicas do signo, de cuja combinatria resultam 68 classes de signos e a possi