l'epuise, uma política, deleuze beckett

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    Professor do Departamentode Cincias da Sade daUniversidade Federal de SoPaulo. Integra o grupo dearticulao do Laboratrio deSensibilidades da UNIFESP.Contato: alexandrehenz2000@

    yahoo.com.br

    1 Esta pea radiofnica foitraduzida para o portuguscom o ttulo Letra e Msica porIvan Lessa, conforme o udiodo Servio Brasileiro da BBC.Letra e Msica foi gravada eencenada em portugus noano de 1988, por ocasio docinquentenrio da BBC-Brasil. Direo de EduardoSan Martin. Msica incidental:Mrcio Mattos. Vozes: JooAlbano, Angela de Castro eRogrio Correia. Tcnicos deestdio: Hugh Saxby e PhilCritchlow. Durao: 2525.Words and Musicteve suaestreia mundial na BBC RdioTrs de Londres, em 1962,com msica de John Beckett,

    primo do autor. Escrita emingls e publicada em 1961, foitraduzida para o francs comoParoles et Musiquepelo prprioBeckett.

    Lpuis

    Uma poltica em

    Beckett e DeleuzeAlexandre Henz

    Estamos cansados do homem.Nietzsche

    Estava-se cansado de algo; esgotado, de nada.Deleuze

    O personagem Hamm subitamente assaltado por uma dvida:No estamos a caminho de... de... significar alguma coisa?, per-gunta com emoo. E Clov tranquiliza-o imediatamente: Significar?Ns, significar! (breve sorriso.) Ah! Essa boa!. Esse fragmento,destacado do livro Fim de Partida(BECKETT, 2002, p.81) por AlainRobbe-Grillet (1965, p.133), est implicado com uma poltica queemerge no encontro Samuel Beckett e Gilles Deleuze, poltica quenada quer significar ou comunicar. Um fio delgado, quase imper-ceptvel na trama da sensibilidade contempornea, e que ganha foracom a noo de esgotamento. O esgotamento ao e inveno,

    para nada. Ele pode constituir rgos do tato para muitas espcies deencontro. Diferente do cansao a capacidade de dizer sim vidaem suas variaes. No apenas cansao, no estou apenas cansa-do, apesar da subida, referem Beckett e Deleuze (BECKETT, 2006,p.86; DELEUZE, 1992, p.57). menos isto que tem sido chamadode esgotamento do sujeito moderno, do eu, e mais que a mudanade um conceito, uma poltica com a vida que implica o intensivo,, talvez, uma nova formao histrica.

    Para acompanhar essa experimentao esttica e poltica, recor-remos ao ltimo longo texto de Gilles Deleuze (1992), que se intitula

    Lpuis[O esgotado], cujo tema o esgotamento do possvel. Esseensaio foi anexado como posfcio publicao de quatro roteiros depeas para televiso de Samuel Beckett. Nele, Deleuze analisa trslnguas em Beckett, e quatro maneiras de esgotar o possvel que a elascorrespondem. Essas lnguas evidenciam os movimentos de esgota-mento do possvel presentes nas obras do escritor.

    A lngua I especialmente a dos romances, e se configura emobras tais como Molloy, Murphy e Esperando Godot. Ela diz respeito primeira maneira de esgotar o possvel, procedendo por formaode sries exaustivas de coisas (DELEUZE, 1992, p.78). Est ligada

    a combinatrias, sries e palavras. A lngua I a lngua atmica,disjuntiva, recortada, retalhada, em que a enumerao substitui asproposies, e as relaes combinatrias substituem as relaes sint-ticas: uma lngua de nomes (DELEUZE, 1992, p. 66).

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    2 Sobre a arte do invisvel e dainobjetividade que alia Beckett

    a Godard na problematizaodo ocularcentrismo e danarratividade produzindo umaliberao do olho marcado peloeu, confiraYee-Woo, 1994.

    Alexandre

    Henz

    A primeira maneira de esgotar o possvel com traos de razoe imaginao est presente no apenas nos primeiros trabalhos, mastambm nas obras posteriores de Samuel Beckett. As combinatriase sries exaustivas deflagram um processo de intensificao crescen-te, que no se confunde com um comeo de progresso at as obras

    finais, mas que se apresenta como uma estratgia e um experimento,assim como o so, ao seu modo, as outras investidas que aparecem nosromances Como , O Inominvele nas peas para televiso.

    A segunda maneira de esgotar o possvel que Deleuze percorrena obra de Beckett diz respeito lngua II. Ela refere-se a estancar osfluxos de voz e a engendrar uma lngua queno mais a dos nomes,mas a das vozes, que no procede mais por tomos combinveis, maspor fluxos misturveis. As vozes so as ondas ou os fluxos que con-duzem e distribuem os corpsculos lingusticos. Quando se esgota opossvel com palavras, cortam-se e retalham-se tomos e, quando as

    prprias palavras so esgotadas, estacam-se os fluxos. este o novoproblema, acabar com as palavras (DELEUZE, 1992, p. 66).Questo do silncio, um silncio de cansao das histrias e in-

    diferente aos significados. Na lngua II, Beckett apresenta algumasfiguras do esgotamento que implicam: inveno de histrias, inven-trio de lembranas, outros e vozes. Mas nada de representao e psi-cologia. A pea radiofnica Palavras e Msica1 problematiza as lnguas,pois ora se inscreve na lngua II, com seu bl-bl-bl nauseante e seusfluxos de voz e memria, ora produz puras imagens sonoras inscritasna lngua III, de que tratarei a seguir. Nessa pea radiofnica, a ten-

    so das vozes levada at o desaparecimento da personagem Croak,que tenta comandar as aes. Ele chamado de mestre pela perso-nagem Palavras. No final da pea, os ltimos traos de pessoalidadee lembranas se evadem, restando a dana das personagens Palavras(Joe) e Msica (Bob). Na traduo para o portugus, Words and Musicrecebeu o nome de Letra e Msica, provavelmente uma tentativa dedar algum significado poesia musical, quase um liedque se ouveno momento em que PalavraseMsica se movem juntas tentandoatender aos insistentes gritos de Croak.

    Com o estancamento dos fluxos de voz, na segunda maneira de

    esgotar o possvel, surge a exploso de um fluxo-floema que nutreoutros desdobramentos: a desero do eu j alinhavada e deflagradapelas sries e combinatrias. Diferentemente de Murphy, Molloy eMalone Morre, obras nas quais encontramos uma expresso tremidaem individuao, o que agora se impe uma agonstica ainda maisintensa: mltiplas vozes e foras em luta. Em O inominvel, aspersonaeso mscaras; o si,uma lmina, pluralidade de foras que se juntam,se aglomeram, criam aglutinaes de foras salpicadas por histrias elembranas.

    A terceira e quarta maneiras de esgotar o possvel, foco principal

    de Deleuze, emergem da lngua III, presente nos ltimos trabalhos deBeckett e enunciada desta forma: extenuar as potencialidades doespao e dissipar a potncia da imagem. Essa lngua articula a anlisede quatro telepeas de Beckett, encetada na segunda parte de Lpuis.

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    3As pinceladas do quadroSans Titre, 1936-41, de BramVan Velde, doado por Beckettao Museu Nacional de ArteModerna de Paris, podem

    ser vistas no catlogo BramVan Velde, Sans Titre, 1936-41, organizado por ElizabethAmzallag-Aug e Sophie Curtil(1993).

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    Nela, o esgotado o extenuado e o dissipado. So figuras do espaoextenuado em pequenos escritos, tais como Para Acabar Ainda e NoCilindro, e fragmentos de imagens em dissipao no romance Como e nas peas Dias Felizes, Not Ie Catstrofe. Nos desdobramentos destaltima Catstrofe, encontramos a fabricao de uma imagem.

    A produo de uma imagem que nada expressa ou representa um dos temas centrais do ensaio de Samuel Beckett (1990),O Mundoe as Calas, publicado em 1945 e escrito por ocasio das exposiesparisienses dos irmos Van Velde. Beckett elege a obra destes pin-tores holandeses, Bram e Geer van Velde, como intercessora de umpensamento mais absorvido, segundo ele, pelo que saa do pincel(BECKETT, 1990, p. 50) do que pelo tema. O escritor via em amboso empenho em pintar a invisibilidade inata das coisas exteriores atque esta mesma invisibilidade se converta em coisa, no simples cons-cincia de limite, uma coisa que se pode ver e fazer ver, e faz-lo, no

    na cabea [] mas na tela, e a um trabalho de uma complexidadediablica e que requer um ofcio de uma flexibilidade e ligeireza ex-tremas, um ofcio que insinue mais que afirme, que no seja positivoseno com a evidncia fugaz e acessria do grande positivo, do nicopositivo, do tempo que carrega(1990, p. 48-49).

    No trabalho dos Van Velde, Beckett2 valoriza a arte da inobjeti-vidade e do invisvel. Talvez pudssemos encontrar uma vizinhanaentre esta inobjetividade e aquela que Deleuze percebeu na pinturade Francis Bacon. Movimentos suficientemente agudos para fazersemelhante, mas por meios no objetivos,dessemelhantes, afirmando

    os acasos, os acidentes, o que saa do pincel. Isso, segundo Beckett(1990, p. 50), faz de Bram, e em seguida de Geer van Velde, peixes:

    Ele sabe a cada vez como esto as coisas, maneira deum peixe em alto mar que se detm na profundidade fa-vorvel, mas se guarda s razes disso. Isto parecetambm verdade para G. van Velde, com as restries queimpem seu ataque to diferente. Eles me fazem pensarnesse pintor de Cervantes que, pergunta Que pintais?,respondia: O que saia do meu pincel.

    Interessa a Beckett essa pintura que nada em uma complexidadediablica. Em seu ensaio, claramente acusa certas obras de tentaremdeter o tempo. Essa tentativa as caracterizaria como representativas,nas palavras de Beckett (1990, p. 40), seria a velha histria da obje-tividade e das coisas vistas, referindo-se a um pintor realista suandodiante de sua cascata e xingando as nuvens. Por outro lado, h, napintura, uma tradio aberta sensao, desde Czanne, que rom-peu com seus antecedentes, marcados pela manuteno de relaesfigurativas e narrativas. Em Czanne, Van Gogh, Bacon, Bram e Geervan Velde, temos uma srie de artistas interessados neste percurso da

    inveno e dissipao da imagem.Ao modo do pintor de Cervantes, o que sai do pincel dos VanVelde3 a prpria sensao tornada visvel. Ao que refere Beckett(1990, p. 39), no se trata, de nenhum modo, de uma tomada de

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    4 Esta histria retomada commais detalhes na fala de um dospersonagensde Fim de Partida(2002, p. 66-67).

    5 O primeiro pintor analisado Tal Coat e o segundo, antes deBram Van Velde, Masson.

    Alexandre

    Henz

    conscincia seno de uma tomada de viso, de uma tomada de vis-ta simplesmente. Na pintura desses holandeses, opera uma ateno,uma prudncia astuciosa e uma flexibilidade que no cerebral. Porisso, Beckett afirma que o pintor no tem cabea. Esses pintoresno sabem previamente como ser feito, so peixes que talvez con-

    cordassem com o primeiro manifesto da revistaAcphale, segundo oqualo homemescapar de sua cabea como o condenado da priso(BATAILLE, 2005, p. 23).

    A pintura de Francis Bacon, analisada por Deleuze, se deslocados clichs, produzindo combinatrias por meio de intervenes emvariao, valoriza o acaso e os pequenos desastres. Um trabalho deesgotamento dos meios picturais, trabalho meticuloso, literalmenteuma urdidura feita mo, uma costura criteriosa e complexa quelembra o curioso dilogo que aparece na epgrafe de O Mundo e asCalas(1990, p. 25):

    O CLIENTE: Deus fez o mundo em seis dias, e voc no capaz de me fazer uma cala em seis meses.

    O ALFAIATE: Mas senhor, olhe o mundo e olhe a suacala.4

    Essa persistncia ecoa na ateno laboriosa dos Van Velde ana-lisada por Beckett e na prudncia astuciosa vista por Deleuze emFrancis Bacon. So movimentos produtores de imagens esgotadas,pinturas do inexpressivo e do que impede pintar. So movimentosacrobticos de uma intensidade pura.

    Beckett levado a aproximar as imagens dos Van Velde ao seuentendimento do que literatura por estas sensaes: que dizer des-ses planos que deslizam, desses contornos que vibram, desses corposcomo que talhados na bruma, desses equilbrios que um nada deveromper, que se quebram e se reconstroem medida que se olha?Como falar dessas cores que respiram, que ofegam? Desse xtase pu-lulante? Desse mundo sem peso, sem fora, sem sombra? Aqui tudose move, nada, foge, regressa, se desfaz, se refaz. Tudo cessa, sem cessar.Dir-se-ia a insurreio das molculas, o interior de uma pedra nomilsimo de segundo antes que ela se desagregue. isso, a literatura

    (BECKETT, 1990, p.44).No trabalho de Beckett, assim como em Bacon e nos Van Velde,

    se produzem imagens que dissolvem representaes. No mais a artecansada do isso versus aquilo e da chamada condio humana, comsuas exploraes em trocadilhos, analogias, fatigada de fingir-se ca-paz, de ser capaz, de fazer um pouco melhor a mesma velha coisa, detrilhar um pouco alm a mesma terrvel estrada (BECKETT, 1949,apud ANDRADE, 2001, p. 174-175).

    Em uma transcrio de conversa denominada Trs Dilogoscom Georges Duthuit5, Beckett refere-se especialmente ao trabalho de

    Bram van Velde, e indica no trabalho desse pintor um nada a expres-sar, nenhum desejo de expressar, aliados obrigao de expressar.Beckett tematiza a desero da vocao expressiva desse pintor comoum desinvestimento da ocasio adequada, do particular, da prefern-

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    6 O rebanho referido porNietzsche, sem o fardo damemria e da interioridadeno sabe o que ontem e o

    que hoje; ele saltita de l parac, come, descansa, digere, saltitade novo; e assim de manh ata noite, dia aps dia; ligado demaneira fugaz com seu prazere desprazer prpria estacado instante, e, por isto, nemmelanclico nem enfadado.Com relao ao cansao doseruditos, das galinhas fatigadasque pem ovos cada vez maisfrequentemente, ovos que foramse tornando menores ainda queos livros tenham se tornado

    cada vez mais grossos, verNietzsche (2003, p. 7 e 64).

    7 Malone, referindo-se a animais,fardos e homens, sugere queos animais esto no pasto, o solaquece as pedras e as faz faiscar.Sim, deixo minha felicidadee retorno raa dos homenstambm, que vo e vm,muitas vezes com fardos. Euos julguei mal talvez, mas nocreio nisso. Alm do mais, eunem os julguei. Quero apenascomear a compreender como

    tais seres so possveis. No,no se trata de compreender.Do qu, ento? No sei. Aquivou eu de qualquer forma [...](BECKETT, 1986, p. 32).

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    cia e da prpria vontade, o que ele denominou (e isso inclui a eleprprio) uma fidelidade extrema ao fracasso. Fracasso como ningumantes ousou fracassar, fecundo insucesso e inadequao ao cansativoprojeto de estabelecer novas relaes entre aquilo que representa ealgo que representado. Malogro, invalidez em expressar o autntico,

    o real, o mais verdadeiro e suas filiais.A lngua III e suas imagens nascem nos romances, nas novelas,passam pelo teatro, mas na televiso que atingem sua operatorie-dade prpria e distinta das duas primeiras. A maior parte das anlisesde Lpuistem como foco a lngua III, voltando-se especialmente speas para televiso Quad, Trio do Fantasma, Seno Nuvens e Noite eSonho.

    A terceira e quarta maneiras de esgotar o possvel na lngua IIIpossibilitam uma poltica que, ao extenuar as potencialidades do es-pao e dissipar a potncia da imagem, rearranja e intensifica a inuma-

    nidade dos personagens beckettianos. Aqui, as dramatculas, poemas eas peas para televiso persistncia da retina na fonte luminosa soa nova experimentao com o imperceptvel, nada de obra, nada aexpressar.

    A experimentao com essas trs lnguas foi o exerccio de De-leuze para avizinhar-se dos vrios experimentos beckettianos quetrabalham com excessos, vozes, repeties, silncios, contiguidades,proliferaes e combinatrias em direo ao que o prprio Beckettdenominou work in regress. Paradoxalmente, em direo ao menos.Menos melhor. No. Nada melhor. Melhor pior. [] Com minimi-

    zantes palavras diga mnimo melhor pior (BECKETT, 1996, p. 29).Uma intensificao cravada no instante que privilegia as proli-feraes. Nada de aparies, espetacularizaes, projetos e prefern-cias. isto o que interessa a uma poltica do esgotamento em Beckette Deleuze: uma intensificao para nada, uma vibrao intensiva.Algo da seriedade da criana dedicada aos brinquedos (NIETZS-CHE, 2004, p. 71; cap. 4, 94), a noo de maturidadereferida porNietzsche: hiatos, peripcias e deiscncias.

    No esgotamento, a confuso de identidades apenas aparen-te, devido pouca aptido de as ter (BECKETT, 1989, p. 47), o

    que implica, entre outras coisas, uma certa inocncia e inumanidade.A possibilidade de aumentar a superfcie de contato, de expandir agama de experimentaes e transformar s vezes por recombina-es as dicotomias que tentam monopolizar as interpretaes demundo, procurando manter suas paisagens congeladas numa tnicainvarivel.

    Um sim do consumado e esgotado que est para alm do niilis-mo passivo e seu grande cansao. meia-noite, ablico, com o olhar eo esquecimento, est cravado no instante, na animalidade do rebanhode que Nietzsche fala na Segunda Considerao Intempestiva6, e espreita:

    Malone7

    de Beckett sabe que no se trata de compreender e julgar. Estativamente na superfcie, estremecendo no aberto. O romance MaloneMorreno a morte de Malone. Algo morre e algo nasce, talvez na ln-gua II analisada por Deleuze e em O Inominvel, que a obra seguinte.

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    8 Conforme referido pela voz,no meio, sou o tmpano, naporosidade no tenho espessura,uma lmina que se sente vibrarno entre(BECKETT, 1989,p. 104). Referindo-se a umasobriedade que no est na

    noo de comeo nem na defim e questo do entreem suafilosofia,Deleuze (1998, p. 39-40) indica que os personagensde Beckett esto sempre nomeio.

    9Alguns personagens deBeckett, especialmente osclowns, so bons quandose trata de vises, audiese apreenses literais nohavendo nada a interpretare significar. Sobre a questoda literalidade em Deleuze,

    das disjunes inclusivas e dasuposio de que l-lo sejaouvir o apelo do literal, mesmoque por intermitncias, verZOURABICHVILI, 2004, p.9-10.

    10Ver alguns dos desenhosde Beckett para Film (1964)reproduzidos e analisados

    juntamente com um esquemagrfico proposto por FannyDeleuze, esse esquemaapresenta o conjunto de todos

    os movimentos do filme(DELEUZE, 1985, p. 90-91).

    11Ver especialmente o trecho:[...]de repente como tudoque parece estar suspenso pelaspontas dos dedos para suaespcie a daqueles que riemprimeiro imagem alpina ouespeleolgica momento atroz aqui que as palavras possuemsua utilidade a lama muda[...] aqui ento esta provaoantes de ir perna direita braodireito empurrar puxar dez

    metros quinze metros emdireo a Pim sem o saber antesdisso uma lata tine eu caiodurar um momento com isto(BECKETT, 2003, p. 32).

    Alexandre

    Henz

    Diz Malone: Tudo est pronto. Menos eu. Estou nascendo na morte,se que posso usar essa expresso. Essa a minha imagem. Merda degestao. Os ps j saram de dentro da grande boceta da existncia.Posio favorvel, espero. Minha cabea morrer por ltimo. Recolhaas mos. No consigo. A dilacerada me dilacera. Minha histria termi-

    nada, ainda estarei vivo. Falta que promete. o fim de mim. No maisdirei eu (BECKETT, 1986, p. 143).Ocaso do eu com falhas, sem polidez, com cheiro e agonia.

    Nas lnguas vistas por Deleuze em Beckett, especialmente a partir dasegunda, temos uma imagem: a experimentao do si-membrana, umtmpano8 mencionado em O Inominvel, sempre no meio, no jogo deiniciais M (em p), W (M invertido), o nome de tantas personagensbeckettianas (Murphy, Molloy, Malone, e, mais tarde, em Dias Felizes,Winnie e Willie).

    Acompanhamos a produo de pequenas imagens sem espes-

    sura (lngua III) e somos levados por palavras que brincam. Crianasnos conduzem pela mo, sem sobrecarga de clculos e significaes.Palavras querem dizer somente o que esto dizendo, ao p da letra,prontas para um clown, prescindindo de qualquer interpretao. Soindicaes diretas, superficiais, comefeitos cmicos sem clmax, quepositivam ao mximo as noes de superficialidade e imanncia.

    Cara na grama em Murphy e Malone, colada terra com umaaposta imanente neste mundo e nesta vida. Niilismo ativo em que osentido emerge nos encontros, no mais de uma instncia superior etranscendente que doava sentido o mundo das ideias, Deus nem

    do humanismo e da racionalidade cientfica.Na lngua III, as palavras so precisas, rasteiras, literais.9 O per-sonagem central de Como e as prprias palavras se arrastam pelocho. Escreve Beckett: dez metros quinze metros semi-lado esquer-do perna direita brao direito empurrar puxar estatelado de bruosimprecaes nenhum som semi-lado direito perna esquerda braoesquerdo empurrar puxar estatelado de bruos imprecaes nenhumsom nem um til precisa ser mudado nesta descrio (BECKETT,2003, p. 49).Nada precisa ser alterado, as palavras so didasclias, tal equal est dito a imagem se faz, uma imagem no para os olhos feita

    de palavras (BECKETT, 2003, p.55).

    Palavras para produzir imagensao modo das rubricas no teatro, descries minuciosas, que pedemrealizaes precisas, nem mais, nem menos. Assim tambm o exigemos desenhos e pontilhados de ngulos de 45 graus de Film, a nicaincurso cinematogrfica de Beckett, cujas notas e roteiro apresen-tam croquis, marcaes e circunferncias. Algumas dessas indicaesgrficas foram analisadas, acrescidas e reproduzidas parcialmente porDeleuze em sua obra Cinema - A Imagem-Movimento.10

    No ensaio Sobre o Teatro de Marionetes, de Kleist (1992), no ro-mance Como 11, e nas ltimas peas de Beckett, acompanhamos ima-

    gens fixadas, suspensas, liberadas de contedo e de enredo, exigindoque a cena esteja expungida tanto dos clichs da mania de clareza conforme a problematizao de Beckett nas ltimas frases de suamicropea Catstrofe, quanto da atuao psicolgica, criticada por

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    12 A respeito do homem emais precisamente da forma-

    homem, no como um dadonatural, mas uma moldagemcivilizatria, apequenamento,domesticao e por conseguintecriao da prpria noo deinterioridade; assim como aviolncia imemorial postano estabelecimento destas

    formataes ver as descriesinteressantes e terrveis emNietzsche(1998, especialmentecap. I, 13-14, II, 3, III, 14),bem como Foucault (1987) eos assinalamentos no texto de

    Deleuze Sobre a morte dohomem e o super-homem(DELEUZE, 1988, p. 132-142).

    13Alm de um story boardcoma descrio visual de cada planoem pequenos desenhos, asnotas de Beckett apresentamdescries minuciosas, medidasem jardas, plantas, pontos esetas (BECKETT, 2001, p.75-81). Sobre a questo doimpessoal e do personagem deFilm (interpretado por BusterKeaton), que ao final j no

    tem um sipara distinguir-se ouconfundir-se com os demais,ver o artigo O maior filmeirlands (Film de Beckett)(DELEUZE, 1997, p. 33-35).

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    Kleist. Para fazer uma imagem em cena, a ateno no dirigida scoordenadas do eupsicolgico, mas a um certo estado de inocncia egraa, estado de quem no tem conscincia nenhuma, como o casodas marionetes ou de quem tem conscincia infinita, Deus (KLEIST,1992, p. 228).

    Em Beckett, a produo de uma imagem exige o abandono detoda tradio reflexiva e mimtica. Seus personagens esgotados e asmarionetes referidas por Kleist so leves e pouco submetidos lei dagravidade, desinvestidos tanto da plmbea forma-homem12 quantodo grande cansao do niilismo passivo.

    No pequeno escrito de Kleist, um dos personagens fala depre-ciativamente das afetaes na dana.As afetaes, nesse caso, seriamos momentos em que a alma, tomada pela interioridade subjetiva, seencontra em outro ponto qualquer que no o centro de gravidade domovimento (KLEIST, 1992, p. 224). Cravados no instante, os esgota-

    dos de Beckett e as marionetes sob o controle do titereiro no estocom a almaem outro lugar, e Kleist poder dizer que, realmente, oesprito no se engana onde ele no existe (1992, p. 225).

    A preocupao quase pictural, com cortes e edies para fazeruma imagem que consiga se desprender do desenvolvimento de umahistria, do esprito humano, da interioridade, aparece em vriostrabalhos de Beckett, entre eles Film13 e as telepeas que, alm deapresentarem uma descrio detalhada das aes, incluem desenhos,croquis, plantas e esboos que antecipam visualmente uma imagemainda no realizada.14

    Essas questes nos auxiliam na tematizao do estatuto da ima-gem em Beckett, j alinhavando e esboando uma poltica. Umapoltica que implica o niilismo, um niilismo-ativo, do esgotamento.Aguda desafeio e escrupuloso desinteresse o que prope umapoltica do esgotamento. importante assinalar que no esgotamentono h passividade, h que se estar ativo para ir ao cinema, esperar,pular na gua, mas preciso suspender a utilidade prtica da existn-cia. O esgotamento no nem mesmo um estado de prontido queguardaria ainda um certo campo pragmtico, alguma utilidade. A ati-vao no esgotamento uma vibrao intensiva, no para alguma

    coisa. No se trata de dimenso simblica15,da morte ou solido dosujeito moderno.

    No menos que Beckett, Bacon faz parte desses autoresque podem falar em nome de uma vida muito intensa, poruma vida mais intensa. No um pintor que acredita namorte. Todo um miserabilismo figurativo, mas a serviode uma figura da vida mais e mais forte. Devemos tanto aBacon quanto a Beckett ou Kafka a homenagem seguinte:eles elevaram figuras indomveis, indomveis por sua in-

    sistncia, por sua presena, no momento mesmo em queeles representavam o horrvel, a mutilao, a prtese, aqueda. Eles deram vida um novo poder de r ir extrema-mente direto (DELEUZE, 1981, p. 42).

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    14Ver a anlise do teatro deRobert Wilson com nfase

    nos croquis e desenhos enotadamente os ltimostrabalhos de Beckett marcadospelas indicaes minuciosas emsuas rubricas (RAMOS, 1999,p.87-88).

    15Nada de smbolos quandono se tem inteno disso(BECKETT, 2005, p. 297).

    ***

    16O fato moderno quej no acreditamos neste

    mundo. Nem mesmo nosacontecimentos que nosacontecem, o amor, a morte,como se nos dissessem respeitoapenas pela metade [...] omundo nos parece um filmeruim(DELEUZE, 1990, p.207).

    17 Questo analisada porZourabichvili (2000, p. 333-355). Sobre a problematizaode um nada de vontadequepode reatar uma potncia deencontro, ver Pelbart (2000, p.

    83-89). Francis Bacon refere-sepositivamente vontade deperder a vontade quandoo trabalho pode comear(DELEUZE, 1981, p. 60).

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    Queda, fora, desvinculao e presena indomvel que no seconfunde com uma postura indiferenciada jogo da acelerada obso-lescncia de tudo e do descarte de todos ,considerando que apenaso esgotado suficientemente desinteressado, suficientemente escru-puloso (DELEUZE, 1992, p. 61)..Agudo desinteresse que no desa-

    ba no indiferenciado passivo ou na dialtica, uma contiguidade ativapara nada, que no nos exime do questionamento de si, de estarmosmuito bem informados e implicados com uma vida que, para o maisnocivo e o mais fecundo, opera contemporaneamente para alm dareferncia narcsica: no h mo girando o tubo para que o olho aliveja o surgimento de novas figuras. No h brinquedo manipulvel(ORLANDI, 1980, p.263).

    Sade e desafeio valorizadas por Nietzsche (1988, p. 29), emque se acham mescladas demasiada negligncia, demasiada ligeireza,desateno e impacincia, mesmo demasiada alegria.Desencaixe e

    desafeio que intensamente se produzem com um nada de vontade,investindo num mundo sem valores, numa fora desintegradora quedele pode advir. bem conhecida a referncia de Deleuze (1997, p.80-103) ao personagem de Melville, o escriturrio Bartleby, quepre-

    feriria no, que abdica a qualquer preferncia em uma dada situao,recusando tambm o cansao das disjunes exclusivas, formuladasem ou isso ou aquilo, que asseguram o fechamento de uma situa-o (ZOURABICHVILI, 2004, p. 103-107).

    A positividade de Bartleby para uma poltica do esgotamento a de favorecer, em si mesma, e no meio, o crescimento de um nada

    de vontade. O nada de vontade um fato moderno16

    , e Nietzsche jo diagnosticava como oportunidade de uma reviravolta17. O nada devontade marca o niilismo passivo, niilismo moderno, a terceira etapado niilismo que Nietzsche denomina o do ltimo homem. Esse per-sonagem conceitual refere-se, grosso modo, a uma espcie de mortovivo para quem o homem no deu certo. o grande cansado, queacha melhor morrer. Mas onde que existe o mar para ele poder seafogar? O mar secou. aquele que gostaria de perecer, mas est tofatigado que no tem nem fora para isso. Ento, j que est vivendo,continua. Perdeu toda a esperana de salvao e proteo plenas, seja

    em um fundamento metafsico em outro lugar (platonismo e cristia-nismo), seja na redeno e utopia no futuro, que foram as promessasda racionalidade cientfica, do socialismo e do capitalismo at boaparte do sculo XX. H uma grande e lamurienta descrena em me-tas, ideais, projetos e preferncias. Finda a crena no prprio homem,o ltimo-homemse produz em um niilismo incompleto, operadorda poltica do grande cansao e que ainda se inscreve no negativo,como todas as formas anteriores do niilismo.

    Nietzsche refere-se a quatro configuraes do niilismo. A pri-meira a do niilismo negativo, que se apresenta como uma desvalori-

    zao desta vida em nome de valores supremos, criada pelo platonis-mo e reafirmada pelo cristianismo que julgam e desvalorizam a vidatemporal a partir de um mundo suprassensvel e eterno, consideradocomo bom e verdadeiro. A segunda etapa a do niilismo reativo.

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    Ela corresponde a um enfraquecimento de Deus como norteador, morte de Deus na modernidade e ascenso do homem ao lugar dofundamento. Nesse momento, os valores superiores sofrem uma des-valorizao; o niilismo burgus que aposta no futuro como sendouma compensao das fraquezas e imperfeies do presente e que tem

    o homem como mestre e dominador da natureza. O terceiro tipo o niilismo passivo, causado pela impossibilidade de suportar a ideia deque no haver um aperfeioamento do homem no sentido de umprogresso, nesse momento se acentua a descrena no melhoramen-to da humanidade; esse niilismo passivo tanto a etapa dos mortosvivos que se lamuriam pelo homem no ter dado certo, quanto omomento da ausncia de esperana, seja num mundo suprassensvel,num paraso com Deus ou num futuro que vir redimir o instante; o momento de um nada de vontade e a oportunidade de uma revira-volta. H uma diferena de perspectiva que permitir a quarta etapa, a

    do niilismo ativo, um niilismo completo, consumado, esgotado, alegre.Corre-se o risco de identificar o tudo revm (eterno retorno), semesperana de redeno e correo futura, com o nada vale a pena doniilismo passivo, e esse o abismo menor que o mais difcil de seratravessado (Nietzsche, 1998). Abismo notvel especialmente entre apredio do adivinho como o discurso do ltimo homem niilismopassivo (1998, p. 145-148) e o apelo de Zaratustra no Prlogo,naspartes 4 e 5 (1998, p. 31-35), na direo do homem que quer morrer.

    O niilismo passivo a mais terrvel etapa do niilismo, causadapela impossibilidade de suportar a derrocada do otimismo moral, a

    perda da crena do melhoramento da existncia tambm umapossibilidade de passagem do negativo ao afirmativo e, acrescen-temos, do cansao ao esgotamento. a descrena nos esquemas jprontos, que agora se mostram estranhos, quando no reagimosmaiscom esperana, e os velhos hbitos e clichs nopegam mais, no nosmovemos pela espera seja de um Deus, um mundo superior ou umtempo futuro que venha redimir o instante.

    Nesse limite mximo do cansao e do negativo, em que as dis-tines que marcam a distncia entre l e c, isto ou aquilo, tornam-secada vez mais grosseiras, os termos disjuntos podem afirmar-se em

    sua distncia (DELEUZE, 1992, p. 59). O extremo do negativo podetornar-se o trovo e o relmpago que anuncia um esgotamento porvir, um poder de afirmar (DELEUZE, s/d, p. 261).

    H nesse jogo, nessa descrena na particularidade dos termos,a oportunidade de uma reviravolta, como refere Zourabichvili, namedida em que, com o niilismo passivo, se d a falncia dos clichs,a ruptura dos cdigos que asseguravam o lao orgnico entre o ho-mem e o mundo (2004, p. 76). Como alguns personagens beckettia-nos, estamos soltos, tomados de vertigem, fascinao ou nusea. Ecosde Murphy, Molloy, Winnie, Vladimir e Estragon, alm de outros sem

    nome.Alguns leitores de Beckett tentam inscrev-lo somente no can-sao, como a vtima da aranha referida por Nietzsche (1998, p. 102),isto , do imperativo da causalidade e da razo, bem como do fio

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    da interioridade, fio psicologizante e sentimental que o enrola naangstia, no gemido, na culpa, essas formas do descontentamentoque procuram enle-lo num jogo demasiado humano, impedindo oacesso ao fio de metamorfose, a um senso da exterioridade abertoa esse esgotado alm-do-homem em que, a cada instante, germinam

    diferenciaes na imanncia (DELEUZE, s/d, p. 57-58).Os personagens de Beckett passam pelo cansao, mas nele nose detm, vo de um nada de vontade a um desinteresse escrupuloso,e tm em comum o fato de terem visto algo que excedia os dadosda situao (DELEUZE, 1988, p. 217-218). Partem desautomatiza-dos, liberados do torniquete de seu lao orgnico com o mundo,carregando leves a aguda desafeio dos que no chegam a saber oque todo mundo sabe e que negam discretamente o que se julga serreconhecido por todo mundo (DELEUZE, 1988, p. 217).

    Em seu Nietzsche,Deleuze afirma que, alm do ltimo homem,

    existe ainda o homem que quer perecer. Ele vai do nada de vontadedo niilismo passivo ao ponto de culminao do niilismo, meia-noite, que no se define em Nietzsche por um equilbrio, ou umareconciliao de contrrios, mas por uma converso (DELEUZE, s/d,p. 261), em que tudo pode estar pronto e a transmutao, por umtriz (DELEUZE, 1985, p. 27). a possibilidade de um niilismo aca-bado, esgotado, ativo.

    H em Beckett um desinteresse sim: esgotado, agudo, ativo osuficiente na inveno de miniacontecimentos, de interferncias, queconecta o devir-imperceptvel, o estatuto da imagem a uma potncia

    de questionamento. Uma dimenso poltica possvel que passa pelaafirmao de Adorno de que as obras de Beckett provocam umareao frente qual as obras oficialmente engajadas, desbancam-secomo brinquedos. (...) So obras que fazem explodir a arte por den-tro, que o engagement proclamado submete por fora, e por issos aparentemente. Sua irrecorribilidade obriga quela quebra que asobras engajadas apenas anseiam (1991, p. 67).

    Uma poltica do esgotamento inscrita no imperceptvel nojoga com o impessoal enclausurado e sanguessugado pelo capitalismocontemporneo, este que reivindicado como um novo ideal de vida

    in progress. O impessoal da interioridade em declnio e dissipaoque se mantm na chave do cansao e na iluso de no ter qualquerpoder, ou de ter um poder absoluto. Tais movimentos de superexci-tao e iconoclastia ruidosa so tambm uma velha nova questo queimplica muito mais cansao e descanso do que esgotamento.

    A esperana, na afirmao de Moran (personagem do roman-ce Molloy), a disposio infernal por excelncia, ao contrr io doque se acreditou at nossos dias (BECKETT, 1988, p. 130). Aoinvs de investimento na lgica fatigada e em declnio da esperana,uma poltica do esgotamento inventa o jogo da tocaia e da esprei-

    ta, uma espcie de pescaria sem previses em que se permaneceativo, para nada, com um certo otimismo para nada referido porFrancis Bacon (DELEUZE, 1981, p. 35), entre a animalidade e ainumanidade.

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    O esgotamento a possibilidade de engendrar uma poltica,que dissemina combinatrias, silncios, transmutaes de coisas, euse impessoais parasitados. Em Beckett, as dramatculas, os romances eas peas para rdio e televiso foram, a cada vez, uma nova estratgiae experimentao. Particularmente no momento em que escreveu as

    peas televisivas, podemos notar que elas consistiram na oportunida-de de uma interferncia no campo de disputa poltica do contempo-rneo, momento de uma nova partida.

    Beckett apresentou suas armas nesse jogo de culminao doniilismo, jogo de um fim e fim de uma antiga partida. Ele rapida-mente se movimentou na chave do dividual e do finito-ilimitado,em que um nmero finito de componentes produz uma diversidadepraticamente ilimitada de combinaes(DELEUZE, 2005, p.141).Sabemos que os componentes genticos, o corpo e a vida operam eso apresentados nessa chave contemporaneamente.

    Suas armas, sua crtica, muitas vezes silenciosa, se fez por inven-es e experimentaes sem nenhum apelo humanista e expressivo.Peter Brook (In: BIRKENHAUER, 1976, p. 216) enuncia que suaspeas tm algumas caractersticas dos carros blindados e dos idiotas:ainda que se dispare contra eles e lhes atirem tortas, seguem seu ca-minho sem se intimidar.

    Essas armas em Beckett no servem para opor-se, mas corro-boram movimentos de inveno e constituem estticas e polticas.Assim, seria possvel pensar nessas polticas como sintomas do con-temporneo, no como indcios de uma patologia, mas como nichosefmeros de questionamento e abertura.

    Em entrevista a Marlene Chapsal, Deleuze refere-se a umprodigioso quadro de sintomas correspondentes obra de SamuelBeckett: no que se tratasse apenas de identificar uma doena, maso mundo como sintoma e o artista como sintomatologista.E essasintomatologia deve ser reconhecida em seu aspecto criador (DE-LEUZE, 2006, p. 172).

    No decurso do tempo, a acdia e o silncio foram sintomasinventivos na obra de Beckett. A acdia e lentido no devem serconfundidas com entrega passiva ou nostalgia romntica, mas simaproximadas a uma ativao para nada, que pode auxiliar em uma

    certa operatoriedade poltica do involuntarismo. Um uso astuciosoe escrupuloso da abulia. Um silncio que precisa de muitas palavras,que precede e finaliza em Beckett, especialmente um silncio dosvacolos e interrupes. Jogo de uma vida que acedeu potncia doimpessoal. esse o silncio como sintoma criador que isola no nasolido individual os personagens de Beckett, do mesmo modo queo crculo aparta as figurasde Francis Bacon, dessubjetivando-as.

    Sobriedade inventiva de Beckett sintomatologista, silncio doscomponentes finitos e das recombinaes ilimitadas. No mais o can-sao da pausa, ou recolhimento solipsista, nem mesmo aquele que j

    teria dito o que havia de ser dito (ANDRADE, 1999), o silncioesgotado que se adensa nas dramatculas, pequenas narrativas (BE-CKETT, 1996), no cinema e nas telepeas de Beckett, um uso dosilncio para que as imagens se intensifiquem.

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    18 BECKETT, Samuel. Umacarta sobre Godot.Paris, 1952.Traduo do francs deLeonardo Babo. Folha deSo Paulo: Caderno Mais!,08/09/96. Beckett escreveuEsperando Godotem 1949,mas a pea s foi produzida

    em 1953 em Paris, umpouco antes alguns excertosforam apresentados em umaperformance radiofnica noprograma Club dEssai.

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    Uma poltica do esgotamento pode estar nesse silncio que um sim. Que isola para estar altura das experimentaes. Silnciocomo contorno provisrio para se defender das feridas mais grossei-ras, parasitrias, neonarcisistas, e para tornar-se imperceptvel.

    Um fechar-se estratgico, que refere Nietzsche. Isolar-se para

    no ver muitas coisas, no ouvi-las, uma autodefesa. Seu imperativoobriga no s dizer no onde o sim seria um altruismo, mas tambma dizer no o mnimo possvel. Separar-se, afastar-se, daquilo que tor-naria o no sempre necessrio [] reagir com menor frequnciapossvel (NIETZSCHE, 1995, p. 47), para se abrir violncia dasferidas mais sutis e que aumentam a potncia da vida como enunciaLapoujade (In: LINS; GADELHA, 2002, p. 88-89), no o silnciocansado de uma blindagem, mas o esgotamento que preserva as mosabertas(NIETZSCHE, 1955, p. 47).

    Uma vida imperceptvel o que implica uma poltica para alm

    do cansao. Incessante construo de redes inscritas, em boa parte, noinvoluntrio.O esgotamento ressoa com a pequena carta de Beckett a Mi-

    chel Polac, aceitando que trechos de Esperando Godot fossem lidosem um programa de rdio. A carta foi a introduo performanceradiofnica, pois Beckett se recusou a conceder uma entrevista sobreseu trabalho. E com o texto dessa carta que encerro este artigo.Nela, Beckett escreve:

    Voc quer saber minhas ideias sobre Esperando Godot, cujosexcertos voc me d a honra de transmitir no seu Club

    dEssai, e ao mesmo tempo minhas ideias sobre teatro. Euno tenho ideias sobre teatro. No conheo nada. No vou. admissvel. Bem menos , antes, nessas condies, escreveruma pea e, ento, tendo feito isso, nem sequer ter ideias so-bre ela. [...] Eu no sei mais sobre essa pea do que algumque consiga l-la com ateno. Eu no sei com que espritoa escrevi. Eu no sei mais sobre os personagens do que oque eles dizem, fazem e lhes acontece. Do aspecto delesdevo ter indicado o pouco que pude entrever. Os chapus-coco por exemplo. Eu no sei quem Godot. Nem mesmo

    sei se ele existe. E no sei se eles acreditam nisso ou no,os dois que o esperam. Os outros dois que passam ao finalde cada um dos dois atos, deve ser para quebrar a monoto-nia. Tudo o que consegui saber, eu mostrei. No muito.Mas me basta, o suficiente. Diria at que estaria satisfeitocom menos. Quanto a querer encontrar em tudo isso umsentido maior e mais elevado para levar consigo depois doespetculo, junto com o programa e as guloseimas, no vejonenhum interesse nisso. Mas talvez seja possvel. Eu noestou mais l, nem estarei jamais. Estragon, Vladimir, Pozzo,

    Lucky, o seu tempo e o seu espao, eu no pude conhec-los um pouco seno afastando-me bem da necessidade decompreender. Eles talvez devam prestar contas a voc. Queeles se virem. Sem mim. Eles e eu estamos quites. 18

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