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1 Introdução No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus, e Deus era o Logos” – Evangelho segundo João 1 Percebo prontamente e escrevo confiante: no princípio era o ato!– Dr. Fausto em Fausto de Goethe 2 Um espectro assombra a humanidade desde tempos imemoriais: o espectro do Logos. Este termo que possui uma denotação simples – palavra –, ao mesmo tempo, por possuir inúmeras conotações, pode ser de difícil compreensão – não à toa a dificuldade do Dr. Fausto de Goethe em traduzi-lo 3 . Todavia, em cada uma de suas inúmeras versões – tanto de significado como de significante 4 –, há sempre um sentido de verdade atribuído ao conceito 5 no princípio era o Logos! É do Logos que se origina o mundo; é pelo Logos que deve guiar-se; é ao Logos aonde deve ir. Ao menos que se esteja em erro, pois Deus era o Logos! E ai de quem duvidar! Um filósofo ousou duvidar de tudo isto – Thomas Hobbes – e por isto tornou-se maldito: “[c]ontra ele foram produzidas mais literaturas hostis do que contra qualquer outro pensador do Século XVII. De fato, se julgarmos pelo número de livros e panfletos hostis que provocou, talvez seja o filósofo mais maldito de todos os tempos” 6 . “Enquanto viveu, suas obras eram consideradas a epítome de tudo que era antissocial, antimoral, antirreligioso. Hobbismo tornou-se um termo que exprimia completa depravação e licenciosidade” 7 . 1 Tradução livre de PIERPONT & ROBINSON, 2005, p. 193). Preferimos apenas fazer a translite- ração da palavra Λόγος para Logos em razão da ênfase que queremos dar ao termo neste trabalho; a tradução mais usual é Verbo. 2 Tradução livre de GOETHE, 2007, p. 45. 3 Com relação à segunda epígrafe (cf., ibid., p. 44-5), temos, na obra Fausto de Goethe, uma representação da tentativa de estabelecer um significado para o Logos. Primeiro, a palavra (Wort), a qual Dr. Fausto rejeita; em seguida, o sentido (Sinn), tradução, qual, a personagem também não aprova; o poder (Kraft) também não é considerado pertinente; eis que, enfim, o ato (Tat)! 4 Pois, às vezes, outros termos são utilizados ao invés de Logos, mas com sentido semelhante. 5 “A história da metafísica sempre atribuiu ao logos a origem da verdade em geral, apesar de todas as diferenças, e não somente de Platão a Hegel, mas, também, fora de seus limites aparentes, dos pré-socráticos a Heidegger” (tradução livre de DERRIDA, 1976, p. 11-12). 6 Tradução livre de ROGERS, 413. 7 Tradução livre de DOYLE, 1927, p. 336. Ainda sobre o assunto: “Por volta de 1700 [...] Hobbes possuía uma reputação internacional [...]. Era amplamente conhecido como o mais notório filósofo

Leviathan Nu - Capítulo 1 - Introdução · Um filósofo ousou duvidar de tudo isto – Thomas Hobbes – e por isto tornou-se maldito: “[c]ontra ele foram produzidas mais literaturas

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  • 1Introduo

    No princpio era o Logos, e o Logos estava com Deus, e Deus era o Logos Evangelho segundo Joo1

    Percebo prontamente e escrevo confiante: no princpio era o ato! Dr. Fausto em Fausto de Goethe2

    Um espectro assombra a humanidade desde tempos imemoriais: o espectro do

    Logos. Este termo que possui uma denotao simples palavra , ao mesmo

    tempo, por possuir inmeras conotaes, pode ser de difcil compreenso no

    toa a dificuldade do Dr. Fausto de Goethe em traduzi-lo3. Todavia, em cada uma de

    suas inmeras verses tanto de significado como de significante4 , h sempre um

    sentido de verdade atribudo ao conceito5 no princpio era o Logos! do Logos

    que se origina o mundo; pelo Logos que deve guiar-se; ao Logos aonde deve ir.

    Ao menos que se esteja em erro, pois Deus era o Logos! E ai de quem duvidar!

    Um filsofo ousou duvidar de tudo isto Thomas Hobbes e por isto

    tornou-se maldito: [c]ontra ele foram produzidas mais literaturas hostis do que

    contra qualquer outro pensador do Sculo XVII. De fato, se julgarmos pelo

    nmero de livros e panfletos hostis que provocou, talvez seja o filsofo mais

    maldito de todos os tempos6. Enquanto viveu, suas obras eram consideradas a

    eptome de tudo que era antissocial, antimoral, antirreligioso. Hobbismo tornou-se

    um termo que exprimia completa depravao e licenciosidade7.

    1 Traduo livre de PIERPONT & ROBINSON, 2005, p. 193). Preferimos apenas fazer a translite-rao da palavra para Logos em razo da nfase que queremos dar ao termo neste trabalho;a traduo mais usual Verbo.2 Traduo livre de GOETHE, 2007, p. 45.3 Com relao segunda epgrafe (cf., ibid., p. 44-5), temos, na obra Fausto de Goethe, umarepresentao da tentativa de estabelecer um significado para o Logos. Primeiro, a palavra (Wort), aqual Dr. Fausto rejeita; em seguida, o sentido (Sinn), traduo, qual, a personagem tambm noaprova; o poder (Kraft) tambm no considerado pertinente; eis que, enfim, o ato (Tat)!4 Pois, s vezes, outros termos so utilizados ao invs de Logos, mas com sentido semelhante.5 A histria da metafsica sempre atribuiu ao logos a origem da verdade em geral, apesar de todas asdiferenas, e no somente de Plato a Hegel, mas, tambm, fora de seus limites aparentes, dospr-socrticos a Heidegger (traduo livre de DERRIDA, 1976, p. 11-12).6 Traduo livre de ROGERS, 413.7 Traduo livre de DOYLE, 1927, p. 336. Ainda sobre o assunto: Por volta de 1700 [...] Hobbespossua uma reputao internacional [...]. Era amplamente conhecido como o mais notrio filsofo

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  • Introduo 12

    Mais do que pelo seu absolutismo ou sua preferncia pela monarquia, este foi

    o principal fator que o levou proscrio em sua poca e em perodos subsequentes.

    Atesmo era a principal acusao: a maioria dos crticos contemporneos a Hobbes

    estava mais preocupada com as implicaes atestas de seu determinismo do que

    com sua teoria poltica8. Quase foi para a fogueira9, mas sobreviveu; e, apesar de

    tudo isto, sobreviveu tambm intelectualmente. A lista de acadmicos que tecem

    elogios ao filsofo ingls imensa, incluindo at aqueles que possuem ressalvas

    ou crticas sua teoria:

    Hobbes ampla e justamente tido como o mais formidvel dos tericos ingleses; formi-dvel, no por ser difcil de entender, mas porque sua doutrina , ao mesmo tempo, toclara, to arrebatadora e to antipatizada. [...] Foi repetidamente atacado devido a razesteolgicas, filosficas e polticas. Sobreviveu, porm, e com resplendor aumento.10Hobbes o maior filsofo poltico da Idade Moderna, at Hegel. Escreveu muitasobras polticas de importncia capital para a compreenso do Estado moderno [...].No que respeita s teses que nos interessam, liga-se diretamente a Bodin, mas asdefende com maior rigor, tanto que depois dele ningum mais pde defender asteses tradicionais sem levar em conta os argumentos com que procurou rejeit-las.11

    Elogios parte, o que realmente importa sua contribuio terica e, como

    aponta Quentin Skinner:

    A declarao de Hobbes [viz., que os sditos somente possuem obrigaes perante oEstado] pode ser vista como marcando o fim de uma poca da histria da teoria poltica einiciando outra mais familiar. Ela anuncia o fim de uma era na qual o conceito de poderpblico era analisado em termos mais pessoais e carismticos, e aponta para umconcepo sobre a soberania, que mais simples e abstrata, na qual esta propriedade deuma agncia impessoal; uma concepo que permanece conosco desde ento e veio a serincorporada na utilizao de termos tais como tat, stato, staat e Estado [state].12

    que a Inglaterra produzira. Seu nome tornou-se sinnimo de atesmo, imoralidade e uma vasta co-leo de ideias politicamente inaceitveis. Para os leitores ingleses, ele era o Monstro de Malmes-bury, o Secretrio do Diabo, um Agente do Inferno e, como colocou um autor, Peste da Natu-reza e infeliz vergonha da Inglaterra (traduo livre de PARKIN, 2007a, p. 1). preciso umaressalva, contudo: [] verdade que o livro atraiu uma grande quantidade de comentrios hostisdurante a segunda metade do Sculo XVII, mas a razo para isto no era o fato de que osargumentos de Leviathan fossem muito absurdos para serem levados a srio. Na realidade, em v-rios casos, os crticos de Leviathan eram mais impelidos a atacar o livro, precisamente, porque eleera lido e utilizado por vrios indivduos e grupos (traduo livre de PARKIN, 2007b, p. 441).8 Traduo livre de THORNTON, 2005, p. 9. claro que este no foi o nico fator que levouHobbes a ser criticado; os royalists ingleses, por exemplo, pensaram que ele tornara-se um vira-casacas; que distorceu sua doutrina poltica no Leviathan para receber as graas dos poderesvigentes (traduo livre de MARTINICH, 1999, p. 219).9 Como aponta Lamprecht, alguns bispos anglicanos [] sugeriram que seria conveniente queimarHobbes como hertico (traduo livre de LAMPRECHT, 1940, p. 31); a acusao, porm, no teveseguimento. Seus livros, entretanto, ao menos na poca, no tiveram a mesma sorte: De Cive eLeviathan estavam em uma lista de livros amaldioados e queimados pela Universidade de Oxfordem 1683 (traduo livre de THORNTON, op. cit., p. 16); j em 1654, ambos j haviam sido colo-cados no index papal (ibid., p. 7).10 MACPHERSON, 1962, p. 21. 11 BOBBIO, 1992, p. 107.12 Traduo livre de SKINNER, 2002b, p. 368-9.

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  • Introduo 13

    Norberto Bobbio, mesmo afirmando ser Hobbes um jusnaturalista posio

    oposta nossa , faz a ressalva que, [p]or outro lado, Hobbes pertence, de

    direito, histria do positivismo jurdico: sua concepo da lei e do Estado uma

    antecipao, verdadeiramente surpreendente, das teorias positivistas do sculo

    passado13 e considera o filsofo ingls como o grande e inigualvel construtor da

    primeira teoria do Estado moderno14.

    Sendo assim, acreditamos ser importante analisar a teoria de Hobbes para

    verificarmos o que ainda resta dele o quo ele fundamental para se pensar o

    Estado moderno nos dias de hoje , ou seja, o que pode ser til para entendermos

    no s a teoria, mas tambm os principais dilemas contemporneos da poltica. Na

    pior das hipteses, mesmo que recusemos por completo a teoria de Hobbes,

    preciso compreend-la se quisermos suplant-la. As proposies de Hobbes

    devem ser enfrentadas seriamente e no simplesmente afastadas quando se quiser

    propor uma teoria poltica alternativa.

    Hobbes, contudo, ao nosso ver, bastante mal compreendido: acusado de

    imoral e ao mesmo tempo tratam-no como um jusnaturalista; visto como um

    contratualista protoliberal, ao mesmo tempo que chamado de absolutista. No

    o caso que, de um texto, no se possa extrair vrias interpretaes. Quando,

    porm, vrias leituras antitticas so extradas de uma mesma obra, h algo que

    precisa ser elucidado. Assim, alm de sua imensa contribuio para a teoria pol-

    tica e para a filosofia em geral, entender o mistrio hobbesiano foi o que nos

    incentivou a adotar o filsofo ingls como marco terico do presente trabalho.

    1.1Uma nota sobre o Logos

    Antes de prosseguirmos, importante acrescentarmos uma nota sobre a

    ideia do Logos, to falada nos pargrafos anteriores. No faz parte de nossos obje-

    tivos traar um histrico ou um estudo do conceito e, muito menos, da palavra. O

    exato significado deste conceito no mbito deste trabalho o que preciso deixar

    claro ser esclarecido conforme seu desenvolvimento. Em sntese, porm, o que

    pretendemos significar com o termo apenas qualquer ideia que se coloque

    acima da poltica, limitando-a.

    13 BOBBIO, 1991, p. 101.14 Ibid., prefcio, sexta pgina a partir da capa, no numerada.

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  • Introduo 14

    Todavia, para no deixarmos de apresentar nossa meno histrica,

    podemos afirmar que a ideia do Logos existe desde os primrdios da filosofia e,

    como dissemos anteriormente, relaciona-se com a ideia de verdade:Em Herclito, o lgos essencialmente a razo universal, essencialmente a alma domundo; h um Lgos que governa o universo (fr. 72), eterno e incompreensvel (fr.1): a sabedoria consiste em conformar-se a ele (fr. 50), graas razo que temos (fr.115), e que temos em comum (fr. 2).15 Tambm, como j dito, a ideia no se restringe ao termo logos, mas a qual-

    quer outro que possua o mesmo impacto como, por exemplo, o conceito de trans-

    cendncia de que fala Antonio Negri, quando trata do poder constituinte, e, assim,

    comenta sobre a concepo tradicional do conceito como fonte transcendente do

    ordenamento jurdico: [o] poder constituinte aqui assumido como um fato que

    precede o ordenamento constitucional, mas que depois se lhe ope, no sentido de

    lhe permanecer historicamente externo e de somente poder ser definido pelo poder

    constitudo16. Sendo assim, podemos acrescentar, referida ideia de verdade, a

    qualidade transcendental desta.

    Outro exemplo importante, que no poderamos deixar de mencionar, a

    teoria da realidade dos universais17, cujo expoente mais notrio Plato da o

    fato da teoria ser chamada, s vezes, de realismo platnico. Ele concebeu a

    famosa teoria das formas ou das ideias18, estas que existem em uma dimenso

    transcendente a este mundo, sendo o critrio da verdade e da perfeio das coisas

    materiais, que nunca so tais como as formas ideais, mas apenas seus simulacra:

    cpias mal feitas destas formas originais e ideais.

    15 GOBRY, 2007, p. 90. Os nmeros entre parnteses referem-se aos fragmentos de Herclito.16 NEGRI, 2002, p. 12.17 Consideraremos a teoria da realidade dos universais como a que trata conceitos abstratos adje-tivos, verbos substantivados, assim como substantivos genricos, e, at, meras imagens ou qualquersigno como possuindo existncia real. Sobre as principais teorias sobre os universais: [c]lassica-mente, h trs teorias rivais sobre os universais: [...] 1. Universais so criados pela mente (nomina-lismo): so imputados aos objetos pela mente em virtude de suas operaes. [] 2. Universais sodescobertos (pelas mentes) nos objetos (realismo platnico): percebidos pelas mentes como aspectospreexistentes dos objetos. [] 3. Universais so gerados por meio de interaes mente-objetos(conceitualismo) (traduo livre de RESCHER, 2000, p. 10).18 A teoria das Ideias descreve entidades tericas que se situam parte do mundo da experinciaordinria e julgam as deficincias deste mundo. As Ideias portam suas propriedades de uma formaque as coisas particulares no podem (traduo livre de PAPPAS, 1995, p. 114). Provavelmente, dasformulaes feitas por Plato sobre sua teoria, a mais conhecida a expressa no livro VII da Rep-blica, conhecida como a Alegoria da caverna, no qual narrada a histria de um grupo de pessoasque vive em uma caverna, cuja nica viso do mundo exterior consiste em sombras projetadas emuma parede. Um dia, um destes habitantes da caverna liberta-se de sua condio e sai ao mundo exte-rior, vendo como este na realidade. Esta metfora significa que todos ns enxergamos e somos apenas sombras de um mundo ideal: o mundo dos universais (cf., PLATO, 1991, p. 193-4).

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  • Introduo 15

    Em Plato, o Logos no mais o universal supremo, mas uma faculdade ou

    uma parte da alma superior a todas as outras que, com ajuda do esprito

    thymos , deve dominar a parte sensvel epithymetes e guiar a alma psyche

    em direo ao bem agathon19. J este bem, mais que um universal, o Universal,

    conceito simtrico ao Logos de Herclito: aquilo que prov a verdade s coisas

    conhecidas e d o poder quele que a conhece a ideia do bem20.

    O verdadeiro problema desta forma de pensar e o que a faz ser contrria a um

    regime democrtico que ela aristocrtica e hierarquizante. Esta mesma hierar-

    quia que Plato impe alma a razo governa, o esprito auxilia, as sensaes

    servem possui uma congruncia no plano poltico, o qual, segundo o filsofo

    grego, deve ser dividido em trs classes: isto aplica-se tanto para o governo das

    cidades quanto para a organizao da alma de um indivduo privado21.

    Como podemos ver, h vrios termos que remetem a esta caracterstica central

    deste Logos. Poderamos citar, tambm, essncia, natureza, ratio, substncia, Ser,

    entre outros. Cremos, todavia, que j falamos bastante sobre o assunto quando, na

    verdade, o que nos importa sintetizar a ideia de um conceito seja qual nome se

    d a ele que: (a) imponha limites atividade poltica; (b) este limite seja visto

    como algo exterior transcendente atividade poltica, imutvel e perene, de

    modo que aquele que ousar desafi-lo estar em erro ou, at, dependendo da

    doutrina, em pecado, sendo um imoral. Este conceito limitador sempre tratado

    como sendo a verdade e, contra este pensamento, adotaremos a premissa foucaul-

    tiana que a verdade no existe fora do poder ou sem poder []. A verdade deste

    mundo; ela produzida graas a mltiplas coeres e nele produz efeitos regula-

    mentados de poder22. Isto no quer dizer que no existam fatos e que a realidade

    seja inteiramente subjetiva, mas apenas que, quando certas polmicas atingem certa

    intensidade, a verdade passa a ser poltica.

    19 No seria irracional [...], se afirmssemos que h duas partes distintas da alma, definindo a parteque calcula de racional e a parte que ama, sente fome e sede, e agitada por outros desejos, de irraci-onal (traduo livre de ibid., p. 119). E no h na alma uma terceira [parte], a espiritual, por natu-reza, uma auxiliar da parte racional, se no for m cultivada? (ibid., p. 120). No apropriado quea parte racional governe, j que sbia e antecipou tudo que h sobre a alma, e que a parte espiritualseja obediente a ela e sua aliada? [...] E estas duas partes, assim treinadas, aprendendo seus prpriosdeveres e sendo educadas assumiro controle sobre a parte sensvel [...] e observ-la-o por temorque seja preenchida pelos chamados prazeres do corpo e, assim, tornando-se maior e mais forte, semobservar seus prprios deveres, tentar escravizar e governar o que no prprio de sua classe,subvertendo a vida inteira de um indivduo (ibid., p. 121).20 Ibid., p. 189.21 Ibid., p. 127.22 FOUCAULT, 1979, p. 12.

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  • Introduo 16

    1.2Democracia

    importante, tambm, esclarecermos que esta pesquisa est voltada anlise

    da teoria de Hobbes aplicada a um regime democrtico. No o caso que pensemos

    ser este regime um universal; trata-se apenas de um recorte metodolgico. Diante

    disto, surge o paradoxo de utilizarmos um autor que foi, em toda sua vida, um

    monarquista convicto23. Se algo pode servir de alento, o fato de sua teoria ter sido

    rejeitada, em grande parte, pelos monarquistas ingleses como, por exemplo

    Filmer24 , enquanto que, por outro lado, foi adotada por um grande nmero de

    escritores radicais25. Alm deste aspecto da recente pesquisa sobre a teoria de

    Hobbes, refutamos a possvel contradio de utilizar o filsofo ingls para se pensar

    a democracia com a proposio de que sua teoria foi elaborada para ser aplicvel a

    qualquer forma de governo, seja monrquica, aristocrtica ou democrtica.

    Mas o que democracia? Ou melhor j que, como Hobbes, rejeitamos a

    realidade de universais, assim como definies baseadas em essncias , como

    podemos estabelecer uma distino entre uma democracia e outras formas de

    governo? Algumas concepes de democracia baseiam-se em princpios como

    liberdade, igualdade, fraternidade, bem comum, vontade geral, entre outros. O que

    significam estes termos, todavia? Seus significados esto dentro ou fora da pol-

    tica? Acreditamos que esto dentro e, por isto, utilizaremos a prpria definio

    hobbesiana das formas de governo, pois, com ela, acreditamos ser possvel chegar a

    uma concepo de democracia que no imponha limites transcendentais poltica:

    A diferena entre os Estados consiste no Soberano ou na Pessoa que representatodos e cada um em uma Multido. [...] Quando o Representante Um homem, oEstado uma MONARQUIA; quando uma Assembleia de todos os que seuniram, uma DEMOCRACIA ou Estado Popular; quando uma Assembleia deapenas uma parte, chamado de ARISTOCRACIA.26

    23 [E]m todas as suas obras polticas, ele sustentou que a monarquia era a melhor forma(traduo livre de MARTINICH, 1999, p. 48). preciso notar que, em Leviathan, Hobbes noafirma esta preferncia expressamente, mas refuta vrios argumentos que implicariam no fato damonarquia ser a pior forma de governo (cf., HOBBES, 1991a, p. 129-38).24 Como um royalist, Robert Filmer lia com aprovao a defesa de Hobbes da soberania, mas acha-va seu mtodo para sustent-la muito problemtico (traduo livre de PARKIN, 2007b, p. 443).25 Pesquisas recentes demonstram que Leviathan tornou-se uma fonte essencial para os pensado-res do Iluminismo radical na Europa (ibid., p. 453). Sobre esta pesquisa, ver MALCOLM, 2002,p. 484-97.26 Traduo livre de HOBBES, op. cit., p. 129. Optamos por traduzir Commonwealth por Estado,pois, embora seja comum encontrar a traduo Repblica, atualmente, este tipo de Estado vistocomo antagnico monarquia (cf., MARTINICH, 1995, p. 74).

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  • Introduo 17

    Para entendermos o que isto significa, no nos preocupemos, neste

    momento, com o significado do termo soberano e simplesmente imaginemos que,

    se estes princpios clssicos da democracia no podem ser revelados, mas

    precisam ter seus significados estabelecidos isto , decididos , a questo pol-

    tica torna-se quem decide sobre o significado destes universais: se um, monar-

    quia; se alguns, aristocracia; se todos, democracia.

    1.2.1Forma versus substncia

    A utilizao da definio hobbesiana de democracia pode ser alvo de crticas

    por ser meramente formal e despida de contedo. No entanto, se analisarmos

    como o termo democracia empregado com base em princpios, veremos alguns

    exemplos que nos causam espanto, como, por exemplo, a Constituio da Rep-

    blica Popular da China, cujo artigo 1 dispe que a Repblica Popular da China

    um Estado socialista sob a ditadura democrtica do povo, liderada pela classe

    trabalhadora e baseada na aliana entre operrios e camponeses27. Se formos um

    pouco mais ao passado, veremos que grande parte das crticas fascistas do incio

    do sculo passado s formas democrticas de ento baseia-se na sua falta de

    contedo, como podemos ver neste discurso de Mussolini:

    E assim o fascismo contra a democracia que equipara o povo ao maior nmero,rebaixando-o ao nvel da maioria; mas a forma mais pura de democracia se o povo concebido, como deve ser, qualitativamente e no quantitativamente; como a ideiamais potente, porque a mais moral, a mais coerente, a mais verdadeira; pois realiza-seno povo como a conscincia e a vontade de poucos ou, ainda melhor, de Um, e,enquanto ideal, tende a realizar-se na conscincia e vontade de todos. [... S]e a demo-cracia pode ser entendida de maneira diversa, isto , se a democracia significa umregime no qual o povo no jogado s margens do Estado, [...] o fascismo pode serdefinido como uma democracia organizada, centralizada e autoritria.28

    No queremos, com estes exemplos, sustentar nossos argumentos com uma

    retrica ad fascismum; o que pretendemos demonstrar com isso que, no s

    atualmente, mas em vrios exemplos histricos, democracia pode significar qual-

    quer coisa quando definida em termos de critrios abstratos, ou seja, universais; e

    o que pode significar qualquer coisa, ao mesmo tempo, nada significa. E, mesmo

    que se queira definir a democracia com base em valores, a pergunta permanece:

    quem decide sobre estes valores? Com que autoridade?

    27 Traduo livre de CHINA, 2012, grifos nossos.28 Traduo livre de MUSSOLINI, 2006, p. 11-2, grifos nossos.

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  • Introduo 18

    Alm disto como apontou Negri quando tratou do poder constituinte ,

    estes valores so sempre colocados como um a priori, de modo que se situam fora

    da poltica e como limites a esta. Assim, mesmo que uma maioria os repudie, esta

    deslegitimada a agir por estar em erro segundo aqueles que definem os valores

    que supostamente devem guiar esta mesma maioria. Isto nos alerta para o perigo

    de se definir a democracia com base em termos abstratos, recorrendo a ideais e

    valores, pois, geralmente, isto tem o objetivo de criar mitos que, na realidade, so o

    desejo daqueles que os formulam, e so utilizados para dominar aqueles aos quais

    os mitos so dirigidos. o prprio Hobbes que nos ensina a perguntar sempre: cui

    bono [em benefcio de quem]? Que proveito eles esperam disto?29.

    No repudiamos valores, ideais e at uma moral em sentido amplo; nossa

    crtica encontra-se no na existncia destes, mas em suas imposies. Seria

    inocncia nossa crer que um povo possa no ter valores, mas o que pretendemos

    enfatizar o modo como eles surgem e so institucionalizados o discurso da

    verdade. Assim, acreditamos que a definio utilizada por Hobbes, embora no

    seja a soluo, , ao menos, um incio para se pensar uma democracia mais

    imanente e menos transcendental, ou seja, menos afligida pelo mito do Logos.

    1.2.2Paradoxos atuais da democracia

    Com os exemplos utilizados na seo anterior, poderamos pensar que os

    problemas do que chamamos de uso retrico do termo democracia, ou esto longe

    de ns na China , ou no passado no fascismo , e que, com a chamada demo-

    cracia liberal ou democracia representativa ocidental, atingimos o fim da

    histria30, como chegou a dizer Fukuyama: um produto pronto e acabado, tal

    como um universal, perene, impassvel de mudanas.

    No entanto, analisando, por exemplo, a Constituio dos Estados Unidos

    pas que tido por muitos como o baluarte da democracia , h o curioso fato de

    elegerem seu presidente de forma indireta, por meio de um colgio eleitoral, como

    determina a 1 seo do artigo 2 de sua constituio31. Parece uma contradio,

    29 Traduo livre de HOBBES, op. cit., p. 476.30 Francis Fukuyama escreveu o artigo The End of History? e, posteriormente, o livro The Endof History and the Last Man nos quais argumentou a hiptese de que a democracia liberal possaconstituir o ponto final da evoluo ideolgica da humanidade e a forma final de governo doshomens, e assim, como tal, seria o fim da histria (traduo livre de Fukuyama, 1992, p. xi).31 Cf., BERNSTEIN, 2002, p. 48.

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  • Introduo 19

    mas se formos analisar a histria constitucional americana, veremos que era exata-

    mente esta a inteno de seus Founding Fathers: no criar um sistema de governo

    absolutamente democrtico. Como apresentaremos no desenvolvimento de nosso

    trabalho, os Founding Fathers americanos arquitetaram um sistema de governo que

    menos parece uma democracia do que um filtro para a vontade popular.

    Mas no s de arquitetura que vive a democracia liberal; ela tambm possui

    o seu logos. A teoria poltica repleta de universais ou conceitos abstratos, como

    podemos ver desta vez, recorrendo aos franceses nas noes de bem comum e

    vontade geral de Rousseau32, e nao e poder constituinte de Sieys33. Nestes

    conceitos vagos, h dois problemas: o primeiro que, no importando o uso

    original que seus criadores pretendiam dar ao conceito, eles podem ser apropriados

    e utilizados retoricamente para fins muito perigosos. Basta-nos ver parte do prem-

    bulo do Ato Institucional n1, que instituiu a ditadura militar no Brasil, em 1964:

    O que houve e continuar a haver neste momento [] uma autntica revoluo. []A revoluo se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela setraduz, no o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nao.[] A revoluo vitoriosa se investe no exerccio do Poder Constituinte []. Esta aforma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revoluo vito-riosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo ante-rior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contm a fora norma-tiva, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurdicas sem que nisto sejalimitada pela normatividade anterior sua vitria. Os Chefes da revoluo vitoriosa,graas ao das Foras Armadas e ao apoio inequvoco da Nao, representam oPovo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo o nico titular.34

    O segundo problema, como j se pode ver do texto acima, que a retrica

    que se utiliza de universais no plano poltico, via de regra, vem acompanhada de

    um discurso que busca legitimar e demonstrar a necessidade de haver uma repre-

    sentao do corpo de cidados por apenas uma parte deste que se considera mais

    apta que os demais. Assim, a arquitetura do sistema e a ideia de representao

    trabalham em conjunto para transformar as mltiplas vontades de um povo em

    apenas uma, que no necessariamente representar a vontade de todos ou, pelo

    menos, de uma maioria. E a adoo deste sistema vem sempre acompanhada de

    um discurso que utiliza conceitos abstratos para legitim-lo, ou seja, universais.

    Todavia, no campo da poltica, em sentido estrito, normal o apelo retrica;

    esta tcnica, contudo, no se restringe a este campo de atuao, atingindo a prtica

    32 Cf., ROUSSEAU, 1966, p. 63.33 Cf., SIEYS, 1989, p. 31 e 67. 34 BRASIL, 1964, p. 3193. Grifos nossos: enfatizamos os termos que mais sinalizam a retricaque se utiliza de universais para embasar seus argumentos.

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  • Introduo 20

    jurdica, que muitas vezes apresenta-se como cincia35. o que percebemos no que

    chamado de neoconstitucionalismo36 ou, de forma genrica, ps-positivismo,

    dogmtica jurdica que parece ter se tornado um paradigma na jurisprudncia brasi-

    leira37. Nesta doutrina, como aponta um dos seus maiores expoentes, Lus Roberto

    Barroso, atual Ministro do Supremo Tribunal Federal brasileiro:

    O reconhecimento de normatividade aos princpios e sua distino qualitativa emrelao s regras um dos smbolos do ps-positivismo. Princpios no so, comoas regras, comandos imediatamente descritivos de condutas especficas, mas simnormas que consagram determinados valores ou indicam fins pblicos a seremrealizados por diferentes meios. [...] Tambm aqui, portanto, impe-se a atuao dointrprete na definio concreta de seu sentido e alcance.38[U]ma das singularidades das normas constitucionais o seu carter sinttico,esquemtico, de maior abertura. Disso resulta que a linguagem do Texto Constitu-cional mais vaga, com emprego de termos polissmicos [...] e conceitos indeter-minados [...]. Desnecessrio enfatizar que esta abertura amplia a discricionariedadedo intrprete, que h de adicionar um componente subjetivo resultante de sua valo-rao para integrar o sentido dos comandos constitucionais.39

    A princpio, no nos parece tratar-se de universais. Os princpios so, em

    regra, extrados do texto constitucional, mas, por outro lado, distinguem-se de

    outras normas por serem menos descritivos, ou seja, so mais abstratos, de sentido

    mais amplo, necessitando uma maior atuao do intrprete na definio concreta

    de seu sentido e alcance. O problema encontra-se justamente nisto: a competncia

    para interpret-los demasiadamente ampliada40.

    35 O direito certamente uma cincia, ao menos no sentido de ser um conjunto organizado de conhe-cimentos, regidos por princpios e conceitos prprios (BARROSO, 1999, p. 278). O jurista apresentaesta descrio para critic-la, porm, ele ainda cr que a impossibilidade de chegar-se objetividadeplena no minimiza a necessidade de se buscar a objetividade possvel. O texto da lei e aspossibilidades exegticas que ela oferece traam os parmetros dentro dos quais poder mover-se ointrprete (ibid., p. 288). A teoria que pretende criticar (cf., ibid., p. 265) a do jurista austraco HansKelsen, que, no prefcio da primeira edio de sua Reinerechtslehre, comentou sobre seus objetivos:desde o comeo foi meu intento elevar a Jurisprudncia, que aberta ou veladamente se esgotavaquase por completo em raciocnios de poltica jurdica, altura de uma genuna cincia, de uma cinciado esprito (KELSEN, 2000, p. vii).36 Cf. NEVES, 2013, p. 176.37 No final do sculo XX e incio do sculo XXI, a doutrina constitucional brasileira foi tomadapor um fascnio pela principiologia jurdico-constitucional e, nesse contexto, pela ponderao deprincpios, uma atitude que, com destacadas excees, tem contribudo para uma banalizao dasquestes complexas entre princpios e regras (ibid., p. 171). Neves, no entanto, alerta para noconsiderarmos isto uma novidade na jurisprudncia brasileira: [t]ambm se deve ter cuidado coma referncia ao comeo da histria, para sugerir uma inexistncia de orientao por argumentosprincipiolgicos na tradio jurdico-constitucional brasileira anterior. No Imprio, Pimenta Buenoreferia-se ao direito como uma ordem de princpios. Argumentos com base em princpios nofaltaram na primeira repblica, destacando-se Rui Barbosa, cuja invocao permanente aosprincpios relativos aos direitos constitucionais e individuais torna-o o primeiro a quem caberiamser aplicadas expresses constitucionalizao do direito e ironicamente neo-constitucionalismo em nossa histria (ibid., p. 174). 38 BARROSO, 2009, p. 310.39 BARROSO, 1999, p. 129.40 Por exemplo, no que diz respeito antiga diviso entre decises polticas e judiciais,

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  • Introduo 21

    Em ltima instncia, isto acaba por fazer com que haja uma metaconstituio

    repousando sobre o texto constitucional, cujo acesso s possvel aos ministros do

    Supremo Tribunal Federal, os quais a constroem com base nestes princpios vagos e

    abstratos. Tal como um orculo, eles possuem o poder de revelar o contedo desta

    metaconstituio como se realizassem a exegese de uma escritura sagrada. Uma

    expresso clara desta autoatribuio de competncia podemos encontrar no voto do

    ex-ministro Celso de Mello, que o faz, citando o jurista Francisco Campos:

    O poder de interpretar a Constituio envolve, em muitos casos, o poder dereformul-la. A Constituio est em elaborao permanente nos Tribunais incumbidosde aplic-la. (...) Nos Tribunais incumbidos da guarda da Constituio, funciona, igual-mente, o poder constituinte.41

    Esta postura do Supremo Tribunal Federal, todavia, ao nosso ver, acaba sendo

    uma apropriao da soberania que, ao menos conforme a prpria Constituio,

    pertence ao povo42. Mesmo que respeitemos as competncias atribudas ao STF pela

    Carta Constitucional, a este rgo cabe a sua guarda e no a sua modificao43. No

    entanto, no o que parece pensar o doutrinador e, agora, ministro Barroso:

    Sem que se opere algum tipo de ruptura na ordem constituda como um movi-mento revolucionrio ou a convocao do poder constituinte originrio , duas soas possibilidades legtimas de mutao ou transio constitucional: (a) atravs deuma reforma do texto, pelo exerccio do poder constituinte derivado, ou (b) atravsdo recurso aos meios interpretativos. A interpretao evolutiva um processoinformal de reforma do texto da Constituio.44

    Alm do sequestro da soberania por meio de um poder constituinte auto-

    outorgado, cuja meno no existe em nenhum lugar da Carta de 1988 , como

    aponta Humberto vila autor que, anteriormente, escrevera o conhecidssimo

    livro Teoria dos princpios45 , este posicionamento, tanto jurisprudencial como

    doutrinrio, acaba mais por vilipendiar do que guardar a Constituio:

    costuma-se afirmar que o judicirio no poderia interferir naquelas, todavia, [a] doutrina contem-pornea majoritria em afirmar que mesmo quanto aos atos discricionrios, cujo mrito pres-supe um juzo amplo de convenincia e oportunidade pelo administrador, pode haver, excepcio-nalmente, nulidade e conseqente controle do Judicirio. [...] Em verdade, os princpios gerais doDireito, como o da igualdade, o do Estado de Direito, o do Estado Social de Direito e, sobretudo,o da proporcionalidade, cada vez mais so instrumentos de conformao do contedo da decisodiscricionria, o que proporciona ao juiz uma ingerncia crescente sobre o contedo de taldeciso (nota de Gustavo Binenbojm, como atualizador, em FAGUNDES, 2005, p. 190n).41 STF, 2008, p. 472.42 No pargrafo nico do art. 1 da Constituio Federal brasileira (doravante, CRFB) temos adisposio de que [t]odo o poder emana do povo (BRASIL, 2012, p. 11).43 No artigo 102 da CRFB, temos o seguinte: [c]ompete ao Supremo Tribunal Federal [] aguarda da Constituio (ibid., p. 68).44 BARROSO, 1999, p. 144.45 VILA, 2003.

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  • Introduo 22

    O neoconstitucionalismo [...], aplicado no Brasil, est mais para o que se poderiadenominar, provocativamente, de uma espcie enrustida de no-constitucionalismo:um movimento ou uma ideologia que barulhentamente proclama a supervalorizaoda Constituio enquanto silenciosamente promove a sua desvalorizao.46

    1.2.3A atualidade de Hobbes para a democracia

    Hobbes o aneulogos o fora do Logos. Isto no significa que seja um antirra-

    cionalista; ele apenas no entende o processo de raciocnio como algo voltado para

    um transcendental: no h nada que seja um Finis ultimus (fim ltimo) ou Summum

    Bonum (bem maior) como dito nos Livros dos antigos Filsofos Morais47. Isto que,

    a primeira vista, pode parecer estarrecedor e por onde se sustenta a acusao de

    que o filsofo ingls seria um imoral , consideramos a base para refutar todas as

    morais voltadas para um logos, que acabam por ensejar uma distino entre aqueles

    que o compreendem e aqueles que no, permitindo um sequestro da soberania, alm

    de impor limites poltica. As palavras de Hobbes sobre isto so contundentes:

    Quando os homens que se julgam mais sbios que todos os demais reclamam einvocam a reta Razo para julgar, pretendem, nada mais, que as controvrsiassejam determinadas por nenhuma outra razo que no seja a deles. Isto to intole-rvel na sociedade humana como o em um jogo de cartas quando, aps determi-nado um trunfo, quer-se utilizar como tal o naipe que mais se tiver em mos. Esteshomens no fazem nada mais do que querer que suas paixes, conforme nelessurjam, sejam tomadas como a reta Razo em suas prprias controvrsias, traindoseus desejos por reta Razo pelo uso que fazem dela.48

    Mais que uma crtica ao Logos, como podemos ver, Hobbes rejeita o uso

    retrico que se faz dele. Podemos dizer que h uma refutao em dois nveis:

    primeiro, rejeita-se a existncia de universais; segundo, mesmo que estes existam,

    ningum mais capaz de defini-los do que ningum: todos so iguais.

    Hobbes atacou vrios segmentos da elite inglesa do Sculo XVII, mas as

    autoridades eclesisticas eram um dos seus principais alvos49 e sua crtica reli-

    gio era o que mais chamava a ateno dos escritores radicais que foram influen-

    ciados por sua obra50. Esta crtica, todavia, no se restringe a este grupo, mas pode46 VILA, 2009, p. 19.47 Traduo livre de HOBBES, op. cit., p. 70.48 Ibid., p. 33.49 A quarte parte do Leviathan Of the Kingdom of Darknesse (Do reino das trevas) consiste,basicamente, em um ataque as doutrinas e grupos que, segundo Hobbes, instigaram a Guerra CivilInglesa (cf., ibid., p. 417-482). Como aponta Renato Janine Ribeiro, o conflito domstico [viz., paraHobbes] resulta acima de tudo das maquinaes do clero [], a desconfiana hobbesiana vale contraqualquer clero. [] Nesse livro [Behemoth], alis, quase todo o tiroteio se dirige contra ospresbiterianos, mas no Leviat a guerra se fazia Igreja Romana (RIBEIRO, 2001, p. 12-16). 50 A contribuio mais importante de Hobbes, para os propsitos dos filsofos iluministas de

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  • Introduo 23

    ser estendida a outros que tentem se apropriar da soberania por meio de subterf-

    gios51. Assim, a crtica de Hobbes pode ser aplicada, na atualidade, a qualquer

    grupo que tente obter poder por meio de uma manipulao simblica. E no seria

    isto que faz o STF quando tenta transformar sua competncia de guarda para a

    de modificar a Constituio?

    De fato, a filosofia de Hobbes, ao mesmo tempo que fornece a explicao

    para a instituio de um soberano absoluto, se invertermos seus sinais, veremos que

    ela tambm fornece um arsenal para contestar qualquer autoridade, a ponto de, em

    obra recente, James Martel afirmar que at possvel uma leitura anarquista de

    Hobbes52, e Jean Hampton, anteriormente, alegar que, se o objetivo do filsofo

    ingls era estabelecer um absolutismo, haveria uma contradio em sua obra, pois,

    para a autora, o Leviathan seria um catecismo para rebeldes53.

    inegvel que a afirmao hobbesiana sobre a soberania ser absoluta e, ao

    mesmo tempo, entender que h uma desconstruo desta mesma soberania pode

    parecer uma contradio; mas pretendemos resolver este paradoxo nesta pesquisa e,

    para isto, partiremos da hiptese de que a sua ontologia nominalista a qual recusa

    todos os universais guarda uma relao simtrica com a soberania absoluta. A

    demonstrao desta hiptese ser reservada para os captulos posteriores; mas, apenas

    para nos situarmos, observemos uma premissa muito simples: quando no h

    nenhuma moral prvia ou qualquer outro limite para a poltica, a soberania s pode

    ser absoluta; dentro do sistema de Hobbes, isto uma tautologia54.

    inclinao radical, era sua explicao epistemolgica e psicolgica da origem da religio, na qualele apontava para dois princpios interligados: ignorncia das causas [dos eventos naturais] e omedo de poderes ocultos (traduo livre de MALCOLM, 2002, p. 493).51 Renato Janine Ribeiro, por exemplo, afirma que o clero, no sculo XVII, uma mdia de nossotempo que teria anexado o Alm []: por uma lado, assegura as comunicaes, informando, pregando;por outro, sanciona os melhores prmios e os piores castigos (RIBEIRO, op. cit., p. 13).52 uma peculiaridade de Leviathan que os contemporneos de Hobbes tendiam a l-lo comosendo muito mais radical e subversivo do que ele hoje em dia; e tambm peculiar que seus pri -meiros aliados, em particular, tenham enxergado um esprito renegado e at anarquista emHobbes, uma opinio sobre ele que a histria parece ter, subsequentemente, apagado (traduo li-vre de MARTEL, 2012, p. 4).53 Hobbes [] mantm que os rebeldes [ou qualquer outro sdito] preservam um direito de auto-defesa e, assim, no podem recusar a defender-se quando estiverem sob ataque. Ao tomar esta po-sio, contudo, Hobbes compromete-se em advogar a continuidade da atividade rebelde em umEstado, uma vez que esta comear; e, assim, sanciona o conflito interno, o qual a criao de umasoberania absoluta deveria encerrar (traduo livre de HAMPTON, 1988, p. 197).54 Acreditamos que inmeras confuses surjam quando se equipara o conceito de soberania hobbe-siano com o conceito moderno de soberania estatal ou, at, com um monarca, pessoa fsica, de carne eosso. Quanto a isto, como vimos na afirmao de Skinner, Hobbes rompe com esta ideia de um sobe-rano personalizado; j, com relao soberania estatal, embora sua teoria seja fundamental para o esta-belecimento do conceito, h algo mais na ideia hobbesiana que no se extingue quando a soberaniaestatal posta em cheque.

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  • Introduo 24

    1.3Objetivos, ou o que fazer?

    Diante dos problemas expostos nas sees anteriores, a questo que colocamos

    a pertinncia da filosofia de Hobbes nos dias de hoje, isto : quando, apesar das

    contradies, a ordem internacional afirma a democracia como paradigma de

    governo55, ainda podemos utilizar o sistema do filsofo ingls ou este algo comple-

    tamente datado? As contradies encontradas nas democracias de hoje so mais culpa

    da influncia de Hobbes ou decorrem do fato de algumas consideraes que props

    serem ignoradas? Enfim, o que h de til e o que h de problemtico na filosofia pol-

    tica do autor do Leviathan quando esta aplicada democracia? Responder estas

    perguntas o objetivo de nosso trabalho em um sentido amplo.

    No entanto, mais precisamente, localizamos as principais crticas relativas

    filosofia poltica de Hobbes as que repercutem no pensar a democracia referidas

    questo da soberania e de seu absolutismo. Deste modo, considerando que estes

    aspectos de sua filosofia constituem sua maior contribuio para a teoria poltica,

    procuraremos responder as questes acimas, verificando a pertinncia destes

    conceitos para um regime democrtico.

    Para isto, algumas consideraes precisam ser feitas: primeiro, partindo de

    nossa premissa metodolgica de que no h universais, democracia uma questo de

    definio que, como vimos, pode ser feita de diversas formas. Como no preten-

    demos entrar no mrito das definies, partiremos da proposta Hobbes, j vista antes,

    reapresentando-a, agora, em uma forma mais clara democracia a forma de

    governo cujo soberano a pessoa jurdica da assembleia composta por todos os

    cidados , e, a partir da, invertermos a pergunta, isto : como, a partir desta defi-

    nio, Hobbes analisaria as democracias atuais? O objetivo desta inverso veri-

    ficar, ao pensarmos em uma democracia que no dispense, mas internalize o Logos

    politicamente, se soberania ainda um conceito relevante e se esta absoluta.

    55 Na Declarao Universal de Direitos Humanos da ONU, encontramos o seguinte nos pargrafos1 e 3 do artigo XXI: Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu pas diretamenteou por intermdio de representantes livremente escolhidos. [] A vontade do povo ser a base daautoridade do governo; esta vontade ser expressa em eleies peridicas e legtimas, por sufrgiouniversal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto (MAZZUOLI,2007, p. 775). claro que, como alertamos, h vrias contradies na aplicao desta norma dedireito internacional, pois h vrios Estados que no as obedecem e fazem parte da ONU (como porexemplo, Arbia Saudita e Coreia do Norte, apenas para citar dois exemplos notrios, porm combases de legitimidade distintas), mas o objetivo desta afirmao de que a democracia o paradigmade governo contemporneo apenas para apresentar a fora de legitimao que ela possui, tanto quese encontra disposta na Declarao Universal de Direitos Humanos.

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  • Introduo 25

    A segunda considerao a ser feita que todas estas perguntas jamais podero

    ser respondidas adequadamente sem uma compreenso da filosofia de Hobbes

    no s da poltica, mas de toda ela , e, visto que h inmeras contradies nas

    diversas interpretaes que so feitas desta, propomos apresentar a nossa prpria,

    que parte de sua prpria filosofia: uma leitura recursiva de Hobbes, que utiliza seus

    prprios pressupostos filosficos para interpret-lo56. Com este mtodo, preten-

    demos apresentar no apenas o que ainda consideramos pertinente da concepo da

    soberania de Hobbes, mas tambm oferecer uma crtica da prpria soberania: uma

    espcie de crtica de Hobbes a Hobbes, mas que, na realidade, uma crtica ao

    Logos. Assim, uma crtica no no sentido de recusar ou querer eliminar a sobe-

    rania, mas no sentido de apontar como ela deve ser percebida.

    Consideramos esta percepo fundamental para que a apreciao da filo-

    sofia de Hobbes no se transforme em uma nova filosofia do Logos. E neste

    sentido que batizamos este trabalho de Leviathan nu, pois pretendemos apresentar

    o conceito de soberania hobbesiano em seu aspecto mais basal desnudo , mas,

    ao mesmo tempo, eliminar qualquer resqucio de mitificao, transcendncia,

    teologia, em sntese, de logos que possa estar associado ao termo. Com isto,

    tambm apresentamos um mtodo que acreditamos poder ser til para desnudar

    outras filosofias orientadas pelo Logos.

    1.4Questo de mtodo

    A base de nosso mtodo para a compreenso da filosofia hobbesiana sua refu-

    tao de uma concepo metafsica ou ontolgica realista, isto , de uma que postula

    a realidade dos universais:Esta universalidade de um nome para muitas coisas tem sido a causa do fato doshomens pensarem que as prprias coisas so universais. E argumentam seriamente que,alm de Pedro, Joo e todo o resto dos homens que existem, existiram ou existiroem todo o mundo , h ainda algo mais, que chamamos de homem, ou seja, o homemem geral, enganando-nos a ns mesmos, tomando a denominao universal, ou geral,para a coisa que ela significa. [ N]o existe nada universal que no seja nomes.57

    56 Esta forma de ler Hobbes foi chamada nossa ateno pela j mencionada obra de James Martel Subverting Leviathan , na qual ele afirma a qualidade autorreflexiva do Leviathan: a maneira pelaqual o texto convida e instrui-nos como examinar e participar do prprio ato de l-lo (traduo livre deMARTEL, op. cit., p. 3). Mas ampliamos esta leitura de Martel que apenas utiliza Leviathan ,buscando fundamentos nas obras mais puramente filosficas de Hobbes, como De Corpore (cf.,HOBBES, 2005) e De Motu, Loco et Tempore (cf., HOBBES, 1976, traduzida para o ingls comoThomas White's De Mundo Examined, a partir de agora referida como Anti-White).57 Traduo livre de HOBBES, 1999, p. 36.

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  • Introduo 26

    Esta metodologia ope-se a outra, mais comum, que interpreta Hobbes

    baseando-se na ideia de que toda sua filosofia pode ser inferida de um modelo meca-

    nicista, das cincias naturais58. Zarka chama a nossa ateno para o seguinte fato:

    A teoria das paixes, a dinmica relacional que conduz ao estado de guerra, a insti-tuio e o funcionamento jurdico do Estado no podem ser explicados em termosde movimentos e composio de movimentos. Sendo assim, os efeitos de um poderde um homem ou do poder poltico so definidos em termos de uma concepo queno se baseia na fsica, mas nos signos. Tanto a tica da potncia humana quanto ateoria do poder poltico envolvem, em diferentes nveis, uma modalidade especficade uma relao semiolgica entre um significante e um significado.59

    E o prprio Hobbes que a seguinte distino:

    Esta potncia da mente chamada de motiva difere da potncia motiva do corpo, poisesta o que chamamos por fora, mas a potncia motiva da mente aquilo pelo qualesta proporciona o movimento animal ao corpo no qual ela existe: suas aes sonossas afeies ou paixes [].60

    Com isto, no queremos dizer que o filsofo ingls desconsiderasse os

    avanos cientficos de sua poca na epstola dedicatria do De Corpore, elogia

    vrios nomes da nova cincia como: Coprnico, Galileu, Kepler, entre outros61 ,

    mas apenas que h um princpio epistemolgico que precede esta admirao pelo

    modelo cientfico e que se baseia em dois fundamentos: a refutao da realidade dos

    universais; e a ideia de que toda representao da realidade e, por consequncia,

    todo modelo cientfico uma imagem que no se confunde com a prpria; como

    afirma o prprio Hobbes: uma coisa o objeto; outra, a imagem62.

    No tal como o caso do platonismo, no qual o mundo material um

    simulacro de um mundo ideal e, por isto, uma iluso Hobbes jamais nega a

    existncia do mundo real63 , isto apenas significa que a percepo da coisa em

    58 o que encontramos, por exemplo, na interpretao de Marilena Chaui, quando esta afirma que[p]ara pens-la e prop-la [viz., sua teoria poltica], Hobbes ancora-se fortemente nos conceitos danova fsica e, em particular, no conceito de inrcia, ou melhor, no princpio de conservao indefinidado movimento (CHAUI, 2003, p. 303). Como aponta Zarka, paralelamente uma coerncia integralda teoria hobbesiana, lastreada em definies de conceitos e dedues destas definies, para exem-plific-la, o filsofo ingls emprega diversas analogias, e [s]o estas analogias que suscitam a leiturado conjunto da doutrina em termos de uma fsica mecanicista (traduo livre de ZARKA, 2001, p. 86).59 Ibid., p. 87, grifos nossos.60 Traduo livre de HOBBES, 1999, p. 43. Com isto, no pensemos que Hobbes afirma umdualismo corpo/mente, no sentido que esta ltima seja algo imaterial ele mesmo afirma que umaconcepo no nada alm de um movimento dentro da cabea (ibid., p .43) o que elepretende apenas demarcar uma distino. 61 Cf., HOBBES, 2005, p. viii-ix.62 Traduo livre de HOBBES, 1991a, p. 14, grifos nossos.63 Falando da experincia intelectual proposta por Hobbes em De Corpore, na qual trata do quesobraria na mente de um indivduo se tudo mais fosse aniquilado (cf., HOBBES, 2005, p. 91),Zarka comenta que a hiptese no lana nenhuma dvida sobre a existncia do mundo: ao contr-rio, aquilo que supostamente permanece uma vez que o mundo destrudo supostamente mostraque o mundo uma vez existiu, mesmo que ele no exista de acordo com os termos da hiptese

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  • Introduo 27

    si no existe para o filsofo ingls, apenas a percepo emprica da coisa. A

    realidade pode ser inteligvel, mas isto no significa que temos uma represen-

    tao fidedigna da mesma.

    Hobbes adota uma posio filosfica na qual a realidade percebida sempre

    de forma interpretada. Podemos consider-lo um empirista pois afirma que

    no h nenhuma concepo na mente de um homem que no tenha sido primeira-

    mente apreendida, em todo ou em parte, pelos rgos dos sentidos64 , mas que,

    no entanto, faz-nos o seguinte alerta: estes primrdios do conhecimento [...] so

    os fantasmas do sentido e a imaginao65. Isto, conjugado com a recusa dos

    universais, fornece-nos uma epistemologia que coloca em cheque o carter cate-

    grico das cincias empricas:

    Nesta inferncia de signos a partir da experincia, encontra-se o que os homens ordina-riamente pensam ser a diferena entre homens comuns e sbios, pois isto o que comumente entendido como a inteira habilidade ou poder cognitivo de um homem.Mas isto um erro, pois estes signos so apenas conjecturais e, de acordo com afrequncia com que falham ou sucedem, suas garantias so maiores ou menores, masnunca plenas e evidentes. Pois, ainda que um homem tenha sempre visto o dia e a noitesucederem-se um ao outro, no se pode concluir que ser sempre assim ou que istoocorre desde a eternidade. A experincia no conclui nada de modo universal. Se umsigno ocorre vinte vezes para cada erro, um homem pode apostar vinte contra um que oevento ir ocorrer, mas no pode concluir isto como uma verdade.66

    Com isto, podemos concluir que: em primeiro lugar, as cincias empricas

    apenas afirmam conhecimentos probabilsticos; em segundo, como podemos ver

    do trecho acima, trata-se de uma inferncia de signos, ou seja, a experincia

    precisa ser representada por um sistema de definies, ou seja, nomes:[U]ma palavra escolhida ao bel prazer para uma marca [viz., um smbolo, tambmarbitrrio, que utilizamos para recordar nossas experincias e pensamentos] e que,dita a outrem, possa significar algo do que o falante tinha ou no tinha em mente67.

    claro que o falante no escolhe qualquer som que lhe venha a cabea, mas

    algo que suponha que o ouvinte ir entender; o que Hobbes pretende dizer com

    isto, contudo, que nomes no revelam a essncia das coisas:

    (ZARKA, 2011, p. 94).64 A dicotomia entre empirismo e racionalismo suscita vrias crticas, como se um empirista nopudesse raciocinar e um racionalista negasse toda a experincia. Embora toda dicotomia sejapassvel de controvrsias, no acreditamos que seja este o caso; o que est em jogo uma ques -to de prioridade: enquanto o racionalismo considera que a justificativa de algumas importantesafirmaes independente de qualquer experincia particular (HUENEMANN, 2006, p. 4.), oempirismo afirma que toda justificativa de crenas sobre a existncia real dependente daexperincia, ou seja, emprica (MEYERS, 2006, p. 2). neste sentido que classificamos Hobbes.65 Traduo livre de HOBBES, 2005, p. 66.66 Traduo livre de HOBBES, 1999, p. 33, grifos nossos.67 Traduo livre de HOBBES, 2005, p. 16, grifos no original.

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  • Introduo 28

    [C]omo pode algum homem pensar que os nomes das coisas foram impostos a partir desuas naturezas? [ S]endo os nomes ordenados em uma fala [] signos de nossasconcepes, manifesto que no so signos das prprias coisas. [ E]sta disputa seos nomes significam a substncia, a forma ou uma combinao das duas , assim comooutros tipos de sutilezas da metafsica, mantida por homens equivocados que noentendem o prprio significado das prprias palavras que eles disputam.68

    Sendo assim, ao contrrio de uma adorao pela fsica da parte de

    Hobbes como se esta revelasse a verdade das coisas , o que encontramos na

    base de seus princpios tericos uma tenso entre uma concepo de cincia,

    que se entende como uma definio precisa de seus termos e como dedues

    extradas destas definies69, e a percepo de que, ao mesmo tempo, estas

    definies so arbitrrias: no sentido mencionado anteriormente que no so

    revelaes de essncias, mas fantasmas do sentido e imaginao.

    1.4.1Falando a verdade

    Hobbes afirma que uma proposio verdadeira aquela cujo predicado

    contm ou compreende seu sujeito, ou cujo predicado o nome de todas as coisas s

    quais se refere o sujeito70, mas, por outro lado:

    [P]odemos deduzir que as primeiras verdades foram arbitrariamente impostas poraqueles que primeiro atriburam nomes s coisas ou j as receberam atribudas poroutros; por exemplo, verdade que o homem uma criatura viva, mas simplesmenteporque foi aprazvel aos homens atribuir ambas as referncias mesma coisa.71

    Para Hobbes, a lgica apenas uma forma simples de linguagem, sem tropos

    ou figuras72, mas cujos princpios ou proposies primrias no so nada mais do

    que definies [], sendo verdades construdas arbitrariamente pelos inventores da

    fala e, por isto, no demonstrveis73. Esta forma de pensar hobbesiana fica ntida

    na seguinte afirmao:

    68 Traduo livre de HOBBES, 2005, p. 16-7. neste sentido que se deve entender a afirmao de queos nomes so arbitrrios ou escolhidos ao bel-prazer: no porque no tenham uma causa, mas porque no guardam uma relao necessria no sentido de essencial com a coisa nomeada. No mesmosentido: [o] que os outros dizem [] que os nomes foram impostos s coisas singulares de acordocom a natureza destas infantil (traduo livre de HOBBES, 1991b, p. 39).69 Em um de seus primeiros estudos filosficos Anti-White o filsofo afirma que: filosofia,isto , qualquer cincia deve ser tratada de forma que, a partir de dedues necessrias, saibamosque as concluses extradas so verdadeiras. A filosofia, portanto, deve ser tratada logicamente(traduo livre de HOBBES, 1976, p. 26). Hobbes manter esta convico em suas obras posteri-ores como, por exemplo, Leviathan, (cf., HOBBES, 1991a, p. 60). O mesmo ocorrer em DeCorpore (cf., HOBBES, 1839a, p. 1-80).70 Traduo livre de HOBBES, 2005, p. 35.71 Ibid., p. 36.72 Traduo livre de HOBBES, 1976, p. 25.73 Traduo livre de HOBBES, 2005, p. 37.

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  • Introduo 29

    Homem um animal verdadeiro, porque a palavra animal abrange e inclui oque quer que a palavra homem signifique realmente. [...] A verdade demonstrvel,portanto, encontra-se em inferncias lgicas, e, em cada demonstrao, o termo queforma o sujeito da concluso demonstrada tomado como o nome no de umacoisa que existe, mas que supostamente existe. Sendo assim, uma concluso temuma fora que no categrica, mas apenas hipottica. [...] Para provar que algoexiste, necessrio utilizar os sentidos ou a experincia; e, ainda assim, no seestabelece uma demonstrao.74

    Com isto, ao invs de um fetichismo cientificista, o que permeia a filosofia

    de Hobbes um imenso ceticismo. Ele distingue os conhecimentos dedutivos dos

    conhecimentos de fato75, mas percebe problemas nos dois. Estes ltimos permitem

    apenas um conhecimento probabilstico, pois, como o filsofo concluiu, a experi-

    ncia no conclui nada de modo universal; j os primeiros permitem um conheci-

    mento supostamente universal simplesmente porque parte de definies arbitraria-

    mente estabelecidas. Podemos utilizar estes esquemas abstratos para mapear o

    mundo que observamos e extrair concluses sobre ele, mas, na realidade, estamos

    extraindo concluses de nossas prprias abstraes. Em outros termos, a filosofia

    de Hobbes refuta completamente a existncia de categorias ou proposies sint-

    ticas a priori, ou seja, independentes da experincia, que so aquelas que Kant

    pretendeu no apenas demonstrar em sua Crtica da razo pura, mas tambm

    afirmar que so a base da filosofia:

    A Introduo da primeira Crtica captura seu projeto inteiro por meio de duas distin-es enormemente influentes [...]. Kant apela para a dupla oposio composta, por umlado, entre o a priori (independente da experincia) e o a posteriori (dependente daexperincia) e, por outro, entre os julgamentos analticos (explicativos) e sintticos(ampliativos), com o propsito de defender a autonomia da filosofia como a disciplinaque trata do a priori sinttico.76

    Com esta afirmao, podemos categorizar Kant como um filsofo do

    Logos77; na verdade, podemos at redefinir o conceito de filosofia ou poltica, ou

    74 Traduo livre de HOBBES, 1976, p. 305, grifos nossos. O que Hobbes quer dizer com isto que,se tomarmos H como homem e A como animal, a proposio H A (se homem, ento animal) verdadeira apenas porque H A (homem est contido em animal). Portanto temos este bastanteconhecido princpio do raciocnio: o indivduo est includo no universal o que os lgicoschamam de uma declarao relativa ao todo, i.e., que um nome descrevendo um universal tambmdescreve o singular. Sendo assim, se um homem um animal verdadeiro, Scrates um animaltambm (ibid., p. 35). Com isto, todavia, Hobbes no est afirmando a superioridade da lgica,mas apenas expondo o que ela pode oferecer: inferncias sobre relaes entre smbolos que repre-sentam generalizaes abstratas e arbitrrias, isto , coisas que supostamente existem.75 Hobbes afirma que Verdade e Falsidade so atributos da Linguagem e no das Coisas. Ento, ondeno h Linguagem no h nem Verdade ou Falsidade (traduo livre de HOBBES, 1991a, p. 27);quanto aos conhecimentos de fato, pode haver Erro (ibid. p. 27).76 Traduo livre de HFFE, 2010, p. 51. Ver tambm KANT, 1998, p. 127-52.77 Como comenta Hffe, apelando para o a priori sinttico, Kant efetivamente aceita a ideia defilosofia, j inciada pelos gregos, que consiste na procura de verdades eternas que so diretamenterelvantes para a cincia (traduo livre de HFFE, op. cit., p. 55).

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  • Introduo 30

    qualquer outra disciplina do Logos como aquela baseada em proposies ou

    categorias sintticas a priori; e nossa proposta metodolgica para interpretar a

    obra de Hobbes, com tudo que vimos nesta seo, coloc-lo no extremo oposto,

    ante sua afirmao de que: por meio de demonstraes a priori, a cincia permite

    aos homens saberem somente aquelas coisas cuja construo depende somente do

    arbtrio dos prprios homens78. Sendo assim, efetuaremos sempre uma leitura de

    sua filosofia como uma recusa radical de qualquer a priori sinttico, e isto inclui

    suas prprias categorias. Esta ltima observao , talvez, o aspecto mais funda-

    mental de nossa metodologia, e sua aplicao ser demonstrada no prximo cap-

    tulo, quando tratarmos da filosofia primeira de Hobbes.

    1.4.2Uma ontologia relativa

    A recusa dos universais por parte de Hobbes no significa o abandono da

    utilizao dos mesmos, assim como, ao apontar os problemas e limites do conheci-

    mento, o filsofo no est propondo abandonar a lgica nem a observao da reali-

    dade; o que ele pretende apenas que se compreenda o que se faz quando se utiliza

    estes universais que so apenas smbolos para que no se cometa abusos:[H], ao mesmo tempo, uma grande utilidade como um grande abuso de nomesabstratos: a utilidade consiste no fato de que, sem eles, na maior parte do tempo,no poderamos computar ou racionar sobre as propriedades dos corpos []; masos abusos provm do fato que alguns homens, vendo que podem computar [] osacrscimos e decrscimos de quantidade, calor e outros acidentes sem considerar oscorpos ou os sujeitos (o que chamam de abstrair ou fazer existir a parte), falamdestes acidentes como se pudessem ser separados dos corpos. A partir da incorremnos erros grosseiros dos escritores da metafsica []. Da mesma fonte decorremtais palavras insignificantes, como substncia abstrata, essncia separada e outrassemelhantes, assim como a confuso com as palavras derivadas do verbo latino est:essncia, essencialidade, entidade, entitativo [] etc.79

    Para Hobbes, embora a razo no seja algo transcendental e apartado da

    imaginao e dos afetos, como veremos no captulo seguinte, no significa que

    seja intil; igualmente, assim como o fato da linguagem ser a mais nobre e

    proveitosa inveno de todas80 no impede seus correspondentes abusos81.

    78 Traduo livre de HOBBES, 1991b, p. 41.79 Traduo livre de HOBBES, 2005, p. 33-4.80 Traduo livre de HOBBES, 1991a, p, 24.81 J disse anteriormente que o Homem destaca-se de todos os animais nesta faculdade; esta pela qual,concebida qualquer coisa, ele apto a inquirir as consequncias desta e os efeitos que lhe seguem. E,agora, posso adicionar este outro grau de excelncia, pelo qual, por meio do uso de palavras, podereduzir as consequncias que encontra em Regras gerais, chamadas de Teoremas ou Aforismos; isto ,

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  • Introduo 31

    Sem universais, no entanto, a comunicao seria impossvel, pois, em ltima

    instncia, cada palavra uma abstrao no no sentido metafsico que Hobbes

    critica algo como a extrao de uma essncia , mas no sentido exatamente

    oposto: que o signo no a coisa em si. neste sentido que temos que entender as

    categorias hobbesianas: como formas de comunicao e no como transcendentais

    sintticos a priori.

    Hobbes um grande crtico da Escolstica e da concepo de metafsica que

    esta prope, a qual Hobbes considera um mau uso do termo82. Ele acaba por

    recus-lo e opta por utilizar philosophia prima83 para classificar a disciplina que

    trata de conceitos fundamentais, como corpo, acidente, espao, tempo, movimento,

    e outros. Sendo assim, consideramos um princpio fundamental para interpretar

    Hobbes entender que, quando ele discute metafsica, no pretende estabelecer o

    sentido categrico de um transcendental sinttico a priori, mas, ao contrrio,

    pretende elimin-los de seu sistema filosfico. Ele estabelece, no entanto, um

    certo vocabulrio, cujo status precisa ser estabelecido. Consideramos que a

    melhor forma de entend-lo no sentido de definies bsicas para poder filo-

    sofar, ou seja, estabelecendo um lxico para se comunicar com base no seu prin-

    cpio de univocidade dos termos. Isto o que contemporaneamente chama-se

    ontologia, no sentido no metafsico do termo, pois trata-se no de categorias do

    ser, mas categorias de sistematizao84.

    pode raciocinar ou calcular, no somente com nmeros, mas com todas as outras coisas que podem seradicionadas ou subtradas umas das outras. [...] Mas este privilgio reduzido por outro, que oprivilgio ao Absurdo, ao qual nenhuma outra criatura sujeita exceto o homem (ibid., p. 34).82 No Anti-White, Hobbes comenta que a filosofia primeira lida com os conceitos de essncia,matria, forma, quantidade, o finito, o infinito, qualidade, causa, efeito, movimento, espao, tempo,lugar, vcuo, unidade [unum], nmero e todas as outras noes que Aristteles discute, em parte, nosoito livros de suas Leituras sobre a fsica e, em parte, nos outros livros que foram subsequentementechamados de Tn met t physik (foram estes ltimos que deram Philosophia prima seu nome atual:Metafsica) (traduo livre de HOBBES, 1976, p. 23-4). Com isto, ele aponta para o fato de que otermo metafsica, originalmente, no significava o estudo do sobrenatural, mas apenas destes conceitosbsicos para se trabalhar a filosofia. Mas as Universidades tratam-nos [viz., os livros da metafsica deAristteles] como os Livros da Filosofia sobrenatural (HOBBES, 1991a, p. 463). 83 Cf., HOBBES, 1839a, p. 81.84 Traduo livre de WESTERHOF, 2005, p. 9. Categorias ontolgicas revelam-se no como ascoisas fundamentais que existem no mundo, mas maneiras fundamentais de como o sistematizamos(ibid., p. 207). A palavra ontologia derivada de (t n), que o particpio neutro de (im eu sou), cujo foma genitiva (ntos), e de (lgos). O significado literal da disci-plina, portanto, investigao do que h. Correntemente, ontologia utilizada principalmentecom dois sentidos: a) uma disciplina filosfica que estuda o Ser e uma parte da metafsica; b) umateoria que trabalha com tipos de entidades, especificamente, os tipos de entidades abstratas que sopermitidas em uma linguagem (ontologia como uma especificao de uma conceitualizao). Osentido b tornou-se amplamente utilizado, sobretudo em reas ligadas inteligncia artificial e cincia da computao (traduo livre de VALORE, 2006, p. 11). Como veremos, a philosophiaprima de Hobbes enquadra-se nesta segunda concepo de ontologia e ele parece deixar isto claro

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  • Introduo 32

    1.4.3Desconstruindo Hobbes

    Para entendermos a philosophia prima de Hobbes, a desconstruo de

    Derrida pode ser-nos til, pois James Martel, aps afirmar a caracterstica autorre-

    flexiva de Leviathan e a forma pela qual ele orienta e instrui sua prpria leitura,

    comenta que: a questo no simplesmente demonstrar que Leviathan pode ser

    desconstrudo; pode-se afirmar isto de qualquer texto. Ao contrrio, veremos que

    Leviathan um texto que aponta e facilita sua prpria desconstruo85. Com isto,

    segundo Martel, Hobbes convida-nos a subverter sua prpria autoridade textual

    e, por consequncia, a autoridade do soberano nacional86.

    Esta afirmao pode soar como uma heresia para as interpretaes mais

    ortodoxas da obra de Hobbes, mas acreditamos que a partir disto que poderemos

    chegar a uma leitura de sua obra que no apenas possa ter aplicaes para os

    regimes democrticos, mas tambm ir alm desta leitura, oferecendo possibili-

    dades de resistncia. com esta leitura que podemos perceber Hobbes como um

    escritor radical, pois, simplesmente por uma leitura mais superficial de sua teoria

    da soberania, poderamos, sim, estabelec-la de forma democrtica, mas, se no

    fosse o caso de considerarmos ela um novo logos, ao menos seria algo puramente

    formal. Com esta resistncia, no entanto, Hobbes envia alertas para que no

    caiamos em meras utopias e faz-nos perceber que a democracia no mera forma-

    lidade, mas no em razo de um logos, mas por questes de potncia.

    claro que podemos enxergar tambm uma tenso na filosofia de Hobbes:

    ele prope apresentar-nos algo que explique as condies de sociedade e Paz

    entre os homens87 e f-lo propondo uma autoridade o Leviathan , por outro

    lado, porm, contesta vrias autoridades por meio de seu mtodo e tambm de

    uma boa retrica , fornecendo meios para desconstruirmos a prpria autoridade

    que prope; o que, para muitos, pode ser um paradoxo. Mas por isto que

    quando, aps oferecer uma categorizao, pondera o seguinte: eu no acredito que nenhum homempensar que apresento as formas acima como uma verdadeira e exata ordenao de nomes, pois istono pode ser feito enquanto a filosofia permanecer imperfeita []. Acredito que Aristteles, quandopercebeu que no poderia assimilar as coisas em si em tais ordens, desejou, no entanto, por fora desua autoridade, reduzir palavras a tais formas, como fiz. Mas eu somente a fiz com o intuito dedemonstrar o que significa esta ordenao e no para que a mesma seja tomada como verdade semque haja uma boa razo para tal (traduo livre de HOBBES, 2005, p. 28, grifos nossos). 85 Traduo livre de MARTEL, op. cit., p. 3.86 Ibid., p. 2.87 Traduo livre de HOBBES, 1998, p. 21.

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  • Introduo 33

    preciso resgatar a philosophia prima de Hobbes, pois ela revela que o filsofo

    tinha conhecimento do paradoxo.

    Este paradoxo, ao nosso ver, pode ser explicado pelo que Derrida chamou de

    diffrance88 ou trace89: algo que revela o que deixado de fora em qualquer sistema

    e, ao mesmo tempo, simboliza uma certa circularidade do prprio. Para ilustrarmos

    isto, imaginemos um dicionrio; ele define e prov os significados de palavras: estes

    significados, contudo, so definidos com base em outras palavras. Se fssemos at os

    limites desta concepo de definio, veramos que nada verdadeiramente definido

    em razo de uma circularidade, de uma petitio principii, que impede qualquer signifi-

    cao fora do sistema. No entanto, como veremos, toda transcendncia positivada

    pseudos. Assim, a diffrance aponta algo que precisa ser descoberto, nem que seja

    nossa prpria ignorncia.

    A utilizao de termos como trace, diffrance e at mesmo desconstruo

    podem suscitar algumas crticas no sentido de que Derrida estaria utilizando-se

    de noes arcanas, tais como os metafsicos. Na verdade, trata-se do contrrio,

    afinal, Derrida o grande opositor do logocentrismo90: No ponto que o conceito

    de diffrance [...] intervem, todas as oposies conceituais da metafsica [...]

    tornam-se impertinentes91. Assim, esta diffrance no pode ser vista como uma

    88 Conceito proposto por Derrida que uma mistura de diffrer diferir e defer adiar. umefeito de diffrance; um efeito inscrito no sistema de diffrance. por isto que o a de diffrancelembra que o espaamento temporizao, um desvio e adiamento pelos meios, quais, a intuio,percepo, consumao em uma palavra, a relao com o presente, a referncia presente reali -dade, para um ser sempre adiada [deferred]. Adiada pela mesma virtude do princpio de dife-rena, que garante que um elemento funciona e significa, tem ou transmite significado, somente sereferindo a outro elemento passado ou futuro na economia de traos (Traduo livre deDERRIDA, 1976, p. 28-9). 89 Por que traos? [] Este conceito pode ser chamado de gram ou diffrance. O jogo das dife-renas, na realidade, supe snteses e referncias que probem que, em qualquer momento ou emqualquer sentido, um simples elemento esteja presente em si e por si, referindo-se somente a simesmo. Seja na ordem do discurso falado ou escrito, nenhum elemento pode funcionar como umsinal sem se referir a outro elemento, o qual, simplesmente, no se encontra presente. Este entrela-amento resulta em cada elemento fonema ou grafema , sendo constitudo na base do traodentro dele de outros elementos da cadeia sistmica. Nada, seja entre os elementos ou dentro dosistema, h qualquer coisa simplesmente presente ou ausente. Este entrelaamento, este txtil, otexto produzido somente na transformao de outro texto. H somente, em todos os lugares, dife-renas e traos de traos (traduo livre de DERRIDA, 1981, p. 26). 90 Derrida crtico da concepo de Saussure sobre a escrita, chamando-a de logocentrismo ametafsica da escrita fontica (ibid., p. 3). O logocentrismo seria solidrio com a determinaoda entidade do ser como presena (ibid. p. 12, grifos nossos). Trataremos do conceito metafsicode ser no captulo seguinte. O importante, neste momento, sabermos que o conceito intrinseca-mente associado ao Logos e que, com presena, Derrida no est referindo-se apenas ao conceitofsico, mas fala de uma presena enquanto eternidade, ou seja, em um sentido transcendental.91 Traduo livre de DERRIDA, 1981, p. 29. A desconstruo principalmente dirigida contra oque Derrida chamou de metafsica da presena ou logocentrismo; por este termo ele quer dizer atradio dominante da filosofia ocidental e da lgica sobre a qual se funda (traduo livre deMALPAS & WAKE, 2006, p. 171).

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  • Introduo 34

    categoria, no sentido metafsico do termo; ao contrrio, o que no pode ser

    apropriado pelo logocentrismo: como aponta Derrida, [n]o h essncia de diff-

    rance: ela tanto o que no pode ser apropriado no como tal de seu nome ou de

    sua apresentao, mas tambm o que ameaa a autoridade do como tal em geral,

    da presena da coisa em si em sua essncia92.

    Uma forma de elucidar as concepes do filsofo francs perceber as seme-

    lhanas com o pensamento de outros filsofos e at pensadores de outras reas,

    como o caso de Kurt Gdel, o qual Derrida cita nominalmente93. O matemtico

    austraco acabou com o sonho de Hilbert de formalizar toda a matemtica, estabele-

    cendo os dois teoremas da incompletude, os quais so aplicveis a qualquer sistema

    finitrio, como posteriormente provou Turing94. Como explica Newman:

    Uma forma de pensarmos sobre isto [viz., a indeterminao, incompletude e instabili-dade dos sistemas] por meio do teorema da incompletude de Gdel, o qual afirmaque, em qualquer domnio da matemtica, haver sempre certas proposies que nopodem ser verificadas usando os prprios axiomas deste sistema de modo que preci-samos sair dele, criando outros cada vez maiores [viz., metassistemas]. Colocando aquesto de forma simples, no pode haver nenhum sistema ou estrutura que sejafechado, completo e autocontido, pois haver sempre elementos dentro do sistemacuja identidade s pode ser estabelecida por algo fora dele. A estrutura, portanto, spode ser mantida por um elemento estrutural que permanece fora dela e incomen-survel em relao a ela. Este elemento, contudo, no deve ser visto como uma iden-tidade essencial ou um ponto metafsico de partida que emerge para alm da estru-tura: ao contrrio, deve ser visto como um limite interno da prpria estrutura. algoque existe, paradoxalmente, fora e dentro da estrutura, e o ponto no qual a identi-dade , ao mesmo tempo, constituda e desestabilizada.95

    92 Traduo livre de DERRIDA, 1982, p. 25. Entendamos como tal como uma referncia coisa em si.93 Uma proposio indecidvel, como Gdel demonstrou em 1931, uma proposio que, dado umsistema de axiomas governando uma multiplicidade, no nem analtica nem uma consequnciadedutiva destes axiomas, no uma contradio com eles nem falsa ou verdadeira em relao a estesaxiomas. Tertium datur, sem sntese(traduo livre de DERRIDA, 1970, p. 219).94 Hilbert afirmava que, [n]a matemtica, no h ignorabimus; ao contrrio, estamos sempre aptosa responder questes significativas; e, com isto, estabelece-se, como talvez antecipou Aristteles, quenossa razo no envolve nenhuma espcie de arte misteriosa: ao contrrio, procede de acordo comregras formulveis que so completamente definidas, sendo assim, a garantia da absolutaobjetividade do nosso julgamento (TURING, 2004, p. 56). Porm, [i]nfelizmente para o programade Hilbert, [...] logo tornar-se-ia claro que os mais interessantes sistemas matemticos so, seconsistentes, incompletos e indecidveis (ibid., p. 56). Isto decorre do primeiro teorema daincompletude, descoberto por Kurt Gdel, que postula, para o sistema aritmtico, que, se o sistema consistente h proposies aritmticas verdadeiras que no so provveis dentro do prprio sistema o sistema falha em capturar o contedo inteiro do pensamento aritmtico (ibid. p. 56-7).Posteriormente, com base no trabalho de Gdel, Alan Turing generalizou seu teorema, afirmando quea incompletude pode ser provada rigorosamente para cada sistema formal consistente contendo umcerto nmero de teoria dos nmeros finitria (ibid., p. 57).95 Traduo livre de NEWMAN, 2005, p. 6-7, grifos nossos, exceto o ltimo. No mesmo sentido:Dado isto, possvel especificar a analogia entre os resultados de Gdel a indecidibilidadedesconstrutiva em, pelo menos, dois pontos significantes. Primeiro, ambos tratam [...] da capacidadede um sistema total de signos, dirigido ao estabelecimento da verdade ou manuteno da presena,em representar suas prprias condies constitutivas de possibilidade; em apontar as bases das distin-es centrais que organizam o prprio sistema. [...] Desta forma, em cada caso, o sistema atinge uma

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  • Introduo 35

    O que encontramos tanto em Derrida quanto em Gdel no parece ser muito

    diferente do que vemos na filosofia de Hobbes: ele afirma que da lgica s podemos

    extrair contedos analticos como, no citado exemplo, o homem um ser vivo96 ,

    mas que, no entanto, estes contedos analticos baseiam-se, em ltima instncia, em

    estipulaes arbitrrias. o que aponta Hans Albert quando afirma que:

    Pela deduo lgica nunca se pode obter um contedo [sc., sinttico]. [] De umprocesso dedutivo, s se pode tirar, atravs do processo dedutivo, a informao quej est contida nele. [] Isto significa [] que enunciados de contedo no podemser deduzidos de enunciados analticos. [] Um argumento dedutivo nada diz sobrea verdade de seus argumentos, e isto quer dizer exatamente: em um tal argumentotodos os componentes podem ser falsos, as premissas tambm podem ser todas ouem parte falsas, e as concluses verdadeiras ou falsas; apenas um caso no podeocorrer: que premissas totalmente verdadeiras dem origem a concluses falsas.97

    Isto significa que, de um sistema de smbolos, s se extrai smbolos e, no

    final de tudo, aps se extrair a ltima definio estipulada arbitrariamente, s

    restar traces et diffrances, estes que, por sua vez, apontam para algo que est

    fora: ou para algo emprico isto , algo sinttico98, mas no a priori, pois, como

    define Kant, o emprico , por definio, o a posteriori99; ou para algum metassis-

    tema: eis porque um sistema, para ser completo, precisa ser infinito, mas real-

    mente infinito em informao, tal como a Biblioteca de Babel de Borges100.

    espcie de autorreferncia total: uma codificao em um ponto singular da lgica completa quegoverna a integralidade do sistema, assim como o prprio ponto. Isto equivale demonstrao daincompletude essencial do sistema em questo; da existncia necessria de pontos ou sentenas [...]que no podem ser decididas em termos do prprio sistema. [...] Segundo, em ambos os casos, oresultado pode ser generalizado (traduo livre de LIVINGSTON, 2010, p. 225-6).96 E isto que Kant chama de julgamento analtico, como no exemplo que d: todos os corposso extensos (traduo livre de KANT, op. cit., p. 130), ou seja, o conceito de extenso estcontido no de corpo: coisa extensa.97 ALBERT, 1976, p. 25.98 Kant afirma que [j]ulgamentos analticos (afirmativos) so aqueles nos quais a conexo [viz.,entre o sujeito e o predicado] estabelece-se por identidade, mas aqueles nos quais a conexoestabelece-se sem identidade so chamados de sintticos (traduo livre de KANT, op. cit., p.130). Neste momento, precisamos fazer uma ressalva: estamos aplicando estas distineskantianas ao pensamento de Hobbes apenas para traar uma simetria entre os dois filsofos, pois,se pararmos para pensar, o conceito de sinttico no faz nenhum sentido dentro do pensamentoHobbesiano (como ficar claro em nosso captulo seguinte). Para o conceito funcionar, ele precisaestar inserido em uma forma de pensar categrica essencialista, porque Kant afirma que opredicado no est contido no sujeito, pois se presume que o sujeito possui uma essncia distintadeste predicado, como se pode ver no exemplo que o prprio d: [t]odos os corpos so pesados(ibid., p. 130). Como se presume que ser pesado no est contido na essncia de corpo, aproposio sinttica. Ora, se novamente pararmos para pensar, veremos que uma proposiodeste tipo s pode ser contingente, no sentido que no afirma uma universalidade ou seja, porexemplo, este corpo pesado ou h um corpo que pesado , pois, no momento em que seafirmar algo nos moldes de todo x y i.e., x(xy) , dentro da forma de pensar essencialista,ter-se- estabelecido uma identidade. No toa, esta distino kantiana enormemente criticadapor pensadores de diversas reas, que vo desde o filsofo W. V. O. Quine (cf., QUINE, 1961, p.20-46) ao fsico Werner Heisenberg (cf., HEISENBERG, 1958, p. 86-92). 99 Cf., ibid., p. 127.100 Cf., BORGES, 1996, p. 465-471.

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  • Introduo 36

    Assim, a tenso filosfica em Hobbes explica-se pelo fato de, ao formular o

    que chamou de philosophia prima, aproximar-se mais de uma teoria como a

    desconstruo, que poderamos chamar de ps-estruturalista, mas, ao construir

    sua teoria poltica, parece voltar a uma metodologia estruturalista101. Podemos

    estabelecer esta comparao a partir do que Newman descreve:

    Central para o estruturalismo a ideia que a experincia ou a realidade estrutu-rada primariamente por meio de relaes de linguagem. [] A virtude do estrutura-lismo foi evitar entendimentos essencialistas, pelos quais a identidade e a experi-ncia eram vistas como fundadas em uma substncia ou realidade objetivamenteinteligvel [] a coisa em si. O estruturalismo demonstrou que no havia algocomo uma coisa em si, e o que realmente importava era como a identidade e aexperincia eram determinadas por uma estrutura externa. O problema desta abor-dagem, porm, era que a estrutura era to totalizante e determinante que poderia servista ela mesma como uma espcie de essncia. [] Em outras palavras, o estrutu-ralismo apenas trocou a fundamento absoluto da metafsica pelo fundamento abso-luto da estrutura. [] O ps-estruturalismo no rejeita o estruturalismo per se, aocontrrio disto, radicaliza-o. Em outras palavras, no rejeita o insight fundamentaldo estruturalismo, que o fato das identidades serem construdas discursivamentepor meio de relaes externas de linguagem: ele no retorna a um essencialismopr-estruturalista. Ao contrrio, podemos dizer que o ps-estruturalismo leva oestruturalismo sua concluso lgica: para evitar a acusao de essencialismo efundamentalismo que foi feita ao estruturalismo, a unidade, a consistncia e aestabilidade da prpria estrutura precisa ser questionada 102.

    Como vimos e continuaremos a ver nos prximos captulos, Hobbes compar-

    tilha deste insight fundamental estruturalista, mas radicaliza rumo a uma desestabi-

    lizao das estruturas, at atingir algo similar a uma diffrance. Ao construir sua

    teoria poltica, no entanto, d um passo atrs e trabalha de forma estruturalista,

    estabelecendo dicotomias ou oposies binrias103, que, como tais, podem ser

    desconstrudas. Porm, acreditamos que a resoluo deste suposto paradoxo

    explica-se pelo que afirmamos anteriormente: as categorias polticas de Hobbes

    devem ser entendidas como categorias de sistematizao e no como ontolgicas

    no sentido metafsico do termo. Assim, o paradoxo resolve-se no como uma

    negao de um pensamento estruturado pois no acreditamos que se possa racio-

    cinar de forma diferente104 , mas com uma percepo de que a estrutura que se

    101 O que, obviamente, afirmamos como uma analogia, pois, vivendo cerca de trs sculos antes,Hobbes jamais poderia fazer parte de um movimento estruturalista102 Traduo livre de NEWMAN, op cit., p. 4-5.103 Termo fundamental para o estruturalismo, pois estruturas so formadas por padrescomplexos de diferenas funcionais pareadas (traduo livre de HAWKES, 2003, p. 12). Hawkescomenta que, como apontam Roman Jakobson e Morris Halle, o discernimento de oposiesbinrias a primeira operao lgica de uma criana, e nesta operao que vemos a intervenoprimria e distintiva da cultura na natureza; H, assim, nesta capacidade para criar e perceberopostos pareados ou binrios [], indcios para reconhecermos uma fundamental e caractersticaoperao da mente humana. esta operao que cria estruturas (ibid., p. 12-3).104 Como aponta Spencer-Brown em seu clssico Laws of Form, a primeira injuno para se

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  • Introduo 37

    forma apenas um mapa e o mapa no o territrio105. Assim, mais a questo

    de um olhar106 que se lana s coisas do que uma mera rejeio do Logos, o que,

    por si s, pode tornar-se tambm um outro logos, s que do avesso107.

    1.4.4Questo de retrica

    Nossa leitura de Hobbes ser feita a partir desta perspectiva desconstrutivista, a

    qual utilizamos para atualizar o prprio mtodo hobbesiano. Fazemos isto com o

    intuito de desvendar a relao entre a autoridade hobbesiana e sua desconstruo.

    Mas a retrica possui um papel importante na obra do filsofo ingls, como aponta

    Quentin Skinner, um dos primeiros a apontar este aspecto da obra de Hobbes108. O

    prprio Hobbes, praticamente confessa a existncia de aspectos retricos de seu

    texto, quando pede aos seus leitores no prefcio de De Cive que:[T]enham pacincia se encontrarem argumentos pouco certos ou expressos rispi-damente, pois no so as palavras de um partisan, mas de algum que possuipaixo pela paz, cujo pesar pela calamidade presente de seu pas merece, razoa-velmente, alguma indulgncia.109

    construir alguma teoria [t]race uma distino (traduo livre de SPENCER-BROWN, 1979, p.3). Segundo este autor, [d]istino uma continncia perfeita. [...] Isto quer dizer que umadistino traada por meio de um limite que separa dois lados de modo que um ponto em umlado no pode atingir o outro lado sem cruzar este limite. [...] Uma vez que uma distino traada, os espaos, estados ou contedos de cada lado do limite podem ser indicados. [...] Nopode haver distino sem motivo, e no pode haver motivo sem que os contedos tenham valoresdiferentes (ibid., p. 1). Falamos injuno, pois, segundo Spencer-Brown, a forma primria decomunicao matemtica no a descrio, mas a injuno. Neste respeito, comparvel comformas de artes prticas como cozinhar (ibid., p. 77). As afirmaes de Spencer-Brown corro-boram com o que pensa Hawkes na nota acima. Acreditamos, no entanto, que a ideia de distinode Spencer-Brown deve ser interpretada a partir da epgrafe de sua obra: (ibid., p.xxxii), a qual extrada do primeiro captulo do Tao Te Ching (cf., LAOZI, 1842, p. 1) e guardauma profunda relao com a filosofia hobbesiana; o significado no princpio do cu e da terrano havia nomes, e podemos interpretar nomes como distines. De certa forma, esta afirmao o oposto do primeiro verso do Evangelho de Joo no princpio era o Logos , que apresentamoscomo a primeira epgrafe deste captulo. Sendo assim, se Hawkes interpret