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COM RESPEITO AOS OITO BAIXOS Universidade Federal do Rio de Janeiro
Escola de Msica PPGM Mestrado em Msica
COM RESPEITO AOS OITO BAIXOS Um estudo etnomusicolgico
sobre o estilo nordestino da sanfona de oito baixos
LEONARDO RUGERO PERES
Rio de Janeiro, 2011
1 Um estudo etnomusicolgico
sobre o estilo nordestino da sanfona de oito baixos
Por
LEONARDO RUGERO PERES
Dissertao submetida ao Programa de
Ps Graduao em Msica da Escola
de Msica da UFRJ, como requisito
parcial para a obteno do grau de
mestre sob a orientao do Professor
Doutor Jos Alberto Salgado
Rio de Janeiro, Agosto de 2011
2
3 RESUMO
COM RESPEITO AOS OITO BAIXOS
Um estudo etnomusicolgico sobre o estilo nordestino da sanfona de oito baixos
Dissertao submetida ao Programa de Ps Graduao em Msica da Escola
de Msica da UFRJ, como requisito parcial para a obteno do grau de mestre sob a orientao do Professor Doutor Jos Alberto Salgado
A sanfona de 8 baixos um instrumento muito presente na prtica musical
nordestina, sobretudo entre comunidades da zona rural e periferia urbana.
Amplamente difundido nesta regio, este tipo de acordeom de botes est
intrinsecamente relacionado msica praticada nos bailes rurais, atravs de um
repertrio predominantemente instrumental, onde se estabelece o desafio e a
rivalidade entre os praticantes. A consolidao de um segmento fonogrfico voltado
para a msica nordestina na dcada de 1950 insere novos aspectos a esta prtica
musical. Nesta passagem, deflagram-se conflitos entre oralidade e assinatura, a
tradio que tende ao anonimato e a arte centrada na assinatura individual. Este
trabalho parte de uma perspectiva etnogrfica, desenvolvendo-se como fruto do
aprendizado do pesquisador em seu convvio com Z Calixto, um dos expoentes da
sanfona de 8 baixos no mbito fonogrfico e radiofnico. Traduz reflexes em torno
da rede de sustentao desta prtica musical, atravs de uma leitura crtica de algumas
das principais questes suscitadas durante a aproximao com o objeto de pesquisa.
Mediante a escassez de documentos escritos sobre o tema, um trabalho
eminentemente etnogrfico, no qual a pesquisa de campo e o acervo fonogrfico so
as principais ferramentas do pesquisador.
Palavras-chave: sanfona de oito baixos_ acordeom diatnico_ Z Calixto_ forr instrumental
Rio de Janeiro, Agosto de 2011
4 ABSTRACT
The sanfona de oito baixos (eight basses diatonic accordion) is an
important instrument on the musical practice of Northeast Brazil, especially on the
rural area and urban periphery. Widespread in this region, that kind of diatonic
accordion is intrinsically related to rural music dances through an instrumental
repertoire, which establishes the challenge and rivalry between the players. The
consolidation of a race record market focused on the Northeast music in the 1950s
adds new aspects to this musical practice. In this processes arise conflicts between
orality and signing, the anonymous tradition and the artistic conception based on the
assignment of an individual composer. This paper presents an ethnomusicological
perspective developed as a result of the researchers learning through their association
with the accordionist Z Calixto, one of the most representative northeastern
accordion players. Translate reflections on the support network of this musical
practice through a critical reading of some key issues raised during the approach to
the research subject. By the scarcity of written documents on the subject, is essentially
an ethnographic study, in which the fieldwork and the phonographic collection are the
main tools of the researcher.
Keywords: sanfona de oito baixos_diatonic accordion_Z Calixto_forr_
5 DEDICATRIA
Dedico este trabalho ao amigo e sanfoneiro petropolitano Joo Torquato (1947 2006), em memria.
6 AGRADECIMENTOS
Agradeo a todos aqueles que colaboraram para a realizao deste trabalho, tornando
possvel que se concretizasse esta pesquisa. Ao meu orientador, Jos Alberto Salgado,
dono de uma infinita pacincia, por sua refinada leitura das questes suscitadas
durante o processo de escrita desta etnografia; Elizabeth Travassos, com suas
translcidas e cristalinas ponderaes; Este trabalho no teria adquirido a concepo
etnomusicolgica sem o constante apoio conceitual e bibliogrfico de Samuel Arajo,
que acolheu este trabalho.
minha esposa, Claudia Peixoto Lacerda, companheira em cada passo desta jornada.
Willy Alvarenga Lacerda, cuja colaborao foi imprescindvel, especialmente para
que se realizasse a pesquisa de campo em Recife e Campina Grande;
Em Recife, agradeo aos depoimentos dos pesquisadores Anselmo Alves, Cirinia do
Amaral, Lda Dias e Roberto Benjamim. Aos sanfoneiros Arlindo dos Oito Baixos e
Camaro (Reginaldo Alves Ferreira).
Em Campina Grande, agradeo ao suporte de Dona Luzia Calixto; aos sanfoneiros
Bastinho Calixto, Geraldo Correia e Joo Calixto.
No Rio de Janeiro, meus agradecimentos a Z do Gato (Nilson Amaral) da Feira de
So Cristovo, que apresentou-me a Z Calixto. Fernando Ximenes, que
possibilitou o passo inicial desta pesquisa. Paulo Pedrassoli, que possibilitou meu
retorno aos estudos formais. Aos amigos Enock Lima e Guilherme Maravilhas, pelo
apoio documental e constante estmulo a este projeto. Aos sanfoneiros Luizinho
Calixto e Truvinca (Heleno Pereira dos Santos) pelos preciosos depoimentos. A
famlia Calixto, em especial Rita Flix da Silva (Dona Ritinha), Carlinhos Calixto,
Joselito Calixto e Janete Calixto. E, finalmente, ao mestre e amigo Jos Calixto da
Silva (Z Calixto), figura essencial para que este trabalho adquirisse razo e sentido
de existncia.
7 LISTA DE FIGURAS
Fig. 1 - Acordeom de Demian, 1829 (Monichon, 1985, p. 37) ............................................................. 30
Fig. 2 - Sanfona de oito baixos Todeschini, fabricada em 1971. Detalhe da caixa dos baixos, direita, e da caixa harmnica, esquerda (coleo particular do autor)................................................................ 31
Fig. 3 - Vlvulas de ar acionadas atravs dos botes.............................................................................. 32
Fig. 4 - Detalhe do funcionamento da vlvula de ar............................................................................... 32
Fig. 5 - Placas de msica com as palhetas livres dispostas nos castelos................................................ 32
Fig. 6 - Escala de um acordeom Sistema Pichenot, 1832. (MOCHINON, 1971, p.55)..................... 33
Fig. 7 - Sistema Foulon, 1834 (1971, p. 57)........................................................................................... 33
Fig. 8 Acordees diatnicos e cromticos diferena entre a terminologia musicolgica e a terminologia dos fabricantes................................................................................................................... 34
Fig. 9 O sanfoneiro pernambucano Truvinca com uma sanfona de oito baixos e cinco registros....... 37
Fig. 10 - Imigrante italiana desembarcada no Brasil em 1880, tocando acordeom diatnico (http://www.projetoimigrantes.com.br/)................................................................................................. 43
Fig. 11 - Ptio industrial da Indstria de Acordees Todeschini Sociedade Annima .......................... 43
Fig. 12. Melodeom novecentista em exposio na Casa de Janurio. Exu, 2011................................... 44
Fig. 13 Sanfona Koch do inicio do Sc. XX, proveniente do estado da Paraba (Coleo particular do autor)....................................................................................................................................................... 44
Fig. 14 - Jos Ribeiro de Meneses e Csar Guerra Peixe, em 1949. O sanfoneiro toca em um instrumento Koch. (http://www.guerrapeixe.com) ................................................................................ 45
Fig. 15 Famlia Gonzaga ..................................................................................................................... 44
Fig. 16. Planta da afinao natural ou grega(PERES, 2008).......................................................... 47
Fig. 17 Afinao transportada (PERES, 2008) .................................................................................. 48
Fig. 18 - Afinao de Maugein, sec. XIX (MONICHON, 1985, p. 57) ................................................ 49
Fig. 19 - Visita Z Calixto no dia 17 de novembro de 2008 ............................................................. 55
Fig. 20 - Capa do lbum Show de 8 baixos gravado por Geraldo Correia nos anos 70. .................... 55
Fig. 21 - Leonardo Rugero e Z Calixto ................................................................................................73
Fig. 22 - Escala dos baixos..................................................................................................................... 77
Fig. 23 - Escala de f maior notas altas (mo direita) ......................................................................... 77
Fig. 24 - Arpejo de r menor em duas oitavas ...................................................................................... 77
Fig. 25 - Escala de r menor com 6a menor e 7a maior formato mais utilizado ................................. 78
Fig. 26 - Escala de d maior c/ 7a menor nos baixos ............................................................................ 78
Fig. 27- Arpejo de d maior em trs oitavas.......................................................................................... 79
Fig. 28 - Escala de d maior em trs oitavas.......................................................................................... 79
Fig. 29 - Arpejo de l maior em duas oitavas ....................................................................................... 80 Fig. 30 - Escala de l maior ................................................................................................................... 80
Fig. 31 - Escala de l menor .................................................................................................................. 80
Fig. 32 - Escala de sol maior c/ 7a menor .............................................................................................. 68
Fig. 33 - Arpejo de mi menor em trs oitavas.........................................................................................81 Fig. 34 - Arpejo de mi maior em trs oitavas ........................................................................................ 81
Fig. 35 - Exemplos de acordes completos e incompletos na sanfona de oito baixos ............................ 83
8 Fig. 36 - Variao em f maior .............................................................................................................. 84
Fig. 37 - Um mesmo motivo em oitavas diferentes constitui jogos de fole e dedilhado diferenciados..84
Fig. 38 - Variao em f maior .............................................................................................................. 85
Fig. 39 - Variao em f maior .............................................................................................................. 85
Fig. 40 - Variao em d maior ............................................................................................................. 85
Fig. 41 - Variao em r menor ............................................................................................................. 86
Fig. 42 - Variao em r menor ............................................................................................................. 74
Fig. 43 - Variao em teras .................................................................................................................. 87
Fig. 44 - Dois tipos de finalizao ......................................................................................................... 87
Fig. 45 - Trecho inicial de Choro (Luiz Gonzaga, 1956), na interpretao de Z Calixto (1980).... 88
Fig. 46 - 2a parte de Forr Campinense ............................................................................................. 89
Fig. 47 - Exemplo de Piado oitavado ................................................................................................. 89
Fig. 48 - Exemplo de Ostinato ............................................................................................................... 90
Fig. 49 - Exemplo de Ostinato .............................................................................................................. 90
Fig. 50 - Recordando Macara efeito de pergunta e resposta ..................................................... 92
Fig. 51 - Forr do p de bode efeito de pergunta e resposta ........................................................ 92
Fig. 52 - Xod de Sanfoneiro melodia nos baixos .......................................................................... 93
Fig. 53 - Lembrana de Severino Correia melodia nos baixos e padro rtmico em acordes de mo direita ..................................................................................................................................................... 93
Fig. 54 - Forr do p rapado acompanhamento de mo esquerda ................................................... 94
Fig. 55 - Xote em f utilizao de recursos diversos de baixaria .................................................... 94
Fig. 56 - Forr do p rapado utilizao de recursos diversos da baixaria ....................................... 94
Fig. 57 - Modelo langnauerli, ancestral do fole de oito baixos ............................................................. 99
Fig. 58 - Acordeom de cento e vinte baixos ........................................................................................ 100
Fig. 59 - Diferena entre as chapas de msica do sistema bi-sonoro e uni-sonoro.............................. 100
Fig. 60 - Detalhe de uma chapa de msica .......................................................................................... 100
Fig. 61 - Fig. 61 - Mtodo Keiser, 1905 (MONICHON, 1958, p.145). Posio e maneira de segurar o instrumento (tocado em p).................................................................................................................. 102
Fig. 62 - Arlindo dos oito baixos tocando em sua residncia............................................................... 103
Fig. 63 - Detalhe mo direita (apoio lateral) ........................................................................................ 103
Fig. 64 - Apoio traseiro do polegar ...................................................................................................... 103
Fig. 65 - Detalhe da mo direita ............................................................................................................104
Fig. 66 - Cirinia do Amaral aos quatorze anos.................................................................................... 105
Fig. 67 - Detalhe da mo direita ........................................................................................................... 105
Fig. 68 - Planta dos baixos de um acordeom mo esquerda (MASCARENHAS, 1956, p.14).,...... 106
Fig. 69 - Ao do polegar da mo esquerda sobre o resfole..............................................................107
Fig. 70 - Modelo misto.........................................................................................................................108
Fig. 71 - Modelo misto......................................................................................................................... 108
Fig. 72 - Capa do disco 8 baixos versus cento e vinte.......................................................................114
9 Fig. 73 - Capa do disco Briga no forr .............................................................................................114
Fig. 74 - Exemplo de permuta meldica ...............................................................................................121
Fig. 75 - Exemplo de permuta meldica .............................................................................................. 121
Fig. 76 Permuta Potica .....................................................................................................................122
Fig. 77 - Permuta Potica .....................................................................................................................122
Fig. 78 - Permuta Potica .....................................................................................................................123
Fig. 79 - Permuta meldica e potica.................................................................................................... 123
Fig. 80 - Permuta meldica e potica ................................................................................................... 124
Fig. 81- Permuta meldica e potica .................................................................................................... 124
Fig. 82 Quadro comparativo entre os textos apresentados entre as variantes de Batista Siqueira e Abdias................................................................................................................................................... 125
Fig. 83 - Polca de sanfona circulao de idias variante meldica ......................................... 125
Fig. 84 - Casquinha de siri - circulao de idias variante meldica ........................................ 125
Fig. 85 O tocador quer beber motivo meldico com significado textual correspondente.......... 129
Fig. 86 - Bordo de Enxugue o rato na interpretao de Abdias.......................................................130 Fig. 87 Bordo de Soltei o gato, de acordo com a gravao de Gerson Filho.................................130 Fig. 88 - permuta meldica ..................................................................................................................131 Fig. 89 - permuta meldica ...................................................................................................................131 Fig. 90 - permuta meldica ...................................................................................................................132 Fig. 91 - permuta meldica ...................................................................................................................133 Fig. 92 - Efeito de pergunta-e-resposta .................................................................................................134 Fig. 93 - Permuta meldica ..................................................................................................................135 Fig. 94 - Permuta meldica .................................................................................................................. 135 Fig. 95 - Forr em Serra Branca em duas variantes; Na primeira a melodia apresentada com notas simples. Na segunda, com notas duplas em teras paralelas.................................................................136 Fig.96 - Quadro dialtico referente interpretao simblica do texto potico de Respeita Janurio............................................................................................................................................... 139
Fig. 97 - Janurio, seus filhos e sua sanfona de oito baixos................................................................. 142
Fig. 98 - Detalhe do retrato no selo de um disco de 78 rotaes .........................................................146
Fig. 99 - Fig. 99 - Selo do primeiro 78 rotaes de Janurio, seus filhos e sua sanfona de oito baixos, lanado em 1955....................................................................................................................................147
Fig. 100 - Capa e contracapa do disco 8 baixos de Gerson Filho em vinil de 33 rotaes, uma novidade para a poca............................................................................................................................147
Figs. 101 78 rotaes .........................................................................................................................147
Fig. 102 - Capa do disco Caminho na roa, com Jackson do Pandeiro, Almira Castilho e Z Calixto, lanado em 1963....................................................................................................................................148
Fig. 103 - Capa do disco Suplemento especial de So Joo, gravadora Cantagalo, 1972.................150
Fig. 104 - Camaro (acordeom) aos 15 anos, acompanhado pelo pai (sanfona de oito baixos) ..........160
Fig. 105 - Contra-capa do lbum Uma sanfona de respeito de Z Calixto (CBD 1969)................163
Fig. 106- Detalhe do interior de um estdio da gravadora CBS, em 1972, durante gravao de Jackson do Pandeiro ...........................................................................................................................................165
10 Fig. 107 - O acordeonista Tony Martins1 e conjunto no identificado, durante as gravaes de um disco lanado em 1974....................................................................................................................................165
Fig. 108 - Ambiente de um forr no Rio de Janeiro em 1969.............................................................. 173
Fig. 109 - Capa do disco Cantigas de Lampeo, Todamerica, 1957................................................ 177
Fig. 110 - Compassos finais de Bossa-Nova em oito baixos........................................................... 187
Fig. 111 - Clulas bsicas do baio e forr, respectivamente..............................................................188
Fig. 112 - Capa do primeiro disco de Z Calixto...................................................................................189
Fig. 113 - Z Calixto em sua residncia, no Rio de Janeiro, em 2009..................................................194
11 SUMRIO
INTRODUO.......................................................................................................... 14
1-A SANFONA DE OITO BAIXOS
1.1 Acordeom diatnico de oito baixos................................................ 27
1.1.2 - Aerofones de palhetas livres.................................................. 28
1.1.3 - O mecanismo do acordeom.................................................... 31
1.1.4 Acordees diatnicos e cromticos........................................ 33
1.1.5 As vozes ............................................................................... 35
1.1.6 Os registros ........................................................................... 36
1.2 O acordeom diatnico no Brasil...................................................... 37
1.2.1 Os imigrantes e a indstria nacional de acordees.............. 37
1.2.2 O acordeom diatnico na regio Nordeste........................... 39
1.3 As afinaes natural e transportada processo adaptacional... 45
1.3.1 Afinao transportada......................................................... 45
1.3.2 Extenso.................................................................................. 50
1.3.3 Comparao entre as afinaes.............................................. 51
1.3.4 Procedimento ......................................................................... 52
2 O APRENDIZADO
2.1 Transmisso, herana e dom inato.................................................... 56
2.1.1 O aprendizado tradicional ...................................................... 59
2.1.2 O aprendizado do pesquisador................................................ 64
2.2 A tcnica instrumental...................................................................... 73
2.2.1 Teoria nativa........................................................................... 73
2.2.2 Escalas e arpejos.................................................................... 75
2.2.3 Os acordes............................................................................... 82
2.2.4 As variaes......................................................................... 83
2.2.5 - As finalizaes........................................................................ 87
2.2.6 O piado................................................................................ 87
12 2.2.7 Ostinato ............................................................................... 90
2.2.8 O uso dos baixos..................................................................... 91
3 O MITO DA LIMITAO A SANFONA DE OITO BAIXOS E O
ACORDEOM DE CENTO E VINTE BAIXOS
3.1 A hierarquia entre os acordees...................................................... 96
3.1.1 Diferenas e semelhanas..................................................... 101
3.2 A representao dos oito baixos em relao aos cento e vinte baixos
nas gravaes fonogrficas......................................................................................... 110
3.2.1 O desafio retratado nas capas de discos.............................. 112
3.2.2 Percurso dos instrumentistas entre os oito e os cento e vinte
baixos...........................................................................................115
4 CIRCULAO DE IDIAS
4.1 Herana e ancestralidade............................................................... 117
4.2 Mitos de referncia de uma prtica musical.................................. 118
4.3 Fonografia e circulao meldica.................................................. 126
4.4 O vo de uma melodia um caso ilustrativo................................ 134
5 FONOGRAFIA E CONSOLIDAO DOS REPERTRIOS
5.1 - Luiz Gonzaga e o acordeom nordestino........................................ 138
5.1.1 - Gravaes pioneiras............................................................. 141
5.1.2- Fases das gravaes fonogrficas......................................... 142
5.1.3 - Aspectos das gravaes fonogrficas.................................. 152
5.2 - Os forrs e a veiculao da fonografia....................................... 171
5.2.1 - Forr com (e sem) briga...................................................... 173
6 A SANFONA DE OITO BAIXOS NO CONTEXTO DO DESLOCAMENTO
NORDESTE SUDESTE - NA VOLTA NINGUM SE PERDE
6.1 - Deslocamento.................................................................................179
6.2 A msica meu roado um itinerrio do deslocamento....... . 183
6.3 A sanfona no matulo um smbolo material e imaterial da
cultura nordestina..................................................................................................... 193
CONSIDERAES FINAIS................................................................................... 196
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................... 199
13 ANEXO 1 Critrios de anlise e catalogao fonogrfica..................................... 208
ANEXO 2 Categorias de anlise dos cadernos de campo...................................... 210
ANEXO 3 Consideraes sobre a notao musical da Sanfona de oito baixos..... 211
ANEXO 4 Modelos de sanfonas de oito baixos mais difundidos na Regio
Nordeste.................................................................................................................... 215
ANEXO 5 Mapa da Afinao Irlandesa ............................................................... 217
ANEXO 6 Trajetrias de sanfoneiros entre os oito e cento e vinte baixos ........... 203
ANEXO 7 Combinaes de tonalidades ............................................................. 221
ANEXO 8 Quadro de transposio da afinao transportada ............................ 222 ANEXO 9 Tabela de converso da afinao natural para a afinao transportada ......................................................................................................... 223 ANEXO 10 Quadro das escalas em afinao transportada .............................. 225
ANEXO 11 Quadro comparativo entre o mtodo prtico e outras concepes de harmonia ................................................................................................................... 226
ANEXO 12 Os sanfoneiros e as afinaes ............................................................ 227 ANEXO 13 Genealogias da sanfona de oito baixos na regio Nordeste .............. 230
ANEXO 14 Tabela comparativa de permutas meldicas I ................................... 231 ANEXO 15 - Tabela comparativa de permutas meldicas II ................................... 232
ANEXO 16 Gravaes fonogrficas pioneiras entre 1953 e 1956 ........................ 234 ANEXO 17 Gravaes entre 1957 e 1964 ............................................................ 235
ANEXO 18 Alguns instrumentistas da 2a gerao ............................................... 237 ANEXO 19 Diferentes designaes para o baile nordestino na memria dos praticantes ................................................................................................................ 238 ANEXO 20 Instrumentao e funo dos instrumentos no regional nordestino .................................................................................................................................. 239 ANEXO 21 Ritmos do forr instrumental ........................................................... 240
ANEXO 22 Texto de Contracapa do 1o disco de Z Calixto ............................... 242 ANEXO 23 - Fases na carreira fonogrfica de Z Calixto ..................................... 244
ANEXO 24 Discografia de Z Calixto ................................................................. 245
14 INTRODUO
A sanfona de 8 baixos um modelo de acordeom, composto por uma,
duas ou trs fileiras de botes dispostos diagonalmente para a mo direita, e oito
botes (notas graves - baixos e acordes de acompanhamento) para a mo esquerda.
No Brasil, a sanfona recebeu uma denominao metonmica, em que duas partes
componentes do instrumento - o fole sanfonado e os oito botes da mo esquerda se
tornam a designao mais usual: sanfona de oito baixos.
Na regio Nordeste, este tipo de acordeom, tambm conhecido como fole
de oito baixos2, recebeu uma afinao peculiar, um repertrio especfico e um estilo
caracterstico, atravs de um intrincado processo adaptacional, que abrange ideais
sonoros, simbologia visual, exigncias de construo e tcnicas musicais
preferenciais (RACY, 1994, p. 37). Devido presena intrnseca em festividades,
este instrumento espalhou-se entre as populaes rurais e da periferia urbana,
constituindo o imprescindvel papel do sanfoneiro em atividades sociais como
casamentos, batizados, festas do ciclo junino, sobretudo no contexto de instrumento
animador dos bailes (forrs). Conseqentemente, foi um dos utenslios carregados no
matulo3, em meio ao macio deslocamento de nordestinos regio sudeste, pois,
como observa Elizabeth Travassos (2002, p. 92), o sudeste consistia em percurso
obrigatrio para o msico nordestino em dcadas anteriores.
A consolidao de um mercado fonogrfico para a produo de msica
de origem nordestina, processo que somente se solidificaria com a consagrao de
Luiz Gonzaga no Rio de Janeiro nas dcadas de 1940 e 504 (ARAJO, 1991, p.97),
possibilitaria que o estilo nordestino da sanfona de 8 baixos obtivesse reconhecimento 2 O termo sanfona, embora no seja a denominao consensualmente empregada pelos praticantes, foi escolhido pela indstria fonogrfica em torno da dcada de 1950. Por esta razo, adotaremos este termo para designar este instrumento. Na regio Nordeste, usualmente utilizada a diferenciao entre fole para a sanfona de oito baixos e sanfona para o acordeom de cento e vinte baixos. Porm, neste trabalho, no adotaremos esta terminologia, para no tornar ainda mais complexa a questo onomstica que envolve os instrumentos de fole no Brasil. 3 Referncia letra do maracatu estilizado de Luiz Gonzaga e Guio de Moraes, Pau de Arara: trouxe um gongu no matulo, trouxe um ganz, trouxe um zabumba dentro do matulo. Xote, Maracatu e Baio, tudo isso eu trouxe no meu matulo (GONZAGA & MORAES, 1952,1996). 4 No poderamos ignorar a importncia dos msicos nordestinos que antecedem historicamente Luiz Gonzaga, na consolidao de um segmento mercadolgico nordestino, a exemplo do poeta Catulo da Paixo Cearense, da dupla Jararaca e Ratinho, do violonista Joo Pernambuco, do cantor de emboladas Manezinho Arajo e do compositor e radialista Z do Norte, entre tantos outros nomes significativos. Porm, abrir uma nova janela para este assunto, algo que excede os limites deste trabalho, especificamente voltado para a expresso dos acordees.
15 e conquistasse um segmento significativo no contexto fonogrfico comercial
destinado a musica nordestina. Luiz Gonzaga pode ser apontado como o precursor do
processo de consolidao de um segmento mercadolgico, fonogrfico e radiofnico
de instrumentistas nordestinos dedicados aos acordees, dos oito aos cento e vinte
baixos.
Com o xito fonogrfico do xote5 Respeita Janurio de Luiz Gonzaga e
Humberto Teixeira, a prtica nordestina da sanfona de oito baixos comea a adquirir
relevo. Esta msica descreve uma visita de Luiz Gonzaga ao seu bero natal, o
municpio de Exu, no alto serto pernambucano, depois de sua consagrao no
Sudeste, onde j havia recebido o ttulo honorfico de Rei do Baio6. Luiz Gonzaga
trazia em sua bagagem, um moderno acordeom de teclado e cento e vinte baixos, que,
aquela altura, nas regies interioranas, ainda consistia em uma novidade7. Porm, a
certo momento, surge outro personagem, o Velho Jac 8, que adverte Gonzaga,
dizendo: Luiz, respeite os oito baixos do seu pai.
Sendo o fole de oito baixos um instrumento que antecede historicamente
o acordeom de cento e vinte baixos, as dicotomias pai/filho, moderno/tradicional,
urbano/agrrio, permearam construes simblicas em torno das representaes
destes dois instrumentos na cultura nordestina. A percepo desta dialtica, que se
reflete em relatos e discursos proferidos por seus atores sociais, foi um dos fios
condutores deste trabalho9. Em alguns momentos, estas polaridades so relativizadas
ou mesmo desconstrudas nas narrativas e na atuao de seus praticantes.
Sob o impacto alvissareiro de Respeita Janurio, alguns instrumentistas
representativos da msica instrumental praticada no fole de oito baixos nos bailes
rurais, iniciam carreiras fonogrficas relativamente estveis. Este processo se
consolida a partir das gravaes pioneiras do alagoano Gerson Filho, no Rio de
Janeiro, em 1953. A produo de discos fonogrficos torna-se, portanto, o eixo
5 Corruptela de scottish, dana de origem europia. 6 A gravao original de Respeita Janurio data de 13 de abril de 1950, pela gravadora RCA Victor, Rio de Janeiro. 7 Na memria dos sanfoneiros entrevistados durante a pesquisa, o fole de oito baixos constitua no instrumento predominante nas regies interioranas, at por volta da metade do sc. XX. Vide o capitulo A sanfona de oito baixos e o acordeom de cento e vinte baixos. 8 Referncia de Luiz Gonzaga ao vaqueiro Raimundo Jac. 9 Este tema abordado de forma detalhada no capitulo Fonografia e consolidao dos repertrios.
16 principal desta prtica no contexto profissional, constituindo um verdadeiro cordel
sonoro 10, que acarretaria mudanas significativas nesta tradio musical permeada
por uma permanente e incessante interlocuo entre seus praticantes.
A escolha do segmento fonogrfico como o percurso histrico em torno
do qual se desenvolveria esta pesquisa, surge como reflexo da constatao da
importncia que o fonograma comercial adquire neste segmento artstico. A prtica
profissional de sanfona de oito baixos ser constituda por msicos originrios de
regies pouco favorecidas economicamente, que conquistam um espao nos meios de
gravao e veiculao comercial atravs de um repertrio predominantemente
instrumental, embora revestido de significados e significantes compartilhados
culturalmente.
A arte vive nos homens e mulheres, sendo trazida a pblico por processos especiais de interao. Desta maneira, os signos no possuem significados at que estes sejam compartilhados, e assim tais processos tornam-se cruciais para a semitica da msica, como o produto snico que fornece o foco para a anlise (BLACKING, 1981, p. 192).
A contrapartida da fonografia se concentrava na atuao prtica dos
instrumentistas, atravs de programas de rdio e dos forrs nome genrico para
as casas de baile ou sales de dana11. Os repertrios constituam-se de msicas
instrumentais baseadas em danas europias que foram apropriadas e adaptadas, tais
como o xote, a quadrilha, a polca e a mazurca, alm de danas de provvel origem
autctone como o forr, o baio e o xaxado. Segundo a memria dos praticantes, parte
significativa deste repertrio j estava delineada na dcada de 1920, em torno dos
bailes rurais nordestinos. Registros fotogrficos ou sonoros deste perodo remoto no
foram localizados, porm, sanfoneiros como Severino Janurio, Z Calixto, Geraldo
Correia e Abdias, herdaram estes legados artsticos, que posteriormente foram
interpretados e ressignificados no contexto fonogrfico comercial. Portanto, a
ancestralidade ocupa um espao importante no imaginrio da sanfona. No panteo de
sanfoneiros na tradio nordestina da sanfona de oito baixos, a genealogia faz-se
10 Referncia a literatura de cordel. 11 Expresses utilizadas por forrozeiros para designar as casa de forr daquele perodo.
17 presente na forma de herana inestimvel, a exemplo de Janurio em relao a Luiz
Gonzaga.
O contato inicial com este objeto de estudo a prtica musical da sanfona
de oito baixos na regio nordeste, realizou-se em novembro de 2007, sob o impacto
esttico da audio de um disco de um solista representativo desta prtica musical, o
sanfoneiro Jos Calixto da Silva, artisticamente conhecido como Z Calixto. A
aparente inexistncia de mtodos ou tratados escritos, (o que se justifica pela
oralidade e auralidade que constituem os meios de transmisso dos saberes que
envolvem esta prtica musical), e a escassez de trabalhos etnogrficos sobre a sanfona
de oito baixos, foram os estmulos iniciais para que a pesquisa de campo fosse
empreendida.
Por intermdio de Z do Gato, (nome artstico de Nilton Amaral, arteso e
acordeonista pernambucano radicado no Rio de Janeiro), surge a oportunidade de
conhecer pessoalmente o instrumentista Z Calixto. Nascido em Sitio Araticum,
municpio de Alagoa Seca12, Paraba, no ano de 1933, radicou-se no Rio de Janeiro
em 1959. Z Calixto o ltimo remanescente da primeira gerao de solistas de
sanfona de oito baixos que se profissionalizaram na dcada de 1950, no contexto do
intenso deslocamento de msicos nordestinos para o eixo Rio - So Paulo13. Em cinco
dcadas de carreira, este eminente sanfoneiro pode ser observado como um fio
condutor do percurso fonogrfico da sanfona de oito baixos, desde seus primrdios
(dcada de 1950), atravessando o perodo ureo entre as dcadas de 1960 a 1980 -
quando os solistas deste instrumento ocupavam um espao representativo nos forrs e
uma atuao fonogrfica e radiofnica considervel14, at o perodo recente, em que
os atores sociais envolvidos nesta prtica sonora se obrigaram a articular novas
estratgias de negociao, no intuito de expandir as possibilidades de insero
profissional.
Esta pesquisa est subdivida em seis captulos. No primeiro captulo,
empreendemos uma descrio do instrumento, apontando inicialmente para suas 12 Na poca em que Calixto nasceu, Alagoa Seca era um dos distritos de Campina Grande. 13 No podemos desconsiderar outros sanfoneiros representativos, como o cearense octogenrio Chico Paes, porm, o enfoque nos instrumentistas de carreira radiofnica e fonogrfica foi uma de nossas delimitaes temticas. 14 Contexto promissor, em que solistas assinavam contratos de exclusividade com gravadoras de grande porte, sendo seus lbuns distribudos nacionalmente.
18 caractersticas gerais. Em seguida, nos detemos ao percurso da sanfona de oito baixos
no Brasil, e especificamente na regio Nordeste, onde ocorre o processo adaptacional
da afinao transportada, que caracteriza o estilo nordestino.
O processo de aprendizado no contexto da tradio nordestina da sanfona
de oito baixos o tema central do segundo captulo. Nos relatos sobre o aprendizado
tradicional pode-se observar como aspecto caracterstico, a recusa da figura paterna
(mestre) e o conseqente desafio de afirmao do filho (aprendiz). Tambm
observada a experincia etnogrfica do pesquisador em torno do aprendizado deste
instrumento com o sanfoneiro paraibano Z Calixto. A finalizao deste capitulo
uma descrio da tcnica musical da sanfona de oito baixos, sob o prisma de seu
repertrio tradicional, de acordo com as terminologias e concepes nativas.
A discusso em torno de uma hierarquia entre os diferentes modelos de
acordees diatnicos e cromticos o fio-condutor do terceiro capitulo, que descreve,
vis vis, a sanfona de oito baixos e o acordeom de cento e vinte baixos, e os conflitos
entre os dois instrumentos, sobretudo no contexto de profissionalizao na dcada de
1950.
A circulao de idias a discusso central do quarto capitulo em que
nos direcionamos aos repertrios compartilhados, sobretudo quanto identificao de
processos de permuta meldica, atravs de uma leitura comparativista.
No quinto captulo, realizado um pequeno histrico do segmento
fonogrfico comercial dedicado sanfona de oito baixos, principalmente no contexto
do deslocamento para a regio Nordeste. Alm da abordagem histrica, so
examinados aspectos fundamentais decorrentes da consolidao deste segmento
fonogrfico. Tambm abordado o fenmeno dos forrs, que constituam, entre as
dcadas de 1960 e 80, no principal meio de veiculao e divulgao do repertrio
instrumental de sanfona de oito baixos.
Por fim, o capitulo seis traz uma reflexo sobre o papel simblico da
sanfona de oito baixos na regio Nordeste, sob a perspectiva do deslocamento
migratrio, a partir da narrativa de Z Calixto, encontrando em sua experincia
individual, um retrato representativo do deslocamento geogrfico e a consolidao de
um mercado artstico direcionado, sobretudo, ao pblico nordestino. Paralelamente, a
19 carreira artstica de Z Calixto espelha as diferentes fases da histria fonogrfica deste
instrumento, e assinala para a discusso central deste trabalho, em torno da rede de
sustentao da prtica musical da sanfona de oito baixos na regio Nordeste
PROCEDIMENTOS METODOLGICOS
Nesta seo, alm de serem apontados os procedimentos utilizados nesta
pesquisa, tambm realizada uma reviso bibliogrfica sobre o tema, e uma breve
discusso em torno da relao entre o pesquisador e o objeto de pesquisa.
Anthony Seeger (1992) observa determinada vertente etnomusicolgica,
na qual, os pesquisadores desenvolvem suas etnografias em torno de um instrumento
especfico ou um tipo de msica em particular.
comearam com interesse em uma tradio enquanto densidade esttica, porm se deslocaram para o estudo da densidade semntica. Freqentemente, tais autores eram msicos tambm, e as etnografias eram tanto descries engajadas de encontros com msicos em outras sociedades, quanto descries da vida musical a partir da perspectiva de um aprendiz e msico (SEEGER, 1992, p. 21).
De tal modo este instrumento foi apropriado e ressignificado
culturalmente, que no parece possvel observar a sanfona de oito baixos de forma
isolada, sem levar em conta o entorno que sedimentou esta prtica musical o
repertrio de danas que compe o baile nordestino. Porm, no momento em que
foram realizados meus primeiros encontros com atores sociais significativos que
compem a rede ou mundo artstico que envolve a sanfona de oito baixos da
regio Nordeste, o dilogo invariavelmente convergia em direo ao passado, e a
incerteza quanto continuidade desta prtica.
Assim como toda atividade humana, todo trabalho artstico compreende a atividade conjunta de uma srie com freqncia numerosa de pessoas. Por intermdio de sua cooperao, a obra de arte que finalmente vemos ou ouvimos cobra existncia e perdura (BECKER, 1982, 2008, p.17).
Uma mudana conjuntural de fatores socioculturais havia desestruturado a
rede de sustentao desta msica, de modo que este trabalho de pesquisa foi
realizado num perodo em que o papel social da sanfona de oito baixos, e,
20 conseqentemente, do sanfoneiro, no apresentava o mesmo alcance de quando este
instrumento era muito praticado no contexto dos bailes nordestinos, no apenas no
mbito das comunidades rurais, bem como nos forrs urbanos nas capitais do Sudeste,
que resultam do macio processo migratrio do sec. XX. De acordo com Seeger
(1991), O passado pode ser concebido como uma srie de descontinuidades
momentos de mudana decisiva ou como um conjunto de continuidades por mais
que as coisas se modifiquem, elas continuam as mesmas (1991, p.342).
A primeira questo que surge diante desta problemtica, identificar
quais teriam sido os fatores de descontinuidade, isto , como teria ocorrido o
enfraquecimento da rede de sustentao desta prtica musical, e, ao mesmo tempo,
observar as tticas que envolvem a continuidade, atravs de trajetrias individuais,
a exemplo de Z Calixto em seu movimento de resilincia em torno de um contexto
adverso.
A seguir, relaciono um breve levantamento bibliogrfico especfico,
incluindo todas as fontes de pesquisa, tais como, gravaes etnogrficas, transcries
musicais (partituras), vdeos documentrios e artigos etnogrficos.
Em 1938, Mrio de Andrade, na condio de diretor do Departamento de
Cultura da Prefeitura de So Paulo, consegue viabilizar a Misso de Pesquisas
Folclricas, possibilitando o custeamento de viagens de quatro pesquisadores ao
Norte e Nordeste do Brasil15, para gravao em udio e vdeo de manifestaes da
msica popular. Entre as msicas recolhidas pela expedio, se encontra a mais antiga
gravao de sanfona de oito baixos realizada na regio Nordeste da qual temos
conhecimento. Trata-se de sambinha, solo de sanfona de oito baixos com
acompanhamento de instrumento de cordas no - identificado, interpretado por Jos
Francelino dos Santos e Manoel Messias do Nascimento, gravada no dia 09 de abril
de 1938, na cidade de Pombal, no alto serto paraibano.
Em Recife, por volta do ano de 1949, o maestro e compositor Csar
Guerra-Peixe transcreveu em notao musical algumas melodias tocadas pelo
sanfoneiro cego Jos Ribeiro de Menezes, que executando o seu repertrio, recorria
caridade pblica15. Entre as anotaes do maestro, ele observava que, O curioso 15 Luis Saia, Martin Braunwieser, Benedito Pacheco e Antnio Ladeira.
21 que na sua sanfona, o popular tanto executava melodias modais como tonais
(GUERRA-PEIXE, 2007, p.199) 16, atentando para uma caracterstica meldica que
acompanha o repertrio do fole de oito baixos (ver Fig. 14).
Com um hiato de meio sculo, (embora devemos mencionar que os dois
trabalhos acima citados s foram verdadeiramente disponibilizados pblico na
dcada de 2000), a passagem do etnomusiclogo norte-americano John Murphy por
Recife, fez com que este pesquisador dedicasse um trecho de um captulo de seu livro
Music in Brazil (2006), a questes referentes prtica instrumental de sanfona de
oito baixos, com pesquisa concentrada ao redor do eminente sanfoneiro
pernambucano Arlindo dos 8 baixos. Murphy se detm brevemente em questes
musicolgicas como a afinao transportada, o virtuosismo de seus intrpretes, e a
observao da relao simblica entre a sanfona de oito baixos e o rstico passado
rural, ressaltando paradoxalmente a complexidade tcnica instrumental que envolve
este instrumento no contexto da msica nordestina.
A despeito de sua dificuldade, a sanfona de oito baixos simboliza o rstico passado rural para muitos ouvintes de forr. Seu apelido, p-de-bode, remonta aos dias em que o instrumento possua apenas dois baixos; a analogia parece estar relacionada com a diviso dos ps do bode em duas partes (MURPHY, 2006, p. 104).
Entretanto, o trabalho de Murphy, por ter sido publicado em lngua
inglesa e direcionado especificamente ao pblico universitrio norte-americano,
infelizmente, obteve discreta ressonncia entre os praticantes, apreciadores e
pesquisadores deste segmento musical.
No mesmo ano de 2006, a professora Sulamita Vieira, da Universidade
Federal do Cear, publicou o livro Velhos Sanfoneiros. Neste trabalho, atravs de
relatos de sanfoneiros cearenses, a autora reconstitui parte da histria da difuso e
tradio do acordeom incluindo o acordeom diatnico de oito baixos, no estado do
Cear.
16 Estas transcries foram publicadas em 2007, no livro Estudos de folclore e msica popular urbana, com organizao, introduo e notas de Samuel Arajo, sobre o trabalho musicolgico empreendido por Guerra-Peixe.
22 A parceria do jornalista Anselmo Alves e da historiadora Lda Dias,
principalmente entre 2005 e 2007, trouxe a discusso em torno do fole de oito baixos
novamente tona, num momento em que o instrumento se apresentava distanciado
dos veculos miditicos, atravs de diversas matrias jornalsticas para uma emissora
de televiso de grande audincia17 e, sobretudo, pela realizao do vdeo
documentrio, Arlindo dos 8 baixos O mestre do Beberibe (2005). Contrariando
as estatsticas que apontavam para a possvel extino desta prtica musical, no
apenas despertou-se um interesse renovado ao redor do instrumento, como,
principalmente, a redescoberta de instrumentistas esquecidos e a descoberta de
instrumentistas desconhecidos, sobretudo no serto pernambucano.
A despeito de escassos trabalhos especficos sobre o instrumento e seus
praticantes, a intensa produo fonogrfica comercial, sobretudo no que concerne ao
perodo que compreende as dcadas de 1960 e 1970, se constituiu, ao lado da
pesquisa de campo, em preciosa fonte para o levantamento de dados. Devo ressaltar
que no momento em que esta pesquisa foi iniciada, no havia uma catalogao para
este vasto material que encontrava-se disperso. Sendo a concentrao deste trabalho
realizada ao redor do percurso fonogrfico do instrumento, a catalogao de uma
discografia da sanfona de oito baixos nordestina foi imprescindvel e o garimpo
destes fonogramas foi parte importante de nossa pesquisa, a quem devo, em especial,
o auxilio de colecionadores e vendedores de discos raros.
Foram analisados 210 fonogramas, entre discos de 78 rotaes, long-plays
de 33 rotaes de 10 e 12 polegadas e CDs, publicados num perodo que compreende
1953 a 2010. O estudo destes discos sonoros foi realizado para cada faixa em
conformidade com os seguintes parmetros: compasso; forma e estrutura; escalas
utilizadas; formao instrumental; gneros musicais e afinao do instrumento (ver
exemplo em Anexo 1). Tambm foram realizadas anotaes pessoais sobre os
repertrios e temas relevantes que foram suscitados a medida em que o trabalho foi
realizado. As fotografias das capas e os textos informativos de contracapas se
revelaram em importante documentao complementar, no apenas enquanto dados
histricos e biogrficos, bem como, despertando o levantamento de questes
17 TV Globo Recife.
23 referentes alteridade, em torno da construo, representao e negociao
identitria (CAMBRIA, 2008, p.1).
Ao optarmos pela pesquisa de campo como principal meio para
desenvolvermos nosso trabalho, Z Calixto se constituiria no principal interlocutor,
no apenas devido a sua representatividade nesta prtica musical, mas tambm, pela
relativa proximidade geogrfica entre pesquisador e pesquisado, que talvez tenha
contribudo para alicerar nossa amizade, que transcendeu os limites da pesquisa de
campo. Deste modo, uma constante interlocuo, atravs de visitas informais,
audies, conversas telefnicas, alm do acompanhamento de ensaios, gravaes e
apresentaes, permearam todo o perodo de realizao deste trabalho.
Parte majoritria da pesquisa foi realizada no Rio de Janeiro entre
novembro de 2007 e dezembro de 2010. Em agosto de 2009 foi viabilizada uma breve
viagem a Campina Grande, Paraba e Recife, Pernambuco. Atravs de Z Calixto,
realizei um mapa de viagem, que teve como percurso, lugares e pessoas
significativas na rede de estruturao profissional da sanfona de oito baixos da regio
Nordeste.
Neste sentido, toda a parte desta pesquisa que concerne aos processos de
interao pessoal no trabalho de campo(COOLEY, 2008, p.11), compreende no
somente uma etnografia do passado, com o olhar dirigido ao processo histrico de
edificao da prtica profissional, atravs do relato de participantes significativos
desta rede, mas, sobretudo ao enfoque no levantamento da prtica oral.
A organizao deste material foi realizada a partir da escolha de palavras-
chave, que auxiliaram na anlise dos resultados e na delimitao de questes que
seriam trabalhadas posteriormente (Anexo 2). Alm das situaes implcitas
pesquisa de campo, foram realizadas entrevistas, e, em alguns casos em que no tenha
sido possvel o contato pessoal com determinados atores sociais, o contato foi
estabelecido atravs de correspondncia eletrnica na forma de questionrios.
Para o registro das entrevistas, demonstraes dos praticantes e eventuais
performances, foi utilizada uma cmera fotogrfica digital, e, em alguns casos
especficos, o registro sonoro foi realizado atravs de um microfone condensador e
uma mesa de oito canais acoplados um computador porttil.
Sendo a prtica da sanfona de oito baixos estritamente oral, a transcrio
musical adotada neste trabalho foi realizada no intuito de ilustrao complementar aos
24 exemplos sonoros (Anexo 3). A problemtica que envolve a transcrio de prticas
musicais grafas tem sido uma das preocupaes conceituais da etnomusicologia. A
etnomusicloga Pandora Hopkins (1966) observa a diferena entre a prtica sonora e
sua representao grfica em notao convencionada culturalmente, considerando que
mesmo a mais precisa notao musical que se possa ter conhecimento no a msica
em si, mas um esboo de sua estrutura aural (1966, p. 311). A importncia da
transmisso oral, mesmo em prticas sonoras condicionadas pela grafia, posta em
considerao mesmo por msicos no centro da tradio clssica europia que se
utilizam da notao musical como meio de transmisso, tal como o compositor
Karlheinz Stockhausen (1979).
A notao musical extremamente limitada. Sem uma tradio que explicasse como deveriam ser lidos os sinais, a msica no poderia ter sido interpretada (...) necessria (...) uma tradio de escuta, de audio, para se poder dizer: deves faz-lo de outro modo ou meu mestre tocava assim... (STOCKHAUSEN, 1979, p.30).
A anlise forneceu-nos inspirao para o estudo detalhado do repertrio
da sanfona de oito baixos na regio Nordeste, sobretudo no que se refere circulao
de idias meldicas, e na forma de explorao tcnica do instrumento elementos
delineadores de um gnero musical. Quando somos confrontados com fenmenos demasiado complexos para serem reduzidos a fenmenos de ordem inferior, s os podemos abordar estudando as suas relaes internas, isto , tentando compreender que tipo de sistema original formam no seu conjunto (LVI-STRAUSS, 1978, p. 9).
Em seu livro Os cariris do Nordeste, especificamente no captulo
denominado folclore, o musiclogo Batista Siqueira (1978) relaciona alguns
exemplos musicais recolhidos na microrregio que coincide com a maior incidncia
da prtica da sanfona de oito baixos18. Pude verificar que parte significativa dos
exemplos recolhidos por Siqueira coincidia com msicas que haviam sido gravadas
por sanfoneiros de origem nordestina, adaptadas dos repertrios annimos que eram
compartilhados coletivamente no perodo anterior fonografia. Bronson (1968,
p.201), observa a tendncia de mudana das prticas musicais tradicionais em
direo ao profissionalismo, atravs de instncias miditicas de veiculao e 18 Microrregio que compreende os estados de Cear, Pernambuco e Paraba.
25 divulgao. No caso da sanfona de oito baixos, a partir da segunda metade do Sc.
XX, esta transio pode ser nitidamente observada, quando o disco fonogrfico
comercial se torna gradualmente o principal meio de transmisso repertorial.
Foi o que conduziu-nos ao estudo do repertrio no que se refere ao
aspecto de transmisso oral e transformao meldica (SPITZER, 1994, p.90),
possibilitando a identificao de um corpus repertorial que caracteriza a tradio da
sanfona de oito baixos na regio Nordeste. A investigao deste repertrio sob este
prisma, reflete o conceito de famlias meldicas19(BAYARD, 1950, p.1), objeto de
estudo do folclore e da etnomusicologia, principalmente na primeira metade do sculo
XX.
Claude Lvi-Strauss, em sua obra O cru e o cozido, observa na
mitologia indgena sul-americana uma lgica das qualidades sensveis (2007, p. 20)
como base para as variaes na circulao de um mito entre sociedades em diferentes
nveis de contato, mas, de certo modo, interligadas. Segundo Lvi-Strauss, a partir da
escolha aleatria de um mito dos ndios bororo, considerado como mito de
referncia, seria possvel demonstrar esta inter-relao entre os mitos.
De fato, o mito bororo, doravante designado pela expresso mito de referncia, no como tentaremos demonstrar seno uma transformao mais ou menos elaborada de outros mitos, provenientes da mesma sociedade ou de sociedades prximas ou afastadas. Teria sido legitimo, portanto, escolher como ponto de partida qualquer representante do grupo. O interesse do mito de referncia no reside, nesse sentido, em seu carter tpico, mas, antes, em sua posio irregular no seio de um grupo (LVI - STRAUSS, 2007, p. 20).
No repertrio de fole de oito baixos podemos observar no somente a
circulao de melodias num sentido macroscpico, como uma circulao de
motivos num sentido microscpico. Estas seriam variantes de ordem estrutural, tanto
do ponto de vista da forma quanto dos mnimos componentes estilsticos. Tomando
como base o conceito de uma lgica das qualidades sensveis delineado por Lvi-
Strauss, e o conceito de famlias meldicas, pretendemos observar a tradio oral e
aural da sanfona de oito baixos na regio nordeste. O mbito deste trabalho
compreende as variantes entre diferentes linhagens, prximas ou afastadas 19 Traduo direta do termo tune families.
26 geograficamente, mantendo diferentes nveis de interlocuo e correspondncia, e que
de alguma maneira partilham a mesma tradio, da qual se tornaram fontes
irradiadoras, amparadas, em maior ou menor grau, pelos meios oficializados de
veiculao de msica, sobretudo o rdio e o disco.
Ao contrrio do tipo de estudos de musicologia histrica, que envolve as obras de um compositor, ou que se concentram em uma nica e importante composio individual, os estudos etnomusicolgicos lidam primariamente com os corpora de msica que se originam de uma cultura, ou que sejam utilizados por uma cultura para um propsito particular (NETTL & BLUM, 1968, p.47).
Como se estrutura a rede de sustentao da prtica instrumental da
sanfona de oito baixos na regio Nordeste? A partir desta pergunta norteadora, este
trabalho tem por objetivo o aprofundamento das relaes implcitas na sustentao
desta prtica, no apenas pelos aspectos materiais que envolvem a profissionalizao
desenvolvimento tcnico, aquisio de instrumentos de qualidade, construo de
uma identidade artstica, incorporao de novos repertrios e adaptao s exigncias
mercadolgicas, bem como pelos aspectos imateriais que aos poucos se revelavam em
nossa investigao, manifestados de forma simblica20, subjacentes s questes de
ordem prtica, que, no entanto, constituem o cerne de sustentao desta prtica
musical - o culto determinadas linhagens familiares de sanfoneiros21, o dom inato
que antecede o desenvolvimento tcnico, o legado musical enquanto um tesouro
cultural ou patrimnio imaterial, a valorizao simblica adicionada objetos e a
construo da figura mtica do sanfoneiro de oito baixos, como espcie de heri que
venceu os obstculos e dificuldades tcnicas de um instrumento considerado difcil e
assume um posto cultural diferenciado.
20 O que chamamos smbolo um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diria, embora possua conotaes especiais alem de seu significado evidente e convencional. Implica alguma coisa vaga, desconhecida ou oculta para ns (JUNG, 1987, p.20). 21 Por exemplo, a famlia Calixto ou a famlia Gonzaga.
27 1 A SANFONA DE OITO BAIXOS
1.1 ACORDEOM DIATNICO DE OITO BAIXOS
No Brasil, conforme observamos anteriormente, houve uma tendncia a
nomear os diferentes modelos de acordees de forma metonmica, por um dos seus
componentes, aquele que talvez seja o elemento mais caracterstico de um acordeom:
o fole sanfonado. Assim, fole de oito baixos, na regio Nordeste, e sanfona de oito
baixos, nas regies Sudeste e Nordeste tornaram-se denominaes muito difundidas.
Neste trabalho, adotamos o termo sanfona de oito baixos, pelo fato de que tenha
sido a forma mais disseminada para designar este instrumento no mbito da produo
fonogrfica direcionada musica nordestina, desde a gravao embrionria de
Respeita Janurio (GONZAGA & TEIXEIRA, 1950).
A sanfona ou fole de oito baixos classificada como um modelo de
acordeom diatnico (MONICHON, 1985, p.58), ou, mais especificamente, um
acordeom diatnico de oito baixos. Embora esta designao no tenha sido
assimilada no Brasil, pode ser encontrada em diferentes pases entre os quais este
instrumento tenha sido incorporado cultura, tal como na Frana (accordon
diatonique), Irlanda (diatonic accordion) e Espanha (acorden diatnico). Em alguns
outros pases, surgem expresses locais, do mesmo modo que ocorre no Brasil.
Assim, Concertina22 em Portugal, Organetto na Itlia, Trikitixa no Pas Basco,
so alguns exemplos.
Em cada cultura na qual o acordeom diatnico foi apropriado e
incorporado, alm de possveis denominaes especificas, o instrumento adquire
modificaes estruturais ou, ao menos, a consolidao de repertrios caractersticos e
tcnicas prprias. Como explica o acordeonista espanhol Igncio Alfay, a cada
estilo ou repertrio convm melhor um instrumento do que outro, j que os acordees
diatnicos so instrumentos muito especializados, e cada modelo, por suas
caractersticas de sistema ou timbre, se adapta melhor a um gnero de msica do que
outro (ALFAY, 2011). De acordo com Harrington & Kubik (2011), Virtualmente,
toda cultura tem sua prpria verso favorvel. Ao menos quarenta, mas, talvez, em
torno de cinqenta e cinco variedades [de acordees] podem ser identificadas. A 22 O que no deve ser confundido com a Concertina, instrumento aerofone patenteado por Wheatstone em 1829.
28 modificao dos acordees diatnicos de acordo com os contextos culturais nos quais
so praticados, reiterada pelo musiclogo francs Pierre Monichon (1971), que
destaca as transformaes de um instrumento musical no seio de uma sociedade, que
o modifica na medida de sua prpria evoluo, em funo de seus ideais e de seus
gostos (1971, p.9).
O etnomusiclogo Ali-Jihad Racy compreende os instrumentos musicais
enquanto entidades interativas (RACY, 1994, p.38), considerando-os mais do que
refletidores de seu entorno cultural. Deste modo, Racy considera que o estudo de
instrumentos musicais enquanto meros artefatos organolgicos, alheios ao contexto
sociocultural no qual se inserem, poderia no atingir resultados satisfatrios.
(...) instrumentos interagem dialeticamente com as realidades fsicas e culturais do seu entorno, como tal, perpetuamente negociando e renegociando seus papis, estruturas fsicas, estilos de performance, ideais sonoros e sentidos simblicos (1994, p.38).
No estilo nordestino da sanfona de oito baixos, podemos verificar
mudanas estruturais, tcnicas especficas, concepes, terminologias e o papel
simblico deste instrumento na cultura, representado por um repertrio.
A seguir, empreenderemos uma breve descrio da sanfona de oito
baixos, primeiramente, considerando este instrumento em suas caractersticas gerais
de construo (aspectos invariveis). Em seguida, observaremos os aspectos
delineados no processo de apropriao, que propiciaram a adaptao deste
instrumento ao contexto cultural nordestino.
1.1.2. AEROFONES DE PALHETAS LIVRES
Para Monichon (1971, p.9), a alma do acordeom seu sistema sonoro: a
palheta livre metlica. De forma potica, o pesquisador francs compreende que para
reconstituir a histria das palhetas livres, necessrio evocar a imagem do vento
soprando os galhos de uma rvore (1985, p.15).
O acordeom pertence categoria que Hornbostel & Sachs classificaram
como aerofones, isto , instrumentos nos quais o som produzido pela vibrao do ar
em um determinado corpo. So instrumentos em que se converte energia
pneumtica, na forma de ar pressurizado e velocidade, em ondas sonoras (FUKS &
FABLE, 2002, p. 319). Todo instrumento aerofone possui algum mecanismo que
29 ciclicamente agita ou interrompe a corrente de ar. Este mecanismo pode ser
genericamente chamado de palheta (2002, p.320).
No caso especfico dos acordees, a palheta confeccionada com metal,
que fixada por uma de suas extremidades, deixando a outra livre para mover-se por
sua prpria elasticidade (MONICHON, 1971, p.11). A palheta fixada atravs de
um rebite a uma placa, confeccionada com ao, zinco ou alumnio, que chamada de
chapa ou placa de msica (Fig.5).
Instrumentos aerofones de palhetas livres remontam a exemplos distantes
no tempo. O Sheng, um instrumento de sopro de origem chinesa, consensualmente
apontado pelos historiadores, como ancestral dos instrumentos aerofones de palhetas
livres.
O Sheng foi construdo no formato de uma Fnix. Os chineses consideravam a Fnix, o imperador dos pssaros, e acreditavam que ele reinava sobre o quadrante sul do paraso. Simbolizava o sol e a sade. (...) a cano desta criatura mtica a msica deste instrumento (CHARUHAS, 1959, p.10).
Somente no final do sculo XVIII, o sistema de palhetas livres seria
amplamente difundido no ocidente (MONICHON, 1985, p. 24). A hiptese mais
aceita se refere ao violinista e inventor alemo Johann Wilde23, que teria adquirido
um Sheng em So Petersburgo, na Rssia. O instrumento despertaria o interesse no
fsico Kratzeinstein, que, ento, sugere ao construtor de rgos Kirschnik24, que
introduzisse as palhetas livres na confeco de seus instrumentos (CHARUHAS,
1959, p.13). Porm, apenas no perodo que compreende as duas ltimas dcadas do
sec. XVIII, surgem na Europa, as primeiras pesquisas e os primeiros resultados
concretos da utilizao do sistema de palhetas livres metlicas (MONICHON, 1985,
p. 24).
O acordeom25 foi patenteado por Cyrill Demian, construtor de rgos e
pianos de origem austraca, no dia 23 de Maio de 1829 (Fig. 1). De fato, havia algo
diferencial em sua inveno: a idia de emitir notas simultneas na forma de acordes,
da, inclusive, o nome do instrumento. A carta de patente trazia algumas informaes
sobre a inveno. 23 Conhecido pela inveno do nail violin. 24 Franz Kirschnik, construtor de rgos tcheco do sec. XVIII. 25 Grafia original: Accordeon.
30 Ele [o acordeom] consiste essencialmente em uma caixinha sobre a qual so fixadas palhetas metlicas, como tambm um fole, e isto, de modo a manej-lo com facilidade, e, conseqentemente, viajantes ou pessoas em visita pelo pas iro apreciar este instrumento. Propiciando interpretaes de marchas, de canes, de rias, depois de uma breve aprendizagem, mesmo por um leigo em msica(...) (DEMIAN, 1829).
Este modelo embrionrio de Demian era constitudo por cinco teclas que
emitiam acordes, o que teria propiciado o nome ao instrumento. A emisso de acordes
preparados se tornaria uma caracterstica marcante dos acordees, posteriormente
reservada aos acordes produzidos pela mo esquerda, conforme veremos adiante. No
entanto, h uma discordncia histrica, que faz com que alguns pesquisadores
apontem o construtor alemo Friedrich Bauschmann como verdadeiro criador da idia
que originou o acordeom26.
Fig. 1 - Acordeom de Demian, 1829 (Monichon, 1985, p. 37).
26 Diversos dicionrios atribuem a inveno do acordeom ao vienense Cyrillus[sic] Demian em 1829. Porm, os estudiosos diferem e a opinio consensual a de que o acordeom foi construdo originalmente em 1822 pelo berlinense Friedrich Bauschmann e foi chamado de Handaoline (CHARUHAS, 1959, p. 281). O dicionarista Don Randel (1986, 2006), um dos pesquisadores que reiteram a idia apresentada por Charuhas, atribuindo Bauschmann a primazia do invento.
31 1.1.3 - O MECANISMO DO ACORDEOM
Como se pode facilmente observar, um acordeom divide-se em duas
partes separadas por um fole. Estas duas partes distintas do instrumento so chamadas
de caixas harmnicas. A parte que corresponde mo direita do instrumentista
designada como caixa do teclado27, enquanto a parte correspondente mo
esquerda nomeada caixa dos baixos. So construdas de compensado ou madeira,
sendo que, em alguns modelos, so cobertas por celulide. Alm de constiturem o
corpo do instrumento, e abrigarem o mecanismo, possuem a funo de caixas de
ressonncia, de forma similar aos instrumentos de cordas. Deste modo, a qualidade da
madeira empregada na construo do instrumento exerce influncia sobre o timbre e a
sonoridade (ver Fig. 2).
O funcionamento dos acordees ocorre da seguinte maneira: o ar
impulsionado pela movimentao do fole. Simultaneamente a esta ao, o
pressionamento dos botes ou teclas, acionam as vlvulas de ar (Figs. 3 e 4). Estas,
por sua vez, impulsionam o ar, que faz com que vibrem as palhetas livres, que ficam
acomodadas nos castelos ou caixas harmnicas. Cada vlvula de ar recoberta por
uma sapatilha de feltro, para que se amortea o impacto sobre o tampo harmnico de
madeira. Abaixo de cada vlvula, h um orifcio, atravs do qual ocorre a passagem
de ar e a conseqente produo do som (ver Figs. 3, 4 e 5).
Fig. 2 - Sanfona de oito baixos Todeschini, fabricada em 1971. Detalhe da caixa dos baixos, direita, e da caixa harmnica, esquerda (coleo particular do autor).
27 Mesmo nos acordees diatnicos, compostos por botes, o termo teclado costuma ser empregado.
32
Fig. 3 - Vlvulas de ar acionadas atravs dos botes. A abertura da vlvula permite a passagem da corrente de ar, atravs do pressionamento do fole. Conseqentemente, a palheta livre colocada em vibrao, produzindo o som no instrumento (Foto: Leonardo Rugero).
Fig. 4 Detalhe do funcionamento da vlvula de ar (Foto: Leonardo Rugero);
Fig. 5 - Placas de msica com as palhetas livres dispostas nos castelos. Detalhe interno da caixa harmnica (mo direita) de um instrumento em teras de voz (Foto: Leonardo Rugero).
33 1.1.4 ACORDEES DIATNICOS E CROMTICOS
Os acordees so divididos basicamente em dois ramos: diatnicos e
cromticos. Acordees diatnicos so instrumentos bi-sonoros, que de acordo com o
sentido de abertura ou fechamento do fole, emitem notas diferentes para cada boto.
J os acordees cromticos so uni-sonoros: para cada boto ou tecla, emitem a
mesma nota, independentemente do sentido de movimentao do fole.
A sanfona de oito baixos pertence ao primeiro grupo (acordees
diatnicos), que alguns estudiosos classificam como sistema antigo (MOCHINON,
1971, p.64), devido ao fato que os primeiros modelos de acordees eram instrumentos
diatnicos, construdos sobre a escala diatnica maior (ver Fig.6).
Em 1834, Foulon confeccionou o primeiro sistema de afinao em escala
cromtica, isto , a escala composta de uma oitava dividida em doze semitons (Fig.
7). Como explica Monichon (1971), estes modelos cromticos, para serem
diferenciados dos precedentes, que eram diatnicos, foram classificados em
acordees cromticos (com semitons) em oposio a acordees diatnicos (sem
semitons) (1971, p. 57).
Entretanto, a partir do final do sc. XIX, com o advento do sistema uni-
sonoro, estas denominaes sero utilizadas para diferenciar o novo sistema de
funcionamento em oposio ao antigo (bi-sonoro). Desde ento, o termo diatnico
tem sido utilizado pela indstria de acordees para designar os instrumentos bi-
sonoros, enquanto o termo cromtico, para designar os instrumentos uni-sonoros.
(Fig. 8).
Fig. 6 - Escala de um acordeom Sistema Pichenot, 1832. (MOCHINON, 1971, p.55).
Fig. 7 - Sistema Foulon, 1834 (1971, p. 57).
34
Terminologia utilizada pelos fabricantes de acordees
Terminologia musicolgica
diatnico: acordeom bi-sonoro (sistema antigo)
diatnico: Escala formada por cinco tons e dois semitons;
cromtico: acordeom uni-sonoro (sistema moderno)
cromtico: Escala formada por doze semitons.
Fig. 8 Acordees diatnicos e cromticos diferena entre a terminologia musicolgica e a terminologia dos fabricantes. 1.1.5 .AS CARREIRAS DE BOTES
Denominam-se carreiras, fileiras, hilheiras, botoneiras ou mdulos, as
seqncias onde se estendem os botes dos acordees. As carreiras se estendem sobre
uma base de madeira coberta por uma placa de alumnio, chamada pelos praticantes
de cavalete (ver Fig.3). Existem variedades de modelos compostos por uma, duas ou
trs carreiras de botes28. Porm, diante da multiplicidade de tipos de acordees
diatnicos, examinaremos apenas aquele que foi o modelo de instrumento mais
difundido no contexto da msica nordestina. Este modelo constitudo por duas
carreiras de botes dispostas diagonalmente para a mo direita, totalizando vinte e um
botes onze para a carreira externa e dez para a carreira interna. Quanto mo
esquerda, formado por duas carreiras paralelas (ou diagonais) de quatro botes cada
( ver Fig. 2).
O termo baixaria largamente empregado em diferentes gneros musicais
brasileiros para a designao do uso das notas em regio grave, que exercem o papel
dos baixos. Como tal, a expresso usualmente utilizada entre sanfoneiros para
nomear as carreiras de botes da mo esquerda. A baixaria, tanto nos acordees
diatnicos como cromticos, composta por botes, alternando notas graves (baixos)
e acordes preparados. Inclusive, importante observar que o nome acordeom, se
deve a esta possibilidade a emisso de acordes preparados. Na regio Nordeste, os
modelos de acordeom mais difundidos so o diatnico de oito baixos e o cromtico de
cento e vinte baixos.
28 Mais raros so os modelos com quatro e at cinco fileiras.
35 1.1.5 AS VOZES
Nos acordees, normalmente, as palhetas livres (vozes) no so
individuais para cada boto ou tecla. Deste modo, as vozes so dobradas, triplicadas,
quadriplicadas ou, mais raramente, quintriplicadas. Isto significa que para um mesmo
boto ou tecla, h, no mnimo, duas palhetas soando simultaneamente.
Entre as sanfonas de oito baixos mais difundidas no Nordeste, os modelos
variam normalmente entre duas e trs palhetas (vozes) por nota. Os sanfoneiros tm
predileo pelos modelos de trs vozes, ou, em teras de voz29, por apresentarem uma
sonoridade mais encorpada. Tambm h uma razo prtica que justifica esta escolha,
associada durabilidade do instrumento, sobretudo para msicos que atuam
profissionalmente no contexto dos bailes, onde o uso excessivo e prolongado pode
sobrecarregar e conseqentemente danificar as palhetas de um instrumento em
segundas de voz.
Numa sanfona de oito baixos em segundas de voz, adicionada uma voz
aguda voz central (principal), enquanto num instrumento em teras de voz", as
vozes so normalmente dispostas em voz aguda (Piccolo), voz central (flauta) e voz
Grave (Fagote). A medida das palhetas tambm varia de acordo com o registro,
havendo, para isso, diferentes tamanhos padronizados pelos fabricantes.
H uma variedade de padres de afinao para as vozes, que se estendem
desde a afinao unssona at afinaes com batimentos mais rpidos ou lentos o
que ser determinado pela maior ou menor distncia de ajuste dos cents 30 entre as
diferentes vozes. Alm de proporcionar o vibrato, as afinaes com batimentos
aumentam a salincia sonora31 do instrumento. No estilo nordestino, a afinao
adotada unssona ou seca32, isto , sem apresentar diferenas microtonais entre as
vozes e conseqentemente, sem produzir o efeito de batimento (vibrato).
Um conhecido afinador de acordees de Pernambuco, o sanfoneiro
Arlindo dos oito baixos, considera que o acordeom, ao sair da fbrica, precisa ser 29 Entre os sanfoneiros nordestinos, habitual a designao das vozes atravs desta terminologia. Deste modo, se diz que um instrumento em duas vozes est em segundas de voz. Do mesmo modo, um instrumento com trs vozes, em teras de voz, e assim por diante. 30 Uma pequena unidade logartmica na acurada descrio dos intervalos musicais, baseada em propores de freqncia. 100 cents igual um semitom temperado (GREATED, 2011). 31 Expresso sugerida por Leonardo Fuks para designar aquilo que os praticantes identificam como presena sonora, decorrente do maior numero de vozes para cada nota. 32 Traduo literal da expresso utilizada pelos fabricantes de acordees. No encontrei nenhuma terminologia especifica utilizada pelos instrumentistas ou afinadores durante a pesquisa de campo.
36 harmonizado. De acordo com Arlindo, Luiz Gonzaga, sempre que adquiria um
novo instrumento, deixava-o em sua oficina para que fosse afinado. Compreendo que
aquilo que Arlindo designa como afinado, consiste na adaptao do instrumento ao
padro convencionado culturalmente na prtica musical nordestina, onde se ajustam
precisamente as vozes, de modo a obter o som seco, ou seja, destitudo de vibratos.
No entanto, o efeito do vibrato talvez tenha sido evitado pelos msicos
nordestinos, devido ausncia de possibilidades de registrao nos instrumentos
mais acessveis ao consumidor com baixo poder econmico, como examinaremos
seguir.
1.1.7. OS REGISTROS
Registros so espcies de chaves, que acionadas por intermdio de uma
tecla externa, permitem que as palhetas possam ser utilizadas sozinhas ou combinadas
entre si (CHARUHAS, 1959, p.34). Este recurso possibilita a variao timbrstica do
instrumento. Porm, em sua maioria, os modelos de acordees diatnicos mais
difundidos entre os sanfoneiros da regio Nordeste, no dispem de registros. Sendo
assim, a registrao um recurso que no chega a se tornar relevante no decorrer da
prtica deste instrumento nesta regio, embora, seja utilizado em casos eventuais (Fig.
9).
Fig. 9 O sanfoneiro pernambucano Truvinca com uma sanfona de oito baixos e cinco registros (Foto: Leonardo Rugero pesquisa de campo).
37 Portanto, os modelos mais difundidos de sanfonas de oito baixos na regio
Nordeste, so instrumentos das marcas Todeschini e Hering/Hhner33, com vinte e um
botes para a mo direita e oito botes (baixos e acordes) para a mo esquerda. So
instrumentos em segundas ou teras de voz, que no apresentam registros (Anexo 4).
1.2 O ACORDEOM DIATNICO NO BRASIL
1.2.1 OS IMIGRANTES E A INDSTRIA NACIONAL DE ACORDEES
Provavelmente, a sanfona de oito baixos foi trazida regio Sul do Brasil
por intermdio de colonos alemes e italianos, durante o intenso processo migratrio
do sc. XIX. Segundo Barbosa Lessa e Paixo Cortes (1975, p.59), a gaita-ponto
(termo empregado pelos gachos para designar a sanfona de botes), comea a ser
amplamente difundida pelos imigrantes italianos por volta de 1875.34 Durante os
primeiros anos da migrao, a Itlia j constitua um expressivo mercado consumidor
e produtor de acordees, e o acordeom estava perfeitamente integrado s prticas
musicais deste pas (ver Fig. 10).
Porm, se inicialmente estes instrumentos constituam em exemplares
importados da Europa, na virada do Sc.XX se consolida a fabricao de acordees na
regio sul do Brasil. De acordo com o pesquisador Sergio Rigo (2006), foi o
imigrante italiano Tlio Veronense, aos 25 anos, quem construiu a primeira gaita-
ponto confeccionada artesanalmente no Brasil, no municpio de Veranpolis, Rio
Grande do Sul, no ano de 1900.. Neste mesmo ano, Veronese investe na produo de
acordees com tcnicas industriais, sendo considerado um provvel pioneiro da
indstria de instrumentos de fole da America Latina.
Na msica gacha, a gaita-ponto se tornou o instrumento predominante
nos bailes, constituindo um repertrio instrumental formado por danas de origem
europia, que em contato com influncias autctones, adquiririam aquilo que Mario
de Andrade denominou carter nacional (1972, p. 25). Entre estas danas esto a
polca, a scottish (que se transformaria no Chote ou Chtis35), a Habanera (Vaneira), 33 A companhia alem Hhner, absorveu a fbrica catarinense Hering, no final da dcada de 1960. Deste modo, encontram-se muitos exemplares da marca Hhner que foram confeccionados no Brasil. 34 Na terminologia empregada pelos gachos, h dois tipos de acordees: a gaita ponto (acordeom de botes) e a gaita piano ou gaita pianada (acordeom de teclas). 35 Entre os gachos, existe a predileo da grafia da forma aportuguesada de scottisch como chote, enquanto no Nordeste, prefere-se xote.
38 Mazurca e tantas outras, que continuam sendo praticadas pelos gaiteiros36
contemporneos.
Existem muitos relatos do inicio do Sec. XX a respeito de instrumentistas
e artesos radicados no Rio Grande do Sul, o que comprova o fluxo intenso deste
instrumento promovido nesta regio pelos italianos e seus descendentes. Lucio de
Souza provavelmente o primeiro gaiteiro gacho a ser registrado em disco, em
1913, pela Odeon. No ano seguinte, atravs da gravadora A Eltrica de Saverio
Leonetti, Moiss Mondadori (1895 1976), com o nome artstico de Maestro
Cavaleiro Mois se consagraria com a gravao do tema folclrico gacho O Boi
Barroso. Entre os artesos, so lembrados os nomes do casal Cesiari Apiani e Maria
Savoia, de Luigi Somensi e Sr. Diacetti, tendo sido este ltimo, o mestre de Luiz
Matheus Todeschini (1906), responsvel pela construo do primeiro acordeom de
teclados (gaita piano) brasileiro, em 192537. Todeschini, ao lado de Veronese, e do
arteso catarinense Alfred Hering, formaria a trade de construtores que
impulsionaram a industrializao de acordees no Brasil, que atinge o seu apogeu
entre as dcadas de 1940 a 1960 (Ver Fig. 11). Neste perodo, dezenas de fabricantes
se concentram nos estados de Rio Grande do Sul, Santa Catarina e So Paulo, e a
prtica do acordeom (dos oito aos cento e vinte baixos), se torna muito difundida em
todo o pas, reforada pela indstria do disco atravs do xito comercial de
acordeonistas como Antengenes Silva, Pedro Raimundo e Luiz Gonzaga.
Na dcada de 1960, as vendas de acordees decrescem, devido crise
financeira que afeta o Brasil em conjuno com as novas tendncias da msica
popular, na qual a prtica e consumo do acordeom gradualmente perdem terreno para
novos instrumentos como a guitarra eltrica e o rgo eletrnico. O fim de um ciclo
de ouro que marcado pelo fechamento da Fbrica de Acordees Veronese em 1967,
o incndio no ptio industrial da Acordees Todeschini, em 1971 e quando a
companhia alem Hohner que havia absorvido a Hering em 1966, abandona o
mercado brasileiro em 1979. No podemos ignorar que a quebra da industria
brasileira de acordees foi mais um dos fatores que contriburam para o declnio da
prtica deste instrumento no Brasil. 36 Equivalente sanfoneiro. Termo preferencialmente utilizado pelos gachos. 37 Embora Philippe Joseph Bouton tenha adaptado o teclado de piano mo direita do acordeo em 1952, os modelos uni-sonoros s foram desenvolvidos ao final do sec. XIX (MOCHINO