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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
LGICA DA ALTERIDADE DE HEGEL:
Uma leitura lgica da figura do Senhor e do Servo segundo P.-J. Labarrire
Aluno: Andr Oliveira Costa Orientador: Prof. Dr. Agemir Bavaresco
Porto Alegre 2008
ANDR OLIVEIRA COSTA
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LGICA DA ALTERIDADE DE HEGEL:
Uma leitura lgica da figura do Senhor e do Servo segundo P.-J. Labarrire
Dissertao apresentada banca examinadora do Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia, sob orientao do Prof. Dr. Agemir Bavaresco.
Porto Alegre 2008
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ANDR OLIVEIRA COSTA
LGICA DA ALTERIDADE DE HEGEL:
Uma leitura lgica da figura do Senhor e do Servo segundo P.-J. Labarrire
Dissertao apresentada banca examinadora do Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia, sob orientao do Prof. Dr. Agemir Bavaresco.
BANCA EXAMINADORA:
___________________________________________
Prof. Dr. Agemir Bavaresco (orientador)
Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
___________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Luft
Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
___________________________________________
Prof. Dr. Jos Pinheiro Pertille
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
4
Para Fernanda
5
AGRADECIMENTOS
Agradeo apoio institucional do Programa de Ps-Graduao em Filosofia da
PUC-RS.
Ao Prof. Agemir Bavaresco pela orientao, sem a qual eu no teria as
condies para alcanar os resultados deste trabalho.
Ao Prof. Eduardo Luft, pelas colaboraes no desenvolvimento deste trabalho.
Ao Ncleo de Estudos Hegelianos (NEHGL) e especialmente ao Prof. Jos
Pertille, pelo acolhimento nesta minha insero na Filosofia, pela abertura dos dilogos
e pela atenta leitura deste texto.
Ao meu colega de mestrado, Emanuel Ezeifert, pela amizade construda ao
longo do curso e pelas discusses, cuja seriedade e comprometimento auxiliaram-me no
desenvolvimento deste trabalho.
Aos amigos da Clnica de Atendimento Psicolgico da UFRGS, cujo entusiasmo
e amizade me estimulam a seguir, com eles, sempre em frente.
Por fim, este trabalho, a quem dedico, no seria possvel sem o apoio e o
incentivo fundamentais de minha famlia: meu pai, Antnio Carlos, minha me, Maria
Elisabeth, e minha irm, Juliana.
6
RESUMO
Este trabalho tem como temtica central o estatuto da alteridade dentro da Filosofia de Hegel. Pretende-se compreender a Filosofia hegeliana atravs da alteridade como conceito fundamental para sua estrutura. Trataremos, portanto, de verificar como a Filosofia hegeliana, ao contrrio do que afirmam os crticos da totalidade, est afastada do modelo da Identidade e prxima ao que denominado de modelo da Identidade da Identidade e da diferena, visto que nesta a alteridade no anulada, mas suprassumida (negada, conservada e elevada). Para tanto, nos apoiaremos na leitura de Labarrire sobre a alteridade em Hegel, diferenciando esta posio das da Kojve e Hyppolite. A Filosofia de Hegel, para Labarrire, apresenta o silogismo que leva a unidade diferena de seus extremos (imediatidade imediata e imediatidade mediada). Para isso, entretanto, faz-se necessria a presena do termo mdio como funo reflexiva. Assumimos a compreenso assumida por Labarrire de que tambm h uma lgica por trs da conscincia. Nosso trabalho, dessa forma, ao delimitar o tema da alteridade na esfera da subjetividade, pretende verificar o estatuto deste conceito na figura do Senhor e do Servo. A lgica que est por trs da Fenomenologia do Esprito apresenta as categorias da Cincia da Lgica. Assim, tomaremos a figura do Senhor e do Servo como momento lgico correspondente lgica da Essncia. Nesta figura, encontramos a passagem de uma relao da conscincia com o mundo para uma relao intersubjetiva, isto , a conscincia toma reflexivamente outra conscincia como objeto. Para Hegel, a formao de uma autoconscincia s pode ocorrer pela situao de intersubjetividade. A constituio de uma alteridade subjetiva e o reconhecimento do outro como igual, portanto, necessria para a emergncia da autoconscincia.
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ABSTRACT
This work has as its central them the status of the concept of alterity in the Hegels philosophy. We intend to understand Hegels philosophy through the concept of alterity thought of as a fundamental concept in its structure. We will attempt, then, to verify how Hegels philosophy, contrary to what say the critics of the concept of totality, is far away from the model of Identity and quite close to what is called the model of the Identity of the Identity and difference, given that the alterity is not cancelled, but supersede (negate, preserve and suspend). For that, we will take as our cornerstone Labarrires readings of the concept of alterity in Hegel, differentiating his position from those of Kojve and Hyppolite. Hegels philosophy, for Labarrire, presents the syllogism that takes the unity to the difference of its extremes (immediate immediaticity and mediated immediaticity). For that, however, it is necessary that a medium term becomes present as a reflexive function. We accept Labarrires understanding that there also is a logic underlying consciousness. Our work, thus, while circunscribing the them of alterity to the sphere of subjectivity, intends to verify the status of that concept within the figure of the Master and the Slave. The logic that underlies the Phenomenology of the Spirit presents the categories of the Science of Logic. Thus, we take the figure of the Master and the Slave as a logical moment corresponding to the logic of the Essence. In that figure, we find the passage from a relation of the consciousness with the world to an intersubjective relation, where consciousness takes reflexively another consciousness as an object. For Hegel, the formation of a consciousness can only happen in a situation of intersubjectivity. The constitution of a subjective alterity and the recognition of the other as an equal, thus, is necessary for the emergence of the self-consciousness.
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SUMRIO
INTRODUO............................................................................................................ 09 1 ESTATUTO LGICO DA ALTERIDADE HEGELIANA......................... 14 1.1 POSIES FILOSFICAS DA ALTERIDADE.......................................... 16 1.1.1 Alteridade no pensamento filosfico.................................................................. 19
a) Alteridade Abstrata......................................................................................... 19 b) Alteridade Dialtica........................................................................................ 21 c) Alteridade Especulativa.................................................................................. 23
1.1.2 Alteridade no Sistema hegeliano........................................................................ 27 1.2 ALTERIDADE NA CINCIA DA LGICA................................................... 33 1.2.1 Alteridade imediata da Doutrina do Ser............................................................. 42 1.2.2 Alteridade exterior da Doutrina da Essncia...................................................... 44 1.2.3 Alteridade objetiva da Doutrina do Conceito..................................................... 47 1.3 ALTERIDADE NA LGICA DA REFLEXO............................................ 49 1.3.1 A reflexo ponente.............................................................................................. 51 1.3.2 A reflexo exterior.............................................................................................. 52 1.3.3 A reflexo determinante...................................................................................... 54
2 ESTATUTO FENOMENOLGICO DA ALTERIDADE HEGELIANA.. 56 2.1 MODELOS HERMENUTICOS DA FENOMENOLOGIA DO
ESPRITO.......................................................................................................... 57 2.1.1 Alexandre Kojve e o modelo dialtico-marxista............................................... 57 2.1.2 Jean Hyppolite e o modelo subjetivo/objetivo.................................................... 60 2.1.3 Pierre-Jean Labarrire e o modelo parte/todo..................................................... 62 2.2 LGICA POR TRS DA CONSCINCIA............................................... 67 2.2.1 Lugar da Fenomenologia do Esprito no Sistema de Hegel............................... 67 2.2.2 A lgica das figuras fenomenolgicas................................................................ 73 2.3 A ALTERIDADE NA EXPERINCIA DA CONSCINCIA...................... 80
3 ALTERIDADE DA CONSCINCIA E DA AUTOCONSCINCIA NA FENOMENOLOGIA DO ESPRITO.......................................................................... 90 3.1 ALTERIDADE OBJETIVA DA CONSCINCIA........................................ 92 3.2 ALTERIDADE SUBJETIVA DA AUTOCONSCINCIA........................... 98 3.2.1 O desejo e a emergncia da Alteridade Subjetiva............................................. 101 3.2.2 A lgica da alteridade da figura do Senhor e do Servo.................................... 106
a) O esquema lgico do reconhecimento.......................................................... 110 b) A luta de vida ou morte................................................................................ 114 c) A reflexo na figura do Senhor e o Servo..................................................... 119
CONSIDERAES FINAIS..................................................................................... 133 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..................................................................... 137
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INTRODUO
Poderamos afirmar que a Filosofia de Hegel independe da alteridade para o seu
desenvolvimento? possvel compreendermos a alteridade como um estatuto
fundamental para o pensamento hegeliano? Trata-se de perguntas que ingressam em
grandes discusses a respeito do pensamento de Hegel, assim como nas crticas que este
sofre por diferentes intrpretes. Se por um lado encontramos filsofos que
compreendem este conceito como um elemento suprimido da Filosofia de Hegel, por
outro lado, verificamos leituras mais prximas que o consideram um elemento
necessrio para o desenvolvimento da Filosofia Sistemtica de Hegel como um todo.
Dessa forma, nosso trabalho pretende investigar o estatuto da alteridade na
Filosofia de Hegel. Em que sentido poderamos falar em alteridade hegeliana? Haveria
propriamente um significado determinado deste conceito ou ele atravessaria o conjunto
de suas obras? Ora, nossa inteno verificar o estatuto da alteridade na Filosofia de
Hegel. Estamos compreendendo o termo alteridade a partir de sua semntica. De
acordo com o dicionrio Houaiss1, alteridade significa 1 - natureza ou condio do que
outro, do que distinto e 2 - situao, estado ou qualidade que se constitui atravs
de relaes de contraste, distino, diferena [(...), a alteridade adquire centralidade e
relevncia ontolgica na filosofia moderna (hegelianismo) e esp. na contempornea
(ps-estruturalismo).] Trata-se, segundo este dicionrio, de um termo que tem
etimologia na palavra francesa altrit, que significa alterao e mudana, e que
formado pelo radical latino alter, que indica um outro, outrem; outro, diferente; oposto,
contrrio. No Dicionrio Hegel, escrito por Inwood, tambm encontramos a alteridade
como um verbete, presente no item Identidade, diferena e alteridade.2 A identidade
em Hegel, segundo o autor, o antnimo da alteridade. Afirma ele: Mas o outro e
alteridade (Anderssein) so importantes do comeo ao fim da Lgica, e seu sistema
como um todo, por exemplo, autoconscincia e liberdade, consiste primordialmente em
suprassumir a alteridade. Nosso objetivo, neste trabalho, portanto, compreender o
estatuto do outro, ou melhor, da alteridade, na Filosofia de Hegel.
Para tanto, escolhemos uma das mais importantes passagens de seu pensamento,
a saber, a figura do Senhor e do Servo. Esta figura recebeu destaque de diversos
1 Cf. Dicionrio eletrnico Houaiss da lngua portuguesa, verso 1.0.10, maro de 2006. 2 Cf. Inwood, (1993). Dicionrio Hegel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 171.
10 comentadores, cada um interpretando-a sob diferente aspecto.3 Ela traz, dessa forma,
diversos significados que so utilizados em diferentes modos. Isto no significa, porm,
que represente a totalidade do pensamento hegeliano, mas que articula importantes
elementos desta Filosofia. Devido abrangncia de interpretaes sobre esta figura, as
discusses contemporneas divergem no enfoque dado a esta figura, assim como sobre
o tema da alteridade na Filosofia de Hegel. Axel Honneth, por exemplo, em sua
releitura contempornea e ps-metafsica atravs da publicao de Luta por
reconhecimento4, identifica dficits na argumentao de Hegel sobre o tema do
reconhecimento propriamente desenvolvido na figura do Senhor e do Servo da
Fenomenologia do Esprito. Para tanto, o autor retoma os textos anteriores a este
perodo de modo a afastar-se do fundamento metafsico que a Filosofia hegeliana
assume atravs da publicao deste livro e da Cincia da Lgica. Porm, acreditamos
que esta sua interpretao ps-metafsica de Hegel enquadra-se na posio que vai para
alm de Hegel, ou seja, j no se prende apenas aos conceitos desenvolvidos
internamente em sua estrutura filosfica, mas realiza um avano crtico de seu
pensamento. Mais recentemente, temos este tema do reconhecimento interpretado em
sua ligao com a filosofia de Fichte atravs da publicao do livro Fichte et Hegel. La
reconnaissance 5, de Fischbach, onde o autor identifica as origens do reconhecimento
proposto por Hegel na Filosofia de Fichte.
Nossa proposta foi recortar, dentro desta gama de leituras, trs interpretaes
que esto encadeadas histrica e filosoficamente, a saber, a de Alexandre Kojve, de
Jean Hyppolite e Pierre-Jean Labarrire. Trata-se de trs intrpretes da tradio francesa
do hegelianismo do sculo XX e que possuem diferentes perspectivas a respeito da
figura do Senhor e do Servo e da Filosofia de Hegel em geral. Ora, se nossa proposta foi
compreender o tema da alteridade na Filosofia de Hegel, e escolhemos esta figura como
o modelo no qual encontramos a expresso maior da alteridade subjetiva, deve-se ao
fato que esta a interpretao realizada por Labarrire, juntamente com Jarczyk, nas
recentes publicaes, dentre as quais De Kojve Hegel. 150 ans de pense hglienne
en France e Les premiers combats de la reconnaissance. Matrise et servitude dans la
Phnomnologie de lEsprit de Hegel. Nossa proposta, portanto, acompanhar a
interpretao de Labarrire sobre o estatuto da alteridade na Filosofia de Hegel, assim
como a nfase dada pelo autor expresso da alteridade na figura do Senhor e do Servo.
3 Para as diferentes interpretaes da figura do Senhor e do Servo, e dos temas do desejo e reconhecimento, ver a coletnea de textos como, por exemplo, de Marx, Kojve, Sartre, Lukcs, Habermas, Gadamer e Siep, em ONeill (1996). 4 Cf. Honneth, (1992). Luta por Reconhecimento. So Paulo: Editora 34, 2003.
11 Para tanto, utilizaremos as obras originais em francs publicadas por este autor, devido
ausncia de traduo para o portugus. Todas as tradues deste autor que sero
realizadas neste trabalho, portanto, so livres e feitas por ns. Ao longo deste trabalho
vamos situar algumas diferenas existentes entre essas trs posies sobre Hegel.
Estaremos, porm, mais prximos da leitura de Labarrire. Este filsofo
enquadra-se numa leitura Metafsica de Hegel, ou seja, considera que a Cincia da
Lgica, obra de cunho metafsico, encontra-se presente nas partes constituintes da
estrutura do Sistema Filosfico hegeliano. Assumindo, ento, a leitura de Labarrire,
traduziremos os conceitos hegelianos de acordo com as tradues propostas por este
autor. Isto tambm justifica nosso afastamento das leituras de Kojve e Hyppolite, pois
entendemos que o sentido dado traduo dos conceitos hegelianos por estes autores
carrega a forma como eles se posicionam em relao a esta Filosofia. O termo
Aufhebung, utilizado por Hegel em todas suas obras, por exemplo, traduzido por
Kojve6 pelo termo supresso. Hegel claro ao avisar que o termo Aufhebung possui
trs sentidos, de acordo com a prpria utilizao desta palavra no uso ordinrio da
lngua alem, a saber, o de negar, de conservar e de suspender/levantar. A traduo para
o termo supresso e suas concordncias, a nosso ver, acarreta perda de sentido do
conceito original. Alm disso, Kojve realiza uma leitura antropolgica da
Fenomenologia, que vai alm da proposta de Hegel, ao compreender a gnese da
humanidade, enquadrando-se, portanto, nos filsofos hegelianos que ultrapassam a
Filosofia de Hegel para desenvolverem pensamentos prprios.
Seguiremos, dessa forma, a traduo de Aufhebung proposta por Labarrire pelo
termo francs Sursumer (aufheben) e Sursomption (Aufhebung). Como correspondente
traduo portuguesa deste termo, adotamos a traduo do verbo aufheben pelo
neologismo suprassumir. Concordamos, portanto, com a opo feita por Paulo
Meneses e Jos Machado na traduo da Enciclopdia das Cincias Filosficas e da
Fenomenologia do Esprito. Ns sabemos a significao complexa deste termo, que
precisaria ser traduzido pela trade: negar, conservar e elevar. A propsito, Labarrire
afirma que o termo aufheben carrega, ao mesmo tempo, significao positiva e negativa:
conservar ao nvel da verdade suprimindo o que permanece ainda inacabado. Segundo o
autor:
A derivao etimolgica apia-se sobre o modelo assumir-assuno. A semntica do palavra corresponde ao antnimo de subsuno que se
5 Cf. Fischbach, (1999). Fichet et Hegel. Paris: PUF. 6 Cf. Kojve, (1947). Introduo leitura de Hegel. Rio de Janeiro: EDUERJ-Contraponto, 2002.
12
encontra em Kant. A suprassuno define, portanto, uma operao contrria aquela da subsuno, a qual consiste em colocar a parte em ou sob a totalidade; a suprassuno - Aufhebung- designa o processo da totalizao da parte.7
Labarrire nos d um exemplo para explicar o termo suprassuno, em que ele
acentua a prevalncia do aspecto positivo no processo de negar-conservar-elevar. O
trabalho domstico que consiste em conservar um alimento - um fruto, por exemplo -
fazemos com que ele passe por uma transformao, isto , negando-o na sua forma
imediata de subsistir e elevando-o, de tal modo, a um estado que permite precisamente
sua conservao. em funo desta primazia do positivo que o termo pode ser retido
para significar a essncia da discursividade reflexiva. Seguindo tambm a traduo de
Labarrire, utilizaremos para o termo Selbstbewusstsein a traduo de autoconscincia,
o qual ser justificado mais adiante em nosso texto, assim como para os termos Herr e
Knecht, para senhor e servo, e Herrschaft e Knechtschaft, para dominao e servido,
respectivamente, as quais tambm sero justificadas no desenvolvimento do texto.
Esta dissertao, portanto, apresenta a argumentao de Labarrire sobre sua
leitura da Filosofia de Hegel. A compreenso de uma anotao que este filsofo realizou
pouco antes de morrer, ao iniciar inconclusamente a reviso da Fenomenologia, sobre a
lgica por trs da conscincia, segundo Labarrire, sustenta-se na relao que esta
obra mantm com a Cincia da Lgica. Portanto, segundo o autor, haveria uma Cincia
da Lgica por trs da Fenomenologia do Esprito conduzindo o desenvolvimento da
conscincia em sua formao. justamente este paralelo que nos permitir articular o
tema da alteridade nestas duas obras. Assim, se a alteridade, segundo Labarrire, tem
sua expresso mxima na Doutrina da Essncia, e esta apresenta a reflexo como o
princpio que organiza a figura do Senhor e do Servo, ento, vamos buscar compreender
tambm esta figura como expresso da alteridade, mas no mbito fenomenolgico.
Partiremos, ento, da compreenso da alteridade na sua forma pura expressa no
pensamento lgico. De que forma o estatuto da alteridade encontra-se presente na
Lgica de Hegel e em sua Filosofia Sistemtica? Como se d o desenvolvimento do
pensamento em sua relao com sua alteridade? E a Filosofia de Hegel, possvel
diferenci-la das outras Filosofias a partir do tema da alteridade? Estas perguntas
tentaro ser respondidas no primeiro captulo desta dissertao.
7 Labarrire, (1968). Structures et mouvement dialectique dans la Phnomnologie de lEsprit de Hegel. Paris: Aubier, 1985, p. 309. Cf. tambm Labarrire & Jarczyk, (1986). Hegeliana. Paris: PUF, 102ss e Phnomnologie de lEsprit. Paris, 1993, Gallimard, p. 58. Cf. tambm Hegel. Cincia da Lgica. Trad. de Labarrire & Jarczyk. v. I, Paris, Aubier, 1972, p. 25.
13
No segundo captulo, por sua vez, o tema da alteridade entrar no mbito
fenomenolgico. Em nossa inteno de compreendermos a lgica da alteridade que se
encontra por trs da conscincia iremos passar para a diferenciao da posio de
Labarrire em relao s de Kojve e Hyppolite, de modo a sustentar a hiptese que
estes autores no consideram a alteridade como um elemento importante da Filosofia de
Hegel. Do mesmo modo, sero diferenciadas suas posies a respeito da relao que a
Fenomenologia mantm com a Cincia da Lgica, pois a partir disto que poderemos
desenvolver a anlise do processo subjetivo da alteridade no percurso da conscincia.
Porque, ento, escolhemos justamente a figura do Senhor e do Servo para
compreender o estatuto fenomenolgico da conscincia? Esta pergunta ser respondida
ao longo do terceiro captulo atravs da diferenciao da Alteridade Objetiva e a
Alteridade Subjetiva, propriamente das sees Conscincia e Autoconscincia, assim
como pelo sentido que cada seo assume em relao ao todo da Fenomenologia.
Nosso entendimento, portanto, o de que a importncia da figura do Senhor e do
Servo justificada a partir de sua considerao ao todo da obra. Finalmente, portanto,
pretenderemos trabalhar a lgica que se encontra por trs da figura do Senhor e do
Servo. Nossa inteno, ento, acompanharmos a aproximao do princpio lgico
organizador da Lgica e desta estrutura fenomenolgica.
14
1 ESTATUTO LGICO DA ALTERIDADE HEGELIANA.
Este captulo tem como objetivo estudar o modelo da alteridade do Sistema
Filosfico de Hegel. Partiremos da interpretao de Labarrire da unidade entre as
partes deste Sistema, de modo que cada obra encontra-se articulada com as demais,
formando uma totalidade coerente. Assim, as trs obras principais deste Sistema8, a
saber, a Cincia da Lgica, a Fenomenologia do Esprito e a Enciclopdia das Cincias
Filosficas, formam, segundo este autor, os pilares que organizam e do unidade ao
Sistema hegeliano. Ora, considera-se, ento, que no h autonomia de alguma parte do
Sistema filosfico em relao a outras, mas cada uma possui sua funo especfica para
o desenvolvimento do todo do pensamento hegeliano. Atravs da leitura de Labarrire
sobre a unidade do Sistema hegeliano, partiremos da posio crtica de Hegel a respeito
da Metafsica Clssica e da Filosofia de Kant para diferenci-las da posio de seu
pensamento especulativo, segundo os trs momentos lgico-reais (o abstrato, o dialtico
e o especulativo) apresentados entre os 79 e 83 da Enciclopdia.
Segundo Hegel, sua Filosofia encontra-se organizada de maneira sistemtica, na
qual se verifica uma estrutura circular formada por seus elementos. Assim, o fim e o
princpio identificam-se entre si, de modo que o verdadeiro o vir-a-ser de si mesmo,
o crculo que pressupe seu fim como sua meta, que o tem como princpio, e que s
efetivo mediante sua atualizao e seu fim.9 A identificao entre os extremos do
Sistema princpio e fim , entretanto, s ocorre pelo processo de mediao e no de
modo imediato. Dessa forma, para Hegel, a unidade de sua Filosofia organiza-se
conforme o desenvolvimento lgico de mediao e reflexo entre seus termos. Nossa
proposta, neste captulo, estudar a alteridade nesta estrutura lgica da Filosofia
hegeliana.
Para tanto, partiremos, na primeira seo, da diferenciao que Hegel prope de
seu pensamento filosfico em relao s Filosofias anteriores. Assim, iremos investigar,
atravs da Introduo da Cincia da Lgica e do primeiro volume da Enciclopdia, o
afastamento filosfico de Hegel sobre a posio da Metafsica Clssica e da Filosofia
Crtica de Kant. Este recorte possibilita-nos compreender a alteridade no pensamento de
Hegel segundo sua definio de Filosofia especulativa. Ao considerar a Metafsica
8 O livro Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito representa o desenvolvimento de uma parte destacada da Enciclopdia, que trata sobre o Esprito Objetivo, e, por isso, inclui-se neste pilar como obra fundamental do Sistema Filosfico hegeliano. Ver em Labarrire & Jarczyk, 1987, p. 13 e Labarrire & Jarczyk, 1986, p. 22. 9 Hegel, (1807). Fenomenologia do Esprito. Traduo de Paulo Meneses. Petrpolis: Editora Vozes, 18, p. 35, 2003.
15 Clssica sustentada na identidade imediata do ser e do pensar, compreendemos que o
elemento da alteridade nesta Filosofia encontra-se de modo abstrato, quer dizer, pela
igualdade imediata entre o subjetivo e o objetivo, o ser definido atravs das
determinaes postas pelo pensamento. Na Filosofia de Kant, segundo Hegel, h a
superao desta posio clssica ao considerar a separao entre o que da ordem
interna e externa, entre o homem e o mundo real. O fato de haver uma natureza
determinada e que mantm relao com outra coisa, isto , negao delas, permite-nos
compreender que a alteridade, ou o tipo de relao que se constitui entre o sujeito e o
objeto, j mais complexa que a alteridade presente na Filosofia antiga.
Entretanto, Hegel coloca que a separao subjetivo/objetivo levou Kant a
resultados que limitam a atividade da razo e a amplitude do conhecimento de
contedos propriamente filosficos. Ora, o elemento da alteridade na Filosofia Kantiana
caracteriza-se de forma mais complexa e mais determinada que o da Metafsica
Clssica. Em Kant, a ao negadora da razo leva a sua separao com o mundo externo
e, assim, apresenta as coisas como fora da realidade subjetiva, ou seja, a alteridade
coloca-se como impossvel de ser conhecida como em si mesma, mas apenas como
fenmeno. Para Hegel, deve-se ultrapassar esta posio de diferenciao do sujeito e da
coisa-em-si, isto , de uma posio de alteridade dialtica, na qual se verifica a
separao dos extremos (mundo interno e mundo externo). Esta alteridade dialtica
no constitui o fundamento cientfico que Hegel postula para sustentar seu Sistema
Filosfico. Este fundamento deve superar os limites da razo postos por Kant para poder
incluir os contedos propriamente metafsicos. Atravs das identificaes entre interior
e exterior, objetivo e subjetivo, pelo processo lgico de mediao reflexiva, Hegel
estrutura sua Filosofia Especulativa, que inclui a alteridade como elemento interno a
este Sistema.
Compreendemos a alteridade na Metafsica Clssica como uma relao imediata
entre o ser e o pensar, e na Filosofia kantiana como dialtica, pois j ocorre a mediao
do imediato, mas ainda sob uma relao esttica entre termos disjuntos. No Sistema
hegeliano, a alteridade organiza-se na dinmica da alteridade especulativa, pois o
movimento que articula e identifica, atravs da negao e da mediao, aquilo que do
interior e do exterior, objetivo e subjetivo. Para Hegel, a negao que diferencia aquilo
que subjetivo do que objetivo deve ser suprassumida para a identidade destes dois
termos. Determina-se o Sistema hegeliano como uma unidade coerente, isto , como
uma estrutura do imediato mediatizado. Os princpios lgicos da auto-diferenciao e
auto-reflexo (exteriorizao de si mesmo e o retorno a si mesmo) organizam o todo do
16 Sistema Filosfico de Hegel. Portanto, atravs desse movimento lgico tripartite
(momentos abstrato, negativo e especulativo) vamos compreender a alteridade do
Sistema hegeliano.
1.1 POSIES FILOSFICAS DA ALTERIDADE
Hegel inicia o primeiro prefcio da Cincia da Lgica avaliando as
transformaes que o pensamento filosfico sofreu at aquele momento. Para ele, desde
a revoluo copernicana realizada por Kant, atravs da Crtica da Razo Pura, aquilo a
que antes desse perodo se chamava metafsica foi, por assim dizer, extirpado de raiz e
desapareceu da srie das cincias.10 A Filosofia, ento, deixou de interessar-se pelos
contedos e pela forma do filosofar da antiga Metafsica, tornando limitado o acesso ao
conhecimento dos objetos tratados por ela. Atravs da Filosofia Transcendental de Kant,
o conhecimento filosfico ficou ancorado na separao entre o sujeito que conhece e
que independente do objeto conhecido, e o objeto de conhecimento que
independente do sujeito e no pode ser plenamente conhecido por este.
Na Crtica da Razo Pura, Kant, aps diagnosticar as condies precrias da
Metafsica at aquele momento, isto , concluindo que ela ainda no tinha sido capaz de
alcanar a verdade de suas prprias questes, confronta-a com outras formas de
conhecimento que tiveram avanos ao longo dos sculos. A Lgica, segundo Kant, foi
bem sucedida pelo fato de abstrair de todos os objetos do conhecimento, de modo que
nela o entendimento tem que lidar apenas consigo mesmo e com sua forma11; assim
tambm a Matemtica e a Fsica conseguiram avanar enquanto conhecimentos puros
da razo. A Metafsica, porm, matria de conhecimento elevada completamente de
qualquer experincia emprica, onde portanto a razo deve ser aluna de si mesmo, no
teve at agora um destino to favorvel que lhe permitisse encetar o caminho seguro de
uma cincia.12 Ora, essa avaliao de Kant sobre o pequeno progresso da Metafsica
conduziu-o a tentar libert-la desta situao. D-se, ento, o tribunal da razo e com isso
a formao de um tratado no sobre contedos metafsicos, mas propriamente de um
tratado sobre seu mtodo.
Assim, Kant prope um julgamento, pela prpria razo, que pretende ser um
auto-exame das suas possibilidades de conhecimento. a razo que se julga a si mesma
10 Hegel, (1812). Ciencia dela Logica. Traduo de Augusto e Rodolfo Mondolfo. Buenos Aires: Solar S.A., 1968, p. 27. 11 Kant, (1787). Crtica da Razo Pura. Traduo de Valrio Rohden. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Editora Abril, 2000, p. 36.
17 e, assim, analisa seus prprios limites de conhecimento. Segundo Kant, apenas atravs
de uma revoluo, igual quela feita por Coprnico, na qual o sujeito passou a ser
situado numa relao de criao de seus objetos de conhecimento, tambm a Metafsica
deveria passar por mudana parecida. Nas palavras de Kant:
At agora se sups que todo nosso conhecimento tinha que se regular pelos objetos; porm, todas as tentativas de mediante conceitos estabelecer algo a priori sobre os mesmos, atravs do que o nosso conhecimento seria ampliado, fracassaram sob esta pressuposio. Por isso tente-se ver uma vez se no progredimos melhor nas tarefas da Metafsica admitindo que os objetos tm que se regular pelo nosso conhecimento, o que assim j concorda melhor com a requerida possibilidade de um conhecimento a priori dos mesmos que deve estabelecer algo sobre os objetos antes de nos serem dados.13
Desse modo, o conhecimento metafsico deve posicionar-se de uma nova
maneira, na qual, do objeto a ser conhecido, s se pode saber com certeza o que nele foi
posto pelo sujeito mediante o intuir e o pensar criativos. Ento, por um lado, o
conhecimento no deve ser considerado como apreenso imediata do objeto,
percebendo-o conforme ele em si mesmo, de acordo com o que estabelece o
Empirismo. Na primeira parte da Crtica da Razo Pura, no captulo da Esttica
Transcendental, d-se a oposio da Filosofia Crtica ao fundamento Empirista. Desse
modo, a Crtica delimita o seu mbito de conhecimento. Em contraposio ao
empirismo existem fundamentos independentes da experincia, e por isso um
conhecimento rigorosamente universal e necessrio.14 Por outro lado, a Crtica
posiciona-se em oposio ao Racionalismo ao considerar que o pensamento puro no
capaz de conhecer a verdade. Com relao a objetos alm de toda a experincia, a
razo se mostra sem consistncia. Assim que ela se move somente no mbito de seus
prprios conceitos, incorre em contradies.15 No captulo da Dialtica Transcendental,
Kant apresenta os limites da atividade da razo, isto , as antinomias que resultam da
autonomia da razo ao pensar puramente os temas da Metafsica. Perde-se, dessa forma,
o poder de criao da razo ao pretender ir alm dos limites do mundo sensvel e finito.
Haver, para Kant, sempre um limite do que pode ser conhecido, seja atravs da
intuio, que inacessvel coisa-em-si, seja nas idias da razo, que resultam em
contradio se utilizadas de modo puro.
12 Ibidem, p. 38. 13 Ibidem, p. 39. 14 Hffe, (2004). Immanuel Kant. So Paulo: Martins Fontes, p. 38, 2005. 15 Ibidem, p. 39.
18
Da Filosofia de Kant, dessa forma, decorrem o conhecimento dos objetos como
construo do sujeito, a impossibilidade do conhecimento das coisas como elas so em
si mesmas e os limites do uso das idias da razo. Para Kant, o conhecimento no pode
prescindir nem da forma, nem do contedo, pois considerado como a adequao do
pensamento ao objeto percebido. Disso se conclui, ento, a compreenso de que a
faculdade da intuio, da receptividade sensvel aos objetos externos, e a faculdade do
pensar, que espontaneamente pensa os objetos atravs de conceitos, no podem preterir
uma pela outra. Nas palavras de Kant, Portanto, tanto necessrio tornar os conceitos
sensveis (isto , acrescentar-lhes o objeto na intuio) quanto tornar as suas intuies
compreensveis (isto , p-las sob conceitos).16 Continua, no mesmo pargrafo: O
conhecimento s pode surgir da sua reunio, ou seja, da adequao da faculdade da
intuio com a faculdade do entendimento. Ora, Kant posiciona-se criticamente em
relao ao Empirismo e ao Racionalismo como formas absolutas do conhecimento
verdadeiro. Para ele, estas vises de conhecimento, que se sustentam na independncia
do sujeito e objeto um do outro, devem ser superadas pela considerao do sujeito como
criador da realidade.
Atravs da atividade do entendimento de conferir sentido ao contedo sensvel
percebido pela intuio, a realidade construda como fenmeno. Para Kant, tudo o que
percebido e representado como impresso adqua-se s formas subjetivas a priori da
intuio. Nesta sensibilidade, nosso conhecimento s concerne a fenmenos, deixando
ao contrrio a coisa em si mesma de lado como real para si, mas no conhecida por
ns.17 Para Hegel, a Filosofia, para se tornar Cincia, deve suprassumir esta dicotomia
entre o objetivo e o subjetivo, entre os objetos e o pensamento. Hegel no pretende,
porm, negar a existncia das coisas do mundo, independentes da percepo. Sua crtica
volta-se sustentao da Filosofia, enquanto Cincia que trata da verdade, na separao
radical entre o sujeito que conhece e o objeto do conhecimento, dito de outra forma, sua
crtica volta-se contra a limitao do conhecimento racional.
16 Kant, 1787/2000, p. 92. 17 Ibidem, p. 40.
19 1.1.1 Alteridade no pensamento filosfico
a) Alteridade Abstrata
Na Introduo Cincia da Lgica, Hegel coloca sua proposta de retorno
fundamentao da Metafsica na identidade do pensamento e dos objetos do mundo,
diferenciando-se, assim, da concepo kantiana de Metafsica.
A antiga metafsica tinha, a este respeito, um conceito de pensamento mais elevado do que se tornou corrente em nossos dias. Ela partia da seguinte premissa: que o que conhecemos pelo pensamento sobre as coisas, e concernentes s coisas, constitui o que elas tm de verdadeiramente verdadeiro, de modo que no tomava as coisas em sua imediao, mas apenas na forma do pensamento, como pensadas. Esta metafsica, portanto, estimava que o pensamento e as determinaes do pensamento no eram algo estranho ao objeto, mas constituam antes sua essncia, ou seja, que as coisas e o pensamento delas (...) coincidem em si e para si, isto , que o pensamento em suas determinaes imanentes e a natureza verdadeira das coisas constituem um s e mesmo contedo.18
Entretanto, para Hegel, esta concepo antiga da Metafsica, que pressupunha a
essncia das coisas como determinaes do pensamento, ou, em suas palavras,
considerava as determinaes-de-pensamento como as determinaes-fundamentais
das coisas (...) pressuposio de que o que , pelo fato de ser pensado, conhecido em
si19, era um dogmatismo de pensamento que, por no ter passado pela reflexo da
razo, afirmava um objeto externo a si e se satisfazia como verdade. Se por um lado a
Filosofia Sistemtica de Hegel aproxima-se do pensamento da Metafsica Clssica, no
ponto onde ambos supem um mesmo princpio organizador da realidade e do
pensamento, por outro lado, sua Filosofia tambm resulta do posicionamento crtico de
Kant ao pr a razo sob reflexo de si mesma.
Segundo Hegel, faltou antiga Metafsica ultrapassar os limites do
conhecimento ingnuo ao achar possvel captar as coisas como elas so em si mesmas
apenas atravs do pensamento e das atribuies predicativas deste sobre elas. Ora, isto,
para ele, permanecer no pensar do entendimento, isto , no momento do pensamento
que fica no conceituar finito.
A definio de Hegel para o momento lgico do entendimento encontra-se bem
apresentada no 80 da Enciclopdia das Cincias Filosficas. L ele afirma: O pensar
enquanto entendimento fica na determinidade fixa e na diferenciao dela em relao a
18 Hegel, 1812/1968, p. 43
20 outra determinidade.20 No adendo deste pargrafo, encontramos: Enquanto o
entendimento se refere a seus objetos, separando e abstraindo, ele o contrrio da
intuio e sensao imediata, que como tal s lida exclusivamente com o concreto e
nele permanece.21 Hegel considerava que a antiga Metafsica tinha limitado-se
atividade do entendimento e, dessa forma, fazendo de seu objeto as determinaes puras
do pensamento, permanecia apenas na criao dessas determinaes enquanto pares de
opostos fixos e finitos (por exemplo, imortal ou mortal, mvel ou imvel, uno ou
mltiplo).
Esta forma de pensar do entendimento finita porque trata sobre o que , mas
que deixa de ser onde est em conexo com seu Outro, e por conseguinte limitado por
ele. Assim, o finito consiste em uma relao ao seu Outro, que sua negao e se
apresenta como seu limite.22 Para Hegel, o entendimento um estgio necessrio para
o pensar em geral, pois abstrai conceitos e determinaes dos objetos.
Entretanto, esta limitao entre as determinaes do entendimento no coloca o
pensamento em movimento, pois ele permanece fixo na restrio finita do conceituar
em seu oposto. Ora, evidente que o pensar , antes de tudo, pensar do entendimento;
s que o pensar no fica nisso, e o conceito no simples determinao-do-
entendimento.23 Se o entendimento conduz elaborao de conceitos e determinaes
contraditrios, o pensamento s pode avanar se houver uma suprassuno dessa
posio, isto , atravs da existncia de um segundo estgio que possa negar a limitao
dada pela alteridade conceitual posta pelo entendimento e, assim, ultrapassar a
permanncia neste jogo abstrato e unilateral do conceituar.
Por exemplo, para a antiga Metafsica, segundo Hegel, a pergunta sobre a
finitude do mundo leva limitao mtua entre as alternativas opostas, quer dizer, da
finitude do mundo que contrasta com a infinitude. Podemos dizer, ento, que, se a
Metafsica Clssica no ultrapassou as elaboraes finitas do entendimento, deve-se ao
fato de ter estacionado na radical disjuno de sua alteridade, isto , o pensamento
permanecido fixo nas oposies das determinaes separadas por ele mesmo.
19 Idem, (1830a). Enciclopdia das Cincias Filosficas em compndio. Vol. I A Cincia da Lgica. Traduo de Paulo Meneses. So Paulo: Edies Loyola, 1995, 28, p.90. 20 Ibidem, 80, p. 159. 21 Ibidem, 80A, p. 160. 22 Ibidem, 28, p.91. 23 Ibidem, 80A, p. 159.
21
b) Alteridade Dialtica
Mas, conforme afirma Hegel na Introduo da Cincia da Lgica, o
entendimento reflexivo se apoderou da filosofia.24 Prosseguindo de acordo com este
texto, deve-se verificar o sentido desta reflexo para compreender a anlise do avano
da Metafsica. Se o pensamento humano parte do conhecimento como superao da
realidade sensvel e imediata, abstraindo e separando dela determinaes contraditrias
atravs da ao do entendimento, ele deve igualmente suprassumir este momento,
relacionando essas determinaes mutuamente. Assim, se cabe ao entendimento
superar o concreto imediato, determin-lo e dividi-lo, no basta isto para que o
pensamento realize-se. necessria uma segunda etapa, onde a reflexo deve tambm
superar suas determinaes separadas e, de incio, relacion-las mutuamente.25
Este segundo momento do pensar corresponde ao que Hegel denomina, na
Enciclopdia, de dialtico ou negativamente-racional. Trata-se do momento no qual
as determinaes finitas e unilaterais do entendimento so suprassumidas para o jogo de
oposio destas determinaes. Esta primeira negao propriamente dita responsvel
pelo movimento que ultrapassa as determinaes finitas e unilaterais do entendimento,
reunindo-as com seus opostos de modo contraditrio. Assim, essa razo negativa esse
ultrapassar imanente, em que a unilateralidade, a limitao das determinaes do
entendimento exposta como ela , isto , como sua negao. Todo o finito isto;
suprassumir-se a si mesmo.26
Ora, Hegel afirma que este momento dialtico considerado a alma motriz de
toda progresso possvel, ou o princpio de todo o movimento, do mundo natural e do
mundo espiritual. Este movimento dialtico do suprassumir-se a si mesmo em seu
oposto, ento, explicado da seguinte maneira: todo o finito, em lugar de ser algo
firme e ltimo, antes varivel e passageiro; e no por outra coisa seno pela dialtica
do finito que ele, enquanto em si o Outro de si mesmo, levado tambm para alm do
que ele imediatamente, e converte-se em seu oposto.27 Se o entendimento tem como
funo dar as determinaes e mant-las de modo fixo e unilateral, a razo negativa, por
sua vez, tem como funo ultrapassar a determinidade isolada e relacion-la com seu
oposto, estabelecendo negativamente esta sua alteridade como uma oposio imanente a
si mesma.
24 Idem, 1812/1968, p. 43. 25 Ibidem, p. 44. 26 Idem, 1830a/1995, 81, p. 163. 27 Ibidem, 81A, p. 165.
22
Vemos, dessa forma, que a diferena de uma determinao j est dada, para
Hegel, desde o incio, isto , desde o momento em que ela se afirma como tal. Trata-se
de um processo que, no momento em que uma representao existe de incio de modo
autnomo, verifica-se, segundo Labarrire, uma autonomia de excluso desta
determinao sobre as outras, pois no existe mais determinaes simplesmente
dadas, que sejam fixas em suas indiferenciaes.
Assim, Labarrire coloca que a relao, para Hegel, de fato uma realidade
primeira.28 Desse modo, j est posto o jogo da identidade-diferena-contradio, que
forma a estrutura correspondente s determinaes-da-reflexo apresentadas na
Doutrina da Essncia da Cincia da Lgica. Portanto, desta identidade
essencialmente mvel, de fato, que toma sentido a afirmao dos termos postos em sua
diferena, uma diferena que vai se aprofundando at a diversidade, depois
oposio.29 Ento, se por um lado sobre o plano da identidade que se expressa o
momento do entendimento, o segundo plano, o da diferena, de acordo com Labarrire,
coloca-se ao nvel da razo dialtica negativa.
A funo desta razo desfazer a permanncia do entendimento na identidade e
unilateralidade das oposies conceituais, mediando cada determinao a sua alteridade,
no de forma complementar, em que cada uma delas [das determinaes] antes de
tudo totalidade, e recolhe, em sua diferena mesmo, a universalidade intensiva da
identidade de origem.30 Atravs da funo de mediao da razo negativa, a oposio
de uma determinao pertence a si mesma e ela se suprassume por sua prpria
natureza, e por si mesmo passa ao seu contrrio.31 Ora, a negao da fixidez do
entendimento leva a razo a postular a contradio como resultado necessrio do
prprio pensamento.
Trata-se do grande passo negativo da razo, efeito da tentativa desta de buscar
conhecer o contraste pertencente s determinaes postas pelo prprio pensamento. Para
Hegel, porm, a negao que encontramos nesta razo no aquela que coloca em
descrdito todas as afirmaes do entendimento. Enquanto esta nega absolutamente
qualquer afirmao sem colocar nenhuma outra, a negatividade da razo, segundo
Hegel, contm o negar, ou o pr em suspenso todos os pressupostos, como um
momento dialtico. Assim, a negatividade da razo, enquanto dialtica, tem como
28 Labarrire & Jarczyk, 1986, p. 92. 29 Ibidem, p. 93. 30 Ibidem, p. 94. 31 Hegel, 1830a/1995, 81A, p. 163.
23 resultado o positivo, ou seja, uma outra afirmao que conserva aquilo da qual ela
resulta.
Nas palavras de Labarrire, neste momento da razo, o que est em jogo, no
jamais uma negao simples do imediato, mas uma negao propriamente reflexiva,
dialtica32, visto que esta fase no apenas de realizao da precedente, mas tambm a
de passagem para uma outra. Para Hegel, portanto, o negativo uma ao determinada,
pois no formula um zero ou um nada como resultado, mas traz uma outra afirmao
que carrega contida em si aquelas afirmaes que foram negadas e da qual resultou.
c) Alteridade Especulativa
Contudo, afirma Hegel, se a anlise sobre a reflexo permanecer neste momento
da razo negativa, cai no erro de apresentar a coisa como se a razo estivera em
contradio consigo mesma; no se d conta de que a contradio justamente a
elevao da razo sobre as limitaes do pensamento e a soluo das mesmas.33 Ora,
justamente esta etapa que Hegel aponta como o limite que a Filosofia Transcendental de
Kant no conseguiu ultrapassar, ou seja, ela alcana apenas o momento em que a razo
coloca a contradio como prpria de seu agir, mas no o supera.
Na Introduo da Cincia da Lgica, Hegel atribui Filosofia Crtica um papel
fundamental para a evoluo da concepo de Metafsica. Se o dialtico havia sido
utilizado como um instrumento ou um meio extrnseco para resolver ou refutar as
afirmaes filosficas, a Filosofia Crtica de Kant, ao construir um tribunal da razo
pela prpria razo, chegou compreenso de que ela necessariamente entra em
contradies pelo fato de ter como propriedade sua o elemento da negao.
Kant, segundo Hegel, valorizou a dialtica ao apresent-la como uma operao
necessria da razo.34 Hegel valoriza a crtica da razo por considerar a contradio
como uma necessidade que pertence natureza das determinaes do pensamento.
Atravs da Dialtica transcendental da Crtica da Razo Pura, Kant, ao analisar a
propriedade constitutiva da razo no momento em que ela vai alm do emprico e do
finito, conclui que as idias geradas por ela resultam em contradies.
Ora, a razo paga pelo seu sucesso fingindo conhecer algo que no existe35,
pois a concluso da tentativa de conhecer o incondicionado resulta em ambigidades,
32 Ibidem, p. 339. 33 Idem, 1812/1968, p. 44. 34 Ibidem, p. 52. 35 Ibidem, p. 143.
24 antinomias e contradies. Dessa forma, para Kant, a pretenso de progresso do
conhecimento sem nenhuma origem da ou na experincia, ou seja, de um conhecimento
metafsico que transcenda o mundo emprico, impossvel. Sua crtica possibilidade
de conhecimento da Metafsica dogmtica (da psicologia transcendental, da cosmologia
transcendental e da teologia racional) leva-o a limitar a razo enquanto constitutiva e
reconhecer nela apenas seu uso regulador. As idias transcendentais da razo pura,
segundo Heffe, no possuem na verdade nenhuma funo constitutiva para o
conhecimento e no podem, portanto, nem possibilitar nem ampliar a experincia; mas
tm um significado regulativo.36 O que resulta da atividade da razo transcendental na
busca pelo conhecimento do incondicionado (como existncia de Deus, a liberdade e a
imortalidade, por exemplo), portanto, uma verdade aparente, uma iluso
transcendental.
Para Hegel, como vimos, a Filosofia de Kant teve o mrito de introduzir a
atividade de constituio do objeto pelo sujeito, mas no foi capaz de superar a diviso
entre sujeito e objeto. A partir disso, esta Filosofia ficou limitada ao impossibilitar o
conhecimento das coisas em si mesmas e o uso das idias da razo como reguladoras.
s antinomias da razo obtidas por Kant no captulo da Dialtica Transcendental, Hegel
atribui um valor positivo por considerar a negatividade como imanente razo. A
contradio, assim, aparece como qualidade natural da razo que pretende conhecer o
mundo que est alm dos objetos do mundo emprico. Assim, Hegel afirma na
Introduo da Cincia da Lgica, a respeito das concluses obtidas por Kant:
Este resultado, compreendido em seu lado positivo, no mais que a negatividade interior daquelas determinaes, representa sua alma que se move por si mesma e constitui em geral o princpio de toda vitalidade natural e espiritual. Mas, ao se deter apenas no lado abstrato e negativo do dialtico, o resultado sensivelmente a afirmao conhecida de que a razo incapaz de reconhecer o infinito; estranho resultado, visto que, enquanto o infinito o racional, se diz que a razo incapaz de reconhecer o racional.37
Na Crtica da Razo Pura, Kant chega incapacidade da razo em conhecer o
incondicionado, pois, ao agir sem ser afetada pelos objetos da experincia, tem como
resultado antinomias. A concluso de Kant a este respeito a da impossibilidade de
ampliao pelo conhecimento especulativo de temas que esto alm do mundo
emprico, assim como a impossibilidade de conhecimento dos objetos do mundo
externo. Hegel, entretanto, considera que, para um Sistema filosfico tornar-se Cincia,
36 Ibidem, p. 145. 37 Hegel, 1812/1968, p. 52.
25 no pode sustentar-se na restrio do pensamento racional ou na existncia de algo que
no pode ser conhecido, como a coisa-em-si.
Assim, a dicotomia entre sujeito e objeto deve ser suprassumida (processo que
desenvolvido ao longo das figuras da conscincia na Fenomenologia do Esprito), como
tambm a razo deve ter a extenso da possibilidade de conhecimento ampliada, no
devendo, portanto, estar subordinada receptividade do mundo emprico. Hegel, dessa
forma, pretende expandir o campo de conhecimento da razo no apenas aos objetos da
realidade, mas tambm aos da Metafsica, retomando a funo constitutiva da razo
pura.
Hegel afasta-se da concepo de especulao da Metafsica anterior Kant, que
permanece na fixidez do entendimento e determina apenas um termo do par de
predicados opostos ao objeto, assim como se afasta da Filosofia kantiana, que
permanece no momento negativo da razo e limita o pensamento especulativo ao
aproxim-lo do conhecimento subordinado aos objetos da experincia.
Para Hegel, o especulativo o momento do todo do processo que unifica
pensamentos opostos e contraditrios. Na Introduo da Cincia da Lgica, ele escreve:
O especulativo est neste momento dialtico, (...) dos contrrios em sua unidade, ou
seja, do positivo no negativo.38 Na Enciclopdia, o especulativo apresentado como
aquele momento do pensamento que rene a unilateralidade do entendimento: Mas de
fato, o unilateral no algo firme e subsistente por si, seno que est contido no todo,
como suprassumido.39 Da mesma forma, no 82 da Enciclopdia, o especulativo
posto como o terceiro momento lgico, antecedido pelo entendimento e pela razo
negativa. O especulativo ou positivamente racional, escreve Hegel, apreende a
unidade das determinaes em sua oposio: o afirmativo que est contido em sua
resoluo e em sua passagem [a outra coisa].40
Decorre disso, ento, que a funo do especulativo a suprassuno do
entendimento e da razo negativa em uma unidade. Trata-se da busca da identidade na
diferena dos opostos do entendimento, reunindo-os em um momento de totalidade em
que ambos os termos contraditrios no so absolutamente negados, mas conservados e
reunidos com suas diferenas.
Ora, Hegel rene os trs momentos do entendimento, da razo negativa e da
razo positiva em um processo de totalidade do pensamento.
38 Ibidem, p. 52. 39 Idem, 1830a/1995, 32A, p. 95.
26
O entendimento determina e mantm firmes as determinaes. A razo negativa e dialtica, porque reduz nada as determinaes do entendimento; positiva, porque cria o universal e nele compreende o particular. Assim como o entendimento em geral considerado como separado da razo dialtica, assim tambm a razo dialtica costuma ser compreendida como separada da razo positiva. Mas, na verdade, a razo esprito, que superior aos dois, como razo do entendimento, ou entendimento racional.41
O pensamento, dessa forma, coloca-se como uma estrutura de trs tempos, a
saber, os momentos extremos, que assumem a marca da positividade o entendimento e
a razo positiva, que, nas palavras de Labarrire, respectivamente divide as coisas e
estabelece as relaes fixas entre os elementos que as comportam e exprime a
essencialidade do ser, dito de outra forma, sua existncia, ou sua efetividade como
conceito42 e o momento da mediao negativa, atravs da razo dialtica, cuja funo
a de desfazer a fixidez das relaes do entendimento e restituir-lhes o movimento
contraditrio essencial que lhes pertence. Sobre esta estrutura filosfica, cada um desses
momentos integra aquele que o precede assim como cada termo se pressupe sempre
em seus antecedentes43. Hegel continua neste mesmo pargrafo do primeiro Prefcio
da Cincia da Lgica:
O esprito o negativo, o que constitui as qualidades tanto da razo dialtica como do entendimento; nega o simples e fundamenta assim a determinada diferena do entendimento; ao mesmo tempo resolve e, portanto, dialtico. Mas no se detm no nada desses resultados, mas nestes igualmente positivo e deste modo restaurou o primeiro simples, mas como um universal, que concreto em si mesmo.44
Ora, justamente esta fuso do entendimento e da razo no Esprito o que
permite Hegel retomar a posio filosfica da Metafsica Clssica, que fundamentava a
estrutura do ser na igualdade com a estrutura do pensamento. Dessa forma, a Metafsica
de Hegel consegue suprassumir a posio do pensamento que permanecia nas
dicotomias entre sujeito e objeto, interior e exterior. A Filosofia de Hegel, portanto, est
sustentada no na separao entre o mundo lgico e o mundo real, ou de um sujeito que
conhece separado do objeto de conhecimento, mas em uma Ontologia que identificada
Lgica atravs de um princpio idntico a ambos.
Este movimento espiritual, que em sua simplicidade se d sua determinao e nesta se d sua igualdade consigo mesmo, e representa ao mesmo tempo o
40 Ibidem, 82, p. 166. 41 Idem, 1812/1968, p. 29. 42 Labarrire & Jarczyk, 1986, p. 337. 43 Ibidem, p. 48. 44 Hegel, 1812/1968, p. 29.
27
desenvolvimento imanente do conceito, o mtodo absoluto do conhecimento, e ao mesmo tempo, a alma imanente do contedo mesmo. Somente sobre estes caminhos, que se constri a si mesmo, que a filosofia capaz de ser cincia objetiva, demonstrada.45
Constitui-se, assim, a unidade do ser e do pensar. A unidade entre o sujeito e o
objeto original, pressuposto no qual no se poderia ter pensamentos, nem se poderia
ter nenhum ser. O fato de serem termos contraditrios, mas co-originrio e co-
existentes, justamente o que fazem deles uma unidade, que conserva suas oposies e
no resulta na anulao destas. Segundo Mure, esta unidade do pensamento com o ser,
expressa como Esprito, no esttica, mas move no temporal, mas logicamente e
se aliena a si-mesmo-como-pensamento em relao a si-mesmo-como-ser, mas, visto
que o ser seu outro si, seu alter ego, o esprito, diz Hegel, segue consigo mesmo em
seu outro.46 Este movimento, ento, de negao e reconciliao do Esprito, nas
esferas do ser e do pensamento, consigo mesmo nesta sua alteridade determinada por ele
mesmo.
1.1.2 Alteridade no Sistema hegeliano
Vimos que o processo de desenvolvimento do pensamento, segundo Hegel,
tripartido nos momentos do entendimento, que fixa as determinaes, da razo negativa
ou dialtica e da razo positiva ou especulativa, que, respectivamente, anula as
unilateralidades do entendimento e rene as determinaes no universal. Este o
movimento que constitui o princpio dinmico de toda a Filosofia hegeliana.
Esta estrutura de desenvolvimento, porm, no ocorre apenas neste mbito do
pensamento, mas igualmente ocorre nos contedos e objetos do mundo natural.
Encontramos, segundo Hegel, tambm na esfera do mundo natural, os mesmos graus de
desenvolvimento do Esprito, pois este representa a unidade da razo que identifica as
estruturas do homem e do mundo, do pensar e do ser. Desta considerao, ele apresenta
os pargrafos da Enciclopdia que tratam sobre a diviso tripartida da Lgica: Esses
trs lados no constituem trs partes da Lgica, mas so momentos de todo [e qualquer]
lgico-real, isto , de todo conceito ou de todo verdadeiro em geral.47 Dessa forma,
no racional apenas o que da ordem lgica, que expressa as regras do pensamento,
mas tambm racional a estrutura da natureza e as regras que a organizam. Isto, porm,
45 Ibidem, p. 29. 46 Mure, (1965). La filosofia de Hegel. Madrid: Ediciones Ctedra, p. 21, 1998. 47 Hegel, 1830a/1995, 79, p. 159.
28 no significa que se deve considerar tudo o que existe na realidade do ser e do pensar
como racional, mas que h uma estrutura racional organizadora da realidade natural e
lgica.
Nas palavras de Labarrire, este processo do pensamento no concerne
simplesmente ao encadeamento das determinaes do conhecer, mas a estrutura
mesma do ser que est aqui em causa.48 Assim, ento, verifica-se que o esquema,
imediatidade-mediao-imediatidade, referentes s formas do pensar do entendimento,
da razo negativa e da razo positiva, respectivamente, tambm o princpio
organizador do ser em questo, isto , dos objetos da natureza e do Esprito.
Esta identidade entre a ordem do pensamento e do ser no acabada, conforme
considerava a Metafsica Clssica, mas, para a Filosofia de Hegel, desenha o
movimento do vir-a-ser a si de tudo o que .49 Dessa forma, Hegel afasta sua Filosofia
da imediatidade da Metafsica Clssica, que permaneceria no momento do
entendimento, assim como da mediao da Metafsica Moderna, e constri um Sistema
metafsico que pressupe a unidade de suas partes, porque Hegel o homem da
unidade; no enquanto unidade que s seria indistino, mas daquela que ela mesma
negativamente articulada.50 Assim, portanto, Hegel sustenta uma Filosofia em que
Lgica e Ontologia esto interligadas, isto , h uma unidade da razo que revelada
por ambas e que faz com que sejam racionais no apenas as determinaes postas pelo
pensamento, mas tambm a relao do homem consigo mesmo e as estruturas da
natureza.
Ora, a partir disso, formalizam-se esses trs momentos do processo da razo no
seguinte esquema silogstico: em-si, para-si/para-um-outro e em-si-e-para-si. Trata-se de
uma tripla estrutura que se encontra tanto no mundo ideal, quanto no mundo real, e,
assim, organiza as regras de uma totalidade lgico-real. O Sistema Filosfico de Hegel,
ento, estrutura-se de modo que no nem uma filosofia do imediato, nem uma
filosofia da mediao, mas uma compreenso do imediato se mediatizando.51 Trata-se
de uma estrutura silogstica na qual tudo o que , seja de modo ideal ou real, manifesta-
se de acordo com este esquema trplice. Inicialmente, o ser apresenta-se como
identidade simples sob a forma de seu ser em-si, ou seja, segundo Bourgeois52, de
48 Labarrire & Jarczyk, 1986, p. 344. 49 Ibidem, p. 344. 50 Ibidem, p. 195. 51 Ibidem, p. 47. 52 Bourgeois, (2000). Le vocabulaires de George Wilhem Friedrich Hegel. Paris: Ellipses ditions, p. 26.
29 maneira envolvida, em germe, potencialmente (trata-se da possibilidade real, chamada
dunamis por Aristteles).
No segundo momento, esta imediatidade deste ser desenvolve-se em uma
mediao com algo outro a ele. Assim, este ser passa a existir no mais enquanto
identidade simples a si mesmo, mas sua existncia, que o faz se exteriorizar nele
mesmo e exalta assim seu prprio para-si, dissocia o que seu em-si reunia, sua forma
idntica si. No terceiro momento deste processo de tudo o que constitudo,
encontramos a reconciliao do em-si e do para-si, isto , o ser-em-si-e-para-si
realizado em ato. Trata-se, ento, da unidade em si da forma idntica si e do
contedo diferenciado.
Vimos at agora como a alteridade no Sistema hegeliano diferencia-se das da
Metafsicas Clssica e Moderna. Pela proposta de identidade entre o entendimento e a
razo, ampliando os possveis objetos de conhecimento desta e pela organizao do
pensamento e da realidade sob um princpio racional, isto , o trplice processo lgico
do em-si, para-si e em-si-e-para-si, Hegel afasta-se do pressuposto dos filsofos da
Antiguidade, que postulavam a identidade imediata entre o pensar e o ser, isto , o ser
determinado por aquilo que lhe atribudo pelo pensamento. Da mesma forma, Hegel
afasta-se da posio kantiana que pressupe a radicalidade da alteridade, quer dizer, a
coisa-em-si como impossvel de ser conhecida pela razo.
Hegel, ento, segundo Labarrire, coloca-se como filsofo que pretende superar
o dilema de ento e de sempre: aquele da oposio e mais seguido da excluso entre
o sujeito e o objeto, o idealismo e o realismo53. Assim, para o autor, a insero de
Hegel neste dilema de excluso da interioridade subjetiva com a exterioridade ou do
estrangeiro possibilita com que se faa a a reconciliao do discurso e da alteridade.
Sua Filosofia, segundo Labarrire, eleva-se da posio de uma simples alteridade da
diferena, a qual da ordem do dado para uma alteridade de relao.54
Hegel considera a especulao como um momento final do processo racional,
onde se verifica a suprassuno das diferenas postas pelos momentos do entendimento
e da razo negativa. Sua Filosofia, portanto, deve suprassumir qualquer dualidade e,
assim, apresentar-se como uma unidade sistemtica, onde o mundo ideal e o mundo real
esto interligados sob um princpio comum. Dessa forma, a Filosofia de Hegel
desenvolve-se atravs da suprassuno da dualidade entre o lgico e o real, de modo
que, para ele, s se pode falar sobre a estrutura do mundo enquanto esta apresenta a
53 Labarrire & Jarczyk, 1986, p. 18. 54 Cf. Ibidem, p. 18.
30 estrutura lgica do pensamento. Ser e pensar, portanto, esto interligados numa unidade
comum de forma que a Ontologia enquanto estudo sobre as estruturas do ser
corresponde s estruturas da Lgica enquanto estudo sobre as determinaes do
pensamento.
Para tanto, Hegel afasta-se do idealismo subjetivo, que considera a exterioridade
como simples construo das determinaes do pensamento, sob descrdito da
existncia dos objetos externos, e tambm se ope Filosofia dualista, que se separa o
sujeito do objeto e que sustenta, como vimos, a idia da verdade como adequao do
pensamento ao mundo externo. Assim, Hegel prope sua Filosofia sustentada na
existncia de uma unidade de razo, que perpassa tudo o que existe.
Segundo Labarrire, Hegel conseguiu, em seu Sistema Filosfico, afastar-se do
dualismo entre o mundo da natureza, com suas leis prprias, e o mundo da razo
humana, igualmente considerada com leis particulares, ao articular em uma unidade da
razo as realidades objetiva e subjetiva. Afasta-se, tambm, do monismo imediato que
pressupe a identidade simples entre essas duas realidades, isto , a do pensamento e a
dos objetos do mundo. Para ele, portanto, ambas so constitudas pela mesma estrutura
racional.
Assim, Hegel, de acordo com Labarrire, estabelece uma Filosofia que consegue
manter a questo fundadora de toda filosofia, aquela do mesmo e do outro, da
diferena ou das diferenas em suas relaes identidade ou a dicotomia original
entre o Eu e o ob-jeto, entre conscincia e coisa-em si no ato de conhecer e se organiza
sobre a idia de um monismo na qual so afastadas as idias de objeto exterior como
estrangeiro ao Sistema e a idia de Filosofia como esttica e rgida. Para o autor,
portanto, a filosofia de Hegel, numa primeira aproximao, poderia ser caracterizada
como monismo articulado ou como dualismo relacional, ou ainda como dualidade
relacional da unidade 55, dito de outra forma, atravs da lgica reflexiva aquilo que
efetivo s se torna tal se relaciona consigo mesmo como outro.
Labarrire considera a unidade como ponto de convergncia do pensamento de
Hegel unidade que deve ser vista em sua formao dinmica, que fala da realidade
como totalidade-movimento. No final, ento, afirma Labarrire, no um edifcio
fechado sobre si mesmo, de uma auto-suficincia esttica, mas bem a fluidez do em-e-
para-si do conceito.56 Conforme vimos anteriormente, Hegel escreve no Prefcio da
Cincia da Lgica que o movimento do Esprito o desenvolvimento imanente do
55 Labarrire & Jarczyk, 1986, p. 353. 56 Ibidem, p. 354.
31 conceito, o mtodo absoluto do conhecimento e ao mesmo tempo a alma imanente do
contedo mesmo.57 Cada etapa do desenvolvimento de sua Filosofia organizada por
este movimento do Esprito, contrapondo inseparavelmente a unidade e o movimento,
de modo que, conforme prope Labarrire, sua Filosofia no se enquadre inicialmente
nem como monista, nem como dualista, mas como uma Filosofia especulativa que tem
em seu desenvolvimento final a unidade dos contedos sob a forma em-si-e-para-si, isto
, enquanto totalidade mediada pela reflexo sobre algo outro.
Afirma Labarrire: Assim, ento, para Hegel, o conceito no uma realidade
unilateralmente notica, interior ao sujeito que conhece, mas ele em primeira
aproximao o real em sua totalidade inteligvel em devir.58 Hegel, ento, teve que
abandonar o sentido de conceito como representao mental originada pela percepo.
O Conceito, para Hegel, expressa a totalidade da unio do subjetivo e do objetivo.
Encontra-se presente em tudo o que existe, a identidade do ser-em-si objetivo
(autenticamente livre face ao esprito que conhece) e do Eu que o apreende.59 Mais
precisamente, os conceitos no se diferenciam um dos outros, mas formam um sistema
interligado de modo que s exista um Conceito, presente nas realidades subjetiva e
objetiva. O desenvolvimento do Conceito e sua progressiva efetivao o que
possibilita a identidade do interior e do exterior.
Segundo Bourgeois, o Conceito para Hegel assume a funo de fazer
compreender (begreifen compreender), pr sinteticamente, o contedo diverso do que
seja a partir de seu sentido simples, idntico a si, como lei de composio de um tal
contedo em sua diferenciao interna.60 Da etimologia, escreve Inwood61, a palavra
conceito (Begriff) tem origem no verbo greifen, que significa agarrar, apreender,
compreender, com o sentido de incluir ao mesmo tempo que de conceber, conceituar.
Para Hegel, portanto, o Conceito tem a capacidade de conceber e de incluir em si
(abranger, compreender) o que lhe estrangeiro. Ele o movimento espiritual que age
atravs da morte de toda fixidez e da morte em toda imediatidade. Afirma
Labarrire:
Se o conceito a identidade do ser com ele mesmo em seu ser-outro, a morte que ele carrega no outra que a tomada a srio desta alteridade essencial que o constitui pelo que ele . O conceito ele mesmo esta morte que vida, pois ele essencialmente devir-outro, isto , o morrer de si mesmo em sua
57 Hegel, 1812/1968, p. 29. 58 Ibidem, p. 64. 59 Ibidem, p. 64. 60 Bourgeois, 2000, p. 16. 61 C.f. Inwood, 1992, p. 72.
32
imediatidade, de modo a aceder a sua expresso verdadeira, a sua universalidade.62
Para a realizao desta diferenciao interna do Conceito e de sua identificao
com a alteridade estrangeira, Labarrire destaca duas caractersticas deste processo, a
saber, o movimento e a negao. O primeiro mostra que o Conceito auto-movimento,
ou seja, processo onde ocorre propriamente o movimento dialtico de vir-a-ser; o
segundo surge do primeiro porque ele [o conceito] devir-outro disto que ele era sobre
o modo imediato, enquanto que ele era apenas conceito.63 O Conceito que chega a seu
estado de realizao final, segundo Hegel, torna-se Idia. Esta, portanto, o objeto que
efetivou todas as determinaes de seu Conceito, passando de seu estado inicial, onde
apenas Conceito, para o seu estado final, onde Conceito realizado.
Segundo Bourgeois64, o todo do ser o conceito completamente auto-
diferenciado, objetivado, realizado na e como Idia, e esta Idia que o filosofo expe.
A Idia, para Hegel, dessa forma, unidade diferenciada da subjetividade e objetividade
conceitual, do interior e do exterior. a expresso do Absoluto e da racionalidade do
mundo em determinaes ideais e reais. Para Hegel, a Idia considerada no em seu
momento de imediatez, nem de mediao, mas de imediatidade mediada. A Idia no
apenas um nico momento da razo, mas o processo necessrio de exteriorizao. Ela
no esttica ou imvel, mas carrega em si o impulso de exteriorizar-se, saindo de si,
determinando sua alteridade e retornando a si mesma.
Com esse processo de desenvolvimento da Idia que determina ela mesma um
outro de si, voltamos ao esquema apresentado sobre os trs tempos da Lgica. Dessa
forma, o Absoluto, identidade de si que se diferencia de si mesmo e se identifica a esta
sua diferenciao a totalidade exprimida no momento especulativo, isto , no
silogismo do imediato mediatizando-se. A Idia, ento, apresenta-se no movimento do
em-si que mediatizado pelo para-si ao terceiro momento, do em-si-e-para-si. O
Sistema Filosfico de Hegel, dessa forma, enquanto Filosofia que trata do Absoluto,
apresenta-o ou o expe de acordo com este processo lgico. Hegel define seu Sistema
Filosfico, isto , a diviso ocasionada pela exposio da Idia, da seguinte maneira: I
- A lgica, a cincia da idia em si e para si; II - A Filosofia da Natureza, como a
cincia da idia em seu ser-outro; III - A Filosofia do Esprito, enquanto idia que em
seu ser-outro retorna a si mesma.65
62 Labarrire & Jarczyk, 1986, p. 55. 63 Ibidem, p. 60. 64 Bourgeois, 2000, p. 17. 65 Hegel, 1830a/1995, 18, p. 58.
33
Vemos a noo de alteridade exposta no desenvolvimento da Idia em seus trs
aspectos (na Lgica, na Natureza e no Esprito) neste comentrio de Inwood: A idia
reaparece ento no domnio da natureza, como a idia em sua alteridade, e no domnio
do esprito, como a idia retornando a si a partir da alteridade.66 Tambm em Kervgan
encontramos a noo de alteridade como necessria para o processo da Idia, visto que
se trata de um movimento lgico no qual o primeiro momento includo no momento
seguinte, como a positividade especulativa que inclui em si a negatividade dialtica.
Visto que a natureza a alteridade da idia e o Esprito um movimento de
conquista de si a partir da alteridade natural, ento, afirma o autor, o esprito no
sentido hegeliano a Aufhebung de uma natureza dada como o que ele deve superar
para chegar a si.67
A Idia, ento, enquanto um dos termos do desenvolvimento do Sistema
Filosfico de Hegel, coloca-se como o pensamento que idntico a si. Isto significa que
ela se diferencia de si e suprassume esta diferena. O distanciamento de si consigo
mesmo, causado por esta diferenciao de si, constitui a Idia como Natureza. Esta,
ento, a cincia da Idia em seu ser-outro, isto , da Idia em sua alteridade, em sua
diferena consigo, em seu afastamento de si, em sua particularidade no sentido
etimolgico de partio, separao.68 A Idia como Esprito, por sua vez, o ato do
pensamento de identificao consigo, processo de retorno a si desde fora de si. Dessa
forma, a Lgica, a Natureza e o Esprito so trs momentos parciais da Idia absoluta
que se reflete nessas diferentes determinaes.
1.2 ALTERIDADE NA CINCIA DA LGICA
Vimos na seo anterior os modelos da alteridade de acordo com as trs posies
do pensamento metafsico analisadas por Hegel, a saber, o da Filosofia Clssica, o da
Filosofia Crtica de Kant e a proposta de um modelo de alteridade especulativa. A
primeira alteridade encontra-se na forma imediata de identidade das determinaes do
sujeito e da natureza do mundo externo, isto , o pensamento acredita como sendo
verdadeiro que as determinaes postas por ele seriam imediatamente constitutivas do
ser.
66 Inwood, 1992, p. 170. 67 Kervgan, (2005). Hegel et lhglianisme. Paris: PUF, p. 91. 68 Lonard, (1974). Commentaire littral de la Logique de Hegel. Paris: Vrin, p. 17.
34
A este modo de relao do sujeito com os objetos caracterizamos como
alteridade abstrata, pois a relao que se estabelece com o outro ainda no est
complexificada pelas mediaes. A Filosofia kantiana, por sua vez, atravs da reflexo
crtica, introduziu a negao como elemento imanente do pensamento. Resultou, assim,
que este foi colocado como separado da realidade como ela em si mesma, podendo,
dessa forma, conhecer apenas o que ele mesmo coloca sobre as coisas do mundo. O
outro, enquanto objeto do mundo externo, isto , a coisa-em-si, apresenta-se como uma
alteridade dialtica, visto que se encontra na dualidade radical entre o objetivo e o
subjetivo.
Hegel, em seu projeto filosfico, pretende estabelecer a unio daquelas funes
do pensamento que separa e mantm fixa uma determinao considerada suficiente,
referente ao entendimento, e a funo da razo negativa ou dialtica, que, radicalizando
o sentido das determinaes, quebra esta cristalizao unilateral e faz com que essas
determinaes finitas passem ao seu contrrio. Desse modo, a terceira posio
metafsica rene em si as determinaes opostas afirmando a unidade semntica
positiva (entendimento) e negativa (razo dialtica) das determinaes. Na Filosofia
Sistemtica de Hegel, ento, este momento da razo possibilita o modo de relao do
pensamento com seu outro enquanto alteridade especulativa, responsvel pela unidade
que conserva a diferena.
Formalmente, estas trs posies foram estabelecidas da seguinte forma: o em-si
imediato, o para-si mediador e em-si-e-para-si, imediatizado. Este ltimo momento,
ento, retorna imediatidade primeira conservando a mediao do momento anterior.
De acordo com Labarrire, a Filosofia hegeliana no trata sobre o imediato, nem sobre a
mediao, mas sobre o imediato mediatizando-se.69 Assim, esta tripla estruturao
imediato-mediato-imediato, sendo este ltimo termo um imediato mediatizado, o
resultado final do Sistema Filosfico de Hegel.
Entretanto, este processo no se encontra apenas no todo filosfico, isto , no
processo de organizao das partes que o estruturam este sistema, a saber, a Lgica, a
Natureza e o Esprito, mas o desenvolvimento imanente de todo e qualquer elemento
lgico-real da Filosofia hegeliana. Verificamos, ento, uma estrutura circular, onde o
retorno do primeiro momento ao terceiro momento atravs da mediao destri a
linearidade do processo de seu desenvolvimento. No 15 da Enciclopdia, Hegel define
do seguinte modo seu Sistema Filosfico:
35
Cada uma das partes da filosofia um Todo filosfico, um crculo que se fecha sobre si mesmo. (...) Por conseguinte, o todo se apresenta como um crculo de crculos, cada um dos quais um momento necessrio, de modo que o sistema de seus elementos prprios constitui a idia completa, que igualmente aparece em cada elemento singular.70
Vemos que Hegel estrutura seu Sistema Filosfico como um crculo de
crculos71. O todo constitui um crculo no qual o princpio retorna a si mesmo atravs
da mediao. Da mesma forma, as partes constitutivas desse todo tambm so
estruturadas como crculos, que expressam igualmente a mesma organizao do todo e
das outras partes. Em cada parte do Sistema Filosfico, portanto, poderamos encontrar
a mesma dinmica circular presente nas demais. Segundo Souche-Dagues, esta figura
do crculo hegeliano, mais do que uma representao ou metfora, o princpio segundo
o qual as determinaes geram-se. O crculo, ento, mostra, ao mesmo tempo, a idia de
fechamento e retorno para o incio.
Entretanto, no se trata de um fechamento finito que encerra o processo
circular.72 A verdade do crculo a infinidade, no enquanto se trataria de um crculo
aberto, o que no teria grande sentido, mas como apresentao de uma infinitizao
imanente, da unidade de si e do Outro e de sua no-unidade, como realizada.73 Da
mesma forma, vemos em Mure que a representao do pensamento de Hegel no pode
se dar de forma retilnea e plana, atravs de uma linha reta, visto que no representa o
movimento de auto-alienao e retorno. Afirma o autor: Se vale a pena que
refinemos mais o smbolo, poderamos imaginar a dialtica como uma srie de espirais
girando sobre si mesmas em crculo.74
Destacamos, contudo, que o crculo, para Hegel, deve ser a representao do
pensamento especulativo, de modo que, no final do processo, ele suprassuma o primeiro
momento da imediatidade e o momento da mediao. Trata-se do modelo que expressa
o retorno no qual se verifica a unidade realizada de determinaes opostas atravs do
seu prprio engendramento. Portanto, esta figura mostra principalmente a dinmica, ou
69 Cf. Labarrire & Jarczyk, 1986, p. 47. 70 Hegel, 1830a/1995, 18, p. 58. 71 A figura do crculo de crculos mostra que a totalidade do sistema no posta como unidade absoluta de suas partes, mas a conservao dos elementos que so negados. Assim, o crculo maior mostra a infinidade do processo total atravs da abertura dos mltiplos crculos. 72 Hegel prope ento de ler o progresso sobre uma imagem, aquela do crculo precisamente, mas na condio de considerar o crculo em seu engendramento, na totalizao de seus momentos, e no como totalidade fechada, finita. (Sauche-dagues, 1986, p. 27) e Este propsito deixa entender que o crculo do Esprito absoluto, crculo infinito, um crculo no fechado, de fato um no-crculo: o que sugere a frmula crculo de crculos (Ibidem, p. 50). 73 Souche-Dagues, (1986). Le cercle hgelien. Paris: PUF, p. 51. 74 Mure, 1965/1998, p. 48.
36 o princpio de funcionamento atravs da qual os elementos filosficos esto
organizados. Afirma Souche-Dagues:
O crculo revela, ento, a significao especulativa da reflexo (...), resoluo das determinaes de onde ela se engendra. Ele a figura privilegiada de uma Lgica no formal, repousando sobre a reunificao da substncia e do sujeito, Lgica da liberdade. Bem longe de ser a imagem de um fechamento, ela indica um retorno (retorno ao si) que no o retorno do mesmo ao mesmo.75
Assim, vemos que o propsito da figura do crculo o de afastar-se de uma
representao retilnea, pois nesta o final no encontra o princpio e no esclarece o
elemento reflexivo presente nas estruturas da Filosofia de Hegel. Assim, a reflexo
central para a compreenso da dinmica dos processos totais ou parciais do pensamento
hegeliano. Ela produz o movimento de retorno num processo de autodeterminao, ou
seja, de um retorno a si mesmo como um outro de si posto por ele mesmo. Assim,
conforme Labarrire e Jarczyk,
Ora, quem diz mediao diz transio, no de um termo a um outro termo, mas mais fundamentalmente de um termo a ele mesmo como outro: do imediato imediato ao imediato realizado, isto , justamente ao imediato mediatizado. Movimento no qual a raiz o tratamento jamais acabado da identidade como alteridade e da alteridade como identidade: eis precisamente o que Hegel chama a reflexo.76
O processo silogstico das estruturas lgico-reais da Filosofia hegeliana, ento,
devem ter como pressuposto para seu desenvolvimento a alteridade. Esta, ento,
necessria para o momento de mediao entre os extremos, pois ela uma diferena
interior atravs da qual ocorre o processo reflexivo. A alteridade, dessa forma, segundo
Labarrire77, mostra-se como alteridade forte no momento em que se d a mediao, ou
seja, no momento em que o outro posto como diferena. No final do processo, a
alteridade no abolida em uma identidade imediata (primeiro momento do silogismo),
mas se encontra em uma identidade da identidade e sua diferena.
Se a reflexo posta como o movimento de mediao, onde a alteridade
apresenta-se verdadeiramente como tal78, devemos investigar a dinmica deste processo
reflexivo. Considerar a reflexividade como mediao, ento, coloc-la como mtodo
do vir-a-ser de tudo o que existe, como motor do desenvolvimento dialtico presente
75 Souche-Dagues, 1986, p. 70. 76 Labarrire & Jarczyk, 1986, p. 25. 77 Cf. Labarrire & Jarczyk, (1996). De Kojve Hegel : 150 ans de pense hglienne en France. Paris: Albin Michel, p. 89ss. 78 Cf. Souche-Dagues, 1986, p. 70.
37 nos mundos lgico e real, a fora radical79 que se encontra em todo o pensamento
hegeliano. Para tanto, daremos prosseguimento ao estudo deste motor lgico que
movimenta todos os elementos lgico-reais, visto que, conforme Hegel, considerando a
Lgica como o sistema das puras determinaes-do-pensamento, as outras cincias
filosficas a filosofia da natureza e a filosofia do esprito [aparecero] por assim
dizer como uma lgica aplicada, pois a lgica sua alma vivificante.80 Assim,
continuamos o estudo, de acordo com a interpretao de Labarrire sobre o estatuto da
alteridade na Cincia da Lgica, enfatizando, a seguir, o momento reflexivo da
Doutrina da Essncia, que a expresso mxima da alteridade.
Na Introduo da Cincia da Lgica, Hegel afasta-se da posio filosfica que
considera a Lgica como a disciplina que trata apenas sobre as formas puras do
pensamento, abstradas de qualquer contedo. Para ele, inapropriado dizer que a
lgica faz abstrao de qualquer contedo, visto que seu objeto constitui propriamente
o pensamento e as regras do pensar. Continua: a carncia de contedo das formas
lgicas se encontra na maneira de consider-las e de trat-las.81 Desse modo, a falta de
objeto da Lgica formal deve-se ao modo como esse objeto concebido. Alm disso,
quando [as formas lgicas] so consideradas como determinaes firmes, e por
conseqncia desligadas, em lugar de serem reunidas em uma unidade orgnica, so
formas mortas, onde j no reside o esprito, que constitui sua concreta unidade
vivente.82 Portanto, a Lgica hegeliana no uma Cincia esttica e organizada por
regras externas, mas uma Cincia que est sujeita ao trabalho do Esprito, quer dizer, ao
desenvolvimento imanente do Conceito no mbito das determinaes do pensamento.
Na Enciclopdia, Hegel apresenta o sentido de Lgica do seguinte modo: A
lgica a cincia da idia pura, ou seja, da idia no elemento abstrato do pensar.83