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Émile Benveniste: Interfaces

Enunciação & DiscursosKarina Giacomelli

Vera Lúcia Pires(Orgs.)

ISSN 1519-3985

N° 33, Julho/Dezembro de 2006PPGL - Editores

Universidade Federal de Santa Maria

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REITORClóvis Silva Lima

DIRETOR DO CENTRO DE ARTES E LETRASEdemur Casanova

COORDENADORA DO PROGRAMA DEPÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

Sílvia Carneiro Lobato Paraense

EDITORPrograma de Pós-Graduação em Letras

CONSELHO EDITORIALAmanda Eloina Scherer (UFSM)

Désirée Motta-Roth (UFSM) Eni Pulcinelli Orlandi (UNICAMP)

José Luiz Fiorin (USP) Luiz Paulo Moita Lopes (UFRJ)

Maria José Rodrigues Faria Coracini (UNICAMP) Maria Luíza Ritzel Remédios (PUCRS)

Mirian Rose Brum de Paula (UFSM) Pedro Brum Santos (UFSM) Regina Zilberman (PUCRS)

Sílvia Carneiro Lobato Paraense (UFSM)

REVISÃOIrene de Moraes Teixeira

Karina GiacomelliVera Lúcia Pires

DIAGRAMAÇÃO/ARTE FINALLilian Landvoigt da Rosa

CAPASimone de Mello de Oliveira

PERIODICIDADESemestral

DATA DA EFETIVA CIRCULAÇÃOSaída da gráfica

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POLÍTICA EDITORIALLetras é uma publicação temática de cunho científico do PPGL da UFSM cujo objetivo é divulgar tanto a produção cientítica dos pesquisadores reconhecidos nacional e internacionalmente, quanto a co-produção entre professores docentes e discentes do Programa e também artigos oriundos de trabalhos de dissertação ou tese relevantes para as linhas de pesquisa dos cursos. Os temas são definidos pelo(s) organizador(es) de cada número em função dos ramos de Estudos Lingüísticos e Estudos Literários, que compõem as áreas de concentração do Curso.

ENDEREÇOPrograma de Pós-Graduação em Letras

Universidade Federal de Santa MariaCentro de Educação, Letras e Biologia

Prédio 16, Sala 3222 – Bloco A2. Campus Universitário - Camobi.

97105-900 – Santa Maria, RS – BrasilFone: 0xx 55 3220 8359

Fone/fax: 0xx 55 3220 8025http://www.ufsm.br/ppgletras

e-mail: [email protected]

Letras/ Universidade Federal de Santa Maria. Centro de Artes e Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras; [organizadores] Karina Giacomelli, Vera Lúcia Pires. - N. 1 (jan/jun. 1991) - _________. Santa Maria, 1991 -

SemestralN. 33 (Jul - Dez de 2006)ISSN 1519-3985

Impresso na DIPAPEL INDÚSTRIA GRÁFICA LTDA.Porto Alegre - RSMarço de 2007.

CAPESEsta publicação conta com o apoio institucional da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal

de Nível SuperiorPPGL - Editores

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Sumário

ApresentaçãoKarina Giacomelli e Vera Lúcia Pires

Saussure-BenvenisteClaudine Normand

O conceito de enunciação em Benveniste e DucrotLeci Barbisan

Enunciação e intersubjetividadeBeth Brait

Enunciação e gramática: o papel das condições de emprego da línguaLuiz Francisco Dias

Enunciação e SemióticaJosé Luiz Fiorin

Benveniste e o sintoma de linguagem: a enunciação do homem na línguaValdir Flores

Benveniste: enunciação, manualização e disciplinarizaçãoKarina Giacomelli

A dêixis na teoria da enunciação de BenvenisteVera Lúcia Pires

Kelly Cristini G. Werner

Perspectiva benvenistiana de língua: considerações para pensar uma interface com a linguística aplicada ao ensinoNeiva Maria Tebaldi Gomes

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ApresentaçãoKarina Giacomelli

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria - BrasilVera Lúcia Pires

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria - Brasil

Não atingimos nunca o homem separado da linguagem (...). É um homem falando que

encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem

Afinal, por que Benveniste?

Duas respostas podem ser dadas a essa pergunta para justificar a publicação de uma revista dedicada a estudos baseados na obra do autor – a importância de Benveniste para a lingüística contemporânea e a escassez de pesquisas em torno de seus estudos, pelo menos no Brasil.

Frente ao estruturalismo generalizante da primeira metade do século 20, que excluía da lingüística a fala e, por conseqüência, questões problemáticas como o sentido, a referência e o sujeito, Benveniste, também estruturalista, mas e principalmente um saussuriano convicto, representa uma mudança, ao não se aliar à redução. Ao propor duas lingüísticas – modo semiótico e modo semântico - busca mesmo ultrapassar Saussure na consideração do sentido. Encontra o sujeito

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da enunciação e, com ele, o espaço para uma nova lingüística, que permitiria tratar cientificamente da fala, da enunciação, do discurso.

Considerando, então, a amplitude de suas proposições, pouco foi pesquisado e muito há ainda a ser estudado. Benveniste nos legou uma obra que permite diversas pesquisas sobre o que já está escrito; e, muito mais sobre suas propostas, para todos os níveis de estudos da linguagem, não apenas em relação à enunciação.

Apesar do reconhecimento de pesquisadores importantes nos setores ligados aos estudos lingüísticos em algumas universidades brasileiras, não são muitas as publicações sobre o autor nos últimos anos. A exceção foi a revista Letras de Hoje v. 39, n. 4 (2004) que trouxe os textos apresentados no I Colóquio de Estudos Émile Benveniste, realizado na PUCRS em 2004.

É esse espaço que pretendemos ocupar, publicando alguns estudos concernentes às idéias de Benveniste, desenvolvidos por pesquisadores ligados a diversas universidades brasileiras.

A análise da noção de enunciação nos trabalhos de Benveniste e Ducrot é o propósito do texto de L. Barbisan, para quem a construção dos conceitos relativos ao campo enunciativo conduz à focalização de objetos de estudo distintos nas duas teorias. Para ela, ao modificar, ampliar e ressignificar os conceitos saussurianos, os autores chegaram a conceituações próprias da enunciação, em abordagens distintas do uso da linguagem.

B. Brait demonstra em seu trabalho como os conceitos de enunciação e intersubjetividade dão forma à teoria enunciativa benvenistiana. A partir disso, a autora aponta as conseqüências dessa teoria para o pensamento lingüístico contemporâneo.

A partir da distinção feita por Benveniste entre as condições de emprego das formas e condições de emprego da língua, L. F. Dias aborda a relação enunciação-gramática. Tomando a enunciação como condição básica para refletir

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sobre a língua, o autor desenvolve outros aspectos da dimensão enunciativa, ampliando a abordagem benvenistiana.

A relação enunciação-semiótica é apresentada por J. L. Fiorin, que mostra como a semiótica francesa, a partir da teoria da enunciação, desenvolvida por Benveniste, integra-a na teoria geral da significação que tenta construir. O autor apresenta, em seu texto, as operações enunciativas de instauração de pessoa, de espaço e de tempo, bem como as de figurativização e de tematização.

Partindo dos pressupostos teóricos de Benveniste, V. Flores analisa relações enunciativas com o propósito de mostrar como a lingüística pode recorrer à patologia da linguagem para construir o objeto mesmo de uma lingüística fundada na singularidade do homem na língua.

O lugar ocupado por Benveniste no manual de introdução à lingüística é o tema do texto de K. Giacomelli. Inserido em uma abordagem que relaciona disciplinarização e manualização, o trabalho mostra como o autor é pouco referido na lingüística brasileira, apesar de sua importância para os estudos contemporâneos da linguagem.

V. L. Pires e K. G. Werner examinam a categoria da dêixis abordada por Benveniste como um fenômeno polissêmico, uma vez que seu sentido depende do emprego em um determinado contexto. Apontam que, em artigos diversos, o lingüista aprofunda sua consideração da dêixis como fundamento da representação da subjetividade na linguagem.

É nos textos de Benveniste que N. Tebaldi buscou reflexões sobre a língua para entendê-la nas situações de ensino-aprendizagem, destacando, no artigo, aspectos lingüísticos como natureza social da linguagem, modos de significar, função constitutiva da língua nos processos de (inter)subjetividade e enunciação.

Finalmente, destacamos o artigo de C. Normand, Saussure-Benveniste. Nesse belo texto, a autora, como o próprio nome já indica, relaciona os dois autores, apontando semelhanças e diferenças entre eles. Em um tom quase confessional,

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convergências e divergências são apresentadas numa abordagem que difere do discurso da filiação ou da comparação, entre outros, já tão explorados. É na ordem da inteligência e do amor pela língua que Normand situa a relação, mostrando que, antes de mais nada, o que importa é o encontro dos dois, fundamental para todos que se interessam pelo estudo da linguagem. Esse texto, já publicado em Cahiers Ferdinand de Saussure (n. 57, 2004), foi-nos gentilmente cedido pela autora, a quem muito agradecemos.

Karina GiacomelliVera Lúcia Pires

Nenhum tipo de língua pode por si mesmo e por si só favorecerou impedir a atividade do espírito. O vôo do pensamento

liga-se muito mais estreitamente às capacidadesdos homens, às condições gerais da cultura, à organização da sociedade

quanto à natureza particular da língua. A possibilidade dopensamento liga-se à faculdade da linguagem, pois a língua é uma estrutura

informada de significação e pensar é manejar os símbolos da língua.

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Saussure-BenvenisteClaudine Normand

Sorbonne, Paris - França

Resumo Saussure e Benveniste são tomados como referências reveladoras

do essencial em jogo no que não fora definido até então: língua, discurso, comunicação.Palavras-chave: Saussure - Benveniste - língua - discurso

AbstractSaussure and Benveniste are taken as references that reveal the essential at

a play in which was not defined so far: language, discourse and communication.Key words: Saussure - Benveniste - language - discourse

Saussure-Benveniste não é um título, é apenas um anúncio e um gesto de recuo ou de hesitação: da relação entre estes dois nomes, aqui justapostos, na ordem neutra da cronologia, existe muito ainda a ser dito. Mas como? É necessário escolher uma ordem a seguir, um tipo de discurso, e já houve tantos! Relembrando:

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- o discurso da filiação, da transmissão, da escola: Saussure gerou Benveniste, que gerou a análise de discurso e alguns outros discípulos. Eis a grande continuidade da história, a acumulação tranqüila dos conhecimentos, tesouro que cada geração herda e fica encarregada de transmitir e frutificar: missão e transmissão!... O discurso da fundação é uma variante do discurso da filiação: Saussure e Benveniste foram os dois “pais” do estruturalismo. O segundo, sobretudo, contribuiu para divulgar e explicar o legado do primeiro, na sua defesa contra o behaviorismo, bem como para ilustrar as idéias daquele com suas próprias análises e o desenvolvimento destas com proposições novas. Dizia ele: “Compete-nos tentar ir além do ponto a que Saussure chegou...1”;

- o discurso da novidade: Benveniste libertou os lingüistas presos à sujeição da teoria saussuriana. Ele lhes deu a subjetividade, o mundo e o discurso que o contém; reatou com a filosofia, encontrou a psicologia social e a pragmática; reencontrou a virtude do diálogo e da interação. Enfim, uma lingüística diferente!

- o discurso da comparação (ou, em sua variante démodé, da “influência”): Saussure deu os princípios, os temas e o método; Benveniste os aplicou em análises concretas que transformaram radicalmente (ou simplesmente enriqueceram) as descrições comparatistas. Por isso, Benveniste é o mais saussuriano dos lingüistas, uma vez que permitiu resgatar a partir de Saussure uma lingüística da significação...

Esses três discursos, amalgamados ou ferozmente separados, já foram muitas vezes defendidos. No mesmo gênero acadêmico, poderíamos sugerir pelo menos dois, ainda:

- em relação à interdisciplinaridade: de um lado a fronteira bem delimitada por Saussure entre a lingüística e as outras ciências, dentre elas a filosofia. Operação necessária ao seu projeto, mas que não deixa de ser contrariada pelo anúncio de uma semiologia englobante, caso não seja ameaçadora. De outro lado, a prática de Benveniste que, a exemplo de seu mestre Meillet, dirige-se aos sociólogos, aos filósofos e também aos psicanalistas convidando-os, de certa forma, a se unirem, sob a égide da lingüística, em uma “semiologia universal”. Em uma ordem de idéias bastante próximas, poderíamos comparar, em Lacan, as referências aos dois

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lingüistas e as suas conclusões: de um lado, a “linguisterie”; de outro, a decepção causada por aquele que estava, no entanto, “entre os maiores”;

- em relação à instituição universitária: para um e outro uma consagração certa, uma notoriedade assegurada pelas instâncias clássicas de avaliação (títulos, publicações, cargos); para os dois uma solidão intelectual mais ou menos reconhecida por eles mesmos e por seus pares; e uma quantidade de cadernos manuscritos inéditos, encontrados pouco a pouco ou para sempre perdidos.

Trataremos aqui de uma relação diferente; falaremos de encontros. Benveniste encontrou Saussure naquilo que ele pôde conhecer de seus escritos. Muitos lingüistas, talvez todos, na França pelo menos, encontraram os dois autores em escritos mais ou menos numerosos: textos, manuscritos, glosas, comentários. Mais do que referências, tratam-se de presenças: todos os dois se impuseram e continuam se impondo ainda hoje a quem se interessa pela linguagem; cada um fez pressentir, mais do que revelar, que alguma coisa essencial estava em jogo naquilo que ainda não se entrou acordou em nomear: língua, discurso, comunicação... Eles nos acordaram do sonho dogmático, colocando questões que, apesar de suas tentativas e de todos aqueles que se seguiram, ainda não estão fechadas. Freud teria dito feridas narcísicas, pois continuamos a não saber o que fala em nós, e eles são uma das fontes dessa incerteza.

No entanto, nem um nem outro rompeu com a tradição comparatista: eles simplesmente a abalaram e, dependendo do caso, alteraram-na. Eles disseram aos seus contemporâneos, em termos freqüentemente muito próximos:

(...) vocês descrevem, detalham, etiquetam alguma coisa da qual não conhecem a natureza. Vocês descobrem cada vez mais detalhes, mas não sabem o que fazem. Vocês comparam muitas línguas, vivas ou mortas, fazem suas histórias, conhecem cada vez mais detalhes, mas se perguntaram o que é uma língua.- A linguagem?- Não! A LÍNGUA! O que é necessário supor presente nas palavras, que faz com que elas sejam mais que barulhos, canto dos pássaros ou trovão...- Mas esta presença não é o pensamento?- Sem dúvida, mas sob qual forma? Como o caroço na cereja, o sangue nas veias? O corpo divino na hóstia? Compreenda que ‘quem quer que coloque o pé no terreno da língua, pode se dizer que está abandonado por todas as analogias do céu e da terra’.

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Logo, Saussure era isso, “um começo”? É o que perguntaram os jornalistas. Vieram dois (separadamente, de jornais diferentes) interrogar Benveniste para saber tudo de Saussure. Estamos em 1968 e eles querem compreender tudo da lingüística moderna, imediatamente. Porém, Benveniste interrompe o discurso começado da filiação, da tradição, da escola: “Saussure, ele não é um começo, ele é outra coisa, ou é um outro tipo de começo”2.

“A propósito, Saussure foi quem para mim?”, perguntou-se, então, sem dar mais atenção ao jornalista. É assim que nós o imaginamos... Ele não é mais jovem; ele tem seu lugar reconhecido, sua cadeira no Collège de France, a mesma que Saussure recusou por razões obscuras; ele é o sucessor de seu mestre Antoine Meillet; ele é conhecido somente por seus pares, notoriedade modesta, diferente do alvoroço que se faz, repentinamente, em torno do nome de Saussure. Pressente será o pouco tempo que tem para se definir, para dizer o que recebeu dos outros e o que espera de si mesmo daqui por diante? Ele acaba de evocar, com sua clareza habitual, a longa linha comparatista na qual está situado até o momento: aperfeiçoado muito jovem, enquadrado, entronizado por Meillet, o mestre da “École de Paris” (ele assim a designava, com orgulho), aluno fiel, hoje sem dúvida infiel, mas era o que se esperava dele...

Benveniste já está pronto a prosseguir, a puxar o fio condutor da mudança na continuidade, esta corrente do comparatismo ao estruturalismo na qual Saussure, desde 1878, ocupa um lugar essencial e da qual ele é hoje elo e testemunho. E, aliás, ele o dirá, com alguma ironia, a este ignorante maravilhado pela moda:

(...) é um espetáculo surpreendente a moda desta doutrina, mal compreendida, descoberta tardiamente e em um momento em que o estruturalismo em lingüística era já para alguns algo de ultrapassado. (...) Neste ano de 1968, a noção de estruturalismo lingüístico tem exatamente quarenta anos.3

Mas, primeiro ele pára: Não! Nada de discurso fundador, nada de pai, nada de autoridade! Nada mais de fidelidade, de repetição, de retomada, nada de Tora nem de Talmude! Saussure foi outra coisa, “um outro tipo de começo”!

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É somente um momento de hesitação no tapete já desenrolado da continuidade, a tentativa de fazer compreender, adivinhar pelo menos, o que foi um encontro, uma aventura da inteligência, ao invés de se mortificar em comentários, em artigos, em celebrações. Mas não é isso que esperam os jornalistas; eles querem informações, querem que lhes expliquem a admiração de uma “vanguarda” que pretende refazer o mundo pelo poder da palavra e que tem como inspirador um poeta hermético e um curso de lingüística salvo do esquecimento pela devoção de alguns.

Como chegaram os jornalistas, geralmente melhor informados, a essa pequena sala do Collège de France, ao lado de um professor tão pouco notório, de auditório tão restrito? Eles querem saber tudo do lingüista morto em 1913 e subitamente elevado a mestre. Mas sim, ele era conhecido! Mas somente de seus pares. Admirado e criticado segundo os códigos desse meio fechado. Ele morreu jovem, discreto, deixando, como se diz, uma obra inacabada. Mas seria possível terminá-la? Meillet, que tinha assistido a seus cursos em Paris, devotava-lhe afeição e admiração. Era com emoção que lembrava do professor muito jovem que “fazia amar e sentir a ciência que ensinava”, de sua voz “harmoniosa e velada”, do “olho azul cheio de mistério”. E é com a mesma emoção que, mais de vinte anos depois, leria o Curso, que fora respeitosamente reunido.

Teria verdadeiramente o lido na sua inquietante novidade? Benveniste talvez duvide, mas não o declarara. Ele, que escapou do charme direto da sua presença e encontrou-o somente em texto, eco que propaga sua voz, sabia, porém, a que ponto tal chama pode incendiar a inteligência, talvez seduzi-la: a contingência dos signos “arbitrários”, a imanência do sentido que somente se institui ao ser ligado a formas, a abertura sob uma semiologia pronta a tudo englobar, ou antes, a tudo ameaçar! Mas se pode dividir esse atordoamento? É mesmo desejável para a ciência que sua função e as suas convicções a consagrem?

A fascinação não pode deixar esquecer as diferenças que tornam improváveis um acordo profundo: Saussure, um patriota suíço, que teria, dizem, recusado a honra do Collège de France para não ter de renunciar a sua nacionalidade; aristocrata protegido pela fortuna da família, seduzido bem jovem pelo arianismo,

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mais tarde pelo anti-semitismo. Tudo isso que se adivinha ou murmura só poderia ser estranho a Benveniste, francês nascido na Síria, infiel ao rabinado ao qual o haviam destinado, próximo na juventude de poetas surrealistas, depois, do partido comunista, funcionário discreto e solitário. Os dois consagraram igualmente suas vida à pesquisa, dedicando-a, assim, à austeridade e ao isolamento; mas, a do segundo foi cortada por acidentes violentos: a guerra, o cativeiro do qual escapou, a clandestinidade e os anos de exílio; e, no retorno, um escritório espoliado.

Das diferenças impostas ou escolhidas, Benveniste, evidentemente, não dirá nada; o encontro dos dois só diz respeito à inteligência e ao amor, que lhes é comum, pela língua. No entanto, sobre o mesmo assunto, seria correto afirmar que houve acordo? E ainda, sobre o princípio maior da “arbitrariedade”: Benveniste nunca modificou a crítica feita em 1939 e conservada na antologia de 1966, uma vez que todos os artigos são posteriores a 1945: a ligação, dizia, não é só arbitrária do ponto de vista de Sirius, entre a coisa e nome; entre o significante e o significado; é, ao contrário, para todo locutor, “necessária”.

A demonstração era hábil e permitia apontar no Curso uma expressão confusa; mas, ao fazê-la, minimizava a importância do princípio saussuriano, reduzindo-o a um posicionamento tradicional sobre a origem da linguagem, ainda que Saussure a tornasse a base do pensamento semiológico da língua. Isso permitiria penetrar no segredo de sua natureza: arbitrária porque social, semiológica pois mutante e arbitrária. Esse jogo de termos intrincados é o que opõe, para sempre, o principio semiológico a todo pensamento clássico do signo e à filosofia, sempre pronta a se desembaraçar da língua para transformá-la em etiqueta do referente ou representação do pensamento.

Não se trata aqui de somente retificar uma formulação confusa! Alguma coisa de mais profundo devia preocupar Benveniste na questão do “arbitrário”, o que explicaria por que ele prefere, em suas análises perfeitamente saussurianas, falar de estrutura e de função ao invés de valores e de diferenças. Ousemos lançar a hipótese (pois ele nunca o declarou) de que o que o incomodava era a contingência. Da mesma forma que não se pode desconfiar que o Deus de Einstein jogue dados, o signo não pode e nem deve ser inteiramente desligado de

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seu fundamento. Se uma forma particular está ligada ao verbo médio diferenciando-o do ativo, por exemplo, ou à posição no espaço daquele que fala em relação ao objeto do qual se fala, é isso mesmo que é visado (o intento): ter necessidade de uma forma diferente de todas as outras, pois o sentido não poderia ficar sem expressão. Forma e sentido são intimamente ligados, um não fica sem o outro, mas essa ligação não pode ser inteiramente contingente. Quem se dedica a descrever atentamente as formas descobre que é o sentido que dá “a razão” de suas diferenças e até de suas anomalias. Sem dúvida, existe uma ordem dos signos, diferente daquela da natureza e da racionalidade, mas não sem relação com a substância, ingrediente inseparável do sujeito vivo e do mundo de sua experiência (seu Umwelt, certamente).

Aqui Benveniste separa-se, sem o declarar, de Saussure. Ele nos diz que se trata somente de “ir além” no estudo da significação; na realidade, pode-se pensar que ele vai a outro lugar: retorno a uma fenomenologia que um estruturalismo metodológico não tinha recoberto, abertura para descrições integrando traços da subjetividade nos enunciados e sua presença ativa em toda enunciação. Nunca abandonar a língua, na sua matéria significante, em suas estruturas comuns, no seu aparelho “semiótico”, mas conciliar esse gesto saussuriano com a singularidade subjetiva, com a comunicação sempre situada, com o “acontecimento inebriante” que é todo enunciado. Analisar “o semântico”: eis a aposta de Benveniste.

O projeto da semiologia encontra-se profundamente modificado. Saussure

anunciava sem ênfase uma ciência geral dos sistemas de signos, e somente os manuscritos nos mostram a que ponto isso o preocupava, na medida em que se tratava de uma coisa diferente, de uma nova ciência, simplesmente englobante. Era toda a relação com o mundo, com o conhecimento, com o pensamento que se era chamado a considerar; uma filosofia do espírito em suma, mas sob a base da língua, abstração material que só se institui nela mesma. Isso é claramente compreendido em um manuscrito:

No capítulo semiologia: (...) Se um objeto pudesse, onde quer que seja, ser um termo sobre o qual é fixado o signo, a lingüística cessaria imediatamente de ser o que ela é desde a base até o topo; aliás, da mesma forma o espírito humano, como fica evidente a partir dessa discussão.

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A empreitada é vertiginosa tanto quanto inacabável, pois tendo conhecido todos os cadernos nos quais se desenhou esse projeto, Benveniste, pode-se pensar, teria preferido nada saber; e com razão. A ciência progride, o conhecimento da linguagem abre sem cessar novos caminhos, nada pode impedir seu desenvolvimento: “semiologia geral”, “semiologia de segunda geração”, “semiologia universal”... Todas as ciências estão envolvidas, convidadas a se reagruparem sob a égide de um pensamento sobre os signos que lhes impõem uma coisa: não esquecer que o sentido passa sempre pelas formas. Desde então, “amplas perspectivas se abrem para a análise das formas complexas do discurso, a partir do quadro formal esboçado aqui”4. O otimismo dessa última formulação só foi temperado por alguma reserva final, que deixa ao poder de significar seu mistério, julgado sagrado talvez:

No final desta reflexão, somos reconduzidos ao nosso ponto de partida, à noção de significação. E eis que se reanima em nossa memória a palavra límpida e misteriosa de Heráclito, que conferia ao Senhor do oráculo de Delfos o atributo que nós colocamos no âmago mais profundo da linguagem: Oute légei, oute kryptei, alla semainei. ‘Ela não diz nem oculta, mas ela significa’.5

Saussure, ainda que “ultrapassado”, teria deixado traços de sua inquietude? A semiologia, esta utopia positivista, seria impotente para engessar, em uma descrição contida, o “turbilhão sócio-histórico” de línguas e de culturas? Não é o que se apreende em um manuscrito recentemente encontrado, juízo que Saussure deixa em suspenso:

Precisamos dizer nosso pensamento mais íntimo? Há que se ter medo de que a via exata do que é a linguagem possa suscitar dúvidas sobre o futuro da lingüística. Há uma dessimetria nessa ciência, entre a soma de operações necessárias para apreender racionalmente o objeto e a importância desse objeto, da mesma forma que existiria uma dessimetria entre a pesquisa científica e o que se passa durante uma parte do jogo e o [ ]

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Tradução: Carmen Deleacil Ribeiro Nassar

Notas

1 1966. In: Problemas de Lingüística Geral (PLG) II. Campinas: Pontes, 1989, p. 224.2 1968. In: PLG II, p. 31.3 1968. In: PLG II, p. !6.4 1970. In: PLG II, p. 90.5 1966. In: PLG II, p. 234.

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O conceito de enunciação em Benveniste e em Ducrot 1

Leci Borges BarbisanPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - Brasil

Resumo Analisa-se a noção de enunciação os trabalhos de Émile Benveniste

e Oswald Ducrot e o modo como a construção desses conceitos conduz à focalização de objetos de estudo distintos nas duas teorias.Palavras-chave: Benveniste - Ducrot - enunciação

AbstractIn this work it is analyzed the notion of enunciation in Émile Benveniste

and Oswald Ducrot works. Besides that, in this work it is analyzed the way that the construction of these two concepts leads to focusing on two different objects of study in these theories.Key words: Benveniste - Ducrot - enunciation

Introdução

Quem se dispuser a fazer uma revisão dos estudos sobre a linguagem verbal ao longo de sua história certamente perceberá com muita facilidade que a preocupação dos estudiosos com a descrição e a compreensão do funcionamento

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dos elementos que pertencem ao código da língua sempre teve quase total prioridade sobre os fenômenos que se produzem quando a língua é empregada para a comunicação entre seres humanos. Relativamente pouco esforço tem sido feito no sentido de se entender, por exemplo, as múltiplas modificações que se introduzem no sentido quando elementos do código estão subordinados à utilização que os sujeitos fazem da linguagem, o que, no entanto, não pode ser desconsiderado, visto que trazem como conseqüência especificações particulares ao geral do sistema.

Os aspectos lingüísticos da enunciação, é verdade, estão presentes já nas gramáticas gregas e latinas, na semiótica de Peirce, na noção lingüística por vezes ambígua de dêixis e, mais recentemente, nos trabalhos de Jespersen, Jakobson, sem esquecer todavia Bakhtin, Bally que em seus escritos se dedicaram especificamente ao estudo da enunciação. Mas foi realmente Émile Benveniste quem, com seus principais textos reunidos nos dois volumes do Problèmes de Linguistique Générale deu o impulso necessário para que se desenvolvessem na Lingüística outras reflexões igualmente notáveis sobre o uso da linguagem verbal.

Tendo em vista a área assim delineada, temos a intenção de reunir nestas páginas alguns elementos que indicam que, levando em conta a preocupação dominante na Lingüística com o código da língua e fundamentando-se em conceitos estruturalistas semelhantes, dois modos distintos de entender a enunciação surgiram na história do estudo da linguagem, inicialmente a de Émile Benveniste e, mais recentemente, e ainda em pleno desenvolvimento, a de Oswald Ducrot, ambos na França.

Não se espere, porém, encontrar, nas páginas aqui apresentadas, um trabalho original que traga alguma contribuição à compreensão do funcionamento da linguagem. Ao contrário disso, o que vai ser dito não é mais do que uma leitura, apoiada em nomes consagrados, de alguns textos que nos parecem elucidativos do conceito de enunciação nesses dois lingüistas. O objetivo é o de trazer apenas algumas indicações e talvez um possível esclarecimento sobre o tema, por meio da distinção que, entre eles, se procura estabelecer.

Justifica-se a aproximação e a distinção entre as teorias criadas por Émile

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Benveniste e Oswald Ducrot, quanto ao conceito de enunciação, pelo fato de que ambos partem de conceitos saussurianos que, modificados, ampliados, ressignificados, resultam na afirmação de abordagens distintas do o uso da linguagem, focalizando, conseqüentemente diferentes objetos de análise, chegando assim a conceituações próprias da enunciação.

1 A proposta de Benveniste

É sabido que Benveniste alicerça sua teoria em conceitos estruturalistas. Ducrot (1989a), no capítulo VI, corrobora essa afirmação – facilmente verificável em diferentes textos do Problemas de lingüística geral – quando diz que Benveniste aceita as exigências metodológicas de Saussure e descreve a língua como o fundamento das relações intersubjetivas (p. 149). Retomando-se, do modo mais fiel possível, quatro textos de Benveniste, é possível encontrar tanto o ponto de partida de sua proposta semântica, a lingüística saussuriana que tem na língua seu objeto de estudo, oposta à fala, quanto seu ponto de chegada, sua concepção de enunciação, que vê a linguagem em uso associada à língua. Escolhemos como textos que podem nos conduzir ao que nos propomos: Os níveis da análise lingüística (1962), A forma e o sentido na linguagem (1966), O aparelho formal da enunciação (1970) e Da subjetividade na linguagem (1958).

Vemos em Os níveis da análise lingüística de Benveniste o que propomos que se considere como um momento de uma caminhada que vai resultar em seu conceito de enunciação. Nesse artigo, o autor parte da análise da língua como forma, aludindo ao método estruturalista de segmentação e substituição, que conduz às relações sintagmáticas e paradigmáticas entre os elementos do sistema, método adotado pela Lingüística de sua época. Nesses procedimentos de análise, a noção de nível torna-se essencial para a descrição da natureza articulada da linguagem, e é nessa noção que Benveniste vai fundamentar a distinção que estabelece entre forma e sentido, indo do nível inferior, constituído pelos elementos merismáticos, ao nível superior, o da frase. Sob essa perspectiva, as entidades lingüísticas admitem dois tipos de relação: distribucionais, entre elementos de mesmo nível e integrantes entre elementos de nível mais alto. Ficam assim estabelecidos dois limites: o do nível inferior, dos merismas, e o do nível superior: o da frase. A frase

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se define por seus constituintes e não pode integrar nenhuma unidade mais alta e o merisma só se define como integrante, não podendo ser segmentado em constituintes. Há um nível intermediário, o do signo, que pode conter constituintes e funciona como integrante de um nível mais alto. A distinção entre constituinte e integrante é fundamental porque, a partir dela se compreende a relação entre forma e sentido. A dissociação constitui a forma, a integração cria unidades significantes. Então, para Benveniste, a forma é a capacidade que tem o sistema de se dissociar em constituintes de nível inferior; o sentido é sua capacidade de integrar unidades de nível superior.

A frase se apresenta como um domínio novo; pode ser segmentada, mas não pode integrar outro nível. Não é uma classe de unidades distintivas. Sua propriedade fundamental é a de predicar, pois não há frase fora da predicação; é a linguagem em uso. Do ponto de vista semântico, os signos da língua têm uma significação no sistema, enquanto a frase tem sentido e é informada de significação. Entende-se, levando-se em conta a própria terminologia adotada, que o valor semântico do signo, definido pela língua, não é o mesmo que o da frase, construído pelo uso da linguagem.

Retomando-se a proposta resumida anteriormente, com vistas a justificar o tema escolhido para estas linhas, Benveniste, nesse momento de suas reflexões sobre a linguagem, parte do estudo da língua tal como era visto em sua época, sem rejeitar a importância que a língua tem para a compreensão do uso da linguagem. Por outro lado, reelabora esse estudo, introduzindo em sua abordagem o sentido, muitas vezes posto de lado nos estudos lingüísticos sobre a forma. Infere-se assim que forma e sentido não se excluem, embora sejam duas lingüísticas distintas, em que uma se ocupa dos signos formais, estudados por meio de uma metodologia rigorosa, e a outra se interessa pela utilização da língua em seu uso. Entretanto, seu objeto de estudo é o discurso, a manifestação da língua no uso da linguagem. Com a frase, deixa-se o domínio da língua como sistema e entra-se no universo da língua como instrumento de comunicação, cuja expressão é o discurso (1966: 130).

Em outra publicação, de 1966b, sobre a forma e o sentido na linguagem, Benveniste volta ao tema, avançando em suas reflexões, mas sem alterar

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a importância que concede à língua, aos elementos lingüísticos que constituem o sistema. Desta vez, menos preocupado em mostrar o papel já demonstrado que a língua desempenha no uso da linguagem, o lingüista desenvolve de modo mais aprofundado o aspecto semântico de sua teoria. Para tanto, parte da idéia de que a oposição forma/sentido coloca o lingüista no âmago da linguagem que é o problema da significação. Antes de mais nada, afirma ele, a linguagem significa (p. 217), e insiste dizendo que a significação é o próprio ser da linguagem, não é algo que lhe seja acrescentado. Com isso, ele quer ultrapassar a doutrina saussuriana de signo, constituído de significante (forma) e significado (visto como a aceitabilidade.do signo na comunidade de fala). Assim, significar é ter sentido construído por uma rede de relações com outros signos que o definem no sistema. É o domínio do semiótico, do sistema lingüístico. Logo, e isso é afirmado com muita clareza, não há relação língua/mundo, o signo tem valor genérico, as oposições são de tipo binário. Os signos estão sempre em relações paradigmáticas.

Para Benveniste, signo e frase são distintos e exigem descrições distintas. Diferentemente de língua e fala de Saussure, ele vê na língua, forma e sentido. A forma é a língua como semiótica, com função de significar, a frase, como semântica, com função de comunicar pela linguagem em ação, na mediação entre homem e homem e homem e mundo, em seu papel de transmissora de informação, de comunicadora de experiência, organizando a vida dos homens. É o “empreendido” (intenté, p. 225) pelo locutor, a expressão de seu pensamento. Não são desprezadas, no uso da linguagem, as noções do semiótico, mas essas noções são outras, porque adquirem relações novas. Assim, enquanto o semiótico é uma propriedade da língua, o semântico é o sentido construído pelo locutor que emprega a língua, é a idéia que ele expressa servindo-se de palavras integrantes de sintagmas particulares, em suas relações sintagmáticas. Então, o valor semântico resulta da articulação entre relações paradigmáticas e sintagmáticas.

Mais uma vez, embora forma e sentido constituam duas lingüísticas distintas, o semântico, o uso da língua, não prescinde do semiótico, da forma. Ambos se articulam e convergem para a construção do sentido no uso da linguagem. Semiótica e semântica têm métodos distintos de análise, mas não se opõem, ao contrário se complementam. Assim, Benveniste parte de conceitos saussurianos:

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signo, relações paradigmáticas e sintagmáticas, mas os ultrapassa, focalizando o aspecto semântico da linguagem, redefinindo língua e fala e articulando-as.

Em 1970, em seu conhecido texto O aparelho formal da enunciação, retomando de certo modo noções como forma e sentido, mas avançando em suas reflexões, Benveniste trata do emprego das formas e do emprego da língua. Vê no emprego das formas uma parte necessária de toda descrição lingüística que, metodologicamente deu lugar a muitos modelos. O emprego da língua é entendido como um mecanismo total e constante que, de um modo ou de outro, afeta toda a língua (p. 80). Relacionada com o emprego da língua está a definição de enunciação como sendo a necessidade de referir pelo discurso, o que leva a que se veja a referência como parte constitutiva da enunciação. A enunciação é vista como um processo, um ato pelo qual o locutor mobiliza a língua por sua própria conta. É o ato de apropriação da língua que introduz aquele que fala na sua fala. O produto desse ato é o enunciado, cujas características lingüísticas são determinadas pelas relações que se estabelecem entre o locutor e a língua. Assim, a enunciação é o fato do locutor, que se apropria da língua, e das características lingüísticas dessa relação. A enunciação converte a língua em discurso pelo emprego que o locutor faz dela. Desse modo, a língua se semantiza.

Ao se apropriar individualmente do aparelho formal da língua, o locutor enuncia sua posição com marcas lingüísticas específicas. Como tal, ele implanta o outro, o alocutário, diante de si. Cada produção de discurso constitui um centro de referência interna. Nele emergem marcas de pessoa (relação eu-tu), de ostensão, de espaço e de tempo, em que eu é o centro da enunciação. É somente pela enunciação que certos signos passam a existir. É também pelo fato de que o locutor ou enunciador, ao se enunciar, influencia o comportamento do alocutário que tomam sentido as funções sintáticas: a asserção, a interrogação, a intimação e ainda algumas modalidades formais (modos verbais, desejo, etc.). No enunciado surge também o ele, a não-pessoa, o qualquer um ou qualquer coisa de que se fala no discurso.

Com esse texto, pensa-se ter apresentado uma rápida revisão dos aspectos que caracterizam o conceito de enunciação, fundamental na proposta teórica de Émile Benveniste. Para defini-lo, conceitos saussurianos são retomados,

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mas modificados e ultrapassados. Como para o mestre de Genebra, também para Benveniste continuam a existir dois níveis na linguagem, mas entendidos de modos diferentes e não mais dissociados, a noção de relação entre elementos se mantém, constituindo paradigmas e sintagmas, o signo é repensado, o sentido passa a ocupar o lugar principal e o sujeito, excluído da proposta saussuriana, torna-se o centro de referência para a construção do sentido no discurso. Com essas modificações, a lingüística da fala que, no Curso de Lingüística geral ocupa o segundo plano e não é considerado objeto de estudo para o lingüista, passa a ser, a partir da reformulação dos próprios conceitos de Saussure, a Lingüística.

Outras teorias, entretanto, também se ocuparam do uso da linguagem e definiram enunciação. É propósito deste texto trazer apenas uma: a de Oswald Ducrot, criador da Teoria da Argumentação na Língua. Justifica-se a escolha por se tratar de uma teoria que, como a de Benveniste, parte de conceitos estruturalistas saussurianos, também os modifica, amplia, ultrapassa, mas o faz de outro modo.

2 A proposta de Ducrot

A Teoria da Argumentação na Língua é uma teoria estruturalista em que as noções de signo, de relação e de língua e fala têm papel relevante. O signo, na concepção saussuriana, é elemento da língua e só se define pela sua relação com outros signos. Na teoria de Ducrot, o signo é a frase, isto é, estrutura abstrata, criada pelo lingüista, e seu significado é constituído pelas possibilidades de relação semântica que ela apresenta com outras frases. A relação entre frases se produz no enunciado, entendido como um segmento de discurso. Enunciado e discurso têm, pois, um lugar e uma data, um produtor e um ou vários ouvintes. É fato empírico, observável e não se repete. Como se pode perceber, as noções de signo, relação, língua e frase encontram-se subjacentes a esses conceitos, mas modificados. Do ponto de vista semântico, a significação é o valor semântico da frase e sentido, o do enunciado. A significação da frase é de natureza diferente do sentido do enunciado. A significação não preexiste ao uso, ao contrário, é aberta: contém instruções que indicam que tipos de indícios é preciso procurar no contexto lingüístico para se chegar ao sentido do enunciado. Atribui-se a cada frase de uma língua uma significação, ou seja, uma instrução que explica o sentido de seus enunciados no discurso.

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Ducrot (1980) denomina enunciação o acontecimento, o fato que constitui o aparecimento de um enunciado em determinado momento do tempo e do espaço. É um conceito que tem função puramente semântica, sem nenhuma implicação fisiológica ou psicológica. O sentido do enunciado é, para mim, uma descrição, uma representação que ele traz de sua enunciação, uma imagem do acontecimento histórico constituído pelo aparecimento do enunciado (1980: 34). Dizer que um enunciado descreve sua enunciação é dizer que ele se apresenta como produzido por um locutor, designado por diferentes marcas de primeira pessoa, para um alocutário, designado pela segunda pessoa. A enunciação se caracteriza como tendo certos poderes. É isso que leva a ver uma alusão à enunciação em enunciados imperativos, interrogativos, assertivos, etc., que induzem o alocutário a certas obrigações, e que têm origem no aparecimento do enunciado.

A concepção enunciativa tem papel importante na análise do discurso. A idéia fundamental é a de que sempre que se fala se fala de sua fala, ou seja o dito denuncia o dizer (1980: 40). Num momento em que Ducrot ainda partia da pragmática para construir sua teoria (o que foi abandonado), era colocada na enunciação a idéia de que é preciso distinguir o autor das palavras, o locutor, e os agentes dos atos ilocutórios, os enunciadores. Menciona-se esse fato aqui para que seja observado como sua leitura da pragmática já estava sendo conduzida na direção de outra proposta. Se exprimir-se é ser responsável por um ato de fala, explica ele, (1980: 44), então, ao interpretar-se um enunciado, ouve-se uma pluralidade de vozes, outras que não a do locutor. Encontra-se aí o princípio que é desenvolvido, sem a pragmática, o conceito de polifonia.

A criação da Teoria Polifônica da Enunciação, no âmbito da Teoria da Argumentação na Língua, vincula-se a dois fatos. Um é a crítica que Ducrot faz à concepção lingüística da unicidade do sujeito falante, segundo a qual haveria apenas um falante no enunciado. O outro baseia-se na afirmação de que o sentido de um enunciado é a descrição de sua enunciação e nessa descrição está inscrita a pluralidade de vozes que o locutor apresenta. Encontram-se no enunciado várias funções diferentes: a do sujeito empírico, a do locutor e a do enunciador. O sujeito empírico é o autor efetivo do que é produzido. Essa função não interessa ao lingüista que estuda o sentido, ficando o sujeito empírico afeto aos sociolingüistas ou aos psicolingüistas. O locutor é o responsável pelo enunciado, no qual ele se marca

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com a primeira pessoa. O enunciador é a origem dos pontos de vista que o locutor apresenta. Em seu livro publicado em Cali (Colômbia) em 1988, Ducrot lembra que os enunciadores não são pessoas, mas pontos de perspectiva abstratos. O primeiro elemento do sentido é, assim, a apresentação dos pontos de vista dos enunciadores. O segundo é a indicação da posição que o locutor assume em sua relação com eles. Três atitudes são mencionadas em 1988: 66: o locutor ou se identifica com um dos enunciadores e afirma esse ponto de vista, ou dá sua aprovação a outro, sem contudo admitir seu ponto de vista, ou se opõe a outro. A noção de polifonia visa a substituir a semântica horizontal (em que só o resultado da combinação de elementos pode ser assumido) por uma semântica vertical (em que o sentido é a superposição de diferentes vozes que se confrontam). Assim, sob a frase mais elementar pode haver uma espécie de diálogo imaginário (Ducrot, 1997: 18).

Ducrot afirma que os enunciadores são argumentadores. Mas o que significa então argumentar e por que a expressão argumentação na língua? Para se compreender o que é argumentar na Teoria da Argumentação na Língua, é preciso que se diga que ela se opõe às concepções tradicionais de sentido, como a de Karl Bühler, que entende que no enunciado há três tipos de indicações: as objetivas, que representam a realidade, as subjetivas, que mostram a atitude do locutor frente à realidade e as intersubjetivas, que se referem às relações entre o locutor e aquele a quem ele se dirige. Para Ducrot, não há uma parte objetiva no sentido da linguagem, porque ela não descreve diretamente a realidade. Segundo ele, se a descreve, o faz por meio de seus aspectos subjetivos e intersubjetivos. O modo como a realidade é descrita consiste em fazer dela o tema de debate entre indivíduos. Resumindo essa idéia direi que para mim a descrição (ou seja, o aspecto objetivo) se faz através da expressão de uma atitude e através também de um chamado que o locutor faz ao interlocutor (1988: 51). Assim, é pela relação entre locutor e interlocutor se produzem argumentações, ou seja, o locutor interage com seu interlocutor apresentando a este sua posição em relação àquilo de que fala. Os aspectos subjetivo (a posição do locutor) e intersubjetivo (a relação locutor/interlocutor) são unificados e reduzidos ao valor argumentativo dos enunciados. Assim, falar é construir e tratar de impor aos outros uma espécie de apreensão argumentativa da realidade (1988: 14). O valor argumentativo de uma palavra é a orientação que essa palavra dá ao discurso.

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Resta explicar por que a teoria afirma que a argumentação está na língua. É preciso, para essa explicação, que se lembre que, em sua concepção de argumentação, Ducrot opõe-se à concepção tradicional que é aceita nessa área. Segundo essa concepção, conforme o artigo escrito em 1987, publicado no Brasil em 1989, um sujeito falante produz um enunciado A, que indica um fato F, que pode ser verdadeiro ou falso, como argumento para justificar um enunciado C, verdadeiro ou falso dependendo, do fato F, resultando em enunciados do tipo: A logo C, ou C já que A. Nesse modo de entender a argumentação, a língua não tem papel essencial, mas o movimento argumentativo independe da língua, embora esta forneça os conectivos que marcam a relação entre A e C. Ducrot recusa esse esquema porque há frases que indicam o mesmo fato, no entanto conduzem a conclusões contrárias. Constatou, então, em suas análises que a argumentação não está nos fatos, mas no próprio semantismo das palavras da língua. Essa é a primeira forma que assumiu a Teoria da Argumentação na Língua que postula que a força argumentativa de um enunciado deve ser definida como o conjunto de enunciados que podem ser encadeados a ele em um discurso com o conector portanto.

Mas essa forma inicial encontrou problemas e foi substituída pela segunda, que afirma que as possibilidades de argumentação não dependem somente dos enunciados que servem como argumento e conclusão, mas dependem também dos princípios dos quais se serve para colocá-los em relação Esses princípios foram designados com o nome de topoi. A argumentação continua sendo o conjunto de conclusões possíveis, mas o princípio argumentativo garante a passagem do argumento para a conclusão. Percebe-se, então, que a preocupação de Ducrot volta-se agora para a explicação de como se produz a argumentação no enunciado. Mantém-se, porém, a concepção de enunciado como produto das relações de subjetividade do locutor que, ao interagir com seu interlocutor, pela intersubjetividade inerente à linguagem, coloca sua posição sobre a realidade que toma como tema de sua enunciação, produzindo argumentação.

No terceiro momento da teoria, que continua se desenvolvendo em busca principalmente de uma metodologia adequada, o conceito de argumentação é revisto. Trata-se agora da Teoria dos Blocos Semânticos segundo a qual a argumentação não se alicerça na passagem do argumento, que funcionava como justificativa para

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a conclusão, mas em representações unitárias entre um e outro que são o próprio conteúdo dos encadeamentos argumentativos. O argumento influencia o sentido da conclusão ou o contrário, constituindo uma unidade de sentido. É o que Carel (1997) denomina bloco semântico. Argumentar passa a ser, desse modo, convocar blocos lexicais por meio de encadeamentos que exprimem uma qualidade, positiva ou negativa que, junto com o bloco, compõem uma regra. Esses encadeamentos, vistos nesse momento da teoria como blocos semânticos, apresentam-se sob dois aspectos: um normativo em portanto e outro transgressivo em no entanto. Esses dois aspectos pertencem ao mesmo bloco, logo ambos são primitivos, um não deriva do outro; no encadeamento transgressivo, o locutor concede ao aspecto normativo do bloco, mas depois abandona esse movimento argumentativo e afirma uma conclusão negativa. Tornando-se uma semântica lexical, a Teoria dos Blocos Semânticos formula conceitos que dão conta não só das argumentações interna e externa das entidades lexicais em análise como também de suas relações sintagmáticas e paradigmáticas, da predicação do enunciado, etc.

A rápida menção aqui feita às diferentes etapas pelas quais passou até o momento atual a Teoria da Argumentação na Língua parece mostrar que se está diante de reflexões que mantêm a hipótese que a criou: a de que a argumentação está na língua, não nos fatos e, como tal, explica a argumentação a partir da relação entre locutor e interlocutor, por meio da qual o locutor age de certo modo verbalmente sobre seu interlocutor, apresentando um ponto de vista argumentativo sobre um aspecto da realidade, que se torna tema de seu discurso, e ao qual, com base em sua argumentação, atribui um sentido argumentativo. O foco de análise da teoria de Ducrot é, pois, a argumentação, ou seja, as marcas que o locutor, produtor do enunciado, coloca em seu discurso. Essas marcas se apresentam tanto explicitamente, do ponto de vista da relação entre locutor e interlocutor, portanto, tanto entre sujeitos da enunciação quanto entre o locutor e outros sujeitos, os enunciadores, que, em diferentes níveis de implicitação dialogam com o locutor, postulando a não unicidade de sujeitos do enunciado. Então, as relações no discurso, como propõe essa teoria, se estabelecem não apenas entre palavras ou frases, mas igualmente entre discursos. A enunciação é definida por Ducrot como o surgimento do enunciado, tornando-se este o objeto de suas análises, sem contudo se desvincular, em nenhum momento de sua perspectiva enunciativa.

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Para finalizar

É preciso que se reflita sobre a teoria engendrada por Ferdinand de Saussure que, colocando, no início do século XX, os fundamentos da ciência da Lingüística, o fez de modo tão inesperadamente fecundo que ainda hoje não cessou de gerar propostas teóricas tão diversas relativas à Lingüística da Fala, por ele excluída do objeto de estudo da Lingüística. E mais ainda, que o sujeito, o outro excluído, tenha paradoxalmente assumido a importância fundamental que hoje tem nessas teorias. Foi aqui apresentado um dos conceitos básicos de apenas duas dessas teorias. Embora não seja necessário muito esforço para se perceber que elas são distintas, não se pode negar que elas têm algo em comum.

A Teoria Enunciativa de Émile Benveniste, partindo de conceitos saussurianos, não rejeita a distinção entre língua e discurso, ao contrário, as associa, pois, ao situar o sujeito como centro de referência, busca explicar como o aparelho formal da enunciação marca a subjetividade na estrutura da língua. A noção de enunciação é, para Benveniste, centrada no sujeito, que, ao se apropriar do aparelho formal da língua, enuncia sua posição de sujeito, marcando-se como eu, instaurando o tu e o ele em seu discurso. A Teoria de Benveniste focaliza, pois, o sujeito, suas marcas no discurso.

Já a Teoria da Argumentação na Língua propõe não um sujeito da linguagem, mas um eu locutor produtor de discurso para um tu interlocutor. Nessa relação, o locutor marca sua posição, em seu discurso, argumentando em relação ao que está sendo dito. Da construção da argumentação participam não só os elementos verbais explícitos dirigidos ao interlocutor, mas igualmente outros discursos apresentados implicitamente em relação aos quais o locutor toma diferentes atitudes. Essa teoria focaliza, então, a construção da argumentação como modo de enunciação do locutor. Esse modo de enunciação está presente já no sistema da língua, o que se mostra no léxico, nos performativos, na delocutividade. A argumentação transforma as coisas em justificativas de nossas necessidades, desejos ou intenções. Falar, diz Ducrot, é tratar de impor aos outros uma espécie de apreensão argumentativa da realidade (1988, p. 14).

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São, então, teorias distintas, mas que se assemelham sob alguns aspectos. São propostas que têm cada uma a sua especificidade, mas que se inscrevem no contexto maior do uso da linguagem, contemplando os sujeitos e as relações que entre eles se estabelece. Entretanto, não há dúvida de que ambas têm em comum o fato de que partem de conceitos saussurianos, conservando-os parcialmente, mas redefinindo-os, modificando-os. Em decorrência, ou na origem mesma dessas conceituações, encontram-se facilmente duas abordagens diferentes de linguagem, que podem ser definidas, e que se tornariam tema de futuros trabalhos.

Notas

1 Este estudo se inscreve no âmbito do projeto O enunciado no texto, desenvolvido no PPGLetras da PUCRS, de 2003 a 2005, apoiado pelo CNPq com bolsa de Produtividade em Pesquisa.

Referências Bibliográficas

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BENVENISTE, Émile. Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1974, v. 2.

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DUCROT, Oswald. Logique, structure, communication (à propos de Benveniste et Prieto). Paris: Minuit, 1989.

FLORES, Valdir do Nascimento e TEIXEIRA, Marlene. Introdução à Lingüística da Enunciação. São Paulo: Contexto, 2005.

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Enunciação e intersubjetividadeBeth Brait

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - Brasil

A presença do “eu” é constitutiva do nós. (Benveniste, 1946)

... a linguagem é também um fato humano; é, no homem, o ponto de interação da vida mental e da vida cultural e ao mesmo tempo

o instrumento dessa interação. (Benveniste, 1954)

O tempo do discurso nem se reduz às divisões do tempo canônico nem se fecha em uma subjetividade solipsista (...) a condição da

intersubjetividade é que torna possível a comunicação lingüística.(Benveniste, 1965)

Resumo Os lugares em que os conceitos de enunciação e intersubjetividade

são apontados como dando forma à teoria benvenistiana, bem como suas conseqüências para o pensamento lingüístico contemporâneo.Palavras-chave: Benveniste - enunciação - intersubjetividade

AbstractThe contexts where the concepts of enunciation and intersubjectivity are

assigned to provide form to Benveniste’s theory as well as their consequences to contemporary linguisitic thought.Key words: Benveniste - enunciation - intersubjectivity

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1 Porque nós, como Roland Barthes, amamos Benveniste

Émile Benveniste (1902-1976), comparatista, saussureano, especialista em indo-europeu, é, sem dúvida, um dos mais importantes lingüistas nascido no século XX. Isso graças à sua inestimável contribuição para o desenvolvimento dos estudos da linguagem e, ainda, pela maneira como soube conduzir uma reflexão que estabeleceu uma ligação indissociável entre linguagem e ser humano. Da brilhante carreira dedicada especialmente aos estudos iranianos1, à gramática comparada das línguas européias2 e à lingüística geral, alguns momentos decisivos devem ser destacados: em 1922 tornou-se professor efetivo de gramática; de 1927 a 1969 ensinou gramática comparada do indo-europeu e iraniano na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, como sucessor de Antoine Meillet; em 1935, defendeu seu doutorado em Letras; de 1934 a 1936 esteve no Collège de France como suplente de Antoine Meillet e, a partir de 1937, torna-se professor titular nessa renomada instituição.

Considerando o conjunto das publicações do autor e o tema deste ensaio - enunciação e intersubjetividade -, seria natural explorar, de imediato, o texto “Aparelho formal da enunciação”, que apareceu na revista Langages 17, em 1970, foi republicado em Problèmes de Lingüistique Generale II em 1974 e que, de uma certa forma, sintetiza a teoria enunciativa benvenistiniana. Esse é o trabalho com o qual Benveniste ganha prestígio e reconhecimento junto aos lingüistas, especialmente por sua contribuição decisiva para uma perspectiva enunciativa da linguagem. Se pelos estudos dedicados ao indo-europeu Benveniste foi reconhecido como um grande especialista, desde seus primeiros trabalhos, o reconhecimento como especialista em lingüística geral veio somente no final da década de 60, começo da década 70 do século passado. É provável que isso se deva, como já apontaram vários estudiosos, ao fato de que seus estudos de lingüística geral foram produzidos ao longo de quatro décadas (de 1939 a 1972), circulando e sendo publicados nos meios filosóficos e psicanalíticos.

Há outras conjecturas a esse respeito, talvez mais condizentes com a especificidade do pensamento lingüístico de Benveniste. Num texto intitulado “Benveniste: a exceção francesa” (1994), François Dosse lembra que a crise do

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estruturalismo começa em 1966, momento em que se dá o avanço do gerativismo e, ao mesmo tempo, a progressão de uma lingüística da enunciação. Nesse sentido, para ele e para vários outros lingüistas e historiadores da lingüística, Benveniste, embora tenha desempenhado um papel importante no que diz respeito aos estudos lingüísticos, permaneceu de uma certa maneira subterrâneo até o final dos anos 60. Sua teoria da enunciação, de fato, abriu uma brecha no estruturalismo, mas não encontrou receptividade, a não ser no final dos anos sessenta, justamente porque sujeito, até aquele momento, era uma categoria que não fazia parte das preocupações lingüísticas. E, curiosamente, a grande importância de Benveniste para a Lingüística Geral reside, precisamente, no fato de ter introduzido, no centro das preocupações lingüísticas, a questão do sujeito, a partir de uma abordagem enunciativa da linguagem.

Portanto, esse trabalho inovador começa bem antes da publicação do artigo “Aparelho formal da enunciação”. Por essa razão, o objetivo deste estudo é localizar os trabalhos que precedem esse artigo e que preparam e fundamentam a teoria enunciativa que está aí sistematizada.

2 Perseguindo o sujeito constituído na e pela linguagem

É somente em 1966 e 1974 que os trabalhos sobre lingüística geral são agrupados e permitem observar a coerência e a profundidade com que Benveniste estudou a linguagem, criando uma teoria da enunciação que possibilitou a reintegração do sujeito e da subjetividade nos estudos lingüísticos, bem como um considerável avanço em direção aos estudos do discurso. Em Problemas de lingüística geral I e II é possível observar, dentre outras coisas, a forma como a concepção da linguagem, da perspectiva da enunciação e do discurso, envolve subjetividade e intersubjetividade de maneira constitutiva. Publicado em dois volumes - o primeiro em 1966 e o segundo em 1974 - Problemas de lingüística geral reúne quarenta e seis estudos e duas entrevistas e constitui um expressivo conjunto para a compreensão das relações existentes entre língua, enunciação, discurso, sujeito, subjetividade, intersubjetividade e diálogo.

Esse conjunto foi selecionado a partir de trabalhos que o autor desenvolveu

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do final da década de 30 até os anos 70. Os artigos, assim como as duas entrevistas, apresentam reflexões originais sobre especificidades lingüísticas voltadas, por exemplo, para os verbos e para os pronomes. Ao mesmo tempo, há discussões que problematizam as interfaces verificadas entre biológico e cultural, subjetividade e sociabilidade, signo e objeto, símbolo e pensamento, língua e suas realizações.

Aqui, a idéia é localizar e alinhavar momentos em que Benveniste funda sua teoria da enunciação, deflagrando a questão do sujeito, da subjetividade, do discurso e da intersubjetividade, aspectos considerados por ele como constitutivos da linguagem. E isso se dá a partir da década de 40, quando, pela primeira vez, essas categorias começam a ganhar espaço em suas reflexões.

Um dos primeiros momentos do aparecimento da questão do sujeito e da abordagem enunciativa pode ser localizado em “Estrutura das relações de pessoa no verbo”, texto que apareceu no Bulletin de la Societé de Linguistique, XLIII, fascículo 1, nº 126, 1946, e que está reproduzido em Problemas de lingüística geral I3. Nesse trabalho, feito a partir de um estudo sobre o coreano, Benveniste afirma que, entre outras coisas, “há um caráter indissociável da noção de pessoa e verbo, seja qual for a língua”. Essa afirmação é justamente um dos aspectos da reflexão sobre algumas das categorias que vão fundamentar sua teoria da enunciação. Esse é o texto em que, ao menos do ponto de vista de uma lingüística geral, ele distingue as pessoas “eu”/“tu”da não pessoa “ele” e insere dois termos que interessam a este trabalho: intersubjetividade e diálogo:

Ao par eu/tu pertence particularmente uma correlação especial, a que chamaremos, na falta de uma expressão melhor, correlação de subjetividade. O que diferencia ‘eu’ de ‘tu’ é, em primeiro lugar, o fato de ser, no caso de ‘eu’ interior ao enunciado e exterior a ‘tu’, mas exterior de maneira que não suprime a realidade humana do diálogo (1988: 255).

É, portanto, no momento em que trata dos pronomes “eu” e “tu” como sendo pessoas que se caracterizam pela sua “unicidade específica – o “eu” que enuncia, o “tu” ao qual o “eu” se dirige [e que] são cada vez únicos”, que Benveniste vai falar de uma correlação intersubjetiva, dando uma primeira pista para que

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se possa compreender a dimensão que intersubjetividade, termo que ele mesmo coloca em itálico, um tanto sob suspeita, vai ganhar em sua teoria da enunciação. Nesse momento, e em vários outros, intersubjetividade aparece como uma categoria constitutiva do diálogo. O diálogo, por sua vez, consubstancia-se aí como “uma realidade humana”. Sem dúvida, de alguma maneira bastante forte, Benveniste está abordando as formas lingüísticas de uma nova perspectiva, dando-lhes uma dimensão que elas ainda não tinham experimentado, ou seja, uma dimensão que implica sujeitos enunciando-as e enunciando-se a partir delas.

Na década de 50, um outro trabalho retoma essas questões. Num belíssimo texto intitulado “Comunicação animal e comunicação humana”, que apareceu na revista Diogène I, em 1952, e que está reproduzido em PLG I4, mais uma vez a questão do diálogo é retomada como uma condição da linguagem humana. Mesmo falando em comunicação e mensagem, o que poderia apontar para uma teoria da comunicação um tanto mecanicista, Benveniste extrapola esse reducionismo ao comparar a sofisticada linguagem das abelhas com a linguagem humana. Embora capaz de produzir mensagens que podem ser compreendidas e comunicadas, a linguagem das abelhas não implica o diálogo, não implica a enunciação, não implica sujeitos.

Uma diferença capital aparece também na situação em que se dá a comunicação. A mensagem das abelhas não provoca nenhuma resposta do ambiente mas apenas uma certa conduta. Isso significa que as abelhas não conhecessem o diálogo, que é a condição da linguagem humana. Falamos com outros que falam, essa é a realidade humana (1988: 65).

Na década de 50, mais um texto merece atenção no que diz respeito à enunciação e à intersubjetividade. Trata-se de “Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana”, que foi publicado na revista La psychanalyse, em 1956, e que está reproduzido em PLG I5. O que interessa aqui não são as restrições feitas às teorias freudianas, o destaque a Lacan ou as distinções entre a linguagem dos sonhos e a linguagem cotidiana. O que deve ser considerado é o fato de Benveniste se ater à questão do discurso e do sujeito e, conseqüentemente, apontar para as implicações dessas categorias tanto para a Psicanálise como para

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os estudos da linguagem de uma maneira geral. Há vários trechos, por vezes parafraseados de Freud, que merecem destaque nesse sentido. Na verdade eles induzem a uma leitura mais cuidadosa desse texto, especialmente no diz respeito a uma teoria da benvenistiniana da enunciação, explicitamente em construção.

Ainda que esse seja um texto que dizem ter sido encomendado por Lacan, que naquele momento estava interessado não apenas na Lingüística e na releitura de Saussure, mas também em atrair a atenção dos lingüistas, as escolhas feitas por Benveniste para discutir a Psicanálise e o papel que a linguagem desempenha na relação analista/paciente vão além de um simples interesse, de uma leitura casual. Ele, de fato, estabelece um forte diálogo com a Psicanálise de forma a prever para a Lingüística as questões da enunciação.

Observe-se um primeiro trecho:

(...) o analista opera sobre o que o sujeito diz. Considera-o nos discursos que este lhe dirige, examina-o no seu comportamento locutório, “fabulador”, e através desses discursos se configura lentamente para ele outro discurso que ele terá o encargo de explicitar, o do complexo sepultado no inconsciente. Assim, do paciente ao analista e do analista ao paciente o processo inteiro opera-se por intermédio da linguagem (1988: 82).

Se, como um todo, o trecho aponta para a questão do sujeito que fala/diz, para a dimensão da enunciação, é possível destacar as seguintes seqüências: “o que o sujeito diz”; “nos discursos”; “comportamento locutório, ‘fabulador’”; “o processo inteiro opera-se por intermédio da linguagem”.

Num outro trecho, outras afirmações apontam para uma teoria enunciativa, envolvendo linguagem e sujeito: “os acontecimentos empíricos não têm realidade para o analista a não ser no – e pelo – “discurso”; “a relação do analista ao sujeito, a do diálogo”; “discurso concreto enquanto realidade transindividual do sujeito”.

De fato, se ele precisa de que o paciente lhe conte tudo (...) é porque os acontecimentos empíricos não têm realidade para o analista a não ser no

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– e pelo – “discurso”, que lhes confere a autenticidade da experiência, sem consideração de sua realidade histórica, e mesmo (é preciso dizer: sobretudo) que o discurso evite, transponha ou invente a biografia que o sujeito se atribui. A dimensão constitutiva dessa biografia consiste no fato de ser verbalizada e, assim, assumida por aquele que fala de si mesmo; a sua expressão é a da linguagem; a relação do analista ao sujeito, a do diálogo (...) Na sua brilhante tese sobre a função da linguagem na psicanálise, o doutor Lacan diz sobre o método analítico (p. 103): “Os seus meios são os da palavra na medida em que essa confere às funções do indivíduo um sentido; o seu domínio é o do discurso concreto enquanto realidade transindividual do sujeito; as suas operações são as da história, na medida em que essa constitui a emergência da verdade do real. (1988: 83).

Mais adiante, no mesmo texto, há um forte destaque para a relação entre palavra e subjetividade; para o discurso e a palavra como instancias de representação do sujeito e do outro; para a alocução que instala o eu e o outro; para a subjetividade como condição do diálogo; para o fato de que a língua fornece os instrumentos e se sujeita, enquanto palavra, a fins individuais e intersubjetivos; para a distinção entre língua e discurso; para antinomia que se estabelece no sujeito entre língua e discurso.

Pode-se, a partir dessas definições justas e, em primeiro lugar, da definição introduzida entre os meios e o domínio, tentar delimitar as modalidades da ‘linguagem’ que estão em jogo.Em primeira instância, encontramos o universo da palavra, que é o da subjetividade. Ao longo das análises freudianas, percebe-se que o sujeito se serve da palavra e do discurso para representar-se a si mesmo, tal como quer ver-se, tal como chama o ‘outro’ a comprovar (...) Pela simples alocução, aquele que fala de si mesmo instala o outro nele e dessa forma se capta a si mesmo, se confronta, se instaura tal como aspira a ser, e finalmente se historiza nessa história incompleta ou falsificada. (...) A linguagem, assim, é utilizada aqui como palavra, convertida nessa expressão da subjetividade iminente e evasiva que constitui a condição do diálogo. A língua fornece o instrumento de um discurso no qual a personalidade do sujeito se liberta e se cria, atinge o outro se faz reconhecer por ele. Ora, a língua é uma estrutura socializada, que a palavra sujeita a fins individuais e intersubjetivos, juntando-lhe assim um perfil novo e estritamente pessoal. A língua é um sistema comum a todos; o discurso é ao mesmo tempo portador de uma mensagem e instrumento de ação. Nesse sentido, as configurações das palavras são cada vez únicas, embora se realizem no interior – e por intermédio – da linguagem. Há pois antinomia no sujeito entre o discurso e a língua (1988: 84).

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Também aparece em 1956, em For Roman Jakobson, Haia, Mouton & Co, um texto fundamental para o estudo da enunciação e da intersubjetividade, intitulado “A natureza dos pronomes”, que está reproduzido em PLG I6. Esse estudo exemplar e refinado no que diz respeito à língua, à enunciação e ao discurso, é um dos momentos em que Benveniste estabelece um diálogo com a pragmática, mas não é o único, uma vez que também a filosofia analítica dos atos de fala é considerada por ele7. No estudo sobre a natureza dos pronomes, é com Charles Morris e sua Pragmática ou teoria filosófica da ação que Benveniste dialoga, como se pode confirmar no seguinte trecho: “O enunciado que contém eu pertence a esse nível ou tipo de linguagem a que Charles Morris chama pragmático, e que inclui, com os signos, aqueles que o empregam” (PLG I: 278).

Entretanto, a dimensão “pragmática” a que se refere Benveniste aponta para uma direção totalmente diferente da que foi trilhada pela teoria dos atos de fala e pela pragmática semântica, como se pode observar no texto todo, mas especialmente nos trechos transcritos a seguir.

Qual é, portanto, a realidade à qual se refere eu ou tu? Unicamente uma realidade de discurso, que é coisa muito singular (PLG I: 278).

Assim, pois, é ao mesmo tempo original e fundamental o fato de que essas formas “pronominais” não remetem à “realidade” nem a posições “objetivas” no espaço ou no tempo, mas à enunciação, cada vez única, que as contém, e reflitam assim o seu próprio emprego. A importância de sua função se comparará à natureza do problema que servem para resolver, e que não é senão o da comunicação intersubjetiva. (...) O seu papel consiste em fornecer o instrumento de uma conversão, a que se pode chamar a conversão da linguagem em discurso. (1988: 280).

Concentrando-se no funcionamento das formas “pronominais”, ele mais uma vez dá seqüência a aspectos fundamentais para sua teoria da enunciação, para a forma como o sujeito e intersubjetividade são aí concebidos. Nesse trabalho, Benveniste afirma, e demonstra, que a especificidade dessas formas lingüísticas encontra-se no fato de que elas remetem sempre à enunciação. E que a enunciação, diferentemente da língua, é cada vez única, contendo e refletindo o emprego das formas. Mais que isso: vincula explicitamente a enunciação à intersubjetividade

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própria da comunicação.

Evidentemente, sendo esse texto uma das chaves para a compreensão da teoria enunciativa proposta por Benveniste (eu, aqui agora), é possível reconhecer que sujeito e intersubjetividade assumem uma maneira muito especial de ser: “É identificando-se como pessoa única pronunciando eu que cada um dos locutores se propões alternadamente como ‘sujeito’” (1988: 281).

Dois anos depois, 1958, aparece no Journal de psychologie o texto “Da subjetividade na linguagem”, essencial para a compreensão da teoria enunciativa de Benveniste, que também está presente em PLG I8. De forma contundente e original, novamente dentro de uma perspectiva que é marcadamente enunciativa, Benveniste discute, dentre outras coisas, porque a linguagem não pode ser tomada como um instrumento: “Falar de instrumento é colocar em oposição o homem e a natureza (...) A linguagem está na natureza do homem (...) Não atingimos nunca o homem separado da linguagem” (1988: 285). A partir dessa afirmação essencial, e justamente para configurá-la, ele vai novamente retomar a questão dos pronomes pessoais e da dêixis em geral para explicitar a dimensão subjetiva da linguagem. É também nesse texto que ele apresenta a oposição entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação.

Mais uma vez, o artigo como um todo, e cada um de seus enunciados, aponta

para algo novo, justamente para aspectos que abrem brechas no estruturalismo, na lingüística como sendo unicamente o estudo da língua como sistema abstrato.

Estão destacados, a seguir, trechos que de alguma maneira apontam novamente para: um diálogo com a psicanálise; definem como o sujeito é concebido a partir de uma teoria enunciativa da linguagem; articulam linguagem e subjetividade; dimensionam língua / enunciação / discurso; retomam a idéia de intersubjetividade.

É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ‘ego’.

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A ‘subjetividade’ de que tratamos aqui é a capacidade do locutor para se propor como ‘sujeito’. (...) Ora, essa ‘subjetividade’, quer a apresentemos em fenomenologia ou em psicologia, como quisermos, não é mais que a emergência no ser de uma propriedade fundamental da linguagem. É o ‘ego’ que diz ego. Encontramos aí o fundamento da ‘subjetividade’ que se determina pelo status lingüístico da ‘pessoa’ (1988: 286).

A consciência de si mesmo só é possível se experimentada por contraste. Eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém, que será um tu. Essa condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade – que eu me torne tu na alocução daquele que por sua vez se designa eu. (...) A polaridade das pessoas é na linguagem a condição fundamental, cujo processo de comunicação, de que partimos, é apenas uma conseqüência totalmente pragmática (1988: 286).

É na instância do discurso na qual eu designa o locutor que este se enuncia como sujeito. É portanto verdade ao pé da letra que o fundamento da subjetividade está no exercício da língua (...) A linguagem é, pois, a possibilidade de subjetividade, pelo fato de conter sempre as formas lingüísticas apropriadas a sua expressão; e o discurso provoca a emergência da subjetividade, pelo fato de consistir de instâncias discretas (1988: 288-289).

A enunciação identifica-se com o próprio ato. Essa condição, porém, não se dá no sentido do verbo: é a ‘subjetividade’ do discurso que a torna possível. (...) Muitas noções na lingüística, e talvez na psicologia, aparecerão sob uma luz diferente se as estabelecermos no quadro do discurso, que é a língua enquanto assumida pelo homem que fala, e sob a condição de intersubjetividade, única que torna possível a comunicação lingüística (1988: 292-293).

Em 1965, um outro trabalho dá continuidade, por assim dizer, ao estudo das categorias que fundamentam a teoria enunciativa desenvolvida por Benveniste. Trata-se de “A linguagem e a experiência humana”, publicado na revista Diogène nº 51 e reproduzido em PLG II9. Segundo o autor, “Das formas lingüísticas reveladoras da experiência subjetiva, nenhuma é tão rica como aquelas que exprimem o tempo, nenhuma é tão difícil de explorar, a tal ponto estão arraigadas as idéias preestabelecidas, as ilusões de bom senso, as armadilhas do psicologismo”. Esse estudo, consagrado à categoria tempo, retoma a questão da presença da subjetividade na linguagem, considerada a partir da enunciação. E isso se faz de uma maneira profunda e inovadora e, retomando também a questão da intersubjetividade, como se observa nos trechos transcritos a seguir:

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O tempo do discurso nem se reduz às divisões do tempo crônico nem se fecha em uma subjetividade solipsista. Ele funciona como um fator de intersubjetividade, o que de unipessoal ele deveria ter o torna onipessoal. A condição de intersubjetividade é que torna possível a comunicação lingüística (1989: 78).

A intersubjetividade tem assim sua temporalidade, seus termos, suas dimensões. Por aí se reflete na língua a experiência de uma relação primordial, constante, indefinidamente reversível, entre o falante e seu parceiro. Em última análise, é sempre ao ato de fala no processo da troca que remete a experiência humana inscrita na linguagem (1989: 80).

Em 1969, aparece “Semiologia da língua”, texto publicado em Semiótica, I, Moutoun & Co., republicado em PLG II10. Nele Benveniste vai sistematizar a relação entre língua e discurso, entre enunciado e enunciação, entre signo e palavra, entre reconhecimento e compreensão, apresentando, dentre outras coisas, a produtiva concepção de dupla significância. Por meio desse conceito, ele vai diferenciar um modo próprio de significação do signo, em estado de língua, e um outro modo de significação, engendrado pelo discurso. O primeiro nível, por assim dizer, é identificado pelo falante, enquanto que o outro, que não exclui o primeiro, é compreendido: “É preciso compreender que a língua comporta dois domínios distintos, cada um dos quais exige seu próprio aparelho conceptual” (1989: 67). E propõe, finalizando o texto, que considerada a dupla significação constitutiva da linguagem humana, “é necessário ultrapassar a noção saussuriana do signo como princípio único, do qual dependeria simultaneamente a estrutura e o funcionamento da língua” (1989: 67).

Parece natural que, a partir desse conjunto de proposições em torno de uma perspectiva enunciativa da linguagem, Benveniste fizesse vir à luz o texto “O aparelho formal da enunciação”, publicado em 1970 na revista Langages, e que também faz parte de PLG II11. Sem dúvida, um dos mais conhecidos estudos de Benveniste, esse texto explicita as condições de emprego das formas da língua e caracteriza a enunciação como um movimento vivo da língua e se de seus sujeitos, que se realiza nas situações concretas de comunicação. Essa síntese de sua teoria enunciativa abre caminho para os estudos do sujeito e do discurso e é utilizada sempre que há necessidade de trabalhar as materialidades lingüísticas que

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configuram textos e discursos.Assim sendo, estão destacados a seguir alguns dos trechos que definem a

perspectiva benvenistiana da relação língua, discurso, enunciação, passando por seu conceito de sujeito que, sem se confundir com o sujeito histórico ou com o psicanalítico, permite considerar as ancoragens lingüísticas da subjetividade e da intersubjetividade. Um avanço incalculável para os estudos lingüísticos dos anos 70, com fortes ressonâncias em outras ciências humanas.

A enunciação é esse colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização. (...) A enunciação supõe a conversão individual da língua em discurso (1989: 82-83).

Na enunciação consideraremos, sucessivamente, o próprio ato, as situações em que ele se realiza, os instrumentos de sua realização. O ato individual pelo qual se realiza a língua introduz em primeiro lugar o locutor como parâmetro nas condições necessárias de enunciação. enquanto realização individual, a enunciação pode se definir, em relação à língua, como um processo de apropriação. (...) Mas imediatamente, desde que ele se declara locutor e assume a língua, ele implanta o outro diante de si, qualquer que seja o grau de presença que ele atribua a este outro (1989: 83-84).

O que em geral caracteriza a enunciação é a acentuação da relação discursiva com o parceiro, seja este real ou imaginário, individual ou coletivo (1989: 87).

Esta característica coloca necessariamente o que se pode denominar o quadro figurativo da enunciação. Como forma de discurso, a enunciação coloca duas ‘figuras’ igualmente necessárias, uma, origem, a outra, fim da enunciação. É a estrutura do diálogo. Duas figuras na posição de parceiros são alternativamente protagonistas da enunciação (1989: 87).

Para finalizar, é preciso reafirmar que a proposta de Benveniste relacionada às formas de presença da subjetividade na linguagem, assim como a intersubjetividade que caracteriza o diálogo e o sujeito que se constitui na e pela linguagem, dizem respeito a questões que implicam a produção do sentido, dimensão da linguagem humana perseguida por diferentes teorias do discurso. E é com uma fala de Benveniste que este estudo ganha um ponto final:

É na prática social, comum no exercício da língua, nesta relação de comunicação inter-humana que os traços comuns de seu funcionamento deverão ser

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descobertos, pois o homem é ainda e cada vez mais um objeto a ser descoberto, na dupla natureza que a linguagem fundamenta e instaura nele (1989:104).

Notas

1 Alguns estudos voltados para o iraniano antigo, medieval e moderno: Essai de grammaire sogdienne, vol. 2: morphologie, syntaxe et glossaire (1929); Les infinitifs avestiques (tese complementar, 1935); Études sur la langue ossète (1959); Titres et noms propres em iranien ancien (1966).2 Dos trabalhos sobre as línguas indo-européias destacam-se: Origine de la formation des noms em indo-européen (tese principal, 1935); Noms d’agent et noms d’action en indo-européen (1948); Hittite et indo-européen (1962); Le vocabulaire des institutions indo-européennes (1969).3 Benveniste (1988) “Estrutura das relações de pessoa no verbo”, p. 260-276. 4 Benveniste (1988) “Comunicação animal e comunicação humana”, p. 60-67.5 Benveniste (1988) “Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana”, p. 81-94.6 Benveniste (1988) “A natureza dos pronomes”, p. 277-293.7 Ver texto “A filosofia analítica e a linguagem”, que apareceu em Lês études philosophiques, nº. 1, 1963, e foi republicado em está Problemas de Lingüística Geral I, p. 294-305. 8 Benveniste (1988) “Da subjetividade na linguagem”, p. 284-293.9 Benveniste (1989) “A linguagem e a experiência humana”, p. 68-80. 10 Benveniste (1989) “semiologia da língua”, p. 43-67.11 Benveniste (1989) “O aparelho formal da enunciação”, p. 81- 90.

Referências Bibliográficas

BENVENISTE, E. Problemas de Lingüística Geral I. Trad. Maria da Glória Novak e Maria Luiza Néri. 2ed. Campinas: Pontes, 1988. (1ª edição francesa 1966)

BENVENISTE, E. Problemas de Lingüística Geral II. Trad. Eduardo Guimarães et alii. Campinas: Pontes, 1989. (1ª edição Francesa 1974).

BRAIT, Beth (1994) La réception d’Émile Benveniste au Brésil: quelques aspects. In: Língua e Literatura, nº 21, São Paulo: FFLCH/USP, pp. 199-215.

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DESSONS, Gérard (1993) Émile Benveniste. Paris: Bertrand-Lacoste, 1993.

DOSSE, François História do estruturalismo: o canto do cisne, de 1967 a nossos dias (2). Trad. Álvaro Cabral. Campinas: UNICAMP, São Paulo: Editora Ensaio, 1994.

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Enunciação e gramática:o papel das condições de emprego da língua

Luiz Francisco DiasUniversidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte - Brasil

Resumo Para produzir especificidade ao conceito de enunciação no trabalho com a

gramática, reformulam-se aspectos da relação entre plano da organicidade e plano do enunciável, como suporte teórico das reflexões sobre sintaxe do complemento verbal.Palavras-chave: enunciação - gramática - sintaxe do complemento verbal

AbstractIn order to confer specificity to the concept of enunciation in grammar,

some aspects concerning the relation between the organizing and the enunciatory dimensions are redefined as a means of lending theoretical support for the reflections regarding the syntax of verbal complement.Key words: enunciation - grammar - verbal complement

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Introdução

Dentre os textos que marcaram a obra de Benveniste, “O aparelho formal da enunciação”, artigo publicado originalmente em 1970 na França, e em 1989 no Brasil, ainda guarda detalhes a serem explorados. Efetivamente, pela densidade do texto, vários aspectos merecem ser revisitados. Por esse caminho, podemos encontrar melhores ângulos de apreciação da língua, através do primado da enunciação, como previu Benveniste. No presente trabalho, vamos abordar a relação entre enunciação e gramática. Tomaremos como nosso principal ângulo de apreciação a distinção que o autor faz no inicio de seu artigo entre condições de emprego das formas e condições de emprego da língua. Quanto à abordagem teórica adotada por Benveniste, vamos efetivamente tomar a enunciação como condição básica para refletir sobre a língua. No entanto, vamos desenvolver aspectos da dimensão enunciativa que talvez escapem aos parâmetros da abordagem desenvolvida no conjunto do pensamento de Benveniste.

Inicialmente, vamos apresentar a distinção entre condição de emprego das formas e condição de emprego da língua, acima referida. Logo após, daremos uma formulação ao conceito de enunciação, explorando aspectos do estudo da referência a partir desse conceito. E no sentido de produzir uma especificidade ao conceito de enunciação no trabalho com a gramática, formularemos aspectos da relação entre plano da organicidade e plano do enunciável. Concentraremos aqui o suporte teórico das nossas reflexões sobre a sintaxe do complemento verbal. Finalmente, vamos trabalhar com a diferença entre predicação centrada e predicação dirigida, focalizando a transitividade verbal, na ótica de uma semântica da enunciação.

1 Uma distinção básica

Segundo Benveniste, o “emprego das formas” está relacionado às regras que fixam as condições pelas quais as formas podem ou devem aparecer. Uma breve análise do lugar sintático objeto direto pode nos mostrar isso que Benveniste denominou de condições de emprego das formas.

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(1) Paulo fez a moldura do quadro(2) Carlos fez uma cara de inocente...(3) Sandra fez seguro de vida(4) Sofia fez uma leitura original de Dom Casmurro

As ocorrências de (1) a (4) contêm sentenças com o verbo fazer. Na análise sintática, os trechos destacados indicam a ocorrência do objeto direto. O que nos levou a essa afirmação? Em outros termos, qual a condição para que tenhamos objeto direto numa sentença? Talvez pudéssemos dizer algo como o seguinte: se uma parte da sentença expressa o resultado da ação verbal, podemos destacar essa parte como objeto direto na sentença. Parece que temos uma razoável segurança para dizer que, em (1), “a moldura do quadro” seja efetivamente o resultado da ação que se realizou com o verbo fazer. Talvez não tenhamos a mesma certeza quando avançamos de (2) para (4). Com efeito, se uma moldura de quadro é algo que se apresenta aos nossos sentidos como algo concreto, bem delineado, como algo que passou a existir após a ação expressa pelo verbo, um seguro de vida ou uma leitura original de um livro não se deixam apreender com a mesma capacidade de delineamento, na condição de resultado da ação do verbo. Certamente, contribui para essa incerteza o fato do verbo fazer apresentar amplas variações de significação. Uma rápida consulta ao dicionário nos forneceria uma indicação dessa abundância de trajetos de significação que se alojam no verbo fazer. Voltaremos a explorar essa questão no presente texto.

Vimos um dos elementos que poderia funcionar como condição para a ocorrência de objeto direto. Mas, além do problema levantado acima, nem todos os verbos expressam ação.

(5) Pedro sentiu medo(6) Sofia quer justiça

Nessas ocorrências, não podemos conceber o objeto como resultado da ação expressa pelo verbo, justamente porque os verbos sentir e querer não são verbos de ação.

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Podemos, no entanto, levantar elementos de ordem morfológica como condição de emprego das categorias lingüísticas. Ainda no âmbito da transitividade verbal, um dos elementos de base para a ocorrência do objeto direto é a constituição de um sintagma nominal ou pronominal. Isso significa que o núcleo do sintagma que constitui o objeto direto é um substantivo ou um pronome. Efetivamente, nas ocorrências de (1) a (6), temos substantivos (moldura, cara, seguro, leitura, medo e justiça) como núcleos dos sintagmas “a moldura do quadro”, “uma cara de inocente”, “um seguro de vida” e “uma leitura original de Dom Casmurro”, respectivamente. Em (5) e (6), os sintagmas com função objeto se constituem unicamente dos seus núcleos. Em (7B), abaixo, o núcleo do sintagma é constituído por um pronome (elas):

(7) A. Paulo fez estas molduras. E quem fez aquelas? B. Paulo fez todas elas.

Se essa é uma condição para a ocorrência de um objeto direto, teríamos que concentrar esforços na explicação de ocorrências como estas:

(8) Sofia fez bonito na festa(9) Marlene fez muito por Carla

Ocorrências como essas são desafiadoras para aquelas que circunscrevem a sua análise apenas nas condições de emprego das formas. Voltaremos a essa questão mais adiante.

Podemos ainda vislumbrar uma outra condição para a ocorrência de objeto direto: a não concordância com o verbo. Vejamos:

(1a) Paulo e Roberto fizeram a moldura do quadro(2a) Carlos e Marlene fizeram uma cara de inocente...(3a) Sandra e Renan fizeram seguro de vida(4a) Sofia e Pedro fizeram uma leitura original de Dom Casmurro

Como podemos observar, os verbos nas ocorrências de (1a) a (4a) estão

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no plural, manifestando concordância com os sintagmas que os precedem. Por sua vez, os sintagmas em destaque, ocupando lugar de objeto direto, não são afetados pela variação de número ocorrida na forma verbal, que desencadeia o fenômeno da concordância. Porém, é preciso que ressaltemos o seguinte: essa condição não se aplica apenas ao objeto direto.

(1b) Paulo e Roberto fizeram a moldura do quadro no ateliê de Pedro

O sintagma “no ateliê de Pedro” não se configura como objeto direto, e também não manifesta concordância com a forma verbal. Nesse caso, a determinação do sintagma pela preposição “em” será uma condição essencial para a configuração desse sintagma como adjunto adverbial.

Vimos alguns aspectos relativos àquilo que Benveniste denominou de condições de emprego das formas, através da focalização do objeto direto. Vejamos agora aspectos do que ele denominou de condições de emprego da língua.

Segundo Benveniste, o emprego da língua está relacionado a um “mecanismo total e constante que, de uma maneira ou de outra, afeta a língua inteira. A dificuldade é apreender este grande fenômeno, tão banal que parece se confundir com a própria língua, tão necessário que nos passa despercebido” (p. 82). O fenômeno a que ele se refere é a enunciação, ou seja, o fato de se “colocar em funcionamento a língua”. Se o emprego das formas é algo relativo unicamente à constituição orgânica da língua, o emprego da língua é algo constituído na relação entre o locutor e a língua. Essa relação, no entender de Benveniste, produz marcas lingüísticas, que ele denominou de “caracteres lingüísticos da enunciação”. Por isso, ele trabalhou o conceito de enunciação no aparelho formal da realização da língua, a qual, para Benveniste, só é realizada quando “o locutor se apropria do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de locutor” (p. 84). Os pronomes pessoais e demonstrativos, os advérbios de tempo e lugar, os tempos verbais, adquirem o estatuto de “indivíduos lingüísticos”, pois nascem de uma enunciação, isto é, “são engendrados de novo cada vez que uma enunciação é proferida, e cada vez eles designam algo novo” (p. 85). Ainda nos termos de Benveniste, “o ‘eu’, o ‘aquele’, o ‘amanhã’ da descrição gramatical não são senão os ‘nomes’

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metalingüísticos de eu, aquele, amanhã produzidos na enunciação” (p. 86). Esses indivíduos lingüísticos, constitutivos do aparelho formal da língua, denunciam a presença do locutor em sua própria enunciação, e dessa forma acolhem um centro de referência interno, ou seja, através desse aparelho, podemos flagrar a apreensão da língua pelo locutor, que assim pode se referir a si mesmo, ao seu interlocutor, ao tempo e ao espaço da enunciação, etc. Por isso, Benveniste afirma que a referência é parte integrante da enunciação.

Além de ser diretamente responsável pelas classes de signos aludidas acima, que ela “promove à existência”, a enunciação atua em outro nível da língua. Nos termos de Benveniste, “além das formas que comanda, a enunciação fornece as condições necessárias às grandes funções sintáticas” (p. 86). Nesse ponto do texto, Benveniste não desenvolveu os aspectos que envolvem toda a complexidade da sua afirmação. E é nesse ponto que vamos centrar as nossas reflexões sobre a função sintática “objeto direto”. Antes disso, vamos trabalhar sucintamente a relação entre enunciação e referência.

2 Enunciação e referência

O problema da referência adquire um papel importante no nosso trabalho. Especificamente, vamos partir da hipótese de que a constituição da referência não é algo da relação entre a linguagem e o real, e nem algo restrito ao gesto singular do sujeito na locução. Nesse aspecto, a nossa abordagem produz um redimensionamento da idéia de Benveniste, relativa à apreensão da língua pelo indivíduo, como vimos acima. Na nossa perspectiva, a referência se constitui na relação entre o acontecimento do dizer e o domínio histórico da constituição desse acontecimento (Guimarães, 1995). A enunciação, portanto, é concebida, nessa abordagem, a partir da relação entre o presente do acontecimento do enunciado e as condições históricas que o sustentam. O fato de assumir um lugar de sujeito nesse domínio histórico permite a ele (sujeito) igualmente assumir perspectivas de constituição de recortes de significação. Assim, o objeto referido é, antes de tudo, um objeto constituído no gesto de significação, isto é, um objeto historicamente delimitado no acontecimento enunciativo.

Tendo em vista esse quadro, trabalhamos com a idéia segundo a qual a

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constituição do lugar sintático denominado de objeto direto se desenvolve numa dimensão mais ampla do que aquela constituída pelo campo lexical do verbo. Dentre os elementos que compõem o fenômeno da ocorrência de objeto numa sentença, o verbo tem certamente um papel importante, pois é a partir dele que se projeta um lugar para esse objeto. Mas há um outro lado importante do fenômeno: os domínios de referência na ocupação desse lugar. Na nossa concepção, o lugar de objeto é um dos lugares de configuração de referência. O sujeito gramatical também se constitui num lugar de referência1. No entanto, diferentemente do lugar do sujeito, uma das especificidades do lugar do objeto está no fato de que ele é projetado pelo verbo. Mas é preciso ressaltar aqui que a idéia de configuração de referência não significa que esse lugar de objeto tenha como contraparte uma entidade extralingüística, vale dizer, isto não significa que a constituição de um lugar de objeto é produzida por uma orientação a um objeto do real. E como se constitui então a referência? O verbo projeta um lugar, ou seja, um espaço no interior do qual se constitui um domínio de referência. O objeto, enquanto forma lingüística, é um recorte de significação historicamente delimitado que ganha uma forma na língua através desse lugar projetado. Assim, o domínio de referência é algo da relação entre um recorte determinado pelas condições históricas do acontecimento e uma injunção desse recorte ao lugar específico de configuração da forma lingüística.

Isso nos permite conceber o campo da sintaxe a partir de dois planos: o plano da organicidade e o plano do enunciável.

O plano da organicidade não é autônomo, porque a materialidade lingüística não tem uma base primária de identidade física. Um objeto como um lápis, por exemplo, tem uma base de identidade na sua própria dimensão. Isso não significa que essa dimensão é independente da dimensão simbólica. Mas a dimensão simbólica, neste caso, é projetada da dimensão material. Os “objetos lingüísticos”, ao contrário, não ganham identidade a partir de uma projeção da sua dimensão material. Palavras, sintagmas, sentenças não são entidades distinguíveis a partir da sua dimensão material. É na relação com o plano do enunciável que esses “objetos” ganham identidade.

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O plano do enunciável é, por sua vez, regulado pelo discurso, que arregimenta as forças de representação simbólica (de natureza histórica). O sentido do termo “enunciável” no nosso estudo está agregado à concepção de enunciação formulada acima. Nessa direção, o plano do enunciável diz respeito às instâncias nas quais o dizer ganha pertinência. Essas instâncias correspondem a diferentes extratos no campo da memória, vale dizer, diferentes domínios de referência na enunciação.

O fato lingüístico, portanto, é definido a partir da tensão entre uma estabilidade da unidade, marcada na linearidade, isto é, pontuada na horizontalidade da ordenação do arranjo sintático, de um lado, e a verticalidade própria de um domínio de referência a ser representado, de um outro.

A noção de lugar sintático que preside a nossa abordagem apresenta traços que a torna diferente das noções correntes em abordagens formalistas e funcionalistas. Nessas vertentes, os lugares sintáticos são sustentados, seja pelas marcas flexionais (no caso do sujeito), ou pelos traços sintáticos infundidos no verbo enquanto item lexical (no caso do objeto), seja pelas projeções de natureza argumental oriundas da significação do verbo. Na nossa abordagem, os lugares sintáticos seriam sustentados pela constituição orgânica da sentença, projetada a partir das regularidades de domínios de referência, e pelas condições enunciativas de ocupação desses lugares (cf. Dias, 2002, 2003 e 2005).

3 Objeto direto: o problema da completude e da necessidade

As gramáticas tradicionais, e mesmo as não tradicionais, geralmente explicam a presença de objeto direto pela via da incompletude do significado do verbo. Nas gramáticas tradicionais, o objeto direto aparece na sentença pela determinação de um verbo transitivo direto, isto é, um verbo que não possui sentido completo. Mas encontramos também algumas tentativas de mudança nessa direção. Na 37ª edição da gramática de Bechara, publicada em 1999, encontramos uma perspectiva diferente daquela que prega a incompletude de significado como explicação para a presença de objeto sintático. Nesta nova edição, o verbo transitivo não é “deficitário” de sentido. Ao invés disso, Bechara propõe hoje a seguinte explicação:

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Há verbos cujo conteúdo léxico é de grande extensão semântica; de modo que, se desejamos expressar determinada realidade, temos de delimitar essa extensão semântica mediante o auxílio de outros signos léxicos adequados à realidade concreta. Estes outros signos léxicos que nos socorrem nessa delimitação da extensão semântica do verbo, verdadeiros delimitadores semânticos verbais, se chamam argumentos ou complementos verbais (...) os verbos que necessitam dessa delimitação semântica recebem o nome de transitivos (p. 414-5).

Dessa forma, ao invés do “déficit”, aparece aqui uma perspectiva de “superávit” de sentido no tratamento da transitividade verbal. Apesar disso, o problema da completude não é resolvido. No exemplo de Bechara “o porteiro viu o automóvel” (p. 415), “o automóvel” delimitaria o sentido do verbo “ver”. Bechara diria então que, através do objeto “o automóvel”, expressamos uma realidade específica, concreta. O objeto funcionaria aqui como delimitador semântico verbal, e não como termo que completa o significado do verbo. No entanto, Bechara continua a chamar esse termo-objeto de “complemento” verbal, afirmando que os verbos transitivos diretos “necessitam” dessa delimitação semântica. Tanto a noção de complemento quanto a noção de necessidade religam a transitividade ao tema da completude. Afinal, como explicar o enunciado “esse porteiro não vê à noite”? Temos aqui o mesmo verbo, agora sem o delimitador semântico, mas operando num enunciado perfeitamente amparado no efeito da completude. Estando o delimitador semântico submetido aos conceitos de complementação e de necessidade, enunciados como esse último ainda constituem em entraves para os gramáticos. Os conceitos de complementação e necessidade continuam imperando nos estudos da transitividade. Por sua vez, na maioria das gramáticas que operam sob uma perspectiva funcionalista, o objeto é considerado um argumento também previsto pelo verbo. Embora a noção de completude não apareça nessa perspectiva, a noção de necessidade ainda continua ativa, tendo sempre o verbo como fonte do fenômeno da transitividade.

Contudo, numa análise apurada em gramáticas antigas publicadas no Brasil, encontramos uma tentativa de deslocamento da abordagem da transitividade centrada no verbo. Trata-se da Grammatica Descriptiva, de Maximino Maciel, publicada em 1894, em sua primeira edição. Ele não aborda a incompletude a

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partir da órbita da significação verbal, mas da participação do verbo na predicação. Dessa forma, em “Todos os homens estimam grandemente o ouro e a prata” (p. 278), “o ouro e a prata” são palavras que exercem funções objetivas. Maciel entende por função objetiva “a palavra ou expressão a que se transmite immediata ou mediatamente a acção do verbo de predicação incompleta” (p. 280). Dessa forma, o verbo não se constitui incompleto na significação. Na perspectiva de Maciel, ele integra um predicado que projeta um termo de função objetiva. O verbo estimar, no exemplo acima, participa de um predicado “integralizado por objeto direto”. Nesse aspecto, a incompletude não é algo da significação do verbo, mas da sua condição de participante de um predicado que requer um objeto para integralização. Em outros termos, há um dizer sobre o sujeito (predicado) que só se constitui plenamente com a presença do objeto. Nada impede que o verbo estimar possa participar de um predicado que não requeira objeto, como “Quem estima, recebe bem”, ou “Quem estima, respeita o outro”. Nesse caso, com o mesmo verbo (estimar), podemos ter, na terminologia de Maciel, predicados que só se mostram completos com a presença do termo de função objetiva (como “o ouro e a prata”), e predicados que se constituem sem o termo de função objetiva, sem prejuízo da completude, como nos dois exemplos acima. Desse modo, é na ótica da predicação, e não apenas do verbo, que Maciel insere a questão da incompletude. Isso possibilita a ele produzir um capítulo na gramática dedicado ao fenômeno da “transpredicação”, que é definido como uma mudança no conceito do verbo. Quando um verbo que participa de uma predicação completa aparece num enunciado sem objeto, é porque esse verbo “subjetivou-se” (Maciel. p. 408). Pelo fato de adquirir um sentido geral (subjetivar) o verbo não precisa de objeto, como em “Por isso bem fazem os verdadeiros liberaes, celebrando publicas e numerosas reuniões” (idem). Nesse caso, a predicação “fazem bem”, apesar de abrigar o verbo fazer, é uma predicação “completa”, mesmo sem a presença de um termo de função objetiva. Portanto, na gramática de Maximino Maciel, podemos perceber os traços de um espaço para pensar a completude fora do lugar sedimentado em que se assentam as outras gramáticas.

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4. Enunciação e sintaxe: o objeto direto em questão

Analisaremos agora com mais detalhes o fenômeno que Maciel denominou de “transpredicação”. Estaremos dessa forma submetendo a questão da transitividade a uma abordagem enunciativa da predicação. Sendo um dizer orientado para o sujeito gramatical, a predicação se situa numa órbita mais ampla do que aquela circunscrita pelo verbo. A nossa hipótese inicial é a de que temos dois tipos de predicação: predicação dirigida e predicação centrada. A predicação dirigida ocorre quando ela é orientada para um objeto. E a predicação centrada, por sua vez, ocorre quando ela orienta para o verbo a direção da significação, não produzindo a necessidade do objeto. Vejamos o quadro abaixo:

VERBO EXEMPLO PREDICAÇÃO DIRIGIDA

PREDICAÇÃO CENTRADA

ALUGAR Pedro alugou o apartamento e deixou a cidade XEssa imobiliária aluga mais do que vende X

VISITAR Paulo visitou a irmã no hospital XEsse é o tipo de turista que visita muito e gasta pouco

X

OBSTRUIR O partido de Marcos obstruiu a sessão da Câmara nesta manhã

X

XHoje o PT obstrui menos e vota mais

PORMENO-RIZAR

“Ele contou à polícia o que sabia, pormenorizando tudo que podia lembrar” (Houaiss)

X

X“Narrou por alto, sem pormenorizar” (Houaiss)

JACTAR-SE/JACTAN-CIAR-SE

“Jactancia-se de um Portinari recém-comprado” / “Pouco faz, na verdade, mas nunca deixa de jactar-se” (Houaiss)

X

DESCER Pedro desceu pela escada X

XPedro desceu a mala de cima do armário e a entregou para João

ACABAR O noivado de Carlos acabou XXCarlos acabou o noivado

SORRIR Maria sorriu muito hoje XX“Sorriu o seu melhor sorriso” (Houaiss)

MORRER Che Guevara morreu precocemente XXPedro morreu uma morte sofrida

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VERBO EXEMPLO PREDICAÇÃO DIRIGIDA

PREDICAÇÃO CENTRADA

FALECER Pedro faleceu no dia de Natal X

PERECER “Muita gente pereceu no incêndio” (Houaiss) X

PARLEN-

GAR2Quando se sentia pressionado, Marcos só parlengava

X

O quadro apresenta uma pequena amostra de verbos do português com exemplos de ocorrências com objeto direto (configurando-se a predicação dirigida), e ocorrências sem objeto direto (configurando-se a predicação centrada). Observamos que sentenças produzidas com o verbo jactar-se (ou jactanciar-se) favorecem a predicação dirigida. Por sua vez, sentenças com os verbos falecer, perecer e parlengar favorecem a predicação centrada. Quando utilizamos o termo “favorecer”, estamos dizendo na verdade que as ocorrências historicamente produzidas, tendo esses verbos na sua composição, se concentraram apenas em um tipo de predicação. Na medida em que nos deslocamos da tipologia de verbos (verbos transitivos/verbos intransitivos) para a uma tipologia de predicação, estamos introduzindo o plano do enunciável nos estudos do fenômeno da transitividade. Nesse sentido, podemos observar uma regularidade importante: verbos com maior produtividade no plano do enunciável favorecem um maior domínio de referência, e podem ser afetados pela predicação centrada ou pela predicação dirigida (como alugar, visitar, obstruir, descer, acabar, sorrir e morrer). O verbo pormenorizar estaria no limite daquilo que estamos chamando de produtividade no plano do enunciável. Por outro lado, jactar-se, perecer e parlengar se situam na faixa de verbos que recebem poucas ocorrências de enunciação. O verbo falecer recebe mais ocorrências do que os três citados acima, mas ele ainda se situa numa faixa de uso erudito da língua. O verbo morrer é que se insere no plano do enunciável com maior capacidade de receber ocorrências.

Voltemos agora ao verbo fazer, justamente no ponto em que apresentávamos as condições de emprego das formas, no item (1) do presente artigo. Vimos que

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este verbo aloja abundantes trajetos de significação. Na terminologia que estamos desenvolvendo agora, diríamos que ele se insere no plano do enunciável com uma grande capacidade de receber ocorrências com predicação centrada e com predicação dirigida. Ao mesmo tempo, encontramos sentenças como (8) e (9), que são desafiadoras para quem trabalha com a transitividade unicamente através da análise das condições de emprego das formas.

(8) Sofia fez bonito na festa(9) Marlene fez muito por Carla

Essas duas ocorrências nos invocam a conceber uma orientação da predicação para um objeto, mas ele não se solidifica na categoria de substantivo, como regularmente acontece na predicação dirigida. O que denominamos de objeto é, na verdade, um lugar sintático que é ocupado na predicação dirigida, e não ocupado, na predicação centrada. Nos dois casos acima, a ocupação se deu por meio de dois termos (bonito e muito), que se configuram como palavras-âncora, que nos remeteriam ao domínio de referência do objeto, que se situa na memória, no plano do enunciável. No sentido de consolidar um pouco mais essa concepção, vejamos a sentença abaixo:

(10) Pedro fez isso e aquilo e não foi punido

Os pronomes isso e aquilo estabelecem a base da sua referência3 num recorte de memória que poderia incluir “desvio de dinheiro público” ou “compra de votos”, por exemplo. Ao mesmo tempo, nesta relação entre o lugar do objeto e o domínio de referência, mediado pelos pronomes, produz-se um espaço de exclusão de referência. Em relação a esse espaço de exclusão, poderíamos dizer que, no domínio de referência considerado em (10), provavelmente não estariam incluídos “carinho no filho” ou “doação de parte do salário à Igreja”, por exemplo. Certamente, encontramos na sentença seguinte (e não foi punido) um certo suporte para a configuração desse domínio de referência. No entanto, em (11), poderíamos ter os mesmos recortes, mas com o mínimo de suporte na sentença seguinte:

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(11) Pedro fez isso e aquilo e ninguém ficou sabendo

Há um aspecto importante a se considerar na concepção do domínio de referência. Está associada à configuração do recorte de memória uma submissão às dicotomias socialmente marcadas como ações positivas vs ações negativas. Dessa forma, podemos vislumbrar um conjunto de ações de valores negativos, em (12), e positivos em (13), como objetos passíveis de ocupação do lugar projetado pelo verbo fazer. Algumas vezes, a palavra-âncora já nos fornece uma pista mais precisa para se chegar ao domínio de ocupação que ampara os objetos de referência do lugar:

(12) Pedro fez bonito na reunião. Senti orgulho de ser amigo dele(13) Paulo fez feio no palco. E o pior é que ainda foi aplaudido

Nesses casos, bonito e feio nos orientam diretamente, seja para o lado positivo (12), seja para o lado negativo (13), da dicotomia dos valores a serem considerados na configuração do domínio de referência.

Em contraste, o verbo entalhar apresenta possibilidades de significação muito mais restritas do que o verbo fazer. Vejamos:

(14) Paulo entalhou a moldura do quadro(15) Paulo entalhou uma leitura original de Dom Casmurro

O verbo “entalhar” possibilitou ocorrências como (14), um uso bem previsível; diríamos que é um significado historicamente estabilizado. Já em (15), temos a exploração de um viés de significação desse uso estabilizado. Com efeito, se entalhar guarda em seus trajetos estabilizados de significação a idéia de esculpir, isto é, de realizar um trabalho artístico em material sólido, em (15), transporta-se dessa idéia o traço relativo ao esmero do trabalho artístico, ao se afirmar que “Paulo entalhou uma leitura original de Dom Casmurro”. Como resultado, temos um efeito de “transposição” de significado: do sólido da moldura passa-se ao abstrato da leitura, conservando-se no verbo esculpir o viés de significação que une as duas cenas.

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Em suma, o verbo fazer se insere no plano do enunciável com grande capacidade de receber matizes de significação variados, devido à abrangência dos domínios de referência historicamente configurados na história das enunciações com esse verbo. Daí o fato de estar propício a participar de enunciados com predicação dirigida (como vimos nas ocorrências já apresentadas) e com predicação centrada (como em 16 e 17, abaixo).

(16) Quem sabe, faz(17) Quem faz com Tigre, faz para sempre

Nesses casos, não há uma orientação do predicado, nem para um sintagma nominal, nem para uma palavra-âncora.

Assim, na medida em que nos afastamos da necessidade de classificar os verbos em transitivos ou intransitivos, segundo a completude ou incompletude de significação a ele inerente, podemos ampliar o campo de abordagem da transitividade, recorrendo às condições enunciativas de ocupação do lugar de objeto, segundo o grau de amplitude dos domínios de referência que se instalam no plano do enunciável. E isso é determinante para que tenhamos a possibilidade de predicação centrada e predicação dirigida.

Considerações finais

Podemos retornar agora à afirmação de Benveniste segundo a qual “a enunciação fornece as condições necessárias às grandes funções sintáticas”. A leitura que fizemos dessa afirmação passou pelo redimensionamento do campo de abordagem da transitividade para chegarmos às condições de configuração e ocupação da função sintática objeto direto. No plano da organicidade, ou seja, no plano das formas, o objeto direto é um lugar sintático projetado pelo verbo, e não recebe marcas de concordância. Mas é no plano do enunciável que se configuram as condições de ocupação desse lugar. É nesse plano que encontramos as condições de emprego da língua, justamente onde a referência ganha seus domínios na memória histórica que se instala na sentença como acontecimento enunciativo.

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Notas

1 Em Dias (2002), trabalhamos uma distinção paralela: a formação do lugar do sujeito e as condições de materialização desse lugar.2 De acordo com o Houaiss, parlengar significa usar palavreado vazio.3 Este é o sentido exato de ancoragem que estamos desenvolvendo neste estudo.

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Enunciação e semióticaJosé Luiz Fiorin

Universidade de São Paulo, São Paulo - Brasil

Sabemos que, sem teorias, a Pinta, a Niña e a Santa Maria não se teriam feito ao mar. É a teoria que sustenta a livre decisão.

Tunga

A gente é cria de frases.Manoel de Barros

Resumo Mostra-se como a semiótica francesa, a partir da teoria enunciativa

de Benveniste, integra a enunciação na teoria geral da significação que tenta construir.Palavras-chave: semiótica - enunciação - significação

AbstractThis article demonstrates how the French semiotics, built upon Benveniste’s

enunciative theory, integrates enunciation into the general theory of signification it attempts to establish.Key words: semiotics - enunciation - signification

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1 A semântica estrutural

No final do século XIX, Bréal estabeleceu os princípios de uma semântica diacrônica, que tinha a finalidade de estudar as mudanças de sentido das palavras, a fim de investigar os mecanismos que regulam essas alterações. Na primeira metade do século XX, nasce uma semântica voltada para a descrição sincrônica dos significados, que visa a delimitar e analisar os campos semânticos. Essa abordagem taxinômica não se fundamentava em critérios imanentes à linguagem. Pelo fato de a semântica adotar, seja um princípio associacionista, seja um ponto de vista não imanente no estudo do plano de conteúdo, Hjelmslev escreve, em 1957, um texto intitulado Por uma semântica estrutural (1991, 111-127), em que vai propor as bases de uma abordagem estrutural em semântica (1991: 116). O lingüista dinamarquês começa por mostrar que os domínios da fonologia e da gramática apresentam uma estruturação evidente, o que faz que o estruturalismo seja mais uma continuidade do que uma ruptura em relação a certos modos de análise da Lingüística clássica. No entanto, há um certo ceticismo em relação à estruturalidade do vocabulário e, por conseguinte, à possibilidade de estudá-lo de um ponto de vista estrutural, pois, em oposição aos fonemas e morfemas, os vocábulos são, de um lado, numerosos (talvez em número ilimitado e incalculável) e, de outro, instáveis, dado que, a todo o momento, palavras novas são criadas, enquanto outras se tornam velhas e caem em desuso (1991: 112-113). Conclui Hjelmslev que “o vocabulário se apresenta, numa abordagem inicial, como a negação mesma de um estado, de uma estabilidade, de uma sincronia, de uma estrutura” (1991: 113) e, por isso, uma semântica estrutural “parece estar votada ao fracasso e se torna facilmente presa do ceticismo” (1991: 113). Por essas razões, considera ele que a lexicologia é uma casa vazia e que o estudo do vocabulário se limita a uma lexicografia, cujo trabalho consiste simplesmente em enumerar elementos a que se atribui um conjunto de empregos diferentes e aparentemente arbitrários. A semântica estrutural, diferentemente da fonologia e da gramática estruturais, não tem, pois, predecessores. Seu objeto deve ser não os objetos, mas as relações entre as partes que os constituem. Como diz Hjelmslev, “introduzir a noção de estrutura no estudo dos fatos semânticos é introduzir a noção de valor lado a lado com a de significação” (1991: 118).

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Mudando um pouco a terminologia hjelmsleviana, poderíamos dizer que, no domínio da semântica, o estruturalismo, portanto, terá por objeto não o significado, mas a significação, isto é, os “valores lingüísticos definidos pelas posições relativas das unidades no interior do sistema” (Hjelmslev, 1991: 38). O sentido não é algo isolado, mas surge da relação. Só há sentido na e pela diferença. Assim, os sentidos percebidos pelo falante pressupõem um sistema estruturado de relações. Por conseguinte, a semântica estrutural não visa propriamente ao sentido, mas a sua arquitetura, não tem por objetivo estudar o conteúdo, mas a forma do conteúdo.

O objetivo da semântica estrutural seria, pois, o estabelecimento, de um ponto de vista imanente, ou seja, sem recorrer a nenhuma classificação extralingüística, de categorias semânticas responsáveis, numa língua ou num estado de língua, pela criação de significados. Lembrava Hjelmslev que isso permitiria comparar estados de língua diferentes ou línguas distintas e estabelecer uma tipologia de base semântica das línguas. Estava enunciada a possibilidade de uma semântica estrutural diacrônica e de uma semântica estrutural contrastiva. Como se vê, a totalidade que a semântica estrutural pretendia descrever era o léxico das línguas.

A semântica estrutural enfrentava um problema teórico muito grave, que era o de precisar as regras de compatibilidade e de incompatibilidade semântica, que presidem à construção de unidades maiores do que os sememas, como, por exemplo, enunciados e discursos. Por isso, não obteve resultados satisfatórios, a não ser na descrição de certos campos semânticos bem delimitados. A idéia de construir matrizes semânticas comparáveis às da fonologia foi abandonada.

2 A Semiótica

Ao renunciar a ilusão dos anos 60 do século XX de que seria possível fazer uma análise exaustiva do plano do conteúdo das línguas naturais, uma vez que isso seria fazer uma descrição completa do conjunto das culturas, o projeto estrutural em semântica busca repensar seu objeto. Estabelece, então, três condições que deveria satisfazer o estudo da significação:

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a) ser gerativo, ou seja, “concebido sob a forma de investimentos de conteúdo progressivos, dispostos em patamares sucessivos, indo dos investimentos mais abstratos aos mais concretos e figurativos, de tal modo que cada um dos patamares pudesse receber uma representação metalingüística explícita” (Greimas e Courtés, 1979: 327);

b) ser sintagmático, isto é, deve explicar não as unidades lexicais particulares, mas a produção e a interpretação do discurso (Greimas e Courtés, 1979, 327);

c) ser geral, ou seja, deve ter como postulado a unicidade do sentido, que pode ser manifestado por diferentes planos de expressão ou por vários planos de expressão ao mesmo tempo, como no cinema, por exemplo (Greimas e Courtés, 1979: 328).

Ao estabelecer essas condições, a Semântica Estrutural desiste do objetivo de descrever exaustivamente o plano do conteúdo das línguas naturais e passa a se conceber como uma teoria do texto, visto como um todo de significação. Visa ela, então, menos a descrever o que o texto diz, mas como o texto diz o que diz, ou seja, os mecanismos internos de agenciamento de sentido.

Analisemos mais detidamente cada uma dessas condições, começando por aquela que diz que a semântica deve ser sintagmática. A dicotomia saussuriana língua vs fala sempre foi considerado uma categoria para explicar a estrutura que possibilita os acontecimentos-mensagem. Opunha-se, assim, a língua ao discurso, este visto como da ordem do acontecimento. No entanto, observa-se que as estruturas sintáticas de uma língua natural não organizam o discurso em sua totalidade, mas seus segmentos, o que significa que o discurso possui uma estruturação própria. Ele não é uma grande frase, nem uma sucessão de frases, mas possui uma organização específica. Ademais, quando nos colocamos no plano transfrástico da significação, cujos elementos parecem distribuídos ao longo da linha do tempo, percebemos que a condição do entendimento da mensagem é a transformação da temporalidade em simultaneidade. Captamos a significação de uma história ou da História, quando apreendemos sua totalidade. Dessa forma, a temporalidade ou espacialidade do plano da expressão é o meio de manifestação da significação, que não é temporal ou espacial. (Greimas, 1967: 121-122). A

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simultaneidade é a condição necessária para a descrição estrutural do discurso. A abordagem estrutural em semântica desloca a categoria de totalidade da descrição do plano de conteúdo das línguas naturais para a descrição e explicação dos mecanismos que engendram o texto.

Em geral, as teorias lingüísticas consideram que a linguagem é uma hierarquia. Esse princípio fica muito claro, quando se aborda o texto. Se não se pode negar que ele tenha uma estruturação, que explica o que faz dele um todo de sentido, não se pode também deixar de ver que ele é a manifestação de singularidades; é, de certa forma, da ordem do acontecimento. Correlaciona, assim, durações de várias ordens, ou, em outras palavras, invariantes e variabilidades. Já Propp, ao analisar os contos maravilhosos russos, mostrara as regularidades subjacentes à variedade dos textos. Ao conceber as invariantes narrativas, como as funções e as esferas de ação, distingue o nível da, por exemplo, doação do objeto mágico do nível em que o peixe dá uma escama ou a fada dá um anel (1970). Por ver o texto como o lugar de regularidades que subjazem à variabilidade, essa Semântica Estrutural estabelece que uma das condições a que deveria obedecer era ser gerativa, concebendo, pois, a geração do texto como um percurso que vai das invariantes às variantes, das estruturas mais simples e abstratas às mais complexas e concretas. Todos esses níveis devem ser suscetíveis de receber uma descrição metalingüística adequada, dado que “a descrição de uma estrutura não é mais que a construção de um modelo metalingüístico, percebido em sua coerência interna e capaz de mostrar o funcionamento, no seio de sua manifestação, da linguagem que se propõe descrever” (Greimas, 1967: 125). Assim, o percurso gerativo de sentido deve ser entendido como um modelo hierárquico, em que se correlacionam níveis de abstração diferente do sentido. Não procede, assim, a crítica de que a singularidade do texto não é contemplada. O que se quer é analisar as regularidades e mostrar, a partir delas, a construção das especificidades, num processo de complexificação crescente. Depois de analisar, num processo da abstração, as estruturas mais simples, faz-se o percurso inverso e procura-se reconstruir as estruturas mais concretas e complexas.

O percurso gerativo é um simulacro metodológico das abstrações que o leitor faz ao ler um texto. Se se toma uma fábula, como O lobo e o cordeiro, e se

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fica na manifestação textual, ela não faz sentido. É completamente despropositada a história do lobo que apresenta razões para devorar o cordeiro. Quando se faz uma abstração e a fábula é percebida como uma história de homens, em que o mais forte sempre encontra razões para exercer seu domínio sobre o mais fraco, então ela faz sentido.

Um outro postulado central dessa abordagem estrutural em semântica é que o conteúdo pode ser manifestado por diferentes planos de expressão. Na tradição hjelmsleviana, manifestação opõe-se à imanência. O princípio da imanência é o postulado que afirma a especificidade do objeto lingüístico, que é a forma, e a exigência metodológica que exclui o recurso aos fatos extralingüísticos para explicar os fenômenos lingüísticos. Assim, a forma é o que é manifestado e a substância (sons ou conceitos) é sua manifestação. No entanto, como não há expressão lingüística sem conteúdo lingüístico e vice-versa, a manifestação, entendida como presentificação da forma na substância, pressupõe a semiose, que une a forma da expressão à do conteúdo. Por conseguinte, a manifestação é, antes de mais nada, a postulação do plano da expressão, quando da produção do enunciado, e inversamente, a atribuição de um plano do conteúdo, quando de sua leitura. Por isso, a análise imanente é a análise de cada um dos planos da linguagem, tomados separadamente. Se o plano do conteúdo deve ser examinado separadamente do da expressão e o mesmo conteúdo pode manifestar-se por distintos planos da expressão, pode-se postular a terceira condição dessa semântica, a de ser geral. Isso significa que ela, num primeiro momento da análise, faz abstração do plano da expressão, para analisar o conteúdo, e só depois vai examinar as relações entre expressão e conteúdo, bem como as diferentes especificidades de cada um dos planos de expressão. Isso significa que essa semântica, na medida em que faz inicialmente abstração do plano da expressão, interessa-se tanto pelo texto verbal, quanto pelo visual ou pelo sincrético (aquele cujo conteúdo se manifesta por mais de um plano de expressão, como o cinema, a telenovela, a história em quadrinho, etc.). Dessa forma, essa semântica viabiliza o projeto saussuriano de uma semiologia, que seria a ciência geral dos sistemas de signos (1969: 24). Dizia Saussure, ao postular a unicidade dos fenômenos lingüísticos:

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A Lingüística não é senão uma parte dessa ciência geral; as leis que a Semiologia descobrir serão aplicáveis à Lingüística e esta se achará dessarte vinculada a um domínio bem definido no conjunto dos fatos humanos (1969, 24).

Para demarcar-se do projeto semiológico, que, numa visão muito restrita da definição saussuriana de signo, não leva em conta o processo sêmico, ou seja, o discurso, essa semântica estrutural denomina-se semiótica. É ela uma teoria da significação, ou seja, seu trabalho é o de “explicitar, sob a forma de uma construção conceptual, as condições de apreensão e de produção do sentido” (Greimas e Courtés, 1979: 345). Situando-se na tradição saussuriana e hjelmsleviana, segundo a qual, a significação é a criação e/ou a apreensão de diferenças, procurará determinar o sistema estruturado de relações que produzem o sentido do texto.

O fato de a Semiótica pensar-se como uma teoria do discurso faz que se introduza, na teoria, a questão da enunciação, entendida no sentido benvenistiano como a discursivização da língua. No entanto, seu objeto é o texto. Por isso, entende ela que a passagem das estruturas mais profundas e simples às mais superficiais e concretas se dá pela enunciação. Isso significa que essa semântica não se pretende uma teoria do enunciado, mas deseja integrar enunciação e enunciado numa teoria geral.

3 O percurso gerativo de sentido

É preciso agora precisar melhor o lugar da enunciação na Teoria Semiótica. Para isso, é necessário entender melhor o percurso gerativo de sentido.

O percurso gerativo é constituído de três patamares: as estruturas fundamentais, as estruturas narrativas e as estruturas discursivas. Vale relembrar que estamos no domínio do conteúdo. As estruturas discursivas serão manifestadas como texto, quando se unirem a um plano de expressão no nível da manifestação. Cada um dos níveis do percurso tem uma sintaxe e uma semântica.

Na Gramática, a sintaxe opõe-se à morfologia. Esta se ocupa da formação das palavras e da expressão das categorias gramaticais por morfemas; aquela,

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da combinação de palavras, para formar orações, e de orações, para constituir períodos. Na Semiótica, a sintaxe contrapõe-se à semântica. Aquela é o conjunto de mecanismos que ordena os conteúdos; esta, os conteúdos investidos nos arranjos sintáticos. Observe-se, no entanto, que não se trata de uma sintaxe puramente formal, ou seja, não se opõem sintaxe e semântica como o que não é dotado de significado e o que tem significado. Um arranjo sintático é dotado de sentido. Por conseguinte, a distinção entre esses dois componentes reside no fato de que a sintaxe tem uma autonomia maior do que a semântica, o que significa que se podem investir diferentes conteúdos semânticos na mesma estrutura sintática.

O percurso gerativo é composto de níveis de invariância crescente, porque um patamar pode ser concretizado pelo patamar imediatamente superior de diferentes maneiras, isto é, o patamar superior é uma variável em relação ao imediatamente inferior, que é uma invariante. A mesma estrutura narrativa, um sujeito que entra em disjunção com o objeto vida, pode ser tematizada como assassinato, suicídio, morte por acidente, etc. O mesmo tema pode ser figurativizado de diferentes maneiras. Assim, o tema da evasão pode ser figuratizado pela ida para um mundo imaginário, como a Pasárgada de Manuel Bandeira, ou por uma viagem pelos mares do sul. As fotonovelas e as telenovelas trabalham quase sempre com a mesma estrutura narrativa e geralmente com os mesmos temas (ascensão social, realização afetiva, etc.) figurativizados de maneira diferente. Desde a obra inaugural da Semiótica francesa, estava presente a idéia de que o discurso tem invariantes, que se realizam de maneira variável. No entanto, esse arcabouço hoje conhecido por percurso narrativo foi se esboçando ao longo do tempo, para dar conta, como já se disse, do aspecto variante e invariante do discurso. Ele não é uma camisa de força, em que se devem enfiar todos os textos, mas um modelo de análise e de previsibilidade, que, ao mesmo tempo, expõe generalizações sócio-históricas (invariantes) e especificidades de cada texto (variantes).

Tomemos um texto para exemplificar essa descrição sumária do percurso gerativo de sentido. A análise do texto não é completa. Tem ela a finalidade apenas de exemplificar apenas a passagem de um patamar a outro. Uma análise mais fina, como requer a teoria, não caberia nos limites deste texto.

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O ferrageiro de Carmona

Um ferrageiro de Carmona que me informava de um balcão: “Aquilo? É de ferro fundido, foi a fôrma que fez, não a mão.

Só trabalho em ferro forjado que é quando se trabalha ferro; então, corpo a corpo com ele, domo-o, dobro-o, até o onde quero.

O ferro fundido é sem luta, é só derramá-lo na fôrma. Não há nele a queda-de-braço e o cara-a-cara de uma forja.

Existe grande diferença do ferro forjado ao fundido; é uma distância tão enorme que não pode medir-se a gritos.

Conhece a Giralda em Sevilha? De certo subiu lá em cima. Reparou nas flores de ferro dos quatro jarros das esquinas?

Pois aquilo é ferro forjado. Flores criadas numa outra língua. Nada têm das flores de fôrma moldadas pelas das campinas.

Dou-lhe aqui humilde receita ao senhor que dizem ser poeta: o ferro não deve fundir-se nem deve a voz ter diarréia.

Forjar: domar o ferro à força, não até uma flor já sabida, mas ao que pode até ser flor se flor parece a quem o diga.

(Melo Neto, 1987: 31-32).

Vamos analisar o texto, indo das estruturas superficiais até as profundas e depois voltando. Inicialmente, observamos que ele trata do trabalho com o ferro. O ferrajeiro explica que há duas maneiras de trabalhá-lo: a fundição e o forjamento. Na primeira, a fôrma1 faz o ferro adquirir uma forma; na segunda,

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é o ferreiro quem dá a forma. Nesta, o ferreiro realmente trabalha o ferro num corpo a corpo com ele, dando-lhe a forma que quer, enquanto, naquela, o ferro adquire a forma da fôrma. Esse nível em que se vai explicando o que é a fundição e o forjamento é o nível figurativo. Ainda na análise desse patamar, é preciso notar que há figuras que não se encaixam no plano de leitura proposto e, por isso, desencadeiam um segundo plano de interpretação. São elas língua, receita ao (...) poeta, voz. Essas figuras remetem ao campo léxico da linguagem. Pode-se então dizer que o segundo plano de leitura é o do trabalho com a linguagem. Neste, vemos que há duas maneiras de trabalhar a linguagem: a fundição, que deve ser lida como a construção de textos a partir de uma fórmula, e o forjamento, que deve ser concebido como a produção original de textos. Naquela, a linguagem (ferro) esparrama-se na fôrma; neste, ela é domada e adquire a forma que o poeta quer dar-lhe.

Nos dois planos de leitura, a fundição é apresentada como algo de valor negativo, que não se deve fazer (o ferro não deve fundir-se), porque nela não há originalidade (flores de fôrma moldadas pelas das campinas). O forjamento é o termo de valor positivo, pois é um trabalho original (Forjar: domar o ferro à força / não até uma flor já sabida, / mas ao que pode até ser flor / se flor parece a quem o diga). Ademais, o poeta liga a figura da fundição à da diarréia, o que pressupõe que o forjamento não está relacionado a ela. Esse entendimento permite agora organizar os diferentes patamares do percurso.

Esse texto constrói-se, no nível fundamental, com duas categorias de base: originalidade vs habitualidade e moderação vs excesso. Os primeiros termos das duas oposições são considerados eufóricos e os últimos, disfóricos.

No nível narrativo, aparece apenas a realização, ficando as demais fases da seqüência narrativa (manipulação, competência e sanção) pressupostas. Na fundição, a fôrma é o sujeito operador que dá ao ferro ou à linguagem a forma; no forjamento, o sujeito operador é o ser humano. O objeto forma realiza uma primeira concretização das categorias fundamentais. A fôrma engendra uma forma já existente e diluída; o homem produz uma forma nova e concentrada.

A produção da primeira forma é tematizada como imitação e derramamento;

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a segunda, como criação e contenção. Os dois primeiros temas são figuratizados pela fundição e pela diarréia; os dois últimos, pelo forjamento e pela secura (esta figura está apenas pressuposta pelo discurso).

O texto, pois, considera negativa uma poética da imitação de formas e do derramamento e exalta a poética da criação de novas formas e da contenção.

Quando falamos em percurso gerativo do sentido, estamos analisamos o nível do conteúdo. No entanto, o conteúdo só pode manifestar-se por meio de um plano de expressão. No momento em que, no simulacro metodológico, temos a junção do plano de conteúdo com um plano de expressão, ocorre a textualização. O texto é, assim, uma unidade que se dirige para a manifestação. Seu conteúdo, engendrado por um percurso que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto, manifesta-se por um plano de expressão. Aí, então, sofre a coerção do material que o veicula. Por exemplo, dado que o significante da linguagem verbal é linear, o conteúdo manifesto verbalmente será submetido à linearização.

O mais importante a notar, porém, é que na relação entre conteúdo e expressão gera-se o que chamamos efeitos estilísticos da expressão. Poderíamos dizer que temos basicamente textos com função utilitária (informar, convencer, explicar, documentar, etc.) e função estética. Não vamos discutir longamente as características de cada um desses textos. Vamos apenas apontar uma, que está vinculada à questão do plano de expressão. Se alguém ouve ou lê um texto com função utilitária não se importa com o plano de expressão. Ao contrário, atravessa-o e vai diretamente ao conteúdo, para entender a informação. No texto com função estética, a expressão ganha relevância, pois o escritor procura não apenas dizer o mundo, mas recriá-lo nas palavras, de tal sorte que importa não apenas o que se diz, mas o modo como se diz. Como o poeta recria o conteúdo na expressão, a articulação entre os dois planos contribui para a significação global do texto. A compreensão de um texto com função estética exige que se entenda não somente o conteúdo, mas também o significado dos elementos da expressão.

Dessa relevância do plano de expressão deriva uma segunda característica do texto com função estética, sua intangibilidade. Valéry, discutindo a diferença

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entre textos utilitários e estéticos, diz que, quando se faz um resumo do primeiro, apreende-se o essencial; já, quando se resume o segundo, perde-se o essencial (1991: 217).

Quem ler os seguintes versos de Os Lusíadas Em tempo de tormenta e vento esquivo, / De tempestade escura e triste pranto (V, 18, 3-4), sem perceber a aliteração de oclusivas e principalmente do t, terá perdido um elemento essencial do texto, que é o efeito de sentido de fúria da tormenta, dado pela articulação entre a aliteração no plano da expressão e o conteúdo manifestado.

4 O lugar da enunciação na Semiótica e as categorias enunciativas

No percurso gerativo, o nível fundamental é invariante e pode ser concretizado variavelmente no nível narrativo. Este, por sua vez, é invariável em relação ao nível discursivo, que realiza variavelmente as estruturas narrativas. Isso significa que o nível discursivo é, de um lado, o nível da realização do conteúdo manifestado pelo texto; de outro, é responsável pela singularidade dos conteúdos expressos, já que ele não é invariante de outro conteúdo variável. A enunciação é vista, como aliás já o tinha feito Benveniste, como instância de mediação, que assegura a discursivização da língua, que permite a passagem da competência à performance, das estruturas semióticas virtuais às estruturas realizadas sob a forma de discurso (Greimas e Courtés, 1979: 126). A montante dessa instância de mediação estão as estruturas sêmio-narrativas, “formas que, atualizando-se como operações, constituem a competência semiótica do sujeito da enunciação” (Greimas e Courtés, 1979: 127). A jusante aparece o discurso. Assim, se o objeto da Semiótica são os textos, a enunciação só pode ser a instância de mediação entre as estruturas virtuais (fundamental e narrativa) e a estrutura realizada (discursiva).

Se a enunciação é a instância constitutiva do enunciado, ela é a “instância lingüística logicamente pressuposta pela própria existência do enunciado (que comporta seus traços e suas marcas)” (Greimas e Courtés, 1979: 126). O enunciado, por oposição à enunciação, deve ser concebido como o “estado que dela resulta, independentemente de suas dimensões sintagmáticas” (Greimas e Courtés, 1979: 123). Considerando dessa forma enunciação e enunciado, este

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comporta freqüentemente elementos que remetem à instância de enunciação: de um lado, pronomes pessoais, demonstrativos, possessivos, adjetivos e advérbios apreciativos, dêiticos espaciais e temporais, em síntese, elementos cuja eliminação produz os chamados textos enuncivos, isto é, que tendem a apagar as marcas de enunciação; de outro, termos que descrevem a enunciação, enunciados e reportados no enunciado (Greimas e Courtés, 1979: 124).

Serão considerados fatos enunciativos em sentido lato todos os traços lingüísticos da presença do locutor no seio de seu enunciado. Em sentido estrito, os fatos enunciativos são as projeções da enunciação (pessoa, espaço e tempo) no enunciado, recobrindo o que Benveniste chamava o “aparelho formal da enunciação” (1974: 79-88). A enunciação, tanto num sentido como no outro, é a enunciação enunciada, isto é, marcas e traços que a enunciação propriamente dita deixou no enunciado. Em si mesma, a enunciação é da ordem do inefável, só quando se enuncia pode ser apreendida. Assim, como diz Coquet, “a enunciação é sempre, por definição, enunciação enunciada” (1983: 14).

A enunciação deve ser analisada ainda como a instância de instauração do sujeito2. Benveniste diz que a propriedade que possibilita a comunicação e, portanto, a atualização da linguagem é que é “na e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito, uma vez que, na verdade, só a linguagem funda, na sua realidade, que é a do ser, o conceito de ego” (1966: 259). A categoria de pessoa é essencial para que a linguagem se torne discurso. Assim, o eu não se refere nem a um indivíduo nem a um conceito, ele refere-se a algo exclusivamente lingüístico, ou seja, ao “ato de discurso individual em que eu é pronunciado e designa seu locutor” (1966: 261-262).

Como a pessoa enuncia num dado espaço e num determinado tempo, todo espaço e todo tempo organizam-se em torno do “sujeito”, tomado como ponto de referência. A partir do espaço e do tempo da enunciação, organizam-se todas as relações espaciais e temporais. Porque a enunciação é o lugar de instauração do sujeito e este é o ponto de referência das relações espaço-temporais, ela é o lugar do ego, hic et nunc.

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Os mecanismos de instauração de pessoas, espaços e tempos no enunciado são dois: a debreagem e a embreagem. Debreagem é a operação em que a instância de enunciação disjunge de si e projeta para fora de si, no momento da discursivização, certos termos ligados a sua estrutura de base com vistas à constituição dos elementos fundadores do enunciado, isto é, pessoa, espaço e tempo (Greimas e Courtés, 1979: 79). Na medida em que, como mostra Benveniste, a constituição da categoria de pessoa é essencial para a constituição do discurso e o eu está inserido num tempo e num espaço, a debreagem é um elemento fundamental do ato constitutivo do enunciado e, uma vez que a enunciação é uma instância lingüística pressuposta pelo enunciado, contribui também para articular a própria instância da enunciação. Assim, a discursivização é o mecanismo criador da pessoa, do espaço e do tempo da enunciação e, ao mesmo tempo, da representação actancial, espacial e temporal do enunciado (Greimas e Courtés, 1979: 79).

Uma vez que a enunciação é a instância da pessoa, do espaço e do tempo, há uma debreagem actancial, uma debreagem espacial e uma debreagem temporal. A debreagem consiste, pois, num primeiro momento, em disjungir do sujeito, do espaço e do tempo da enunciação e em projetar no enunciado um não eu, um não aqui e um não agora. Como nenhum eu, aqui ou agora inscritos no enunciado são realmente a pessoa, o espaço e o tempo da enunciação, uma vez que estes são sempre pressupostos, a projeção da pessoa, do espaço e do tempo da enunciação no enunciado é também uma debreagem. (Greimas e Courtés, 1979: 79).

Há, pois, dois tipos bem distintos de debreagem: a enunciativa e a enunciva3. A primeira é aquela em que se instalam no enunciado os actantes da enunciação (eu/tu), o espaço da enunciação (aqui) e o tempo da enunciação (agora), ou seja, aquela em que o não eu, o não aqui e o não agora são enunciados como eu, aqui, agora (Greimas e Courtés, 1979: 80).

Resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos - e, antes de começar, digo os motivos porque silenciei e porque me decido (Ramos, 1972: 3).

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Nesse caso, há uma instalação no enunciado do eu enunciador, que utiliza o tempo da enunciação (o nunc). Trata-se, nesse caso, de debreagens actancial e temporal enunciativas.

Na debreagem espacial enunciativa, é preciso levar em conta que todo espaço ordenado em função do aqui é um espaço enunciativo. Assim, o lá que se contrapõe ao aqui é enunciativo. É o que ocorre na “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias:

Minha terra tem palmeiras,Onde canta o sabiá,As aves que aqui gorjeiam,Não gorjeiam como lá. (1967: 11-12).

Da mesma forma, na debreagem temporal, são enunciativos os tempos ordenados em relação ao agora da enunciação. Considerando-se o momento da enunciação um tempo zero e aplicando-se a ele a categoria topológica concomitância/não concomitância (anterioridade/posterioridade), obtém-se o conjunto dos tempos enunciativos (presente, pretérito perfeito 1 e futuro do presente)4. Observe-se acima, no texto de Machado de Assis: silenciei é um tempo anterior ao agora.

A debreagem enunciva é aquela em que se instauram no enunciado os actantes do enunciado (ele), o espaço do enunciado (algures) e o tempo do enunciado (então). Cabe lembrar que o algures é um ponto instalado no enunciado; da mesma forma, o então é um marco temporal inscrito no enunciado, que representa um tempo zero, a que se aplica a categoria topológica concomitância vs não concomitância.

Rubião fitava a enseada, - eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta (Machado de Assis, 1979: 643).

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O texto principia com uma debreagem actancial enunciva, quando nele se estabelece o actante do enunciado, Rubião. O verbo fitar, no pretérito imperfeito do indicativo, indica uma ação concomitante em relação a um marco temporal pretérito instituído no texto (eram oito horas da manhã). Como o tempo começa a ordenar-se em relação a uma demarcação constituída no texto, a debreagem temporal é enunciva. Aliás, o visse que vem a seguir está relacionado não a um agora, mas a um naquele momento, o que corrobora a enuncividade. O espaço estabelecido no texto não é o aqui da enunciação, é um ponto marcado no texto, à janela de uma grande casa de Botafogo.

A debreagem enunciativa e a enunciva criam, em princípio, dois grandes efeitos de sentido: de subjetividade e de objetividade. Com efeito, a instalação dos simulacros do ego-hic-nunc enunciativos, com suas apreciações dos fatos, constrói um efeito de subjetividade. Já a eliminação das marcas de enunciação do texto, ou seja, da enunciação enunciada, fazendo que o discurso se construa apenas com enunciado enunciado, produz efeitos de sentido de objetividade. Como o ideal de ciência que se constitui a partir do positivismo é a objetividade, o discurso científico tem como uma de suas regras constitutivas a eliminação de marcas enunciativas, ou seja, aquilo a que se aspira no discurso científico é construir um discurso só com enunciados.

Há também debreagens internas, freqüentes no discurso literário e também na conversação ordinária (Greimas e Courtés, 1979: 80). Trata-se do fato de que um actante já debreado, seja ele da enunciação ou do enunciado, se torne instância enunciativa, que opera, portanto, uma segunda debreagem, que pode ser enunciativa ou enunciva. É assim, por exemplo, que se constitui um diálogo: com debreagens internas, em que há mais de uma instância de tomada da palavra. Essas instâncias são hierarquicamente subordinadas umas às outras: o eu que fala em discurso direto é dominado por um eu narrador que, por sua vez, depende de um eu pressuposto pelo enunciado. Em virtude dessa cadeia de subordinação diz-se que o discurso direto é uma debreagem de 2º grau. Seria de 3º, se o sujeito debreado em 2º grau fizesse outra debreagem. Embora esse processo possa ser teoricamente infinito, é quase impossível, por razões práticas, como a limitação da memória, que ele ultrapasse o 3º grau e é muito difícil que vá além do 2º.

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Ao contrário da debreagem, que é a colocação fora da instância de enunciação da pessoa, do espaço e do tempo do enunciado, a embreagem é “o efeito de retorno à enunciação”, produzido pela neutralização das categorias de pessoa e/ou espaço e/ou tempo, assim como pela denegação da instância do enunciado.

Como a embreagem concerne às três categorias da enunciação, temos, da mesma forma que no caso da debreagem, embreagem actancial, embreagem espacial e embreagem temporal.

A embreagem actancial diz respeito à neutralização na categoria de pessoa. Toda embreagem pressupõe uma debreagem anterior. Quando o Presidente diz “O Presidente da República julga que o Congresso Nacional deve estar afinado com o plano de estabilização econômica”, formalmente temos uma debreagem enunciva (um ele). No entanto, esse ele significa eu. Assim, uma debreagem enunciativa (instalação de um eu) precede a embreagem, a saber, a neutralização da oposição categórica eu/ele em benefício do segundo membro do par, o que denega o enunciado. Denega justamente porque o enunciado é afirmado com uma debreagem prévia (Greimas e Courtés, 1979: 119-121)5. Negar o enunciado estabelecido é voltar à instância que o precede e é pressuposta por ele. Por conseguinte, obtém-se na embreagem um efeito de identificação entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação, tempo do enunciado e tempo da enunciação, espaço do enunciado e espaço da enunciação.

Você lá, que é que está fazendo no meu quintal?

A embreagem espacial concerne a neutralizações na categoria de espaço. Lá está, nessa frase, empregado com o valor de aí, espaço do enunciatário. Esse uso estabelece uma distância entre os actantes da enunciação, mostrando que a pessoa a quem o enunciador se dirige foi colocada fora do espaço da cena enunciativa.

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A embreagem temporal diz respeito a neutralizações na categoria de tempo. Tomemos como exemplo o poema Profundamente, de Manuel Bandeira:

Quando ontem adormeciNa noite de São JoãoHavia alegria e rumorEstrondos de bombas luzes de BengalaVozes cantigas e risosAo pé das fogueiras acesas.

No meio da noite desperteiNão ouvi mais vozes nem risosApenas balõesPassavam errantesSilenciosamenteApenas de vez em quandoO ruído de um bondeCortava o silêncioComo um túnel.Onde estavam os que há poucoDançavam Cantavam E riamAo pé das fogueiras acesas?

- Estavam todos dormindoEstavam todos deitadosDormindoProfundamente

Quando eu tinha seis anosNão pude ver o fim da festa de São JoãoPorque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempoMinha avóMeu avôTotônio RodriguesTomásiaRosaOnde estão todos eles?- Estão todos dormindoEstão todos deitadosDormindoProfundamente. (1983: 217)

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Quando chegamos à segunda parte, compreendemos que ontem é na véspera do dia de São João do ano em que o poeta tinha seis anos (naquele tempo). Essa neutralização entre o tempo enunciativo ontem e o tempo enuncivo na véspera, em benefício do primeiro, é um recurso para presentificar o passado, reviver o que aconteceu naquela noite de São João, em que o poeta adormece e vive, no tempo antes, rumor e alegria e, no tempo depois, silêncio. Nessa noite, à vigília do poeta corresponde o sono profundo dos que tinham dançado, cantado e rido ao pé das fogueiras acesas.

Ao debrear enuncivamente a véspera da festa de São João, no início da segunda parte, o poeta afasta o que revivera, transformando essa revivescência em lembrança. Nos termos de Benveniste, a primeira parte deixou de ser discurso, ou seja, vida, e passou a ser história. Há então uma debreagem enunciativa e volta-se para a vida presente. À vigília de outrora corresponde a vida de hoje; ao silêncio de antanho corresponde a não vida hodierna. O poeta está vivo e só, pois todos os que ele amava estão mortos e enterrados (dormindo e deitados). No passado tivera essa experiência da ausência, que revive transformando a história em discurso. A embreagem temporal resgatou o tempo das brumas da memória e recolocou-o lá novamente.

Dizem Greimas e Courtés que a embreagem, ao mesmo tempo, apresenta-se como um desejo de alcançar a instância da enunciação e ‘como o fracasso, como a impossibilidade de atingi-la. As duas ‘referências’ com cuja ajuda se procura sair do universo fechado da linguagem, prendê-la a uma exterioridade outra - a referência ao sujeito (à instância de enunciação) e a referência ao objeto (ao mundo que cerca o homem enquanto referente) - no fim das contas, só chegam a produzir ilusões: a ilusão referencial e a ilusão enunciativa” (1979: 120).

Os exemplos dados acima são exemplos de embreagem homocategórica, que ocorre “quando a debreagem e a embreagem que a segue afetam a mesma categoria, a de pessoa, a do espaço ou a do tempo” (Greimas e Courtés, 1979: 121). A embreagem em que as categorias presentes na debreagem e na embreagem subseqüente são distintas é chamada embreagem heterocategórica. Um excelente exemplo de embreagem heterocategórica é o uso, muito freqüente

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em português, de uma medida temporal para indicar uma medida espacial.

Fica a três horas de carro daqui.

É preciso ainda distinguir entre embreagem enunciativa e enunciva. Aquela ocorre quando o termo debreante é tanto enunciativo como enuncivo, mas o embreante é enunciativo. Assim, por exemplo, num outdoor, em Minas, a frase “Em Minas, o futuro é agora” debreia a posterioridade enunciativa e nega-a com a concomitância enunciativa, em benefício da última. A embreagem é enunciativa porque é um elemento do sistema enunciativo que resta no enunciado.

Chama-se embreagem enunciva aquela em que o termo debreante pode ser enunciativo ou enuncivo, mas o termo embreante é enuncivo:

Encurtando, aconselhei o major a fazer a ceata com a menina de suas paixões em recinto de conhaque e beberetes:

- Como no Taco de Ouro, seu compadre. Para esses preparativos não tem como o Taco de Ouro.

Que procurasse o Machadinho, um de costeleta escorrida até perto do queixal, que logo aparecia mesa bem encravada no escurinho.

- Nem o major precisa abrir a boca. Machadinho vendo a cara pintada da peça, sabe no imediato que é negócio sem-vergonhista (Carvalho, 1971: 173).

A primeira fala do narrador e a debreagem interna de 2º grau indicam que a pessoa com quem o coronel falava era o major. Ocorre, portanto, uma debreagem enunciativa. Quando o coronel diz o major, temos um ele (termo enuncivo) a ocupar o lugar do tu. Portanto, trata-se de uma embreagem enunciva.

A embreagem pode ainda classificar-se em externa, quando produzida por uma instância enunciativa pressuposta pelo enunciado, e interna, quando feita por uma instância enunciativa já inscrita no enunciado.

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A embreagem, ao contrário da debreagem, que referencializa as instâncias enunciativas e enuncivas a partir de que o enunciado opera, desreferencializa o enunciado que ela afeta (Greimas e Courtés, 1979: 121). Por exemplo, quando se usa uma terceira pessoa no lugar de uma segunda, é como se o interlocutor não falasse com o interlocutário, mas com outros sobre ele. Dessa forma desreferencializa-se a instância do tu.

Com o conceito de embreagem, podemos explicar as instabilidades nas categorias de pessoa, de tempo e de espaço.

Com as debreagens enunciativas e enuncivas criamos a ilusão de que as pessoas, os espaços e os tempos inscritos na linguagem são decalques das pessoas, dos tempos e dos espaços do mundo. No entanto, a embreagem desfaz essa ilusão, pois patenteia que eles são criações da linguagem.

Os mecanismos de debreagem e de embreagem não pertencem a esta ou aquela língua, a esta ou aquela linguagem (a verbal, por exemplo), mas à linguagem pura e simplesmente. Todas as línguas e todas as linguagens possuem as categorias de pessoa, espaço e tempo, que, no entanto, podem expressar-se diferentemente de uma língua para outra, de uma linguagem para outra.

No filme “La nave va”, de Felini, a personagem que funciona como sujeito observador, ao piscar para a platéia, efetua uma debreagem actancial enunciativa, pois instaura o enunciatário no enunciado. Da mesma forma, quando Tom Jones, no filme do mesmo nome (Inglaterra, 1963, direção de Tony Richardson), joga o casaco na câmera para que o espectador não veja os seios da mulher que ele acabara de salvar das mãos de um soldado, ele desreferencializa o enunciado (é filme mesmo...), produzindo uma embreagem actancial, pois a debreagem primeira (Tom Jones do enunciado) passa a embreagem (Tom Jones instaura-se como eu pela constituição do tu).

No filme “Padre Padrone”, dos irmãos Taviani, quando Gavino Ledda está no exército em Pisa, o quartel pisano é o aqui em relação à Sardenha, que é o lá. Numa dada cena, ele está com uma arma em posição de homenagem à bandeira italiana, que está sendo hasteada no pátio do quartel, enquanto um

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sargento pronuncia um discurso sobre o valor simbólico da bandeira e sobre o valor da pátria, que ultrapassa o da família. Nesse momento, Gavino começa a recitar paradigmas da língua italiana. Quando chega ao paradigma “silvestre, bucólico, arcádico, etc.”, a bandeira italiana está tremulando sobre a paisagem da Sardenha. Quando começa a dizer o paradigma “pai, padrinho, patrono, patrão, Padre Eterno”, aparece seu pai a caminhar nos campos sardos. Nesse caso, a bandeira e a voz, que estavam em Pisa, estão na Sardenha, indicando uma neutralização entre o aqui e o lá em benefício do último. A bandeira e a língua, indicadoras da italianidade, na verdade, estão referidas à Sardenha. O aqui cultural adquire identidade em relação ao lá.

Na pintura, o quadro “A baía de São Marcos com o retorno do Bucentauro”, de Canaletto, constrói-se com debreagens espaciais e actanciais enuncivas, que instalam espaços (o canal diante de São Marcos, os edifícios) e actantes (gondoleiros e pessoas do povo) do enunciado. Essa debreagem cria um efeito de objetividade, construindo um enunciado enunciado, em que parece estar afastada a enunciação enunciada. Com isso, produz-se como que a vista real, por meio de uma transcrição literal e impessoal. Domina o quadro um efeito de realidade.

Já no quadro “A catedral de Ruão”, de Claude Monet, de 1894, busca-se não o objeto, que permanece sempre imutável, mas a cambiante impressão que ele causa aos olhos e à alma do artista. Assim, não há nesse quadro senão o esboço de um enunciado enunciado, enquanto há uma forte enunciação enunciada, uma vez que todos os traços são apreciações que remetem à instância enunciativa. O artista esforça-se por obter a instantaneidade (o nunc): quando o efeito luminoso muda, o quadro será outro. Assim, temos nele uma debreagem temporal enunciativa, em que se procura revelar a concomitância em relação ao momento da enunciação.

No quadro “A condição humana”, de Magritte, quando olhamos, vemos uma janela enquadrada por cortinas, pela qual se vê a paisagem exterior. Quando baixamos os olhos, percebemos que se trata de uma tela, pois aparecem as pernas do cavalete. Trata-se de um simulacro do ato enunciativo e de suas ilusões: a pintura mostra que o pintor pintou x, y, z. Temos, nesse caso, como que um discurso direto visual.

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Esses exemplos mostram que aquilo que se refere à instância da enunciação (debreagem, embreagem, enunciação enunciada, enunciação reportada, enunciado enunciado, enunciativo, enuncivo, ego, hic et nunc) constitui um conjunto de universais da linguagem. O que é particular a cada língua ou a cada tipo de linguagem são as maneiras de expressar esses universais.

Todos esses mecanismos produzem efeitos de sentido no discurso. Não é indiferente o narrador projetar-se no enunciado ou alhear-se dele; simular uma concomitância dos fatos narrados com o momento da enunciação ou apresentá-los como anteriores ou posteriores a ele; presentificar o pretérito; enunciar um eu sob a forma de um ele, etc.

5 Enunciação, figurativização e tematização

Toda a figurativização e tematização manifestam os valores do enunciador e, por conseguinte, estão relacionadas à instância da enunciação. São operações enunciativas, que desvelam os valores, as crenças, as posições do sujeito da enunciação. Vejamos esse fato com um exemplo.

Cenário

De um dos cabeços da Serra dos Órgãos desliza um fio d’água que se dirige para o norte, e engrossado com os mananciais, que recebe no seu curso de dez léguas, torna-se rio caudal.

É o Paquequer: saltando de cascata em cascata, enroscando-se como uma serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba, que rola majestosamente em seu vasto leito.

Dir-se-ia que vassalo e tributário desse rei das águas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro contra os rochedos, curva-se humildemente aos pés do suserano. Perde então a beleza selvática; suas ondas são calmas e serenas como as de um lago, e não se revoltam contra os barcos e canoas que resvalam sobre elas: escravo submisso, sofre o látego do senhor.

Não é neste lugar que ele deve ser visto; sim três ou quatro léguas acima de sua foz, onde é livre ainda, como o filho indômito desta pátria da liberdade.

Aí, o Paquequer lança-se rápido sobre o seu leito, e atravessa as florestas como o tapir, espumando, deixando o pelo esparso pelas pontas do rochedo e enchendo a solidão com o estampido de sua carreira. De repente, falta-lhe o espaço, foge-lhe a terra; o soberbo rio recua um momento para concentrar as suas forças e precipita-se de um só arremesso, como o tigre sobre a presa.

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Depois, fatigado do esforço supremo, se estende sobre a terra, e adormece numa linda bacia que a natureza formou, e onde o recebe como em um leito de noiva, sob as cortinas de trepadeiras e flores agrestes.

A vegetação nestas paragens ostentava outrora todo o seu luxo e vigor; florestas virgens se estendiam ao longo das margens do rio, que corria no meio das arcarias de verdura e dos capitéis formados pelos leques das palmeiras.

Tudo era grande e pomposo no cenário que a natureza, sublime artista, tinha decorado para os dramas majestosos dos elementos, em que o homem é apenas um simples comparsa.

No ano da graça de 1604, o lugar que acabamos de descrever estava deserto e inculto; a cidade do Rio de Janeiro tinha-se fundado havia menos de meio século, e a civilização não tivera tempo de penetrar o interior.

Entretanto, via-se à margem direita do rio uma casa larga e espaçosa, construída sobre uma eminência e protegida por uma muralha de rocha cortada a pique.

A esplanada, sobre que estava assentado o edifício, formava um semicírculo irregular que teria quando muito cinqüenta braças quadradas; do lado norte havia uma espécie de escada de lajedo feita metade pela natureza e metade pela arte.

Descendo dois ou três dos largos degraus de pedra da escada, encontrava-se uma ponte de madeira solidamente construída sobre uma fenda larga e profunda que se abria na rocha. Continuando a descer, chegava-se à beira do rio, que se curvava em seio gracioso, sombreado pelas grandes gameleiras e angelins que cresciam ao longo das margens.

Aí, ainda a indústria do homem tinha aproveitado habilmente a natureza para criar meios de segurança e defesa.

De um e outro lado da escada seguiam dois renques de árvores que, alargando gradualmente, iam fechar como dois braços o seio do rio; entre o tronco dessas árvores, uma alta cerca de espinheiros tornava aquele vale impenetrável.

(Alencar, 1968: 1-3).

O texto é uma descrição do cenário onde está situada a casa de D. Antônio de Mariz, fidalgo português, que fora um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro, e onde se passarão os acontecimentos relatados no romance O Guarani. Esse espaço não está organizado a partir de um aqui, mas de um marco espacial inscrito no texto, três ou quatro léguas acima da foz do Paquequer.

A figurativização desse espaço é feita com figuras recorrentes na tradição literária, para criar o que foi denominado locus amoenus: beleza e exuberância da natureza, abundância de sombras, águas, flores, presença de árvores protetoras. Não é preciso elencar todas as figuras do percurso figurativo do lugar ameno. Basta que citemos algumas: linda bacia, cortinas de trepadeiras, flores agrestes, florestas virgens

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se estendiam ao longo das margens do rio, corria no meio das arcarias de verdura e dos capitéis formados pelos leques das palmeira. A segunda característica que chama a atenção na figurativização do lugar é que a natureza é vista como um ser vivo. Os movimentos do Paquequer são comparados aos de animais: enroscando-se como uma serpente; se espreguiçar; atravessa as florestas como um tapir, espumando e deixando o pelo esparso pelas pontas do rochedo e enchendo a solidão com o estampido de sua carreira; recua um momento para concentrar as suas forças e precipita-se de um só arremesso, como o tigre sobre sua presa; fatigado; adormece. Além disso, os elementos da natureza são antropomorfizados. Observe-se que ao Paquequer são atribuídos adjetivos que se aplicam aos humanos (livre, soberbo, altivo, sobranceiro), ele é comparado a seres humanos (como o filho indômito desta pátria da liberdade; escravo submisso, sofre o látego do senhor). A natureza é denominada de sublime artista. A relação do Paquequer com o Paraíba é considerada como a de um vassalo com seu suzerano. Uma outra característica que se observa na figurativização do espaço é que elementos da natureza são comparados a artefatos feitos pelo homem: a bacia onde o Paquequer adormece é vista como um leito de noiva; as trepadeiras e flores agrestes, como cortinas; os galhos das árvores, como arcos; os leques das palmeiras, como capitéis.

No meio dessa natureza antropomorfizada, animizada, culturalizada aparece claramente um elemento humano: a casa de Dom Antônio de Mariz. Observando as figuras que constroem a imagem dessa casa, vê-se que ela aparece como um castelo medieval: no alto, protegida de todos os lados por uma muralha cortada a pique.

O narrador mostra que, no cenário que está compondo, intervêm a natureza e a cultura. Diz, por exemplo, que a escada de lajedo fora feita metade pela natureza e metade pela arte; que a indústria do homem tinha aproveitado habilmente a natureza para criar meios de segurança e de defesa.

A figurativização permite-nos dizer que o cenário criado pelo narrador manifesta o tema da integração da natureza e da cultura, a harmonia entre a natureza e a cultura. Ademais, O Guarani tem um componente das novelas medievais de cavalaria, já que, no romantismo, havia um culto à Idade Média, pois, em oposição ao neoclassicismo que exaltava a humanidade, sua racionalidade, e, portanto, os

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modelos greco-latinos, os românticos dinamizam o mito das nacionalidades e vão, pois, buscar no período medieval as matrizes culturais e ideológicas das nações que estavam surgindo. No romance alencariano, as personagens pautam sua conduta por normas cavalheirescas. Dom Antônio é um senhor feudal: habita um castelo, que abriga vassalos em torno do suzerano. O código de honra desses homens fundamenta-se na lealdade ao senhor. O espaço, em que a relação dos dois rios é apresentada com uma relação de vassalagem está, assim, perfeitamente integrado ao substrato romanesco que orienta as ações das personagens.

A harmonia do cenário, em que se integram natureza e cultura, representa o paraíso terrestre, o éden, onde o homem vivia em perfeita integração com a natureza. Nele, porém, surge a serpente e produz-se a queda, com a expulsão do homem do espaço edênico. Também em O Guarani haverá uma serpente: Loredano, que acaba produzindo conflitos, que levam à destruição da casa de Dom Antônio e à morte de quase todas as personagens.

6. Conclusões

Haveria muitos outros temas relativos à enunciação, desenvolvidos pela semiótica, a tratar: a questão da imagem do enunciador pressuposto criada pelo texto, a problemática do narrador e do narratário, a temática do observador, o problema do andamento do texto, do papel do leitor na produção do sentido, etc. No entanto, optamos por mostrar o lugar ocupado pela enunciação no arcabouço teórico da Semiótica e expor as operações enunciativas de instauração de pessoa, de espaço e de tempo, bem como de figurativização e de tematização.

A Semiótica é herdeira de Benveniste. Como ele, considera a enunciação uma instância de mediação entre a língua e a fala, uma instância logicamente pressuposta pelo enunciado, a instância de instauração do sujeito e, portanto, do ego-hic-nunc. No entanto, ao estabelecer o texto como seu objeto, altera o que se considera a língua e a fala. Aquela são as estruturas virtuais do percurso gerativo (nível fundamental e nível narrativo) e esta, as estruturas realizadas (nível discursivo). Dessa forma, de um lado, a Semiótica amplia o alcance da enunciação para todas

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as linguagens e, de outro, permite explicar o processo de construção discursiva, para além das unidades frásticas, buscando determinar as unidades transfrásticas que entram na constituição do discurso.

Notas

1 Vamos trabalhar com a oposição fôrma/forma. Ao fazê-lo, verificamos que o acento diferencial não é algo inútil, como apregoaram os eternos reformadores da ortografia. Para evitar ambigüidade, estamos restabelecendo o acento diferencial.2 Para a Semiótica, o sujeito da enunciação é constituído de enunciador e enunciatário, posição que permite analisar o papel do leitor na produção do sentido do texto.3 Essa distinção entre enunciativo e enuncivo é calcada sobre a distinção entre discurso e história operada por Benveniste (1966: 238-245). Lembra ainda a distinção feita por Culioli (1973) dos modos de enunciação em que há referências que se efetuam em relação à situação de enunciação e aqueles em que as referências se fazem em relação ao enunciado; a diferença feita por Danon-Boileau (1982: 95-98) entre referências por anáfora e referências por dêixis; a dicotomia efetuada por Harald Weinrich (1973) entre mundo narrado e mundo comentado. É interessante notar que, a partir do momento em que se nota que esses são dois mecanismos de projeção da enunciação no enunciado, a maior parte das críticas feitas à tipologia de Benveniste, como as célebres objeções feitas por Simonin-Grumbach (1983: 31-69), deixa de ter validade, uma vez que críticas, como, por exemplo, a acima mencionada, baseiam-se fundamentalmente no fato de que há textos construídos com combinações de pessoas, espaços e tempos excluídas pela definição proposta por Benveniste. Os trabalhos apontados acima mostram que esses dois elementos não são textos, mas mecanismos produtores de textos. Por conseguinte, podemos concluir que eles constituem modos de enunciação distintos que se combinam de diversas maneiras para produzir uma gama variada de textos.4 O pretérito perfeito tem, em português, dois valores temporais distintos: anterioridade ao agora, que denominamos pretérito perfeito 1, e concomitância a um marco temporal pretérito, que indicamos com o nome pretérito perfeito 2. Os tempos enuncivos são: a) em relação a um marco temporal pretérito - concomitância acabada (pretérito perfeito 2); concomitância inacabada (pretérito imperfeito);

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anterioridade (pretérito mais que perfeito); posterioridade imperfectiva (futuro do pretérito simples); posterioridade perfectiva (futuro do pretérito composto); b) em relação a um marco temporal futuro - concomitância (presente do futuro, expresso pelo futuro do presente); anterioridade (futuro anterior, chamado na NGB futuro do presente composto); posterioridade (futuro do futuro, expresso pelo futuro do presente correlacionado ao termo depois ou um sinônimo).5 A embreagem aproxima-se do que a retórica clássica chamava “enálage”, isto é, a possibilidade de usar formas lingüísticas com valor deslocado em relação a seu valor usual (Lausberg, 1966 e 1976).

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Benveniste e o sintoma de linguagem: A enunciação do homem na língua

Valdir do Nascimento FloresUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - Brasil

Resumo A análise das relações enunciativas desenvolve-se com o propósito de

mostrar como a lingüística pode convocar a patologia da linguagem para construir o seu objeto, fundada sob a singularidade do homem na língua.Palavras-chave: linguagem - patologia - enunciação

AbstractThe analysis of enunciative relations is developed with the aim of

demonstrating how linguistics can resort to language pathology in order to establish its study object, built upon man’s singularity in language.Key words: language - pathology - enunciation

Introdução

Este texto propõe-se a apresentar princípios de uma abordagem lingüístico-enunciativa do sintoma de linguagem1. Parte-se do princípio de que a “patologia”2 , mesmo que possa receber uma descrição geral, é singularmente

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organizada no sujeito que enuncia. Logo, não se trata de pensar que o estado “patológico” difere do normal por uma questão de intensificação quantitativa dos fenômenos implicados na sintomatologia, nem por uma perda de qualidade do que é dito. Defende-se que, na perspectiva da enunciação, o motor e o sensorial estão integrados desde uma posição que o sujeito ocupa na língua, com relação ao sentido produzido.

Em outras palavras, acredita-se que o estudo da “patologia” de linguagem com relação ao sujeito que enuncia permite ao clínico a construção de recursos de análise que possibilitam elaborar hipóteses sobre o funcionamento da linguagem, ou seja, sobre a singularidade da “patologia” para cada sujeito na instância enunciativa. Isso, acredita-se, contribuiria com as instâncias de avaliação, diagnóstico e tratamento em clínica de linguagem3.

Salienta-se que a perspectiva lingüística adotada é a da Lingüística da Enunciação (Cf. Flores e Teixeira 2005), em especial, na versão da teoria de Émile Benveniste (1988;1989). Nessa teoria, admite-se que a organização do sistema da língua somente se realiza na enunciação - única e irrepetível - porque a cada vez que a língua é enunciada tem-se condições de tempo (agora), espaço (aqui) e pessoa (eu/tu) singulares. Com base em Benveniste, pode-se dizer que enunciação é um conceito geral que somente tem sentido para o individual, para cada um. Neste texto, acredita-se que a concepção enunciativa de língua permite abordar o “patológico” na singularidade da fala do sujeito.

Busca-se também, a partir das idéias de Benveniste sobre a enunciação ou do que ele chama de “a presença do homem na língua” e da noção de sintoma, esboçar um programa de pesquisa que visa a desenvolver uma lingüística dirigida aos “falantes-ouvintes não ideais”4 - gagos, afásicos, disléxicos, etc. - que é de suma importância para o campo clínico. Enfim, o interesse maior é apresentar algumas considerações acerca de uma lingüística que tome a linguagem pelo que ela tem de singular - no caso, a “patologia” -, que fundamente um ponto de vista geral sobre a linguagem e, enfim, que se instaure a partir da suposição de um falante-ouvinte “não ideal”.

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O texto está dividido em quatro partes. A primeira reúne elementos que contextualizam as relações entre a lingüística e o estudo da “patologia” de linguagem. A segunda justifica as bases de uma lingüística, de natureza enunciativa, própria ao estudo do sintoma. A terceira estabelece alguns princípios que ligam o sintoma de linguagem à enunciação. Por fim, são tecidas as conclusões.

1 Contextualizando as relações entre a lingüística e o patológico

O tema geral deste texto - as relações da lingüística com a “patologia” de linguagem - não é novo na pesquisa brasileira. Nesse sentido, cabe destacar as reflexões de Lier-De Vitto (1994, 1995,1998, 2001 e 2004), que tem desenvolvido sólido trabalho num campo que busca o diálogo entre a lingüística e a clínica de linguagem, e de Vorcaro (1997, 1999), no campo da psicanálise e da clínica interdisciplinar.

Como bem lembra Vorcaro (1999: 122), a clínica dos distúrbios da linguagem (fonoaudiológica, foniátrica, neurológica ou psicológica) tem especificidades se comparada à clínica médica, porque ela não se conforma “aos quadros classificatórios e etiológicos das patologias, ou aos padrões da normalidade previamente repertoriados na literatura e na experiência do clínico”. Em outras palavras, “os distúrbios da linguagem, mesmo quando associáveis a quadros orgânicos ou a limitações do meio social, trazem a marca da posição de um sujeito na língua (...)”. As reflexões de Vorcaro sugerem que se estude o sintoma na clínica de linguagem como algo diferenciado do que costumeiramente é tratado sob esse rótulo nas demais clínicas, em especial na médica, devido ao fato de ser este sintoma um “jeito de estar” do sujeito na língua.

A relação da lingüística com o campo clínico, em especial com a fonoaudiologia, é cercada de algumas controvérsias, ao menos, por dois motivos: a) a lingüística não toma para si a tarefa de estudar a “linguagem patológica”, isto é, “a polaridade normal/patológico não faz parte do programa científico da lingüística” (Lier-De Vitto 2001: 247); b) a fonoaudiologia insiste em buscar nas diferentes metodologias (descritivas e/ou explicativas) da lingüística recursos para cercar aquilo que entende ser o próprio da “patologia”. Há, assim, no mínimo, um

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desencontro: a fonoaudiologia, para determinar as características do que pode ser considerado um sintoma de fala, recorre a um campo científico que, normalmente, não reflete sobre a especificidade dessa manifestação linguageira. Tem-se, nesse caso, a situação sui generis de uma prática (clínica fonoaudiológica) que se vale de teorias (lingüística) que não refletiram sobre esta prática.

O fato é que nem sempre se tem clareza sobre o que faz da fala uma manifestação “patológica”.Vale lembrar Lier-De Vitto (2004) para quem os “erros são inerentes ao uso da língua, mas erros patológicos de fala têm um caráter especial...”. A autora enfatiza o fato de que o “erro”, assim entendido, ou seja, como inerente à língua, não tem características especiais, e nada mais é do que algo que pertence à natureza da linguagem.

Em outras palavras o “erro”, no sentido de equívoco da fala usual, é inerente à fala, mas o “erro” patológico teria um estatuto particular, motivo pelo qual se diferencia da linguagem dita normal: “erros não são interpretáveis como ‘patológicos’ a menos que um efeito extraordinário seja produzido nos outros falantes fazendo com que a sensação imaginária de familiaridade seja afetada” (Lier-De-Vitto, 2004.). Ou seja, “erros ditos patológicos são sintomas de natureza particular exatamente porque fazem presença na fala” (Lier-De Vitto, 2001: 245).

A autora adverte que “embora sejam reconhecidos intuitivamente pelos falantes nativos de qualquer língua dada, erros patológicos não se transformaram num campo empírico ou teórico de questionamento entre lingüistas e pesquisadores” (Lier-De Vitto, 2004).

Diz ainda Lier-De Vitto:

Chamo atenção para o fato de que nessas tentativas de circunscrição do sintoma, o que se busca é relacioná-lo a um ‘déficit’ na linguagem (de competência ou pragmática ou ambas). Mas se erros ‘sintomáticos’ são localizáveis em falas de crianças com quadros clínicos de linguagem, eles perdem o caráter de ‘sintomáticos’ ao serem observados em falas de crianças ‘normais’. Vê-se, por aí, que os aparatos conceituais e descritivos utilizados não têm sido eficazes

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para distinguir erros ‘normais’ de ‘sintomáticos’ (Lier-De Vitto, 2001: 246).

O que foi dito pode levar à conclusão de que o encontro entre as duas áreas está condenado ao fracasso, o que não corresponde integralmente à verdade. Conforme Flores (2005), em primeiro lugar, deve-se perceber que as relações entre lingüística e fonoaudiologia devem ser preservadas sem, no entanto, uma ser dissolvida na outra, ou ainda, como lembra Surreaux (2000), sem fazer da lingüística mais uma das aderências à fonoaudiologia (a exemplo da medicina, da pedagogia, da psicologia).

Sobre a pertinência da articulação lingüística/fonoaudiologia e a questão do sintoma, em Lier-De Vitto (2004) encontramos uma reflexão bastante próxima da que estamos fazendo. Segundo ela, há erros toleráveis/interpretáveis e erros intoleráveis/admissíveis; “a questão é: como abordar a natureza específica do erro patológico?” Para a autora, nem tais erros, nem a categoria normal/patológico fazem parte do campo de investigação dos lingüistas.

Em linhas gerais, e sem visar à exaustividade, podemos fazer as seguintes observações acerca dos estudos da linguagem e de sua relação com o “patológico”5:

a) há na lingüística, em especial na de cunho gerativista, preocupação apenas com o âmbito do gramatical aceitável/ gramatical inaceitável ou ainda com o gramatical/agramatical. Segundo Lier-De Vitto (1995), no “dispositivo teórico de Chomsky tem lugar apenas o ‘saber’ da língua, o ‘erro’, o ‘agramatical’, o ‘inaceitável’ ficam excluídos. O funcionamento que interessa é aquele que responde exclusivamente pelas sentenças gramaticais” (p. 169);

b) Mesmo nos estudos lingüísticos que se ocupam de aspectos pragmáticos, a “patologia” não é apreendida num quadro teórico-metodológico que lhe dê status diferenciado. Contrariamente a isso, o que se vê é uma espécie de “normalização do dado”, descrevendo-o menos como singularidade de fala

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de um sujeito e mais como “especificidades” relacionadas a “déficits”;c) Normalmente o que se tem é um o “quadro” de ocorrências, de tipificação dos “erros”, de tabulação dos dados. Nesse caso, busca-se uma invariância para falar da “patologia” num sentido geral.

Descartadas essas atitudes, resta dizer que a questão de base deste texto é estudar o sintoma de linguagem numa perspectiva enunciativa, para, então, pensá-lo na dimensão da singularidade da fala daquele que a proferiu. Nesse caso, é sempre no terreno da invariância que se está.

2 Que lingüística pode estudar o patológico?

O primeiro ponto que vale ser enfatizado aqui é a certeza de que à lingüística interessa tudo o que diz respeito à linguagem ou, como diria Jakobson (1974), “a lingüística interessa-se pela linguagem em todos os seus aspectos – pela linguagem em ato, pela linguagem em evolução, pela linguagem em estado nascente, pela linguagem em dissolução” (p. 34).

A afirmação do parágrafo anterior poderia, facilmente, passar por “excessiva” aos olhos de muitos. Diriam alguns: é evidente que a lingüística tem interesse na linguagem sem hierarquizar suas manifestações, portanto, em todos os seus aspectos. O que há, na verdade, é que diferentes lingüísticas estudam a linguagem de diferentes pontos de vista, o que pode acarretar exclusões. Porém, é sempre bom avisar: tais exclusões não são da ordem do certo/errado ou do normal/anormal. A lingüística olha para linguagem sem juízo de valor.

Se, de um lado, o que foi dito é, ao menos em tese, verdadeiro, de outro lado, não é suficiente para rejeitar a afirmação de Jakobson, motivo pelo qual vale a pena conservá-la. Explico-me: em primeiro lugar, a singularidade para designar a lingüística não passa de ficção: há, hoje, tantas lingüísticas, tantas teorias, tantas versões da mesma teoria que mais vale admitir o plural para designar o campo. Alguns optam pela expressão “estudos da linguagem”, recurso este que denuncia mais claramente a pluralidade.

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Com certeza, não se está a fazer crítica alguma à diversidade teórica. Ao contrário disso, o argumento para se desenvolver uma lingüística própria ao estudo da fala sintomática é o mesmo: é com vistas à especificidade do que se quer estudar que a teoria se organiza. Porém, isso não é suficiente, pois a “patologia” indaga a lingüística pelo avesso. As questões oriundas de uma fala com gagueira, apenas para dar um exemplo, são completamente estranhas à lingüística geral. Em outras palavras: o lingüista, devido o estatuto epistemológico de seu campo – da ordem do ideal -, ao não fazer distinções entre diferentes “falares” - o que aparece no discurso científico da lingüística sob a égide da recusa à hierarquização das manifestações da linguagem – planifica diferenças que são significativas.

Em nome de uma atitude político-teórica - cuja paráfrase recebe a forma do principio “não há línguas mais complexas ou mais simples; mais fáceis ou mais difíceis etc.” enunciado reiteradamente nas aulas iniciais de qualquer curso de lingüística -, da qual não cabe discordar dada a evidência inconteste que encerra, esquece-se que a fala sintomática tem especificidades que estão para além da simples descrição lingüística dos “problemas” detectáveis por um método apriorístico.

Estudar a fala sintomática exige do lingüista que convoque, além de uma lingüística que não seja refratária à “patologia”, exteriores teóricos à lingüística, pois o que está sob exame transcende os quadros do ideal de cientificidade da lingüística. Essa atitude de escuta da exterioridade da lingüística é preconizada por Jakobson quando a respeito da afasia afirma:

A aplicação de critérios puramente lingüísticos à interpretação e classificação dos fatos da afasia pode contribuir, de modo substancial, para a ciência da linguagem e das perturbações da linguagem, desde que os lingüistas procedam com o mesmo cuidado e precaução ao examinar os dados psicológicos e neurológicos como quando tratam de seu domínio atual (Jakobson, 1974: 36)

Não se pode deixar de chamar a atenção na citação acima, além da explícita convocação de exterioridades teóricas, o fato de Jakobson considerar a “ciência da linguagem” também uma ciência “das perturbações da linguagem”. Ou seja, por um único gesto Jakobson, com uma síntese ímpar, apresenta o ponto de

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vista que se está a defender, qual seja: é legítima a presença das “perturbações da linguagem” no escopo da lingüística desde que os lingüistas a contemplem num quadro que convoque exterioridades teóricas.

Em outros termos: para que o sintoma de fala compareça no escopo da lingüística, esta deve, simultaneamente, interrogar-se sobre seus limites e convocar exteriores teóricos.

É na linha do que diz Jakobson que Flores (2005: 163-164) problematiza a respeito da natureza e da necessidade das relações entre a clínica de linguagem e a lingüística e, por esse viés, das relações entre a fala sintomática e a lingüística: o que pode a clínica de linguagem esperar da lingüística? O que é esperado da lingüística é condizente com sua episteme? Que lingüística e qual concepção de linguagem podem interessar ao trabalho na clínica de linguagem? Levar em consideração o sintoma de fala produz algum efeito na lingüística?

Sobre isso Flores (2005) conclui: a lingüística deve reconfigurar-se epistemologicamente quanto à concepção de objeto - para que o sintoma possa integrá-lo enquanto um interrogante - e quanto à concepção de teoria, já que esse objeto passa a ser marcado por relações que demandam um quadro teórico mais amplo, o que é aqui tratado em termos de exterioridade.

Assim, o quadro teórico mobilizado para a análise da linguagem em seus aspectos de sintoma de fala impõe ao pesquisador questões de natureza teórico-metodológica que são, ao mesmo tempo, gerais e específicas. São gerais porque comuns a toda e qualquer área que tem a pretensão de cientificidade – e a lingüística caracteriza-se por ser um estudo científico, mesmo que o conceito de ciência mereça ser, nesse contexto, mais detidamente tratado -; são específicas porque as respostas a elas sempre indicam formas singulares de conceber o que é próprio a cada especialidade. Isso toma proporções maiores quando a área em foco pretende fazer uma reflexão interdisciplinar, como é o caso da fala sintomática que coloca em implicação a lingüística e o campo clínico.

Tenho defendido que a lingüística que interessa à clínica de linguagem

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deve ter uma escrita própria (cf. Flores, 2005). Com isso, quero dizer que tal lingüística decorre de recorte específico cuja configuração epistemológica ainda está por ser traçada. O ponto de vista criador de um objeto, como diria Saussure, que inclua as questões de “patologia”, ainda está por ser feito.

De minha parte, acredito que, no campo da lingüística, a abordagem enunciativa é extremamente produtiva para o estudo da fala sintomática e que, no campo das exterioridades à lingüística, a psicanálise lacaniana poderá dizer algo, em especial, a partir de noções como a de sintoma, por exemplo.

Este texto, como seu título anuncia, está circunscrito apenas à primeira parte, ou seja, ao campo da lingüística. Mesmo assim, é necessário fazer algumas observações sobre essa explicitação dos exteriores teóricos: quando se trabalha no campo da enunciação é inevitável o não-fechamento do lingüístico sobre si mesmo, pois a enunciação convoca as condições de sua própria realização: o sujeito, o tempo e o espaço. Esse não-fechamento pode se configurar de diferentes maneiras, em distintos quadros teóricos: pode se configurar num estudo não-imanente da linguagem e, por esse viés, são levadas em conta as categorias de pessoa, tempo e espaço na interpretação semântica do lingüístico; pode se configurar também num não-fechamento mais radical, qual seja, aquele que impõe dizer algo sobre o sujeito.

Nesse último caso, o não-fechamento não está restrito ao interior do lingüístico, mas o que é colocado em suspenso é o fato de a lingüística bastar-se a si própria. Ora, é evidente que não se pode imputar à Lingüística da Enunciação, na sua generalidade, a obrigação de estudar o sujeito. Há aquelas que, legitimamente, mantêm-se no campo do lingüístico trabalhando no nível da representação do sujeito no enunciado, sem contemplá-lo diretamente (cf. Flores e Teixeira, 2005). Mas, desde que se queira dizer algo sobre o sujeito que enuncia, torna-se incontornável o recurso a exterioridades teóricas.

Há, assim, a necessidade de escolher a exterioridade. Para a lingüística que quero fazer, a que se dirige ao “falante não ideal”, um sintoma não tem existência se não para um sujeito (e neste ponto é preciso voltar a Lacan). Se meu interesse

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recai sobre a fala dos que recusaram o lugar ideal de enunciar, sobre a enunciação daqueles que falam sem que os lingüistas os escutem, então a exterioridade se impõe6.

Por último, vale lembrar, a lingüística da enunciação, ao estudar o sintoma no quadro da singularidade dos sujeitos, problematiza a invariância dos dados, ou seja, não se trata mais de descrever a “patologia” na sua generalidade, mas, sim, no funcionamento da linguagem. A seguir tentarei justificar alguns encaminhamentos, tomando por base, em especial, a teoria de Benveniste.

3 A enunciação e o sintoma de linguagem

Os Problemas I e II7 de Benveniste são fonte inesgotável de inspiração teórica e isso se deve a, no mínimo, um motivo: cf. afirmado em Flores e Teixeira (2005), Benveniste não desenvolveu um modelo de análise da enunciação, ao menos não nos moldes que a lingüística comumente entende a palavra “modelo”. Sua obra, conhecida como fundadora do que se convencionou chamar teoria da enunciação, é constituída de um conjunto de textos que simultaneamente teorizam e analisam a enunciação.

Ao contrário de outros autores da lingüística da enunciação que constantemente refizeram seu trabalho (Oswald Ducrot, por exemplo), Benveniste escreveu, em um período de 40 anos, cerca de quinze artigos reunidos nos dois volumes dos Problemas sem que nenhum destes textos constituísse propriamente um modelo. O que se encontra neste conjunto é a reflexão teórica lado a lado com a análise da linguagem e das línguas8.

Há em tal configuração teórica pontos positivos e negativos. Um ponto positivo é, sem dúvida, a possibilidade que a obra de Benveniste dá ao leitor de que este possa interpretá-la com certa liberdade: como não há um modelo ao qual recorrer como instância de validação de leituras é sempre de uma interpretação que se está a falar. E é por isso que há múltiplas interpretações; algumas nem sempre convergentes.

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O ponto negativo decorre do anterior: dada a ausência de uma instância ratificadora da interpretação feita, a obra de Benveniste tem sido alvo de leituras que, muitas vezes, estão em diametral oposição aos princípios teóricos do autor. Cristalizam-se leituras, lê-se de segunda mão e comete-se equívoco de toda a ordem9.

Em linhas gerais, porém, considerando-se o conjunto da obra, se pode reconhecer a retomada de temas, a manutenção de princípios gerais10, a proposição de temas novos e mesmo a alteração de noções.11 Isso significa que Benveniste operou deslocamentos em seu trabalho. Perseguir tais deslocamentos é delinear a diacronia de um pensamento em formação.

Isso posto, cabe ainda dizer que, em função de um dos objetivos deste texto - buscar uma “nova aplicabilidade” da teoria da enunciação benvenistiana, no caso, a aplicação aos estudos do sintoma de fala12 -, não se fará apresentação da obra de Benveniste, nem mesmo de conceitos que a constituem.

Abrir os estudos enunciativos à fala sintomática é atitude que corrobora princípios concernentes a dois planos: no plano epistemológico (cf. supra), defende-se que integra o horizonte de investigação da lingüística tudo que for da ordem da linguagem – o que inclui a fala sintomática -; no plano metodológico, considera-se que “olhar” a “patologia” é exercício que possibilita ao investigador compreender o funcionamento da linguagem na sua amplitude.

Por que buscar em Benveniste subsídios para abordar a fala sintomática? O que isso pode dizer da linguagem em geral e da língua em particular?

Ora, argumentou-se acima que a teoria da enunciação, ao tomar a fala de cada um pelo que ela tem de singular, permite a elaboração de hipóteses sobre o funcionamento da linguagem, tendo em vista a singularidade da “patologia” para cada sujeito na instância enunciativa. Ou seja, o conceito de enunciação está ligado – e isso não apenas no que tange à fala sintomática – ao princípio da generalidade do específico.

Em outras palavras: o “aparelho formal da enunciação” – expressão cunhada

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por Benveniste para designar os dispositivos que as línguas têm para, por um ato singular de utilização, os locutores se proporem como sujeitos de sua fala – é geral - alguns diriam universal, já que não se admite língua que não o tenha - e específico. A especificidade se apresenta em dois planos distintos e interligados: a) no plano das línguas, já que cada língua tem o seu aparelho; b) no plano do sujeito, já que, para este, o aparelho é sempre único a cada instância de uso (tempo e espaço). Assim, a enunciação é um conceito, a um só tempo, universal e particular. Isso pode receber a seguinte formulação axiomática: é universal que todas as línguas tenham dispositivos que permitam sua utilização singular pelos sujeitos, é particular a configuração desses sistemas e o uso que os sujeitos fazem deles.

Nessa direção, parecem óbvios os motivos que me levam a recorrer à teoria de Benveniste para ensejar uma forma de vislumbrar a fala sintomática. Como forma de ilustrar o que estou dizendo ao evocar a singularidade da fala sintomática, retomo abaixo um dado analisado em Flores; Surreaux; Kuhn (2005), agora revisto sob a ótica dos objetivos aqui expostos.

Trata-se de um dado/fato13 de fala com características de ecolalia14. Nesse tipo de fala o sujeito que enuncia tem a tendência de repetir automaticamente sons ou palavras ouvidas; é uma espécie de repetição em “eco” com excessiva repetição das falas do interlocutor15. Tal “patologia” é normalmente associada à perda de evidência de entendimento e à perda de fala espontânea também conhecida como “fala sem autoria” ou “repetição tal qual um papagaio”.

Observe-se o episódio A abaixo, em que F é o clínico e P o locutor, cuja enunciação é objeto de pequeno comentário subseqüentemente:

Episódio A17

1)Tu qué que eu pegue um pratinho?

2) Qué que eu pegue?

3) Tu qué que eu pegue um pratinho pra gente fazer comida pro cara?

4) Pegue.Um cópi.

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F: P:

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Observe-se que a repetição de (2) qué que eu pegue? está na dependência da enunciação anterior (1), Tu qué que eu pegue um pratinho?. A prova disso é que se repetem em (2) não apenas as palavras do enunciado (1), mas a interrogação dele. É essa repetição que geralmente é tratada como ecolalia e na qual se diz “não haver autoria”.

Se o fato de haver repetição é incontestável, chama a atenção que isso se dê com um funcionamento bem específico: trata-se de repetição parcial de (1) em (2). O mesmo acontece com a repetição de (3) em (4).18 Ora, sendo parcial não se pode afirmar ser propriamente uma repetição, pois lhe falta a característica essencial: a identidade.

Assim, se existe parcialidade é porque houve recorte da fala de F por parte de P, e se houve recorte é porque o dispositivo lingüístico de enunciação de P inclui o ato de recortar a fala de seu interlocutor para, a partir disso, produzir a continuidade de sua fala. Isso mostra não se tratar de mera repetição, mas de repetição colada à voz do outro, base para que se produza o “novo” na enunciação

F: P:

5) Uma jarra?

6) Tá seio di di água lá dentu.

7) Cheio de água. E o cara está com sede?

8) U cala tá cum sedi.

9) Ah, então vamos dá alguma coisa para ele beber. Tem algum copo ou xícara por aí, P?

10) (...)

11) Na jarra?

12) na jarra(...)vamo botá as águas

13) Uhm-uhm. As águas, o cara pelo jeito está com muita sede!

14) (...)

Contextualização Enunciativa do episódio A:Trata-se de um recorte retirado de uma situação de atendimento clínico em que F e P estão “brincando” de fazer comida pra alimentar um personagem – “o cara” (L-7).

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de P. Observe-se que em (6) e (8) P introduz no enunciado elementos ausentes da fala de F.

Grosso modo, pode-se dizer que o aparelho formal de enunciação de P, para usar uma expressão benvenistiana, apresenta-se com um funcionamento que inclui o recorte de elementos presentes no enunciado do interlocutor a partir do que P pode produzir o “novo”, com autoria sem dúvida, em sua própria enunciação. O entendimento da singularidade desse funcionamento é de suma importância nas instâncias clínicas de avaliação e tratamento.

Considerações Finais

Com certeza as observações feitas acima a respeito do Episódio A não esgotam as possibilidades de análise na instância enunciativa. Certo está que não se procurou apresentar um modelo de análise da fala sintomática, mas apenas indicar uma primeira elaboração, com a finalidade de justificar o recurso ao campo da enunciação para o estudo da fala sintomática. Este texto, portanto, não encerra em si uma proposta de análise. É antes uma explicitação argumentada dos motivos que justificam a abordagem enunciativa. Assim, o Episódio A deve ser visto como ilustração do que se está a defender.

Isso, porém, não impede que se diga algo, ao menos em termos programáticos, sobre a pertinência do campo enunciativo para o estudo do sintoma de fala.

Primeiro: penso que a lingüística própria à clínica de linguagem não pode abdicar da figura do locutor. Tal obviedade carece de maior esclarecimento: parece evidente que a “patologia” diz respeito à dimensão de uso da linguagem e também àquele que a usa. Ora, se, por um lado, é verdade que detectar (descrever, explicar, classificar) “erros” do uso da língua é tarefa que, de certo modo, a lingüística já tem feito, por outro lado, não se pode negar que esta forma de abordar os ditos “erros” pouco diz da singularidade da fala de um sujeito e de como ele se enuncia nesta língua. Em outras palavras, a lingüística que incluir em seu objeto a “patologia” não pode ignorar que o sintoma de linguagem não é separado daquele que o enuncia.

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Segundo: não basta que o locutor compareça no escopo da lingüística é necessário que o faça desde a suposição de um quadro não-simétrico da enunciação. É preciso lembrar que incluir aspectos pragmáticos, discursivos, textuais, etc. no campo da lingüística já é procedimento consagrado entre os estudos da linguagem. Porém, no caso da “patologia” de linguagem, trata-se de colocar o processo em relevo e não o produto. É de suma importância poder “ouvir” a enunciação do locutor na língua e como, por esse ato, ele se propõe como sujeito.

Nesse sentido, o não-simétrico diz respeito ao fato de os sujeitos se proporem como tal a partir da própria fala na relação com o outro – e isso se dá com ou sem “patologia”. Mas que não se veja aí simetria com o outro. É Benveniste quem explica: “‘eu’é sempre transcendente com relação a ‘tu’” ao que Dufour acrescenta: “‘eu’ se desvanece em sua evidência mesma, deixando em aberto a questão de sua própria existência. Um princípio que resolve a si mesmo é um princípio inapreensível” (Dufour, 2000: 84). Enunciar é, assim, um exercício de troca do uso de “eu”, troca esta que somente é possível no exercício da língua, ou seja, enunciar é admitir a possibilidade de se propor como “eu” e por este ato mesmo propor o outro como “tu”, sabendo-se desde sempre que isso implica submeter-se à fugacidade do lugar – imaginário, certamente – do “eu”. Eis o paradoxo da enunciação: não se pode ser sujeito sem ocupar o lugar de “eu”, mas é necessário abandoná-lo em favor do “tu” no instante mesmo em que o “eu” quer ser “eu”. Assim, parece que a lingüística da enunciação tem algo a dizer sobre a enunciação do que chamei antes de “falante-ouvinte não-ideal”.

Terceiro: a fundação da lingüística como saber é o que estará sempre em pauta quando a questão é sujeito e “patologia”. Ora, a Lingüística da Enunciação interessa à tríade linguagem/sujeito/ “patologia” na justa medida em que, ao constituir um “novo” campo, Benveniste formulou pressupostos que não são refratários à fala sintomática. E, desde que se problematize sujeito, abre-se uma porta para que sejam convocados exteriores à lingüística, o que, no caso da “patologia”, é essencial.

Quarto: a lingüística - e a da enunciação também - se interessa pela linguagem em todos os seus aspectos, como diria Jakobson, porém a apreende no

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quadro da irrepetibilidade, próprio à enunciação. Assim, a falha, o patológico, entre outras singularidades da língua, são enunciações que se mostram no simbólico porque são articuladas ao sujeito como instância do singular. O regular que a falha possa suscitar não evoca mais que a posição imaginária de unificação da linguagem. A falha na linguagem é a descontinuidade imaginária da qual tudo não se pode dizer.

Finalmente, acredito que o campo do singular não despreza a regularidade, mas que também não se encerra nela. Ora, muitas coisas podem mudar de status se esse programa se instaura e a lingüística dirigida aos “falantes não-ideais” - gagos, afásicos, disléxicos etc. - produzir retornos sobre a reflexão da linguagem em geral. Entende-se, enfim, o recorte que fiz sobre a obra de Benveniste, pois dele advirá o modelo da reflexão de lingüística geral que pretendo instaurar.

Notas

1 Tal objetivo está vinculado ao projeto de pesquisa Lingüística e o sintoma da/na linguagem: a instância da falha na fala que desenvolvo junto à UFRGS. A execução deste projeto é feita por uma equipe de pesquisadores, oriundos de diferentes áreas, que, sob minha coordenação, busca na lingüística enunciativa e na psicanálise freudo-lacaniana elementos para a abordagem do sintoma da/na linguagem na clínica de linguagem. Entre outras coisas, buscam-se argumentos para estabelecer uma forma de viabilizar a inscrição da clínica de linguagem em uma teoria lingüística que lhe seja própria.2 A palavra é colocada entre aspas para registrar distanciamento da acepção corrente do termo. Isto é, o patológico é normalmente definido por oposição a um estado de saúde que, articulado a determinados sinais, configura um todo que é a doença. Prefere-se, aqui, a palavra sintoma, numa acepção inspirada pela psicanálise lacaniana, que tem a particularidade de não assinalar um significado generalizável. Nessa acepção, o sintoma está articulado ao sujeito que enuncia, portanto, revelador não de uma doença, mas de uma posição que o sujeito ocupa na sua própria fala.3 Este texto, em alguns momentos, produz algumas oscilações entre a expressão clínica de linguagem e fonoaudiologia. Porém, com a expressão clínica de linguagem,

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quer-se referir um campo da área de atuação clínica referente aos transtornos de linguagem sem que isso implique, necessariamente, uma clínica fonoaudiológica.4 Este termo tem a função de marcar, pela negação que carrega, o lugar epistemológico do qual falo. Não se trata, portanto, de crítica ao pensamento chomskyano, mas de recurso de elucidação. Em outras palavras, interessa a este trabalho o que é circunscrito pela negação.5 Não se pode esquecer também que há a gramática tradicional, que, devido o seu caráter pedagógico, instaura a dicotomia correto/incorreto. Parece que os julgamentos de valor advindos das noções de certo/errado da gramática tradicional não são a fonte mais sólida para a abordagem das “patologias”6 Os termos da implicação dessa exterioridade na lingüística enunciativa serão tema de outro texto.7 Problemas de Lingüística Geral I e II8 A distinção língua/linguagem é de suma importância no pensamento de Benveniste. Ao contrário de Saussure que, ao menos na versão das idéias apresentadas no Curso de Lingüística Geral, exclui do objeto da lingüística a linguagem em função de sua natureza “multiforme e heteróclita” (Saussure, 1975: 17), Benveniste interessa-se pela linguagem e pela língua simultaneamente. A intersubjetividade por ele estudada é da ordem da linguagem, o título de um de seus artigos mais célebres, datado de 1958, Da subjetividade na linguagem, atesta isso. Ainda como exemplo vale citar uma das inúmeras passagens dos Problemas em que linguagem e língua estão imbricadas na análise benvenistiana: ao falar dos pronomes, em texto de 1956, A natureza dos pronomes, considera: “a universalidade dessas formas e dessas noções faz pensar que o problema dos pronomes é um problema de línguas, ou melhor, que só é um problema de línguas por ser, em primeiro lugar, um problema de linguagem” (Benveniste, 1988: 277).9 Para uma visão geral de alguns temas da obra de Benveniste ver: Flores e Teixeira (2005).10 Em Flores (2004: 221) encontra-se a fundamentação para sustentar a tese segundo a qual a intersubjetividade é o princípio, reconhecível em toda a obra de Benveniste, a partir do qual todo o seu trabalho se organiza, aí incluídos os textos de sintaxe, morfologia, léxico etc. “O sujeito não é uma coisa. Independentemente do lado que se olhe ele é uma condição para que o homem exista. Mas para que exista como linguagem, porque opor o homem à linguagem é opô-lo a sua própria

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natureza. O sujeito é linguagem, e a intersubjetividade é a sua condição. Eis o a priori radical de Benveniste”. E ainda: “há na obra de Benveniste o a priori de que o homem se constitui como sujeito na linguagem e a intersubjetividade é a condição da linguagem, então nenhum tema que tenha sido objeto de estudo do autor escaparia a isso, pois tal a priori teria valor primitivo”. (p.222)11 Para ver um quadro epistemológico da obra de Benveniste eu remeto a um artigo meu, “Por que gosto de Benveniste? Um ensaio sobre a singularidade do homem na língua” publicado no nº 138 (v. 39) da revista Letras de Hoje.12 Relacionar o pensamento de Benveniste ao estudo da fala sintomática não é atitude inédita. Para tanto, ver: Surreaux, L. “Benveniste, um lingüista que interessa à clínica de linguagem”. In: Letras de Hoje. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004 (nº 138, v. 39). 13 Em lingüística da enunciação o dado não é jamais “dado”, mas se configura num fato na medida em que é produto de um ponto de vista, o que cria o objeto a ser analisado. Os dados, ao serem apresentados em recortes, aqui denominados episódios, possibilitam que se enfoque mais detidamente a cena enunciativa desenvolvida na situação clínica e, em especial, que se tome as falas em relação uma com a outra como forma de vislumbrar o uso dos recursos enunciativos na construção da co-referencialidade. A expressão “fato lingüístico” é autorizada pelo próprio Benveniste, quando em texto de 1964, Os níveis de análise lingüística, diz: “quando estudamos com espírito científico um objeto como a linguagem, bem depressa se evidencia que todas as questões se propõem ao mesmo temo a propósito de cada fato lingüístico, e que se propõem em primeiro lugar relativamente ao que se deve admitir como fato, isto é, aos critérios que o definem como tal” (1988:. 127).14 Os dados integram o Banco de Dados que está em construção junto ao Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.15 Trata-se de uma criança com 3 anos e 5 meses, encaminhada pela escola para tratamento em função de hipótese de retardo de linguagem e de ecolalia.16 É considerado episódio a transcrição de dados ocorridos em uma sessão clínica, produzidos a partir de interpretação que proporciona um recorte. Tal relação entre as falas é denominada de co-referencialidade.17 Convenções de Transcrição(.) um ponto entre parênteses indica que há uma pausa curta intra ou interturnos

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(...) três pontos entre parênteses indicam que há uma pausa longa intra ou interturnos PALAVRA letra maiúscula indica fala com intensidade acima da fala que a rodeiaPala- hífen indica corte abrupto da fala( ) parênteses vazios indicam que o transcritor foi incapaz de transcrever o que foi dito – segmento ininterpretável.(( )) parênteses duplos indicam comentários do transcritor sobre o contexto enunciativo restritoA transcrição é feita resguardando, na medida do possível, a proximidade da fala. Palavra com som alterado é escrita em itálico e tem o fonema em questão transcrito de acordo com o alfabeto fonético internacional. Acompanha a transcrição um quadro onde se descreve o contexto enunciativo da ocorrência do fato lingüístico. 18 Tal parcialidade é denominada em Flores; Surreaux; Kuhn (2005) de “fixação metonímica”.

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Benveniste: enunciação, manualização e disciplinarizaçãoKarina Giacomelli

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria - Brasil

Resumo O lugar ocupado por Benveniste no manual de introdução a lingüística é

apresentado como um processo de disciplinarização de uma teoria científica.Palavras-chave: enunciação - manualização - disciplinarização

AbstractThe role played by Benveniste in the manual of introduction to linguistics

is presented as a process of disciplinarization of a scientific theory.Key words: enunciation - manualization - disciplinarization

Introdução

Este artigo tem como objetivo verificar a referência a Benveniste na lingüística brasileira, ou seja, qual o lugar ocupado pelo autor em um manual de lingüística.

Escolheu-se, para a análise, a coleção Introdução à Lingüística1 por dois motivos principalmente: pela sua atualidade, visto que, na última década, este foi

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o primeiro trabalho de introdução à ciência da linguagem publicado no Brasil; e pela sua amplitude, uma vez que a obra procura apresentar as principais correntes da lingüística, bem como os fundamentos epistemológicos de cada campo.

É justamente esse panorama tão abrangente que vai permitir definir quais orientações dessa ciência se evidenciam como necessárias para que se tenha um panorama geral dos estudos da linguagem no país. Explicando melhor: da diversidade dos enfoques possíveis para se estudar a linguagem no domínio específico da lingüística, algumas se estabelecerem em disciplinas acadêmicas. Há uma relativa unanimidade na área; ou seja, há um conjunto de disciplinas que é comum à maioria dos cursos. São justamente essas as que se espera estarem representadas em um manual de introdução destinado aos estudantes universitários, refletindo a organização da lingüística no âmbito do ensino.

Por ser um campo essencialmente heterogêneo, a enunciação, e, por conseqüência, as teorias da enunciação, disciplinarizaram-se da mesma forma variável e heterogênea que as teorias de referência desse campo. Por isso as várias correntes que tratam do tema e por isso, também, a escolha, pelo pesquisador, de uma delas para seu limite de trabalho. Isso se reflete no ensino de lingüística, na universidade – sendo especialista em um determinado campo, o lingüista, que no Brasil também é professor universitário, acaba por privilegiar determinada área2. Esta acaba por firmar-se na tradição acadêmica através dos grupos de pesquisa orientados na instituição. Dessa forma, quando são organizados os manuais de introdução à lingüística, parece óbvio que irão receber espaço as teorias já estabelecidas como disciplinas.

Interessa, nesse sentido, verificar como Benveniste é citado nesses manuais, considerando-se a variedade das teorias que tratam da enunciação e a falta de um espaço institucionalizado para uma lingüística da enunciação com base na teoria do autor. Ou seja: considerando que não se pode deixar de referir Benveniste em qualquer campo que trate da enunciação em seu escopo teórico, uma vez que se deve a ele a conversão da língua a discurso, como essa referência é feita nas diversas correntes que se apresentam manualizadas?

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Como essa coleção analisada se organiza a partir de correntes lingüísticas, pretende-se, então, apontar se e como o processo de disciplinarização recorre ao modelo progressivo, ou seja, a busca por uma igualdade disciplinar através do agenciamento de alguns aspectos das escolas lingüísticas anteriores a fim de legitimar a sua própria corrente numa continuidade científica. Nesse sentido, quais disciplinas citam Benveniste e como? Quais silenciam e por quê?

1 Manualização dos saberes e disciplinarização

Para Puech (1999: 15), a manualização dos saberes lingüísticos é um dos aspectos de um processo mais amplo, a disciplinarização. Inserida nesse campo, essa questão é tratada como ocasião da possibilidade de se confrontar dois tipos de contextualização: o da constituição dos saberes “savantes” e o do mundo escolar3. A manualização aconteceria, então, no ponto onde eles convergem, refletindo uma representação dos saberes disciplinares, isto é, da disciplina enquanto matéria de ensino e complexidade de conteúdos.

O autor considera que a disciplinarização da enunciação não começou com a sua introdução teórica, uma vez que não se trata de uma teoria homogênea, mas de uma constelação de teorias de referência que foram exploradas de acordo com a ocasião, o desejo e os imperativos didáticos variáveis do campo escolar: “En effet, s’il n’exist pas, dans le champ des ‘savoirs savantes’ une théorie homogène de l’énonciation, um sens univoque associé au terme discours, il est bien difficile de discerner au collège et au licée um domaine d’enseignement homogène subsumable sous ces noms (...)” (idem: 10).

Desse modo, a consideração da enunciação nas teorias lingüísticas é formada por perfis disciplinares pouco homogêneos, mesmo quando elas são fortemente aparentadas. Isso acontece porque, de uma a outra, há:

- uma dupla polaridade entre os saberes savantes e as escolhas didáticas a serem feitas;- a proximidade com o estruturalismo e a representação dos saberes – nesse sentido a enunciação pode aparecer como complemento ou como alternativa para os lingüistas das estruturas (eles mesmos pouco homogêneos);

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- enfim, o peso retrospectivo de duas histórias, duas temporalidades: a da história das idéias e a das tradições escolares (história e temporalidades que levam a contextualizações diferentes). (idem: 27).

A manualização dos saberes concernentes à enunciação dá-se, então, no cruzamento de duas séries de imposições, contextualizações e histórias: (1) a da representação dos saberes em disciplinas no interior mesmo dos saberes savantes e (2) a da integração destes em um complexo de conhecimentos, práticas e objetivos no mundo escolar. O autor defende que entre elas não existe uma ruptura, mas um continuum de representações, mesmo heterogêneas ou alteradas. Assim, a manualização dos saberes lingüísticos “represente sans doute l’aboutissement d’um processus continu qui, de l’invention au réinvestissemente das les savoir-faire scolaires, traverse plusieurs types de contraintes liées à la transmission’’ (idem: 28).

Uma oposição entre saberes “savantes” e saberes “ensignés” colocaria a dificuldade de uma também oposição entre uma ciência tida como “pura”, assimilada pelo saber universitário e por isso desvinculada de todas as contingências específicas da enunciação, e um discurso imerso em situações de comunicação, o que obrigaria a uma seleção, contextualização/recontextualização dos conteúdos (Chiss e Puech, 1999). No entanto, salienta Puech, nada se ganha ao enrijecer em oposição à distinção saberes “savantes”/saberes “enseignés”, pois o imperativo da transmissão é o eixo sobre o qual as práticas normatizadas da invenção e as do ensinamento se comunicam entre si.

No discurso sobre objeto e o método nem sempre pode ser possível o reconhecimento do discurso disciplinar. Isso porque condições específicas de enunciação ordenam os saberes “savantes” em condições abstratas e os estratos do discurso disciplinar, no qual as imagens da disciplina se combinam, superpõem-se e ecoam em função de estratégias variadas, depois da invenção do conhecimento até sua socialização mais ampla. As condições de produção de um discurso disciplinar requerem que o especialista opere um descentramento pelo qual sua adesão às marcas, normas e valores disciplinares não fale por si, mas se materialize e se comunique: “la discipline est moins um état de fait qu’um processus toujours

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dejà commencé et recommencé” (idem: 19).

De acordo com Puech (1999), o processo de didatização dos saberes se estabelece graças a um grupo profissional que assume a mudança no rumo das pesquisas até então dominante, estabelecendo um novo campo de pesquisa através de uma balizagem axiológica, retrospectiva e projetiva de uma área em vias de disciplinarização. A enunciação, nesse sentido, foi estabelecida como campo científico em uma relação que ora se ligava ora rompia com o estruturalismo lingüístico. No entanto, afirma o autor, o esforço de disciplinarização dos saberes feito a partir do discurso de exposição não está limitado à simples apresentação de um domínio pré-existente, pois aí se organizam a acumulação de conhecimentos e as “descobertas” feitas no tempo, agenciando uma trama narrativa. Assim, “en son sein, l’héritage exposé n’est que la propédeutique à la novation.” (idem: 19).

Para os “inventores do saber” a preocupação com a transmissão e com a contextualização dos conhecimentos pode não ser seu primeiro interesse, mas eles não podem ignorá-los. Chiss e Puech (1999) apontam que a transmissão de conhecimento e as modalidades de representação disciplinar estão ligadas no trabalho do pesquisador. Desse modo, o esforço dos lingüistas para construir a representação disciplinar que situa seu trabalho implica:

- que certa autonomia do discurso disciplinar explícito possa ser determinada;- que o discurso disciplinar seja concebido a partir de um campo balizado pela vulgarização do conhecimento científico e de um campo mais vasto e menos determinado no qual o especialista é levado a contextualizar seus trabalhos, abordagem do objeto, procedimentos de análise, etc., ao se dirigir a seus pares: ou a outros especialistas da mesma disciplina ou de outras disciplinas, ou a representantes de instituições científicas. (idem: 17)

Configura-se, portanto, um imbricamento entre a transmissão e a representação disciplinar que cada lingüista dá de seu trabalho, tornado a transmissibilidade do saber um transbordamento do campo da vulgarização, ao implicá-lo. É por isso, segundo os autores, que o discurso esotérico do especialista não pode ignorar a necessidade exotérica de se situar para se transmitir.

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A exposição dos saberes deve, às vezes, mostrar de quais tradições depende, qual grau de inovação realiza e em quais divisões de conhecimento implica (Puech, 1999). Assim, está ligado a um discurso coercivo que porte essa exposição de saberes e assegure a sua transmissibilidade segundo modalidades variadas.

Dando como exemplo o caso da entrada do estruturalismo na escola e nos manuais nos anos 1970, Puech (idem: 20-21) aponta que a representação dos saberes próprios a esse campo foi marcada, pelo menos, de cinco maneiras: (1) identificação da cienticificidade que, na maioria dos casos, “congelou”, as dicotomias saussurianas; (2) homogeneização de um campo intelectual apesar da diversidade de escolas lingüísticas, em um esquecimento das tradições que o viram nascer; (3) reforço dialético da homogeneidade do estruturalismo pelo seu sucesso fora da lingüística e da esperança que nasce em todo campo das ciências humanas; (4) reivindicação da autonomia da lingüística fundada sobre a concepção da língua-sistema; e (5) a referência a um fundador modulada em função de revisões e modificações incessantes, mas garantia de uma coerência disciplinar que forneceria as fronteiras da memória.

Para o autor, a enunciação e as condições “savantes” de sua introdução nos saberes “enseignés” não correspondem às mesmas do estruturalismo lingüístico. A materialização das teorias da enunciação é recente, o que não caracteriza uma referência à memória, nem se apresenta como um projeto homogêneo, pela compartimentalização do domínio, impossibilidade de circunscrever um único ponto de vista e a necessidade de uma escolha epistemológica.

No entanto, se isso diz respeito às teorias da enunciação, volta-se a insistir, aqui, que uma referência à enunciação, na singularidade de uma teoria, a de Benveniste, parece satisfazer alguns dos pontos citados acima. Considerando, de uma forma geral, as citações às teorias benvenistianas, vê-se que a enunciação pela perspectiva do autor insere-se em uma dimensão histórica nos estudos da linguagem. Tomado principalmente (senão apenas) como o autor que permitiu a passagem da língua ao discurso, Benveniste, no tocante à subjetividade, intersubjetividade, dicotomias como pessoa-não pessoa, história-discurso, semiótico-semântico, teve sua teoria restrita a esses pontos, em detrimento ao tratamento do conjunto

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de suas proposições. Isso faz com que seus estudos sejam apreendidos apenas pelo que está reunido na parte intitulada O homem na língua, nos Problemas de Lingüística Geral (PLG I e II), a despeito de uma vasta produção que transita pela lingüística história, lexicografia, sintaxe, semântica, etc. Também permitiu o “congelamento” de muitas noções, as quais são melhores compreendidas no conjunto de seus escritos.

A consideração do discurso e do sujeito, em uma abertura científica do estruturalismo lingüístico do qual Benveniste era, talvez, o legítimo herdeiro, encontra lugar não apenas dentro do campo estrito da lingüística, mas em outros também. Segundo Dosse (1994), ignorada nos meios lingüísticos, dominado pelo estruturalismo, a consideração do sujeito vai encontrar interessados na filosofia, psicologia, psicanálise, filosofia.

Finalmente, coloca-se que tudo o que vai se denominar de uma forma mais geral como lingüística da enunciação (no sentido de teorias da enunciação) é partidária da consideração da enunciação e, por conseqüência do sujeito. Se a primeira vem para a ciência da linguagem por duas vias principais: lingüística e filosofia, a consideração do sujeito da enunciação deve-se aos estudos de Benveniste. Fato é que, pelo menos na lingüística, qualquer tratamento do discurso não pode ser considerado se não por referência – em acordo ou discordância – dos estudos pioneiros desse autor. Nesse sentido, não é insignificante nem mesmo um silenciamento sobre tal ponto, pois há, nessa questão um ponto comum na diversidade do que viria a se constituir como estudos enunciativos da linguagem. Por isso, a figura não do fundador, mas do precursor.

Como cada corrente reivindica seu próprio fundador, a figura de Benveniste aparece como precursor dos estudos enunciativos, em alguns dos pontos em que ela trata do sujeito e da enunciação. O que falta é uma teoria que o coloque como fundador; ou seja, que novos trabalhos possam se inserir na continuidade das proposições benvenistianas, sem a necessidade de se buscar uma teoria mais “completa” para tratar fenômenos da linguagem que possam ser considerados sob essa perspectiva.

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Outro ponto a se considerar para a relação da manualização da lingüística da enunciação tendo como fundamento Benveniste e o modelo do estruturalismo diz respeito à ligação entre esses dois pontos. Para Puech (1999), é o estruturalismo generalizado dos anos 1950 e 1960 que leva ao debate da dicotomia saussuriana língua-fala - isso faz com que a emergência das lingüísticas enunciativas deva ser considerada não em um antagonismo radical dessa corrente, mas na sua gênese, evolução e contradições. Esse é, claramente, o ponto de vista de Benveniste para quem o tratamento da enunciação emerge do paradigma estruturalista tal como está disciplinarizado por Chiss e Puech (1994, 1995, 1999). No autor, a dimensão enunciativa revela sempre um déficit de fundação a combater ou uma extensão a cumprir. Ou seja, de uma problemática que só pode se desenvolver a partir de retornos incessantes.

Segundo Puech (1999: 26), o estatuto da lingüística, em Benveniste está sempre referido a um futuro indeterminado, a um horizonte projetivo ideal no qual a semiologia, a semântica, o discurso são projetos que dão sentido aos seus desenvolvimentos atuais. É uma perspectiva de fundação, na qual se busca o destino da significação não somente na lingüística, mas nas outras disciplinas da cultura:

D’une manière plus générale, les considérations disciplinares et interdisciplinares que ont accompagné le développement de la linguistique structurale selon des modalités variées mais omniprésentes concernent surtout, chez Benveniste, la modalité prospective. Comme chez Saussure, elles concernent davantage la perspective ou le principe d’une science générale de la culture, ou d’une refondation de la sémiologie conçu comme horizon, que l’analyse linguistique actuelle, ou le souci d’assigner um statur à la linguistique dans le champ des sciences humaines instituées. (Puech, 1997: 390).

Desse modo, o ponto de vista disciplinar é sempre um ponto de vista integrador, implicando relações, representação do saber como unidade articulada, construção de um campo homogêneo a partir de uma ontologia ao menos implícita. A via mais usada para isso é aquela que iguala os diferentes aspectos da disciplina através da sucessão de escolas lingüísticas, assimiladas em diferentes momentos da ciência ao mesmo tempo necessários e ultrapassados. Por isso,

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“ce modèle progressif est pratiquement inévitable quand il s’agit à la fois de légitimer l’état présent (assimilé à la nouveauté) de la discipline sans sacrifier la continuité dont elle procède” (Chiss e Puech, 1999: 22).

2 O manual dividido entre disciplina e epistemologia

Nos dois primeiros volumes da coleção Introdução à lingüística aparece o subtítulo domínios e fronteiras. É nesse sentido que as autoras procuram organizar os diferentes capítulos dos livros, o que está especificado na Introdução, na qual colocam que um dos objetivos é expor “uma apresentação geral e gradual das principais áreas da Lingüística no Brasil”, da seguinte maneira: “(i) histórico da área; (ii) bases epistemológicas; (iii) diferentes vertentes da obra; (iv) análise de dados.” (p. 15). Salientam, no entanto, que, devido à especificidade de cada área e estilo de cada autor, os capítulos podem não seguir exatamente essa divisão, o que, de fato, é comprovado na leitura de cada um.

No primeiro volume são tratadas a Sociolingüística (em duas partes), a lingüística Histórica, a Fonologia, a Fonética, a Morfologia, a Sintaxe e a Lingüística Textual. No segundo aparecem: Semântica, Pragmática, Análise da Conversação, Análise do Discurso, Neurologia, Psicolingüística, Aquisição da Linguagem e Língua e Ensino.

Benveniste é citado em apenas quatro desses campos: Sociolingüística, Lingüística Textual, Semântica e Pragmática. No capítulo sobre Análise do Discurso aparece apenas na Bibliografia em uma nota de rodapé. À exceção dessa última, pode-se dizer que, dentre as disciplinas citadas, esperava-se, a priori, uma alusão ao autor. Considerando que é a partir de Benveniste que se abre a possibilidade de uma lingüística que trate também da fala, uma nova lingüística toda diferente em seus métodos e seus objetivos (Normand, 1994, 1995), qualquer referência ao autor é fundamental para se entender como a língua deixa de ser objeto único em um estudo científico da linguagem.

Em relação à Pragmática e à Análise do discurso, Normand (idem, p. 34)

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coloca que os escritos de Benveniste, desde cedo designados como “teoria da enunciação”, serviram, à época, de ponto de apoio a essas novas pesquisas, ainda que elas se apresentem muito diferentes em seus objetivos e sua fundamentação teórica. Assim,

alors que les études françaises de pragmatique voient surtot em Benvensite celui qui permet d’échapper aux contraintes de l’analyse proprement linguistique, pour s’intéresser aux implicites du discours, aux intentions des locuteursm aux effets visées dans lês échanches, à tout ce qui fait du discours une action (pragma), lês travaux sur le discours de leur cote restent à ce qui, du sujet et du context, est observable et analysable em langue, fidèles em cela au Benveniste strictement appelé ‘linguiste’; ils partent de la description du funtionnemente formel et sémantique de ces unités particuliéres quei constituent la deixis, ce que Benveniste a finalemente applé ‘le appareil formel de l’énonciation (1970), soit ces particularités de langue qu’il distingue de l’acte même de l’énoncitiation par lequel elles s’actualisent.

Por isso, o estranhamento a não citação de Benveniste no capítulo dedicado a essa disciplina, ainda mais que a alusão na bibliografia diga respeito àquilo que serviu, como se viu, de influência à AD:

BENVENISTE, E. O aparelho formal de enunciação. In: Problemas de Lingüística geral II. Trad. E. Guimarães et. al. Campinas, Pontes, 1989. (título original, 1974).___. O homem na língua. In: Problemas de lingüística geral. Trad. M. G. Novak & L. Néri. São Paulo, Companhia Editora Nacional/EDSP, 1976. (título original, 1966). (IL 2: 139)4

A nota de rodapé refere-se ao esclarecimento da oposição enunciação/enunciado referida no texto nos seguintes termos: “Assim, Pêcheux, visando à construção de um arcabouço teórico que lhe permitisse isso [a concepção do discurso, provinda de Harris, como uma seqüência de enunciados], passa a considerar a oposição enunciação e enunciado” (idem: 116). A autora remete, em nota, aos capítulos Semântica e Pragmática, no mesmo volume, e a Benveniste e a Searle para a compreensão da relação enunciado/enunciação. Aponta ainda a reinterpretação da noção de enunciação feita pela AD. Não esclarece, no entanto,

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a partir de qual teoria ela é retomada, remetendo a Pêcheux & Fuchs para maiores esclarecimentos.

Nesse sentido, reproduz-se aqui, como de resto em toda a teoria da AD, a redução feita a Benveniste. Nem no papel histórico de precursor ele é evocado. Desde Pêcheux (1997: 175) uma redução é feita nesse sentido:

A dificuldade atual das teorias da enunciação reside no fato de que estas teorias refletem na maioria das vezes a ilusão necessária construtora do sujeito, isto é, que elas se contentam em reproduzir no nível teórico esta ilusão do sujeito, através da idéia de um sujeito enunciador portador de escolha, intenções, decisões, etc. na tradição de Bally, Jakobson, Benveniste (a ‘fala’ não está longe).

Começa a crítica à questão da enunciação em Benveniste que, ao longo do processo de institucionalização e disciplinarização das correntes lingüísticas vai conduzir o autor ao esquecimento ou a um lugar histórico de críticas ao idealismo de suas noções: o sujeito como fonte de sentido e por essa via a reintrodução do sujeito psicológico idealista na base da lingüística.

Henry (1997: 45), no entanto, afirma que o lugar secundário atribuído a Benveniste demonstra que Pêcheux “passou ao largo da enunciação” e que nenhuma das referências ao autor “mostra uma compreensão real da fenda aberta no estruturalismo pelo reconhecimento do papel da enunciação”. É o próprio Henry que evoca a “retratação” de Pêcheux que, na Langages 37, dirá que a ADD-69 havia sido opaca ao fenômeno da enunciação. É a partir daí que ele se apóia em Benveniste para fazer da frase a unidade do discurso, tomando o autor como o lingüista da subjetividade. Assim, antes de 1966, “parece que MP percebeu, inicialmente, em Benveniste, uma espécie de retrocesso, um retorno do sujeito psicológico, vitoriosamente banido da cena teórica por Saussure e pelo estruturalismo“ (idem: 46).

O autor lembra ainda que, segundo Normand, a enunciação teve lugar entre os lingüistas mais a partir de Jakobson que Benveniste. Tal fato, para ele,

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parece explicar, em parte, a atitude de Pêcheux – a outra seria que o autor, mais preocupado com a questão do sujeito, teria investido pouco nos problemas da enunciação.

Essa explicação é um tanto vaga por pelo menos três motivos: (1) se Benveniste era, de fato, ignorado entre os lingüistas, que creditavam a Jakobson o lugar de seguidor de Saussure, não o era entre os filósofos (caso de Pêcheux); (2) Normand (1977), comparando as notas dos cursos de Benveniste assistidos por Dubois e Ricoeur, demonstra que a questão do sujeito, posta àquela época, no âmbito do estruturalismo, apenas pelo autor, interessava mais ao filósofo que ao lingüista, (novamente caso de Pêcheux); finalmente (3) se Pêcheux estava efetivamente mais interessado na questão do sujeito, como ignorar a questão da enunciação, se é por essa via que se passa, como se viu em Normand (1985), da noção de sujeito falante (recusada por Pêcheux) à de sujeito da enunciação.

Pode-se dizer, então, que a consideração da enunciação começa a ganhar maior importância em seus escritos posteriores, mas a crítica a Benveniste se mantém: “o discurso continua fundado em distorções individuais, que parece assim ‘escapar’ ao processo de produção, por uma ‘criação infinita’, uma ‘variedade sem limites’ que seria o próprio da fala (Pêcheux, 1997), ou seja, “a dualidade ideológica que associa sistema (de signos) e criatividade (individual): o ‘discurso’ não passa de um novo avatar sobre a fala.” (idem, 1975: 79).

Explica-se, portanto, tanto as críticas quanto as ausências de Benveniste na AD, no Brasil, toda ela caudatária dos trabalhos de M. Pêcheux. Se ele não foi um bom leitor de Benveniste, a disciplina que o tem como fundador também não o seria.

Em se tratando da pragmática, a relação é bem menos problemática. Isso se deve a vários motivos. Inicialmente pela consideração de um novo objeto para a lingüística – o uso. Era justamente essa a idéia da enunciação de Benveniste: o ato de transformar a língua em discurso através de seu uso efetivo por um sujeito. Por outro lado, é necessário destacar a ampla aceitação das idéias do autor no meio filosófico, resultado de um constante diálogo de Benveniste com os autores

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da chamada filosofia analítica da linguagem. Finalmente, pode considerar-se que enunciação e pragmática, por tratarem algumas vezes dos mesmos fenômenos, tiveram as fronteiras de seus campos pouco delimitáveis5.

Na parte concernente à Pragmática, a enunciação não aparece como um domínio próprio ao campo, que trata, segunda a autora do capítulo, do pragmatismo americano, dos estudos dos atos de fala e dos estudos da comunicação.

Benveniste é citado aqui por dois motivos. O primeiro, pela já aludida relação com a filosofia analítica, na parte que apresenta os temas comumente levantados pelos estudos pragmáticos, como a classificação dos atos de fala de acordo com seus efeitos. É nesse sentido que Benveniste é evocado como um dos autores que

Pretende classificar os atos de fala. De um lado teríamos aqueles atos que seriam compostos por um verbo declarativo jussivo na primeira pessoa do presente mais uma afirmação, como Eu ordeno que você saia. (...) De outro lado, Benveniste propõe outro conjunto de atos de fala, atos estes que seriam compostos por um verbo com complemento direto mais um termo predicativo, tal qual Proclamo-o eleito vereador. (IL 2: 50-1).

O segundo motivo pelo qual ele é lembrado insere-se na confusão entre os limites enunciação-pragmática:

Vale a pena observar que, entre os autores e autoras que são referência para a Pragmática, também estão os franceses Oswald Ducrot e Émile Benveniste, e o americano H. P. Grice. Até o final da década de 1980, muitos trabalhos cuja orientação teórica está fundamentada nesses autores incluem-se na área da Pragmática. Entretanto, a evolução de seus trabalhos conferiram-lhes campos de estudos e métodos hoje separados dos pragmáticos. A Semântica Argumentativa e a Análise da Conversação são duas correntes outrora participantes do movimento que integrou componentes pragmáticos aos estudos lingüísticos. (IL 2: 51).

Interessante notar que nessa retrospectiva histórica apenas Benveniste não tem um lugar específico no restante da obra.

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No capítulo sobre Semântica, há um sub-capítulo sobre Semântica Argumentativa, que trata exclusivamente de Ducrot. Benveniste é lembrado aqui apenas como influência:

A década de 1970 conheceu uma explosão de trabalhos sobre a pressuposição. Salienta-se, dentre eles, o trabalho de Oswald Ducrot que, certamente influenciado pelos trabalhos de Émile Benveniste e pela escola francesa de Análise do Discurso, se opõe veementemente ao tratamento que a Semântica formal oferece para a pressuposição em particular e para o significado em geral. suas críticas e análises possibilitaram a formação de um outro modelo: a Semântica da Enunciação.

Sobre Grice, embora a citação dê a entender que tornou possível uma nova corrente, a Análise da Conversação, na qual não há sequer uma alusão ao autor no capítulo sobre essa disciplina, ele é tratado no capítulo destinado à Pragmática mesmo, na parte destinada aos estudos da comunicação.

Percebem-se, então, as confusões e as dificuldades de delimitação entre campos e autores tanto entre correntes diferentes quanto em um mesmo domínio. A divisão de uma coleção por disciplinas traz consigo as mesmas dificuldades que a disciplinarização dos estudos lingüísticos trouxe no Brasil. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que as próprias fronteiras do saber lingüístico se demarcam por interesses pessoais de profissionais que se identificam com uma ou outra corrente. Nesse processo, eles, muitas vezes, ignoram ou criticam outras, na busca pela completude para a explicação de um determinado fenômeno que deveria ser feito por uma teoria “completa”. Depois, o interesse pelo estudo científico da linguagem exige a construção de um objeto teórico particular a cada teoria, mas que a maior parte das vezes, precisa de mais de uma abordagem para ser explicado, mesclando campos próximos. Nesse sentido, as disciplinas não seriam concorrentes, mas complementares. Essas duas características, acredita-se, são o que fazem com que uma divisão disciplinar dos estudos lingüísticos torne-se tão complexa.

Para concluir a análise, uma nota sobre duas outras disciplinas que mantêm

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relações contraditórias com o autor. No capítulo dedicado à Sociolingüística, Benveniste é citado em uma espécie de resumo do tratamento da relação linguagem-sociedade:

Assim, inicialmente, é necessário levar em conta que os estudiosos de fenômeno lingüístico, como homens de seu tempo, assumiram posturas teóricas em consonância como fazer científico da tradição cultural em que estavam inseridos. (IL 1: 21-2).

Em consonância com essa idéia, Saussure é citado como tendo realizado o recorte necessário para a escolha do objeto que tornaria a lingüística uma ciência, a língua, excluindo toda “a consideração da natureza social, histórica e cultural na observação, descrição, análise e interpretação do fenômeno lingüístico” (idem, ibidem). Esta ficará, pois relegada à fala, da qual se ocupará uma Lingüística Externa, em oposição à Lingüística Interna. Dentro da primeira, o modo de tratar e de explicitar a relação entre linguagem e sociedade “constitui um dos grandes ‘divisores de águas ‘ no campo da reflexão da Lingüística contemporânea”. Desse modo,

A tradição de relacionar linguagem e sociedade, ou, mais precisamente, língua, cultura e sociedade, está inscrita na reflexão de vários autores do século XX. Integrados ou não à grande corrente estruturalista, que ocupou o centro da cena teórica, particularmente, a partir dos anos 1930, encontramos lingüistas cujas obras são referências obrigatórias, quando se trata de pensar a questão do social no campo dos estudos lingüísticos. Não caberia, aqui, enumerar todos esses estudiosos, mas uma breve referência a alguns nomes, ligados ao contexto europeu, impõe-se: Antoine Meillet, Mikhail Bakhtin, Marcel Cohen, Émile Benveniste e Roman Jakobson. (IL 1: 24).

Citando os dois modos de leitura relacionados por Normand (1994/1995), vê-se aqui a leitura da sociolingüística que coloca Benveniste como um dos leitores que permite sair do imanentismo lingüístico, ainda que no âmbito específico do estruturalismo. Ora, a sociolingüística é uma das correntes que vai tratar especificamente o fenômeno fala, não o revestindo ou o reinterpretando sob

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nenhuma outra denominação.

A própria consideração de Benveniste, que trata da passagem da língua ao discurso, não é consenso entre os sociolingüistas. Algumas vezes ele é colocado como um estruturalista, seguidor de Saussure, em um apoio ao interno defendido pelo mestre, outras vezes sequer é citado, colocando-se a disputa entre externo e interno originando-se em Meillet.

Assim, a apreensão da relação linguagem-sociedade, via Benveniste, é uma forma de destacar a importância do autor como precursor, na lingüística, de se pensar na linguagem de uma maneira mais geral, não apenas presa ao sistema língua. Ainda que não se considere o conjunto da obra do autor, na qual essa relação está inserida, são destacadas aqui as propriedades da linguagem de simbolizar, de ser exercida por um indivíduo (a noção de uso lingüístico), de servir de instrumento de comunicação, mediando a relação do homem com os outros homens ou de analisar a realidade, dando forma à realidade. Percebe-se, portanto, que há um recorte que retira de Benveniste aquilo que é necessário á teoria sociolingüística em seu percurso histórico. O papel de um precursor histórico, o qual vai permitir que, a partir de seus estudos iniciais, outras teorias se desenvolvam, sem recusar ou esquecer o que vem antes.

Nesse mesmo sentido de retomada histórica, aparece a última citação de Benveniste nas duas obras, dedicadas às disciplinas lingüísticas. No capítulo dedicado à Lingüística Textual também se tenta reconstruir o percurso que leva à abertura do objeto da ciência da linguagem:

Denise Maldidier, Claudine Normand e Régine Robin, em texto da década de setenta, intitulado discurso e Ideologia: bases para uma pesquisa, apresentam um breve histórico da constituição do campo dos estudos do discurso da França, discutindo resumidamente os interesses e os problemas das abordagens semiológica (Roland Barthes, Greimas), das pesquisas sobre as pressuposições (Oswald Ducrot) e da elaboração do conceito de enunciação (Émile Benveniste), para então apresentarem os interesses da chamada Análise do Discurso de linha francesa. Todas essas abordagens podem ser vistas como fazendo parte deste esforço teórico, iniciado na década de sessenta, de construir uma Lingüística para além dos limites da frase, a chamada “Lingüística do Discurso”. (IL 1: 246).

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Aparece finalmente a primeira citação que faz alusão ao conceito teórico mais conhecido do autor – Benveniste como o lingüista da enunciação, denominação pela qual ele é amplamente conhecido no meio lingüístico, atualmente. Muito pouco para um autor tão importante na formação das disciplinas lingüísticas, ainda que ele próprio não possua a sua.

O terceiro livro da coleção organiza-se de forma diferente. A partir do subtítulo isso já se evidencia: fundamentos epistemológicos. O objetivo é, então, “oferecer ao leitor um panorama das diversas perspectivas que constituem e que organizam a ciência da linguagem”, apresentando “as diferenças entre os programas de investigação científica e entre as várias orientações teórico-metodológicas que constituem a ciência da linguagem e sobre as quais esses programas e estas orientações encontram-se fundados” (IL 3: 7).

Os capítulos dos livros estão divididos da seguinte forma: (1) Estudos pré-saussurianos; (2) O estruturalismo lingüístico: alguns caminhos; (3) O empreendimento gerativo; (4) Os anos 1990 na gramática gerativa; (5) O funcionalismo em lingüística; (6) Formalismos na lingüística: uma reflexão crítica; (7) Do cognitivismo ao sociocognitivismo; (8) Virtudes do cognitivismo revisitadas; (9) O interacionismo no campo lingüístico; (10) Teorias do discurso: um caso de múltiplas rupturas; (11) Teoria semiótica: a questão do sentido; e (12) Três caminhos para a filosofia da linguagem.

O livro, além do já citado objetivo principal, também procura:

Perceber o valor histórico que cada programa, cada orientação possui e o papel de cada um(a) desempenhou(a) na construção de um sólido conjunto de conhecimentos sobre o fenômeno lingüístico; acompanhar as mudanças ocorridas no interior de cada um dos programas, em cada uma das orientações; compreender os movimentos por meio dos quais se promove a eleição de um determinado programa como paradigma científico dominante; notar as divergências internas e as seleções que vão sendo operadas dentro dos paradigmas para que estes sejam mantidos e transformados (...)

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Obviamente não há espaço para discutir tais objetivos, que estão totalmente de acordo com a proposta deste trabalho, ainda que este em relação a uma só teoria. No entanto, assim como nos dois primeiros livros, não há em todos os capítulos o seguimento das questões propostas acima para o direcionamento do texto, o que fez com que cada autor procurasse escrevê-lo seguindo a sua percepção do campo a que se dedica. Isso é enfatizado pelas organizadoras que, embora desejassem os recortes clássicos de cada campo, depararam-se com reconstruções diferentes das quais geralmente fazem parte de obras semelhantes. O que se deu, segundo elas,

em função da própria condição de campo no Brasil, condição essa de efervescência e de constante movimentação e criação (...). É nesse sentido que esta obra apresenta uma especificidade na reprodução/reconstituição dos recortes, privilegiando, em outros momentos, orientações que foram criadas e/ou desenvolveram-se de forma especial no interior da lingüística brasileira. (IL 3: 11).

Desse modo, espera-se ao menos uma referenciação histórica ao papel de Benveniste na teorização própria ao campo da linguagem. Se Saussure é um apoio necessário para a cienticificidade da lingüística, qualquer consideração epistemológica sobre as correntes da lingüística que se opuseram à divisão língua/fala deverão, igualmente, buscar apoio em Benveniste.

A primeira citação ao autor encontra-se no capítulo dedicado ao estruturalismo, no tocante aos movimentos que atestavam, nos anos 1960, o esgotamento do paradigma, na forma de revisões ou de ataques abertos que mostravam a desconsideração de alguns fenômenos lingüísticos essenciais. É nesse contexto que Benveniste é citado:

Uma dessas propostas de revisão provém de Émile Benveniste, um autor que, embora tenha trabalhado no sentido de aperfeiçoar e divulgar o programa saussuriano, e possa, nesse sentido, ser considerado um representante importante da escola, era bastante diferenciado, por seus interesses e por seus sólidos conhecimentos em lingüística histórica indo-européia. A grande crítica de Benveniste é que o estruturalismo teria negligenciado o papel essencial que o sujeito desempenha na língua. Uma inteira seção de seu Problemas de lingüística

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geral (...) mostra que algumas estruturas centrais em qualquer língua (...) deixam de fazer sentido se a língua for descrita sem referência à fala e aos diferentes papéis que os falantes assumem na interlocução. Mostrou, dessa forma, que a fala está representada e por assim dizer prevista no sistema língua. (IL 3: 80-81)

Em uma nota de rodapé, também há uma citação ao autor: “À frente do seu tempo, Benveniste interessou-se por problemas de filosofia da linguagem, e foi um dos primeiros autores a publicar em francês sobre temas como os atos de fala e os delocutivos” (IL 3: 80).

Na citação mais acima, no tocante aos dois momentos do estruturalismo – auge e crise – o destaque a Benveniste é dado na medida certa da complexidade com a qual sua obra foi recebida e a herança que advém desse momento. Da estrutura à enunciação – ainda que isso não esteja explicitado no recorte acima, a citação reconhece no autor o caráter de precursividade na busca por outros caminhos, mesmo no momento em que o paradigma estruturalista era dominante, e ele um de seus representantes.

Se nesse primeiro momento a figura de Benveniste se reveste de seu caráter complexo, mas com destaque ao ineditismo de seus estudos, no capítulo dedicado ao interacionismo no campo lingüístico tudo se passa de forma diferente. Para se compreender a citação dada ao autor neste capítulo, é necessário, antes, compreender o que se coloca como lugar da interação na análise da linguagem.

A idéia é que, em um sentido largo do termo, poderiam ser considerados interacionistas os domínios da lingüística que se pautavam por uma posição externalista a respeito da linguagem, não se interessando apenas pelo sistema, mas pela sua relação com os “exteriores teóricos, com o mundo externo, com as condições múltiplas e heterogêneas de sua constituição e funcionamento” (IL 3: 312). Assim, a Sociolingüística, a Pragmática, a Psicolingüística, a Semântica Enunciativa, a Análise da conversação, a Lingüística Textual e a Análise do Discurso poderiam ser consideradas como portadoras de um interacionismo lingüístico.

No entanto, a autora afirma que, embora toda a ação humana preceda de

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interação, o mesmo não pode ser aplicado ao que se entende por interacionismo lingüístico, pois essa expressão sofreu um esvaziamento semântico a partir do surgimento de vários termos para predicá-la ou qualificá-la epistemologicamente, como sociointeracionismo, interacionismo discursivo, interacionismo simbólico, entre outros. É por isso que ela defende uma diferenciação entre os termos interação e interacionismo, afirmando que a Lingüística tem se preocupado em delimitar a noção de interação verbal como ação conjunta, analisando-a como algo heterogêneo e historicamente situado.

Outro motivo que tem levado a uma confusão do termo interacionismo na Lingüística é a confusão com o conceito de comunicação, fazendo com que a interação seja pensada fora de sua ação constitutiva em relação a diversas situações, uma vez que a linguagem tem por função primordial a comunicação (IL 3: 317). Desse modo, o que é colocado como fazendo parte de Lingüística Interacional, a partir da noção de interação,

Configura um conjunto de questões ligadas a todo tipo de produção lingüística que é considerada material interativo: práticas. Estratégias e operações linguageiras, dinâmicas de trocas conversacionais, comunicação verbal e não-verbal, construção de valores culturais, atividades referenciais e inferenciais realizadas elos falantes, normas pragmáticas que presidem a utilização da linguagem, etc.

Segue-se a análise das teorias de autores considerados interacionistas porque tomam o campo como debate social, envolvendo relações entre reflexão e ação, em contraposição a uma acepção mais “simples”, na qual a interação envolveria questões ligadas à comunicação, conversação ou troca de informações. Merecem destaque, nesse sentido, a entrada do interacionismo na Lingüística via Psicologia, Sociologia e Filosofia.

Passa-se, após, por várias correntes e autores que, embora não possam ser tomados no sentido estrito dado pela autora para o interacionismo lingüístico, fizeram parte de uma precursividade histórica no tratamento do termo, até a seguinte citação:

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Já as abordagens enunciativas ou discursivas não são consideradas ou não se reivindicam - pelo menos explícita ou diretamente – abordagens interacionistas. E isso a despeito, por exemplo, da enunciação ser definida como atividade (cf. Benveniste, 1974: 80), ou de estar ligada à noção de intersubjetividade, de interlocução, de argumentação, ou de serem focalizadas no campo das Teorias Enunciativas e no da Análise do Discurso conceitos bakhtinianos como dialogismo, polifonia, gênero discursivo, estilo. (IL, 3: 343).

O que a autora parece esperar é que, para se tornar interacionista, uma teoria não precisa apenas considerar os aspectos que ela mesma mencionara como fazendo parte de tal dimensão: é preciso “reivindicar” a posição. Parece ser necessário que se diga ser interacionista – ou seja, é a palavra que nomeia e define e não as concepções.

A referência a Benveniste, nesse trecho, só pode ser explicada se, a despeito da citação da enunciação como atividade (e, nessa medida, entre sujeitos que interagem através da língua), enfatiza-se a sua consideração da língua como instrumento de comunicação – na visão redutora, portanto, da noção de interacionismo. O que se deixa de considerar aqui são todas as demais considerações de Benveniste sobre esse aspecto:

A linguagem é para o homem um meio, na verdade, o único meio de atingir o outro homem, de lhe transmitir e de receber dele uma mensagem. Conseqüentemente, a linguagem exige e pressupõe o outro. (PLG II, p. 93)

A ‘comunicação’ deveria ser entendida na expressão literal de colocação em comum e de trajeto circulatório. (idem, p. 103)

Será realmente da linguagem [como instrumento de comunicação] que se fala aqui? Não a estamos confundindo com discurso? (PLG I, p. 284).

A polaridade das pessoas é na linguagem condição fundamental, cujo processo de comunicação, de que partimos, é apenas uma conseqüência totalmente pragmática. (idem, p. 286).

Muitas noções na lingüística, e talvez mesmo na psicologia, aparecerão sob uma luz diferente se as restabelecermos no quadro do discurso, que é a língua enquanto assumida pelo homem que fala e sob a condição de intersubjetividade, única que torna possível a comunicação lingüística. (idem: 293).

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Poder-se-iam citar muitos outros trechos dos escritos de Benveniste que provam que sua concepção de linguagem, tornando a língua discurso através da enunciação, não está inserida em uma consideração “simplista” da autora da linguagem como instrumento de comunicação. Na verdade, importa discutir o que é uma concepção simplista e redutora da linguagem como meio de comunicação.

A idéia de que a linguagem deixa de ser vista, inicialmente, como forma de expressão do pensamento, depois como meio de comunicação para, finalmente, alcançar seu ponto mais “alto” como modo de interação fez com que a linguagem fosse sendo pensada em uma escalada não só ascendente, mas também avaliativa das correntes que ora a consideraram assim. Desse modo, “julga-se” o que era considerado á época a partir do que se tem como mais “completo” hoje. É nesse sentido que a apresentação da autora coloca a teoria de Bakhtin como o ponto alto da reflexão interacionista na linguagem6, ficando as demais correntes enunciativas e discursivas incompletas, dada a complexidade da teorização do autor russo.

Configura-se um outro tipo de redução à obra de Benveniste, de qualquer modo ligada à da crítica feita especialmente pela AD. Se nesta o problema era a consideração do sujeito fonte do dizer, na qual o outro não interfere no sentido, aqui o que ocorre é a desconsideração mesma do outro, dando-lhe um lugar ainda mais insignificante no processo de interação, o qual só poderia ser considerado em uma visão mais abrangente como a do dialogismo. A autora, finalizando, destaca,

Para os propósitos deste texto, é importante salientar que os estudos oriundos da Análise da Conversação, das teorias enunciativas, da Lingüística Textual e da Análise do Discurso rompem com a perspectiva algo programática esboçada nos anos 1960, levando com peso teórico distinto a interação à condição de princípio explicativo dos fatos de linguagem. e isso se dá pela inclusão no quadro teórico geral desses domínios da Lingüística, da noção de interação como parte da explicação para a questão do sentido. É precisamente este o enfoque digno de nota de uma perspectiva trazida à Lingüística pelo viés do dialogismo postulado por Bakhtin.

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Conclui, então, pelo lugar periférico da interação em Benveniste em relação ao lugar central da de Bakhtin. Confirma-se o caráter de completude e incompletude de uma teoria lingüística, em um movimento avaliativo que em nada colabora para o entendimento da complexidade das correntes da linguagem tomadas por si mesmas e em si mesmas.

Essa mesma dimensão comunicativa de Benveniste é destacada no capítulo dedicado à Semiótica, na terceira parte, denominada Enunciação e semiótica.

Considerando que a problemática da enunciação foi relegada a um segundo plano, na inserção da semiótica de base greimasiana no estruturalismo dos anos 1960, os autores colocam que, além do primado do enunciado e da recusa do subjetivismo, dois aspectos sustentavam o distanciamento da enunciação: o primeiro era o princípio da imanência que pensava a enunciação como pressuposição, ou seja, “os elementos do enunciado pressupõem a existência de um sujeito (da enunciação) que os realiza, mas que não se descreve”; o segundo é a incorporação da noção de uso “por meio da herança hjelmsleviana que entende a enunciação individual como subentendida ao conjunto de hábitos lingüísticos de uma determinada sociedade.” (IL 3: 411).

É nesse quadro histórico que a novidade do enfoque benvenistiano é referida:

A década de 1970 representa uma mudança de paradigma dos estudos da linguagem na medida em que as propostas do estruturalismo em lingüística são questionadas e a esse período se segue o dos estudos que enfocam a enunciação. Dentre todos os trabalhos produzidos nesse domínio, os que mais se destacam e os que mais vão influenciar as discussões dos semioticistas são, sem dúvida, os de E. Benveniste. (IL 3: 411).

O que é destacado a seguir é o fato de a linguagem em Benveniste ser pensada no contexto da comunicação, destacando-se a relação entre duas pessoas, o contexto situacional e o contexto pragmático. Assim, os pronomes, as circunstâncias de tempo e de lugar são tomadas a partir do ato de comunicação,

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sendo que uma breve explicação desses fatos, na teoria do autor, que interessam à pragmática é apresentada. Concluindo, os autores afirmam que a integração das propostas dos trabalhos de Benveniste à economia geral da teoria semiótica foi responsável pela colocação em relevo da problemática da enunciação no discurso.

O que se apresenta, neste capítulo, é o caráter de precursor da enunciação de Benveniste, não se tratando de uma apreensão crítica, mas sim do recorte de temas que interessam à problemática tratada pela semiótica. Aqui, diferente dos demais capítulos, o lugar histórico da teoria do autor é referenciado, ou seja, é tomado como caminho necessário para o estabelecimento dessa corrente. A disciplinarização do campo se faz, então, a partir de uma reconstrução histórica, que não pode deixar de fazer alusão a Benveniste, uma vez que considera o fenômeno da enunciação.

Considerações finais

Como última consideração, pode-se dizer que, em uma obra tão vasta e importante, as referências a Benveniste são muito poucas. E, quando acontecem, não são reveladoras da importância histórica de seu papel no estabelecimento da lingüística moderna.

Hoje, no Brasil, se se tomar esse manual como objeto de entrada no conhecimento da ciência que trata a linguagem, não se vai ter a noção exata da questão da enunciação e da subjetividade propostas por Benveniste no estabelecimento de uma lingüística externa, ou seja, que escapasse ao imanentismo do tratamento da língua ou da competência. Tudo se passa como se cada disciplina não formalista se estabelecesse “solta”, livre das amarras que a ligavam a Saussure – esse sim referido sem falta, tanto para reiterar ou retificar, no movimento necessário de cienticificidade de base disciplinar – por um gesto solitário, creditado muitas vezes àquele que é considerado o fundador e precursor de cada corrente.

A Benveniste, pouco parece ser devido, muito a ser criticado e outro tanto a ser esquecido.

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Notas

1 Organizada por F. Mussalim e A. C. Bentes em três volumes, conforme bibliografia.2 Não se quer afirmar aqui que um professor de lingüística trate exclusivamente a sua área. Não se pode esquecer a formação geral dada nos cursos e na pós-graduação de Letras e Lingüística e que habilita para o magistério nas diversas disciplinas da área.3 Puech trata, na sua teoria, tanto do mundo escolar quanto da universidade. Interessa-lhe, no entanto, mais especificamente, a transposição da enunciação para o ensino de francês, principalmente nas instruções oficiais, ou seja, nos documentos de orientação dirigidos aos professores. Para este trabalho importam os modos de apropriação da teoria nos manuais já citados voltados ao nível superior.4 A referência às obras será feita da seguinte forma: IL 1; IL 2 e IL 3 para Introdução à lingüística, volumes 1, 2 e 3.5 As questões sobre enunciação e pragmática são complicadas em virtude do caráter duplo da própria palavra. Pode-se, assim, tratar a enunciação como domínio que exige a consideração de uma dimensão pragmática ou como um dos objetos da Pragmática. 6 Não sendo possível esclarecer adequadamente esse ponto devido ao espaço que tomaria, remete-se ao texto em questão para maiores esclarecimentos ou mesmo concordância (ou discordância) da posição assumida aqui.

Referências Bibliográficas

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A dêixis na teoria da enunciação de BenvenisteVera Lúcia Pires

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria - Brasil

Kelly Cristini G. Werner Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa - Brasil

Resumo O categoria da dêixis é examinada a partir da teoria de Benveniste como

fundamento da representação da subjetividade na linguagem.Palavras-chave: enunciação - subjetividade - dêixis

AbstractDeixis as a category is investigated in the light of Benveniste’s theory as a

principle for the representation of language subjectivity.Key words: enunciation - subjectivity - deixis

Introdução

Este artigo pretende abordar, ainda que de forma sucinta, a importância da dêixis nos estudos enunciativos elaborados por É. Benveniste em alguns de seus textos fundamentais1.

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Considerando a linguagem como prática social que tem na língua (especialmente no aparelho pronominal) a sua realidade material, Benveniste reformula as dicotomias saussurianas e promove uma superação ao abrir a análise da linguagem para a enunciação, resgatando, com esse fato, o sujeito anteriormente excluído da lingüística, conforme já enfatizamos em texto anterior2.

Entendemos que trabalhar com a noção de dêixis é fundamental para os estudos enunciativos da linguagem. A categoria contém elementos da língua, na sua modalidade oral ou escrita, que são, muito mais que outros signos, próprios do ato de dizer, no entendimento de que a sua existência e os seus sentidos são promovidos a partir de uma referência interna. Dito de outro modo, a referência ao contexto discursivo em que se apresentam. Além disso, os dêiticos só existem porque um indivíduo no mundo assume-os e o faz pela necessidade que tem de comunicar-se com outros membros de sua comunidade social. Ao tomar essas formas da língua, o sujeito dá-lhes vida, conquistando, simultaneamente, a possibilidade de interação com o outro e a sua realização enquanto sujeito desse mundo, uma vez que ele próprio testemunha sua existência ao proferir EU para um TU.

Por mais que acreditemos no que concluiu Benveniste (1970), em O aparelho formal da enunciação, que a enunciação está na língua inteira, pois toda ela é passível de ser enunciada, cremos ser a dêixis a forma mais representativa da enunciação. Talvez consigamos melhor defender essa idéia se nos lembrarmos de como surgiu sua conceituação.

Ela tem origem no gestual, na capacidade humana de dizer mostrando, indicando. Esse ato é realizado por um eu na tentativa de relacionar-se com o mundo, em um momento inédito e irrepetível, em um contexto também particular. Por isso, tratamos a dêixis como categoria de linguagem, de enunciação e uma reveladora das subjetividades envolvidas.

Para Lahud (1979) a noção não pertence exclusivamente, a nenhum campo de conhecimento específico: existem referências da dêixis em filosofia, na fenomenologia, na lógica e na semiótica, bem como na lingüística,

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desde a Gramática de Port-Royal às teorias da enunciação. Especificamente, na área lingüística, a noção foi pensada como uma série de categorias com valor demonstrativo ou, dizendo de outra maneira, signos que se articulam para , em situação de discurso, demonstrar a linguagem enquanto atividade. Em situação comunicacional ou dialógica, a dêixis é aquele signo que representa ou aponta ou, ainda, indica aquele que fala. Ainda segundo esse autor, (p. 97), a verdade é que um novo palco onde a noção de dêixis desempenha um papel relevante – senão o principal - é constituído pela assim chamada “lingüística da enunciação”. Ou seja, ela é uma figura de enunciação, uma vez que, quando a linguagem é escrita ou falada ou ainda pensada, ocorre em um lugar, em um tempo com pessoas específicas.

Por tal motivo, pensamos ser de suma importância um estudo que contemple a dêixis na teoria da enunciação de Benveniste.

1 Terminologia

Como já foi adiantado na abertura deste estudo, à noção de dêixis remetem certos signos que se definem como marcas que mostram o sujeito no ato de produção do enunciado. Achamos conveniente, entretanto, recorrer ainda a algumas definições que nos oferecem os estudiosos do campo da linguagem a respeito da questão.

O termo dêixis é de origem grega e designa a ação de mostrar, indicar, assinalar. Mas, para os gregos, somente os demonstrativos faziam parte dessa categoria. Segundo Parret (1988), o conceito surge da noção de referência gestual, isto é, no fato de o locutor identificar o referente por meio de um gesto corporal.

No Dicionário das ciências da linguagem, na parte destinada ao verbete enunciação, Ducrot e Todorov (1982: 379) referem essa equivalência da dêixis à enunciação por parte da maioria dos lingüistas, ao atribuírem a denominação aos elementos da língua que variam conforme a situação de discurso em que são empregados. Assim, os autores, de forma idêntica, ao conceituarem enunciação,

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priorizam os elementos que pertencem ao código da língua, mas cujo sentido, no entanto, depende de fatores que variam de uma enunciação para outra. Os exemplos são: eu, tu, aqui, agora, etc. Eles reconhecem em Jespersen, Jakobson e, principalmente, Benveniste os lingüistas que maiores contribuições trouxeram ao tema naquele momento.

No campo da semiótica, Peirce (1977) chamou os dêiticos de indexicals simbols os símbolos indiciais, ou indicadores.

Para Jespersen, citado por Jakobson (1957), dêiticos são shifters (termo originado do verbo inglês “shift” que significa mudar, trocar). Este termo foi traduzido para o francês por embrayeurs, terminologia usada por Jakobson, indicando precisamente aquela classe de palavras que varia conforme a situação em que tais palavras são empregadas.

Benveniste, em seus textos sobre a questão, segue a terminologia de Jakobson, empregando embrayeurs, e denomina os dêiticos por indicadores da subjetividade ou índices da enunciação ou do discurso.

Finalmente, entendemos ser importante citar Bertrand Russel e sua denominação egocentric particulars – particulares egocêntricos – pela lógica obviedade do termo.

2 Conceito de dêixis e sua constituição enquanto categoria de enunciação Iniciaremos esta parte com a conceituação do termo no dicionário de

Aurélio Buarque, cuja definição de dêixis é:

[Do gr. Dêixis, “modo de provar”, “demonstração”]. (...) Propriedade que têm alguns elementos lingüísticos, tais como pronomes pessoais e demonstrativos, de fazer referência ao contexto situacional ao próprio discurso (5), em vez de serem interpretados semanticamente por si sós; referência [A melhor forma para esse voc. é díxis, mas a f. dêixis é a usual. V. anáfora (2), catáfora (2), endófora e exófora]. (1999: 617)

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É notável que o conceito do dicionário3 classifica como dêiticos apenas pronomes pessoais e demonstrativos. Sabemos que, com os estudos enunciativos, principalmente os de Benveniste, a essa categoria integram-se outros elementos como advérbios, verbos, etc.

Tomando a perspectiva lexical do Dicionário de Lingüística e Gramática: referente à língua portuguesa de Câmara Junior (2002: 90), por exemplo, temos que

Dêixis- faculdade que tem a linguagem de designar mostrando, em vez de conceituar. A designação dêitica, ou mostrativa, figura assim ao lado da designação simbólica ou conceptual em qualquer sistema lingüístico. Podemos dizer que o SIGNO lingüístico apresenta-se em dois tipos – o SÍMBOLO, em que um conjunto sônico representa ou simboliza, e o SINAL, em que o conjunto sônico indica ou mostra (...). O pronome é justamente o vocabulário que se refere aos seres por dêixis em vez de o fazer por simbolização como os nomes. Essa dêixis se baseia no esquema lingüístico das três pessoas gramaticais que norteia o discurso: a que fala, a que ouve e todos os mais situados fora do eixo falante-ouvinte.

Essa definição de dêixis contém um entendimento do signo lingüístico que está de acordo com Benveniste e outros lingüistas como Peirce e Jakobson.

Na verdade, acreditamos que o estudo, anteriormente referido, realizado por Roman Jakobson, em 1957, foi de grande valia para entendermos melhor o estudo pronominal desenvolvido por Benveniste posteriormente. Em Jakobson, não há um estudo específico sobre os pronomes, mas há um texto sobre os articuladores ou shifters, intitulado Os articuladores, as categorias verbais e o verbo russo (1957), em que o autor estuda a categoria de pessoa. A partir daí, podemos entender sua idéia do pronome.

Em seus trabalhos sobre as funções da linguagem - que integram a sua teoria da comunicação - os articuladores e as afasias, Jakobson perpassa uma visão de língua, fala, linguagem diferenciada da saussuriana e da corrente estruturalista, ainda que sendo um estruturalista. Tal fator refletirá nas colocações do autor sobre

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a pessoalidade, os articuladores e os pronomes, suposições que se acercam às de Benveniste (Cf. Flores 2001: 18).

Jakobson pode ser considerado um dos primeiros lingüistas a pensar sobre as questões da enunciação porque sua teoria das funções da linguagem e seu trabalho sobre os shifters são algumas das primeiras sistematizações que se tem em lingüística sobre o lugar do sujeito na linguagem.

Assim, aspectos de uma nova postura de análise lingüística, filha do estruturalismo, surgem nos trabalhos de Jakobson – ligados à enunciação - e que são igualmente estudados por Benveniste.

No texto já referido anteriormente, Jakobson faz um estudo propriamente enunciativo da linguagem e isso justifica aproximá-lo de Benveniste neste ponto do trabalho aqui desenvolvido. Em Os articuladores, as categorias verbais e o verbo russo, há duas partes, sendo que a primeira trata dos quatro tipos de relações existentes entre o código e a mensagem ; a segunda parte classifica as categorias verbais a partir de certas distinções. Aqui, interessa a primeira parte, mais especificamente, o trecho em que Jakobson trata dos pronomes, chegando a uma noção mais ampla – a dêixis.

Jakobson (1957) propunha, então, que a mensagem e o código podem servir como suportes para a comunicação, funcionando de maneira “desdobrada” ou como objetos de referência ou como objetos de utilização. Pode configurar-se, segundo o autor, de 4 formas: a mensagem pode remeter ao código (M/C) é o caso da sinonímia e da tradução; a mensagem pode remeter a outra mensagem (M/M), caso do discurso citado; código pode remeter ao código (C/C), como nos nomes próprios e, por último, o código pode remeter à mensagem (C/M), é o caso dos articuladores (e também dos pronomes). Às duas primeiras situações, Jakobson chama circularidade e as segundas, encobrimento parcial. Dessa constatação, nascem as estruturas duplas, que são polissêmicas. O que interessa para entender a questão dos pronomes é o que Jakobson denomina “encobrimento parcial” em que o código possui uma classe de unidades gramaticais - os “articuladores” - que só ganham sentido se estiverem inseridos em um contexto, referidos à mensagem.

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Essa visão também é defendida por Benveniste. Para justificar essa proposição, Jakobson recorre à noção tridimensional do signo lingüístico de Peirce. Para esse autor, os signos podem ser enquadrados como símbolos, índex (índices) ou como ícones.

Peirce (1977) entende que o índice designa uma relação causal entre um fato lingüístico e o objeto significado. Ou seja, a relação estabelecida é de contigüidade com a realidade exterior. Fornece, como o próprio nome sugere, uma indicação, permitindo o raciocínio inferencial. O exemplo clássico dado é o da fumaça. “Se há fumaça, há fogo”. Aqui podemos notar bem a relação causa-efeito, bem como a questão da indicação e da inferência que é preciso fazer para entender. Na lingüística, tudo o que depende da dêixis é um índice. O símbolo é visto por Peirce como aquele que procede de uma convenção, ou seja, refere-se a alguma coisa, mas perante força de uma lei. Assim, opera por contigüidade que já foi instituída e apreendida entre o significante e o significado. É por uma regra já aceita que a “balança” representa ou simboliza a justiça. Os ícones são aqueles que operam pela relação de semelhança entre significante e significado, ou seja, a representação e o que é de fato representado. Assim, o ícone seria aquele que reproduz fazendo uma transferência. O exemplo nítido disso seria uma foto. Há autores, e um deles é Roman Jakobson, como podemos notar, que acredita que o signo lingüístico é constituído pelo símbolo e pelo índice (sinal), ou seja, ele pode mostrar e representar. Como exemplo, sugere os pronomes que mostram em vez de representar como fazem os nomes.

Segundo Jakobson (1957), os articuladores combinam as funções de índice e de símbolo porque podem ser associados a algo e apontar para outra coisa, e isso é que define seu caráter polissêmico. O pronome pessoal “eu” é citado como um evidente exemplo disso. O “eu” designa quem o enuncia e também pode apontar, de acordo com um tratado convencional, para outras formas, em outros códigos, como “Yo, Ich, Io, I”. Funcionando assim, Jakobson (ibid.) afirma que “eu” é um símbolo”, ou seja, ele representa, simboliza e conceitua a primeira pessoa. Mas, fora disso, “ o signo ”eu” não pode representar o seu sujeito se não estiver em uma relação existencial com esse objeto: a palavra “eu”, que designa o enunciador, está em uma relação existencial com a enunciação funcionando, portanto, como um índex, ou seja, é um sinal que mostra, indica quem enuncia.

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Resumindo, podemos pensar que, na mensagem, os pronomes (como eu) funcionam como índice, por meio de um processo metonímico, e, no código, como símbolo, através de um processo metafórico. É por tal processo que, no código (langue), os pronomes podem funcionar como símbolos. Ou seja, podem ser associados à outra forma em outros códigos e também porque o nome (locutor) pode ser designado pelo nome de um objeto semelhante (o pronome). Pelos fatores substituição e associação que existem nesse processo, consideramos sinônimo da denominação paradigmática dada por Saussure. Os pronomes podem funcionar como índices pelo processo metonímico, na mensagem (parole). Isso quer dizer que um objeto (nome) é designado pelo nome de um objeto semelhante que está associado na experiência, no uso. Assim, só tem razão de ser e funcionar como tal no contexto utilizado, e essa é uma característica do processo metonímico. Quer dizer, sempre há entre o objeto designado e aquele que designa uma relação de dependência. Na continuação, podemos designar o processo metonímico como sinônimo de sintagmático (Saussure).

É necessário, igualmente, ter a clareza de que a significação dos pronomes é determinada conforme a ocasião em que surgem, para que direção apontam e a quem se referem em um texto. Na verdade, os pronomes pessoais, assim como os dêiticos, a partir desse estudo, mostram-se como estruturas complexas, que funcionam de forma polissêmica, isto é, têm duplo sentido ou dupla função. Eles são símbolos-índices, em que código e mensagem se entrelaçam. Benveniste (1956), em seu estudo sobre os pronomes, considera essas afirmações de Jakobson.

A posição de Jakobson sobre os articuladores (entre eles os pronomes também) demonstra que é considerado o código, mas também a mensagem e, com isso, o sujeito, o contexto e o sentido, postura divergente da saussuriana e do estruturalismo. Isso o aproxima das idéias organizadas na teoria da enunciação de Benveniste. Inclusive, a corrente enunciativa propõe como seu objeto de estudo o ato de produção do enunciado e não o enunciado pronto (produto), conforme já mencionamos neste estudo, mostrando uma mudança de ordem, em que aqueles elementos, abandonados por Saussure, agora tornam-se fundamentais. Apesar de haver uma mudança de objeto na enunciação, não há, contudo, desprezo pela língua enquanto sistema.

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Para Jakobson (1957), os articuladores, os pronomes pessoais, por exemplo, têm significação; “Assim, “eu” designa o destinador (e “tu” o destinatário) da mensagem à qual pertence”. Isso mostra que o autor não vê os pronomes apenas como substitutos dos nomes ou indicadores das pessoas do discurso, mas como signos que têm sentido particular, ampliando a visão trazida pelas gramáticas normativas e dicionários de língua. Já mencionamos que Benveniste compartilha (no sentido de aproximar-se, uma vez que não o cita ou menciona) com Jakobson essa caracterização dos pronomes, postura que também se encontra em dicionários de lingüística, conforme observamos no Dicionário de Lingüística e Gramática referente à língua portuguesa de Câmara Junior, ou no dicionário de Ducrot e Todorov.

Até aqui, vimos algumas idéias e conceituações acerca da problemática da dêixis e de sua constituição enquanto categoria ligada à enunciação em alguns teóricos da linguagem. Na próxima parte, especificaremos o estudo dessa questão sob a ótica de Émile Benveniste.

3 A dêixis como indicadores de subjetividade na teoria da enunciação de Benveniste

Benveniste, na sua teoria da enunciação, faz um estudo dos pronomes, de forma detalhada, que pode ser encontrado em: Estrutura das relações de pessoa no verbo (1946), A natureza dos pronomes (1956), também em Da subjetividade na linguagem (1958) e A linguagem e a experiência humana (1965) entre outros. Benveniste mostra como essa categoria é a primeira a instaurar e representar a subjetividade na linguagem.

Os indicadores de subjetividade, como aponta Lahud (1979) ao referir-se ao uso do termo dêixis por Benveniste, estão completamente ligados ao processo da enunciação. A teoria dos pronomes, mais exatamente a categoria de pessoa, é sua pedra de toque.

No artigo de 1946, Estrutura das relações de pessoa no verbo, o autor já teoriza sobre a questão, repensando o problema dos pronomes em relação de oposições, como uma heterogeneidade entre o par eu/tu e o pronome ele. A estrutura das

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relações de pessoa apresenta-se como correlação entre eu-tu, enquanto pessoa, opondo-se a “ele”, que não apresenta o traço de pessoalidade, ou como Benveniste nomeou a correlação de personalidade.

Ao mesmo tempo, estabelece-se outra relação – a correlação de subjetividade – que opõe “eu” a “tu”, ou seja, o eu instaura um tu na realidade do diálogo. Esse tu, exterior, somente pode ser pensado a partir do próprio eu. Essa correlação de subjetividade trouxe para a lingüística os novos elementos de uma semântica da enunciação. Benveniste postula subjetividade e realidade ao mesmo tempo, e o elo de ligação é a dêixis.

Em A natureza dos pronomes (1956), Benveniste atenta, primeiramente, ao fato de que essa classe de palavras não deve ser mais considerada, como habitualmente, uma classe unitária ao se referir à forma e à função. Ele pergunta a qual realidade eu e tu se referem. Sua resposta é categórica: unicamente uma realidade de discurso, que é coisa muito singular. (pg. 278). Assim, ocorre uma dupla instância: de “eu” como referente e como referido, na instância de discurso.

E é nesse ponto que as proposições de Benveniste fazem recordar Jakobson, ao diferenciar o aspecto formal dos pronomes, pertencente à parte sintática da língua, do funcional, considerado característico da instância do discurso, ou seja, da enunciação. Ou seja, os pronomes se configuram em uma classe da língua que opera no formal, sintático, e no funcional, pragmático. Sendo assim, os pronomes devem ser entendidos também como fatos de linguagem, pertencentes à mensagem (fala), às categorias do discurso e não apenas como pertencentes ao código (língua), às categorias da língua, como considerava Saussure. Com isso, Benveniste amplia o enfoque estruturalista e caminha na mesma direção que Jakobson. Essa visão dos pronomes, também como categoria de linguagem, é dada pela posição que nela ocupam.

Assim, conforme Benveniste (idem), os indicadores são as formas como o eu vincula-se ao discurso:

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poremos em evidência a sua relação com o eu definindo-os: aqui e agora delimitam a instância espacial e temporal coextensiva e contemporânea da presente instância de discurso que contém eu. Essa série não se limita a aqui e agora: é acrescida de grande número de temos simples ou complexos que procedem da mesma relação: hoje, ontem, amanhã, em três dias, etc. (Benveniste, 1995: 279).

Eis aí a vinculação da dêixis ao sujeito que fala, ou como quis Benveniste, um indicador da subjetividade no discurso, em que as formas pronominais remetem à enunciação.

Vários autores, como veremos a seguir, perseguem esse tema em seus textos. Vejamos alguns deles e suas idéias.

Para Cervoni (1989), em Benveniste, os dêiticos “refletem” a existência dos signos que constituem a enunciação, que são o locutor/alocutário, o lugar e o tempo do uso da enunciação, sendo os mais representativos o eu-tu-aqui-agora.

Kerbrat-Orecchioni (1980), ao estudar a questão da referência dêitica, aponta para três tipos: a referência absoluta, a relativa ao contexto lingüístico e a relativa ao contexto comunicacional, ou seja, a referência dêitica, que interessa particularmente à perspectiva enunciativa. Para a autora, este tipo de referência considera os elementos internos e externos do discurso, do mesmo modo como defende Benveniste. Kerbrat-Orecchioni (idem: 48) define os dêiticos e ainda alerta para o que deve ser considerado na comunicação:

(...) los deícticos son las unidades lingüísticas cuyo funcionamiento semántico-referencial (…) implica tomar en consideración algunos de los elementos constitutivos de la situación de comunicación, saber:- el papel que desempeñan los actantes del enunciado en el proceso de la enunciación.- la situación espacio-temporal del locutor y, eventualmente, del alocutario4.

Como podemos perceber há três integrantes da dêixis - pessoa, espaço e tempo - que Parret (1988) denomina “triângulo dêitico”. Neste triângulo, os

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pronomes pessoais têm papel privilegiado sobre os outros elementos, uma vez que funcionam como âncora para o sujeito inscrever-se na linguagem. Em torno da pessoa, organizam-se os outros indicadores da dêixis e essa idéia provém de Benveniste (1956). Na tese benvenistiana, a pessoa enuncia num determinado espaço e tempo, o que enfatiza a dependência das categorias espacial e temporal à categoria de pessoa ou como as denomina Cifuentes Horubia (1989) “dimensiones deícticas- local, temporal y personal”. Segundo Fiorin (1996: 42), assim acontece porque a enunciação é o lugar de instauração do sujeito e este é o ponto de referência das relações espaço-temporais, ela é o lugar do ego, hic et nunc. A dêixis, como já citado, também denominada na obra de Benveniste, por “indicadores de subjetividade”, contém a categoria de pessoa o que dá a ela a característica de ser única, particular e pertencente ao discurso e não a uma realidade determinada. Benveniste define então os dêiticos como signos vazios que só ganham plenitude e significação no ato de enunciação, quando assumidos pelos indivíduos; sendo, portanto, de natureza diferente da de outros signos lingüísticos que são plenos, os nomes, por exemplo. Ou seja, o contexto dêitico é sui-referencial. É o que reafirma Parret (1988: 146) o contexto dêitico não é exterior (ontológico) mas subjetivo.

Em Da subjetividade na linguagem (1958), a dêixis volta a ser referida para designar o par eu/tu como marcas da pessoa na enunciação, bem como para indicar o par sujeito/subjetividade no ato discursivo. É na instância de discurso na qual eu designa o locutor que este se enuncia como sujeito. É portanto verdade, ao pé da letra, que o funcionamento da subjetividade está no exercício da língua. (Benveniste, 1989: 288).

Benveniste descreve, finalmente, o que chama de indicadores de subjetividade ao definir o aparelho formal da enunciação, em texto homônimo no ano de 1970. A partir das formas de interrogação, intimação e asserção, ele inclui outros tipos de modalidades pertencentes à dêixis, como os modos (optativo, subjetivo) que enunciam atitudes do enunciador do ângulo daquilo que enuncia (expectativa, desejo, apreensão... e ainda outros mais, relativos à fraseologia, como talvez, provavelmente, etc. (Benveniste, 1989: 87).

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Como vimos, o que estava em construção, para Benveniste, era o estatuto da subjetividade na linguagem, lugar em que a dêixis oferecia um conjunto de categorias visando a estabelecer algo mais profundo que a circunscrição de um “eu” na enunciação.

5 Considerações finais

Notamos que, nos estudos de Benveniste, houve um detalhamento e uma ampliação da problemática da dêixis. Se em Jakobson (1957) existia uma referência ao pronome pessoal, fato que abria os estudos para a categoria de pessoa, em Benveniste apareceram os três grupos de elementos dêiticos - as formas pronominais, verbais e temporais - que formaram as categorias de pessoa, de espaço e de tempo, respectivamente. Além disso, o autor aprofundou as características de cada uma.

Segundo Barthes (1988: 182),

(...) Benveniste amplia consideravelmente a noção de shifter, lançada com brilho por Jakobson; ele funda uma lingüística nova, que não existe em nenhum outro autor (e muito menos em Chomsky): a lingüística da interlocução; a linguagem, e, portanto, o mundo inteiro, articula-se sobre essa forma eu-tu.

Ou seja, a referência dêitica é sui-referencial. O contexto dêitico não é exterior (ontológico) mas subjetivo. (1988:146).

Com isso, percebemos que o fenômeno dêitico mostra quem fala e com quem fala (locutor-alocutário), a situação da enunciação, tempo e espaço desses falantes. Para Benveniste, os elementos da dêixis são principalmente os pronomes pessoais e, após, os pronomes demonstrativos, os advérbios e ainda o verbo, que é a classe de palavras mais “solidária” aos pronomes. A dêixis comporta, portanto, a categoria de pessoa, de espaço e de tempo.

A noção de dêixis é importante e expressa o sujeito na linguagem. Foi

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falando de sujeito e subjetividade que Émile Benveniste foi considerado a exceção francesa5. Ele é referenciado como o autor que inicia, em lingüística, a pesquisa na teoria da enunciação, incluindo o sujeito na linguagem. A partir dele, fala-se na criação de uma teoria do sujeito, e do sujeito da enunciação, conquanto essa expressão não apareça em seus textos. Entretanto, o estatuto, as fronteiras teóricas e a maioria dos elementos necessários para a formalização da noção de sujeito em lingüística pode ser encontrada nos textos de Problemas de Lingüística Geral. Foi pensando no homem na língua que vimos aparecer, em Benveniste, um sujeito subjetivado na e pela linguagem, deixando suas marcas no que nos é mais cotidiano, ou seja, no diálogo.

Notas

1 Em especial, A natureza dos pronomes (1956), Da subjetividade na linguagem (1958), A forma e o sentido na linguagem (1967) e O aparelho formal da enunciação (1970).2 Sujeito e sentido em Bakhtin e Benveniste: os pontos de contato. (2004).3 Talvez o que o dicionário traz como definição de “exófora” melhor se relacione ao que entendemos por dêixis:(...) S. f. E. ling. O conjunto das classes de elementos que fazem referência a pessoa, lugar e tempo, tais como pronomes pessoais, advérbios de lugar e de tempo. [Formas como eu, esse, ali, agora são decodificados à medida que se sabe quem é falante, onde se situa espacialmente e quando proferiu o enunciado. (...) (1999: 860)4 “(...) os dêiticos são as unidades lingüísticas cujo funcionamento semântico-referencial (...) implica tomar em consideração alguns dos elementos constitutivos da situação de comunicação, a saber:- o papel que desempenham os falantes do enunciado no processo da enunciação.- a situação espaço-temporal do locutor e, eventualmente, do alocutário.” (Tradução de Kelly Cristine Granzotto Werner).5 Ver Dosse, F. História do estruturalismo I: o campo do signo. 1993

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Perspectiva benvenistiana de língua: considerações iniciais para pensar uma interface com a lingüística aplicada ao

ensinoNeiva Maria Tebaldi Gomes

Centro Universitário Ritter dos Reis, Porto Alegre - Brasil

Resumo Apresenta reflexões, baseadas em Benveniste, que permitem ampliar a

compreensão do uso que o locutor faz para se enunciar e produzir discursos, condição necessária para pensar a língua em situação de ensino-aprendizagem.Palavras-chave: língua - linguagem (inter)subjetividade - enunciação - discurso - ensino-aprendizagem

AbstractBased on Benveniste, some reflections that allow to enlarge the

understanding of the way the speaker enunciates and produces discourses , a necessary condition to think language in its teaching and learning context , are presented.Key words: language - performance - (inter) subjectivity - enunciation - discourse - teaching and learning

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Introdução

Quando Benveniste diz, em entrevista,1 que “qualquer pessoa pode fabricar uma língua, mas (que) ela não existe, no sentido mais literal, desde que não haja dois indivíduos que possam manejá-la como nativos”, quer, certamente, destacar o caráter essencialmente social de uma língua, que é concebida por ele, antes de qualquer outra coisa, como um consenso coletivo. Assim, diz que, quando a criança aprende uma língua, o processo parece instintivo, tão natural quanto seu crescimento físico, mas o que ela aprende não é o exercício de uma faculdade “natural”, é o próprio mundo do homem2.

E como ele mesmo lembra, “não há existência comum sem língua(gem). Conseqüentemente é impossível datar as origens da linguagem, não mais que as origens da sociedade”3.

Essa estreita relação entre língua e sociedade é reafirmada com freqüência em seus textos:

[...] somente a língua torna possível a sociedade. A língua constitui o que mantém juntos os homens, o fundamento de todas as relações que por seu turno fundamentam a sociedade4.

Não é a língua que se dilui na sociedade, é a sociedade que começa a reconhecer-se como “língua”.5

Com efeito, percebe-se que o social de que trata Benveniste é o da própria natureza do homem: “é um homem falando com outro homem que encontramos no mundo”. A perspectiva benvenistiana de língua configura-se, pois, inicialmente por sua natureza e função social que permite ao homem, pela apropriação, encadeamento e adaptação dos diferentes signos, significar e ressignificar. A apropriação da língua pelo homem “é algo fundamental: o processo dinâmico da língua, que permite inventar novos conceitos e por conseguinte refazer a língua, sobre ela mesma de algum modo”6.

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1 Benveniste: a língua enquanto modo de significar

A apreensão do conceito de língua que perpassa a obra benvenistiana passa necessariamente pela discussão do conceito de signo quanto à sua forma de significar, sendo que Benveniste propõe, para este, duas modalidades de sentido: o semiótico e o semântico. A primeira é a do signo saussuriano concebido como uma unidade do sistema, dotada de sentido; a segunda, a modalidade semântica, representa o sentido resultante do encadeamento, da apropriação pela circunstância e da adaptação dos diferentes signos entre si. E esse modo de significar é o da língua como atividade, como uso, que pressupõe, evidentemente, a forma.

Na perspectiva lingüística de Benveniste há, pois, um alargamento do ponto de contemplação do signo: da sua função como unidade de um sistema formal à função semântica no enunciado, ou seja, a contemplação do uso efetivo da língua por um locutor.

A abordagem lingüística benvenistiana trata não das origens, mas dos fundamentos da língua e “como fundamento de tudo encontra-se o simbólico da língua como poder de significação. [...] A simbolização, o fato que justamente a língua é o domínio do sentido. E, no fundo, todo o mecanismo da cultura é um mecanismo de caráter simbólico”7. A língua é umsistema (simbólico) significante que tem o signo como uma unidade de base e a vemos sempre no seio da sociedade, no seio de uma cultura. Para Benveniste, “o homem não nasce na natureza, mas na cultura” e nenhuma língua é separável de sua função cultural.

Para tratar de seu objeto de estudo - a língua -, Benveniste recorre ao caminho aberto por Saussure8, que diz que é preciso separar a língua da linguagem. A linguagem, para Saussure, é uma faculdade humana da qual a língua é apenas uma parte; a língua é um produto social e um conjunto de convenções necessárias para permitir o exercício da faculdade da linguagem nos indivíduos. Diz que a linguagem tomada em seu todo é multiforme e heteróclita; ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica; ela pertence, ao mesmo tempo, ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria dos fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade. A língua, ao contrário, “é um todo por

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si e um princípio de classificação” - um sistema, e como tal suas unidades são passíveis de descrição e análise.

Benveniste retoma essa discussão de Saussure que apresenta a língua como um sistema dentro do conjunto de fatos humanos - o conjunto dos sistemas de expressão que integrariam a ciência que ele (Saussure) estava buscando - a Semiologia, uma espécie de “macrociência”. Nessa ciência, segundo Saussure ainda, caberia ao psicólogo a tarefa de determinar o lugar exato da semiologia e ao lingüista, a de definir o que faz da língua um sistema especial no conjunto dos fatos semiológicos. Mas ao elaborar para a lingüística o instrumento de sua semiologia - o signo lingüístico - Saussure imprime-lhe já uma certa primazia entre os sistemas que compõem o conjunto dos sistemas de expressão.

Benveniste confirma esse lugar de destaque da língua entre os demais sistemas significantes: “Toda semiologia de um sistema não-lingüístico deve pedir emprestada a interpretação da língua, não pode existir senão pela e na semiologia da língua. [...] A língua é o interpretante de todos os outros sistemas, lingüísticos e não-lingüísticos”9.

É deste modo que, após trazer à discussão o signo saussuriano, ele retoma a questão que considera central - a do estatuto da língua em meio aos demais sistemas de signos - iniciando pela tarefa que considera fundamental: esclarecer a noção e o valor do signo para um sistema. Diz que o signo é necessariamente uma unidade, mas nem toda a unidade de um sistema pode ser um signo. No entanto, diz estar seguro de que a língua é feita de unidades e que estas unidades são signos. Considerado como unidade, o signo é idêntico a si mesmo, mas pura alteridade10 em relação a qualquer outra base significante da língua, material necessário da enunciação. E justamente por esse último aspecto, Benveniste avança e dirige a discussão para a abertura de uma nova dimensão de significância do signo, a do discurso, que passa a denominar de semântica.

Com a dimensão semântica entramos no modo de significar que é engendrado pelo discurso (a língua considerada atividade, a língua em funcionamento). E aqui, segundo o próprio Benveniste, os problemas que se

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colocam são relativos à função da língua como produtora de mensagens.

Ora, a mensagem não se reduz a uma sucessão de unidades que devem ser identificadas separadamente; não é uma adição de signos que produz o sentido, é, ao contrário, o sentido (o “intencionado”), concebido globalmente, que se realiza e se divide em “signos” particulares, que são as PALAVRAS11

Tomando a dimensão semântica da língua como objeto de estudo, Benveniste amplia as possibilidades de compreensão e de descrição da língua, ampliando, em conseqüência, o leque de possibilidades de análise de uma ciência lingüística ainda muito pautada pelo paradigma estrutural. E isso fica evidenciado quando apresenta a língua como “o único modelo de um sistema que é semiótico simultaneamente na sua estrutura formal e no seu funcionamento”12:

1º. ela se manifesta pela enunciação, que contém referência a uma situação dada; falar é sempre falar-de;2º. ela consiste formalmente de unidades distintas, sendo que cada uma é um signo;3º. ela é produzida e recebida nos mesmos valores de referência por todos os membros de uma comunidade;4º. ela é a única atualização da comunicação intersubjetiva13.

Por estas propriedades, a língua apresenta-se como sistema produtor de sentidos, uma organização semiótica por excelência e o único sistema, entre os demais sistemas significantes, capaz de comportar simultaneamente a significância dos signos e a significância da enunciação; um sistema capaz de dar conta do modo e da dinâmica da significância que se produz pelo discurso.

2 Ainda a relação de Benveniste com Saussure

A linguagem, porém, é realmente o que há de mais paradoxal no mundo, e infelizes daqueles que não o vêem. [...] Quanto mais penetrarmos no mecanismo da significação, melhor veremos que as coisas não significam em razão do seu serem-isso substancial, mas em virtude de traços formais que as distinguem das outras coisas da mesma classe e que nos cumpre destacar.14

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Pouco ou nada de novo talvez ainda se possa dizer dessa relação já bastante explorada no meio acadêmico, principalmente. Os recortes aqui trazidos e retextualizados visam apenas a dar conta da abordagem enfocada por este artigo - traçar a perspectiva lingüística de Benveniste, pinçando recortes que possam servir de subsídio teóricos para pensar (e compreender melhor) a língua em situação de ensino-aprendizagem.

Nesse intuito, é preciso lembrar que Benveniste, como estruturalista, assume as formulações teóricas de Saussure15, mas procura desenvolver o que no Curso é um elemento central, mas insuficientemente elaborado, a questão da significação que, pensada a partir do discurso (entendido como a língua em funcionamento), vai se refletir no estudo da enunciação. Pela noção de enunciação Benveniste diferencia o seu projeto teórico do de Saussure e abre possibilidades para interfaces, entre quais acreditamos possível situar a da enunciação com a lingüística aplicada.

É preciso reconhecer, no entanto, que o embrião para uma lingüística que viesse tratar “da atividade de quem fala” já estava, de alguma forma, embora mais relacionada com o aspecto individual e psico-físico da linguagem, presente no Curso de Lingüística Geral: “a atividade de quem fala deve ser estudada num conjunto de disciplinas que somente por sua relação com a língua têm lugar na Lingüística”16. A percepção de um outro domínio lingüístico transparece igualmente nas reflexões sobre a dicotomia língua/fala, quando Saussure busca definir o objeto de estudo da lingüística que entende como “Lingüística da Língua” em oposição a uma “Lingüística da fala: o lado executivo17 fica de fora, pois a sua execução jamais é feita pela massa; é sempre individual e dela o indivíduo é sempre senhor; nós a chamaremos de fala (parole)”18.

Da lingüística de Benveniste, talvez seja mais acertado dizer que é uma continuidade dos estudos de Saussure cujo ponto de vista determinou, na ocasião, o estudo da língua (sistema) como objeto: “unicamente desta última é que cuidaremos, e se por acaso, no decurso de nossas demonstrações, pedirmos luzes ao estudo da fala, esforçar-nos-emos para jamais transpor os limites que separam os dois domínios”19. Diria que se tratou de uma opção por um objeto

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teórico - língua/sistema -, o que não significava, certamente, desconhecimento da existência de outras possibilidades de abordagens para o estudo da língua, porque como ele próprio já alertava “é o ponto de vista que cria o objeto”.

Para entender melhor o que une os dois lingüistas e em que medida o segundo se aproxima do primeiro, contribuem leituras como a de Os termos da enunciação em Benveniste, de Normand20, entre tantas outras. Esse texto tem origem num estudo em que a autora se propõe a caracterizar os passos de Benveniste a partir do “cerne terminológico da teoria”, ou seja, pelo conjunto de termos pelos quais ele tenta cercar o conceito de significação, visando colocar de maneira operatória os problemas relacionados ao sentido.

Segundo a autora, veremos, nesse percurso benvenistiano, “um movimento de alternância de abertura e fechamento: abertura em análises de língua ‘intermináveis’ (no sentido em que elas são solicitação a perseguir); fechamento na ilusão de uma possível teoria global, ‘fantástica’,, do sentido e da cultura [...]”. Estes dois aspectos se manifestam nos textos de Benveniste sob a figura de oposição interno/externo21. E, para Normand, é esta clivagem herdada da formulação lingüística de Saussure que ele quer, através de incessantes formulações, ultrapassar. Diz que em todas as suas análises da significação encontramos, em graus diversos, uma mesma tentativa de conciliação: só levar em conta a “singularidade do objeto língua entre todos os objetos da ciência” e por aí, tratando o “interno”, ele é fiel a Saussure; ao pretender dominar a língua numa teoria coerente, ou melhor, completa, ele é levado a reintroduzir o “externo” e, por esse caminho, a ultrapassar Saussure.

O externo aqui tem a ver com a questão do sentido. Mas, segundo Normand, em 1956, Benveniste ainda se limita a distinguir “sintaxe da língua” e “instância do discurso” sem daí deduzir conseqüências teóricas e só em 1962, com a famosa atribuição da frase ao nível do discurso, ele anuncia pela primeira vez a necessidade de duas lingüísticas e faz a proposição de uma segunda. O tema é constantemente retomado até que em 1969 a distinção Semiótica/Semântica parece resolver provisoriamente a questão.

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Em relação à noção de signo, Benveniste diz que, se o signo corresponde à unidade significante do sistema lingüístico apenas, não se pode erigi-lo em princípio único da língua em funcionamento discursivo porque o mundo do signo é fechado. Não há transição possível do signo à frase, nem por sintagmatização nem por nenhum outro modo: “Tomado nele mesmo, o signo é puramente idêntico a si mesmo, pura alteridade em relação a qualquer outro, base significante da língua, material necessário da enunciação”22. É justamente essa impossibilidade de transição do signo como unidade de um sistema à frase (discurso) que o leva a perceber a necessidade de admitir que a língua comporta dois domínios distintos - o semiótico e o semântico - cada um dos quais exigindo suas próprias definições.

A questão da qual se ocupa Benveniste é a ligação forma-sentido, da qual o Curso apresenta somente os princípios de funcionamento sistêmico. Mas, “longe de desfazer as oposições saussurianas, ele as complica, as reformula, constrói outras, de maneira a retomar o que foi primeiro excluído, o referente e o sujeito, passo necessário se se leva a sério o fato de que numa frase alguém fala de alguma coisa para alguém”23.

É assim que a língua “informada de significação” passa a ser descrita por ele como um sistema de “dupla significância”: o semiótico e o semântico. O semiótico é independente da referência e remete ao modo de significar que é própria do signo e o constitui como unidade do sistema – “pura alteridade em relação a qualquer outro elemento”. O semântico toma necessariamente a seu encargo o conjunto de referentes, por isso “a ordem semântica se identifica ao mundo da enunciação e ao universo do discurso”24. Desta forma, segundo Benveniste, a língua é o único sistema em que a significação se articula em duas dimensões.

Em decorrência dessa nova abordagem, Benveniste diz que é necessário ultrapassar a noção saussuriana do signo como princípio único, do qual dependeria simultaneamente a estrutura e o funcionamento da língua, e indica as vias para essa ultrapassagem25: 1) na análise intralingüística, pela abertura de uma nova dimensão de significância, a do discurso, que denomina semântica, em oposição a do signo, a semiótica; 2) na análise translingüística dos textos pela elaboração de

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uma metassemântica que se construirá sobre a semântica da enunciação .

Embora a questão de Benveniste fosse explicitamente a significação, outro aspecto que diferencia suas formulações das de Saussure é o do sujeito, já que ao estudar a língua ele encontra sempre o sujeito que fala e dá (ou pensa dar) sentido. Com efeito, a Benveniste é atribuído o mérito de ter dado a esse sujeito um lugar na teoria lingüística. O lugar do sujeito é o da língua em uso, o semântico.

3 A (inter)subjetividade na língua

Não atingimos nunca o homem separado da linguagem [...]. É um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição.27

A subjetividade é vista por Benveniste como uma propriedade da língua realizável pela categoria de pessoa. Todavia, o termo sujeito empregado nos textos de Benveniste, “é uma mistura bastante vaga de sujeito gramatical, psicológico, filosófico, antes uma retomada do que uma novidade”28. É provável, no entanto, que Benveniste não pretendesse fazer uma teoria do sujeito, já que não encontramos em seus textos elementos suficientes para a construção de uma teoria sobre o sujeito da enunciação. A ausência desse sintagma, segundo Normand, é significativa porque poderia representar o elemento central de uma teoria acabada.

Independentemente de uma teoria acabada ou inacabada, a importância de Benveniste advém, no dizer do historiador Dosse29, “sobretudo, do fato de ter reintroduzido o recalcado no âmago da preocupação da lingüística: o sujeito, por sua abordagem enunciativa”. Segundo Dosse, ele foi essencial ao mostrar que o sistema lingüístico, sem deixar de constituir um sistema, devia tomar em consideração os fenômenos da enunciação.

A subjetividade, na teoria da enunciação de Benveniste, emerge de um processo de intersubjetividade - de um homem falando com outro homem. Por

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isso, falar de subjetividade é falar de linguagem, uma vez que “não atingimos nunca o homem (sujeito) separado da linguagem”. É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito. Mais precisamente, a subjetividade de que ele trata “é a capacidade do locutor para se propor como sujeito”. E essa subjetividade, segundo Benveniste, “não é mais que a emergência no ser de uma propriedade da linguagem”, propriedade que ele descreve e vê no sistema da língua como realizável pela categoria de pessoa: “É “ego” que diz ego. Os pronomes pessoais são o primeiro ponto de apoio para a revelação da subjetividade na linguagem”30. Deste modo, a teoria dos pronomes e, mais especificamente, a definição da categoria de pessoa é, sem dúvida, o aspecto lingüístico mais importante dos estudos benvenistianos, porque lhe permitiu propor a subjetividade no sistema lingüístico.

A emergência da subjetividade instaura-se pela pressuposição de um tu numa implicação mútua eu-tu. Ao par eu/tu pertence uma correlação especial, a que Benveniste chama de correlação de subjetividade, por falta de expressão melhor, conforme ele mesmo diz. É preciso destacar, no entanto, que de fato o que existe é o eu, uma vez que o tu pode ser apenas pressuposto.

Segundo Benveniste, o que diferencia eu de tu é o fato de o primeiro ser interior ao enunciado e exterior a tu; porém, exterior de maneira a não suprimir o caráter humano do diálogo que pressupõe a reflexividade, ou seja, a sucessão de atos enunciativos com a possibilidade de troca dos papéis eu-tu. É a inversibilidade do par eu-tu, “relação que o “ele” não estabelece com nenhuma das duas pessoas propriamente ditas, e por meio da qual se marca, no interior da língua, a presença da intersubjetividade”31. O tu é externo a eu, é não subjetivo, porém condição para o reconhecimento do eu. Nos termos de Lahud: “[...] ‘eu’ e ‘tu’ não poderiam ser definidos sem referência às instâncias de discurso por meio das quais, dizendo ‘eu’ ou ‘tu’, o locutor arvora-se em sujeito único, unicidade conferida justamente pelos atos aos quais esses signos se vinculam, isto é, pelos ‘atos discretos e sempre únicos pelos quais a língua é atualizada em fala pelo locutor’”.

Em virtude da unicidade e subjetividade inerentes a eu, Benveniste32 diz que a pluralização das pessoas não coincide com o plural nominal, isto é, não

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corresponde a uma multiplicação de objetos idênticos, mas a uma junção de elementos que não se equivalem. O plural da primeira pessoa, por exemplo, representa a soma de eu e o não-eu, seja qual for o conteúdo desse não-eu: “Em ‘nós’ é sempre ‘eu’ que predomina, uma vez que só há ‘nós’ a partir de ‘eu’ e esse ‘eu’ sujeita o elemento ‘não-eu’ pela sua qualidade transcendente. A presença de ‘eu’ é constitutiva de ‘nós’”.

Benveniste também chama atenção para o nós majestático ou para o de modéstia que na verdade representa um eu de contornos indefinidos, talvez disfarçado, mas será sempre o eu o ponto de referência. O plural do pronome, assim como o do verbo, é fator de ilimitação e não de multiplicação: “Só a ‘terceira pessoa’, sendo não-pessoa, admite um verdadeiro plural”.

Em relação à sua natureza [de pronome], eu não constitui uma classe de referência igual a dos nomes e verbos, uma vez que não há “objeto” definível como eu. Há a “realidade do discurso” no qual eu se atualiza. Daí dizer-se que eu e as demais formas pronominais constituem uma classe cuja função se revela na comunicação intersubjetiva. Pertencem ao conjunto de signos “vazios”, não referenciais com relação à realidade, sempre disponíveis, e que se tornam “plenos””assim que o locutor os assume em cada instância do seu discurso33.

Do campo posicional do sujeito - eu-aqui-agora - decorre a referência de outras classes de pronomes - os indicadores da dêixis - demonstrativos, advérbios, adjetivos, que organizam as relações espaciais e temporais em torno do sujeito tomado como ponto de referência. É assim que tais formas são reconhecidas como índices de subjetividade. Segundo Benveniste, das formas lingüísticas reveladoras da experiência subjetiva, nenhuma é mais rica do que as que exprimem tempo: “[..] o tempo lingüístico é sui-referencial. [...] a temporalidade humana com todo seu aparato lingüístico revela a subjetividade inerente ao próprio exercício da linguagem”34. Trata-se aqui do tempo lingüístico, ou seja, do tempo ligado ao exercício da fala - o tempo do discurso - um tempo presente que é reinventado a cada novo ato enunciativo.

Ainda com o empenho de buscar na enunciação subsídios teóricos para

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pensar uma lingüística aplicada, será preciso considerar o estatuto da terceira pessoa (para Benveniste a não-pessoa) em relação ao processo de instauração da subjetividade. Nesse sentido, Benveniste diz que

É preciso ter no espírito que a ‘terceira pessoa’ é a forma do paradigma verbal (ou pronominal) que não remete a nenhuma pessoa, porque se refere a um objeto colocado fora da alocução. Entretanto existe e só se caracteriza por oposição à pessoa do eu do locutor que, enunciando-a, a situa como ‘não-pessoa’. Esse é seu status. A forma ele (...) tira o seu valor do fato de que faz necessariamente parte de um discurso enunciado por ‘eu’35.

Para Lahud36, a distinção entre pessoa e não-pessoa reflete uma oposição mais profunda, cujo traço distintivo essencial é a relação do sentido dos signos com a enunciação. Assim, é justamente a ausência dessa relação direta com a enunciação que faz do ele um elemento adequado para designar a realidade objetiva. E é a impossibilidade de se conceber a natureza semântica de eu-tu fora de uma remissão à enunciação que os torna “não-referenciais em relação à realidade”, mas auto-referenciais. No dizer do próprio Benveniste37, “é ao mesmo tempo original e fundamental o fato de que essas formas ‘pronominais’ não remetem à ‘realidade’ nem a posições ‘objetivas’ no espaço ou no tempo, mas à enunciação [...]. O seu papel consiste em fornecer o instrumento de uma conversão, a que se pode chamar a conversão da linguagem em discurso”.

Quanto ao ele, como o encontramos descrito em Benveniste, pode-se ainda dizer que participa constitutivamente do processo enunciativo (falar é sempre falar de), porém se opondo à relação eu-tu implicada mutuamente, não interferindo de forma constitutiva nessa relação38.

Em síntese, a subjetividade de que trata Benveniste é uma propriedade da língua,e é pelo aparato lingüístico (pelo sistema pronominal) que ela emerge.

4 A língua em funcionamento: o aparelho formal da enunciação

Ao ler os textos que compõem o que poderíamos chamar de construção

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teórica de Benveniste, percebe-se que ao lado da lingüística da forma ele quer introduzir uma outra lingüística: a da língua em funcionamento ou, mais especificamente, a que vai se preocupar com o emprego e com as condições do emprego da língua, visando buscar a universalidade do processo de enunciação que encontraria na(s) língua(s) o aparato de concretização. A sistematização e a descrição desse aparato lingüístico estão no artigo que ele denominou de O aparelho formal de enunciação.

Benveniste entende a enunciação como o colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização, ou seja, é a conversão da língua em discurso. Diz, entretanto, que a enunciação deve ser entendida como o ato mesmo de produzir o enunciado e não como o texto produzido. É este ato de produzir um enunciado e não o texto produzido que elege como seu objeto de estudo. E é deste modo que, partindo de manifestações individuais, ele busca no interior da língua os caracteres formais da enunciação, isto é, a universalidade do processo de enunciação.

Ao tentar configurar o aparelho formal da enunciação diz que o ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala. E este é um dado constitutivo da enunciação. Ao assumir a língua e enunciar-se, aquele que fala, o locutor “implanta o outro diante de si, qualquer que seja o grau de presença que ele atribua a este outro”39. Disso depreende-se que o eu efetivamente é condição da enunciação, mas o tu pode ser simplesmente pressuposto. A enunciação cria um centro de referência interno (o eu) a partir do qual emergem os índices de pessoa no discurso (a relação eu-tu) e os de ostensão40 (este, aqui, agora e outros).

Para Benveniste, como já vimos, “antes da enunciação a língua não é senão possibilidade de língua”. E há certas categorias lingüísticas cuja referência somente é definida em um processo enunciativo, ou seja, em relação a um eu. São os pronomes pessoais e todos os demais dêiticos que passam a expressar a rede de relações que se criam a partir da relação enunciativa, os demonstrativos, certos advérbios, bem como o paradigma inteiro das formas verbais. A temporalidade verbal também é produzida na e pela enunciação, porque é pelo ato de enunciar que se instaura a categoria de presente da qual decorre toda a categorização

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temporal. O presente é propriamente a origem do tempo, ou seja, a partir dele o homem pode estabelecer outros traços ou recortes de temporalidade; “Por fim, na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo”41.

Como aparelho formal, a língua constitui-se de formas que remetem a alguma realidade (seja referencial ou processual) - as formas referenciais da língua, “entidades de estatuto pleno” - e de formas cuja capacidade de referir somente se atualiza no uso da língua, ou seja, por um ato de enunciação - são as formas “vazias” ou dêiticas, “que não existem senão na rede de ‘indivíduos’ que a enunciação cria e em relação ao ‘aqui-agora’ do locutor”.

Da enunciação, Benveniste ainda diz que o que a caracteriza é “a acentuação da relação discursiva com o parceiro”, seja ele real ou imaginado, individual ou coletivo. Descreve desta forma o que denomina de quadro figurativo da enunciação. A origem e o fim da enunciação são apresentados como a estrutura do diálogo, pela qual dois parceiros tornam-se alternativamente protagonistas da enunciação. Alerta-nos sobre a possibilidade de certos jogos ou disputas verbais em que nenhum dos parceiros se enuncia, apenas repete um estoque de provérbios, assumirem apenas aparência de diálogo. (Teriam as falas do trovadores esse caráter?). Por outro lado, apresenta o “monólogo” como uma variedade de diálogo - um diálogo interiorizado, formulado em “linguagem interior” entre um eu locutor e um eu ouvinte.

A enunciação que Benveniste descreve no aparelho formal é ainda bastante teórica, mas como ele próprio já reconhecia “muitos outros desdobramentos deveriam ser estudados no contexto da enunciação. (...) Seria preciso também distinguir a enunciação falada da enunciação escrita. Esta se situa em dois planos: o que escreve se enuncia ao escrever e, no interior de sua escrita, ele faz os indivíduos se enunciarem. Amplas perspectivas se abrem para a análise das formas complexas do discurso, a partir do quadro esboçado aqui”42.

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5 Esquema pronominal de Benveniste: uma releitura

A utilização do esquema pronominal de Benveniste sofre uma reinterpretação no tocante ao estatuto das pessoas em Martins (1990).

Na teoria benvenistiana, como já vimos, eu e tu são elementos constitutivos da cena enunciativa porque fora dessa relação de intersubjetividade a linguagem é pura virtualidade. Ao ele (não-pessoa) cabe a função representativa ou referencial da linguagem, ou seja,” é um substituto de unidades semânticas que referem fora do circuito da enunciação ao mundo dos objetos, das idéias, das ações”. Na condição de substituto dessas unidades, ele pertence ao nível sintático da linguagem, onde se dão as operações anafóricas. Por esse seu estatuto é considerado, na teoria de Benveniste, não-constitutivo na relação eu-tu.

No entender de Martins, a dissociação eu-tu de um lado e ele de outro - universo da interpessoalidade e da objetividade, respectivamente, - tem como uma das conseqüências a impossibilidade de separar a enunciação do enunciado. Isso porque, segundo a pesquisadora, Benveniste insere a enunciação dentro do enunciado e a estuda através de suas marcas formais sem prever a interferência constitutiva de um terceiro elemento na relação eu-tu. Assim, a relação enunciativa é dada como configurada a partir da enunciação de um eu, não sendo aí contemplada a possibilidade de a instauração da subjetividade sofrer qualquer relativização pelo atravessamento de fatores, a princípio, externos a essa relação, como o seria o conteúdo lingüístico da própria enunciação, por exemplo.

Martins lembra que, mesmo em teorias do discurso como a de Bakhtin em que esses conteúdos lingüísticos já eram considerados, não se formulava para a dinâmica da enunciação um esquema em que ficasse claro o papel do conteúdo lingüístico do enunciado na constituição da subjetividade. Por isso, ela vê a necessidade de introduzir o universo da não-pessoa na própria estrutura da enunciação. E o faz através de um estudo teórico do diálogo (que se completa com um estudo empírico), investigando sua natureza e a possibilidade de ocorrência do equilíbrio dialógico.

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Explica sua reinterpretação afirmando que “podemos dizer que eu produz um enunciado pelo ato mesmo da enunciação em que se constitui como locutor e, nesse ato, institui o tu, seu interlocutor, ao qual se opõe pelo traço de subjetividade”. E isso já está em Benveniste. Diz que a relação eu-tu, entretanto, não é independente do conteúdo lingüístico da enunciação: “Essa relação é definida pelo conteúdo semântico do enunciado”43. E essa é, em síntese, a releitura que Martins faz do quadro teórico de Benveniste.

Em seguida diz que eu e tu instauram, com o que enunciam, o conteúdo objetivo de sua relação, que ela entende como o universo da não-pessoa, e que é o conteúdo semântico desse universo da não-pessoa que vai decidir o caráter da relação interpessoal. Segundo a autora, sem essa consideração a relação eu-tu se apresenta abstrata e idealizada, porque o sujeito não se define por tomar a palavra e dizer eu diante de um tu, mas pelo tipo de relação lingüística que o contexto semântico determina.

Para Martins é só pelo enunciado que a enunciação se materializa e pode ser abordada na concretude e historicidade de seus elementos. Essas e outras considerações lhe permitem inverter a perspectiva de Benveniste que concebe a enunciação dentro do enunciado, numa relação indissociável que não permite opor ao eu e tu um terceiro elemento lingüístico que interfira nessa relação de forma constitutiva.

Assim, contrariamente à proposta original, ela coloca o enunciado dentro da enunciação, ou seja, sem contestar a oposição eu-tu/ele, apresenta a possibilidade de as pessoas eu e tu e a não-pessoa definirem-se mutuamente. Em outras palavras, diz que a relação intersubjetiva (eu-tu) não é independente do conteúdo lingüístico da enunciação. Procedendo desta forma, Martins busca recuperar o traço material e concreto que caracteriza a enunciação enquanto evento historicamente determinado, prevendo a possibilidade de a qualidade da relação eu-tu ser relativizada por um terceiro elemento.

Ao reinterpretar o aparelho formal da enunciação, entendemos que Martins não desmerece a sistematização do esquema enunciativo de Benveniste, ao contrário,

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o qualifica quanto ao seu potencial descritivo da linguagem em termos pragmáticos. A própria autora diz que, embora Benveniste não se acomodasse, na época44 havia a necessidade de manter os dois planos - o da visão tradicional da objetividade referencial e o da inserção do sujeito no seu dizer. Hoje, diz, podemos abordar a linguagem só do ponto de vista pragmático e integrar aí todos os planos, sem escândalo. A inclusão do universo da não-pessoa na relação interpessoal confere ao diálogo e à intersubjetividade uma visão menos abstrata.

6 Considerações finais

[...] não existe um fenômeno lingüístico a priori a ser estudado, mas qualquer fenômeno que já tenha sido estudado por outras lingüísticas pode receber o ‘olhar’ da lingüística da enunciação basta que, para isso, seja contemplado com referência às representações do sujeito que enuncia, à língua e a uma dada situação45.

Algumas considerações complementares ao estudo de Benveniste são aqui trazidas como forma de ampliar as possibilidades de visualizar pontos de interface do referencial teórico de Benveniste com a lingüística aplicada.

Concebendo a língua como algo que não se apresenta pronto e estrutura do, Possenti (1988) destaca o aspecto constitutivo do processo de enunciação no qual a atividade é, sim, realizada com a língua, mas também em relação à língua, ou seja, sobre a língua. Diz o pesquisador46 que “A atividade do sujeito não se dá apenas em relação ao aparelho formal da enunciação, mas em relação aos e sobre os próprios mecanismos sintático e semântico. É nesta atividade que o sujeito se constitui enquanto tal, e exatamente por essa atividade”.

A presença da subjetividade na linguagem, na perspectiva de Possenti, revela-se no simples ato de falar, por exigir a escolha de certos recursos expressivos, o que exclui outros, e por instaurar certas relações entre locutor e interlocutor. É o trabalho do falante impregnado de subjetividade. “Esta subjetividade, o locutor pode fazê-la ressaltar ou apagar-se, segundo se submeta mais ou menos fortemente às expectativas institucionais”47.

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Para ressaltar o fato de que as línguas são o resultado do trabalho dos falantes, Possenti adota o conceito de constituição, situando-se a meio caminho entre o que implica a noção de apropriação (cujo emprego considera um tanto problemático em Benveniste) e o que implica a noção de criação. Nem um sistema já todo pronto para ser assimilado, nem um discurso fruto apenas da criação: entre o que é dado da língua e o discurso produzido há a atividade de um sujeito. Assim, “produzir um discurso é continuar agindo com essa língua não só em relação a um interlocutor, mas também sobre a própria língua”. Por isso, “os interlocutores não são nem escravos nem senhores da língua. São trabalhadores”48.

O trabalho dos locutores é entendido por ele como a seleção de um conjunto de recursos expressivos, ao invés de outros, para produzir sobre o interlocutor determinados efeitos. Por efeitos entende informar, impressionar, identificar-se, convencer, obter uma resposta ou outro efeito qualquer intencionado com o discurso. Mas esse trabalho pode ser estendido a uma esfera mais ampla: assim, se, por um lado, a linguagem se constrói no processo interativo, entre um eu e um tu (como queria Benveniste), por outro, diz o autor, não se pode ignorar que as possibilidades concretas dessa interação se situam na dimensão social e discursiva da palavra já “povoada” (no sentido bakhtiniano). Esses eventos interativos produzem, então, discursos que agem não apenas sobre o outro, mas sobre a palavra já “povoada’, ou seja, sobre os próprios discursos.

Já nos encaminhando para o término desta enunciação, acreditamos poder inferir do exposto que a interface pretendida é possível, primeiramente, pela própria perspectiva de língua que se delineia no percurso teórico benvenistiano, que vai da lingüística da forma de Saussure ao desenvolvimento de um modelo de análise da língua voltado à enunciação; segundo pela própria natureza de suas reflexões que contemplam a linguagem e a experiência humana pelo aspecto da constituição da subjetividade lingüística. São reflexões de abrangência interdisciplinar, filosóficas, sociológicas, antropológicas, culturais entre outras, que permitem compreender não apenas o fenômeno lingüístico familiar no uso, mas próprio o homem na língua. A análise da língua que serve à enunciação e o sujeito dessa enunciação, com todos os desdobramentos que se apresentam no uso lingüístico, é mais concretamente o campo de interface.

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Deste modo, acreditamos poder buscar, na lingüística da enunciação, primeiro, o suporte conceptual para o ensino-aprendizagem de língua, uma vez que já foi sobejamente demonstrado que o modelo de ensino calcado numa concepção normativa não tem contribuído muito para uma formação lingüística satisfatória. A descrição da forma, quando bem entendida, é tarefa do lingüista. Ao aluno cabe transformar a língua em discurso, produzindo os sentidos e efeitos de sentido intencionados, agindo, desta forma, com e sobre a língua (no dizer de Possenti), bem como interagir com outros discursos na recepção e na produção, transformando cada ato de leitura ou de escrita em ato único, em atividade lingüística significativa. Conceber a leitura e a escrita como eventos (atos) enunciativos pode ser um ponto de partida para o professor descobrir formas de trabalhar com a linguagem em situações de uso, nas quais o aluno deixaria de ser elemento passivo para tornar-se sujeito do fazer lingüístico de sala de aula.

Quanto aos fatos lingüísticos a serem estudados, acreditamos como Flores49 que “qualquer fenômeno que já tenha sido estudado por outras lingüísticas pode receber o ‘olhar’ da lingüística da enunciação basta que, para isso, seja contemplado com referência às representações do sujeito que enuncia, à língua e a uma dada situação”. E embora não haja modelos de análise consolidados, já que não nos servem os da lingüística estrutural, parece-nos que um leque de possibilidades de estudos enunciativos se abriu a partir de reflexões que trouxeram o sentido para o domínio do discurso.

Para finalizar, poderíamos nos perguntar: por que a escolha de Benveniste para pensar um suporte para uma lingüística aplicada, quando proliferam teorias com, talvez, o mesmo potencial? Talvez porque entendamos como Teixeira50 (na fala de abertura do 1º. Colóquio Leituras de Émile Benveniste) que “Benveniste não é apenas um autor que não cansamos de reler; é também um fundador da discursividade. A extraordinária potência de seu pensamento permite a produção de conhecimentos, em diferentes campos [...]”.

Notas

1 Benveniste, 1989: 20. A entrevista de Pierre Daix com Émile Benveniste - Les

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Lettres françaises, n. 1242 (24-30 de julho de 1968), p.10-13 - constitui o capítulo 1 de problemas de Lingüística Geral II.2 Percebe-se aqui claramente que Benveniste não está se referindo à faculdade ou propensão para a linguagem que nasce com o homem, mas à língua nascida do convívio social e cultural.3 Benveniste, 1989: 23.4 Benveniste, 1989: 63.5 Benveniste, 1995: 47.6 Benveniste, 1989: 21.7 Beveniste, 1989: 21.8 Saussure, 1987: 17.9 Benveniste, 1989: 61.10 Refere-se ao conceito de valor (negativo e positivo) do signo, fundamental na consideração da língua sob o ponto de vista do sistema. O signo significa em função de traços que o distinguem de outros signos; significa por aquilo que não é.11 Benveniste, 1989: 65.12 Benveniste, 1989: 63.13 Benveniste, 1989: 63.14 Benveniste, 1995: 45. Texto Saussure após meio século.15 Da lingüística de Saussure, Benveniste (1995:. 45) afirma: “Essa doutrina enforma de fato, de um modo ou de outro, toda a lingüística teórica de nosso tempo”.16 Saussure, 1987: 2117 O lado executivo é entendido no Curso (p. 21) como tudo que é ativo, na parte psíquica do circuito da fala.18 Op. Cit.:27.19 Op. Cit.: 28.20 Normand, 1996. Segundo a autora, esse artigo, apresentado em uma comunicação, integrou um projeto de estudo mais amplo sobre um conjunto de noções que passou a se designar por Teoria da Enunciação. 21 Normand, 1996: 131.22 Benveniste, 1989: 65.23 Normand, 1996: 139.24 Benveniste, 1989: 66.

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25 Benveniste, 1989: 67.26 Benveniste diz que esta será uma semiologia de “segunda geração”, cujos instrumentos e o método poderão também concorrer para o desenvolvimento das outras ramificações da semiologia geral.27 Benveniste, 1995: 285.28 Normand, 1996: 145.29 Dosse, 1994: 62.30 Benveniste, 1995: 286-288. Nessa obra, dois textos são fundamentais para a descrição da subjetividade: A natureza dos pronomes e Da subjetividade na linguagem.31 Cf. observa Lahud, 1979: 107, nota 44.32 Benveniste, 1995. p. 256.33 Em relação à natureza e função desses signos, Lahud (1979), em A Propósito da Noção de Dêixis, faz um estudo exaustivo.34 Benveniste, 1995: 289.35 Benveniste, 1995: 292.36 Op.cit.: 109.37 Benveniste, op.cit.: 280.38 Martins (1990), propõe alterações significativas em relação ao estatuto do ele no processo de enunciação, como o veremos a seguir.39 Benveniste, 1989; 84.40 Podem ser assim considerados todos os elementos lingüísticos dêiticos. Sobre essa questão ver Lahud (1979).41 Benveniste, 1989: 84.42 Benveniste, 1989: 90.43 Martins, 1990: 76.44 Para uma contextualização dos estudos de Benveniste ver Dosse (1994): Benveniste: a exceção francesa, cap.4:.61-72.45 Flores, 2001: 58.46 Possenti, 1988: 49.47 Possenti, 1988: 56.48 Op.cit.: 57-58.49 Referência feita na nota n.45.50 In: Letras de Hoje, 2004, p.8.

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