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O médico e a morte Fonte: Leonardo Boff Data: 17/10/2001 Vivemos tempos de transversalidade dos discursos, buscando convergências nas diversidades, em benefício da qualidade humana, espiritual e cívica dos seres humanos. Quais são os limites e o alcance da medicina e das leis quando diante do complexo problema dos doentes terminais e da morte? Esta questão comporta dimensões científicas, técnicas e jurídicas, mas também nos remete a questões de natureza cultural e filosófica: qual a imagem que temos do ser humano? Que visão temos da vida cuja compreensão mais profunda vem sendo elaborada no interior das ciências biológicas, da moderna cosmologia e do processo de evolução? Uma nova óptica provoca uma nova ética. O cuidado é essencial à vida, principalmente a vida no seu limite extremo de doença e de morte. O cuidado é natural ao médico. A essência do ser humano não reside tanto no espírito e na liberdade, quanto no cuidado. O cuidado significa uma relação amorosa com a realidade. Importa um investimento de zelo, desvelo, solicitude, atenção e proteção para com aquilo que tem valor e interesse para nós. Tudo o que amamos cuidamos e vice-versa. Pelo fato de sentirmo-nos envolvidos e comprometidos com o que cuidamos, cuidado comporta também preocupação e inquietação. O cuidado constitui a plataforma real que possibilita as demais dimensões do humano emergirem. “O cuidado nos acompanha como uma sombra ao largo de toda a vida...” segundo Horácio. Tudo que fizermos com cuidado significa uma força contra o desgaste, pois prolongamos a vida e melhoramos as relações com a realidade. A crise mundial atual reside na falta de cuidado, falta de cuidado no tratamento das crianças e dos idosos, dos ecossistemas, das relações sociais e de nos mesmos.

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O médico e a morte

Fonte: Leonardo Boff

Data: 17/10/2001

Vivemos tempos de transversalidade dos discursos, buscando convergências nas diversidades, em benefício da qualidade humana, espiritual e cívica dos seres humanos. Quais são os limites e o alcance da medicina e das leis quando diante do complexo problema dos doentes terminais e da morte? Esta questão comporta dimensões científicas, técnicas e jurídicas, mas também nos remete a questões de natureza cultural e filosófica: qual a imagem que temos do ser humano? Que visão temos da vida cuja compreensão mais profunda vem sendo elaborada no interior das ciências biológicas, da moderna cosmologia e do processo de evolução? Uma nova óptica provoca uma nova ética. O cuidado é essencial à vida, principalmente a vida no seu limite extremo de doença e de morte. O cuidado é natural ao médico. A essência do ser humano não reside tanto no espírito e na liberdade, quanto no cuidado. O cuidado significa uma relação amorosa com a realidade. Importa um investimento de zelo, desvelo, solicitude, atenção e proteção para com aquilo que tem valor e interesse para nós. Tudo o que amamos cuidamos e vice-versa. Pelo fato de sentirmo-nos envolvidos e comprometidos com o que cuidamos, cuidado comporta também preocupação e inquietação. O cuidado constitui a plataforma real que possibilita as demais dimensões do humano emergirem. “O cuidado nos acompanha como uma sombra ao largo de toda a vida...” segundo Horácio. Tudo que fizermos com cuidado significa uma força contra o desgaste, pois prolongamos a vida e melhoramos as relações com a realidade. A crise mundial atual reside na falta de cuidado, falta de cuidado no tratamento das crianças e dos idosos, dos ecossistemas, das relações sociais e de nos mesmos. É o cuidado que salvará o amor, a vida e nosso planeta Terra. Na Carta da Terra, documento que representa o que há de melhor do pensamento ecológico, político e ético foi elaborado por 46 paises tendo sido acolhido pela UNESCO, tem como objetivo garantir o futuro do planeta e da humanidade. O eixo estruturador desta carta é a ética do cuidado. O cuidado é a essência da atitude curativa dos médicos e cuidadores da saúde. Essa perspectiva já surgia poderosamente no século passado na figura da enfermeira inglesa Florence Nightgale. Ela deixou a Inglaterra e foi tratar, sob a ótica do cuidado, os soldados feridos na guerra da Criméia. Em seis meses de trabalho conseguiu

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reduzir de 42% a 2% a mortalidade entre os soldados. Ao retornar organizou toda uma rede de hospitais cujo pensamento central era o cuidado. Assim surgiu uma corrente de pensamento e de ética na enfermagem articulada ao redor do cuidado que hoje em dia domina os serviços de enfermagem em todo mundo. A partir dos anos 70 surge a idéia de cuidado na investigação científica e no uso do aparato tecnológico. Estes devem servir a atitude de cuidado pois só então servem à integralidade dos pacientes a serem curados ou acompanhados em sua grande travessia da morte. Freqüentemente somos confrontados com a situação penosa do doente terminal. A medicina contemporânea tem condições de prolongar por muito tempo a vida, mesmo no âmbito de situações-limite e para alem de qualquer expectativa de reversibilidade. Há situações que envolvem grande dor dos pacientes e gastos altíssimos para as famílias que quase vão à falência no afã de garantir o tratamento de familiares terminais. Como atual nesses casos? Prolongar a todo custo a vida ou deixar que ela siga seu curso rumo à morte? Tive a oportunidade de acompanhar a grande travessia de uma das mais brilhantes inteligências brasileiras e cristãs, o Dr. Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athaide) no hospital Santa Teresa de Petrópolis. Ele foi durante toda a vida um paladino da liberdade, especialmente nos tempos de chumbo da ditadura militar. Com seus mais de 90 anos e sob muitos achaques, padecia ligado a muitos aparelhos e a tubos. Num dado momento de distração dos enfermeiros, arrancou tudo e se libertou. Criou-se um impasse para cuja solução fui convidado a opinar. Tratava-se de ligar ou não ligar aqueles aparelhos todos para permitir ao Dr. Alceu prolongar por um pouco mais a vida? Suspeitando do impasse, ele me sussurrou ao ouvido: “eu lutei a vida inteira pela liberdade e não quero morrer sob ferros como um escravo, isso não é digno, deixem-me morrer em paz”. Foi o que eu disse ao corpo médico: “respeitem o curso natural da vida do Dr. Alceu, porque a vida é mortal e ela precisa ser respeitada em sua qualidade de mortal. Ademais, o Dr. Alceu é um cristão profundamente convicto na vida eterna; a doença não lhe tira a vida, ele a entrega Aquele de quem a recebeu, a Deus; deixem-no morrer como quer, em plena liberdade”. E assim foi feito. E morreu com a aura de um liberto. Essa atitude significa também cuidado para com a natureza da vida, em sua finitude e mortalidade. Ao tentar compreender o ser humano podemos identificar três dimensões fundamentais num único ser que correm sempre juntas e articuladas entre si: a sua exterioridade ou corpo, a sua interioridade ou mente e a sua profundidade ou espírito. Essa visão holística beneficia a medicina e a enfermagem em sua missão de cura... A exterioridade do ser humano é tudo que diz respeito ao conjunto de suas relações com o universo, com a natureza, com a sociedade, com

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os outros e com a própria realidade concreta. Ganha densidade especial através do cuidado. Sem o cuidado eles não sobrevivem nem se desenvolvem. Por isso importa ter cuidado para com o ar que respiramos, com os alimentos que consumimos, com a água que bebemos, com as roupas que vestimos e com as energias que vitalizam nosso corpo. Normalmente se chama essa dimensão de corpo. Mas bem entendido: corpo como o ser humano todo inteiro, vivo, dotado de inteligência, de sentimento, de compaixão, de amor e de êxtase enquanto se relaciona para fora e para além de si mesmo.

A interioridade do ser humano vem constituída por tudo o que é voltado para dentro e diz respeito ao universo interior, tão complexo quanto o universo exterior.A interioridade humana se constela ao redor do consciente e do inconsciente pessoal e coletivo.Por isso não é jamais vazia mas habitada por instintos, paixões, imagens poderosas, arquétipos ancestrais e principalmente pelo desejo. O desejo constitui, possivelmente, a estrutura básica da interioridade humana. Sua dinâmica é ilimitada. Como seres desejantes, nós humanos não desejamos apenas isso e aquilo. Desejamos tudo e o todo. O obscuro e permanente objeto do desejo é o Ser em sua totalidade. Tentação permanente consiste em identificar o ser com alguma de suas manifestações. Quando isso ocorre, surge a fetichização que é a ilusória identificação da parte com o todo, do absoluto com o relativo. O efeito é a frustração do desejo e o sentimento de irrealização. O ser humano precisa sempre cuidar e orientar seu desejo para que, ao passar pelos vários objetos de sua realização, não perca a memória bem aventurada do único grande objeto que o faz realmente descansar: o Ser, a Totalidade e a Realidade frontal. A interioridade é chamada também de mente humana. Novamente mente, bem entendida,como a totalidade do ser humano voltado para dentro, captando seu dinamismo interior e também as ressonâncias que o mundo da exterioridade provoca dentro dele.

Por fim, o ser humano possui profundidade. Ele possui a capacidade de captar o que está além das aparências, daquilo que se vê, se escuta, se pensa e se ama com os sentidos da exterioridade e da interioridade. Ele apreende o outro lado das coisas, sua profundidade. As coisas todas não são apenas coisas. São símbolos e metáforas de outra realidade que está sempre além e que nos remete a um nível cada vez mais profundo. Assim a montanha não é apenas montanha. Ela traduz o que significa majestade. O mar, a grandiosidade. O céu estrelado, a infinitude. Os olhos profundos de uma criança, o mistério da vida humana.

O ser humano coloca questões fundamentais que estão sempre

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presentes em sua agenda: de onde viemos, para onde vamos, como devemos viver? Que significa a doença e finalmente a morte? Como preservar o mundo que nos sustenta? Quem somos nós e qual a nossa função no conjunto dos seres? Que podemos esperar e qual nome dar ao mistério que subjaz a todo o universo e que reluz em cada coisa à nossa volta? Ao balbuciar respostas a estas questões vitais captamos valores e significados e não apenas constatamos fatos e enumeramos acontecimentos.

Na verdade, o que definitivamente conta não são as coisas que nos acontecem. Mas o que elas significam para a nossa vida e que experiências e visões novas nos propiciam. As coisas, então, passam a ter caráter simbólico e sacramental: nos recordam o vivido, nos reenviam a questões mais globais e, a partir daí, alimentam nossa profundidade. Colocar questões fundamentais e captar a profundidade do mundo, de si mesmo e de cada coisa constitui o que se chamou de espírito. Espírito não é uma parte do ser humano. É aquele momento pleno de nossa totalidade consciente, vivida e sentida dentro de outra totalidade maior que nos envolve e nos ultrapassada: o universo das coisas, das energias, das pessoas, das produções histórico-socias e culturais. Pelo espírito captamos o todo e a nós mesmos como parte e parcela deste todo. Mais ainda. O espírito nos permite fazer uma experiência de não-dualidade. “Tu és isso tudo” dizem os Upanishads da Índia, referindo-se ao universo.Ou “tu és o todo” dizem os yogis.“O Reino de Deus está dentro de vós” proclama Jesus. Estas afirmações nos remetem a uma experiência vivida e não a uma doutrina. A experiência é de que estamos ligados e re-ligados uns aos outros e todos à totalidade e à sua Fonte Originante. Um fio de energia, de vida e de sentido perpassa a todos os seres, constituindo-os em cosmos e não em caos, em sinfonia e não disfonia.A planta não está apenas diante de mim. Ela está também dentro de mim, como ressonância, símbolo e valor. Há em mim uma dimensão planta, bem como uma dimensão montanha, uma dimensão animal, e uma dimensão Deus. Sentir-se espírito não consiste em saber estas coisas. Mas, em vivenciá-las e fazer delas conteúdo de experiência. Quando isso ocorre, emerge a não-dualidade e a profunda sintonia com todas as coisas. A partir da experiência tudo se transfigura. Tudo vem carregado de veneração e sacralidade. Não estamos mais sós, centrados em nosso antropocentrismo ou em nossa visão utilitarista das coisas. Fazemos parte da imensa comunidade cósmica. Sentimo-nos mergulhados no fluxo de energia e de vida que empapa todo o universo e a natureza à nossa volta.

A morte é uma inteligente invenção da vida. O sentido que damos a

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vida é o sentido que damos a morte e o sentido que damos à morte é o sentido que damos à vida. A morte pertence à vida e a vida pertence ao mistério, àquele processo misterioso de auto-organização da matéria que permite a vida eclodir, em sua imensa diversidade. A vida, como todas as coisas, é mortal. Quando alguém é concebido já é suficientemente velho pra morrer. Começa a morrer devagar, em prestações e vai morrendo cada dia um pouco até acabar de morrer. Então a morte não vem no fim da vida, a morte está no coração da vida. Acolher a morte como parte da vida, significa tratar diferentemente a vida, acolher sua finitude e suas limitações, sem amargura e ressentimento, mas com jovialidade e sentido de realidade. Numa perspectiva evolutiva e holística a morte é considerada uma sábia invenção da própria vida, para poder continuar num outro nível mais alto e realizar seu propósito de expansão do cuidado, do amor e da liberdade. A morte não é entendida como um fracasso ou como uma dissolução mas como um dos momentos da própria vida, tal o momento de nascer, o momento de ficar adulto, o momento das grandes decisões, o momento de casar e outros. Assim a morte significa um momento alquímico de uma grande transformação, da grande travessia para um novo estado de consciência e de realização do projeto infinito que é cada ser humano. A morte deixa de ser “fantasma escondido debaixo da cama” para se transformar na irmã que vem nos tomar pela mão e nos conduzir para uma forma mais complexa e mais alta de vida. Assim pensou e viveu S.Francisco de Assis que morreu literalmente cantando e saudando a irmã morte. Essa concepção de vida e de morte foi historicamente trabalhada pelas religiões. Elas apresentam um sentido derradeiro para o ser humano, uma cura total de sua ânsia de infinito e de vontade de viver. Para um médico humanista, tais concepções devem ser tomadas a sério, porque elas atuam poderosamente sobre os pacientes no sentido de integrarem os sofrimentos e os medos face ao imponderável da grande travessia. Eles querem ser acompanhados pela presença humana, calorosa e solidária e não abandonados nas UTIs entregues à parafernália tecnológica. Assim como entramos no mundo cercados pelo carinho humano, queremos também nos despedir dele circundados dos cuidados e da benquerença dos familiares e dos amigos.

Quais os principais pontos acerca das atitudes a se tomar face a doentes terminais? Como somos responsáveis pela nossa vida assim devemos ser responsáveis também pela nossa morte. Como temos direito a uma vida digna da mesma forma temos direito a uma morte digna. Esse direito muitas vezes nos é negado pelo fato de sermos obrigados a ficar presos a aparelhos e medicamentos que nos prolongam a vida no

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sentido meramente vegetativo, o que é insuficiente para a integralidade da vida minimamente humana. A vida é o melhor fruto do universo como auto-organização da matéria e, numa perspectiva espiritual, o maior dom de Deus. Mesmo assim, a vida cai sob a responsabilidade dos seres humanos. Somos responsáveis pelo começo da vida e também responsáveis pelo fim da vida.

Outrora, a teologia moral cristã condenava o planejamento familiar, pois imaginava, erroneamente, que era uma intromissão no desígnio divino de colocar vidas no mundo. Hoje, todas as igrejas entendem que Deus colocou à responsabilidade do ser humano o começo da vida. Também o fim da vida foi entregue à sua responsabilidade (não à sua arbitrariedade). Não cabe ao estado assumir a função de decidir quando uma vida dever prolongada ou não. O eugenismo nazista nos alerta contra essa tentação. Cabe ao próprio ser humano, mortalmente doente, decidir de forma qualificada sobre o prolongamento ou não de seu estado irreversível. Na sua impossibilidade ocupam o seu lugar os familiares e os médicos. Isso implica: -O médico fará tudo para curar o paciente. Não significa que use todos os métodos, meios artificiais e técnicos para postergar a morte. -Uma terapia só tem sentido quando se ordena à reabilitação e à restituição das funções essenciais e vitais e não simplesmente garantir uma vida vegetativa. -O cuidado pelo doente não deve ser apenas coisa dos médicos e enfermeiros, mas também dos familiares, dos conselheiros espirituais (sacerdotes, pastores, rabinos, pais de santo etc), dos amigos próximos. -Devem ser tomadas em consideração as crenças religiosas e espirituais do paciente com referência ao sentido da vida e da morte. Caso contrário lhe fazemos violência, sempre, entretanto, no pressuposto de que a vida é o bem supremo em nome do qual nenhuma visão, ideologia ou convicção religiosa contrária possa prevalecer. Para o cristianismo - a religião das maiorias de nosso povo - a morte não é um fim puro e simples, mas um peregrinar para a Fonte originária de toda vida. Morrendo, acabamos de nascer. Não vivemos para morrer, mas morremos para ressuscitar e para viver mais e melhor. Destarte a morte perde seu caráter de brutal interrupção do ciclo da vida para se transfigurar numa passagem bem aventurada para a plenitude da vida. -Morrer é fazer uma despedida da vida, de forma agradecida, por aquilo que ela nos propiciou. Morrer é então fechar os olhos para ver

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melhor o sentido do universo e do Mistério que o circunda e perpassa. - Tais visões ajudam a humanizar a morte e a desdramatizar os casos terminais, pois a vida e a morte são assimiladas num horizonte maior e transcendente.

"Reflexões Éticas e Espirituais Face a Situações-Limite de Vida e de Morte" Leonardo Boff Doutor em filosofia e teologia, professor emérito de ética na UERJ, um dos criadores da teologia da libertação e autor de mais de 50 livros entre os quais, Vida para além da morte (Vozes), A nossa ressurreição na morte (Vozes), Espírito e Saúde (Vozes), Saber Cuidar (Vozes), Ética da vida (Letraviva) e Ethos mundial, um consenso mínimo entre os humanos ·.