Levi Strauss - A Ciência Do Concreto

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Levi Strauss - A ciência do concreto

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    A CI:NCIA DO CONCRETO

    Durante muita tempo, aprouve-nos mencionar linguas s quais faltam termos para exprimir conceitos como os de "arvore" ou de "animal". ainda que nelas se encantrem todas os nomes necessrios para um inventario detalhado das espcies e das variedades . Mas, ao rccorrer a esses casas como apoio de uma pretensa inps.ia; dos "pri-mitivos" para 0 pensamento abstrato, omitiam-se autros exemplas que atestam nac ser a riqueza cm nomes abstratos unicarnente ocaa~--ag!Q das linguas civilizadas. Il assim que a chinuque, Iingua do noroeste da Amrica do Norte, utiliza nomes abstratos para designar muitas propriedades ou qualidades dos seres e das coisas: "Esse procedimen-ta [afirma Boas] mais freqente ai que elll todas as outras Iinguagens por mim conhecidas". 0 enunciado: "0 homem mau matou a pobre criana", em chinuque tornase: "A maldade do homem matou a po breza da criana"; c, para dizer que uma mulher usa uma cesta muito pequena: "Ela coloca raizes de potentilha na pequenez de um cesto para conchas" (Boas 191 1, 657-658).

    V Em todas as Iinguas, alias, a discurso e a sintaxe fomecem os \ recurSQS indispensveis para suptir as lacunas do vocabul:hio . E 0

    carMer tendencioso do argumento lembrado no paragrafo anterior fica bem clara quando se percebe que a situaao inversa, isto , aquela ern que os termos mais gerais prevalecem sobre as denomina5es es.

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    pecfficas, tambm foi explorado para afirmar a indigncia intelcctual dos selvagens:

    Dentre as plantas e os animais, 0 indgena nomeia apenas as esp-c ies tei s ou nocivas; as outras sac indistintamente classificadas como ave, erva daninha etc - (K.rause 1956, 104).

    Um observador mais recente parece acreditar, da mesma forma, que 0 indigena nomeia e conceitua unicamente em funo de suas necessidades:

    . Eu ainda me recorda da hilaridade provocada entre meus am igos das ilhas Marquesas. pelo interesse (a seus olhos, pura tolice) dcmonstrado pelo botnico de nossa expediao de 1921 em rclaao s "ervas daninhas" sem nome ("sem utilidadc") que cIe colctava c qucr ia saber como sc chamavam - (Handy e Pukui 1958, 119, n.o 21).

    Entretanto, Handy compara essa indiferena quela que, em nos-sa civilizao, demonstra a especialista em relao aos fen6menos que nao estao diretamente ligados a seu dominio. E, quando sua colabo-radora indigena enfatiza que no Havai Il cada forma botnica, zoo16-gica ou inorgni ca que se sabia ter si do nomeada (e personalizada) era ... uma coisa utilizada", tem 0 cuidado de acrescentar: "de uma maneira ou de outra". e acentua que, se "uma variedade ilimitada de seres vivas do mar ou da ' loresta, de fenmenos meteoro16gicos ou martimos no tinha nome", era porque eles no eram considerados "uteis ou ... dignes de interesse ll , termos nao-equivalentes, desde que um se situa no pIano pratico, e 0 outro, no te6rico. A seqncia do texto confirma isso, reforando '0 segundo aspecto em detrimento do primeiro: "A vida era a experincia investi da de significaao exata e precisa" (id., p. 119).

    \ Na verdade, 0 recorte conceitual varia de Hngua para lngua e,

    coma 0 observou muito bem, no sculo XVIII, 0 redator do verbete "nome" na Enciclopdia, 0 emprego de termos mais ou menos abstra-tos nao funao de capa cid ad es intelectuais mas de interesses desi-guaI mente marcados e detalhados de cada sociedade particular no seio da sociedade nacional : "Subi ao observat6rio; ai, cada estrela nao mais simplesmente urna estrela, a estrela f3 do Capric6rnio, a y do Centauro, a , da Ursa Maior etc; entrai num picadeiro, cada cavalo tem ai seu nome pr6prio, 0 Brilhante, 0 Duende, 0 Fo-goso etc" _ Alias, mesmo se a observaao sobre as chamadas linguas primitivas mencionada no incio des te capitulo devesse ser toma da ao

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    p da letra, nao se poderia disso concluir uma ausncia de idias ge-rais: os nomes Ifcarvalho", IIfaia", "btula" etc naD sac menas abstra-tas que 0 nome Ifarvore", e, de duas linguas, das quais uma possusse apenas esse ultimo terma e a outra 0 ignorasse, mesmo tendo varias dezenas ou centenas relacionados corn as espcies e as variedades, seria a segunda e naD a primeira, deste ponto de vista, a mais riea em conceitas.

    Como nas linguagens profi ssionais, a proliferaao conceitual cor--~' responde a uma atenao mais firme em relaao s propriedades do real, a um interesse mais desperto para as distin6es que ai possam 1 ser introduzidas. Essa nsia de conhecimento objetivo constitui um ! dos aspectos mais negligenciados do pensamento daqueles que chama- 1 mos Uprimitivos". Se ele raramente dirigido para realidades do mes- \ 'mo nivel daquelas s quais a cincia modern a esta ligada, implica ' diligncias intelectuais e mtodos de observaao semelhantes. Nos dois-casas, 0 universo objeto de pensamento, pela menos coma meio de satisfazer a necessidades.

    Cada civilizaao tende a superestimar a orientaao objetiva de seu pensamento; por isso, portanto, que ela jamais esta au sente. Quando cometemos 0 erro de ver 0 selvagem como exclusivarnente go~ 1 vernado par suas necessidades orgnicas ou econmicas, nao perce be- ! mos que ele nos dirige a mesma censura e que, para eIe, seu proprio , desejo de conhecimento parece melhor equilibrado que 0 nosso:

    A ulilizaao dos recursos naturais dos qua is dispunham os ind-genas havaianos era mais ou menQS completa; hem mais que a praticada na era comercia l atllal, que sem piedadc explora alguns produtos que, no momento, proporcionam vantagem fnanceira, desprezando e destruindo toda 0 rcsto - (Handy e Pukui 1958 , 213 J.

    Sem duvida, a agricultura de mercado nao se confunde corn 0 conhecimento do botnico. Mas, ignorando 0 segundo e considerando exclusivamente a prime ira, a velha aristocrata havaiana nad a mais Caz que retomar, por conta de uma cultura indgena, invertendo-o a seu favor, 0 mesmo erra cometido por Malinowski quando pretendia que o interesse dos p-~itiVOS~" pelas plants e animais totmicos era-lhes inspira de unicamente pelos reclamos de seu est6mago.

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  • Il' 1 1 A observao de Tessman (1931 , 71) a respeito dos fang , do

    Gabo, quanto .. precisiio corn a quai eles reconhecem as menores diferenas entre as espcies de um mesmo gnera". corresponde s dos dois autores ja citados, para a Oceania:

    As faculdades aguadas dos indigenas Ihes permitiam notar exata-mente os caracteres genricos de todas as espcies de seres vivos, terrestres e marinhos, assim como as mais su tis mudanas dos fenmenos naturais tais como 0 vento, a luz, as cores do tempo, as ondulaes das vagas, as variaes das ressacas, as carrentes 'aquaticas e areas - (Handy e Pukui 1958, 119).

    Um habito to simples coma a mastigaiio de btele sup6e, nos hanunoo das Filipinas, 0 conhecimento de quatro variedades de se-mentes de areca e de oito produtos de substituiao, de cinco varieda-des de btele e de cinco produtos de substituio (Conklin 1958):

    Todas ou quase todas as at ividades dos hanunoos exigem uma in tima familiaridade corn a flora local e um conhecimento pre-ciso das c1assifica5es botnicas. Contrariamente opinio segun-do a quai as sociedades que vivem em econo mia de subsistncia utilizariam apenas urna fraao minima da flora local, esta ltima utilizada numa proporo de 93 % - (Conklin 1954, 249).

    Isto nao menos verdadeiro no que se refere fauna: Os hanunoo c1assificam as formas locais da fauna de aves em 75 categorias. distinguem por volta de 12 espcies de serpentes ... 60 tipos de peixes. .. mais de uma dezena de crustceos do mar e da gua doce, outros tantos tipos de aranhas e de miripodes. As milhares de formas de insetos estao agrupadas em 108 cate-

    gori~ nome~das, das quais 13 sao formigas e trmitas. .. Identi~ ficam mais de 60 classes de moluscos marinhos e mais de 25 de moluscos terrestres e de gua dace . .. quatro tipos de sanguessu-gas . . ,l [aD todo, 461 tipos zool6gicos recenseados] - (id., pp. 6770).

    A respeito de uma populao de pigmeus das Filipinas, um bi6-logo se exprime da seguinte maneira :

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    Um traa caracteristico dos negritos, que os distingue ~e seus vizi-nhas criSlaOS das plancies, seu inesgotvel conheclmento dos reinos vege tal e animal. Esse saber nao implica somente a identi~ ficao especfica de um nme~o fenomenal. de plan tas, p,s.saros, mamlferos e insetos mas tambem 0 conheclmento dos habltos e costumes de cada espcie ... o negrito est completa mente integrado em seu ambien.te e, coisa ainda mais importante, estuda sem cessar tudo aqUilo que 0

    eerea. Muitas vezes eu vi um negrito, incerto Quanta iden tidade de uma planta, provar 0 frulo, cheirar as folha5, quebrar e exa-minar urna haste, observar 0 habitat. E somente depois de cons-derac todos esses dados que ele declarara conhecer o u nao a planta em qUest30.

    Depois de ter demonstrado que os indigenas tambm se interes-sam pelas plantas que nao lhes sac diretamente uteis, devido s rela~ 6es significativas que as ligam aos animais e aos insetos, 0 mesmo autor continua:

    o agudo senso de observao dos pigmeus, sua conscillcia plena das relaes entre a vida vegetal e a vida animal . so ilustrados de maneira impressionante ' por suas discussoes sobre os ha bitas dos morcegos. 0 tididi" vive sobre a rama seca das palme iras, a dikidik sob as folhas da bananeira selvagem, 0 li /lit nos bambu-zais,o kolumboy nas cavidades dos troncos das rvores, a bonanab nos basques espessos, e assim par d ianle, assim que os negritos pinatubo conhecem e distinguem os ha-bitas de 15 espcies de morcegos . E nao menas verdade que sua c1assificaao dos morcegos assim coma a dos insetos, aves, mamf-feros, peixes e plantas repousa principal mente nas semelhanas e nas diferenas fisicas. Quase todos os homens enumoram corn a maior facil idade os no-mes especfficos e descritivos de pe la menos 450 plantas, 75 aves, de quase Iodas as serpen tes, peixes, insetos e mamferos e ainda de 20 espcies de formigas ... J e a cincia botnca dos mananm-bal, feiticeiros-curandeiros de dois sexos, que usam constantemente as plantas em sua arte, absolutamente espantosa _ (R.B. Fox 1953, 1871 88) .

    Escreveu-se, a respeito de uma populao atrasada das ilhas Ry ky:

    Mesmo uma criana pode muitas vezes identificar a espcie de uma rvore a partir de um minimo fragmento de made ira e, mais ainda, a sexo dessa rvore, segundo as id ias que os indigenas mantm a respeito do sexo dos vegetais, e isso observando a aparncia da madeira e da casca, 0 cheiro, a dureza e outras caracteristicas do mesmo tipo. Dezenas e dezenas de peixes e conchas sao con he-cidos par termos distintos, assim coma suas ca racteristicas pr6-prias, seus costumes e as diferenas sexuais denlro de cada lipo . - (Smith 1960, 150).

    Habitantes de uma regio desrtica do sul da Cal if6rnia, onde apenas aIgu mas raras familias de brancos conseguem hoje subsistir, os 1. Tambm 45 espcies de cogumelos comestiveis (I.e., p. 231) e, no pIano

    lecno16gico. 50 tipas de flechas diferentes (id., pp. 265-268).

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    Indios coahuilla, em numero de varias milhares, naD conseguiam esgo tar os recursos naturais; vivi am na abundncia. Isso porque, nesse lugar de aparncia desfavoreeida, eonheciam nada menas que 60 plan-tas alimentares e 28 outras corn propriedades nare6tieas, estimulan-tes ou medieinais (Barrows 1900). Um unico informante seminale identifica 250 espeies e variedades vegetais (Sturtevant 1960). Fo-ram reeenseadas 350 plantas conheeidas pelas indios hopi, mais de 500 pelas navajas. 0 lxico botnieo dos subanum, que vivem no sul das Filipin'as, ultrapassa de longe mil termos (Frake 1961) e a dos hanunoo aproxima-se dos dois mil 2. Trabalhando corn um unico in-formante gabons, recentemente a sr. Sillans publicou um repert6rio etnobotnico corn cerca de oito mil termos, repartidos entre as lin-guas ou dialetos de 12 ou 13 tribos adjacentes (Walker e Sillans 1961). Os resultados, na maior parte inditos, obtidos par Marcel Griaule e seus colaboradores, no Sudiio, tambm prometem ser im-pressionantes.

    A extrema familiaridade corn a meio bio16gico, a ateniio apaixo-nada que lhe dedicam, os conhecimentos exatos ligados a ele freqen-temente impressionaram os pesquisadores como indicadores de atitu-des e preoeupaes que diferenciam os indigenas de seus visitantes brancos. Entre os indios tewa, do Nova Mxico:

    As pequenas diferenas sao notadas, ., eIes tm nomes para todas as espcies de confferas da regio; ora, nesse caso, as diferenas sao pouce visiveis e, entre OS brancos, um individuo nao-treinado seria incapaz de distingui-Ias ... Na verdade, nada impediria que se traduzisse um tratado de botnica em tewa - (Rabbins, Har-rington e Freire-Marreco 1916, 9 e 12) .

    Em uma narrativa levemente romanceada, E. Smith Bowen con-tau corn graa sua confusao quando, chegada a uma tribo africana, quis comear aprendendo a lingua: seus informantes acharam muito natural, no estdio elementar de sua instruo, juntar um grande nu-mero de espcimes botnicos que eles iam nomeando enquanto apre-sentavam-nos a ela, os quais, porm, a pesquisadora era incapaz de identificar, nao tanto par sua natureza ex6tica mas porque ela nunca se interessara pela riqueza e pela diversidade do munda vegetal, en-quanta os indigenas tinham tal curiosidade pr-adquirida. .

    2. Cf. a seguir, pp. 158 e 174.

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    ~sse PO~? cultivador: para ele. as plantas sac tao importantes. tao famlhares quanta os seres humanos. De m,nh. part

    . . e. eu nunca VI~I cm um: ,fazenda e ?ao estau mesmo muita segura de distin. gmr a~ beg?mas das ~ahas ou das petnias. As plantas, como as

    equaoe~. lem 0 habue traioeiro de parecerem semelhanles e serem ~.lferentes ou de parecerem diferentes e serem semelhant'!s.

    Con~e.quentement~. a~rapalho-me cm botnica tante quanlO cm ma-lematlca. Pela pnrnclra vez cm minha vida, encontro-me cm uma comunidade ,onde as cfianas de dez anas nao me sao superiores cm maternatlca, mas ,esteu tambm num lugar cm que cada plan-ta, . s:!vagem ou cultlvada. lcm uma utilidade e um nome bem deflmdos, cm que cada homcm. cada mulher e cada criana co-nhece centen~s de espcies. Nenhum deles podera jamais acreditar que eu sou IOcapaz, mesmo que 0 queira, de saber tanto quanta eles - (Smith Bowen 1957, 22).

    Bem diferente a reaiio de um especialista, autor de uma mOno-grafia. o~de des:r~ve cerca de 300 espcies ou variedades de plantas medIClDaIs ou toxlcas, usadas par determinadas populaes da Rod-sia do Norte:

    Sempre fiquei surpreso corn a solicitude corn a quai 0 pavo de Balavale e das regioes vizinhas ace itava falar de seus remd ios e po6es. Estariam lisonjeados pela interesse que eu demonstrava par seus mtodos? Considerar iam nossas conversas coma uma

    troc~ de informaoes ent re colegas? Ou quereriam exibir seu co-nheclIl~ento? Qualquer que fosse a razo de sua atitude, jamais se fazlam de rogados. Recorda-me de um danado de um velho

    l~chazi que tra~ia braadas de folhas sec as, raizes e hastes, a flm de me ensmar todos os scus usos. Seria ele herborista ou feiticeiro? Eu. nunca pude decifrar esse mistrio, mas passa cons-

    tat~r, corn tnsteza,. ~ue jamais possuirei sua cincia da psicologia afncana e sua habJildade para curar se us semelhantes: associadas meus conhecimentos mdicos e seus talentos teriam formado um~ combinaaa muita til - (Gilges 1955, 20).

    Citando um trecho de seus cadernos de viagem, Conklin quis ilus-trar esse cantato intimo entre 0 homem e 0 meio que 0 indgena eter-namente impe ao etn610go:

    A 0600 e sob uma chuva fina, Langba e eu deixamos Parina em d~r~ao . a Boli " . Em Arasaas, Langba pediu-me para carlar vanas liras de 10 por 50 cm da casca da rvore al/apla ki/ala (Albiza procera (Roxb.) Benth. ), a fim de nos protegermos das sanguessugas. Esfregando corn a face interna da casca nossos tor-nozelos. e pern as ja molhados pela vegetaao go te jante de chuva,

    p~oduzla-se urna espuma rosa que era um 6timo repelente. Na tnlha perto de Aypud, Langba parou de repente, entiou agilmente

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    seu bastao na beira do caminho e arrancou uma erva pequ~na, tawag kgun buladlad (Buchnera urticifolia R. Br..>. q.ue, dls

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    doenas dos cavalas e tuberculose, respectivamente); sangue de per-diz, suor de cavala (ai rote - hrnias e verrugas); caldo de pombo (bu ria te - tosse); p das patas do passaro tilgous moidas (kazak _ '~ mordida de dia rai vasa) ; morcego seco pendurado no pescoo (russos do Altai - febre); instilaao da agua proveniente do gela suspenso do

    ,', ninho do passaro remiz (oirote - doenas dos olhos), Sarnen te entre os buriates e limitando-se ao urso, a carne deste possui sete virtudes teraputicas diferentes; 0 sangue, cineo; a gordura, nove; 0 crebro, 12; a bile, 17; e a plo, duas, Tambm os kalar recolhem os excre-mentas empedrados do urso no fim da hibernaao para curar prisao de ventre (Zelenine 1952, 47-59), Po de-se encontrar num estudo de Loeb um repertrio igualmente rico para uma tribo africana,

    /- De tais exemplas, que se poderiam retirar de ;o,das as, re~i6es do mundo, concluir-se-ia, de barn grada. que as espeCles ammaIS e ve-

    \ getais nao sao conhecidas porque sao teis; el as sao consideradas teis lEu interessantes porque SaD primeiro conhecidas.

    Pode-se objetar que uma ta l cincia nao deve absolutamente ser

    Uficaz no pIano pralico, Mas, justamente, seu objeto primeiro nao de ordem prtica. Ela antes corresponde a exigncias intelectuais aD invs de satisfazer s necessidades .

    r A verdadeira questao nao saber se 0 contato de um bico de

    picano cura as dores de dente mas se possivel, de um determinado ponto de vista, fazer "irem juntos" 0 bieo do picano e 0 dente do homem (congruncia cuja f6rmula teraputica constitui apenas uma aplicaao hipottica entre outras), e, atravs desses agrupamentos de coisas e de seres, introduzir um prindpio de ordem no universo. Qual-quer que seja a classificaao, esta possui uma virtude prpria em rela-ao ausncia de classificaao . Assim corna escreve um te6rico mo-derno da taxionomia: "

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    Os cientistas sqpoflam a duvida e 0 fracasso, porque nao podem fazer de outra maneira. Mas a desordem a un iea co isa que nao podem nem devem tolerar. Todo 0 objeto da cincia pura con-duzir a seu ponto mais alto e mais consciente a reduao do modo ca6tico de percepo, que comeou num piano nferior e prova-velmente inconsciente, com a pr6pria origem da vida. Pode-se. per-guntar, em alguns casas, se 0 tipo de ordem elaborado um ca-rater objetivo dos fenmenos ou um artiflcio construldo pelo cien-

    tista. Essa qucsto constantemente colocada em matria de ta-xionomia animal . .. Entretanto, 0 postulado fundamental da cin-da que a pr6pria natureza ordenada ... Em sua parte terica, a cincia se limita a uma ordenaao, e ... se verdade que a sistematica consiste em tal ordenao, os termos "sistematica" e "cincia te6rica" podedio ser considerados sinnmos _ (Simp-son t961, 5) .

    Ora, essa exigncia de ordem constitui a base do pensamento que denominamos primitivo, mas unicamente pelo fato de que constitui a base de todo pensamento, pois sob a ngulo das propriedades comuns que chegamos mais facilmente s formas de pensamento que no parecem muita estranhas.

    "Cada coisa sagrada deve estar em seu lugar", notava corn pro-fundidade um pensador indigena (Fletcher 1904, 34), Poder-se-ia mes-mo dizer que isso 0 que a torna sagrada, pois, se fosse suprimida, mes ma em pensamento, toda a ordem do universo seria destruda; portanto, ela eontribui para mantla ocupando 0 lugar que lhe cabe . Os requin tes do ritual, que padern parecer dispensaveis quando exa-minados de fora e superficialmente, explicam-se pelo cuidado corn aquilo que se poderia charnar de .1 microperequaao": naa deixar es-capar nenhum ser, objeto ou aspecta, a fim de lhe assegurar um lugar

    Jno interior de uma cl asse. Nesse sentido, a cerimnia do Hako, dos indios pawnee, s particularmente reveladora porque foi bem ana-lisada, A invocaao que acompanha a travessia de um curso d'agua divide-se em varias partes que carrespandem respectivamente aa ma-menta em que os viajantes calocam os ps na agua, em que os des-locam, em que a gua recabre seus ps inteiramente; a invocaao ao venta separa os momentos em que 0 frescor percebido s6mente nas partes molhadas do corpo, depois aqui e ali e, enfim, sobre toda a epiderme: "apenas entao podemos prosseguir em segurana" (id" pp, 77-78). Como assinala 0 informante, "devemos dirigir um encanta::-l menta especial a cada coisa que encontramas, pois Tirawa, 0 esprito ' supr.emo, reside em todas as coisas, e tu do ~quila que encontramos no i ;,; camlOho pode nos sacorrer. .. Fornos ensmados a prestar atenao a l' tudo a que vemos" (id" pp. 73 e 8 1).

    Esse cuidado corn a observaao exaustiva e corn a inventario sis- J temtico das relaaes e das ligaaes pode s vezes chegar a resulta- Ii dos de boa postura cientifica : 0 caso dos indios blackfoot, que ideJPll tificavam a aproximaao; da primavera pelo grau de desenvolvimen-

    0~\\\\\~~' .;W~~.;.;!~:, .") 'yl . .",_ " ,'::t -:." :" ~ , - 25

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    ( ta dos fetos de biso extraidos do ventre das fmeas mortas na caa. Nao se padern, todavia, isolar esses resultados de tantas outras abor-dagens do mesmo tipo que a cincia considera ilus6rias. Mas nao seria 0 pensamehto magico, If essa gigantesca variao sobre 0 terna do principio da causalidade", diziam Hubert e Mauss (1950,61), me-nas diferente da cincia par ignorncia ou desprezo pela determinis-ma do que por uma exigncia de determinismo mais imperiosa e mais intransigente, e que a cincia pode, quando muito, julgar insensata e precipitada?

    '.

    Considerada coma sislema de filosofia natural, ela (wilchcraft) implica uma teoria das causas: a ma sorte resultado da bruxaria, trabalhando conjuntamente corn as foras nalurais. Se um homem for chifrado por um bfalo, se um celeiro que teve seus suportes minados pelas trmitas lhe cair sobre a cabea ou se ele contrair uma meningite crebro-espinhal, os azande afirmarao que 0 bufa-10, 0 celeiro ou a doena sac causas que se conjugam corn a bru-xaria para matar 0 homem. A bruxaria nao responsavel pelo bUfalo, pelo celeiro ou pel doena, pois eles existem por si mes-mos; ~as ela 0 por essa circunstncia particular que os coloca em uma relaao destrutiva COrn determinado individuo. 0 celeiro teria caido de qualquer maneira, mas foi por causa da bruxaria que ele caiu num momento dado em que um dado individuo des-cansava embaixo dele. Dentre todas essas causas, sornente a bru-

    X-ia admite uma intervenao corretiva, pois somente ela emana de urna pessoa. Nao se pode intervir contra 0 bfalo ou 0 celeiro. Ainda que sejam reconhecidos coma causas, nao sao significativos no plana das rela6es socia is - (Evans-Pritchard 1955, 418-419).

    Ir. Desse ponto de vista, a primeira diferena entre magia e cincia

    1 seria, portanto, que uma postula um determinismo global e Integral enquanto a outra opera distinguindo niveis dos quais apenas alguns admitem formas de determinismo tidas como inaplicaveis a outros ni-veis. Mas no se poderia ir ainda mais longe e considerar 0 rigor e , i a preciso que 0 pensamento magico e as praticas rituais testemu-

    ! nham camo tradutores de uma apreensao inconsciente da verdade do , i determinismo enquanto modo de existncia de fenmenos cientificos, ! de maneira que a determinismo seria globalmente suposto e simulado, 1 antes de ser conheGido e respeitado? Os ritos e as crenas magicas 1 apareceriam entao camo tantas outras express5es de um ato de f Lnuma cincia ainda por nascer.

    Ha mais. Nao apenas par sua natureza, es sas antecipaes pa-dern s vezes ser coroadas de xito; elas tambm podem antecipar

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    duplamente; em relaao pr6pria crencia e aos mtodos e resultados que a cincia s6 assimilara num estadio avando de seu desenvolvi-mento, se verdade que 0 homem enfrentou primeiro 0 mais diffcil, ou seja, a ~a~tizaao no pIano dos dados sens.veis, aos quais a cincia voltou as costas por muito tempo e que apenas comea a rein-tegrar em sua perspectiva. Alias, esse efeito de 'antecipao produziu-se repetidas vezes na hist6ria do pensamento cientifico; coma Simp-son (1961, 84-85) a demonstrou corn a ajuda de um exemplo toma do de emprstimo biologia do sculo XIX, ele resultado de que _ a explicaao cientifica correspondendo sem pre descoberta de urna "ordenao" - toda tentativa des se tipo, mesmo inspirada em prin-cipios nao-cientificos, pode encontrar ordena5es verdadeiras. Isso previsivel se se admite que, par definiao, 0 numero das estrutura~ f~nito: a "estruturaao" ~os~u~ria entao uma eficacia intrinseca,

    1 quar.squer que fossem os pnncrpros e os mtodos nos quais ela s.:., 1 InSpIrasse.

    A quimica moderna reduz a variedade dos sa bores e dos perfu-mes a cinco elementos diversamente combinados: carbono, hidrognio, oxignio, enxofre e azoto. Formando tabelas de presena e ausncia, calculando as doses e os limites, ela chega a dar conta de diferenas e semelhanas entre qualidades que ela outrora banira de seu domfnio como .. secundarias". Mas essas aproxima5es e distin5es naD sur-preendem 0 sentimento esttico, antes 0 enriquecem e esclarecem, criando associaes de que ja suspeitava, e, portanto, pode-se corn-preender melhor par que e em que condies um exercicio constante apenas de intuiao ja teria permitido descobri-Ias; assim, a fumaa do tabaco pode ser, para uma ).9gi"-0. da' sensaao, a intersecao de dois grupos: um que compreende tamb-m --'"carne grelhada e a crosta es-cura do pao (que, coma ela, sao compostas de azoto), outra do quaI fazem parte a queijo, a cerveja e 0 mel , em virtude da presena do diacetil. A cereja selvagem, a canela, a baunilha e a vinho de Xerez formam um grupo nao mais apenas sensivel mas inteligivel, pois Iodas contm aldeido, enquanto os adores aparentados do cha-da-canada (winter-green), da lavanda e da banana sao explicados pela presena de steres. Somente a intuio incitaria a agrupar a cebola, a alho, a couve, 0 nabo, 0 rabanete e a mostarda, enquanto a botnica separa as liliaceas das cruciferas. Justificando 0 testemunho da sensibilidade, a qufmica demonstra que essas familias eilia';has~~ juntam num outro plana: elas contm enxofre (K. , W. 1948). Um fil6sofo primitivo ou

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  • , , um poeta teria podido trabalhar com esses reagrupamentos, inspiran-

    do~se em consideraes estranhas qumica ou a qualquer outra forma de cincia; a literatura etnografica revela uma quantidade delas cujo

    i ,1 valr empirico e esttico nao menar. Ora, istD nao apenas 0 efcito

    de um frenesi associativo s vezes fadado aD sucesso por um simples jogo da sorte, Mais inspirado que na passagem citada anteriormente, em que ele adianta essa interpretaao, Simpson demonstrou que a exigncia de organizao uma necessidade camum arte e cincia e. conseq~ntemente, "a taxionomia, ordenadora por excelncia, possui um valor esttico eminente" (Le., p. 4). Entao, causa ra menos espan-to que 0 sense esttico reduzido a seus pr6prios recursos passa abrir caminho taxionomia e mes ma antecipar alguns de seus resultados.

    Entretanto, nao voltamos tese vulgar (e alias inadmissivel, na perspectiva estreita em que se colaca) segundo a quaI a magia seria uma forma timida e balbuciante da cincia, pois privar-nos-amos de

    , , ' todos os meios de compreender 0 pensamento magico se pretendsse-mos reduzi-lo a um momento ou a uma etapa da evoluao tcnica e cientifica. Mais uma sombra que antecipa seu corpo, num certo Sen-tido ela completa como ele, tao acabada e coerente em sua imateria-lidade quanto 0 ser s6lido por ela simplesmente precedido. ~PJ01-

    ~~m~~t9_ ~T~}~~!~~ _ ~~o ~(...uma _es~a, um cameo, uro esbao, a parte de um todo ainda nao rllliza-do; ele forma um sistema bem articula-

    '-----~------------.9.9.; i!)gepende.!l!

  • riais orgamcos e inorgamcos, a mais adequado para servir de deter-gente, assim coma 0 combustivel conveniente, a temperatura e 0 tem-po de cozimento, 0 grau de oxidaao eficaz); para elaborar tcnieas,

    \ muitas vezes longas e complexas, que permitem cultivar sem terra ou sem agua; para transformar gras ou rafzes t6xicas em alimentas ou ainda utilizar essa toxicidade para a caa, a guerra ou a ritual, nao

    'jJi t dUVidemos de que .!~~':'.~~~a.:i-" .. uma_a.tL!ydcde. espirit2 _",-erdad.\lira-1 Il mente cientifico, uma curiosidade assfdua e sempre_. alerta,_uma- von-~\ ' t~~nh~~er-pelo~e;-c~.~~nhec~: - p~s ~pen~ -;ina_ p-e_tWena

    __ fraao das' observaes ,e experincias (sobre as quais precisa supor '! que tenham sido inspiradas antes e sobretudo pelo gosto do saber)

    ~ '

    odia fOr.!]~cer_ result~dos _ praticos _ejm"-~i~~~!lte __ utili;l~-,,eis, E ainda deixamos de lado a metalurgia do bronze e do ferro, a dos metais pre-ciosos e mesmo 0 simples trabalho de martelagem do cobre nativo, que precedeu de alguns milnios a metalurgia, todos exigindo ja uma competncia tcnica muito avanada.

    o homem do neolitico ou da proto-hist6ria foi, portanto, 0 her-,Q deiro de uma longa tr~diao cientfica; contudo, se 0 espirito que 0

    inspirava, assim coma a todos os seus antepassados, fosse exatamente o mesmo que 0 dos modemos, como poderiamos entender que ele tenha parada e que muitos milnios de estagnaao se intercalem, como um patamar, entre a revaluo neolftica e a cincia_contempornea? o paradoxo admite apen~s ~a soluao: _ que . existe_m_ dois mo~s diterentes- de.._pensamento_cientffico, um e outro funes, -~~'-ceria;e~t' esidios desiguais do desenvolvimento do espirito humano, m'as

    1 ~~_!.lh:~i.s._e'E"at.gicos em que a nat~reza se deix!!.oa.b.s>rc!gcpelo..m-nhecimento cientifico - um aproximadamente ajusta do ao da per-

    ;'p~;;-';' ao da imaginaao, e outro deslocado; como se as relaaes necessarias, objeto de toda cincia, neolitica ou moderna, pudessem ser atingidas por dois caminhos diferentes: um muito pr6ximo da intuiao sensivel e outro mais distanciado,

    Toda classificao superior ao _cao. , e mesmo uma classificaao no nivel das propriedades sensiveis uma etapa ~...Qi!'!'.iio_a- uma

    1 ordem racional, Se nos pedem para classificar uma coleao de frutas variadas em corpas relativamente mais pesados e relativamente mais leves , sera legitimo comear separando as pras das maas, ainda que a forma, a cor e 0 sabor nao tenham relaao corn 0 peso e 0 volume; isso porque, entre as maas, mais facil distinguir as maiores das

    30

    :

    menore~ do que se as mas continuas sem misturadas s frutas d pecto dlferente, Por este exemplo ja se pode ver que el as-da pere - " . . . . ' mesmo no p ana

    epao estetlCa,. a classlf.!!l'ao tem seu mrito, ,. , ,Por outro !ado, se bem que nao haja ligaao nece~saria entre as

    dua;ldades senslvels e ,as propriedades, existe pelo menos uma relaao e ato num ;rande nu~ero de casos, e a generalizao dessa relaao me~mo s"e~ ase na razaa, pode, durante muita tempo ser uma 0 e' r~ao teonca e praticamente satisfat6ria. Nem todos 0; sucos t6xi~o; :ao ardentes ou ar.nar~os, e a reeiproca naD mais verdadeira; entre~ anto, }- _~atureza e. Eelta de manei.ra a ser mais vantajoso para a ao

    ... \ e a pensa~ento agIr coma se uma equivalncia que satisfaz 0 senti~ , mento estetlco correspondesse tambm a uma realidade objetiva S

    due ndos claIba aqui pesquisar por que, .L prQyaY!'1 que espcie." do~: as e a guma caracteristica digna d t - . . . . h ' dA - ,.- ~-- -- ~._-- -_.-- '- ~ -.p.q a, coma forma. Cor ou

    c elro;, eem ao observador 0 que se poderia chamar de "d' 't d segUlr ou s 'd 1 - Irel 0 e

    C , d' ' d eJa, ~ e postu ar que es~as caracteristicas visiveis seJ'am o III Ice e prop dad '1 '--:-- - . . . , ' , .ne :s.Jgu~ mente , sinll!!lareLp'~rm , ocultas, Adml: tIr que a proPDa_relaao entre as du as seja sensivel (q~e um rao em forma de dente prote]a contra as mordidas de cobra que u~ amarelo seja, especifi~ para disturbios biliares etc), .. titulo pro~~s: no, vale malS,_que_ a .Illdlferena a qualquer ligaao pois a l 'f' caao mesmo h t 'r ' . b .. , c aSSl 1-

    J ~ :roc Ita. e. ar itraria , preserva a riqueza e a diver-;''-Qadedo _,-~ve;'l-t;no; decldIr que preciso levar- tudo em conta faci-Ita a eOI].stItUlao de uma "~t::~6ria".

    tado Orad, fat~ q~e mtodos des se tipo podiam levar a certos resul-d s III Ispensavels para que 0 homem pudesse abordar a natureza e um outra ponta de vista. Longe de serem. coma muitas vezes se

    pretendeu, obra de uma "funao fabuladora" 1 real'd d ' que vo ta as cos tas

    1 a e, _~s_ ~:'l1~~~ _e_ ~s ritos 9ferecem QITIo_ valor principal a ser preservado ate lioJe, de forma rsldual modos d- - b-- .--=

    fi - f - -- . ' e 0 ser~ao e de re exao que oram (e sem duvidi . -)_._-_.- -- --"oescoO'1iS-de -t' d , - permanecem exatalJlel1~.-"_daptados

    - : -, __ _ _ -_._. _~pa etermmado: ~_9ue a natureza autorizava a parlIr da orgalllza~o e da exploraao especulativa do munaosensi~el e~ t:rn:os de senslvel. ~_~~!~ d.Q...cQJ1creta devia ser, or essn. 1 Cla, lImItad~ a outros resultados alm dos prometidos s ci~cias exa- 1 ;as e naturalS, m~s ela nao foi menos cientffica, e seus resultados nao . oram menas realS. Assegurados dez mil anos antes dos outras sac :

    sempre a su~s~~~~ .. ~,~ n~~~a civilizaao.

    31

  • Alis, subsiste entre n6s uma forma de atividade que, no piano tcnico, permite conceber perfeitamente aquilo que, no piano da es-peculaao, pde ser uma cincia que preferimos antes chamar de "pri-meira" que de primitiva: aquela cornu mente designada pelo termo

    o bricolage'. Em sua acepao antiga, 0 verbo bricoler aplica-se ao jogo - doplae de bilhar, caa e equitaao, mas sempre para evocar

    um movimento incidental: 0 da pla que salta muitas vezes, do cao que corre aD acaso, do cavalo que se desvia da linha reta para evitar um obstculo. E, em nossos dias, 0 bricoleur aquele que trabalha corn suas maos, util izando meios indiretos se comparados corn os do artista. ara, a caracteristica do pensamento mtico a expresso auxi-liada par um repert6rio cuja composiiio heter6clita e que, mesmo sendo extenso, perrnanece limitado; entretanto, necessario que 0 utilize, qualquer que seja a tarefa propos ta, pois nada mais tem mao. Ele se apresenta, assim, como uma espcie de bricolage intelec-tuaI, 0 que explica as rela6es que se observam entre ambos.

    Assim como 0 bricolage, no pIano tcnico, a reflexao mtica pode alcanar, no plana intelectual, resultados brilhantes e imprevistos. Re-ciprocamente, muitas vezes se net au 0 carater mitopotico do brico-lage; seja no pIano da arte cham ad a "bruta ll ou Ilingnua", na arqui-tetura fantstica da casa de campo do carteiro Cheval, nos cenarios de Georges Mlis ou ainda naquele imortalizado por As grandes espe-ranas de Dickens, sem nenhuma duvida de incio inspirado na obser-vaao do "castelo" suburbano de Mr. Wemmick, corn sua miniatura de ponte-Ievadia, seu canhao saudando as nove horas e seu canteiro de alfaces e pepinos, graas ao quai os moradores poderiam sustentar um cerca, se precisa . ..

    A comparaiio merece ser aprofundada, pois permite melhor acesso s relaes reais entre os dois tipos de conhecimento cientifico que distinguimos. 0 bricoleur est apto a executar um grande nu"

    rpara melhor acompanhar 0 autor em suas consideraoes sobre 0 pensamento mitico, mantivemos nesta traduao. os termos bricoler, . ~ricoleur e bricolage que, no seu sentido alual, exemplifIcam cam grande Celicldade, 0 modus ope-randi da reflexao mitopotica. 0 bricoleur 0 que executa um trabalho usan-Uo meios e expedientes que denunciam a imsncia de um piano preconcebido e se afastam dos processos e normas adOlados pela tcnica. Caracteriza-o especialmente 0 fato de operar corn materiais fragmentarios ja :laborados, ao contrario, por exemplo, do engenheiro que, para dar execuao ao seu abalho, necess ita da matria-prima. (Nota de Almir de Oliveira Aguiar e

    M. Celeste da Costa e Souza, tradutores da l.a ediao pela Ed. NacionaL)

    32

    mero de tarefas diversilicadas porm, ao contrario do engenheiro, nao subordina nenhuma delas obtenao de matrias-primas e de uten-silios concebidos e procurados na medida de seu projeta : seu unverso instrumental fechado, e a regra de seu jogo sempre arr an jar-se ~ corn os "meios-limites". isto , um conjunto sempre finito de uten-

    slios e de materiais bastante heter6clitos, porque a composiao do , conjunto nao esta em relaao corn 0 projeto do momento nem corn f nenhum projeto particular mas 0 resultado contingente de todas as opartunidades que se apresentaram para renovar e enriquecer 0 estoque ou para rnant-lo corn os residuos de constru6es e destrui- ,

    . , 6e~ ~nteriores. ~Q_Assim coma a imagem, 0 signa um set concreto, mas _ assel melha-se ao conceito por seu poder referencial: um e, o~tro nao s"J referem exclusivamente a si mesmos; alm de SI propnos, podem '

    3.3

  • 1

    substituir outra COiS3. Todavia, nesse sentido, 0 conceito possui uma capacidade ilimitada, enquanto que a do signo limita da. A diferena e a semelhana ficam bem ressaltadas corn 0 exemplo do bricoleur. Observemo-Io no trabalho: mesmo estimulado por seu projeto, seu primeiro passa pratico retrospectivo, ele deve voltar-se para um conjunto j constitudo, formada por utensilios e materiais, fazer ou refazer seu inventario, enfim e sobre tu do, entabular urna espcie de dialogo corn ele, para listar, antes de escolher entre elas, as respostas possiveis . que 0 conjunto pode oferecer ao prablema colacado. Ele interroga todos esses objetos heter6clitos que constituem seu tesouro', a fim de compreender 0 que cada um deles poderia "signi-fieat", contribuinclo assim para definir um conjunto a ser realizado,

    1" que no final sera diferente do conjunto instrumental apenas pela disposiao interna das partes . Este cubo de carvalho pode ser um calo, para suprir a insuficincia de uma tabu8 de abeto. ou ainda um soco, 0 que permitiria realar a aspereza e a polidez da velha madeira. Num casa, ele sera extensao, no outra, matria. Mas es sas possibilidades sao sempre limitadas pela hist6ria partieular de cada

    '" \ pea e por aquilo que nela subsiste de predeterminado, devido ao uso original para 0 quaI foi concebida ou pelas adaptaes que sofreu em

    r virtude de outras empregos. Assim como as unidades constitutivas do \, mito, cujas combinaaes possiveis sao limitadas pelo fato de serem

    ~ tomadas de emprstimo lingua, onde ja possuem um sentido que '~restringe sua liberdade de aao, os elementos .que 0 bricoleur cole-

    ciona e utiliza sao "pr-limitados" (Lvi-Strauss 1960b, 35). Por outro ado, a decisao depende da possibilidade de permutar um outro ele-

    mento na poslao vacante, se bem que cada escolha acarretara uma reorganizaao completa da estrutura que jamais sera igual quela vagamente sonhada nem a uma outra que Ihe poderia ter si do preferida.

    Sem duvida, 0 engenheiro tambm interroga, des de que, para ele, a existncia de um "interlacutor" resultado de que seus meios, seo pader e seus conhecimentos naD SaD nunea ilimitaclos e que, sob

    "essa forma negativa, esbarra numa resistncia corn a quaI lhe in dispensavel transigir. Poderfamos ser tentados a dizer que ele in-terroga 0 universo, ao passo que O_IzLic.oleur ~:.._vo~~':.-E"_~"_ uma cole~u;t~~ ~~sduos de obras humanas, ou seja, para um subconjunto - --- ------- ----------- ...... - -- -- ---

    4, "Tesouro de idias", dizem admiravelmente da magia Hubert e Mauss ( 1950, 136).

    34

    ~ cultura. Alias, a teoria da informaao demonstra como possivel, e muitas vezes iltil, reduzir as diligncias do {(sico a uma espcie de dialogo corn a natureza,. 0 que atenuaria a distino que tentamos esboar. Entretanto, sempre subsist ir uma diferena, mesmo se se leva em conta 0 fato de que (j cien1i;t dialoga nao com a naturezal pura mas_ c~m ~n: _ d~:er~i~d_o e~t~~o da relao e~tre a natureza l e a cultura definiv.el. pelo perio_do da historia no quaI ele viVe, pela ; civilizaao que - a SUll e pe~os ~iiis-iiit:iafs--d ' ~ disp6e. Tanto 1 quanto Q. bIJcoleur, posto em presena de uma dada tarefa, ele nao ! pode fazer qualquer coisa, ele tambm dever. comear inventariando ) um conjunto predeterminad9 _de canhecjmentos te6.rif9 e prticos e \ de meios tcnicos que limitam as solu6es possiveis. -.t

    _~slifer,na, portanto, nao tao absoluta quanto seriamos ten-tados a imagi;;-ar; entretanto, permanece- reai na medida em que, em relao a essas limita6es que resumem um estado da civilizao, 0 ~ngs:nhe@ sempre procura abrir uma passagem e situ ar-se alm, ao

    i passo que SLb.ric.QLel!!! de bom ou mau-grado, permanece aqum, l que uma outra forma de dizer que 0 primeiro opera atravs d:J . conceitos, e 0 segundo, atravs de signos. No eixo de oposiao entre natureza e cultura, os conjuntos dos quais ambos se servem estao perceptivelmente deslocados. Corn efeito, pelo menos uma das ma-neiras pelas quais 0 signo se opae ao conceito esta ligada a que 0 segundo se pretende integralmente transparente em relao rea-lidade, enquanto 0 primeiro aceita, exige mesma, que uma certa den sidade de humanidade seja incorporada ao real. Segundo a expressao vigorosa e dificilmente traduzivel de Peirce: Il addresses somebody.

    Poderseia, portanto, dizer que tanto 0 cientista quanta 0 bn'-co/eur esto espreita de mensagens, mas, para 0 bricoleur, trata-se de mensagens de alguma forma pr-transmitidas e que ele coleciona: como os c6digos comerciais que, condensando a experincia passada da profisso, permitem enfrentar economieamente todas as situaes novas (porm corn a condio de que elas pertenam mesma classe que as antigas); j 0 homem de cincia, engenheiro ou fisico, ante cipa sempre a outra mensagem que poderia sec arrancada a um in terlocutar, apesar de sua relutncia em se pronunciar a respeito de quest6es cujas respostas nao foram dadas anteriormente, 0 canceit1 aparece assim coma 0 operador de uma aberlura do conjunto corn o quaI se trabalha, sendo a significao 0 operador de sua reorgani-

    ~

    35

  • r zaO: ela nao 0 aumenta nem o renova, limitaodo.se a obter '0 grupa 1ge suas transformaes.

    tA imagem naa pade ser a idia, mas ela pade desempenh~r a pa pel de signa QU, mais exatamente, ~oabitar corn ,3 idia no interior de um signa; e, se a idia 8inda naD esta la, respeitar seu futuro lugar e. fazet-lhe aparecer negativamente os contornos. A imagem fixa, esta ligada de forma unvoca ao ato de conscincia que a acom-panha; mas se 0 signa e a imagem tornada significante ainda nac tm compreensao, ou seja, se lbes faltam relaaes simultneas e teo-ricamente ilimitadas corn outros seres do mesmo tipa (0 que pri-vilgia do conceita), ja sao permutaveis, isto , suscetfveis de man ter rela6es sucessivas corn outras seres, se bem que em oumera limitado, e, como se viu, em condi6es de formar sem pre um sistema onde uma modificaao que afete um elemento interessar automaticament.e a todos os outras: ,nesse plana a extensaa e a compreensao dos 16-gicos existem nao ~como dois aspectos distintos e complementares mas coma Le.aJ idade solidarja __ Compreende-se, assim, que o pensamenta mi-

    l rtiCO ' se bem qu~ ~prisianada pelas imagen;, j passa ser _ gener~liz~d~ 1 e, p~rtanta , clentlfIco; ele trabalha tambem par analoglas e ~roxll maoes, mesmo que, coma no casa do brtcolage, suas cnaoes" se I~' , 1 redu~~m se~pre a. um arran~o nova de ele~entos . cuja nature~~_ s6

    i mod,f,cada a medlda que fIgurem no eon)unto mstrumental. ou ila i dispasiao final (que, salvo pela dispasiaa interna, forrnam sempre - 0 mesrno objeto) : "dir-se-ia que os universos rnito16gicos estao des-

    tinados a ser desmantelados assim que formados, para que novas universos possam nascer de se us fragmentas" (Boas 1898, 18), Essa observaao profunda , entretanto, negligencia que, nessa incessante re-

    Qconstruao corn 0 auxilio dos mesmos materiais, sao sempre os antigos fins os chamados a desempenhar a papel de meios: os significados se transformam em significantes, e vice-versa .

    'v 1

    Essa formula, que poderia servir de definiaa para a bricalage, explica que, para a reflexao mitica, ~talidade dos meiQs....dispo-nfveis deve esTai tarribrni p1iftamente in~entariada ou conceJ1ida, para que se pass definir (-fIlll_ta~~_ que sell1!,,". -Sr;r-;;;U" cam-promisso entre a estrutura do cDnjun~o e--- do projeto. Uma, vez realiz'do-, ista e~tara portanto iiV1avel;;:'ente deslocado em relaao intenao inicial (alias, simples esquema), efeito que as surrealistas denominaram corn felicidade "aeaso objetivo" . Ha mais , porm: a poesia da bricolage lhe advm, tambm e sobretudo, do fata de que

    1:

    36

    no se limita a cumpDr, ou executar, ele E~o .1:J2,h( _apenas .... ..r;.Qffi. as ois;s~b j demonstramos, ;uas tIDbm .. at~~v~.~ . das eoi~.as~ .!!~F...:. rando,- atravs ... das escolhas que faz entre possrveis limitados, 0 ca-r1er e 'a vida de seu autor. S'!!' jamais completar seu projeta, a bricoleur sempre colaea nele aigu ma co!,a--.!(e si.

    ~- -' . L _ - " , ....4-

    Tambm sob este ponta de_.:!~!a,_ +~ill~x~ . ~it~c,~ ' aparec~ , coma uma fo,::"a intel,ctua.L ~el bncolag~Toda a .9-,, OOo--;~as,--;-;:-asc~'~t; eram preeisamente aquelas que, nao fa-zenda parte em absoluto da experincia vivida, permaneeiam exte-riores e coma que estranhas_ '!.'?s fatos: esse ~entido __ !'ld'0ao , de

    qualidadesp~hnetra"'s. -rfi8;- p""eculiar ao pensamento mtico, assim ~omo ;; bricalage no plana pratieo, a ~raao de conjunt~ ._e~truturados nao diretamente corn outros_ eonJu.ntos estruturG,os _ ~as utiliza'!slQ. . .!.esi

  • Il ,

    um sentido; ele tambm liberador, pelo protesto que coloca contra - -----------:;------.--,.;----'

    a falta , de senti do corn 0 quai a clencia, em princfpio, se permitiria transigir .

    Por vanas vezes, as considera6es anteriores fizeram aflarar 0 problema da~, e talvcz se pudesse, rapidamente, indiear como,

    ~_._~~_~nsere _ a)!l~.:~:nit.00 entre 0 conheci-(') Illi'Jll.~entifico e _o..-pc.!l"~etif6,-mlic-''--9u magico,-poiftOdolirundo

    sabe que ~em, ao mesl!l9.-Jempa,- algo_ do cientis~do bricoleur: corn meios artesanais, ele elabora um objeto-~material que ta,m5in um objeto de conhecimento. Ns diferenciamos 0 cientista e 0 bricoleur pelas funaes inversas que, na ordem instrumental e final , eles atribuem ao fato e estrutura, um criando fatos (mudar 0 mundo) atravs de estruturas, 0 outro criando estruturas atravs de fatos (f6rmula inexata pois ~ mas que nossa analise pode permitir matizar) .

    Observemos agora este retrato de mulher, de Clouet, e interro-guerno-nos sobre as raz6es da tao profunda emoao esttiea que pa-rece inexplicavelmente provocar a reproduao, fio a fio, de um cola-rinho de renda, em meticuloso trompe l'oeil (prancha 1) .

    o exemplo de Clouet nao vern pOT acaso, pois se sabe que ele gostava de pintar em proporaes menores que as da natureza; seus quadros sao, portanto, como os jardins japoneses. os carros . em mi-niatura e os barcos dentro de 'garrafas 0 que, em linguagem de brico-leur, denomina-se "modelos reduzidos" . Ora, a questao que se coloca saber se 0 modelo reduzido, que tambm a "obra-prima" do com-panheiro, nao oferece, sempre e por toda parte, 0 tipo exato de obra de arte. Pois parece que todo modelo reduzido tem vocaao esttica (e de onde tiraria essa virtude constante, a nao ser de suas pr6prias dimenses?) ; invrsamente, a imensa maioria das obras de arte formada de modelos reduzidos. Poder-se-ia crer que essa caractens-tica se prende, de inicia, a uma preocupaao corn a economia rela-cionada corn meios e materiais e invocar coma apoio a essa inter-pretaao obras incontestavelmente artsticas ainda que monum~ntais .

    ~ necessario, ainda, que nos detenhamos nas definiaes: as pinturas da Capela Sixtina sao um modelo reduzido, a despeito de suas di-mensaes imponentes, pois 0 tema que ilustram 0 do fim dos tempos.

    38

    Oeorre a mesrno corn 0 simbolismo e6~mico dos, monumentos reli-giosos. Por otro lado, pode-se perguntar se 0 efeito esttico de uma esta tua eqstre maior que 0 natural provm' do , fato de ela elevar um homem s dimensaes de um rochedo e nao de rduzir s propor-aes oe um homem 0 que, no inicio, percebido de longe como um rochedo. Enfim, mesmo 0 "tamanho natural" supae 0 modelo reduzido, pois que a transposiao grafica ou plastica implica sempre uma renuncia a certas dimens6es do objeto: em pintura, 0 volume; as cores, os cheiros, as impress6e~ tateis, at na escultura; e, nos dois asos, a dimensao temporal, pois a totalidade da obra figurada apreendida num instante.

    Que virtude esta portanto ligada reduao, quer seja de escala, quer afete as propriedades? Parece que ela esta ligada a uma espcie de inversao do processo de conhecimento: para conhecer 0 objeto real em sua totalidade, sempre tivemos tendncia a proceder come-ando das partes. Dividindo-a , quebramos a resistncia que ela nos opae. A reduao da escala inverte essa situaao: quanto menor 0 objeto, menos temivel parece sua totalidade; por ser quantitativa-mente diminuido, ele nos parece qualitativamente simplificado. Mais exatamente, essa transposiao quantitativa aumenta e diversifiea nosso poder sobre um homlogo da coisa; atravs dela, este pode ser to-mado, sopesado na mao, apreendido de uma s6 mirada . A boneca da criana nao mais um adversario, um rival ou rnesmo um interlo cutor; nela e por ela a pessoa se transforma em sujeito. Inversamente do que se passa quando proeurarnos conheeer uma eoisa ou um ser em seu tamanho real, corn 0 modelo reduzido 0 conhecimento do todo precede 0 das partes. E, mesmo que isso seja urna ilusao, a razao desse procedimento criar ou man ter essa ilusao, que gratifiea a inteligncia e a sensibilidade de um prazer que, nessa base apenas, j pode ser chamado de prazer esttico .

    At este ponto, temos encarado apenas consideraaes de escala, as quais, camo vimos, implicam uma relaao dialtica entre tamanho - yale dizer quantidade - e qualidade . Mas 0 modelo reduzido possui um atributo suplementar: ele construido, man made, e mais que isso, I/feito mao". Nao , portanto, uma simples projeao, um hom6logo passivo do objeto: constitui uma verdadeira experincia sobre 0 objeto. Ora, na medida em que 0 modelo artificial, torna-se possivel compreender como ele feito, e essa apreensao do modo de fabricaao acrescenta uma dimensao suplementar a seu ser. Alm

    39

  • do mais - ns 0 vimos a respeito do bricolage, mas 0 exemplo das fi maneiras" . dos pin tores mostra que tambm verdadeiro para a arte - 0 problema sempre comporta varias soluaes. Como a escolha de uma soluao acarreta uma modificaao do resultado .a que uma outra soluao teria conduzido, 0 que esta virtualmente dado 0 quadro geral dessas permutas, ao mesmo tempo que a soluao espe. cifica oferecida ao olhar do espectador, dessa maneira - mesmo sem o saber - transformado em agente. Unicamente pela contemplaao, o espectador , se se pode dizlo, introduzido na posse de outras modalidades possiveis da mesma obra, das quais confusamente ele se sente melhor criador que 0 prprio criador que as abandonou, excluindo-as de sua criaao; e essas modalidades formam muitas ou-tras perspectivas suplementares, abertas sobre a obra atualizada. Dito de outra maneira, a virtude intrinseca do modelo reduzido que ele compensa a renuncia s dimens6es senslveis pela aquisiao de dimeoM soes inteligiveis .

    Voltemos agora ao colarinho de rendas, no quadro de Clouet. Tudo 0 que acabamos de dizer aplica-se a ele, pois, para representa-10 sob a forma de projeao num espao de prapriedades cujas di-mens6es sensiveis sao menares e menas numerasas que 0 do objeto, foi necessario proceder de maneira simtrica e inversa de como 0 teria feito a cincia, se es sa se tivesse proposto, como sua funao. produzir - ao invs de reproduzir - nao apenas um nOVQ ponta da renda no lugar de um ' ponto ja conhecido mas tambm uma renda verdadeira no lugar de uma renda figurada. Corn efeito, a cincia teria trabalhado em escala real, mas' por meio da invenao de um oficio, enquanto a arte trabalha em escala reduzida, tendo como fim

    V' uma imagem homloga do objeto . 0 primeiro procedimento da t ordem da metonfmia; ela substitui um ser por um outra ser, um 1 efeito por sua causa, ao passo que 0 segundo da ordem da metarora.

    Isso nao tudo. Se verdade que", relaao de prioridade en-tre estrutura e fato se manifesta de maneira simtrica e inversa na cincia e no bricolage, clara que, tambm desse ponto de vista, a arte ocupa uma posiao intermediaria. Mesmo se a figuraao de um colarinho de renda num modelo reduzido implica, coma demonstramos, um conhecimento interno de sua morfologia e de sua tcnica de fa-bricaao (e, se se tratasse de uma representaao humana ou animal, teriamos dito: da anatomia e das posturas), ela nao se reduz ,.~ um diagrama ou a uma tabela de tecnologia, ela realiza a slntese das

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    prapriedades in(rinsecas e das que dependem de uru contexto espacial e temporal. 0 resultado final 0 colarinho de renda, absolutamente camo mas tambm tal como, no mesmo instante, sua aparncia afetada pela perspectiva em que se apresenta, colocando em evidncia determinadas partes e escondendo outras cuja existncia, entretanto, continua a influir sobre 0 resta: pela contraste entre sua brancura e as cores das outras peas do vestuario, 0 reflexo do pescaa naca~ ra do que ele circunda e 0 do cu de um dia e de um momento; tambm pelo que ele signifie a como enfeite banal ou de aparato, trazido - novo ou usado, passado ha pouco ou amarrotado -par uma mulher comum au par uma rainha, cuja fisionomia con finna, anula ou qualifica sua condiao, num ambiente, numa socie-dade, em uma regiao do mundo, um periodo da histria. .. Sempre a meio-caminho entre 0 esquema e a anedota, 0 gnio do pintor con-siste em unir conhecimento interna e externo, ser e devir; em produzir corn seu pincel uro objeto que nao existe coma objeto e que, todavia, sabe criar sobre a tela: sntese exatamente equilibrada de uma ou de varias estruturas artificiais e naturais e de um ou varias fatos naturais e sociais. A emoaa esttica provm des sa uniac instaurada no maga de uma coisa criada pela homem e, portanto, tambm virtualmente pela espectador que Ihe descobre a possibilidade, atravs da ob ra de arte, entre a ordem da estrutura e a ordem do fato.

    Esta analise leva a varias ohserva6es. Em primeiro lugar, ela permite compreender melhor por que os mitos nos aparecem simul-taneamente como sistemas de relaaes abstratas e como objetos de contemplaao esrtica; cam efeito, 0 ata criador que engendra 0 mita inversa e simtrico quele que se encontra na origem da oh ra de arte. Nesse ultimo casa, parte-se de um conjunto, formado par um ou varias objetos e par um ou varios fatos, ao quaI. a criao esttica confere um carater de totalidade, par colocar em evidncia uma es-trutura comum. 0 mito percorre 0 mesmo caminho mas num outra sentido: ele usa uma estrutura para produzir um objeto absoluto que oferea 0 aspecto de um conjunto de fatos (pois que todo mito conta uma histria) . A arte procede, entao, a partir de um conjunto (objeto + fato) e vai descdberta de sua estrutura; 0 mito parte de uma estrutura por meio da quaI empreende a construiio de um conjunto (objeto + fato).

    Se essa primeira ohservao nos terpretao, a segunda antes nos levaria a

    a generalizar nossa in-restringi-la. verdade que

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  • toda obra de arte consiste m uma integraao da estrutura e do fato? . Parece que nao se pode dizer nad a disso dssa' clav haida de cedro para abater peixe, que eu vejo colocada numa prateleira de minha biblioteca, enquanto escrevo estas linhas (prancha 2). 0 artista que a esculpiu em forma de monstro marinho desejou que 0 corpo do instrumenta se confundisse corn 0 corpa do animal. 0 cabo corn a cauda, e que as propor6es anatmcas, atribuidas a uma. cr'iatura fabulosa, fossem tais, que 0 objeto pudesse ser 0 animal cruel, ma-tador de vtimas impotentes, ao mesmo tempo que uma arma de pesca beni equilibrada, manejada cOrn desembarao pela homem e da quai ele obtm resultados eficazes. Assim, tu do parece estrutural nes-se utensflio, que tambm uma maravilhosa ob ra de arte: tanto seu simbolismo mitico quanto sua funao prtica . Mais exatamente, 0 objeto, sua funao e seu simbolo parecem dobrados um sobre 0 outro, formando um sistema fechado em que 0 fato nao tem nenhuma chance de se introduzir. A posiao, 0 aspecta e a expresso do mons-tro nada devem s circunstncias hist6ricas nas quais 0 artista pde perceb-lo "em carne e osso", sonha-Io ou conceber-lhe a idia. Dir-se-ia, antes, que seu ser imutavel esta definitivamente fixado numa matria lenhosa cuja textura muito fina permite traduzir todos os seus aspectos e num usa ao quai sua forma empirica parece predes-tina-lo. Ora, tu do aquilo que acaba de ser dito de um objeto parti-cular vale tambm para outras produtos da arte primitiva: uma es-tatua africana, uma mascara melans~a... Nao teramos, portanto, definido apenas uma forma hist6rica e local da criaao esttica, acre-ditando atingir nao apenas suas propriedades fundamentais mas tam-bm aquelas pelas quais sua relaao inteligiveis se estabelece corn ou-tras modos de criaao?

    Acreditamos que para suplantar essa dificuldade seja suficiente ampliar nossa interpretaao. 0 que a prop6sito de um quadro de Clouet tnhamos provisoriamente definido coma um fato ou um con-junto de fatos aparece-nos agora sob um ngulo mais geral: 0 fato nad a mais que um modo da contingncia, cuja integraao (perce-bida como necessria) a uma estrutura instaura a emoao esttica, qualquer que seja 0 tipo de arte em questiio. De acordo cOrn 0 estilo, 0 lugar e a poca, essa contingncia manifesta-se sob trs aspectos diferentes ou em trs momentos distintos da criaao artistica (que, alias, podem acumular-se): ela esta situada no nivel da ocasiao, da execuao ou da finalidade. Apenas no prirneiro caso a contingn-

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    cia assume a forma de um fata, isto , uma contingncia exterior e anterior ao ato criador. 0 artista a apreende de fora: urna atitude, uma expressao, urna iluminaao, uma situaao, das quais eie capta a relaao sensivel e inteligivel corn a estrutura do objeto que essas modalidades afetam e que ele incorpora a sua obra . Mas tambm passvel que a contingncia se manifesta a titula intrfnseca, no decorrer da execuao: no tamanho ou na forma do pedao de ma-deira de que dispoe 0 escultor, no sentido das fibras, na qualidade da textura, na imperfeiao dos instrumentas de que ele se serve, nas resistncias que a matria lhe opoe, ou no projeto, no trabalho em vias de finalizao, nos incidentes imprevisiveis que surgirao no decorrer da operaao. Enfim, a contingncia pode ser extrfnseca, camo no primeiro casa, mas posterior (e nao mais anterior) ao ata de criao; a que acontece cada vez que a ob ra se destina a um em-prego determinado, pois que 0 artista elaborara sua ob ra em funao das modalidades e das fases virtuais de seu emprego futuro (e, por-tanto, colocando-se consciente ou inconscientemente no lugar do usuario).

    Conseqentemente, de acordo corn os casas, a processo de cria-o artfstica consistir, no quadro imutvel de um confronta entre a estrutura e a acidente, em buscar 0 dialogo, seja corn a mode/o, seja corn a matria, seja corn 0 usudrio, levando em conta este ou aquele cuja mensagem 0 trabalho do artista antecipa. Grosso modo, cada eventualidade corresponde a um tipo de arte faci! de determinar: a primeira, s artes plisticas do Ocidente; a segunda, s artes ditas primitivas ou de pocas remotas; a terceira, s artes aplicadas. Mas seria excessivamente simplista tomar essas atribuies ao p da letra . Toda forma de arte comporta os trs aspectos e apenas se distingue das outras par sua dosagem relativa. Por exemplo, bem verdade que mesmo a pintor mais acadmico se bate corn problemas de exe-cuiio e que todas as artes cham ad as primitivas tm duplamente 0 carater de aplicadas: primeiro, porque muitas de suas produoes s;;o objetos tcnicos e, depois, porque mesmo as suas criaes que pare-cern mais ao abrigo das preocupaoes praticas tm uma finalidade determinada. Sabe-se, enfim, que mesmo entre n6s os utensilios se prestam a uma contemplaao desinteressada.

    Feitas essas reservas, pode-se verificar facilrnente que os trs aspectos estao funcionamente ligados e que a predominncia de um restringe ou suprime 0 lugar deixado aos outros. A chamada pintura

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  • erudita esta ou julgam que esteja liberta da dupla relaao da execuao e da linalidade. Em seus melhores exemplos, ela atesta um dominio completo das dificuldades tcnicas (as quais se podem considerar alias, definitivamente superadas desde Van der Weyden, depois d~ quem os problemas que se colocaram os pintores nao pas sam de ffsica recreativa). No limite, tu da se passa como se 0 pintor pudesse fazer exatamente aquilo que lhe apraz corn sua tela, suas cores e se us pincis. Por outro lado, 0 pintor tende a fazer de sua ob ra um objeto mdependente de toda contingncia, que valha em si e por si; alias, ISSO que implica a frmula do quadro "de cavalete" . Livre da contingncia, sob 0 duplo ponto de vista da execuao e da finalidade, a pmtura erudita pade, portanto, referi-Ia inteiramente ocasiao' e se ~ exata nossa interpretao, nao pade mesmo dispens-Ia. EI~ s~ defme, po~tanto, como pintura "de gnera", corn a condiao de am-phar conSlderavelmente 0 sentido dessa locuao. Pois, dentro da persp~ctiva muito geral sob a quaI aqui nos colocamos, 0 esforo do retratlSta - seja ele Rembrandt - para captar sobre a tela a ex-pressao mais reveladora e at os pensamentos mais secretas. de sell

    mode~o faz pa:te do mesmo gnero que 0 de um Detaille, cujas corn-pOSloeS respeltam a ho ra e a ordem da batalha, 0 numero e a dis-posiao dos botaes atravs do que se reconhecem os uniformes de cada guarniao. Se nos pregam uma pea desrespeitos8, num e noutro caso, a.

    llocasiao faz 0 ladro", Corn as artes aplicadas, as propores r:sp~ctl~as. do~ trs aspectas se invertem; essas artes dao predomi-nanela a fmahdade e execuo, cujas contingncias sac aproxima-

    dame~te equilibradas nos exemplares que cansideramos mais Il puros". exclumdo ao rnesrno tempo a ocasiao, coma a vernas no fato de uma

    xfcar~, uma taa, uma pea de palha ou um tecida nos parecerem perfeItos quando seu valor pratico se afirma intemporal: correspon-dendo pl~na~ente fu~ao para homens diferentes pela poca e pela clVlhzaao. Se as dlflculdades de execuao sao inteiramente do-,:,inadas (como quando a execuao confia da a maquinas), a fina-

    hd~de pode tornar~se cada vez mais exata e particular, e a arte aphcada se transforma em arte industrial; no casa inversa, nos a chamamos de camponesa ou rustica. Enfim, a arte primitiva situaMse no aposta da arte erudita ou acadmica; essa ultima interiariza a

    ~xecuao (da ,~ual o~ se acredita dona) e a finalidade (pois a arte pela arte para SI mes ma seu prprio fim). Em contrapartida,

    ela levada a exteriorizar a ocasiao (que pede ao modelo que Ihe oferea); esta se torna, ass im, uma parte do significada. Em corn-

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    pensaao, a arte primitiva interioriza a ocaslao (pois os seres sobreM naturais que Ihe apraz representar trn urna realidade in temporal e independente das circunstncias) e exterioriza a execuao e a fina-lidade, que se tornam, portanto, uma parte do significante.

    Reencontrarnos assim, num outro piano, aquele dilogo corn a matria e os meios de execuao atravs do quai definimos 0 bricolage. Para a filosofla da arte, 0 problema essencial 0 de saher se 0 ar-tista Ihes reconhece ou nao a qualidade de interlocutor. Sem duvida, reconhecemo-Ia sem pre mas em grau minimo na arte muito erudUa e em grau maximo na arte bruta ou ingnua que se limita COrn a bricolage e, nos dois casos, em detrimento da es trutura. Entretanto, nenhurna forma de arte mereceria esse nome se se deixasse captar inteiramente pelas contingncias extrfnsecas, seja a da acasio, seja a da finalidade; pois entiio a obra entraria na categoria de icone (suplementar ao modelo) ou de instrumento (complementar matria trabalhada) . Mesmo a arte mais erudita, se nos emociona, apenas atinge esse resultado corn a condiao de parar a tempo essa dissi-paao da contingncia em proveito do pretexto e de incorpora-la obra, conferindo-Ihe a dignidade de um objeto absoluto. Se as artes arcaicas, as artes primitivas e os periadas IIprimitivos" das artes eru-ditas sao os unicas que nao envelhecem, devem~no a essa consagraao do acidente a servio da execuao, portanto, ao emprego, que pro-curam tornar integral , do dada bruta coma matria empfrica de uma significaao ' .

    I! precisa acrescentar, enEm, que 0 equilbrio entre estrutura e fata, necessidade e contingncia. interioridade e exterioridade um equilfbrio precario, constantemente ameaado pelas traaes exercidas

    7. Continuando esta analise, poder-se-ia defioir a pintura nao~figurativa corn base em duas caracteristicas. Uma, que comum a ela e pintura de cava~ lete, consiste numa total rejeiao contingnca de finalidade: 0 quadro nao feito para um uso particular. A outra caractcristica, prpria da pi n~ tura nao-figurativa, consiste numa exploraao metoo ica da conlingncia de execuao, da quai se pretende fazer 0 pretexto ou a ocasi50 externa do quadro. A pintura nao-figurativa adota maneiras guisa de "assuntos"; ela pretende dar uma manifestaao concreta das condi6es formais de qual~ quer pintura. Paradoxaimente, disso resulta que a pintura nao~figurativa nao cria, como acredita, obras tao reais - ou mais - quanto os objetos do mundo flsico mas imita6es realistas de modelos nao-exislentes. uma esco-la de pintura acadmica, onde cada artista se esmera em apresentar a ma-neira pela quaI executaria seus quadros se porventura os pintasse.

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  • num e noutro senti do, segundo as flutuaes da mada, do estilo e das condi6es sociais gerais. Desse ponto de vista, 0 impressionismo e 0 cubismo aparecem menas como duas etapas sucessivas do de-senvolvimento da pintura do que coma dois empreendimentos cum-pliees, ainda que nao surgidos no mesmo momento, agindo em co-nivncia para prolongar, atravs de deforma6es cornplementares, um modo ,de expressao cuja pr6pria existncia (hoje se percebe isso me-Ihor) estava gravemente ameaada. A voga intermitente das "cola-gens", nascida no momento em que 0 artesanato expirav3, poderia ser, par seu lado, apenas uma transposiao do bricolage para a ter-reno dos fins contemplativos. Enfim, a nfase sobre a aspecta fac-tuaI pode tambm dissociar-se, conforme a momento, destacando me-Ihor, s eus tas da estrutura ( precisa en tender: a estrutura de mesmo nvel, pois naD esta excludo que 0 aspecta estrutural passa se res-tabelecer alhures e num nova plana), tanto a temporalidade social (coma no fim do sculo XVIII, cam Greuze ou cam a realismo so-cialista) quanta a temporalidade natural e mesmo meteorol6gica (no im pressionismo).

    Se, no plana especulativo, a pensamento milico tem analogia corn 0 bricolage no pIano pratico e se a criao artistica se coloea a uma distncia igual entre essas cluas formas de atividade e a cincia. a jogo e a rito mantm entre si relaaes do mesmo tipo.

    Toda jogo se define pela conjunto de suas regras, que tornam passivel um oumera praticamente ilimitado de partidas; mas 0 rito, que tambm se ''joga'', parece-se mais cam uma partida privilegiada, retido entre todas as possiveis, pois apenas ela resulta em um certo tipo d~ equilibrio entre os dois campos. A transposiao pode ser facilmente verificada no casa dos gahuku-gama da Nova guin, que aprenderam futebol, mas que jogam durante varias dias seguidos, tantas partidos quantas forem necessarias, para que se equilibrem exatamente as perdidas e ganhas par cada campo (Read 1959, 429), a que tratar um jogo coma um rito.

    Pode-se dizer ' a mesmo dos jogos que se desenrolavam entre os indios fox, quando das cerimnias de adoao cujo objetivo era subs-tituir um parente morto por um vivo, perrnitindo, assim, a partida

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    definitiva da alma do defunto 8. Os ritos funrarios dos fox pare-cern, corn efeito, inspirados no cuidado maior de se livrar dos mortos e de impedir que estes se vinguem dos vivas . par causa da amargura e das saudades que sentem par nao esta rem mais no meio deles. Portanto, a filosofia indfgena adota resolutamente a partido dos vivos: Il A morte dura; mais dura ainda a tristeza".

    A origem da morte remonta destruiao, pelas poderes sobre-naturais, do mais jovem dos dois irmos mticos que desempenham 0 papel de her6is culturais entre todos os algonkin. Mas ela ainda nao era definitiva: foi a mais velho que a tornou assim, rejeitando, apesar do seu desgosto, a pedido do fantasma que queria retomar seu lugar entre os vivas. De acordo corn esse exemplo, os homens deverao se mostrar firmes em face dos mortos: os vivas os farao compreender que eles nada perdem ao marrer, pois receberao regularmente ofe-rendas de tabaco e de comida; em troca, espera-se deles que, em compensaao dessa morte cuja realidade lembram aos vivas e da tristeza que Ihes causa par seu 6bito, assegurem-Ihes uma longa exis-tncia, roupas e 0 que corner:

  • E, corn eleito, quaI ' realidade? No grande jogo biol6gico e , social que perpetuamente se desenrola entre vivos e mortos, claro

    que os unicos ganhadores sao os primeiros. Mas - e toda a mito-logi3 norte-americana ai esta para confirma-la - de uma maneira simb6lica (que inumeraveis ritos descrevem camo real) ganhar um jogo "matar" a adversario. Prescrevendo sempre 0 triimfo da equipe dos mortos, da-se a estes, portanto, a ilusao de que sao os verda-deiros vivas e que seus adversarios estao mortos, ja que eles os Il matarnll , Fingindo jogar corn os mortos, estes sao enganados e ficam manietados. A estrutura formaI do que, numa primeira abor-

    , dagem, poderia parecer uma competiao esportiva , em todos os senti dos, similar de um puro ritual, ta1 como 0 mitawit ou midewi-win, dos mesmos povos algonkin, onde os ne6fitos se lazem matar simbolicamente pelos mortos, representados pelas iniciados, a fim de ob ter uma suplementaao da vida real ao preo de uma morte simularla. Nos dois casas, usurpa-se a morte, mas apenas para engana-Ia.

    o jogo aparece, portanto, coma disiuntivo: ele resulta na criaao de uma divisao dilerencial entre os jogadores individuais ou das equipes, que nada indicaria, previamente, coma desiguais. Entretanto, no fim da parti da, eles se distinguirao em ganhadores e perdedores. De maneira simtrica e inversa, 0 ritual conjuntivo. pois institui uma uniao (pode-se dizer aqui, uma comunhiio) ou, de qualquer modo, uma relaao orgnica-entre dois: grupos (que, no limite, con-lundem-se um corn a personagem do oficiante, a outro corn a cole-tividade dos fiis) dissociidos rio inici. No casa do jogo, a simetria pr-ordenada; e ela estrutural, pois decorre do principio de que as regras sao as mesmas para os dois campos. Ja a assimetria en-gendrada: decorre inevitavelmente da contingncia dos latos, depen-dam estes da intenao, do acaso ou do talento. No casa do ritual, ocorre a inversa: coloca-se uma assimetria preconcebida e postulada entre profana e sagrarlo. fiis e oficiante, mortos e vivas, iniciados e no-iniciados etc, e 0 jf jogo" consiste em fazer passarem todos os participantes para a lado da parte vencedora, atravs de fatos cuja natureza e ordenaao tm um carter verdadeiramente estrutural. Camo a cincia (se bem que aqui, ainda, ou no plana especulativo, ou no pratico), a jogo produz fatos a partir de uma estrutura: com-preende-se, portanto, que os jogos competitivos prosperem em nossas

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    !'

    sociedades industriais, ao passa que os ritos e os mitas, maneira do bricolage (que essas mes mas sociedades industriais nao toleram mais, senao como hobby ou passatempo), decomp6em e recomp6em con-juntos factuais (no plana !isico, socio-hist6rico e tcnico) e se servem deles como de outras tantas peas indestrutiveis, em vista de arranjos estruturais que assumem alternativamente a lugar de fins e de meios.

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