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LEITURA E ESCRITA PARA OS PRIVADOS DE LIBERDADE: POSSIBILIDADES SÓCIOEDUCATIVAS NO MÉTODO APAC EM SÃO JOÃO DEL–REI/MG MARIA LUCIA MONTEIRO GUIMARAES (UFSJ). Resumo As práticas desse Projeto visam o incentivo à leitura e escrita contextualizadas com temas de relevância social como recurso de práticas educativas que trabalhem o desenvolvimento da linguagem em demandas educativas que emergem em distintos ambientes, como naqueles em que se encontram os privados de liberdade e propiciam a construção de novas perspectivas pedagógicas que ultrapassam os muros da escola. Tem como metodologia a realização de oficinas pedagógicas por meio da utilização de diferentes suportes de leitura e narrativas de histórias literárias e populares articulados com temas geradores de diálogos que atribuem ao trabalho de incentivo à leitura e escrita um valor social, buscando proporcionar o desenvolvimento da oralidade e escrita, da leitura e da análise e sistematização linguística, e a realização de atividades que procuram oferecer um momento lúdico, em que as tensões cotidianas se esvaem, proporcionando aos recuperandos a oportunidade de observar a vida em seus mais diversos ângulos, substancialmente os positivos. Suas ações se pautam na troca de conhecimentos onde, o educador desempenha a função articuladora da linguagem enquanto constituinte do homem que promove a relação consigo mesmo e com o outro. O incentivo à leitura e escrita articulado com práticas dialógicas oferecem diversos elementos que constituem percepções de mundo, costumes, práticas sociais e saberes que perfazem o campo das relações entre professores e alunos envolvidos numa experiência educativa que tem a formação do senso crítico e a afirmação de presenças como princípios pedagógicos. O trabalho com a leitura e escrita podem ser desenvolvidos de maneira a suscitar identificações com a realidade pessoal e social de atores do cenário educacional e fornecer valiosos elementos geradores de diálogos, permitindo aos recuperandos conquista de sua auto–estima e valorização, facilitando sua re–inserção na sociedade. Palavras-chave: Leitura e Escrita, Literatura, Linguagem e Cidadania. LEITURA E ESCRITA PARA OS PRIVADOS DE LIBERDADE: POSSIBILIDADES SÓCIOEDUCATIVAS NO MÉTODO APAC EM SÃO JOÃO DEL-REI/MG Gabriela Cardoso (Pedagoga Voluntária) Profª. Ms. Maria Lúcia Monteiro Guimarães (Orientadora) Introdução As demandas educativas que emergem em distintos ambientes, como naqueles em que se encontram os privados de liberdade, propiciam a construção de novas perspectivas pedagógicas que ultrapassam os muros da escola. Estas procuram atentar-se àqueles que em sua trajetória de vida e escolar tropeçaram

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LEITURA E ESCRITA PARA OS PRIVADOS DE LIBERDADE: POSSIBILIDADES SÓCIOEDUCATIVAS NO MÉTODO APAC EM SÃO JOÃO DEL–REI/MG MARIA LUCIA MONTEIRO GUIMARAES (UFSJ).

Resumo As práticas desse Projeto visam o incentivo à leitura e escrita contextualizadas com temas de relevância social como recurso de práticas educativas que trabalhem o desenvolvimento da linguagem em demandas educativas que emergem em distintos ambientes, como naqueles em que se encontram os privados de liberdade e propiciam a construção de novas perspectivas pedagógicas que ultrapassam os muros da escola. Tem como metodologia a realização de oficinas pedagógicas por meio da utilização de diferentes suportes de leitura e narrativas de histórias literárias e populares articulados com temas geradores de diálogos que atribuem ao trabalho de incentivo à leitura e escrita um valor social, buscando proporcionar o desenvolvimento da oralidade e escrita, da leitura e da análise e sistematização linguística, e a realização de atividades que procuram oferecer um momento lúdico, em que as tensões cotidianas se esvaem, proporcionando aos recuperandos a oportunidade de observar a vida em seus mais diversos ângulos, substancialmente os positivos. Suas ações se pautam na troca de conhecimentos onde, o educador desempenha a função articuladora da linguagem enquanto constituinte do homem que promove a relação consigo mesmo e com o outro. O incentivo à leitura e escrita articulado com práticas dialógicas oferecem diversos elementos que constituem percepções de mundo, costumes, práticas sociais e saberes que perfazem o campo das relações entre professores e alunos envolvidos numa experiência educativa que tem a formação do senso crítico e a afirmação de presenças como princípios pedagógicos. O trabalho com a leitura e escrita podem ser desenvolvidos de maneira a suscitar identificações com a realidade pessoal e social de atores do cenário educacional e fornecer valiosos elementos geradores de diálogos, permitindo aos recuperandos conquista de sua auto–estima e valorização, facilitando sua re–inserção na sociedade. Palavras-chave: Leitura e Escrita, Literatura, Linguagem e Cidadania.

LEITURA E ESCRITA PARA OS PRIVADOS DE LIBERDADE: POSSIBILIDADES

SÓCIOEDUCATIVAS NO MÉTODO APAC EM SÃO JOÃO DEL-REI/MG

Gabriela Cardoso (Pedagoga Voluntária)

Profª. Ms. Maria Lúcia Monteiro Guimarães (Orientadora)

Introdução

As demandas educativas que emergem em distintos ambientes, como

naqueles em que se encontram os privados de liberdade, propiciam a construção de

novas perspectivas pedagógicas que ultrapassam os muros da escola. Estas

procuram atentar-se àqueles que em sua trajetória de vida e escolar tropeçaram

nos conceitos social e educacionalmente tidos como corretos, e, acabaram

submetidos ao crivo do julgamento judicial. Num movimento contra a opressão do

réu e a favor da valorização e reabilitação social do ser humano, encontram-se

projetos que procuram resgatar a cidadania dos condenados.

Quando a rotina social é abalada pelo infortúnio de um caso de transgressão

legal, as prisões se evidenciam como solução imediata para o problema. As

rebeliões, motins, fugas, massacres e as más condições de abrigo de um ser

humano ilustram para sociedade o que é uma prisão. Afora esses acontecimentos,

a questão penitenciária brasileira distancia-se da realidade social. Apenas julga-se o

errante e manda-se cumprir a pena designada ao seu delito. Umas das questões

observadas nesse trabalho é a maneira como esse condenado, que em sua

trajetória nem sempre teve a felicidade de usufruir condições adequadas para o

desenvolvimento de uma conduta irrepreensível, pode cumprir sua pena, pois,

conforme Adorno (1991b, p.70)

a despeito de propósitos reformadores e ressocializadores embutidos

nas falas dos governantes e na convicção dos homens aos quais está

incumbida a tarefa de administrar massas carcerárias, a prisão não

consegue dissimular seu avesso: o de ser aparelho exemplarmente

punitivo.

Mesmo que tímidas políticas públicas penitenciárias atentem para a

reabilitação desses indivíduos o que vemos, na maioria dos casos, é a utilização de

meios que acabam por evidenciar a reincidência de condenados ao mundo do

crime. Segundo Português (2001), no Estado democrático de direito o que

possibilita o poder discricionário de punir é a finalidade de reabilitação que se

atribui à prisão. Nesse sentido, pode ser observado por Castro et al, 1984, p.117)

que:

A prioridade conferida à ordem e à disciplina, modo pelo qual, em última instância, acredita-se poder concretizar o ideal de defesa social preconizado pelo Código Criminal, impõem barreiras intransponíveis. No dilema entre punir e recuperar vence aquilo que parece ser o termo negativo da equação: a prisão limita-se a punir.

Fora das chamadas penitenciárias ou prisões, mas ainda no sistema penal,

encontram-se alguns órgãos parceiros da justiça na execução penal. Destacamos

para o estudo em questão a Associação de Proteção e Assistência ao Condenado -

APAC, que tem como finalidade recuperar o preso, proteger a sociedade, socorrer a

vítima e promover a justiça, desenvolvendo sua filosofia de “Matar o Criminoso e

Salvar o Homem.” Em seu decálogo a APAC propõe o amor como caminho, o

díálogo como entendimento, a disciplina com amor, o trabalho como essencial, a

fraternidade e respeito como meta, responsabilidade para o soerguimento,

humildade e paciência para vencer, conhecimento para ilustrar a razão, a família

organizada como suporte e Deus como fonte de tudo.

A APAC é filiada à Prison Fellowship International - PFI, órgão consultivo da

ONU para assuntos penitenciários, e à Fraternidade Brasileira de Assistência aos

Condenados -FBAC, entidade que congrega, fiscaliza e dá suporte a todas as APAC’s

do país. Há vinte anos em Minas Gerais a APAC tem entre suas parcerias o Projeto

Novos Rumos na Execução Penal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). O

modelo APAC foi criado em 1974, com a proposta de criar um presídio sem

policiais. Com o apoio de voluntários, a Associação propicia a ressocialização do

recuperando, que tem oportunidade de trabalhar dentro do presídio. Uma das

vertentes do trabalho é evitar a ociosidade dos recuperandos, que freqüentam

cursos supletivos e profissionais, e participam de atividades variadas.

Desde julho de 2008 São João del-Rei, a APAC atende aos detentos em

regimes fechado e semi – aberto com cerca de 57 recuperandos, que participam de

diferente atividades educativas, laborais como tarefas de manutenção, conservação

da limpeza do espaço físico da associação, entre outras. Os voluntários trabalham

sob organização de um cronograma de atividades, oferecendo um trabalho que seja

adequado para a demanda existente na rotina apaqueana. Nesse contexto, a

Universidade Federal de São João del-Rei desenvolve um dos seus projetos de

extensão, o denominado “Incentivo à Leitura e Escrita em Escola Públicas e Outros

Espaços Educativos de São João del-Rei” .

No planejamento das atividades do trabalho desenvolvido no projeto busca-se

estabelecer discussões existentes em relação às possibilidades e limites das ações

sócioeducativas no sistema prisional. Dessa forma, o projeto por meio da educação,

almeja formar sujeitos, a ampliar de sua leitura de mundo, o estimular o

desenvolvimento da criatividade, a participar na construção dos conhecimentos,

visando novas perspectivas para suas vidas. O princípio fundamental da educação,

por essência transformador, aponta para a libertação no interior prisional, visto que

o indivíduo ocupa muito mais do que o lugar físico que seu corpo está, ele ocupa o

espaço que seus pensamentos e atitudes alcançam outros indivíduos. Por mais que

a educação deixe de alcançar todos os problemas do sistema penitenciário,

acreditamos que as práticas sócioeducativas promovam a construção de uma

identidade reabilitadora. Segundo Camarosano (2008, p.1-2),

Os estudos sobre educação de adultos presos têm demonstrado a possibilidade de construção de escolas nas prisões como espaço diferenciado das prerrogativas carcerárias (...) A proposta educacional traçada para essas escolas, ao explicitar as concepções sobre o homem, sobre o mundo e sobre a educação e a produção de conhecimento, enfatiza que a educação, para ser válida, deve levar em conta tanto a vocação ontológica do homem (vocação de ser sujeito) quanto as condições nas quais vive (contexto) social.

As ações do projeto promovem o indivíduo, e este deve transformar o mundo

em que está inserido, deixando de ter o papel de se ajustar à sociedade. É preciso,

pois, que ao tomar consciência de sua realidade, o homem reflita sobre ela,

comprometendo-se em transformá-la. Como afirma Freire (1983), não é apenas

necessário saber que é impossível haver neutralidade da educação, mas é preciso

estabelecer a distinção entre os caminhos domesticadores e os humanizadores.

Desenvolvimento

As práticas do projeto se voltaram para o atendimento da demanda em

conformidade com os objetivos do mesmo: incentivo à leitura e escrita, duas vezes

por semana em oficinas com duração média de duas horas. Visando proporcionar o

desenvolvimento da oralidade e escrita, da leitura e da análise e sistematização

lingüística, as atividades procuram oferecer um momento lúdico, em que as tensões

cotidianas se esvaem, proporcionando aos recuperandos a oportunidade de

observar a vida em seus mais diversos ângulos, substancialmente os positivos. A

linguagem ocupa nesse espaço uma função comunicativa em que educadores e

educandos consolidam uma via de mão dupla construindo um ambiente de

aprendizado em que a língua portuguesa está a serviço da demanda social.

Segundo Antunes (2009, p.36)

As línguas estão a serviço das pessoas, de seus propósitos interativos e reais, os mais diversificados, conforme as configurações contextuais, conforme os eventos e os estados em que os interlocutores se encontram. Daí, por que o que existe, na verdade, é a língua em função, a língua concretizada em atividades, em ações e em atuações comunicativas; isto é, a língua como modo de ação, como forma de prática social, direcionada para determinado objetivo. Na verdade existem muitas formas de se exercer a prática social. A linguagem é a apenas uma delas e se concretiza linguisticamente, por meio do discurso falado ou escrito.

Inicialmente, o projeto ofereceu suportes literários para leitura nos encontros

e em outros momentos em que os recuperandos estivessem ociosos, buscando na

leitura uma possibilidade de lazer. A escrita nessa fase seria efetivada em um

caderno em que os educandos registrariam aspectos relevantes à sua leitura

respondendo questionamentos que delimitavam os assuntos. Porém, observamos

que a leitura dos livros literários dificilmente se efetivava na rotina dos

apaqueanos. Posterior a essa iniciativa, o oferecimento de cadernos esportivos de

jornais suscitou mais interesse dos leitores em potencial, uma das manifestações

desse interesse pôde ser percebida ao pedirem para levarmos exemplares do jornal

local. A partir deste encaminhamento, pedimos para que anotassem em uma folha

de papel a identificação dos suportes lidos (nome do jornal e seu respectivo

caderno, data, local de impressão) seguida de um comentário acerca da leitura

realizada. Observamos, a partir desse momento que alguns apresentavam

desenvoltura na escrita, porém outros apresentavam dificuldades.

A constatação de que os suportes de leitura e escrita que evidenciavam

aspectos referentes a algo presente em suas rotinas, em suas conversas, em seu

contexto social e instigavam o ato de ler fez com que a reformulássemos nossas

práticas. Passou-se então a planejar atividades que levassem em consideração o

mundo social de cada sujeito envolvido, de maneira que literário, informativo ou

didático, os conteúdos de leitura e escrita conduzissem de maneira significativa

algum subsídio que vinculasse as práticas a um processo de reflexão, de ensino

aprendizagem capazes de revelar compatibilidade com a vida de cada leitor.

No entanto, como poderíamos evidenciar essa compatibilidade existente na

proposta de trabalho e naquela realidade educacional? E como aqueles que

estavam impossibilitados da capacidade de decodificação iriam entender o que

estava escrito? De que maneiras alguns recuperandos poderiam expressar os

assuntos abordados, uma vez que a impossibilidade da decodificação existia até

aquele momento?

Inicialmente as práticas de leitura foram desenvolvidas coletivamente, no

mesmo ambiente, porém com momentos diversificados, procurando atingir metas

mais específicas dos grupos voltadas para diferentes demandas de

letramento/alfabetização. Na fase atual do projeto, os alunos em fase inicial de

decodificação da escrita estão estudando com uma professora alfabetizadora

voluntária da APAC e participando de práticas de leiturização no momento das

oficinas de leitura e escrita em uma sala de aula da associação. As aulas se

alternam com as práticas coletivas das oficinas com os demais recuperandos a fim

de promover uma dinâmica sócioeducativa que inclui todos os interessados no

projeto.

Como metodologia de trabalho optou-se pela linguagem em suas diversas

expressões, mais especificamente a narrativa acompanhada de desenhos como

expressão artística visual, pois estes se revelaram, no transcorrer do trabalho,

como importantes aliados ao processo. Dessa forma, a arte ocupa uma função

lúdica, em que todo grupo, mesmo em diferentes etapas, conseguem se expressar,

individualmente ou em pequenos grupos. É notório o empenho dos mesmos para

elaborarem um desenho representativo a partir de uma produção textual

significativa ou vice versa.

Posteriormente, diferentes suportes de textos foram utilizados tanto de

maneira escrita e oral, podemos observar por meio do quadro, a grande incidência

de atividades ilustrativas individuais ou coletivas de acordo com a demanda

existente na situação.

O quadro abaixo demonstra algumas situações de leituras que evidenciam

práticas orais e gráficas presentes no projeto:

1. Quadro demonstrativo de diferentes situações de leitura

Proposta Geral Suportes de

leitura/escrita Atividade oral Atividade gráfica

1.1

Ler e ilustrar reportagens de

cadernos esportivos de

jornais.

Jornais, folhas de

papel A4.

Comentários a

cerca das

reportagens.

Ilustração.

1.2

Promover contato com

histórias literárias.

Livro Rei Artur e a

Espada Excalibur.

Desenhos para serem

coloridos.

Narrativa

(Contador de

histórias) e

reconto a partir

das ilustrações.

Colorir as

ilustrações da

história.

1.3

Construção coletiva de um

texto, a partir da leitura do

filme “Escritores da

Liberdade”

Filme “Escritores da

Liberdade”.

Livro desenhado.

Comentários a

acerca do filme.

Transposição do

enredo para a

realidade.

Escrever e

ilustrar pontos

marcantes da

história.

1.4

Elaboração de livros, que

contassem a história de

sucesso de recuperação

social.

Revistas, folhas de

cartolina.

Diálogos acerca

do filme

Construção

textual.

Composição com

desenhos e

gravuras de

revistas.

1.5

Conhecer Contos

Tradicionais de São João

de-Rei.

Livro “contam

que...”.

Ilustrações

apresentadas no

momento da

Narrativa

(contador) e

re-narrativa

(recuperandos) do

conto.

Elaborar histórias

em quadrinhos

com os elementos

apresentados na

história.

narrativa oral.

Situações de leitura: procedimentos de aquisição e apropriação da escrita

Com relação ao trabalho 1.1 ao percebermos que os recuperandos se motivavam ao ler informações sobre seu times de futebol favoritos promovemos oficinas em que a leitura do caderno esportivo contribuiu significativamente para a motivação para o trabalho. Por meio de anotações e desenhos eles anotavam os aspectos que consideravam mais relevantes sobre a leitura.

O trabalho 1.2 se desenvolveu a partir de diferentes situações de leitura. Na primeira etapa foi realizada uma contação resumida da história para o desenvolvimento de uma dinâmica sócioeducativa que transpunha a realidade de nossa roda de conversa para a história de um rei e sua távola redonda como espaço dialógico que promovia a democracia, a fim de promover, entre outras coisas, a aproximação e o incentivo a participação das conversas. Ao longo do trabalho a história era sempre referida, até que observamos a rotatividade dos educandos devido às tarefas e suas condições processuais. Isso revelou a necessidade de recontos diversificados da história, para evitar a repetição da mesma e para incluir os outros no discurso da távola redonda. A primeira maneira utilizada foi a narrativa oral, em que o contador, enquanto mediador entre língua e sujeito, buscou maneiras para instigar os ouvintes, como a entonação e ritmo dos fatos no momento da narrativa, bem como a descrição marcante de personagens, situações e lugares. Após esse contato, os recuperandos assistiram um filme sobre a história do Rei Arthur. Posteriormente, com um maior contato com o enredo os alunos, a partir da interlocução do educador, fizeram recortes escritos, orais e gráficos da história por meio das interpretações dos desenhos do livro e dos pontos mais significativos, segundo uma leitura compartilhada. Os recortes da história, conforme ilustração permitiram a confecção de bonecos com os personagens selecionados coletivamente, e, em seguida o reconto a partir do teatro de bonecos. Solicitamos aos alunos, em fase inicial do processo de alfabetização, para que sugerissem legendas para o trabalho e o educador serviu de escriba dos trabalhos a fim de efetivar a escrita do texto.

A imagem 1.3 ilustra umas das atividades desenvolvidas a partir do filme

“Escritores da Liberdade”, em que os alunos assistiram ao filme e na roda de conversa construíram textos demonstrando percepção acerca dos fatos desenvolvidos no enredo do filme. Nessa atividade, pudemos perceber que no transcorrer dos fatos no filme eles apontavam fatos similares com os da própria vida.

Na figura 1.4, o que vemos é a transposição dos conceitos trabalhados no filme por meio da construção de uma “colcha de retalhos” em que os recuperando

falavam e o escriba escrevia numa folha de papel grande fixado no quadro com quadrados similares aos de uma colcha de retalhos idealizando a necessidade de vários conceitos para a construção de um bom convívio social. A partir disso, em grupos de quatro pessoas eles construíram um texto contanto sobre como o personagem chegou ao sistema penal e como sua trajetória o encaminhou para a APAC. Percebemos que a utilização de personagens como fantoches onde eles manipulavam a própria realidade contribuiu para um desempenho mais efetivo na expressão textual em prosa. Logo após, os educadores dividiram os textos em quatro partes e distribuídas as folhas de cartolina (cortadas em quatro partes iguais), eles ilustram o texto com recortes e desenhos criando composições que formaram um livros com quatro páginas.

Outro evento apresentado por meio de uma narrativa oral pelo contador de

foi um conto advindo da tradição oral de São João del-Rei, consolidado no livro

“Contam que...” distribuído em diferentes edições, uma delas datada de 1922

histórias, denominado A Missa das Almas, o conto foi sendo contado ao mesmo

tempo em que gravuras eram fixadas num quadro. Em seguida, por meio das

gravuras o reconto. A sugestão era que, a partir das diferentes leituras das

gravuras e do reconto oral construírem histórias em quadrinhos, alguns fizeram

com seis e outros com quatro quadrinhos. Pedimos para que escrevessem legendas

para os desenhos, como os relatos de conhecimento sobre a estrutura da história

em quadrinhos.

Segundo Paulo Freire (1988), o educador propicia condições para que seus

alunos possam alcançar uma instância elevada de reconhecimento de mundo.

Quando a pessoa conhece e re-conhece o ambiente onde vive ela torna-se ativa

sobre ele, é, portanto um ser transformador. A leitura de mundo é a percepção das

coisas que nos rodeiam, sobretudo do meio em que vivemos. Ao ler o mundo o

aprendiz deixa de ficar sem respostas sobre seus questionamentos, ele passa a criar

suposições, torna se um ser crítico e passa a fazer novas indagações sobre si e o

mundo que o rodeia. O aluno traz consigo uma bagagem de conhecimento que deve

ser valorizada, pois isso proporcionará ao professor encaminhamentos para a

realização de atividades interativas entre educando e educador numa construção

participativa de novos conhecimentos.

Considerações Finais

No que diz respeito ao trabalho com suportes de linguagem escrita e falada

pudemos observar que as atividades do projeto ofereceram subsídios para o acesso

ao mais variados tipos de meios comunicativos. Além dos constantes diálogos,

vídeos, slides, jornais, revistas, folhas de papel, cd’s, narrações são suportes de

diferentes gêneros de leitura e escrita, trabalhados transversalmente ao diálogo,

como meios de consolidação da proposta.

Consideramos que ao oportunizar momentos de leitura e escrita com

diferentes suportes e diversificados gêneros, estamos proporcionando a construção

de uma identidade lingüística em que educandos são mais do que decodificadores,

mas sim leitores da palavra em seus mais amplos significados e contextos sociais.

Segundo Magda Soares (1999), apropriar-se da escrita não é aprender ler e

escrever, e sim descobrir uma maneira de entender o que se lê e ter propriedade

do que se leu. Letramento é o estado ou condição de quem se envolve nas

numerosas e variadas práticas sociais de leitura e escrita. Em conformidade com

Soares (1999, p.9)

Socialmente ou culturalmente, a pessoa letrada já não é a mesma que era quando analfabeta ou iletrada, ela passa a ter uma condição social, cultural - não se trata propriamente de mudar o nível de se lugar social, o seu modo de viver na sociedade, sua inserção na cultura - sua relação com os outros, com o contexto, com os bens culturais torna-se diferente. [1]

Foucambert (1989) afirma que ler e escrever são atividades muito mais

complexas do que a simples interpretação de símbolos gráficos, de códigos.

Demanda do indivíduo a capacidade de interpretar o material lido, comparando-o e

incorporando-o à sua bagagem pessoal, ou seja, requer que o indivíduo mantenha

um comportamento ativo diante do que faz. Deve-se ainda, considerar a variedade

textual independente da condição do educando, pois, é por meio dela que o aluno

passa a perceber as diferenciações existentes na maneira de ler e escrever. Para

aprender a ler o não-leitor se relaciona com os textos que leria se soubesse ler,

para viver o que vive. Na fase de aprendizado, o meio deve proporcionar ao

indivíduo toda a ajuda para utilizar textos verdadeiros.

Para uma intervenção efetiva os educadores ajudam os educandos a

tornarem-se leitores dos textos que circulam no seu contexto social e evitam limitá-

los à leitura de textos pedagógicos, destinados apenas para ensiná-los a ler, pois

isso dificulta a prática de leitura na vida dos mesmos, em seu contexto social. É

impossível tornar-se leitor sem uma contínua interação com o lugar onde as razões

para ler são intensamente vividas - mas é possível ser alfabetizado sem isso. A

contextualização da leitura com a realidade do aprendiz estimula a relação entre

teoria e prática. O envolvimento do educando com o universo da leitura passa a ter

sentido quando ele associa aquilo que lê à sua vivência.

O incentivo à leitura e escrita articulado com práticas dialógicas oferecem

diversos elementos que constituem percepções de mundo, costumes, práticas

sociais e saberes que perfazem o campo das relações entre professores e alunos

envolvidos numa experiência educativa que tem a formação do senso crítico e a

afirmação de presenças como princípios pedagógicos. Se por um lado as práticas

narrativas orais oferecem elementos que favorecem subsídios para o trabalho com

a leitura e escrita, por outro lado, o trabalho com a leitura e escrita podem ser

desenvolvidos de maneira a suscitar identificações com a realidade pessoal e social

de atores do cenário educacional fornece valiosos elementos geradores de diálogos.

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www.apacitauna.org.br

[1] Do estudo publicado em Belo Horizonte: CAPE/SMED, nº 1, p. 04-26, jul. 1999. Texto transcrito da palestra proferida em 28/07/97, no evento CEALE DEBATE promovido pelo Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Faculdade de Educação da UFMG, proferida pela professora Titular Emérita da mesma, fundadora do CEALE/UFMG.