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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS LIA FRANCO BRAGA PERFORMANCES DE CORPOS BRINCANTES: CULTURA AFRICANA E ARTES CÊNICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL NATAL/RN 2019

LIA FRANCO BRAGA

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Page 1: LIA FRANCO BRAGA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

LIA FRANCO BRAGA

PERFORMANCES DE CORPOS

BRINCANTES: CULTURA

AFRICANA E ARTES

CÊNICAS NA EDUCAÇÃO

INFANTIL

NATAL/RN

2019

Page 2: LIA FRANCO BRAGA

2

LIA FRANCO BRAGA

PERFORMANCES DE CORPOS BRINCANTES: CULTURA

AFRICANA E ARTES CÊNICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-graduação em Artes Cênicas – Stricto

Sensu –, Mestrado Acadêmico em Artes

Cênicas pela Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, como parte dos requisitos

para obtenção do título de Mestre em Artes

Cênicas.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Teodora de Araújo

Alves.

NATAL

2019

Page 3: LIA FRANCO BRAGA

3

Page 4: LIA FRANCO BRAGA

4

FOLHA DE APROVAÇÃO

LIA FRANCO BRAGA

PERFORMANCES DE CORPOS BRINCANTES: CULTURA AFRICANA E ARTES

CÊNICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-graduação em Artes Cênicas – Stricto

Sensu –, Mestrado Acadêmico em Artes

Cênicas pela Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, como parte dos requisitos

para obtenção do título de Mestre em Artes

Cênicas.

Aprovada em: _______ de __________________ de 2019.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________

Prof.ª Dr.ª Teodora de Araújo Alves

Presidente da Banca – Orientadora

__________________________________________

Prof.ª Dr.ª Karenine de Oliveira Porpino

Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Membro interno

_______________________________________________

Prof.ª Dr.ª Kiusam Regina de Oliveira

Universidade Federal do Espírito Santo – Membro externo

Page 5: LIA FRANCO BRAGA

5

Dedico este trabalho a minha ancestralidade, a

minhas(meus) orixás e a meus guias espirituais.

Sem vocês, esta pesquisa não teria se

concretizado!

Em especial, aos gêmeos Ibejis, por abrirem

essa gira, à minha mãe Iemanjá, por guiar meus

passos junto às crianças, à mãe Oxum, pelas

surpresas e encantamentos e a erê Tapuiá, por

me ajudar na reta final!

A todas as crianças, principalmente as que

trilharam comigo este caminho afro-brincante.

Elas enriqueceram as descobertas, as trocas, os

aprendizados e os desafios que, juntas,

experienciamos!

Page 6: LIA FRANCO BRAGA

6

AGRADECIMENTOS

À minha espiritualidade, por me guiar na arte e na educação junto às crianças; obrigada

por me estimularem no exercício de um olhar, um fazer e um experienciar sensível com elas.

A minha avó Elza (in memoriam) por seu amor, carinho e dedicação regados pelas

primeiras histórias que escutei quando criança: obrigada por ter plantado em mim essa

sementinha afetuosa.

Aos meus pais, Elza e Pompeu, e à minha irmã Júlia, pelo amor, apoio e incentivo

incondicional, e pelas discussões que contribuem para meu crescimento pessoal e profissional.

À mamãe, pelo seu exemplo como mulher, mãe, profissional e amiga: obrigada pelo apoio

emocional e profissional. Ao papai, por ser tão afetuoso, protetor e amigo: obrigada por tornar

essa caminhada mais leve e prazerosa. À minha irmã, por poder lhe admirar como a guerreira

que é nessa vida: obrigada pelos questionamentos que me permitiram caminhos fecundos e

críticos, e pela ajuda na edição das fotografias.

Às amigas e aos amigos da vida e da profissão, por tantas trocas e aprendizados

engrandecedores. À Regina Parente, por seu acolhimento, carinho e apoio. À mestra Lenna

Beauty e às irmãs da dança, sempre em conexão na arte e com o sagrado feminino. À Prof.ª

Alba Carvalho, por seu carinho e exemplo como mulher negra e profissional comprometida.

Ao Prof. George Paulino, pelas contribuições iniciais. À Prof.ª Sandra Petit e ao grupo de

pesquisa NACE/FACED/UFC, por terem partilhado conhecimentos e me proporcionado

experiências afro-referenciadas.

Aos afetos do mestrado. À Nanda Mélo e à Natali Assunção, pelo apoio emocional e

as várias trocas artísticas e pessoais. A Ronildo Nóbrega, pelas boas conversas, carinho e auxílio

em algumas fotografias. À melhor amiga e irmã do coração, Daliana Cavalcanti, obrigada pela

sororidade que rege as nossas trocas, pelo apoio emocional e em minha dissertação, com a parte

musical, alguns recursos visuais e outras contribuições.

Ao curso de mestrado e ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN, pelo acolhimento e crescimento

proporcionados.

Às professoras Melissa Lopes e Karyne Coutinho, pelos ensinamentos e trocas: obrigada

pelas tardes sensíveis e poéticas. À Prof.ª Teodora Alves, minha orientadora, pela abertura,

acolhimento, parceria na arte e na educação: obrigada por me apoiar na elaboração de um

trabalho cuidadoso, por suas importantes contribuições, iluminando minha escrita, meu

percurso acadêmico e por sempre me tranquilizar com sua delicadeza. Às professoras Karenine

Page 7: LIA FRANCO BRAGA

7

Porpino e Kiusam de Oliveira, membros da minha banca, pelo acolhimento e pelos

ensinamentos partilhados: obrigada por me ajudarem com seus olhares sensíveis, atentos, e com

suas generosidades, redimensionando importantes cruzamentos artísticos e acadêmicos.

Ao Núcleo de Educação da Infância NEI/Cap/UFRN e aos seus profissionais. Ao

coordenador de projetos, à coordenadora pedagógica da Educação Infantil, ao bolsista de teatro,

à professora de música: obrigada pela abertura, acolhimento e apoio que proporcionaram para

a concretização desta pesquisa. Às professoras responsáveis pela turma participante desta

pesquisa: obrigada pela preciosa ajuda e parceria neste processo. Às crianças participantes da

pesquisa: obrigada por me permitirem brincar, me encantar, me sensibilizar e respeitar suas

narrativas, saberes e culturas afro-brincantes.

Ao revisor Marlo Lopes, pela dedicação e pelo trabalho criterioso, em tempo hábil.

Por fim, à vida, que se apresenta como um eterno retorno às nossas raízes, plantadas

nos chãos férteis de nossos ancestrais: obrigada às mais velhas e aos mais velhos, por nos

prepararem para as lutas cotidianas, sociais e culturais, que mobilizam nosso ser, nosso estar e

nosso experienciar no mundo contemporâneo!

Page 8: LIA FRANCO BRAGA

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RESUMO

Nesta dissertação, desvelo experiências de performances dos corpos brincantes de crianças na

Educação Infantil, estimuladas por elementos da cultura africana, através do universo das

deusas e dos deuses orixás, com centralidade na nação Iorubá. Os processos de criação em arte

nesta pesquisa em Artes Cênicas, desenvolvidos no NEI/Cap/UFRN, envolveram um grupo de

crianças de 5 a 6 anos e contaram com a participação das duas professoras responsáveis pela

turma, bem como de outros profissionais da referida instituição. Foram desenvolvidas

observações, entrevistas com adultos, diálogos com as crianças e oficinas artísticas com

mediação lúdica: contações de histórias e jogos/brincadeiras corporais ancoradas nas

linguagens da dança e do teatro, assim como o uso de elementos de musicalidade. Os desenhos

das crianças, as fotografias e os registros em vídeo enriqueceram as narrativas e proporcionaram

uma maior aproximação com o fenômeno vivenciado. Os trabalhos de Merleau-Ponty em seu

olhar fenomenológico sobre o corpo e a infância, bem como a proposição da pesquisadora

Marina Machado, especialmente com o conceito de criança performer, entre outros autores,

fundamentaram meu percurso teórico-metodológico. As ancoragens sobre africanidades,

negritude e orixás, com base em autores como Kabengele Munanga, Clyde W. Ford, Teodora

Alves, Sandra Petit, Kiusam de Oliveira e Reginaldo Prandi, entre outros, com suas abordagens

e conceitos afro-referenciados, subsidiaram um olhar crítico e reflexivo para esta pesquisa, de

modo a reconhecer e valorizar as riquezas afrodescendentes na Educação Infantil. Este percurso

acadêmico, artístico e político corrobora a aplicabilidade da Lei nº 10.639/03, na medida em

que a arte no cotidiano escolar tem um papel relevante na disseminação de diálogos, saberes e

práticas que favoreçam relações étnico-raciais mais inclusivas e democráticas. A riqueza, a

intensidade, as trocas e os aprendizados com as crianças moveram um fazer afro-poético

respaldado em uma ancestralidade africana, alargando e intensificando nossas experiências

brincantes.

Palavras-Chave: Performances. Corpos Brincantes. Cultura Africana. Artes Cênicas. Educação

Infantil.

Page 9: LIA FRANCO BRAGA

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ABSTRACT

In this dissertation I reveal experiences of the children’s playing bodies in kindergarten,

stimulated by elements of African culture, through the universe of the godness and gods orixás,

with centrality in the Yoruba nation. The art creation processes in performing arts research

developed at NEI / Cap / UFRN, involved a group of 5 and 6 year olds, the participation of the

2 teachers responsible for this class and other professionals of the institution. It was developed

observations, interviews with adults, dialogues with children and artistic workshops with

playful mediation: storytelling and body games, anchored in the languages of dance, theater

and the use of elements of musicality. Children's drawings, photographs and video records

enriched the narratives and a closer approximation of the phenomenon experienced. The author

Merleau-Ponty and his phenomenological look on the body and childhood, as well as the

proposition of the researcher Marina Machado, especially with the concept of child performer,

among other authors, supported my theoretical and methodological path. Anchorages on

Africanities, blackness, orishas, based on authors such as Kabengele Munanga, Clyde W. Ford,

Teodora Alves, Sandra Petit, Kiusam de Oliveira, Reginaldo Prandi, and others, with their Afro-

referenced approaches and concepts, subsidized a critical and reflective path in order to

recognize and value the African descent riches in early childhood education. This academic,

artistic and political course corroborates the applicability of Law No. 10,639 / 03, as art in

everyday school has a relevant role in the dissemination of dialogues, knowledge and practices

that favor more inclusive and democratic ethnic-racial relations. The richness, intensity,

exchanges and learning with the children moved an Afro-poetic doing backed by an African

ancestry, broadening and intensifying our playful experiences.

Keywords: Performances. Playful Bodies. African Culture. Performing Arts. Child Education.

Page 10: LIA FRANCO BRAGA

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Orixá Exu Mirim ................................................................................................. 13

Figura 2 – Exú ...................................................................................................................... 17

Figura 3 – Iemanjá por Carybé ............................................................................................ 20

Figuras 4 e 5 – Espetáculo Cearábia / Iemanjá .................................................................... 22

Figura 6 – Lia criança .......................................................................................................... 23

Figura 7 – Lia adulta ............................................................................................................ 24

Figura 8 – Logotipo Brincando com Africanidades............................................................. 28

Figura 9 – Terça-feira é dia de Ogum, o orixá dos caminhos e da guerra ......................... 35

Figura 10 – Ibejis ................................................................................................................. 58

Figuras 11 e 12 – Os gêmeos Ibejis numa aventura dançante ............................................. 61

Figura 13 – Retratos de Olinda, Baianinha .......................................................................... 79

Figura 14 – Oxum ganhou o título de protetora das crianças ............................................... 80

Figura 15 – Arquétipo de alguns orixás ............................................................................... 100

Figura 16 – Lia aos pés do Baobá, de 110 anos, no passeio público, em Fortaleza-CE ...... 111

Figura 17 – Oriki’s, as evocações poderosas dos orixás ..................................................... 127

Figura 18 – Ciranda de Lia ................................................................................................... 127

Figura 19 – Valores civilizatórios afro-brasileiros ............................................................... 129

Figura 20 – Circularidades afro-brincantes .......................................................................... 131

Figura 21 – Jogo/brincadeira corporal “Não deixe o balão cair” ......................................... 133

Figura 22 – Crianças representando Ibejis levando água para o povoado ........................... 143

Figura 23 – Kalimba ............................................................................................................. 146

Figura 24 – Oxum e seus encantos na contação de histórias ................................................ 153

Figura 25 – Dançando as águas de Oxum ............................................................................ 158

Figura 26 – Guerreiros e guerreiras de Ogum dançam ........................................................ 162

Figura 27 – Dançando o fogo de Xangô .............................................................................. 164

Figura 28 – Dançando os ventos de Iansã ........................................................................... 166

Figura 29 – Orixás pelas crianças ........................................................................................ 173

Figura 30 – Gingando e dançando capoeira ......................................................................... 174

Figura 31 – Lia mirando-se nos Abebés (espelhos) com as bonecas

Iemanjá orixá e Janaína sereia ..................................................................... 180

Figura 32 – Oxóssi ................................................................................................................ 191

Page 11: LIA FRANCO BRAGA

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Síntese das(os) orixás ........................................................................................ 53

Quadro 2 – Perfil das(os) entrevistadas(os) ......................................................................... 75

Quadro 3 – Nomes fictícios e perfil das(os) participantes ................................................... 77

Quadro 4 – Circularidades afro-brincantes ........................................................................... 131

Page 12: LIA FRANCO BRAGA

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO – EXU, SEM ELE NINGUÉM FAZ NADA......................................... 13

1.1 Conhecendo as(os) Orixás ............................................................................................. 14

1.2 Memórias Narradas ........................................................................................................ 17

1.3 Trajetos e Percursos ....................................................................................................... 20

1.4 Problematizações ........................................................................................................... 23

1.5 Situando o Objeto de Estudo e os Objetivos ................................................................. 28

1.6 Desenho da Pesquisa ..................................................................................................... 32

CAPÍTULO 1 – OGUM: O SENHOR DOS CAMINHOS ............................................. 35

2.1 A Fenomenologia como Eixo Metodológico e outras Correlações ............................... 35

2.2 Ancoragens Artísticas e Metodologias Lúdicas ............................................................ 42

2.3 Metodologias Afro-Brincantes e seus Desdobramentos ................................................ 47

2.4 Locus da Pesquisa .......................................................................................................... 66

2.5 Participantes da Pesquisa ............................................................................................... 73

CAPÍTULO 2 – OXUM: O ESPELHO DO ENCANTAMENTO ................................. 79

3.1 Percepções e Proposições sobre Infâncias ..................................................................... 80

3.2 Travessias entre Corpos Brincantes e Corpos-Porosos .................................................. 92

3.3 A Lei nº 10.639/03 e as Rodas Afro-brincantes: A Quantas Andam? ........................... 100

3.4 Histórias de Orixás: Contar e Brincar com o Corpo ...................................................... 114

CAPÍTULO 3 – BRINCANDO COM OS GÊMEOS IBEJIS E

OUTRAS(OS) ORIXÁS ............................................................................................. 127

4.1 Construindo Saberes Circulares ..................................................................................... 127

4.2 As Crianças e suas Criações Artísticas .......................................................................... 133

4.3 As Crianças e suas Imersões na Natureza ...................................................................... 143

4.4 As Crianças e suas Brincadeiras com as Deusas e os Deuses ....................................... 153

4.5 As Crianças e suas Relações com a Negritude .............................................................. 174

TRILHAS PERCORRIDAS... NOVOS HORIZONTES

OXÓSSI, O CAÇADOR: DESBRAVANDO SUAS MATAS ......................................... 191

REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 199

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR ........................................................................... 204

MATERIAL AUDIOVISUAL COMPLEMENTAR ...................................................... 205

APÊNDICE: PLANEJAMENTO DAS OFICINAS ....................................................... 206

Page 13: LIA FRANCO BRAGA

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INTRODUÇÃO – EXU: SEM ELE NINGUÉM FAZ NADA

Exu, o menino brincalhão

Exu me acordou no escuro e disse que sem ele ninguém faz nada

Eu é que fiquei no escuro sem entender nada

Exu, aquele menino negro e risonho me deixou na dúvida

Ele fez mesmo de propósito, mas não por maldade

Exu me apontou caminhos, possibilidades, possíveis descobertas

Eu me pus a chorar sem saber o que fazer

Ele então soprou no meu ouvido: “A resposta está dentro de você!”

Então comecei a buscar o que de fato eu queria

Buscar a mim mesma

Nessa busca por mim, compreendi que era feita de sombra e de luz

Os dois lados da mesma moeda se tornaram multicoloridos

E meu mundo ficou mais divertido

Assim como Exu, leve, sagaz, trapaceiro

Trapaceiro, como assim?

Exu trapaça com aquele que não quer olhar para si mesmo

Ou aquele que desrespeita a rua, sua morada

Exu na verdade é um bom parceiro

Pois só quem pode se iludir é você mesmo, que não quer enxergar

Que lugar de criança negra não é na enxada

Que ouvido de criança negra não foi feito para escutar desaforo como “cabelo de Bombril!”

Que olhos de criança negra não foram feitos para não se verem nas bonecas ou nos livros infantis

Que boca de criança negra não foi feita para dizer que “negro é feio!”

Criança negra é linda!

Ela é toda feita de noite, com seus cabelos cacheados, de nuvem ou trançados

Ela pode ser quem ela quiser

Aliás, toda e qualquer criança deveria ser respeitada e amada por ser quem é

Exu é brincalhão, mas quando quer ele não está para brincadeira

Exu, menino da noite, que se esconde nos becos das ruas e que brinca no chão dos terreiros

Solto, livre, aprendeu a se virar

Exu, mas porque mesmo ninguém faz nada sem ele?

Porque ele é um deus Iorubá, um dos primeiros deuses

Senhor do movimento, da comunicação, da energia vital, “Exu, a boca do universo!”

Exu, menino deus, me permita então iniciar essa nova jornada!

Que eu possa escutar as crianças, dar voz às mesmas e que, juntas, possamos brincar

Que eu também possa transmitir o que tanto aprendi com vocês: respeito, amor, cuidado e valorização!

A essa cultura que tanto pulsa em meu coração!

Vamos agora descobrir qual é?!

(Lia Braga, Natal/RN, novembro de 2018)

FIGURA 1 – ORIXÁ EXU MIRIM

Fonte: Google Imagens (internet).

Page 14: LIA FRANCO BRAGA

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1.1 CONHECENDO AS(OS) ORIXÁS

[…] Corri para roda

E já fui logo brincando

Fui me achegando

E a lua quis me abraçar

Dancei ciranda Cirandei a noite

Inteira

E adormeci nos

Braços dos Orixás. (Valter Silva para Lia Itamaracá)

A partir do trecho da música Ciranda em Noite Clara, pertencente ao CD Ciranda dos

Orixás1, criado e produzido pelo grupo Tempo de Brincar, pode-se perceber relações intrínsecas

entre o divertir-se com o corpo através da dança, da natureza e do aconchego das(os) orixás.

Essa letra me faz recordar da minha ligação com essas deusas e deuses e a sensação, desde o

primeiro contato com este universo, de ter sentido o meu corpo pulsar, como em uma festa.

Uma festa repleta de alegria, conexão e encantamento. Um corpo-festa acolhido por um

encontro ancestral, ancestralidade esta que me guia nos rumos desta pesquisa2. Existe, nesta proposta, estreita relação com minha trajetória pessoal, artística e

acadêmica; portanto, um tom autobiográfico será bastante presente. Nesse sentido, aportarei

algumas memórias a partir de minha infância, e, assim, entrelaçarei algumas conexões com as

temáticas que aqui serão desenhadas ao longo da tessitura dessa narrativa poética e lúdica.

Mas antes de situar-me enquanto proponente e pesquisadora a partir destas

revisitações, faço um convite de aproximação ao universo das(os) orixás. Para nós, adeptos das

religiões de matriz afro-brasileira, orixás são deusas e deuses ou divindades ancestrais africanas

que representam, ou simbolizam, elementos da natureza, sendo guardiãs(ões) e protetoras(es)

desta. Por ocasião da banca de qualificação desta dissertação, Kiusam de Oliveira, educadora,

docente, escritora, artista e iyalorixá (mãe de santo) – zeladora espiritual, sacerdotisa de um

terreiro –, explicitou o seguinte sobre o termo orixá: “[…] de origem Iorubá, Ori significa

‘cabeça’, e Sá (Xá) significa ‘protetor’. Orixá é considerado, portanto, um ‘protetor de cabeça’,

uma espécie de anjo da guarda para quem é católico, por exemplo […]”.

1 TEMPO DE BRINCAR. Ciranda dos Orixás. Sorocaba, SP: Tratore, 2017. 1 CD (ca. 51 min.) 2 Junto ao Mestrado e Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN, vinculado à linha de pesquisa “Práticas investigativas da cena: poéticas, estéticas e pedagogias”.

Page 15: LIA FRANCO BRAGA

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Essas divindades protegem a natureza e também a nós, seres humanos. Esses vínculos

de proteção e harmonização podem ser evidenciados nas falas de crianças, no documentário

Brincando com os deuses3, sobre a infância em um terreiro de Candomblé, em Guarulhos, São

Paulo, em 2010:

Ah, cada santo tem poder, meu santo mexe com o fogo, Iemanjá mexe cá água […]

Oxum mexe cá cachoeira, Ogum mexe cá guerra […] Xangô é o rei da justiça e… é o

dono do fogo, que mora na… nos altos, nos topos da montanha… que é meu orixá, e

eu gosto muito dele! (Pedrinho de Xangô).

[…] É uma rainha do mar [...]ela guerreia, tem espelho […]. Então, eu sou de Iemanjá

e Iemanjá é mãe de Omulu […] (Kailane de Iemanjá).

[…] Orixá… é um santo, que cuida das pessoa […] (Malu de Omulu).

[…] Orixá para mim é paz… é saúde […]. Para mim, ele é uma árvore, mas é um tipo

de humano que mora dentro da árvore […]. Essa árvore representa Iroco, que é uma

criança, que come canjica […] (Luana de Iroco).

[…] Aquele que… que, se você tem, ele fica com você; para mim [...] é um santo,

uma harmo… muita harmonia assim […] (Nicole de Iemanjá).

Para estas crianças de diversas idades, é interessante observar as relações que elas

estabelecem com essas divindades, a partir de experiências espirituais na religião do

Candomblé. Suas formas de perceber e compreender quem são essas(es) deusas(es), e as

associações entre os santos, segundo elas mesmas, evidenciam emoções ao explicitarem

sensações e representações de harmonia, paz, cuidado e saúde.

São divindades africanas que detêm poder sobre a natureza e, ao mesmo tempo em que

simbolizam ser a sua própria extensão, também expressam o homem incorporado a ela. Como

quando a menina Luana de Iroco afirma: “[…] Para mim, ele é uma árvore, mas é um tipo de

humano que mora dentro da árvore […]. Essa árvore representa Iroco, que é uma criança [...]”.

Mas, diferentemente de contextos ocidentais, esse poder está associado a valorização,

cuidado e manutenção da natureza, e não a destruição e exploração, como o que se observa na

devastação da Amazônia, atualmente centro das discussões políticas entre Brasil e outros países

do mundo. Esses e outros debates denotam uma postura autoritária dos governantes, além de

explicitarem interesses estratégicos e econômicos que fragilizam a sustentabilidade e a

soberania de nosso país.

A perspectiva de conscientização ecológica que o universo dessas divindades nos

propicia, ao construir várias relações, será melhor explicitada ao longo deste trabalho. A partir

3 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9tzDZpOkHB8>. Acesso em: 10/07/2019.

Page 16: LIA FRANCO BRAGA

16

disso, pode-se refletir sobre possíveis caminhos metodológicos nesta pesquisa com crianças,

pelos cruzamentos afro-referenciados nas Artes Cênicas e na Educação.

O fotógrafo e antropólogo francês Pierre Verger dedicou parte de sua vida e obra a

pesquisar as expressões culturais afro-baianas e diaspóricas, principalmente as manifestações

religiosas do Candomblé. Morou em Salvador (Bahia/Brasil) e em África, foi iniciado como

babalaô – considerado o adivinho de um jogo do Ifá, jogo oracular africano jogado através de

búzios, com acesso a tradições orais dos Iorubás – e recebeu o nome espiritual de Fatumbi.

Suas vivências e pesquisas com as temáticas já mencionadas foram desenvolvidas

principalmente nos países da África Ocidental, principalmente Nigéria e Benin, a partir de 1948.

Em Salvador, em 1988, ele criou a Fundação Pierre Verger (FPV), tendo sido doador,

mantenedor e presidente até o seu falecimento, em 19964.

A partir das contribuições do autor (VERGER, 2018), percebe-se que em África, mais

especificamente em regiões onde se cultuam orixás, há dois importantes eixos que regem sua

lógica. O primeiro é a noção de pertencimento, da família vinculada a seus ancestrais, em vida

ou em morte. O segundo, já mencionado anteriormente, é a importância da relação com a

natureza, a que o ser humano é integrado:

[…] A religião dos orixás está ligada à noção de família. A família numerosa,

originária de um mesmo antepassado, que engloba os vivos e os mortos. O orixá seria,

em princípio, um ancestral divinizado, que, em vida, estabelecera vínculos que lhe

garantiam um controle sobre certas forças da natureza, como o trovão, o vento, as

águas doces ou salgadas, ou, então, assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas

atividades, como a caça, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o conhecimento

das propriedades das plantas e de sua utilização (VERGER, 2018, p. 26).

Pode-se analisar historicamente, a partir do tráfico negreiro, que africanos

escravizados em suas terras natais, obrigados a ir a outros lugares, vivendo e trabalhando em

condições desumanas, adaptaram-se de diferentes formas, ao resistirem e expressarem suas

manifestações culturais. No tocante a essas manifestações e expressões, observamos diferenças

entre o culto religioso das(os) orixás no continente africano e em nosso país, o Brasil. Na África,

uma divindade detém poder sobre uma determinada região, mas pode ser desconhecida em

outra, que possui regência de outra divindade (VERGER, 2018).

Já em nosso país, devido à necessidade de reorganização dos nossos ancestrais

africanos, as(os) orixás foram reunidos em uma espécie de mesmo aglomerado ou panteão, e

dezesseis são os mais cultuados no Brasil – mesmo que em um determinado terreiro, por

4 Informações extraídas do site oficial da Fundação, <http://pierreverger.org/br/>.

Page 17: LIA FRANCO BRAGA

17

exemplo, uma divindade esteja à frente, zelando pela casa espiritual, e, em outro terreiro, já

seja outra.

É importante frisar que no continente africano, territorialmente extenso e rico em sua

diversidade étnica, cultural e social, existem outras crenças não vinculadas a orixás; porém, em

nosso país, é inegável a herança africana vinculada a esse universo. Tal herança se manifesta,

por exemplo, nas religiões (Umbanda e Candomblé, entre outras), nas músicas, danças e

expressões culturais (samba, carnaval, capoeira, dança dos orixás, afoxé, músicas de cantoras

como Clara Nunes, Maria Bethânia e Mariene de Castro, entre outras), nas comidas (caruru e

acarajé, entre outras) e em vários aspectos de nossa cultura.

Tudo isso demonstra como um amplo campo de conhecimentos e de manifestações

estão entrelaçados entre África e Brasil. E, nessa reunião, um círculo se retroalimenta entre

aqueles que vieram antes e aqueles que perpetuam, hoje, seus ensinamentos. Um círculo que é

uma “gira”, expressão conhecida e vivenciada por nós de religião de matriz afro-brasileira.

“Gira”, que pode remeter à expressão “girar”: o ato de rodar em forma circular e que também

se refere às “giras”, encontros espirituais realizados no formato de rodas.

O conceito de gira me traz uma circularidade e maleabilidade interessante, para assim

percorrer os caminhos de minha escrita dentro de uma roda, em que a arte e a academia estão

de mãos dadas, a partir de minhas experienciações.

1.2 MEMÓRIAS NARRADAS

Após esta breve apresentação sobre orixás, reporto-me

então ao deus que abre esta escrita. Narra um mito que Exu (Figura

2) tinha uma fome voraz e nada o aplacava (PRANDI, 2001). Ele já

havia comido todos os animais da aldeia em que vivia, as frutas e os

vegetais; havia bebido a cerveja, o azeite de dendê e tantas outras

coisas; já estava devorando as árvores e até mesmo ameaçava engolir

o mar. Orunmilá, o deus da adivinhação, percebeu que Exu acabaria

até por comer o céu; então, ele pediu a Ogum, irmão de Exu, que ele

o parasse a qualquer custo, e eis que Ogum teve que matar Exu.

Mesmo assim, o espírito de Exu continuava esfomeado e não parava

de comer tudo e todos. Um sacerdote, então, consultou o oráculo de

Ifá, um sistema de adivinhação que revelou que o espírito de Exu

FIGURA 2 – EXU

Fonte: Google Imagens

(internet).

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pedia atenção, e que sua fome precisava ser aplacada. Orunmilá, ao obedecer ao oráculo,

ordenou que, a partir daquele momento, nas oferendas que fizessem aos orixás, deveria ser

servida a comida a Exu em primeiro lugar, para que a paz e a tranquilidade reinassem entre os

homens (PRANDI, 2001).

Exu, portanto, é o deus ou a divindade a quem devemos pedir permissão primeiro; e,

diferentemente da imagem ocidental a que o associam, a do diabo, ele é um dos orixás mais

próximos de nós, humanos – visto que orixás são deuses e deusas imperfeitos(as), com

qualidades e defeitos, assim como nós. Com Exu eu sempre aprendi muito; por exemplo, que a

vida é transitória, visto que ele é também considerado o deus do movimento, o que nos conecta

com um lado mais jocoso e mais leve da vida.

Também tenho aprendido que a vida é feita de escolhas, visto que Exu aponta diversos

caminhos. Talvez por isso algumas pessoas tenham uma imagem de dubiedade desse deus, de

algo obscuro. Exu espelha nosso lado mais escondido, aquele para o qual não queremos olhar,

e é aí em que residem as saídas, a luz no fim do túnel. As respostas residem em nós mesmos.

Com Exu, eu espelho a minha fome de viver, esta que alimenta a vontade de pesquisar,

de buscar, de dizer a que vim ao mundo. Foi através de minha descoberta espiritual que minha

vida começou a ter mais sentido para mim, aos 23 anos de idade. Na Umbanda, religião

brasileira sincrética de matrizes – como a africana, a indígena e a cigana, entre outras –, deu-se

meu encanto por este diálogo diverso. Através de meus guias (espíritos protetores), descobri ter

relação com e herança do Candomblé, religião também brasileira, desencadeada no contexto

escravocrata, fortemente relacionada à matriz africana e um dos símbolos de resistência dos

nossos antepassados negros.

Entre o tempo em que fui de terreiro (com experiências com outros adeptos dessas

religiosidades) e os dias atuais, já se passaram sete anos – sete anos que me tornei “filha de

santo”, termo utilizado para designar os adeptos/praticantes das religiões de matriz afro-

brasileira. Apesar de não ter mais um laço espiritual com o terreiro e com seus adeptos, busco

praticar os ensinamentos que aprendi e me conectar com minha espiritualidade cotidianamente. Considero então que, após o meu despertar espiritual, eu renasci para mim mesma, e

tenho renascido sempre que a vida me impulsiona a ter um olhar mais maduro – outro

aprendizado com Exu, o de conectar-me com a pulsão de vida que existe em mim enquanto uma

mulher adulta.

Tornar-me mulher tem me proporcionado refletir sobre o sentido de ser mãe, do gerar

e do cuidar. Tenho experienciado uma pulsão de vida e de morte, toda entranhada em meu útero.

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A morte me acompanha desde o meu nascimento, pois, quando nasci, minha mãe biológica

faleceu no parto; quando ela literalmente me deu a vida, o seu sopro físico se apagou.

Quando pequena, segundo minha mãe adotiva narrou – na época eu devia ter de três

para quatro anos de idade –, ao ver uma foto dela grávida de minha irmã, perguntei por que ela

não tinha uma foto comigo dentro da barriga dela. Acredito que esse foi o primeiro momento

em que ela revelou a minha história e me disse que ela era a minha mãe do coração, e que a

minha mãe da barriga estava no céu. Uma prima que cuidou muito de mim quando eu era

criança e quando meus pais viajavam também narrou que eu devia ter de quatro para cinco anos

quando lhe disse que eu tinha cinco mães: “[…] a mãe da barriga que eu nasci, a mãe Elza, que

me criava, a vovó Elza, a mamãe do céu e a Paulinha, que cuidava de mim quando mamãe

viajava […]”.

Sinto que, diante de tantos sentimentos e cuidados maternos, passei a me conectar mais

com minhas mães biológica e adotiva, e também com minha mãe de cabeça5, Iemanjá (Figura

3). Ainda assim, por um período extenso da minha vida, eu não conseguia suprir o vazio que

sentia em relação a minha origem.

Iemanjá é considerada a grande mãe de todas(os) as(os) orixás, e tem uma relação

especial com as crianças, protegendo-as da morte – assim como aconteceu comigo ao nascer.

Apesar de não ter certeza, eu desconfio que uma qualidade de minha Iemanjá – uma espécie de

atributo ou especificidade – seja Iemanjá Acurá.

5 Mãe ou pai de cabeça, na Umbanda ou no Candomblé, significa a(o) principal orixá que rege a sua vida e o seu

caminho espiritual, e do qual você herda principalmente as características. Contudo, pode haver outras(os) orixás

em sua coroa ou linhagem espiritual.

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Iemanjá Acurá ou Akurá é a mais jovem de todas as Iemanjás. Tem um

caráter alegre e infantil, talvez por sua associação ao culto dos Ibejis

(Ibéji), aos quais devota profundo amor, conforme relatado por Lydia

Cabrera (CABRERA, 1989). Se Iemanjá Acurá está associada aos

Ibejis e, assim como eles, protege as crianças das doenças e da morte,

ela também participa de um outro rito propiciatório muito importante

no controle da mortalidade infantil, rito referente aos abicus (abíku).

Por outro lado, protege seus devotos do assédio de Icu (Ikú, a Morte)

(VALLADO, 2002, p. 46-47).

Sobre minha mãe biológica, tenho poucas

informações: ela era do interior do Ceará e tinha 19 anos

quando nasci. Espiritualmente falando, a revelação de meus

guias sobre minha herança de Candomblé vem através dela.

Sinto-a sempre espiritualmente ao meu lado e lhe agradeço

muito por ter me gerado a vida, e por eu sentir de fato essa

conexão com minha ancestralidade africana. Atualmente, não saber muito sobre a minha origem

dói menos; sei que algumas lacunas não serão preenchidas, e

perguntas sobre a minha origem talvez não sejam

respondidas. Essa invisibilização de minha história me motiva a me refazer na vida a partir de

minha outra família e das oportunidades que ela sempre me proporcionou.

Também considero a admiração que tenho por meus pais e minha irmã. Os dois

primeiros, sociólogos, me inspiram em minhas práticas artísticas e educacionais. Minha mãe,

além de professora, milita pelas causas sociais dos moradores de periferia, dos quilombolas e

da segurança alimentar e nutricional. Meu pai, ligado a questões agrárias, especificamente à

reforma agrária, atualmente tem se dedicando à causa dos direitos dos idosos. Eles sempre

proporcionaram, à minha irmã – artista e fotógrafa – e a mim, amor, cuidado e apoio ao longo

da vida, bem como o exercício de um olhar mais crítico e consciente diante das relações e

problemáticas sociais que, em muitos casos, geram processos de exclusão.

1.3 TRAJETOS E PERCURSOS

Tenho memórias curiosas, alegres e afetuosas de minha infância: os países em que já

morei, as cidades que visitei, as culturas que conheci, o contato íntimo com a natureza. Desde

criança, fui estimulada por meus pais e alguns professores a vivenciar o universo das artes, e

FIGURA 3 – IEMANJÁ POR CARYBÉ

Fonte: Google Imagens (internet).

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foi nessa fase que me descobri como artista. Assistir a espetáculos, observar obras em museus,

escrever, desenhar, pintar, frequentar aulas de dança, teatro, canto, música e pintura foram

experiências que positiva e afetivamente influenciaram e motivaram minha escolha de propor

um estudo inserido no universo infantil.

Ao aprofundar essas vivências na adolescência, me assumi como artista e, na fase

adulta, destaco algumas experiências que foram fundamentais na minha trajetória profissional

em minha cidade, Fortaleza/CE: o curso Princípios Básicos de Teatro/CPBT, um dos principais

cursos de iniciação teatral em minha cidade, com o artista e educador João Andrade Joca; e o

grupo Centro de Experimentação em Movimentos/CEM, coletivo de teatro/dança

contemporânea coordenado pela artista Silvia Moura. Essas e outras vivências me

proporcionaram descobertas do corpo a partir do teatro e da dança, como poéticas sensíveis e

passíveis de criação e construção artística. Seus diversos estímulos geraram uma teia de

reflexões e experienciações híbridas ou múltiplas de sentidos acerca da conscientização,

sensibilização, criação e expressão corporal/artística.

A partir de 2010, ao cursar a graduação em Licenciatura em Teatro, do Instituto

Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), ingressei no campo do ensino em

Arte nas escolas públicas, o que redirecionou minha trajetória como artista e proporcionou a

minha descoberta como educadora. Em 2011, realizei minha primeira experiência de ensino no

Programa Mais Educação, do Ministério da Educação (MEC) em parceria com a Prefeitura de

Fortaleza/CE6. Outras práticas foram vivenciadas em minha época de bolsista, no período de

2012 a 2015, pelo Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência

(PIBID/CAPES/IFCE) de Teatro7.

O meu interesse pela Educação Infantil se aprofundou a partir da pesquisa realizada

com um grupo de crianças de cinco e seis anos, em instituição pré-escolar de Fortaleza/CE, por

ocasião de minha monografia de término do curso, publicada sob a forma de livro, cujo título é

Onde o Corpo é Jogo: Uma Mediação Lúdica na Educação Infantil (BRAGA, 2017).

Durante o desenvolvimento da pesquisa, verifiquei a possibilidade de o corpo tornar-

se jogo na Educação Infantil, com mediação lúdica através de brincadeiras/jogos corporais,

ancorados nas linguagens artísticas da dança e do teatro. Portanto, a partir de então, passei a

priorizar a pesquisa sobre corpos brincantes de crianças nessa etapa da Educação Básica.

6 Fui monitora de dança, recreação e teatro para alunos do Ensino Fundamental e alguns adolescentes com defasagem escolar, com idades entre seis e dezessete anos. Em 2013 e 2014, retomei a monitoria em dança em escolas de Ensino Fundamental. 7 Fui bolsista em duas escolas públicas: uma de Ensino Fundamental e Médio, de agosto de 2012 a março de 2014, e a outra, de Ensino Médio, de abril de 2014 a janeiro de 2015, ambas em Fortaleza/CE.

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Recordo que em algumas de minhas experiências de ensino presenciei situações que

denotavam preconceitos contra pessoas negras. Por exemplo, vi crianças negando a sua

negritude e observei posturas de discriminação em relação às manifestações culturais africanas,

quando organizei e dirigi um processo artístico que culminou em uma apresentação inspirada

nos arquétipos e nas danças de orixás, da nação Iorubá8, com estudantes de Ensino Médio.

Dando continuidade à minha formação artística fora da universidade, entre 2015 e

2016, participei de alguns cursos e oficinas voltados para expressões de matrizes culturais

africanas e afro-brasileiras, envolvendo principalmente as danças e os arquétipos de orixás. Em

2016, comecei a dançar no Estúdio de Dança da bailarina Lenna Beauty, em minha cidade, com

foco em danças ciganas e orientais, privilegiando o contato com diversas origens e as fusões

destas danças. Em 2018 e 2019, integrei, como dançarina, o espetáculo Cearábia9, criado por

Lenna e pelo músico e produtor Yury Kalil, dirigido pela coreógrafa Cristiane Azem. Para além

do intenso processo artístico de estudo e de criação, esse espetáculo é muito significativo para

mim, pois, em um dos números, danço representando Iemanjá (Figuras 4 e 5):

Vale destacar ainda, minha inserção no grupo de pesquisa intitulado Núcleo das

Africanidades Cearenses (NACE), vinculado à Faculdade de Educação (FACED) da

8 Grupo étnico-linguístico originário da África Ocidental. No Brasil, reverberaram algumas de suas principais

manifestações religiosas e culturais, em que se cultuam orixás. 9 Este espetáculo reúne dança e música; é uma jornada através das origens da miscigenação e das influências

orientais, ciganas, africanas, indígenas, islâmicas, judaicas e cristãs no Ceará.

FIGURAS 4 E 5 – ESPETÁCULO CEARÁBIA/ IEMANJÁ

Fonte: Fotografias de Luiz Alves.

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Universidade Federal do Ceará (UFC), entre 2016 e 2017, o que proporcionou-me

aprofundamentos teóricos e práticos sobre as africanidades. O NACE é coordenado pela

professora Dra. Sandra Petit, pesquisadora e educadora que procura problematizar e trazer

novas possibilidades em se tratando de uma educação afro-referenciada.

As experiências mencionadas foram importantes para ampliarem o meu olhar e o meu

repertório artístico, corporal e acadêmico, diante das temáticas e do estudo que aqui foi

desenvolvido.

1.4 PROBLEMATIZAÇÕES

Revisitando minhas memórias, lembro que,

quando criança (Figura 6), a tez da minha pele era mais

escura; e ao confundir minha data de nascimento, uma

amiga me dissera: “É, só podia ter nascido mesmo na

escravidão”. Esse comentário reproduzia racismo

quanto ao meu tom de pele, que na época era mais

escuro do que atualmente. Também meus cabelos

cacheados foram um traço a mais, certamente

associados à negritude. Na adolescência, alisei meus

cabelos para, provavelmente, tentar me enquadrar aos

padrões socialmente impostos de estética e beleza – o

padrão do embranquecimento como estratégia para

retirar, apagar ou minimizar traços associados à

negritude.

FIGURA 6 – LIA CRIANÇA

Fonte: Arquivo pessoal.

Page 24: LIA FRANCO BRAGA

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Com meu processo de amadurecimento pessoal,

concomitantemente ao desenvolvimento da pesquisa, foi

possível retomar e aprofundar as reflexões sobre o meu

pertencimento étnico-racial. Pelo censo do Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sempre me

reconheci como parda, apesar de achar essa palavra muito

estranha. Passei por uma fase em que me reconheci como

negra de pele clara e, após o contato com pesquisadores

negros e alguns questionamentos, percebi a confusão que

pairava acerca do meu processo de identidade. Depois,

comecei a me reconhecer como mulher branca, mas sentia

que nem o lugar de negra, nem o lugar de branca

abarcavam a minha miscigenação. Assim sendo, hoje, me

reconheço como uma mulher miscigenada (Figura 7).

Este reconhecimento, por vezes ainda

inquietante para mim, é desassociado de um olhar

romântico sobre a ideia de que nós, brasileiros, convivemos bem e respeitosamente com as

diferenças, o que infelizmente não ocorre. Historicamente no Brasil, a mestiçagem se deu

inicialmente por um processo brutal de violência sexual em relação às mulheres indígenas e

africanas, e os primeiros mestiços são frutos dessa violência (DUARTE, 2015). A partir das contribuições do antropólogo e professor Kabengele Munanga, percebe-

se que a mestiçagem ocorre também de um ponto de vista biológico: “É concebida como uma

troca ou um fluxo de genes de intensidade e duração variáveis entre populações mais ou menos

contrastadas biologicamente […]” (MUNANGA, 1999, p. 17). Ainda assim, faz-se necessário

um olhar consciente e crítico para perceber que este é um processo marcado pela violência, e

também por uma construção sócio-histórica e cultural imposta ideologicamente pela classe

dominante, que visava a construir estratégias de poder para assim embranquecer a população

brasileira e enfatizar o mito da democracia racial:

[…] baseado na dupla mestiçagem biológica e cultural entre as três raças

originárias, tem uma penetração muito profunda na sociedade brasileira: exalta a

idéia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e

grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades e

impedindo os membros das comunidades não-brancas de terem consciência dos

sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na sociedade. Ou seja, encobre

os conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e

afastando das comunidades subalternas a tomada de consciência de suas

FIGURA 7 – LIA ADULTA

Fonte: Arquivo pessoal.

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características culturais que teriam contribuído para a construção e expressão de

uma identidade própria (MUNANGA, 1999, p. 80).

Nesse sentido, a depender do tom de pele ou de outras características do indivíduo, no

Brasil somos lidos por nossos fenótipos, e nem sempre por nossa herança ancestral ou por uma

posição político-ideológica. Esses fenótipos excluem ou incluem o indivíduo em certo grupo

ou local social. Eu mesma já fui lida ou enquadrada socialmente de diferentes formas: como

“branca”, “parda”, “miscigenada”, “morena”, “morena clara”, “morena cor de jambo” e “negra

de pele clara”.

Essas nomenclaturas me levam a dialogar com a obra Polvo, de 2014, da artista plástica

carioca Adriana Varejão. A obra faz alusão a 33 cores escolhidas por brasileiros, a partir de um

censo do IBGE – a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílio (Pnad) de 1976 –, respondendo

à pergunta “Qual a sua cor de pele?”. As 136 respostas traziam vários nomes, e um deles,

“morena-jambo”, era uma das “cores” associadas a mim. A artista “[…] produziu um múltiplo,

uma caixa de madeira com 33 bisnagas, em tiragem de 200 unidades. Foi com essas tintas que

ela pintou máscaras indígenas, cada uma com uma cor, sobre 33 retratos seus” (O GLOBO,

2014).

Essa obra, em minha leitura, faz uma crítica sobre o imaginário racial perpetuado em

nossa sociedade. Expõe uma invisibilização e um silenciamento por parte de brasileiros que

tentam disfarçar ou minimizar traços ou características negras, com terminologias mais suaves

ou amenas. A provocação através das máscaras indígenas faz refletir também sobre este outro

grupo negligenciado e marginalizado na história de nosso país.

O “encontro” das três raças, como nos aponta Munanga (1999), e a mestiçagem

brasileira, como fato consumado historicamente, sempre acarretou uma série de problemáticas

e rupturas estruturais, sociais e psicológicas, principalmente para negros, indígenas e os

próprios mestiços. Reflito que os povos originários do Brasil, os indígenas, bem como nossos

também ancestrais negros, de fato construíram o que poderíamos denominar de uma “identidade

brasileira”, apesar de eu também considerar que muitas são as identidades que constituem o

nosso país. Porém, no Brasil, infelizmente somos pintados e encouraçados com uma

branquitude patriarcal, que sempre se organizou à base de exploração, sofrimento, violência e

perpetuação do medo.

No entanto, confundir o fato biológico da mestiçagem brasileira (a miscigenação) e

o fato transcultural dos povos envolvidos dessa miscigenação com o processo de

identificação e de identidade cuja essência é fundamentalmente político-ideológica,

Page 26: LIA FRANCO BRAGA

26

é cometer um erro epistemológico notável. Se, do ponto de vista biológico e

sociológico, a mestiçagem e a transculturação entre povos que aqui se encontram é

um fato consumado, a identidade é um processo sempre negociado e renegociado,

de acordo com os critérios ideológico-políticos e as relações de poder

(MUNANGA, 1999, p. 108).

Sei que o lugar de fala que eu ocupo, mesmo às vezes sentindo-me em um limbo racial,

ainda assim é privilegiado, e se difere do lugar de fala de negras(os), historicamente

menosprezadas(os) e excluídas(os). Apesar do fato isolado ocorrido em minha infância, não

vivo diariamente o racismo e o preconceito que muitas(os) negras(os)vivem. Mas me

sensibilizo com essa problemática e construo minha identidade enquanto mulher e pesquisadora

com profundo respeito às dores, às histórias e a todo este legado histórico e cultural herdado

por nós, brasileiras(os), que busco na minha vida pessoal e profissional reconhecer e valorizar.

Sou apaixonada por esse universo e por essa ancestralidade africana, que marca minha história

espiritual e norteia minha pesquisa e minha atuação como artista e educadora. É importante frisar que, apesar das tentativas de apagamento histórico, muitas lutas e

reivindicações, principalmente dos movimentos negros, culminaram em uma mudança na

legislação brasileira, com a implementação da Lei nº 10.639/03. Ela determina a

obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira em estabelecimentos

públicos e particulares, nos ensinos fundamental e médio (BRASIL, 2003). Essa lei foi alterada

para a Lei nº 11.645, em 2008, contemplando também a obrigatoriedade da temática “História

e Cultura Afro-brasileira e Indígena” (BRASIL, 2008). Como o meu projeto é focado na

perspectiva africana, irei me remeter à primeira lei, que representa uma ação afirmativa. Nesse

sentido,

[...] tal lei atendeu a uma demanda da população negra, no sentido de reparar séculos

de invisibilidade imposta ao povo negro brasileiro. Estamos falando aqui da

necessidade de adoção de políticas educacionais reparatórias, de ações afirmativas

que visem a desconstruir a ideia de democracia racial e superar as desigualdades

étnico-raciais, explicitando as práticas racistas, propondo epistemologias negras

capazes de combater o racismo e fortalecer identidades daquelas/es que sofrem

violências racistas em seus cotidianos (OLIVEIRA, 2018).

A referida lei não indica que esses conteúdos sejam trabalhados desde a Educação

Infantil; porém, a partir do plano nacional de implementação de suas diretrizes, indica-se a

necessidade de se problematizar as relações étnico-raciais desde esta etapa, pois

[…] o papel da Educação Infantil é significativo para o desenvolvimento humano, a

formação da personalidade, a construção da inteligência e da aprendizagem. Os

espaços coletivos educacionais, nos primeiros anos de vida, são espaços

privilegiados para promover a eliminação de qualquer forma de preconceito,

racismo e discriminação, fazendo com que crianças, desde muito pequenas,

Page 27: LIA FRANCO BRAGA

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compreendam e se envolvam conscientemente em ações que se conheçam,

reconheçam e valorizem a importância dos diferentes grupos étnico-raciais para a

história e a cultura brasileiras (BRASIL, 2009, p. 35).

Assim, cabe problematizar: como é possível que nós, artistas, docentes e

professoras(es)/educadoras(es), possamos contribuir para a construção da formação social,

cultural e emocional de estudantes? Como a arte, sendo parte do processo educativo, pode

ressignificar e desconstruir alguns padrões preconceituosos e preestabelecidos, e alargar a

concepção de mundo? Como a arte na educação de crianças pode incidir na ampliação dos

seus aprendizados e experienciações, sendo a arte produtora, mobilizadora e mediadora de

processos corpóreo-criativos que estimulem práticas inclusivas e o respeito à diversidade

cultural?

Nesse sentido, indica-se, dentre algumas ações educativas de combate ao racismo e

às discriminações, a “valorização da oralidade, da corporeidade e da arte, por exemplo, como

a dança, marcas da cultura de raiz africana, ao lado da escrita e da leitura” (BRASIL, 2009,

p. 71).

A partir dessas descobertas, experiências e problemáticas, passei a refletir sobre a

possibilidade de inovar práticas artísticas e educacionais que instigassem identificação,

afirmação, visibilidade e valorização da raiz africana constituinte, entre outras, da formação

sociocultural brasileira. A partir de novembro de 2016, tive a oportunidade de ministrar uma

oficina artística com temática lúdica e africana10.

10 Realizada em Fortaleza/CE nos seguintes espaços: Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB), com

participação intergeracional (crianças a partir de 5 anos e seus responsáveis); Escola Municipal Profa. Terezinha

Ferreira Parente (em três turmas de 6º ano, alunos entre 11 e 12 anos); terreiro de Umbanda Tenda Espiritualista

Mãe Tutu, com participação intergeracional (mães residentes na localidade com crianças de colo e crianças a

partir de 2 anos, pré-adolescentes até 13 anos e trabalhadoras locais).

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Estimulada com a experiência da oficina,

comecei a desenvolver o projeto artístico “Brincando

com Africanidades” (Figura 8). Nesse projeto,

estabeleço diálogos entre corpos brincantes e cultura

africana, a partir do universo de orixás desenvolvendo

intervenções artístico-educacionais sobre essas

temáticas, que estão voltadas ao público infantil e

abertas à experienciação com diversas idades11. São

realizadas contações de histórias e oficinas artísticas12,

bem como um espetáculo cênico, o Axé Odara: O

Encanto dos Orixás, que teve sua estreia em fevereiro

de 2018, na cidade de Sobral/CE13.

No atual contexto político e institucional do

Brasil, que parece retroceder em direitos humanos e nas conquistas daqueles que sempre foram

tratados como minorias – a exemplo dos negros e de outros grupos sociais –, é uma questão de

consciência lutar por uma postura política e crítica, visando galgar mudanças sociais efetivas.

Nesse sentido, a arte pode se afirmar enquanto processo de descoberta,

conscientização, despadronização, autonomia e liberdade. Proponho então, com esta pesquisa,

refletir e gestar possibilidades de atuação/intervenção que incorporem universos e temáticas

muitas vezes invisibilizados em nossa sociedade: corpo vinculado à infância, ludicidade e

cultura africana.

1.5 SITUANDO O OBJETO DE ESTUDO E OS OBJETIVOS

Diante deste pano de fundo inicial, para dar sentido e significado à construção do

objeto e dos objetivos do presente estudo, agora é o momento de maior aproximação com

11 No primeiro semestre de 2017, tive a oportunidade de facilitar uma oficina em Fortaleza/CE voltada para o

público adulto (artistas, professoras(es)/educadoras(es), pais e outros), com dois grupos/locais: curso de

pedagogia da Universidade Federal do Ceará (UFC); e Teatro Universitário Paschoal Carlos Magno (UFC), em

parceria com um laboratório de pesquisa do curso de Psicologia da UFC. No primeiro semestre de 2018, no

âmbito do mestrado, em Natal/RN, tive a oportunidade de ministrar esta oficina no 8º Congresso Brasileiro de

Extensão Universitária (CBEU/UFRN), e no segundo semestre, na disciplina “Dança e Educação”, do curso de

Licenciatura em Dança da UFRN, no qual fui estagiária. 12 Em setembro de 2017, em Fortaleza/CE, foram realizadas duas intervenções no Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB): contação de história e oficina artística, com participação intergeracional (crianças a partir de 3 anos acompanhadas de seus responsáveis e outros interessados) em ambas as ações. 13 Espetáculo aprovado no edital público “Temporada de Artes #OcupaSobral”. Aborda o universo das(os) orixás e é voltado para o público infantil. Com minha direção e atuação, teve parceria cênico-musical com outra artista.

FIGURA 8 – LOGOTIPO

BRINCANDO COM

AFRICANIDADES

Fonte: Arte de Layla Fernandes.

Page 29: LIA FRANCO BRAGA

29

alguns conceitos-chave que balizaram esta elaboração e a formulação da seguinte questão

norteadora desta pesquisa: “Como proporcionar a experiência de performances dos corpos

brincantes de crianças a partir de elementos da cultura africana?”

Cabe recorrer às contribuições do pesquisador das Artes Cênicas Zeca Ligiéro

(LIGIÉRO, 2011), que, dentre algumas características sobre a performance, explicita que

esta traz em sua gênese a hibridização das artes (música, teatro, dança, canto etc.).

Compreende-se como “híbrida” a fusão ou mistura das várias linguagens artísticas,

ampliando suas formas de expressão.

A partir da década de sessenta, pesquisadores como Jerzy Grotowski, Peter Brook,

Richard Schener e Eugênio Barba encontraram na palavra “performance” a

propriedade para definir esse teatro multicultural, includente (música, dança,

percussão e recursos visuais elaborados e, em muitos casos, ritualizado) (LIGIÉRO,

2011, p. 67).

O autor analisa essa perspectiva sob uma ótica próxima à das heranças africanas,

integralizando arte e vida, diversão e religiosidade:

O conceito “performance” tem sido usado também para compreender o teatro feito

pelo povo iletrado, seguindo a tradição oral alheia aos modelos greco-romanos.

Dessa forma, performance é utilizada como sinônimo de apresentação e

representação, de folguedo e brinquedo, quase sempre possuindo caráter festivo e/ou

religioso, mas em muitas destas formas preservando o seu alto grau ritualístico

(LIGIÉRO, 2011, p. 68).

É possível relacionar estes excertos com as proposições da escritora, psicóloga clínica,

docente e pesquisadora das Artes Cênicas Marina Marcondes Machado (MACHADO, 2010b),

que explicita que o performer assume seu estado de presença pessoal, agindo em seu próprio

nome, e não através de um personagem, por exemplo.

Nessa confluência, uma importante contribuição da autora – da qual me aproximei à

época de minha pesquisa monográfica, e que revisito no âmbito deste estudo – é o conceito de

criança como performer (MACHADO, 2010b). Essa perspectiva pode abrir espaço para

criações em que a criança acredita ser a personagem de teatro, em que o movimento

coreográfico é pertencente à sua lógica corporal e onde seus desenhos expressam imagens de

seus pensamentos, podendo assim assumir-se como performer. A criança não se preocupa em

decorar um texto ou uma partitura corporal; ela está mais interessada em vivenciar e expressar

verdadeiramente o que se faz registro em sua memória afetiva e corporal.

Trata-se de um acontecimento íntimo, sério e concentrado, no qual a criança também

se diverte. Ela poderá abrir espaço ao improviso cheio de performatividade, ao ampliar várias

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30

formas de expressão, misturando elementos artísticos/ficcionais (suas criações) com seu

contexto de vida, sua realidade. A criança não faz de conta que joga ou brinca, ela acredita

vivenciar/ser o próprio jogo ou a própria brincadeira, a partir de seu corpo: um ciclo lúdico,

ativo, rico, instigante e desafiador.

[…] a criança é performer de sua vida cotidiana, suas ações presentificam algo

de si, dos pais, da cultura ao redor, e também algo por vir – e, se olhada nesta

chave, poderá desenvolver-se rumo à assunção de sua responsabilidade e

independência, no decorrer dos primeiros anos de sua presença no mundo

(MACHADO, 2010b, p. 123).

Além do processo de intervenção lúdica e artística com as crianças participantes da

pesquisa, interessou-me perceber as suas lógicas – se e como me permitiriam coabitar e criar

com elas a partir de seus universos. Nesse sentido, ter me aproximado do conceito de criança

como performer me ajudou a respeitar seus modos de ver, agir, estar e atuar no mundo, e a

dialogar com seus tempos, ritmos e interferências. Permitindo, assim, que vivenciassem suas

autonomias de escolhas e exercessem seus sentidos de independência em parceria comigo,

enquanto pesquisadora – também performer neste ato e entrecruzamento de universos.

Assim, o objeto de estudo desta pesquisa refere-se às performances dos corpos

brincantes de crianças em diálogo com elementos da cultura africana, a partir do universo de

orixás da nação Iorubá, na Educação Infantil. Procurei me certificar das pesquisas desenvolvidas sob essas perspectivas, e realizei

uma busca em repositórios institucionais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN), da Universidade Federal do Ceará (UFC), da Universidade Federal da Bahia (UFBA),

da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e da Universidade de São Paulo

(USP). Nessa busca, utilizei os termos “corpo”, “ludicidade”, “crianças”, “educação infantil”,

“orixás” e “artes cênicas”.

Os trabalhos encontrados versam de forma mais isolada sobre essas temáticas. As

pesquisas situadas nos campos das Artes e da Educação trazem discussões principalmente sobre

a importância da ludicidade e da arte na infância e as relações entre corpo, ludicidade e dança;

as pesquisas que trazem temáticas africanas e afro-brasileiras estão situadas majoritariamente

nos campos da Educação e da Antropologia, com estudos voltados para orixás e meio ambiente,

orixás e religiosidade, crianças em contexto de Candomblé, infância afrodescendente,

contadores de histórias africanos e literatura, capoeira e Educação Infantil.

Portanto, esta pesquisa se propõe a preencher uma lacuna ao propor reunir essas

temáticas de maneira imbricada, compreendendo a via de mão dupla entre a arte e a educação

Page 31: LIA FRANCO BRAGA

31

enquanto elementos potencializadores de transformação social e cultural. Realizar esta pesquisa

no âmbito das Artes Cênicas permite gerar uma ambiência na qual as crianças, a partir de suas

próprias experiências, possam se aproximar e/ou revisitar elementos da nossa cultura

afrodescendente; crianças que podem e devem olhar, observar, questionar, brincar e se encantar

com deusas e deuses orixás tão belas(os) e majestosas(os). Coloca-se aqui, também, indagações que convocam uma atenção e sensibilização para

refletirmos enquanto artistas, educadoras(es) e professoras(es): O brincar se constitui apenas

como passatempo, ou é estratégia metodológica na intervenção com crianças? O corpo é

território da experiência ou mera reprodução de padrões nas instituições escolares? Quais os

referenciais apresentados às crianças nas rotinas escolares? Estes referenciais dialogam com a

nossa cultura afro-brasileira? Quem são, e como elas percebem as características de

personagens apresentados nas histórias e nas brincadeiras? Como as crianças captam as

descobertas e expressam suas narrativas? Algumas crianças associam conhecimentos a

experiências anteriormente vivenciadas? Para quais crianças estamos querendo falar? Qual é a

cor da beleza? Ainda que nesta pesquisa eu busque trilhar uma trajetória mais focada nas crianças,

vale destacar os diálogos e as entrevistas com outros profissionais que atuam na instituição e

que possibilitaram gerar reflexões que enriqueceram o presente estudo – e que certamente são

estímulos para aprofundamentos na busca de subsídios a fim de construir este caminho afro-

brincante no âmbito da arte e da escola. O processo é lento e as resistências ainda são grandes; no entanto, alguns avanços

merecem destaque. Além de outros profissionais, na minha própria cidade, o artista e

pesquisador Edivaldo Batista vem produzindo alguns espetáculos cênicos que relacionam o

universo de orixás a uma proposição lúdica, a exemplo dos trabalhos O pequeno Ogum (2014),

Iroko (2015), dentre outros. Por vezes, tenho a grata surpresa de encontrar em notícias na internet ou em programas

de televisão algumas ações em escolas públicas de regiões diferentes do Brasil, por meio de

professores que procuram incorporar certas temáticas – como personalidades negras, capoeira,

dança afro-brasileira e orixás – nas suas realidades de sala de aula, mediando esses

conhecimentos com crianças e adolescentes. O projeto A Cor da Cultura e seus materiais14, bem como a publicação do livro

História e cultura africana e afro-brasileira na Educação Infantil (BRASIL, 2014), promovem

14 Para mais informações, consultar o site oficial do projeto: <http://www.acordacultura.org.br/kit>.

Page 32: LIA FRANCO BRAGA

32

discussões e apresentam ferramentas e metodologias para a valorização da cultura afro-

brasileira a partir dos anos iniciais na educação.

Na busca de produções, alguns estudiosos e pesquisadores apresentam olhares

instigantes que são de extrema importância para uma ancoragem mais aprofundada neste

estudo. Assim, em síntese, o método de pesquisa escolhido, a fenomenologia, propõe o estudo

dos fenômenos pautados na experiência dos indivíduos. Para tanto, são valiosas as

contribuições do autor Maurice Merleau-Ponty (MERLEAU-PONTY, 1999) com o seu olhar

fenomenológico sobre o corpo e a infância, e também as contribuições da pesquisadora Marina

Marcondes Machado (MACHADO, 2010a, 2010b), entre outros.

Nos diálogos sobre corpo, ludicidade, arte e educação para crianças, retomo algumas

reflexões e alguns eixos trabalhados em minha publicação anterior (BRAGA, 2017) e recorro

aos trabalhos da autora Isabel Marques (MARQUES, 2004, 2012), entre outros. Na perspectiva de fundamentar os temas sobre africanidades, negritude, mitos

africanos, orixás e performances afro-brasileiras, destaco, dentre as contribuições mais

importantes: Kabengele Munanga (MUNANGA, 1999, 2001), Teodora Alves (ALVES, 2006),

Sandra Petit (PETIT, 2015), Clyde W. Ford (FORD, 1999), Kiusam de Oliveira (OLIVEIRA,

2008, 2009, 2010, 2019), Reginaldo Prandi (PRANDI, 2001), Zeca Ligiéro (LIGIÉRO, 2011),

entre outros(as).

Para dar maior convergência ao estudo, foi elaborado o seguinte objetivo geral:

compreender como as crianças estimuladas pelo universo das(os) orixás experienciam e

constituem as performances de seus corpos brincantes.

Para contemplar a complexidade anunciada, os objetivos específicos,

metodologicamente, contribuíram para tecer narrativas elucidativas capazes de: 1) vivenciar

processos de criação em arte com um grupo de crianças entre 5 e 6 anos, no NEI/Cap/UFRN;

2) registrar as performances dos seus corpos brincantes; e 3) desvelar o fenômeno dessas

performances, vivenciado durante a pesquisa.

1.6 DESENHO DA PESQUISA

Nessa tessitura, algumas divindades foram guiando-me especificamente no

desenvolvimento de cada capítulo. Assim sendo, organizo a presente dissertação da seguinte

maneira: nesta “Introdução – Exu: Sem ele ninguém faz nada”, este deus se apresenta como o

princípio mobilizador que abre e move caminhos, além de reger a comunicação, aqui

estabelecendo-se como o ponto de partida. Nesse sentido, apresento e caracterizo orixás como

Page 33: LIA FRANCO BRAGA

33

ancestrais africanos divinizados e construo uma narrativa sobre minha trajetória pessoal e

profissional, explanando alguns aspectos relacionados à pesquisa, elucidando memórias e

chegando, assim, à elaboração das problematizações, ao objeto do estudo, ao objetivo geral, aos

objetivos específicos e ao desenho da pesquisa. No “Capítulo 1 – Ogum: O senhor dos caminhos”, este deus, que rege e é dono do

ferro, artesão e construtor, apresenta-se neste contexto como uma estrutura rígida e firme,

permitindo-me construir relações mais sólidas, das quais aqui explicito o tipo de pesquisa e o

método de base ao qual me ancoro. Também construo uma tessitura que inclui outros

referenciais teórico-metodológicos que fundamentam aspectos da cultura africana evidenciadas

neste estudo, bem como a caracterização de orixás como elementos de composição para uma

proposição e intervenção metodológica. Ainda neste capítulo são explicitadas as características

referentes ao percurso metodológico, à instituição na qual a pesquisa foi realizada, aos

participantes e aos métodos de intervenção e percepção da realidade.

No “Capítulo 2 – Oxum: O espelho do encantamento”, esta é a deusa do amor e da

riqueza, que com sua graça majestosa e o reflexo de seu espelho permitiu-me refletir, questionar

e revelar inicialmente algumas concepções sobre infâncias, a partir de perspectivas ocidentais

e africanas. Também aprofundo o conceito de corpo brincante enlaçando-o com a perspectiva

de corpo-poroso no fazer poético, que agrega experiências perceptíveis e múltiplas.

Posteriormente, revisitando algumas de minhas memórias e minha trajetória, questiono a

aplicabilidade de Lei nº 10.639/03, apontando algumas pistas para intervenção que destacam

fazeres artísticos e educacionais em consonância com essa lei. Finalizo o capítulo com a

proposição de contações de histórias focadas na mitologia de orixás.

No “Capítulo 3 – Brincando com os gêmeos Ibejis e outras(os) orixás”, estes meninos

relacionam-se intrinsicamente com o experienciar, o brincar, os saberes e as culturas das

diversas crianças. Juntamente com outras deusas e deuses, permitiram-se gestar e criar

perspectivas autorais e particulares a esta pesquisa. A partir destes elos, construo unidades

circulares no tocante às relações das crianças com a arte, a natureza, as divindades africanas e

alguns aspectos da negritude, destacando como alguns conceitos-chave para esta pesquisa se

entrelaçaram com essas relações produzidas. Revisito alguns autores e conceitos trabalhados

nos capítulos anteriores, procurando articular três especificidades que convergem para o

desenvolvimento da pesquisa de base fenomenológica. As instigantes experiências vivenciadas

com as(os) participantes abriram possibilidades para identificar suas narrativas, suas relações e

Page 34: LIA FRANCO BRAGA

34

suas expressões corporais com a produção de significados em torno do universo simbólico e

cultural relacionado as(os) orixás.

Para tecer algumas considerações finais, em “Trilhas percorridas… Novos horizontes

– Oxóssi, o Caçador: Desbravando suas matas”, este deus é aquele provedor, que é rei-caçador

das grandes e belas matas, aquelas nas quais podemos estabelecer conexões e buscar por

descobertas, fazer achados e criar novas possibilidades. Neste sentido, retomo alguns aspectos

centrais do estudo realizado, pontuando a complexidade da construção de conhecimentos ao

abordar temas contemporâneos e desafiadores, sobretudo em uma conjuntura permeada de

descontinuidades e antagonismos. Assim, proponho a reinvenção de práticas democráticas que

abracem as diversidades e busquem valorizar e enaltecer as africanidades e as negritudes

presentes também em solo brasileiro.

Além das referências bibliográficas, consta também bibliografia complementar, com

outros referenciais relacionados com o presente estudo. Essas produções visam fortalecer

conhecimentos teórico-práticos afro-referenciados, abarcando tanto o universo lúdico e infantil

como o acadêmico, com transversalidades entre arte, cultura e educação.

Ainda são apresentados apêndices com a reunião do planejamento de oficinas

vivenciadas durante a pesquisa, para elucidar outros profissionais e inspirar suas práticas

artísticas e pedagógicas.

Ter desenvolvido esta pesquisa no mestrado acadêmico em Artes Cênicas expressa

meu desejo de aprofundamento profissional e pessoal, ao ampliar possibilidades e novos

horizontes em minha trajetória como artista, educadora e pesquisadora. A pesquisa me instigou

a aprofundar e a enlaçar eixos teórico-práticos, mediando intervenções que possibilitaram a

produção de conhecimento artístico e educacional com bases afro-referenciadas para a

Educação Infantil.

Page 35: LIA FRANCO BRAGA

35

CAPÍTULO 1 – OGUM: O SENHOR DOS CAMINHOS

Ogum, menino-homem guerreiro

Ogum Que já foi menino

Sempre valente

Não levava desaforo para casa

E lutava como o bravo guerreiro que é Também ferreiro

Ao forjar sua espada

Cresceu em tamanho

Lutou em guerras E ganhou o mundo

Desbravando caminhos

Fez seus caminhos

Às vezes temido Às vezes invejado

Mas trilhou, buscou e conquistou

Ogum

Destemido Ogum Salve!

(Lia Braga, Fortaleza/CE, maio de 2019)

2.1 A FENOMENOLOGIA COMO EIXO METODOLÓGICO E OUTRAS

CORRELAÇÕES

Quando percebo, não penso o mundo,

ele organiza-se diante de mim.

(Maurice Merleau-Ponty)

O mundo, ao organizar-se diante de nós, aponta-nos possibilidades e caminhos a serem

vivenciados. São os caminhos da vida, abertos pelo orixá Ogum, porque esse deus, destemido

por natureza, não se cansa de lutar. Ele luta pelo que é seu, desbravando aventuras que o

possibilitam conhecer o mundo e experienciá-lo. Mundo este em que, às vezes, é preciso

guerrear, mas também permitir-se sentir. Sensações protegidas por esse guerreiro, que é

também ferreiro, com armadura para vencer e trilhar. A figura de Ogum como ferreiro pode ser

observada no mito Ogum cria a forja (PRANDI, 2011):

FIGURA 9– TERÇA-FEIRA É DIA DE OGUM, O

ORIXÁ DOS CAMINHOS E DA GUERRA

Fonte: Google Imagens (internet).

Page 36: LIA FRANCO BRAGA

36

[...] O ferro era mais dura substância que ele conhecia,

Mas era maleável enquanto estava quente.

Ogum passou a modelar a massa quente.

Ogum forjou primeiro uma tenaz,

Um alicate para retirar o ferro quente do fogo.

E assim era mais fácil manejar a pasta incandescente.

Ogum então forjou uma faca e um facão.

Satisfeito, Ogum passou a produzir

Toda espécie de objetos de ferro,

Assim como passou a ensinar seu manuseio.

Veio fartura e abundância para todos […].

(PRANDI, 2011, p. 96).

As características atribuídas ao ferro, como substância mais dura e ao mesmo tempo

maleável sob temperatura quente, me faz refletir que precisamos, muitas vezes, assumir uma

postura mais firme e outras vezes, mais fluida, na vida. Esse ziguezague no ofício daquele que

cria suas próprias ferramentas ou armaduras potencializa a história de um inventor e

desbravador de seus próprios caminhos. Muitas vezes, essa figura que me remete ao orixá Ogum precisa guerrear consigo

mesma, para que, a partir de seus caminhos, possa engendrar ideias e práticas, assim como

quando buscamos construir pesquisas. Estas são tecidas nas histórias e vidas daqueles que

buscam elaborar hipóteses e questionar, com a intenção de também encontrar respostas – e,

principalmente, de criar e realizar seus próprios feitos.

Nessa perspectiva, é necessário ir em frente, em busca, sem medo, para conhecer o

mundo cheio de possibilidades. Desde criança, sempre fui estimulada a me abrir ao mundo, de

forma a percebê-lo e experienciá-lo através de minha sensibilidade artística. Assim, desde

pequena vivenciei minha realidade com imaginação e criatividade, ao criar histórias e

personagens a partir do que concretamente vivenciava, sozinha ou em coletivo.

O mundo para nós, artistas, muitas vezes funciona através de outras lógicas e com

outros tempos. Ele se apresenta cheio de cores, aromas, sabores e muitas possibilidades. Para

criarmos, muitas vezes ocorre uma inspiração já aguçada através de experiências anteriores;

outras vezes, o processo é mais lento e precisa ser digerido aos poucos.

Nesse sentido, a criação artística pode se configurar como um árduo processo

investigativo; a partir das diferenças e singularidades deste campo, procura-se abrir espaços

para diálogos e proposições artístico-acadêmicas. Pesquisar/sistematizar é, sim, desafiador; não

seriam também os modos de fazer arte?

Reflito que produzir arte não se relaciona apenas com apresentações cênicas no espaço

físico, o teatro: é também gestar possibilidades artísticas em outros ambientes. Assim sendo, os

modos de fazer arte e pesquisa constituem formas outras de refletir, questionar e intervir na

Page 37: LIA FRANCO BRAGA

37

realidade. Esses modos são diferentes dos de outras áreas, e não menos complexos e árduos,

como apontam Braga, Baumgartel e Santos (2017): “[…] a pesquisa em Artes Cênicas acontece

de fato como uma aventura pensada e corporificada. Afinal, ela é ato criativo que pode apontar

para um caminho de descolonização de saberes” (p. 182).

Compreendo, a partir dessa reflexão, que tais pesquisas são atravessadas pelas

experiências das(os) investigadoras(es) e poderão construir-se como campos de atuação de um

saber em devir, conectadas e irmanadas ao corpo e às emoções, ou seja, ao próprio indivíduo,

abrindo espaço para os modos de ser e estar no mundo.

Modos estes que podem se articular com a fenomenologia proposta pelo filósofo

francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). É importante mencionar que sua obra fora

influenciada pelo matemático e filósofo considerado como o “pai da fenomenologia”, Edmund

Husserl. Merleau-Ponty contribuiu principalmente entre as décadas de 1930 a 1960, como

professor, filósofo e autor de diversas obras relevantes para situar a fenomenologia e suas

especificidades como movimento filosófico e método de pesquisa.

Diante da diversidade de suas publicações e da densidade de seus conceitos, vale

destacar que, nesta dissertação, utilizei sobretudo as obras Fenomenologia da Percepção

(MERLEAU-PONTY, 1999) e Psicologia e Pedagogia da Criança (MERLEAU-PONTY,

2006), mas também trabalhei com as contribuições de outros autores comentadores das obras

do filósofo.

Como a fenomenologia visa a destacar as essências contidas nos fenômenos mediante

as experiências dos indivíduos, elas são compreendidas a partir do que os sujeitos vivenciam e

compartilham consigo e com o outro. Assim, para Merleau-Ponty, a fenomenologia “é o estudo

sistemático dessa vivência, descrição simples e tão plena quanto possível da experiência direta,

do que é e não é a coisa” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 435). Nesse sentido, é possível mergulhar em si mesmo, um mergulho por vezes incerto

sobre o que se pode encontrar ou sentir; porém, é intenso no processo de adentrar e sair das

águas. A experiência inunda o ser humano e faz emergir a sua essência, que está contida no

próprio ato de experienciar, revelando, assim, o fenômeno: “As essências de Husserl devem

trazer consigo todas as relações vivas da experiência, assim como a rede traz do fundo do mar

os peixes e as algas palpitantes […]” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 12).

Assim sendo, esse método busca a essência na própria existência humana e não fora

dela, pois “[…] as essências são meios e não o dado primeiro ou último da filosofia. Elas devem

servir a uma finalidade. São uma expressão segunda da experiência. São idealizações que

nascem da experiência” (PAVIANI, 1998, p. 14).

Page 38: LIA FRANCO BRAGA

38

A aproximação com esse método de investigação se deu a partir de minhas

experiências e afinidades com essa proposição, bem como ao longo dos diálogos e das

recomendações de minha orientadora, a Profa. Dra. Teodora de Araújo Alves, bem como pela

sugestão da Profa. Dra. Karenine de Oliveira Porpino, membro da minha banca examinadora.

Esta apropriação metodológica instigou o desenvolvimento desta pesquisa com crianças na

etapa da Educação Infantil.

É preciso que reencontremos a origem do objeto no próprio coração de nossa

experiência, que descrevamos a aparição do ser e compreendamos como

paradoxalmente há, para nós, o em si (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 109-110).

As contribuições de Merleau-Ponty são inspiradoras e me aguçam enquanto

pesquisadora. Pode-se perceber que esse método permite vivenciar a pesquisa e assumir uma

atitude fenomenológica, no sentido de perceber como ela nos atravessa enquanto experiência.

Ao nos dispormos, através de um corpo uno com a mente, o espírito e a natureza,

experienciamos o mundo vivido, um mundo que está intimamente ligado com o sujeito

enquanto ser vivente, que vive, experiencia, descobre, desbrava. O mundo acontece fora e

dentro ao mesmo tempo, porque o sujeito une-se ao mundo como se houvesse um

entrelaçamento entre ambos (MERLEAU-PONTY, 1999).

Para Merleau-Ponty, as essências dos fenômenos já se apresentam na realidade, pois o

mundo já está “ali”, e é em nós mesmos que encontramos essa unidade fenomenológica. Há

também uma imbricação do sujeito com o mundo a partir do seu próprio corpo, onde as nossas

experiências são encarnadas. O filósofo reflete a ideia não apenas de um mundo vivido, mas

também de um sujeito e um corpo vivido, sujeito este que, a partir de suas experiências, vive

compartilhando diversos modos de ser e estar neste mundo. Esse corpo não é dividido entre

mente, alma e natureza; ele é um corpo-ser-mundo vivente e integral (MERLEAU-PONTY,

1999).

Considero importante explicitar que, mesmo que o filósofo venha de um contexto

europeu e tenha sido um homem branco, cruzamentos entre suas proposições e algumas

perspectivas afro-referenciadas me interessam nesta pesquisa.

A primeira delas é destacada por Paviani (1998): “O pensamento de Merleau-Ponty

situa-se entre os que investem toda a sua reflexão filosófica na tentativa de superar o

conhecimento dualista entre o sensível e o inteligível, típico do modo de pensar ocidental”

(PAVIANI, 1998, p. 9).

Page 39: LIA FRANCO BRAGA

39

Enquanto o pensamento de Merleau-Ponty apresenta uma tentativa de superação do

dualismo, esta própria dualidade, para algumas cosmovisões africanas, é inexistente, pois o

corpo é o lugar próprio da experiência – um lugar integrador do saber, do sentir, do ser em

comunhão com o todo. Esclareço que alguns autores utilizam o conceito de cosmovisão africana

no singular, mas eu me refiro às “cosmovisões”, pois existem formas distintas de conceber e

perceber o mundo em se tratando de um território enorme e plural como o continente africano.

Nesse sentido, essa discussão me aproxima das contribuições da Profa. Sandra Petit

(PETIT, 2015), que considera a pretagogia como um referencial teórico-metodológico,

desenvolvido em diálogo com outros pesquisadores. A pretagogia aborda “[…] uma Pedagogia

que potencialize os aprendizados da nossa ancestralidade africana [e das cosmovisões], que se

alimenta dos saberes, conceitos e conhecimentos de matriz africana” (PETIT, 2015, p. 120).

A autora traz fortemente o sentido do corpo arraigado à dança como importante

maneira de expressão e conexão ancestral: “Dançar, na perspectiva afro-ancestral aqui tratada,

remete a uma visão circular do mundo, na qual início e fim se encontram, em eterna renovação

[…]” (PETIT, 2015, p. 72). Apresenta-se, portanto, uma dinâmica circular de retroalimentação,

e não de apartação; não há espaço para dicotomias, pois as separações podem promover um

estanque, uma parada que tenciona e priva o fluir da própria experiência, dado que, no círculo

da vida, as coisas, as energias e as pessoas necessitam se mover.

Também é perceptível nas contribuições de Merleau-Ponty a centralidade do corpo

como expressão da própria experiência: assim, é um corpo que, ao mesmo tempo, une

conhecimento e emoção, interior e exterior. Um corpo que intensifica as percepções de mundo,

a exemplo dos corpos vivenciados nos terreiros ou das danças de matriz afro-brasileira, que

expressam diversos territórios pessoais, sociais e culturais, e representam identidades ancoradas

em memórias:

A dança é também o que nos faz transcender a dor, a angústia, a injustiça, a

humilhação, a tentativa de redução e de aniquilamento, lembrando-nos de quem

somos, gerando a força espiritual que engrandece, potencializa e sacraliza. Para as

negras e negros desterrados brutalmente da África para as Américas e cujos algozes

procuraram por todos os meios destituir de humanidade, a dança foi um elo

indispensável à sobrevivência física e espiritual. Assim, para nós, descendentes

desses povos, a dança significa mais do que filosofia e cosmovisão, significa existir

(PETIT, 2015, p. 74).

Nesse sentido, a dança experienciada no corpo revela força e potencializa os sentidos

e o próprio conhecimento adquirido na vivência, que perpassa as vias do racional e do

emocional. Esse corpo dançante é marcado por experiências negativas e positivas; ele narra as

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histórias desses povos sangrados em suas existências, as memórias de outrora que ainda expõem

feridas abertas nos dias de hoje.

Após essas breves interseções, retomo princípios da fenomenologia, visto que neste

método há três especificidades fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa: a descrição,

a redução e a compreensão fenomenológica.

Na descrição, é importante que a consciência da(o) pesquisadora(or) esteja desperta, a

fim de que seja fiel ao ocorrido e vivenciado durante a pesquisa, sem buscar alterar fatos ou

interpretá-los previamente, pois

[…] a descrição não é uma operação simples. Requer postura específica perante o

fenômeno, e treinamento. Precisa de procedimentos técnicos capazes de, ao mesmo

tempo, distingui-la e articulá-la com outros meios próprios da análise, da

interpretação ou de qualquer outra operação intelectual. Deve evitar tanto o

dogmatismo do senso comum como da ciência objetivista. Descrever é um ver e um

perceber que não pertence à ordem dos juízos e do que já foi deliberado sobre o

mundo e o objeto […]. Necessita-se de uma pedagogia que nos ensine a descrever

os fenômenos assim como se manifestam e somente como os vemos e, de fato, são

(PAVIANI, 1998, p. 19).

Após a descrição dos fatos vividos e experienciados, a redução é a busca pelo cerne,

pela essência do que se está pesquisando; ou seja, é a busca para destacar o que for intimamente

ligado ao objeto e aos objetivos da pesquisa, percebendo o que de fato a expressa.

A atividade descritiva nos leva naturalmente ao problema da redução

fenomenológica despojada de todo idealismo transcendental. O vivido exige um

novo modo de entender o processo da redução, processo no qual a descrição tem

anterioridade, pois a análise reflexiva ignora problemas como o do Outro e do

Mundo. O Outro e eu somos um só no mundo e no conhecimento anterior à reflexão.

A relação paradoxal entre o eu e o Outro que o estudo da percepção e do corpo

mostra em plenitude precisa ser resolvida sem reduzir minha existência ou a do

Outro à consciência de que tenho de existir (PAVIANI, 1998, p. 19).

Há, portanto, um pleno exercício de respeito e também uma certa liberdade nas

convivências entre o outro e o eu, pois, nas experienciações, incorpora-se um mesmo mundo

vivido, expressando o fenômeno em profusão. Nesse sentido, para alcançar uma compreensão, é necessário que a(o)

pesquisadora(or) tente estabelecer diálogos no intuito de perceber e enxergar a experiência do

outro sem excluir a sua, destacando as subjetividades de ambos. Portanto, quem se propõe a

pesquisar é afetada(o), atravessada(o) pela experiência do outro, na qual presentifica seu estado

no mundo, compreendendo o do outro:

[…] nem de reduzir suas experiências às minhas, nem de coincidir com ele, nem de

ater-me ao meu ponto de vista, mas de explicitar minha experiência e sua experiência

Page 41: LIA FRANCO BRAGA

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tal como ela se indica na minha […]. Trata-se de compreender uma pela outra

(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 453).

Ao corroborar esse pensamento, no contato com as crianças, dispus-me a vivenciar

com elas o processo da pesquisa, e fiquei atenta aos fenômenos evidenciados durante esse

contato, a partir de nossas experiências compartilhadas. Enquanto educadora, procuro perceber

o que as crianças querem falar e mostrar. Quais os seus modos de brincar e jogar? Quais os seus

modos de experienciar com o corpo? O que querem expressar? Merleau-Ponty (2006), com seu olhar fenomenológico para a infância, apresenta

percepções instigantes sobre as crianças, como a compreensão de que o pensamento e as formas

de se relacionarem não constituem, para elas, uma representação. Elas não representam, elas

vivem determinados sentimentos, brincadeiras ou situações, e, vivendo, podem nos afetar e

proporcionar a nós, adultos, aberturas para a compreensão dos seus modos de ser, estar e intervir

na realidade.

Nesse seguimento, na ambiência da pesquisa, procurei me distanciar de uma visão

adultocêntrica em relação às crianças, invertendo possíveis lógicas impostas histórica, social e

culturalmente. Exercitei a escuta de suas narrativas, seus dizeres e suas expressões, com

abertura e adaptação, no intuito de observar, agregar elementos às suas realidades e também

estar atenta às suas criações.

Visando a assumir uma atitude fenomenológica como pesquisadora, busquei aguçar o

olhar e o corpo e fiquei aberta, atenta, porosa, para observar, perceber, propor e proporcionar

visibilidades às suas experiências. Pude relacionar-me e afetar-me com os modos de ser, estar,

habitar, sentir, pensar, criar, brincar, jogar, teatralizar, dançar e contar histórias com essas

crianças, que tiveram participação ativa e, também, o papel de coautoras nesta pesquisa.

Além disso, é importante destacar que

[…] não existe, entretanto, uma metodologia fenomenológica previamente

elaborada, com regras, procedimentos e técnicas de pesquisa. Desde que se possam

mostrar as possibilidades epistemológicas da fenomenologia também é possível

elaborar uma metodologia para cada caso (PAVIANI, 1998, p. 27-28).

Portanto, a fenomenologia se apresenta como um caminho de características

específicas, porém aberto à singularidade desta pesquisa. É como um labirinto circular, onde

idas e voltas precisam ser realizadas na busca da fecunda experiência que abraça horizontes

afro-brincantes. Assim, intento experienciar e desvendar procedimentos lúdicos fundamentados

na metodologia do ensino em arte e da pesquisa em Artes Cênicas, em articulação com modos

de refletir e produzir afro-referenciados.

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2.2 ANCORAGENS ARTÍSTICAS E METODOLOGIAS LÚDICAS

Nesta construção, no ato de escrever, no modo de pensar e formular minha pesquisa,

também inscrevo quem eu sou. Colocar-me no papel para quem sabe atravessar outros mundos

(pessoas, lugares) é para mim um ato poético de resistência da minha arte, rumo à descoberta

de saberes e criações oriundas dela. Na roda da vida, com seus ciclos e giros que me permitem

habitar o mundo, sinto um desejo de querer ser capaz de desvendar-me enquanto artista-

educadora-pesquisadora e, ao mesmo tempo, atualizar-me a cada nova pesquisa, indo na direção

dessas novas descobertas.

Compreendo a arte como campo de atuação abrangente e diverso, ao desarticular

lógicas formais. A inserção em espaços subjetivos, micro e macro, possibilita à(ao)

pesquisadora(or) construir diversas maneiras de atuação, com formas próprias e inovadoras de

intervenção? Ou seria uma desconstrução no sentido das lógicas formais?

A capacidade de errar, nas determinações acadêmicas, é vista como fracasso, pois não

se pretende correr riscos. Nas artes, essa mesma capacidade de errar pode ser um trampolim

interessante para novas descobertas ou adaptações outras. Mas o que é errar ou acertar? Seria o

erro uma forma de acerto ao contrário?

Nesse sentido, sinto que a cada dia eu erro um pouco para buscar acertar. Desaprendo

sobre mim mesma e sobre o meu modo de fazer artístico, na tentativa de respirar um pouco em

meio a tanta palavra e a tanta construção palavreada ou contada. Duvido de mim mesma, não

no sentido de duvidar de minha capacidade; duvido de mim porque, ao duvidar, coloco-me em

risco e rumo ao desconhecido.

Assim, vou buscando descobrir outras formas de dançar palavras ou contar/cantar

histórias, de jogar e brincar com o corpo, que é também fala, história e memória. Um corpo que

abre espaço ao me desafiar a lembrar do texto e a equilibrar-me enquanto realizo um giro no

meu próprio eixo, ao contar, cantar e dançar histórias de orixás.

Ao mesmo tempo, ao brincar com essas memórias corporais, eu me desprendo de mim

mesma, e a arte que pulsa em mim me lança ao desarticulado, desorientado, desconectado. Fios

invisíveis e rarefeitos, fios de investigação, fios que não me prendem e sim me jogam, me

lançam – e eu desato a girar, sem parar, como a pesquisa é para mim: um ciclo vivo.

Nesta ambiência, o ato de escrever sobre processos artísticos me desafia a incorporar

as palavras; uma construção que, além de investigativa, é criativa. Ao escrever, mesmo que

tomada pela escrita ou pelo pensamento de outra(o) autora(or), crio e recrio minha própria

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forma de conexão com a temática em curso. Neste percurso, são estabelecidos diálogos e

questionamentos, diferentemente de uma exposição de verdades absolutas.

Será então o diálogo com o outro um modo operacional de organizar ideias? E a fala

do outro e a minha, em forma de escrita, poderão se tornar palavra encarnada no papel? Em

alguns momentos, fiquei imaginando se os diálogos realizados com as(os) profissionais da

instituição e com as crianças participantes desta pesquisa poderiam ser reestruturados como

contações de histórias, ou se poderiam vir a ter um tom que se aproximasse dessa estética.

Não sei se assim posso subverter a realidade; mas, de alguma maneira, creio que esta

– digamos – inspiração possa se relacionar com o que Cássia Navas nos aponta:

Dentre essas estratégias, há principalmente aquelas do campo das artes, em que a

busca por metodologias próprias e singulares, em diálogo com metodologias e formas

de trabalho mais generalizadas, deve ser uma constância (NAVAS, 2015, p. 570).

Criando assim, nesse contexto, palavras e falas “[…] sussurradas como cochichos ao

ouvido dos leitores” (NAVAS, 2015, p. 273). Poderei eu cochichar histórias ao pé do ouvido

de meus leitores?

Nesta confluência, ao dialogar com Pimentel (2015), que toma como base a referência

de Rey (1996), a pesquisa em arte adéqua-se ao presente estudo, pois nesta modalidade de

pesquisa a(o) própria(o) pesquisadora(or) atua no desenvolvimento de uma ação: seu objeto de

pesquisa. Assim, a experiência é importante para o processo artístico, e a(o) pesquisadora(or)

não apenas atua, mas também se deixa afetar, envolve-se com o todo, é despertada(o) nos

detalhes, no devir, no efêmero que muitas vezes a arte em si pode provocar. Isso porque

[…] em Arte, a completude se dá na imersão que acontece na atividade artística, quer

seja como elaborador ou como fruidor, uma vez que a experiência em arte acontece

na criação artística e na fruição da produção artística. O sujeito envolve-se ativa e

criativamente, de forma a integralizar a obra de arte […]. Pode-se conceituar

experiência em arte como sendo a sedimentação corpórea da interação sujeito-

ambiência que impulsiona novas ações sensório-perceptivas-reflexivas-cognitivas-

estéticas (PIMENTEL, 2015, p. 92-93).

A fruição dos processos na pesquisa em arte revela que ela desafia constantemente

quem se propõe a vivenciá-la e pesquisá-la. Em se tratando de pistas ou materiais que serão

percorridos e desvendados, o principal não é as estatísticas e os números, mas, sim, as emoções

e sensações, ainda que fundamentadas em métodos de pesquisa. O encontro com o outro – as(os) participantes da pesquisa, ou público –, mesmo que

previamente estabelecido, imaginado ou desenhado, é aberto ao imprevisível, ao novo.

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Portanto, não há respostas prontas ou definitivas, e, sim, caminhos questionadores em que a

criação fala por si só, como menciona Braga (2006):

Nesse sentido, posso construir um pensamento inverso, isto é, não estudo para,

necessariamente, organizar dados do fenômeno criativo, verificar fundamentos do

próprio processo criador, qualificar alguns argumentos e contestar outros, descrever,

registrar ou avaliar os percursos das várias composições. Estes procedimentos

surgirão, inevitavelmente, numa proposta de sistematização do trabalho criador, com

parâmetros em certa pesquisa científica metódica, mas, o princípio, a motivação de

meu estudo do processo de criação é a criação em si mesma (BRAGA, 2006, p. 79).

A partir desta breve apresentação sobre a pesquisa em arte, vale destacar que este

estudo é de natureza qualitativa e pode ser compreendido através das reflexões de Florentino

(2012): “A pesquisa qualitativa abre um espaço nos diferentes modos de análise dos problemas

relativos ao campo das Artes Cênicas numa perspectiva social e cultural e pela adoção de

diversos procedimentos, como a análise de conteúdo e a análise do discurso” (p. 122-123).

A proposição desta pesquisa prioriza conhecimentos, saberes e fazeres das Artes

Cênicas. Nesse âmbito, a relação entre corpo, brincadeira e jogo se configura como espaço de

sensibilização, descoberta, conhecimento, prazer e criação artística.

Rememoro que, ao vivenciar experiências instigantes no ensino de arte,

principalmente com crianças em etapa de Educação Infantil, percebi nas aulas de dança e teatro

e em minha pesquisa monográfica que essas crianças mergulhavam de forma crítica e criativa

no processo – brincando, jogando, teatralizando e dançando. As metodologias lúdicas utilizadas

na proposta oportunizavam que elas se expressassem integralmente. Evidencio esse ponto em

minha publicação anterior:

Com o desenvolvimento do jogo15 e próximo à finalização da oficina, surgiu minha interação com eles, quando brinquei ao ser Lobo Mau e eles Chapeuzinhos. Assim, também pude oportunizar que todos fossem Chapeuzinhos já que demonstraram durante o jogo, quererem ser este personagem. Jardim16 expressou querer ser Lobo Mau junto a mim e, de forma bastante divertida, tentávamos pegar os demais. Também houve o surgimento do elemento Caçador, uma proposição de Raio, que salvaria os demais Chapeuzinhos pegos pelo Lobo Mau. Assim, pude criar e recriar, junto a eles, o jogo e suas regras (BRAGA, 2017, p. 144).

15 Trata-se do jogo Lobo Mau Velhinho e a rápida Chapeuzinho, surgido no contexto de minha pesquisa de

monografia, que culminou na publicação intitulada Onde o Corpo é Jogo: Uma Mediação Lúdica na Educação

Infantil (BRAGA, 2017). Nesse jogo, há um grupo de Lobos Maus Velhinhos e um jogador que não pertence a

esse grupo, que é um Chapeuzinho. O grupo anda lentamente até conseguir pegar o jogador que foge, utilizando

o ritmo e as estratégias que quiser.

16 Jardim, assim como Raio, refere-se a um nome fictício que utilizei para caracterizar e identificar as crianças participantes da pesquisa.

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Ao refletir sobre os conceitos de jogo e brincadeira, considero, em geral, que o jogo

é mais associado a uma proposição lúdica, com regras definidas, no qual os oponentes têm

um mesmo objetivo, culminando em uma disputa dentro desse contexto (BRAGA, 2017). Já

a brincadeira possui um caráter mais livre:

A brincadeira como atividade social é atrelada, portanto, a uma perspectiva da criança

como sujeito ativo e criador, uma vez que proporciona contato com o outro, em que a

realidade se apresenta como mola propulsora para ressignificação de sentidos,

conceitos e atribuições, que é realizada no ato de brincar. Assim, denota-se, além dos

possíveis sentimentos de prazer, uma ação consciente que busca não um objetivo

específico ou um fim concreto, e sim a brincadeira pode revelar-se como um devir de

diversas possibilidades dialogadas entre os que se dispuseram a esta ação e, ainda,

apresentar novas e inesperadas situações. Em sua particularidade, o jogo assemelha-

se a uma cadeia constituinte de características próprias que também transporta a

criança para dimensões além-realidade propiciando vivências múltiplas (BRAGA,

2017, p. 54-55).

Nessa direção, a prática educativa denominada “ludopedagogia” – a que se refere o

doutor em Educação e Psicologia, mestre e pesquisador em Artes Cênicas, Ricardo Japiassu

(JAPIASSU, 2014) – caracteriza-se como um

[…] campo de pesquisa e estudo da dimensão educativa das práticas lúdicas em geral,

e das intervenções pedagógicas que fazem uso de variadas modalidades de jogos no

âmbito das ações culturais particularmente da escolarização” (JAPIASSU, 2014, p.

19).

O autor ainda nos aponta que “brincar é a principal ocupação do sujeito na infância: a

oportunidade para a imaginação criadora pôr em movimento a experimentação de modos de

ser, sentir e pensar culturalmente valorizados” (JAPIASSU, 2014, p. 28). Portanto, a ludicidade, manifestada a partir de ações e expressões das crianças, é

própria das culturas infantis, seja no jogar ou no brincar, envolvendo a imaginação e a criação.

Representa um locus e um espaço no qual elas experienciam seus modos de perceber, sentir e

estar/ser no mundo. Mundo este que abarca aberturas para a interação e a ação. Ação que

compreende estados de presença manifestados por corpos lúdicos. Para aprofundar esta e outras reflexões, cabe dialogar com a escritora e professora de

dança Isabel Marques (MARQUES, 2012). Ela explicita que a experienciação de ações lúdicas

ocorre de maneira imbricada com o corpo:

Não há quem não pense, não sinta e não se lembre do corpo quando o assunto é

brincar. O corpo está presente em praticamente todas as manifestações lúdicas do

ser humano […]. As brincadeiras não existiriam se não existissem corpos que

brincam: que brincam de esconder, de pegar, de correr, de agarrar. As brincadeiras

não podem prescindir dos corpos que jogam e brincam. Brincadeiras estão

intrinsicamente relacionadas a como sentimos, percebemos, conhecemos,

entendemos e dialogamos com nossos corpos, com os corpos dos outros e com os

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espaços físico e virtual em que vivemos […]. Nessa abordagem, nossos corpos não

são meios, canais ou instrumentos, mas sim protagonistas das brincadeiras e das

danças. Aquilo que sabemos, conhecemos, sentimos, entendemos, construímos em

nossos corpos nos leva a estabelecer, ou não, múltiplas relações com os tempos e

espaços em nossa sociedade. Nossos corpos que brincam e dançam são importantes

em si (MARQUES, 2012, p. 32-33).

Essas considerações se articulam com as perspectivas apontadas por Merleau-Ponty,

no que se refere à centralidade de um corpo que é revelador de suas próprias experiências.

Corpo este que pulsa o mundo em si mesmo e que se constrói junto deste. Seria, então, um

corpo que performa a sua própria existência, um corpo que é sem simulações ou artifícios.

Assim sendo, também estabeleço relações com as proposições da autora Marina

Marcondes Machado (MACHADO, 2010a), quando expõe:

[…] isso nos leva à “desconstrução” de um teatro em que é preciso ter palco e plateia,

em que se ensaia e se decora falas, e a linguagem dessa “desconstrução” (desmanche

de algo criado pelo próprio adulto) encontra-se na vida infantil tal como ela se

apresenta: há grande potencial criador e dramatúrgico no brincar de faz de conta

(MACHADO, 2010a, p. 101).

Nessa confluência, Japiassu (2010, 2014) explicita manifestações que se relacionam

com a dramatização teatral; por exemplo, nos jogos, as crianças podem experimentar ser

personagens, no uso do corpo e da voz, apropriando-se da perspectiva ludopedagógica, como

na brincadeira “Gato e Rato”17.

A partir de minhas experiências em contextos educacionais e de minha pesquisa

monográfica, defendo que crianças possam experienciar e manifestar suas criatividades e

inventividades através de aulas de arte. Também defendo a apropriação e a sistematização de

uma metodologia que revele a ludicidade e a corporeidade como potencializadoras do saber e

do fazer artístico das expressões das crianças. Assim, o jogar e o brincar com o corpo não são

sinônimos de mera distração, ou alguma forma de “passar o tempo”.

Reconhecendo o caráter livre do brincar, é possível agregá-lo a conhecimentos e

propostas que percebam as crianças como protagonistas de suas realidades. Crianças que

observam, sentem, silenciam, recebem e, também, refletem, questionam, opinam, concebem e

criam:

Para que um professor introduza jogos no dia-a-dia de sua classe ou planeje atividades

que contenham características de jogo, é necessário algo mais do que apenas conhecer

essas características. O professor precisa, em primeiro lugar, reconhecer nas

brincadeiras e jogos um espaço de investigação e construção de conhecimentos sobre

17 Nesta brincadeira de “pega-pega”, as crianças podem se assumir como gatos ou ratos; a primeira personagem (gato) deve pegar a segunda (rato), que foge.

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diferentes aspectos do meio social e cultural em que as crianças vivem. É necessário

também que ele veja a criança como sujeito ativo e criador no seu processo de

construção de conhecimento, e planeje para sua classe atividades a partir de conteúdos

significativos para as crianças. Isto quer dizer que é preciso que ele coloque as

crianças em situações de aprendizagem de aspectos da realidade que elas estão

buscando conhecer (BRASIL, 1995, p. 115).

Ainda que possa parecer repetitivo questionar e refletir sobre a relevância da

ludicidade como algo inerente às crianças e atrelada aos seus espaços de convivência e

sociabilidade, Marques (2012) reitera:

Em pleno século XXI, o ideal seria não ser mais necessário discutir a importância do

brincar na Educação Infantil: a ludicidade, sabemos, deve ser um denominador

comum às atividades de sala de aula. A situação educacional lúdica está relacionada

à criação e à transformação, […] e isso é imprescindível para produção de sentidos

(MARQUES, 2012, p. 29).

Sentidos que possam emergir a partir de propostas sensíveis às culturas produzidas

pelas crianças, e que considerem, por exemplo, o corpo imbrincado à experiência lúdica

refletida por Marques (2012), a “desconstrução” de um teatro, explicitada por Machado

(2010a), e a dramatização teatral expressa por Japiassu (2010, 2014). São propostas que podem

ou não se utilizar de objetos ou outros recursos físicos; são perspectivas que evidenciam os

saberes, dizeres e fazeres das crianças a partir de suas experienciações, dos seus corpos/mundos

vividos.

2.3 METODOLOGIAS AFRO-BRINCANTES E SEUS DESDOBRAMENTOS

Na mediação lúdica proposta nesta pesquisa, o corpo é a mola propulsora das

descobertas das crianças, a partir da centralidade nas performances de seus corpos brincantes,

estimuladas por elementos da cultura africana. Nesse sentido, segundo Brandão (2006), a

corporeidade é compreendida através de uma perspectiva afro-referenciada, quando o corpo

integra valores e ações vinculados social e culturalmente:

A corporeidade como um valor nos remete ao respeito ao corpo inteiro, corpo presente

em ação, em diálogo e interação com outros corpos. Descarta a dimensão racional

como imperativa, em detrimento da dimensão corporal [...] o corpo atua, registra nele

próprio a memória de vários modos, cantando, dançando, brincando, desenhando,

escrevendo, falando. Das músicas às danças. O que elas expressam, anunciam,

denunciam. Os corpos dançantes revelam histórias, memórias coletivas [...]

(BRANDÃO, 2006, p. 61-62).

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Cabe dialogar também com Reis (2010), que evidencia:

Falar de corporeidade na Educação Infantil é falar de um corpo percebido em sua

totalidade, ideia diferente daquela propagada entre os séculos XVII e XIX, quando o

corpo era visto como algo separado da mente. Falar de corporeidade é falar da

existência simultânea entre corpo e mente; de um corpo que se movimenta, que

expressa vivências cotidianas, sentimentos, culturas. Uma cultura não cristalizada,

mas que se modifica no tempo e no espaço por nós vividos. A criança, no universo

infantil, na relação consigo e com os outros, cria, recria, aprende e transforma. Mas,

para que isto ocorra, é preciso que ela receba estímulos e seja instigada a participar de

jogos, brincadeiras, experiências e criações individuais e coletivas, aprendendo

através do movimento que o seu corpo pode proporcionar [...] questiono se a Educação

Infantil tem possibilitado à criança vivenciar atividades ligadas ao desenvolvimento

de sua corporeidade, ou se tenta manter um corpo disciplinado e obediente. Será que

a escola, na sua prática com a Educação Infantil, trabalha com a corporeidade

articulada à educação e as relações étnico-raciais? É possível fazer essa relação,

considerando a implementação da Lei nº 10.639/03? Como? (REIS, 2010, p. 23).

A partir destas problematizações e de algumas experiências pessoais, reflito que a

maioria das escolas não oportuniza o desenvolvimento de práticas pedagógicas e metodológicas

dentro das rotinas em sala de aula – práticas que priorizem a experienciação do corpo articuladas

às relações étnico-raciais.

Esse é um reflexo histórico, social e cultural que prioriza o saber racional, evidencia a

desvalorização de culturas como as africanas e afro-brasileiras, dentre outras (que justamente

tecem saberes integrados ao corpo), e ainda se utilizam de racismo e preconceito como

estratégia e manutenção de poder:

Brincar com a linguagem corporal possibilita, ainda, o conhecimento e a vivência de

outras manifestações culturais [...] Sabemos que, ao longo da história do Brasil, as

manifestações culturais afro- brasileiras foram marginalizadas, sofrendo, inclusive,

perseguições por não fazerem parte do universo cultural europeu e, também, por serem

produzidos por negros escravizados e seus descendentes. A partir do século XX, elas

começaram, aos poucos, a fazer parte das celebrações culturais da sociedade

brasileira. No entanto, o racismo e a discriminação racial presentes em nossa

sociedade impedem que estas expressões culturais de origem africana cheguem

efetivamente à escola, como em outros ambientes educacionais. Nesse sentido, a Lei

nº 10.639/03 estabelece que a cultura afro-brasileira faça parte das atividades

cotidianas da escola, não aparecendo apenas em datas comemorativas, como 20 de

novembro, por exemplo (REIS, 2010, p. 26).

Na realidade, existem materiais bibliográficos para pesquisa, além de vários livros

infanto-juvenis, bonecos e outros materiais, que possibilitam que as instituições escolares e

as(os) professoras(es) oportunizem às crianças espaços construtores para a articulação destas

temáticas. Apesar disso, a maioria das escolas e seus profissionais não se apropria de tais

materiais para introduzi-los em seus conteúdos e práticas pedagógicas.

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Esta pesquisa pretende se somar a outras investigações aqui explicitadas, além de

instigar a imaginação, a criatividade e o desejo de outras(os) profissionais na construção de

propostas que protagonizem temas tão renegados e invisibilizados em nossa sociedade.

Como na vida não caminhamos sozinhos, foi de suma importância para a efetivação

desta proposta o acolhimento e a abertura da instituição NEI/Cap/UFRN (na qual a pesquisa foi

desenvolvida), bem como das professoras responsáveis pela turma participante. Nesse sentido,

essa instituição e as profissionais envolvidas são exceção diante de tantos entraves que

observamos em nossa sociedade.

Explicito que tanto as características da instituição como das(os) participantes da

pesquisa, dentre outras perspectivas, ainda serão detalhadas no próximo tópico deste capítulo.

Porém, é oportuno destacar aqui alguns trechos das entrevistas cedidas por alguns destes

profissionais durante a pesquisa. Elas evidenciam a abertura, a problematização e as ações

dentro do cotidiano escolar referentes às questões de corporeidade e de relações étnico-raciais

nessa instituição.

Primeiramente, em entrevista cedida no dia 6 de junho de 2019, quando questionei à

Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil se a instituição propõe que os professores

desenvolvam atividades corporais com as turmas, ela afirma:

Sim [...] Na Educação Infantil [...] há os momentos... digamos de educação física são

realizados pelos professores. Então assim, é garantido, o trabalho com o movimento

e a própria questão da música, a gente entende muito essa música ligado ao

movimento também [...]entendendo que essa criança ela está sempre em movimento,

esse corpo fala muito… entendendo que o corpo é uma forma de linguagem, também,

então assim, agora na festa junina, eles têm essa [...] oportunidade de criar os seus

movimentos, você não vai vê movimentos aqui criados por professor e repetidos [...]

quando elas entram a questão das artes, das linguagens artísticas [...] de construir, de

experimentar, de criar, de apreciar... entender que há uma construção [...]

Percebe-se, portanto, que o corpo na Educação Infantil, nessa instituição, é concebido

e articulado a outras linguagens, como a Educação Física e a Música, além de ser fonte de

experienciação e criatividade, negando e distanciando-se de concepções que tolhem tal corpo –

que privam ou que compreendem esse corpo como mera reprodução de padrões e

comportamentos.

Quando questionei a profissional sobre se a instituição propõe que os professores

desenvolvam atividades com a temática étnico-racial com as turmas, a mesma destaca:

Sim, propõe sim! E isso... agora, não propõe de um modo isolado [...] se o tema de

pesquisa, contemplar... se as questões das crianças ou se o tema de pesquisa levar pra

caminhos, que trazem essas questões étnico-raciais, vão ser trabalhadas sim [...] como

outras questões também, né, do meio ambiente, por exemplo [palavra inaudível],

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desde que o tema de pesquisa possibilite isso ou, se houver uma demanda na sala por

causa de um determinado aspecto, que esteja é, despertando no grupo esse interesse

ou que a professora veja que ali tá precisando de intervenção nesse interesse, há esse

trabalho [...] é tudo dentro de um contexto [...] a não ser no caso de uma pesquisa

como a sua, mas ainda assim, foi numa turma, que a professora já tinha desenvolvido

esse trabalho, né [...].

Indaguei se ela se recordava de outro trabalho – além do que a professora tinha

desenvolvido – que abordasse algum aspecto da cultura africana.

Sim! Eu não tenho propriedade pra falar porque eu tô na coordenação esse ano... então

eu falo do lugar de professora... já tivemos sim várias turmas, é... teve uma turma [...]

acho que foi ano passado... que ela [a professora responsável pela turma] trabalhou

inclusive muito com as questões de, de cabelo, dos... eu não sei os nomes... dos panos,

tinha uma bonequinha aqui, inclusive que foi desse trabalho [...] uma, aaaaa...

[interrompi falando “abayomi”]... abayoni, exato! Então assim, havendo o contexto é

trabalhado… e foi trabalhado [...].

Ainda sobre questões envolvendo as relações étnico-raciais e o interesse das crianças

por temáticas dessa natureza, a Professora Substituta da turma participante da pesquisa, em

entrevista inicial cedida no dia 23 de maio de 2019, salienta:

Olha, todos os dias a gente se depara com essa, essa temática. Nós temos crianças, com,

com traços afro muito, muito claros. Então, a gente incentiva o desenho, que elas desenhem

com, com pessoas de cores, cabelos e, formas de se vestir diferentes. Nós temos livros que

propiciam, a escolha dos livros da ciranda, nós temos alguns livros de matriz afro, que

conta a história da chegada desses povos, quando vamos a biblioteca procuramos livros

com a mesma temática e a todo tempo sempre abordando que somos diferentes e somos

ao mesmo tempo muito iguais, porque temos uma mesma matriz. Então, isso é muito

importante para que eles percebam [... ] como essas pessoas e [...] se, se percebam como

diferentes e ao mesmo tempo como iguais, gente dessa sociedade, que foi constituída assim

[...] A partir da metodologia da escola, de tema de pesquisa, essa turma, específico, fez

estudo de um tema de pesquisa sobre o Egito. Eles conhecem, sabem a localização do

Egito, que tá dentro da África, e sabem essa diversidade de povos que existem. Então, é

uma temática bem recorrente. Algumas vezes eles trazem isso. Nos livros que leem, eles

dizem algumas coisas que originaram da África, como a capoeira, muitas crianças

identificam a capoeira como sendo uma dança original e é um dos livros da nossa ciranda.

E, além da diferença das próprias crianças, que elas vão identificando, socializando,

perguntando de onde é que surgiu? Porque surgiu essa criança diferente? [...]

Outro aspecto positivo que acredito ter facilitado o desenvolvimento do meu trabalho,

mesmo com algumas dificuldades surgidas durante o processo e que ainda serão destacadas, é

o fato de as relações étnico-raciais vinculadas à negritude e à África já serem abordadas e

problematizadas na instituição e com a turma participante da pesquisa.

A sensibilidade em utilizar, por exemplo, elementos lúdicos como a boneca de pano

negra abayomi, em desenvolver alguns aprofundamentos sobre o Egito e a apropriação das

crianças sobre a capoeira, a partir de livros, já oportunizou às crianças participantes da pesquisa

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(e outras que estudam na instituição) a ampliação de seus horizontes e abertura para a temática

aqui proposta.

É muito importante que as instituições, a exemplo desta, abracem estes temas,

procurando trabalhá-los de maneira interdisciplinar nas rotinas de sala de aula desde a Educação

Infantil. Nesse sentido, as noções de diversidade étnica e cultural estimulam o respeito e a

valorização dessas diversidades desde os primeiros anos de vida das crianças.

Em consonância com as perspectivas desenvolvidas na instituição, no contexto da

pesquisa, promovi oficinas artísticas ancoradas nas linguagens da dança, do teatro e utilizei

alguns elementos de musicalidade. Elas foram desenvolvidas através de mediação lúdica com

um grupo de crianças entre 5 e 6 anos, contando também com a participação das professoras

responsáveis pela turma. Nessa ambiência, desenvolvi diálogo com a cultura africana a partir

do universo das deusas e dos deuses orixás, e os recursos lúdicos utilizados foram

jogos/brincadeiras corporais e contação de histórias, ao apropriar-me dos mitos de algumas

dessas divindades africanas. Com relação aos mitos, pode-se compreender, entre outros aspectos, que eles

apresentam símbolos, enigmas e imagens, e embasam o processo de conhecimento e a

apreensão de saberes. A mitologia referente as(os) orixás denota, além desses atributos,

relações com o divino, o sagrado, a ancestralidade e os costumes culturais. Desse modo, a

“narração oral constrói uma ponte entre os contemporâneos e os ancestrais. Particularmente me

permite beber permanentemente nas fontes de minhas raízes, fazer uma viajem interior,

redescobrir quem sou e de onde venho” (NKAMA, 2012, p. 260). Nesse sentido, ter me aproximado das contribuições do autor afro-americano Clyde

W. Ford (FORD, 1999), professor, quiroprata, terapeuta e diretor fundador do Instituto de

Mitologia Africana (IAM), em Washington, ampliou meu olhar, minha sensibilidade e meus

conhecimentos sobre uma perspectiva em relação aos mitos, principalmente os africanos, que

eu já intuía, mas não conseguia aprofundar. O autor articula e fundamenta vastos conhecimentos ancestrais a partir de mitologias

africanas, que apresentam uma perspectiva curativa. Através dessas sabedorias, essas fontes

espirituais e culturais nos auxiliam a ressignificar traumas, principalmente vinculados ao

histórico dos afrodescendentes. Também possibilitam encontrar possíveis respostas filosóficas

que sempre rondaram a existência humana e explicitar o empoderamento negro vinculado a

essas mitologias. Ou, como nos aponta o próprio Ford, um “enegrecimento”:

A questão é que, visto pelos olhos da mitologia africana, assim como outras mitologias

não-ocidentais, negro não tem intrinsicamente uma conotação negativa [...] Então,

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acrescentemos agora esse significado à lista de acepções de negro e preto: povo da

água que corre areia adentro – uma imagem maravilhosa do poder transformador da

água em trazer vida à terra árida. Então, para grande surpresa, desponta do amplo

campo da mitologia ocidental uma conotação similar do significado e da força de

negro, confirmada por textos de alquimia da Europa medieval. Sabemos por eles que

o primeiro passo essencial da alquimia era conhecido como melanosis ou nigredo –

nos dois casos, um enegrecimento. Ora, a alquimia era uma metáfora elaborada

construída em torno dos mistérios da química, mas na verdade, voltada para os

mistérios da transformação humana; a conversão de um metal não precioso (como o

chumbo) em ouro simbolizava a transformação das preocupações humanas mais

triviais em anseios mais elevados da alma. Entretanto, o momento inicial dessa

transformação consistia em enegrecer o metal não-precioso por meio do fogo,

reduzindo-o a uma substância mais primitiva; só a partir dessa matéria primitiva se

conseguiria obter a transmutação em ouro (FORD, 1999, p. 36-38).

Se a partir do enegrecimento do metal não-precioso alcançamos o ouro, porque, ao

invés de embranquecermos as histórias, os bonecos e as nossas próprias características e

atitudes, não as enegrecemos? As histórias dos nossos ancestrais negros, que também narram

as nossas histórias, são marcadas por violência, desumanidade e estereotipias. Estamos

reforçando a lógica instituída ou a desconstruindo? É necessário que os fantasmas e traumas que rondam os universos negros sejam

ressignificados a partir de um outro olhar que identifica e reconhece, no continente africano, o

berço da humanidade:

[...] a África desfruta uma posição de destaque no registro ancestral da humanidade.

Arqueólogos, paleontólogos e biólogos moleculares reuniram uma quantidade

impressionante de provas fósseis e genéticas de que a África, é sem dúvida o berço da

espécie humana. Como útero, a África literalmente deu à luz os primeiros heróis e

heroínas humanos; as primeiras viagens heroicas ocorreram lá. Esses heróis ancestrais

arriscaram-se sozinhos na maior das aventuras, já que buscavam nada menos do que

o nascimento da humanidade (FORD, 1999, p. 41).

É a partir das histórias e das contribuições dessas heroínas e heróis africanas(os) que

pode-se explicitar mitos fundadores da humanidade e que eu me inspiro para construir

narrativas orais e corporais, atravessadas por deusas e deuses que vivenciam suas próprias

inquietações e tecem os seus destinos:

A mitologia volta-se para as questões eternas da humanidade: qual a relação entre a

vida humana e o grande mistério do ser por trás de toda vida? Como devemos entender

a relação entre o planeta que habitamos e o Cosmo em que nos encontramos? Como

devo vencer as etapas da minha vida? E como minha vida se coaduna com a sociedade

em que vivo? Não se pode colocar essas questões ao telescópio ou ao microscópio; é

melhor viver as respostas e depois transmiti-las aos que virão – e essa é a trajetória do

mito. Assim, a mitologia tem sido tradicionalmente um meio de tornar saudável o

indivíduo e a sociedade ajudando as pessoas a harmonizar as circunstâncias da vida

com essas inquietações mais amplas, mais permanentes. E é exatamente esse tipo de

cura que se pode obter ao abordar a experiência dos afrodescendentes pela mitologia

(FORD, 1999, p. 32).

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Essas experiências podem nos trajar com armaduras ancestrais e potencializar em nós,

guerreiras e guerreiros contemporâneos, lutas menos violentas e sangrentas, mas não menos

densas ou intensas. Lutas em que nos responsabilizamos por honrar os que vieram antes de nós

e nos retiraram de “um mar de sangue”, resgatando o que de mais profundo reside na nossa

existência: a sabedoria curativa negra.

Após essas breves explanações sobre mitos africanos como reconstruções curativas e

harmonização para o ser humano, apresento uma caracterização de orixás que foram abordados

durante o processo de vivência das oficinas. Sobre essas divindades, é importante situar, a partir

das considerações de Oliveira (2008), que:

Cada orixá possui uma energia própria, associada a um elemento da natureza, seja

o ar, a água, o fogo ou a terra. O orixá cultua sua individualidade, ainda que

colocada em prol da coletividade; preserva suas características físicas, emocionais,

corporeidade, orikis/rezas e provérbios que exultam seus feitos, seus talentos e seus

ensinamentos [...] (OLIVEIRA, 2008, p. 65).

Nas oficinas, essas deusas e deuses foram abordados primeiramente através de mitos;

elas e eles foram apresentadas(os) de maneira mais aprofundada a título de conhecimento geral.

Mesmo assim destaco todas(os) as(os) orixás citados durante a pesquisa e quero deixar claro

que esta caracterização é um recorte, ou uma síntese, da complexidade das características e

especificidades de cada uma dessas divindades.

Para esta organização, não sigo uma ordem vinculada aos rituais religiosos, nem a

ordem em que foram apresentadas(os) nas oficinas. Resolvi ordená-las(os) a partir das

proximidades dos seus elementos da natureza, ou com as suas relações familiares. Ao criar o

Quadro 1, levei em consideração meus conhecimentos espirituais, além de referências de

autoras(es) como Magalhães (2003), Oliveira (2008, 2009) e Nobre (2015):

QUADRO 1 – SÍNTESE DAS(OS) ORIXÁS

Orixá Regência na

Natureza Características

Vínculos

Familiares

Ferramenta

Simbólica Cor Animal

Oxalá Ar;

Deus do céu,

da luz

Tranquilo,

atuando na

sabedoria e

junto à paz na

humanidade

Na qualidade de

velho Oxalufã, foi

casado com Nanã

– a mais velha

deusa do panteão

das(os) orixás,

que rege a lama e

a morte

Na qualidade

de velho

Oxalufã,

carrega seu

cajado

Opaxorô

Branca Pomba

branca

Iemanjá Água;

No Brasil, é

deusa/rainha

Maternal,

generosa e

superprotetora;

Considerada a

mãe das(os)

orixás, é mãe de

Coroa de

franjas

Branca,

azul claro,

prata

Peixe

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do mar,

“mãe cujos

filhos são

peixes” –

YèYé Omó

Ejá

Protege as

cabeças e todos

que vivem ou

trabalham no

mar – animais e

seres marítimos,

marinheiros,

pescadores –;

Rege e atua

sobre a criação,

a fertilidade, as

emoções, e

assim como o

mar, oscila entre

calmaria e

tempestividade;

Possui

personalidade

forte e

majestosa, além

de ser vaidosa

Ossaim – orixá da

cura, das ervas,

das florestas –,

Oxóssi, Xangô,

dentre outros, e

tem também

filhos adotivos,

como o orixá

Obaluaiyê –

senhor da terra, da

saúde/doença

cobrindo o

rosto (Adê);

Leque-espelho

(Abebé);

A depender da

qualidade,

mais

vinculada à

guerreira

Iemanjá

Ogunté;

também

carrega uma

espada

Oxum Água;

Deusa/rainha

das águas

doces, rios,

cachoeiras,

córregos,

lagoas

Dona do ouro e

da riqueza;

Emotiva e

dengosa,

misteriosa e

feiticeira;

Bela, é

considerada a

mais vaidosa

dentre as iabás

– como são

chamadas as

orixás femininas

s –;

Rege e atua

sobre a

fertilidade e a

maternidade,

cuidando e

protegendo as

mães e as

crianças, desde

a fecundação até

os primeiros

anos de vida

Foi casada com

Ogum, Xangô – a

predileta de suas

esposas – e

Oxóssi

Coroa de

franjas

cobrindo o

rosto (Adê);

Leque-espelho

(Abebé);

A depender da

qualidade,

mais

vinculada à

guerreira

Oxum Apará;

Também

carrega uma

espada

Amarelo

em todos

os matizes,

dourado-

ouro

Peixe,

pássaro

Oxóssi Mata;

Deus/rei/

caçador das

matas

Provedor,

inteligente,

astucioso;

Protege aqueles

seres e espíritos

vinculados as

matas/florestas

– caçadores,

indígenas,

caboclos –;

Possui

conhecimentos

de cura por seus

aprendizados

Foi casado com

Oxum

Arco e flecha

(Ofá)

Verde e

azul

Pantera,

onça

pintada

Page 55: LIA FRANCO BRAGA

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com o orixá

Ossain

Logunedé Água –

deus/príncip

e das águas

doces – e da

mata

Um dos orixás

mais jovens,

belo, popular,

atuando sobre as

amizades

Filho de Oxum e

Oxóssi;

Nasceu com os

dois sexos,

passando 6 meses

com a mãe nas

águas doces,

como princesa,

ninfa das águas,

cultivando sua

energia feminina,

e 6 meses com o

pai, como caçador

nas

matas/floresta,

cultivando sua

energia masculina

Leque-espelho

(Abebé) e arco

e flecha (Ofá)

Amarelo,

verde e

azul-

turquesa

Pavão,

cavalo-

marinho

Ogum Fogo/Estrad

as;

Deus do

fogo, das

estradas, da

guerra, das

tecnologias,

das

inovações

Guerreiro,

ferreiro, que

forja suas

próprias

ferramentas;

Intempestivo,

conquistador,

desbravador,

aquele que abre

os caminhos,

violento

Foi casado com

Iansã e Oxum

Espada Azul-

escuro e

vermelho

Cachorro

Xangô Fogo/ Raios/

Trovões/

Montanhas;

Deus/rei da

justiça

Acredita-se que

já foi um grande

rei, de uma

antiga cidade

africana

chamada Oyó;

Valente, justo,

corajoso,

sedutor, glutão,

forte

Foi casado com

Obá –deusa/

guerreira das

águas fortes,

revoltas, das

pororocas –, sua

esposa mais

velha, Iansã e

Oxum

Machado

(Oxé) e coroa

Marrom,

vermelho e

branco

Leão

Oiá/Iansã Ar;

Deusa/rainha

dos ventos,

ventanias,

raios e

trovões

Sedutora, de

gênio forte,

intempestiva,

guerreira e

conquistadora;

Amante da

liberdade,

protege as

mulheres que

trabalham na

rua,

especialmente

as que fazem e

vendem

acarajé, uma de

suas comidas

Foi casada com

Xangô – tendo

sido sua

companheira nas

lutas e guerras –,

Ogum e Oxóssi

Coroa de

franjas

cobrindo o

rosto (Adê);

Espada;

Um “espanta-

mosca” de

rabo de boi

(Iruquerê) –

que é utilizado

também com

outras funções

definidas

dentro dos

seus rituais

Vermelho Borboleta,

búfalo

Euá Nascentes/

Fontes –

como cobra-

fêmea, mora

Rege a beleza, a

alegria, a

vidência e a

intuição;

Filha de Nanã, é

irmã-gêmea de

Oxumarê –

deus/deusa

Coroa de

franjas

cobrindo o

Vermelho,

amarelo e

branco

Pássaros

noturnos,

cobra-

d’água

Page 56: LIA FRANCO BRAGA

56

nesses

habitats –;

Deusa do

chuvisco,

orvalho e

neblina,

ligada

também a

noite e a lua;

Dizem que

quando o

céu está cor

de rosa, é

porque é o

céu de Euá

Protege as

moças jovens,

principalmente

as virgens;

Também

protege os

animais da

mata; Chefe das

feiticeiras

Iyamis, é dona

das poções

mágicas;

Atua sobre a

limpeza e a

harmonia,

especialmente

nos lares

(possui os dois

sexos) da

transmutação, da

riqueza, do arco-

íris e das cobras,

transformando-se

em cobra-macho

rosto (Adê);

Espada;

Arpão – que

permite puxar

o sol no

horizonte e faz

anoitecer – e

cabaça – onde

carrega um pó

mágico

Ibeji Sem

regência

específica;

Deus

representado

por crianças

gêmeas,

sendo

protetor das

crianças,

especialment

e as que o

representam

Alegre,

dinâmico, por

vezes

“traquina”;

Inteligente,

guarda em si a

sabedoria

infantil;

Atua sobre os

cuidados, a

saúde, a

proteção das

crianças e da

família e

promove saúde,

amor e união;

Adora festas e

locais alegres e

coloridos, como

jardins,

brinquedos e

doces – pelo

sincretismo com

Cosme e

Damião, aonde

é celebrado nas

festas populares

através da

imagem desses

santos, aqui no

Brasil; Também

gosta de caruru,

uma de suas

principais

comidas

Em alguns mitos,

os gêmeos

aparecem como

filhos de Xangô e

Oxum e adotados

por Iemanjá, em

outros, são tidos

como filhos de

Xangô e Iansã,

tendo sido criados

por Oxum

Sem

especificação,

mas pelo

sincretismo já

mencionado,

podem

carregar folhas

da natureza,

com função

curativa

Tudo o que

for

colorido,

com

destaque

para azul,

verde e

rosa

Pássaros e,

em alguns

mitos,

macacos

Fonte: Elaboração própria.

Ainda foram citados durante o processo das oficinas orixás que, pelo menos aqui no

Brasil, são misteriosas(os) e um tanto desconhecidas(os), cabendo aqui apenas situá-las(os) em

suas especificidades mais gerais: Olodumare é considerado o ser supremo, o deus criador para

Page 57: LIA FRANCO BRAGA

57

os Iorubás; Olocum é anfíbia, deusa/rainha dos oceanos; e Ajê Xalugá é uma deusa, irmã mais

nova de Iemanjá, que também vive nos mares, dominando a força das ondas e das marés,

possuindo um brilho tão intenso que, sem conseguir controlá-lo, cegou aos outros e a si mesma,

como será explicitado mais à frente.

Pode-se analisar que as(os) orixás possuem muitas especificidades e entrelaçamentos,

e são constituídas(os) por algumas diferenças, a partir do continente africano e aqui no Brasil,

o que demonstra uma adaptação dos cultos originários da África em nosso país. Por exemplo,

Iemanjá, em solo africano, mais especificamente cultuada pelos Egbá, nação Iorubá que foi

estabelecida entre Ifé e Ibadan, é reverenciada e associada aos rios, e inclusive possui a

existência de um rio com seu nome, Yemoja (VERGER, 2018).

Outra adaptação que se pode mencionar é o sincretismo religioso. Na época

escravocrata, devido à proibição de manifestação de sua fé e religiosidade, as(os) negras(os)

que cultuavam orixás as(os) associavam as(os) santa(os) católicas(os), como Iemanjá à Nossa

Senhora dos Navegantes, e Oxum à Nossa Senhora Aparecida, por exemplo. Até os dias atuais

essas associações são presentes, como o fato de Xangô ser associado a São Jerônimo, inclusive

nas festas juninas de São João; vinculado à cultura nordestina, ele também pode ser

homenageado na relação com as fogueiras.

Iemanjá também ganha outra figura, diferente da ancestral negra: a imagem de uma

mulher branca de longos cabelos lisos e negros, e com associação à figura mística e mitológica

da sereia. Costumo questionar as crianças em uma contação de história específica desta orixá:

“Será que ela é sereia?”, “Será que ela tem cauda de sereia?”. Algumas respondem que não,

que ela tem pernas, e outras respondem que sim, que ela tem cauda, e eu complemento: “Eu

acho que ela pode até se transformar em sereia, se ela quiser, mas acho que ela é mais mãe das

sereias e de tantos outros seres do mar, do que propriamente uma sereia!”. Apesar de respeitar

estas associações, acho necessário enfatizarmos, em trabalhos desta natureza, as características

negras, a fim de não endossarmos os processos de invisibilização ainda tão arraigados em nossa

sociedade.

Page 58: LIA FRANCO BRAGA

58

Um dos orixás que escolhi para ter participação ativa no

processo foi o Ibeji (Figura 10), deus representado por duas

crianças gêmeas. Esse orixá estabelece um contato mais direto

com as crianças e representou, para mim, um território lúdico que

foi experienciado.

Em algumas cosmovisões africanas, como da nação

Iorubá, as crianças, principalmente as gêmeas, simbolizam a

continuidade, além de expressarem alegria, diversão, brincadeira,

jovialidade e jogos infantis (NASCIMENTO, 2018). Esta

divindade, em seu aspecto dual, relaciona-se com: harmonia e

desarmonia, conflito que move o mundo, dinamismo e aspectos

cíclicos, de ir e vir.

No processo das oficinas, contei histórias desta divindade

que estão presentes no livro Mitologia dos Orixás (PRANDI, 2001), que reúne uma diversidade

de mitos das deusas e deuses africanos. Dos sete mitos referente ao orixá Ibeji presentes no

livro, escolhi trabalhar com três mitos, que são Os Ibejis enganam a Morte, Os Ibejis são

transformados numa estatueta e Os Ibejis encontram água e salvam a cidade.

Optei em manter as características essenciais dos mitos, adaptando-os de maneira

lúdica, pois o texto é escrito para adultos. Os mitos dessa divindade puderam estabelecer

relações com outras(os) orixás, característica presente naturalmente na mitologia dessas deusas

e deuses, o que enriqueceu o material proposto.

O antropólogo e professor Vivaldo da Costa Lima (LIMA, 2005) discorre acerca do

culto aos gêmeos em países africanos e sua aproximação com a cultura afro-brasileira,

explicitando mitos e rituais da nação Iorubá. O autor diz: “Parir gêmeos é ter sorte. Ibêji traz

prosperidade e proteção [...]” (LIMA, 2005, p. 26). E esclarece: “Sendo, embora, patrono dos

gêmeos, Ibêji, como orixá, é um só. Ele é padroeiro dos dois gêmeos [...]” (LIMA, 2005, p. 34).

O autor correlaciona a existência e a união dos irmãos gêmeos através de símbolos

presentes nas culturas ancestrais dos Iorubá:

Um conhecimento menos superficial da mitologia e da teogonia ioruba faria lembrar

que as representações materiais e simbólicas de seus mitos se baseiam no princípio

arraigado da dualidade, da polaridade simbólica. Mas os gêmeos é que são,

precisamente, a exceção a essa regra, à regra da dualidade das representações. Isto

pelo fato que as figuras dos gêmeos não expressam o par complementar das

polaridades, o homem e a mulher, mas representam, na verdade, o gêmeo ou os

gêmeos mortos. Explico: quando morre um gêmeo entre os iorubas, na infância, antes

FIGURA 10 – IBEJIS

Fonte: Google Imagens

(internet).

Page 59: LIA FRANCO BRAGA

59

da puberdade, a família manda fazer, pelo artesão da comunidade, uma estatueta que

substituirá o gêmeo morto simbolicamente, estatueta que, dali por diante, será zelada,

alimentada e vestida, pela mãe, a iábeji, e guardada, geralmente, nos aposentos do pai.

Se morrerem ambos os gêmeos, serão feitas duas imagens [...] (LIMA, 2005, p. 42).

Recordo que em uma das oficinas, ao contar o mito Os Ibejis são transformados numa

estatueta (PRANDI, 2001), algumas crianças expressaram surpresa negativa e grande

afetuosidade em relação aos Ibejis, pois, na história, ao brincarem em uma cachoeira, um dos

irmãos se afoga e morre acidentalmente. Após as súplicas do outro irmão, os dois são

transformados em imagens de madeira. Na oficina, adaptei para o material mais próximo que

eu dispunha, que era a imagem de dois bonecos idênticos trançados em palha.

Posteriormente, em diálogo final na última oficina, contraditoriamente, algumas

crianças expressaram que tinham gostado da história em que um dos Ibejis havia morrido, e

outras disseram que não. Penso que o princípio de dualidade desses gêmeos, através das falas

das crianças, estava ativo e se personificou. A relação com a morte, que para algumas pessoas

pode ser um acontecimento traumático, para outras pode ser lidada de maneira mais natural, e

esse acontecimento é presente em mais de uma das histórias dos Ibejis, com caráter

emblemático. Caráter este que pôde suscitar nas crianças a compreensão de que a vida e a morte

são ciclos recorrentes que ocorrem nas existências humanas.

Dentro do processo, também fui sentindo necessidade de contar histórias de outras

orixás, e recorri ao livro Omo-Oba: histórias de princesas (OLIVEIRA, 2009), que adapta e

recria mitos de algumas orixás femininas, caracterizadas como princesas crianças, denotando

suas forças, energias e misticidades. Dos seis mitos presentes no livro, escolhi quatro deles para

trabalhar, que são: Ajê Xalugá e o seu brilho intenso, Iemanjá e o poder da criação do mundo,

Oxum e seu mistério e Oiá e o búfalo interior.

Considero ter sido importante utilizar essa referência, que usa uma linguagem lúdica,

pois narrei algumas das histórias com o acompanhamento do livro, que é rico em imagens

textuais e ilustrações, fortalecendo o referencial da negritude e o imaginário da(os) orixás para

as crianças e as professoras participantes da pesquisa.

É relevante considerar que essas histórias estão centradas em figuras de orixás

femininas e suas narrativas míticas, o que penso ser uma abordagem necessária nos contextos

educacionais e infantis. Essa perspectiva feminista permite auxiliar a desconstrução do

imaginário e da realidade machista em que vivemos, a de que apenas homens, heróis, guerreiros,

príncipes, reis ou deuses masculinos são valentes, corajosos, fortes e empoderados.

Características que, por vezes, também podem se fazer presentes em histórias infanto-juvenis,

Page 60: LIA FRANCO BRAGA

60

reforçando a imagem da mulher como “sexo frágil”. Nesse referencial e em outros mitos de

orixás, o poder feminino é vinculado à criação e à manutenção de saberes que integram a força,

a inteligência, a sabedoria, a intuição, a beleza e o empoderamento destas deusas

princesas/rainhas.

Me aproximo também das contribuições de Oliveira (2019) em relação à Pedagogia da

Ancestralidade, que propõe especialmente um recorte de gênero em relação a mulheres negras,

que socialmente são as que mais sofrem com racismo, preconceito e violência. A autora propõe

formas de empoderamento para estas mulheres, a partir de conhecimentos ancestrais

(OLIVEIRA, 2019).

Considero que minha dissertação dialoga com esse posicionamento. Tecerei algumas

relações com ele, ao longo desta escrita, sem centralizar esse recorte de gênero, visto que minha

pesquisa é focada em crianças da Educação Infantil. A autora explicita:

Pedagogia da Ancestralidade é antes de tudo um posicionamento político contrário ao

que se estabeleceu no país como uma lógica incontestável direcionada ao branco ser

considerado a norma e não-branco, desvio [...]. A Pedagogia da Ancestralidade, no

campo da educação, se opõe à hegemonia epistemológica eurocentrada, propondo

uma forma de ser-pesquisar -conhecer-pensar-juntar-articular-agir que reconheça o

continente africano como o Berço da Humanidade [...] (OLIVEIRA, 2019, no prelo).

É salutar que brancas(os), negras(os), mestiças(os) e indígenas (as crianças e os adultos

que residem em nosso país) tenham acesso e possam participar de práticas que evidenciem

conhecimentos e propostas que de fato reconheçam o continente africano e a diversidade, a

riqueza e a potência de seu legado histórico e cultural. Creio, nesse sentido, corroborar a luta

antirracista contra todo o apagamento e a exclusão histórica, social e cultural que negras(os)

vivenciam.

Nas oficinas, eu sempre iniciava contando uma história, narrando e corporificando

mitos de orixás. Mitos que possibilitaram introduzir a temática, criando uma ambiência

conectada com as proposições corporais já mencionadas, os jogos e as brincadeiras. Para

exemplificar, menciono uma das contações de histórias trabalhadas nesse contexto, que nomeio

de Os Gêmeos Ibejis numa aventura dançante (Figuras 11 e 12), criada a partir do mito original

Os Ibejis enganam a morte (PRANDI, 2001).

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61

Nessa proposição, articulo alguns elementos da cultura africana Iorubá estabelecidas

nas relações entre os Ibejis (orixá representado por crianças gêmeas), Oxum (orixá das águas

doces), Xangô (orixá do fogo, raios e trovões), Iemanjá (orixá das águas salgadas ou do mar) e

Icu (morte). Ao narrar a história, brinco de assumir papéis, ora como contadora, ora como atriz,

ao assumir a voz e o corpo de alguns personagens; ora como dançarina, ao gingar com giros e

movimentos que remetem ao meu Corpo-Dança Afroancestral (PETIT, 2015).

Toco instrumentos musicais africanos – djembe/tambor, ganzá/espécie de chocalho e

sagatts/címbalos de dedo – ao entoar cânticos e músicas africanas, e outras criadas por mim,

inspiradas nesse universo. Também represento as personagens manipulando objetos cênicos –

bonecos Ibejis, espelhos de Oxum e Iemanjá, machados de Xangô, saia de Icu etc.

Na religiosidade de matriz africana, que é o fio que percorre e une a maioria das

manifestações culturais populares que se apresentam com ampla participação de

negros e negras, o Corpo-Dança Afroancestral é aquele que não só dança, como canta,

conta histórias e mitos, e manipula objetos simbólicos (PETIT, 2015, p. 79).

Ao propor contações nessas perspectivas, conecto-me com os ouvintes-participantes e

com uma tradição ancestral vinculada à palavra falada. Nesse sentido, o professor de Filosofia

e Bioética da Universidade de Brasília (UNB), Wanderson Flor do Nascimento

(NASCIMENTO, 2012), tece algumas reflexões sobre oralidade em alguns contextos africanos:

A palavra falada, instauradora da oralidade, é dinâmica, articulada, transformadora e

autocrítica. Ela tem o curioso poder de transmitir uma informação passada ou

inaugurar algo novo [...] A oralidade, é, neste cenário, o lugar por excelência do saber;

é a palavra falada que mantém viva a tradição [...] A ancestralidade é sempre uma

experiência relacional, que liga, inclui e se move na perspectiva da multiplicidade –

FIGURAS 11 E 12 – OS GÊMEOS IBEJIS NUMA AVENTURA DANÇANTE

Fonte: Fotografias de Lenna Beauty.

Page 62: LIA FRANCO BRAGA

62

haja vista que somos herdeiros de diversos ancestrais. A memória, espelho da

ancestralidade, em uma movimentação vinculante com a palavra falada, apresenta-se

como uma manifestação da história que não cessa de mover-se tanto em direção ao

passado quanto ao futuro, com os pés orientados pelo presente. O mundo, a vida, a

existência são lidos pela ótica dessa ancestralidade [...] (NASCIMENTO, 2012, p. 43-

46).

Assim sendo, as contações de histórias aproximaram as(os) participantes da pesquisa

dos mitos de orixás, situando-os e apresentando-lhes dimensão cultural e características

simbólicas das deusas e deuses, bem como transmissão de saberes, passados de geração para

geração, através de uma retroalimentação circular.

Ainda refletindo sobre a palavra, pode-se compreender que em algumas filosofias ou

cosmovisões africanas ela é concebida como força vital e pode ser expressa no ato de contar

histórias, através de uma oralidade que se comunica de maneira integral e holística com o outro.

Nesse sentido, pode-se inclusive usar o corpo em manifestações artísticas, como a dramatização

teatral e a dança, para expressar histórias (PETIT, 2015). A autora explicita um conceito específico, mais abrangente e filosófico, a respeito da

tradição oral, que é apresentado pelo escritor africano, originário do país Mali, Hampâte Bâ:

Ele destaca os seguintes aspectos: o caráter sagrado da fala; a fala como força vital; a

fala como vibração que produz ritmo e música; a tradição como forma de

aprendizagem e de iniciação; a importância da viagem como dimensão formadora; a

importância da genealogia; os ofícios tradicionais; a visão de totalidade e de percepção

total. O caráter sagrado da fala é devido à sua origem divina e às forças ocultas dela

depositadas. Dessa forma, fala é um dom de Deus. A fala é força vital porque gera

movimento, vida e ação [...] (PETIT, 2015, p. 112-113).

Essa fala, que reflete conhecimentos e expressões múltiplas, é divina e terrena ao

mesmo tempo, quando incorpora no próprio corpo – daqueles que a proferem – tradições,

costumes e culturas germinadas em solos africanos. A valorização da oralidade como atitude

diante da vida, “e não simples verbalização; a expressividade e a gestualidade como formas de

fortalecer a palavra pronunciada, por vezes sendo o próprio corpo o protagonista da fala sem

verbalização” (PETIT, 2015, p. 140).

Assim, ter uma história para contar, e também ter uma história para brincar, reflete, a

partir dessa ancoragem, que o ato de contar histórias está intimamente ligado ao ato de jogar

com as palavras através de um corpo brincante, pois a fala é encarnada nesse corpo como

potência lúdica.

Nessa mesma direção, a professora e pesquisadora em Dança e Educação, Teodora

Alves (ALVES, 2006), dimensiona o corpo a partir de uma compreensão sobre uma herança

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63

étnica e cultural afro-brasileira, que faz com que os corpos imprimam identidade cultural e

social:

Nesse contexto da dança, mais especificamente a afro-brasileira, buscar compreender

os saberes construídos étnica e culturalmente nos faz perceber o corpo como espaço

no qual se produz linguagem e existência no mundo e que muitos conhecimentos

construídos e vivenciados pelos nossos antepassados acabaram se mantendo em nós,

pela incorporação, ao longo das gerações. Há registros de nossos desejos e

necessidades, que se desvelam ou não, dependendo do meio em que vivemos. Refiro-

me não apenas à herança genética, mas a um tipo de herança corporal, de dimensão

expressiva, gestual, que nesse sentido, não é algo condicionado a um determinismo

genético, mas que, na tessitura da vida, se envolve com o inusitado, com o conhecido,

com a pluralidade, com a transcendência, emergindo nas vivências, nos contatos, nos

diálogos entre corpos que têm intencionalidades, expressividade, vida (ALVES, 2006,

p. 59).

A autora entrelaça o sentido de expressividade corporal a uma maneira lúdica de se

comunicar culturalmente: “No caso da cultura negra, em especial a da dança afro-brasileira, a

expressividade se traduz em linguagem extremamente criativa, comunicativa e fundada numa

relação lúdico-sagrada” (ALVES, 2006, p. 107). Ela ainda expressa que as vivências dos

sujeitos são amalgamadas às suas histórias, experienciadas pelos corpos que constroem saberes

“individuaiscoletivos”:

As práticas de saberes da cultura negra estão presentes na história da vida dos sujeitos

individuaiscoletivos numa dinâmica dialógica. É o que são, o que falam, o que pensam

sobre/no/do cotidiano. São seus gestos, sua linguagem habitual, seus costumes que

emergem através do corpo [...] (ALVES, 2006, p. 107).

Ou seja, os sujeitos se constituem como são através de lógicas que incorporam saberes

corporais em seus cotidianos e revelam costumes enraizados em culturas negras. Culturas estas

tão presentes, significativas e constituintes de nossas afrodescendências. Portanto, a partir deste diálogo presente nas oficinas que foram desenvolvidas, esta

expressividade corporal permeada pela cultura africana, teve espaço através de travessias

brincantes de corpos que dançam, teatralizam e performam por meio de histórias, músicas,

ritmos e gingas dos universos encantados de orixás.

Nesse contexto, após iniciar as oficinas com contações de histórias, desenvolvi

jogos/brincadeiras centradas na experienciação corporal, buscando articular alguns elementos

apresentados nas histórias a outros recursos lúdicos. Por exemplo, na oficina em que contei a história Ajê Xalugá e o seu brilho intenso

(OLIVEIRA, 2009), a menina princesa acaba ficando cega por conta de sua teimosia em não

saber colocar limites aos seus desejos:

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64

No dia seguinte, Ajê Xalugá foi desbravar os mares, orgulhosa por ser detentora de

segredos. Estava tão orgulhosa de si que não se preocupou em se esconder das pessoas

que estavam à beira mar. E se mostrou com todo o seu brilho. O brilho era tão intenso

que ... [...] – O que eu der aos outros retornará a mim e cada segredo guarda um perigo.

Foi isso que Olocum profetizou. Meu brilho intenso cegou as pessoas à beira-mar e o

mesmo aconteceu comigo. Que situação! Eu nada mais enxergo (OLIVEIRA, 2009,

p. 39-40).

A partir de então, quem ajuda a menina é sua irmã mais velha, Iemanjá, guiando-a

pelas ondas do mar, até que a princesa Ajê Xalugá encontra um novo sentido para viver. Após

a contação, um dos jogos/brincadeiras vivenciados neste dia foi Cego e Condutor, no qual as

crianças ficavam em duplas, e uma delas, com os olhos vendados, era guiada pela outra, pelo

espaço (depois, ambas trocavam de lugar). Notei que nesta experienciação algumas crianças

andavam bem juntas e devagar, de mãos dadas e concentradas; outras divertiam-se tentando

agilizar o ritmo corporal, e ainda assim não se descuidando das outras.

Esta história e este jogo/brincadeira corporal, articulados entre si, explicitam a

importância do cuidar do outro, do respeito e do convívio com pessoas com deficiência.

Também revela que precisamos conhecer os nossos próprios limites e desenvolvermos um

autocuidado, para que não prejudiquemos nem aos outros, nem a nós mesmos.

Nesse sentido, as experienciações corporais, através dos olhos vendados e do auxílio

do próximo, despertam nas crianças a importância da utilização de outros sentidos, bem como

um trabalho de sensibilização corporal, ao testarem romper ou não limites e ressignificá-los.

Tanto nas contações de histórias como nos jogos/brincadeiras corporais, além da dança

e do teatro, elementos de musicalidade foram utilizados e contextualizados à proposta. Para

tanto, houve uma combinação de algumas formas de execução, que foram músicas ao vivo e

em versão gravada. Tais expressões musicais estimularam bastante as crianças em suas

experienciações e ampliaram seus repertórios corpóreos-criativos-brincantes.

Ao desvendar procedimentos lúdicos fundamentados na metodologia do ensino em

artes, Marques (2012) discorre sobre a relação criança/corpo e sobre como as crianças, ao

inventarem suas danças, são motivadas por dispositivos criativos contextualizados a partir de

suas realidades:

A criação de danças pelas próprias crianças é sem dúvida uma forma de sentir, de

dizer e de significar quem são. Obviamente, os sentimentos e emoções das crianças

estarão sempre presentes na fruição, na experiência e em suas composições se assim

for permitido e incentivado. A construção da arte, no entanto, lida mais com as visões,

sensações e percepções das relações eu/mundo do que com os sentimentos e emoções

pessoais de cada um. No corpo, com o corpo e pelo corpo a criança pode construir

Page 65: LIA FRANCO BRAGA

65

suas próprias formas de dançar, construindo, assim, outros sentidos, outras formas de

ser/estar no mundo (MARQUES, 2012, p. 68-69).

A autora salienta ainda a importância de apresentar estruturas mínimas para apoiar o

contexto da mediação. Nesse sentido, ela argumenta que “a liberdade total sem estrutura, sem

apoio, sem metodologia definida priva o aluno do conhecimento específico da área de dança,

levando-o ao vazio da comunicação e da construção artística” (MARQUES, 2004, p. 141).

Assim sendo, contextos mediados com estruturas previamente elaboradas e definidas,

com abertura para o que a experiência em si pode provocar, potencializam descobertas de

corpos ativos, críticos, sensíveis e autores de suas criações. Posso então articular essas discussões com a narrativa da Professora Titular da turma

participante desta pesquisa, na ocasião da entrevista final cedida no dia 19 de junho de 2019.

Ela expressou, sobre a abordagem metodológica desenvolvida na pesquisa, o seguinte:

[...] havia uma história, essa história com muitos, muitos elementos, né? Muito rica!

E, para contextualizar, o segundo momento que era sempre uma brincadeira [...] Foi

muito importante essa metodologia para turma. Porque assim, a criança adora brincar,

né? É do perfil da criança brincar e ela aprende brincando. Mas, a turma, só... muitas

vezes, só quer brincar. Então foi importante também, ter um momento de prestar

atenção, de contextualizar, para eles mesmos poderem fazer uma relação, entre o que

eles escutaram e o que eles tavam brincando depois? [...]E, foi isso, eu achei que foi

muito boa, porque, havia contexto, havia sentido, na verdade, né? [...] Embora a

brincadeira ela tenha também o seu cunho livre, ela pode ser uma brincadeira livre

né? Mas era bacana, porque, os elementos da história, muitas vezes fizeram parte das

brincadeiras né? É como se eles tivessem um repertório a mais para brincar [...].

Outro recurso utilizado em algumas oficinas foi a criação de desenhos por parte das

crianças, a partir de um eixo questionador – qual brincadeira haviam gostado mais, ou qual

orixá haviam gostado mais. Este recurso, em específico, pôde também me auxiliar a perceber

outras formas de expressão das imaginações e das criatividades das crianças, bem como as

relações que estavam estabelecendo com as temáticas e as formas de sociabilidade vivenciadas. Portanto, a experiência das crianças é o eixo norteador da pesquisa, a partir das

interações estabelecidas comigo, com elas e com as professoras responsáveis pela turma. Nesse

contexto, utilizei observações, diário de campo, registros de narrativas escritas ou faladas,

gravações em áudio e em vídeo e fotografias.

No sentido de dar um ordenamento mais integrado às diferentes vertentes observadas

nas experienciações com as crianças, considerei importante construir uma Figura com o intuito

de situar unidades circulares – Criança Artista, Criança Natureza, Criança Orixás e Criança

Negritude –, bem como conceitos-chave – Corpo-Poroso, Corpo Brincante, Corpo-Dança

Page 66: LIA FRANCO BRAGA

66

Afroancestral (PETIT, 2015) e Criança Performer (MACHADO, 2010b) – articulados entre si.

Estas proposições serão melhor desenvolvidas no Capítulo 3 – Brincando com os gêmeos Ibejis

e outras(os) orixás. Recorri a instrumentais e referenciais teórico-metodológicos que, em diálogo com a

pesquisa em arte, a abordagem fenomenológica e as proposições afro-referenciadas,

permitiram-me observar e compreender o objeto de pesquisa e os objetivos elencados. Estes

são ancorados nas próprias manifestações das crianças enquanto sujeitos criadores de suas

proposições, a partir das metodologias afro-brincantes que foram proporcionadas.

2.4 LOCUS DA PESQUISA

Conforme já mencionei de forma mais breve em outras partes da dissertação, explicito

aqui o critério de escolha da instituição para realizar o trabalho de campo. Além disso, faço

aqui uma caracterização mais sistemática do Núcleo de Educação da Infância (NEI), Colégio

de Aplicação (CAp) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), como locus de

experienciação.

Essa descrição é valiosa para entender alguns elementos a serem trabalhados no

Capítulo 3 – Brincando com os gêmeos Ibejis e outras(os) orixás. Também é o momento de

detalhar os vários procedimentos para efetivar o passo a passo da pesquisa empírica, realizada

no período de abril a junho de 2019, com periodicidade semanal. Os encontros das práticas das

oficinas tiveram duração entre 35 minutos e 1 hora e 20 minutos. Cabe aqui também mencionar

as oportunidades, os desafios e as estratégias de superação diante de alguns impasses existentes.

Para a escolha da instituição, levei em consideração os seguintes critérios: ser de

natureza pública; atender a crianças na etapa da Educação Infantil; demonstrar interesse face à

proposta do projeto de pesquisa; ter uma localização que favorecesse o meu deslocamento

enquanto pesquisadora, principalmente devido à necessidade de condução e utilização de

materiais específicos durante a pesquisa, tais como bonecos, instrumentos musicais,

equipamentos eletrônicos (como computador) e outros.

O NEI é uma instituição acolhedora tanto para os profissionais como para as crianças

que lá estudam. Inclusive porque recebe crianças com deficiência18 desde o berçário, o que

18 Segundo a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, o termo adequado a ser utilizado é “Pessoa com Deficiência”.

A Lei está disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>.

Page 67: LIA FRANCO BRAGA

67

considero um diferencial por trabalhar com a Educação Inclusiva19 e desenvolver a importância

do respeito e do convívio com as diferenças, desde os primeiros anos de vida das crianças.

Pude perceber também que alguns dos profissionais com quem tive contato buscam

estar sempre se capacitando – seja avançando na formação acadêmica, seja por participarem de

eventos científicos e/ou de grupos de estudo na própria instituição. Ou, por exemplo,

promovendo encontros a nível nacional, como o Encontro Nacional de Educação Infantil

(ENEI), promovido pelo Núcleo de Educação da Infância – NEI/CAp – e pelo Programa de

Pós-Graduação em Educação, ambos vinculados ao Centro de Educação da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde tive a oportunidade de apresentar um trabalho

em 2018.

Em termos de estrutura física, considero que a instituição possui condições favoráveis

e agradáveis, tanto para o desenvolvimento das crianças como para o desenvolvimento do

trabalho dos profissionais envolvidos. Existe um prédio central e um anexo; neste último

ocorrem reuniões, estudos por parte dos profissionais e palestras. Foi nesse espaço que realizei

algumas das entrevistas.

No prédio central, no qual as crianças estudam, há divisões para berçário, Educação

Infantil e Ensino Fundamental. As salas da Educação Infantil são bem equipadas, com

brinquedos, livros, fantasias, materiais para escrita e desenho, mesas e cadeiras adaptadas ao

tamanho das crianças. Estão decoradas, muitas vezes pelos próprios trabalhos desenvolvidos

pelas crianças, e vários destes trabalhos são também fixados em outros espaços da instituição.

Há também sala de música, sala de audiovisual, biblioteca e dois parques, além de recepção,

sala de coordenação e outros espaços.

Outro fato que me chamou atenção positivamente a respeito da instituição, em

diferentes momentos das vivências, foi as concepções expressas no projeto pedagógico, as

atividades extracurriculares realizadas e o tratamento cotidiano prestado às crianças. Elas são

concebidas como sujeitos ativos, e são levados em consideração seus questionamentos, dizeres,

fazeres, vontades, curiosidades e sentimentos.

Cabe explicitar algumas considerações da Coordenadora Pedagógica da Educação

Infantil, em entrevista cedida no dia 6 de junho de 2019. Ela destaca a abordagem histórico-

19 Refiro-me à educação inclusiva como um modelo educacional que, mesmo sendo considerado por políticas

públicas, ainda está distante da realidade escolar brasileira. Trabalhar a educação inclusiva desde a Educação

Infantil, por ser esta a primeira etapa da Educação Básica, é importante, pois se considera este como um período

crítico no processo de desenvolvimento e aprendizagem de crianças com e sem deficiência, possibilitando a

construção de um mundo compartilhado entre elas.

Page 68: LIA FRANCO BRAGA

68

cultural pautada principalmente nas contribuições do psicólogo e teórico Lev Vygotsky, que

salienta as interações sociais na constituição humana. A instituição também busca estar em

consonância com as diretrizes da Educação Infantil a partir de dois eixos orientadores, que são

as interações e as brincadeiras. Nesse sentido, menciona:

[...] não há uma criança única, mas muitas crianças, muitas infâncias, e, se eles são

sujeitos de interações, eles são sujeitos que participam, é, são sujeitos ativos, são

sujeitos que constroem esse conhecimento junto com o professor [...] a gente entende

essa criança como produtora de cultura, então, nesse espaço ela cria cultura, ela cria

modos próprios de ser e se relacionar aqui... Ela é transformada por esse ambiente, ao

mesmo tempo que transforma também, então [...] essa concepção aparece muito... na

nossa escolha metodológica do tema de pesquisa, a partir do momento que a gente diz

que ela é ativa, é participativa, é sujeito social, sujeito de direitos, de interações, que

têm que participar, opinar, que constrói junto, sim, mas, isso aparece como? No tema

de pesquisa, que é um tema que eles escolhem, eles trazem um conhecimento prévio

[...] eles dizem o que querem estudar, o que querem saber e junto com o professor eles

constroem, ele busca, trilha esse caminho, em busca de, das respostas desse

conhecimento, então, essa seria a nossa concepção de criança né, é, esse sujeito que

têm voz, a todo tempo essas crianças aqui têm voz, é dado esse lugar a elas. Aqui elas

não chegam para receber nada pronto, mas, sempre para construir. A infância como

esse tempo, de muitas infâncias, porque aí de novo, se a gente parte de que, é, de uma

concepção histórico e cultural, principalmente cultural, eu não posso dizer que só teve

infância quem viveu a infância do meu jeito, não né? [...] a concepção de Educação

Infantil, como esse espaço de interações, de aprendizagem, de brincadeira, de cuidar

e de educar, com uma função social [...] promover [...] muito diálogo, muita fala, né.

De modo que considere, essa criança e essa infância [...].

Cabe construir elos, a partir das narrativas da coordenadora, com estudos

desenvolvidos por Vygotsky acerca da importância das interações sociais no desenvolvimento

e na constituição humana. Vale explicitar, a partir de Smolka (2009), as influências de Vygotsky

(1896-1934) em seu contexto pessoal, que morreu jovem, aos 38 anos de idade:

Vygotsky é fruto de seu tempo. Nasce imerso em uma rica ambiência cultural. A

leitura e a literatura, a ciência e arte fazem parte do seu cotidiano. De família judaica,

vive a passagem do século XIX para o século XX em meio a uma enorme

efervescência de ideias. Impactado pelas demandas e propostas da Revolução Russa,

experiencia as contradições desse cotidiano: sente agudamente a discriminação;

percebe as diferenças sociais, a precariedade das condições de vida; adere à utopia da

construção do homem novo (SMOLKA, 2009, p. 129).

Decerto, as experiências pessoais do autor influenciaram suas inquietações e

produções. Atento aos problemas sociais, aos contextos individuais e coletivos, problematiza e

propõe percepções e conceitos que interligam Psicologia, Educação e Cultura na perspectiva da

promoção do desenvolvimento humano.

A concepção de Educação Infantil apresentada pela coordenadora, “[...] como esse

espaço de interações, de aprendizagem, de brincadeira, de cuidar e de educar, com uma função

Page 69: LIA FRANCO BRAGA

69

social [...]”, permite construir articulações entre arte, imaginação e criatividade, como

instâncias fruidoras e potencializadoras da cultura e da formação de crianças.

Dada a raiz de toda criação infantil, o drama está diretamente relacionado à

brincadeira, mais do que qualquer outro tipo de criação. Por isso, é mais sincrético,

ou seja, contém em si elementos dos mais variados tipos de criação. Nisso, aliás, reside

a maior preciosidade da encenação teatral da criança, que fornece prova e material

para os mais diferentes tipos de criação infantil. As crianças criam, improvisam o

preparam a peça; improvisam os papéis e, às vezes, encenam um material literário

pronto. Essa criação verbal é necessária e compreensível para elas próprias porque

adquire sentido como parte de um todo; é a preparação ou a parte natural de toda uma

brincadeira divertida [...] (VYGOTSKY, 2009, p. 99).

As experienciações lúdicas, como a brincadeira, contextualizadas junto ao teatro,

potencializam as criações das crianças a partir da ênfase nos processos, oportunizando às

mesmas o protagonismo de suas criações:

Eis por que estão bem mais próximas da compreensão infantil as peças compostas

pelas próprias crianças ou produzidas e improvisadas por elas ao longo do processo

de criação. Daí, são possíveis as mais diferentes formas e graus, desde a preparação

prévia e o trabalho com o texto literário até o suave alinhavo de cada papel que a

própria criança deve desenvolver de forma improvisada num novo texto oral, num

processo de brincadeira. Tais peças [...] terão uma vantagem enorme por surgirem no

processo de criação infantil. Não se deve esquecer que a lei principal da criação

infantil consiste em ver seu valor não no resultado, não no produto da criação, mas no

processo. O importante não é o que as crianças criam, o importante é que criam,

compõem, exercitam-se na imaginação criativa e na encarnação dessa imaginação. Na

verdadeira encenação infantil, tudo – desde as cortinas até o desencadeamento final

do drama – deve ser feito pelas mãos e pela imaginação das crianças, e somente assim

a criação dramática adquire para elas todo o seu significado e toda a sua força

(VYGOTSKY, 2009, p. 100-101).

O autor ainda dimensiona que metodologias pautadas em linguagens artísticas, como

o recorte que ele faz em relação ao teatro, compreendem o corpo como dinâmica essencial aos

processos imaginativos: “Sabemos que alguns pedagogos introduzem a dramatização como

método de ensino pelo tanto que essa forma ativa de representação por meio do próprio corpo

responde à natureza motriz da imaginação infantil” (VYGOTSKY, 2009, p. 103). Essas reflexões me remetem à valorização das culturas infantis, em que as crianças são

as protagonistas de suas vivências, arraigadas nas suas corporeidades imaginativas. Há também

um enlace que percebo entre estas proposições e a dimensão da experiência, tão forte em

perspectivas afro-referenciadas, bem como nas reflexões produzidas por Merleau-Ponty. É a

partir de nossas experienciações que o mundo se revela no âmago de nossas sensações,

percepções, reflexões, questionamentos e emoções, tangenciadas por corpos que imprimem e

revelam criações.

Page 70: LIA FRANCO BRAGA

70

Destaco que, na rotina escolar da turma participante da pesquisa, as crianças tinham

aulas de teatro e de música uma vez por semana, durante 60 minutos, cada uma. As aulas de

teatro eram ministradas pelo Bolsista de Teatro, e as de música, pela Professora de Música

acompanhada de um monitor. Ocorriam às quintas-feiras, no mesmo dia em que foram

desenvolvidas a maior parte das oficinas da pesquisa, o que avalio como positivo, por

proporcionar articulações entre as linguagens artísticas. As aulas ocorriam antes do recreio, e

as oficinas, após o recreio, o que de certo modo facilitou o processo e enriqueceu o repertório

artístico vivenciado pela turma.

Nesse sentido, destaco algumas abordagens e propostas desenvolvidas pelos

professores, a partir dos eixos corpo-ludicidade-arte, que dialogam com minha proposição. Em

entrevista cedida no dia 23 de maio de 2019, o Bolsista de Teatro explicita:

A minha abordagem ela se pauta muito na questão do faz de conta [...] e também na

questão visual [...] Eu acredito que isso é algo que, acrescenta muito para criança, né?

Essa turma especificamente tá trabalhando o NEI [tema de pesquisa], então eu

trabalhei muito o corpo [...] fiz leituras de imagens, de fotos, como você mesma viu,

já... E agora, que essa questão da dança popular ela tá chegando mais agora [...] É, se

eu começo o faz de conta eles... [eu ri]... né? [...] Eles despertam muito para isso! [...]

e coisas práticas, a, a questão do jogo [...] e da corporeidade, né? [...] enquanto, eles

tão nessa formação de corpo, de corporeidade, né, dessa coordenação também, é,

entender os processos do corpo, entender como é que o nosso corpo, principalmente

eles, como é que o corpo deles funciona [...]

Em entrevista cedida no dia 3 de junho de 2019, a Professora de Música explicita:

No início quando eu [...] para me apresentar pra turma eu utilizei, que até hoje eles

me pedem [risadas dela] é o paraquedas [...] é um círculo assim grande, é um papel, é

um papel? É um tecido, feito pra, pra esse propósito mesmo, que ele têm um, tecido

de paraquedas. Então ele é bem grande e ele é todo colorido. E aí eu contei uma

história para as crianças sobre a estrela do mar [...] tinha a história da estrela do mar,

só que a estrela, a história da estrela do mar, ela é toda, sonorizada. Então têm o sol

que é o pandeiro, têm a lua que é a panderola, têm a estrelinha, que é um sininho, aí

têm vários elementos que se fazem o som, e, dão [interrompo com “atmosfera”] [...]

uma outra atmosfera pra, pra essa história... E aí, quando terminou a história, a estrela

do ma... a estrela que morava lá no céu, caiu lá dentro do mar. E aí quando ela cai lá

dentro do mar, ela cai dentro desse paraquedas, que eu fiz com eles né? Só que eu,

peguei uma estrelinha mesmo que eu já tinha feito, e aí, trouxe... e trouxe uma música

pra poder fazer, o balanço do, do mar, com eles. Então todos poderiam segurar um

pedacinho, do, do mar ali em círculo e aí o mar, ele fica forte e as vezes ele fica lento,

então a música acontecia a mesma coisa, as vezes a música ficava mais lenta e eles

tinham que perceber isso e, porque agora todo mundo era o mar e ia fazer a estrelinha

nadar dentro do mar. Então eles, amaram essa atividade [...] o problema era mais

agente conseguir conter, porque no momento que estava todo mundo ali com o mar

agitado, todo mundo começava a gritar e pra voltar pra ficar lento [risadas dela] é um

processo, foi um processo, até eles conseguirem perceber mais a música, do que a

empolgação de, da atividade né? [...] trabalhei com eles depois, todo mundo ir pra

baixo do mar, todo mundo ir pra cima do mar, pra eles explorarem, porque eles

queriam... quando, quando o mar subia, todo mundo queria ir pra baixo, eu disse “não,

vai ter um momento para isso!” Aí depois eu botei todo mundo para explorar aquele

paraquedas. Então acho que foi uma atividade bem marcante [...]eu tento trazer para

esse corporal [...] e aí [...] trabalhei uma vez uma música que é [...] [ela canta]: “eu

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vou pular, eu vou pular, eu vou pular...”, e aí, eles tem que fazer, aquilo que tá pedindo

a música, “paro em silêncio!”, e aí todo mundo faz estátua, “e agora andar... eu vou

andar...” e aí, eu vou mudando esses elementos... eu vou andar, depois eu vou correr,

eu vou girar, eu vou saltar... [...] pular... eu vou dançar, eu vou andar abaixando... e

assim eu vou, eu vou mudando [...]

Nessa entrevista, a partir das explicitações da professora, pude fazer relações com a

metodologia que desenvolvo na pesquisa:

Tem um jogo que eu faço, que é no contexto de uma floresta [ela diz animada:

“Sim!”], aí, eu falo [cantando] “caminha, caminha, caminha, você tá caminhando,

caminha, caminha, caminha, você é um passarinho!”, aí eles vão se transformando

nos animais... [ela, animada: “Ai, que legal!”]... aí dá para usar também! [ela diz:

“Com certeza!”] [...] O pular, o dançar! Eu utilizo muito assim, a música como um

apoio, né? Ela não é central, né? O central é o movimento, a dança, o teatro. Mas a

música ela tá muito forte, até porque a questão africana, ela pede isso [...] Então eu

lembrei quando cê falou [risos de ambas]... Nossa, que conexão, né?

Ela complementa:

[...] na verdade eu acho que são os propósitos que mudam mas os entrelaçamentos,

porque a gente usa muito a questão do, do, teatro né, quando eu falei da história [eu

digo: “Com certeza!”] [...] A história toda teatral... Aí o sol [ela faz barulho]: “PÁ,

PÁ”, chegou o sol e aí o sol, né? O sol, é o quê? Depois eu pergunto, “o sol é muito

brabo!” [com entonação de brabeza]... Ah... [eu digo: “Que linda, eu fiquei curiosa

para ver essa história!].

Para além das aulas específicas de teatro e música, é importante salientar que, na rotina

escolar, a arte é um eixo pensado, valorizado, estimulado e desenvolvido com as crianças, como

pode ser verificado em entrevista inicial cedida no dia 23 de maio de 2019, pela Professora

Titular:

A abordagem metodológica utilizada na instituição, é a abordagem triangular, de Ana

Mae Barbosa [educadora e pioneira em arte- educação no Brasil, pela sistematização

da abordagem citada pela professora]. A gente sempre, é, desenvolve atividades

artísticas, esse ano a mais significativa, foi com a vinda de uma bolsista [...] a gente

estava tratando das brincadeiras de antigamente, da instituição, do NEI [tema de

pesquisa] e a gente trouxe a amarelinha [...] ela, é, colaborou para esse

desenvolvimento também, mas a gente foi fazer uma obra de releitura de, um artista

chamado Ivan Cruz [artista plástico carioca], que, destaca as brincadeiras, nas suas

obras. [...] a metodologia de Ana Mae Barbosa é, a gente aprecia, contextualiza e faz,

então, a gente apreciou a obra dele, a gente contextualiza, em relação, porque ele fez

aquilo? E qual o ano que fez aquilo? O material utilizado? Como a gente poderia fazer

aquilo do nosso... do seu jeito, nu é? Porque, a releitura apenas, é, algo de referência,

mas, ele não é o produto, então assim, a gente luta muito para que as crianças não

produzam cópias, embora muitas tenham a necessidade de fazer a cópia e, a gente

tenta lutar contra isso, para que eles utilizem... não é necessário utilizar a mesma cor

que o artista utilizou ou fazer a casinha do mesmo jeito que ele fez e aí, as crianças

conseguiram. Para gente, a gente tá, tão mais preocupado com o processo do que com

o produto, então, eles amam [enfatiza essa palavra] atividades, de arte né? Eles

adoram, porque, meche com o processo criativo e eu acho, que é, que é, inerente a

criança né? [...] A todos nós [risos de ambas], mas a criança está mais aflorada e mais

livre para criar.

Page 72: LIA FRANCO BRAGA

72

Pode-se perceber, nas entrevistas, que a instituição, através de seus profissionais,

valoriza e prioriza na Educação Infantil as atividades de cunho lúdico, no cotidiano e nas

disciplinas desenvolvidas com proposições artístico-pedagógicas.

Nessas proposições, a Arte, como linguagem e abordagem metodológica, promove

inúmeros atravessamentos, como a apreciação estética, perpassada pela experienciação

corporal, por meio do uso de recursos visuais e do “faz de conta” proposto pelo Bolsista de

Teatro. Também em suas aulas, o desenvolvimento do estudo e da prática com danças populares

se deu naquela ocasião, devido ao contexto da comemoração e das apresentações nas festas

juninas. A música e o teatro em diálogo promovem imersão da experiência das crianças,

estimulando a imaginação delas, a valorização da natureza e o cruzamento com a vivência

corporal proposta pela Professora de Música. O enfoque nas culturas infantis, envolvendo as

brincadeiras, permitiu às crianças recriar obras do artista plástico Ivan Cruz, atividade mediada

pela Professora Titular da turma e uma bolsista, pautada na abordagem triangular, de Ana Mae

Barbosa. Para finalizar a caracterização da instituição, destaco a metodologia utilizada, na qual

o conteúdo temático e as práticas se articulam e permitem uma participação proativa das

próprias crianças, como também possibilita uma convergência com a proposta das(os)

professoras(es). A pedagoga e professora do NEI, Uiliete Márcia Silva de Mendonça, destaca: “[...]

enquanto escola, entende que tem um papel relevante no processo do desenvolvimento infantil,

como mediadora-dinamizadora entre as experiências e conhecimentos da criança e os

conhecimentos acumulados histórica e socialmente pela humanidade” (MENDONÇA, 2012, p.

38). Ela menciona também a importância da contextualização dos temas de pesquisa a partir do

currículo proposto e das propostas do educador Paulo Freire, e da pedagoga e doutora em

educação Sonia Kramer:

[...] foram introduzidos no NEI os temas de pesquisa, trabalhos de forma

interdisciplinar e articulando três dimensões básicas: o conhecimento das áreas de

conteúdo, ou sejam, os conhecimentos produzidos e sistematizados nas áreas de

matemática, linguagem, ciências naturais e sociais; o contexto sócio-cultural das

crianças, que pressupõe um conhecimento da realidade em que a criança está inserida,

considerando os conhecimentos, os valores e as várias linguagens trazidas do

cotidiano e os aspectos vinculados diretamente à aprendizagem, ou seja, o nível de

desenvolvimento da criança, sendo respeitadas as características próprias do seu

desenvolvimento (MENDONÇA, 2012).

Page 73: LIA FRANCO BRAGA

73

A autora ainda articula a proposta dos temas de pesquisa, como metodologia base, a

partir da proposta pedagógica do ano de 2004, desenvolvida na instituição:

Nesse sentido, vale ressaltar que o tema de pesquisa é trabalhado no NEI como forma

de articular as experiências de vida e valores socioculturais das crianças, o

conhecimento das áreas de conteúdo e o seu nível de desenvolvimento, viabilizando

a proposta interdisciplinar da escola, constituindo-se num parâmetro básico da

dinâmica pedagógica (MENDONÇA, 2012, p. 60).

Pude observar que a comunidade escolar é envolvida ao longo do ano na colaboração,

no desenvolvimento e na execução da metodologia proposta. As crianças, portanto, vão

construindo conhecimentos a partir de suas próprias inquietações, em mediação com os adultos,

tendo a concepção e a vivência da importância de se pesquisar, e não, por exemplo, decorando

fórmulas ou datas.

São crianças que podem articular conhecimentos adquiridos na escola com saberes

vivenciados a partir de suas realidades e dinâmicas sócio-culturais. Elas aprendem

questionando, propondo e pesquisando, e também ensinam e possibilitam aos adultos ampliar

suas visões e práticas pedagógicas a partir delas mesmas. Pequenas e pequenos em tamanho,

porém grandes em suas inteligências, sensibilidades e contribuições.

Destaco que esta apresentação sobre a instituição não esgota e nem aprofunda a sua

potência agregadora, que permite às crianças e aos adultos vivenciarem e compartilharem

aprendizados construídos conjuntamente.

2.5 PARTICIPANTES DA PESQUISA

Em relação aos sujeitos da pesquisa, participaram 12 crianças de uma turma da

Educação Infantil, entre 5 e 6 anos (participação direta); 2 professoras responsáveis pela turma

destas crianças, a Professora Titular e a Professora Substituta (participação direta); 1

Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil (participação indireta); 1 Bolsista de Teatro

(participação indireta); e 1 Professora de Música (participação indireta).

Neste contexto, a participação direta das crianças envolveu minha observação em

relação a elas, durante a rotina escolar, e suas participações no processo das oficinas, em que

vivenciaram e criaram junto à proposta. No caso das professoras vinculadas à turma das

crianças, suas participações diretas ocorreram nos seguintes momentos: quando as observei

durante suas aulas; ao colaborarem no processo das oficinas, apoiando na organização das

Page 74: LIA FRANCO BRAGA

74

crianças e ao participarem das práticas lúdicas; e, em determinados momentos, emitindo

opiniões ao prestarem seus depoimentos durante as entrevistas. Em relação à Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil, ao Bolsista de Teatro e

a Professora de Música, considero que a participação destes sujeitos foi indireta por não

vivenciarem o desenrolar da pesquisa. As entrevistas em que essas(es) profissionais emitem

opiniões sobre a instituição e o envolvimento das crianças nas práticas pedagógicas, conforme

já foram referidas, serão retomadas em outros momentos deste trabalho.

No desenvolvimento da pesquisa, foram utilizadas diferentes formas de apreensão da

realidade. Inicialmente as observações seguiram um roteiro orientado a partir do objeto de

pesquisa, focado nas crianças participantes. Elas se realizaram em dois ambientes da instituição:

dentro da sala de aula e na hora do recreio, no parque, durante uma semana. O intuito era perceber inicialmente a maneira como as crianças se expressavam e se

relacionavam entre si, e, para tanto, as observações seguiram um roteiro a ser verificado:

sociabilidade e interação das crianças em relação aos colegas; a existência ou inexistência de

alguma forma de preconceito ou exclusão externalizada entre elas – e, em caso afirmativo, quais

seriam as motivações; o que motivava as crianças a brincarem; quais as características das

brincadeiras; se eram brincadeiras que necessitavam de algum recurso físico ou de outra ordem

– e, em caso afirmativo, quais eram esses recursos e o que provocavam nas crianças; como as

crianças brincavam com o seu próprio corpo e com o corpo das outras crianças.

As entrevistas foram outro recurso importante para a compreensão da realidade. A

partir de Florentino (2012), pode-se refletir que “o propósito da entrevista, na abordagem

qualitativa, é obter descrições do mundo vivido pelas pessoas entrevistadas a fim de se chegar

a lograr interpretações fidedignas do significado que os fenômenos descritos assumem no

contexto em que estão inscritos” (p. 136).

A realização de entrevistas com as(os) profissionais da instituição objetivou

compreender a orientação pedagógica desta instituição em relação às temáticas propostas no

projeto: corpo, arte, ludicidade e cultura africana no contexto da Educação Infantil. Também

busquei apreender subsídios complementares para compreender o contexto em que as crianças

estavam inseridas, e o grau de estimulação em relação a essas perspectivas. Nas entrevistas com

as professoras responsáveis pela turma, algumas questões foram direcionadas sobre o processo

vivenciado com elas e com as crianças durante as oficinas.

Por se compreender que tanto o entrevistador quanto o entrevistado podem estar

abertos ao fluxo da entrevista, sem se fecharem a esquemas rígidos de questões, nesta pesquisa

o roteiro de entrevistas foi elaborado com perguntas semiestruturadas.

Page 75: LIA FRANCO BRAGA

75

As entrevistas foram realizadas de forma individual, dentro da instituição, coincidindo

com o período das oficinas. Em relação às duas professoras responsáveis pela turma

participante, foram realizadas duas entrevistas, uma inicial e outra final, pois era importante

captar a narrativa delas, que acompanharam todo o processo de realização da pesquisa. Com os

demais entrevistados, houve a necessidade de realização de apenas uma entrevista. Devido à participação com as crianças, as professoras que acompanharam diretamente

este processo são nomeadas no presente estudo com nomes fictícios. As(os) outras(os)

profissionais são identificadas(os) a partir de suas funções dentro da instituição. Para uma

melhor apreciação sobre as(os) entrevistadas(os), segue o perfil dos mesmos:

QUADRO 2 – PERFIL DAS(OS) ENTREVISTADAS(OS)

Entrevistados Perfil

Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil Pedagoga e Doutora em Educação pela UFRN,

trabalha na instituição há 12 anos e já trabalhou lá como

professora

Professora Titular (da turma participante da

pesquisa)

Pedagoga e Doutora em Educação pela UFRN,

trabalha como professora na instituição há 10 anos

Professora Substituta (da turma participante da

pesquisa)

Pedagoga, com Especialização em Libras pela UFRN,

trabalha como professora na instituição há 1 ano, também

tendo sido bolsista anteriormente na mesma instituição

Bolsista de Teatro Graduando em Licenciatura em Teatro pela UFRN,

bolsista de um projeto de Teatro e Educação na instituição

desde o início de 2019

Professora de Música Violoncelista e mestranda em Música pela UFRN, trabalha

como professora substituta na instituição desde o início de

2019, já tendo sido bolsista na mesma instituição em 2015

No contexto das oficinas, as contações de histórias, brincadeiras/jogos corporais e

desenhos estimularam a experiência vivida das crianças e as suas diversas percepções acerca

das temáticas propostas. Durante o processo de vivência artística, foram lançadas questões

abertas às crianças com o intuito de que elas pudessem expressar suas opiniões através de

narrativas orais. Algumas delas versaram sobre o que as crianças achavam sobre os

jogos/brincadeiras corporais, sobre as histórias e sobre as personagens das histórias. Outras

questões surgiram durante o processo, tanto minhas quanto das professoras e das próprias

crianças. Esta pesquisa em arte, no campo das Artes Cênicas é de natureza qualitativa e dialoga

com a subjetividade dos sujeitos envolvidos, o que me leva a retomar o diálogo com Merleau-

Ponty (1999), quando este considera que “o mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo que

Page 76: LIA FRANCO BRAGA

76

eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo,

ele é inesgotável [...]” (p. 14). Reflito que, quando experienciamos o mundo, nós o tornamos

um mundo vivido, que nos afeta e nos atravessa enquanto seres em constante descoberta. Dessa maneira, minha relação com as crianças na pesquisa foi pautada pelo sentido de

abertura para experienciar o mundo com elas e a partir delas, ampliar minha percepção às suas

inquietações, emoções, seus estados de presença no mundo, suas formas de intervir, brincar e

interagir a partir dos temas propostos.

Destaco, a título de informação geral, que na turma havia crianças com características

psicossociais e físicas diferenciadas. Havia crianças diagnosticadas com leve TEA (Transtorno

do Espectro Autista), com Síndrome de Down, crianças negras de cabelos crespos/afros, outras

de cabelos lisos, crianças miscigenadas, com tons de pele que variavam entre mais próximo do

escuro e mais próximo do claro, algumas com cabelos cacheados, outras com cabelos lisos,

outras brancas, com cabelos claros e olhos claros. A maior parte das crianças provinha de

famílias de classe média e baixa, e poucas, pelas suas próprias falas, manifestavam ser de

família de classe média alta. Essa caracterização socioeconômica não se baseou em dados

objetivos, mas tão somente pelas observações, interações e diálogos com as crianças e com uma

das professoras responsáveis pela turma.

Respeitando os termos de autorização de participação das crianças, no sentido de

garantir o anonimato delas, utilizo nomes fictícios que remetem à natureza, pela própria relação

com as(os) orixás, bem como características de personalidade e traços emocionais dessas(es)

participantes; destaco também a idade delas e o seu envolvimento no processo participativo. Inicialmente, pensei em escolher os nomes fictícios das crianças, mas, para minha

surpresa, na segunda oficina, duas meninas sugeriram os nomes com que gostariam de ser

chamadas. Posteriormente, em roda de conversa com a turma e as professoras, explicitei este

procedimento e sondei os nomes desejados. Para tanto, disponibilizei um tambor africano

djembe, e cada participante tocava um pouco e falava em voz alta o seu nome, passando depois

o instrumento para o próximo participante, e assim sucessivamente. Manifestei assim uma

postura de abertura a um acontecimento não planejado anteriormente; através das próprias

expressões das crianças, senti que fomos construindo o desenvolvimento da pesquisa juntos.

Para uma melhor visualização sobre as(os) participantes, seguem os seus nomes

fictícios e o perfil das(os) mesmas(os):

Page 77: LIA FRANCO BRAGA

77

QUADRO 3 – NOMES FICTÍCIOS E PERFIL DAS(OS) PARTICIPANTES

Participantes Perfil

Professora Iemanjá Professora Titular;

Carinhosa, acolhedora, aberta, extrovertida, expansiva,

alegre;

Gostava de participar dos momentos com

experimentação corporal

Professora Sol Professora Substituta;

Amável, tranquila, reservada, observadora;

Gostava de interagir nos momentos de contação de

histórias

Gatinha Folha

Sexo feminino, 5 anos;

Simpática, carinhosa, extrovertida;

Sua participação foi intensa, se relacionava e transitava

bem entre meninas e meninos nas proposições;

Expressava uma intensa criatividade corporal

Coelhinha

Sexo feminino, 5 anos;

Carinhosa, disposta a ajudar;

Sua participação foi boa, mesmo tendo ficado doente

do meio para o final do processo e não ter ido mais;

Quando participava, se expressava bastante oralmente,

construindo uma percepção positiva sobre as temáticas

trabalhadas, diferente do início, ao demonstrar

percepção negativa

Gato Ninja do Fogo

Sexo masculino, 5 anos;

Sensível, questionador, tranquilo, aberto;

Sua participação foi intensa, mesmo tendo faltado

algumas vezes;

Apresentava disponibilidade nas experienciações

corporais

Cachoeira

Sexo feminino, 5 anos;

Muito afetiva, emotiva, entusiasmada, aberta;

Sua participação foi intensa, em alguns momentos

deixando-se levar por suas emoções

Leoa Oxóssi

Sexo feminino, 5 anos;

Educada, reservada, cooperativa;

Sua participação foi intensa, mesmo tendo faltado

algumas vezes;

Expressava uma intensa criatividade corporal

Leão Fogo

Sexo masculino, 5 anos;

Agitado, curioso, ágil;

Sua participação foi intensa, transitava em alguns

momentos entre dispersão e concentração;

Expressava uma agilidade, inteligência e criatividade

corporal aguçada

Raposa

Sexo feminino, 6 anos;

Curiosa, expansiva, interessada pelo tema vinculado à

África;

Sua participação foi intensa, mesmo em alguns

momentos se isolando de atividades em grupo;

Expressava uma intensa criatividade corporal

Borboleta Sexo feminino, 5 anos;

Empoderada, vaidosa, criativa;

Sua participação foi boa, mesmo tendo entrado depois

(devido à autorização dos pais) e faltado algumas vezes

Onça Preta Sexo masculino, 5 anos;

Extremamente carinhoso, agitado, voluntarioso;

Sua participação foi boa, mesmo em alguns momentos

se negando a participar;

Page 78: LIA FRANCO BRAGA

78

Por vezes apresentava uma visão negativa sobre as(os)

negras(os)

Oceano Tubarão Tigre Sexo masculino, 5 anos;

Sensível, educado, concentrado, participativo,

entusiasmado, aberto;

Sua participação foi intensa;

Expressava também uma intensa criatividade corporal

Lua Sexo feminino, 5 anos;

Extremamente carinhosa, curiosa, agitada,

voluntariosa;

Sua participação foi boa, mesmo tendo entrado depois

(devido à autorização dos pais) e não participado na

maior parte das atividades que em geral envolvia o

grupo;

Quando participava, expressava uma agilidade,

inteligência e criatividade corporal e musical aguçada

Onça Pintada Sexo masculino, 5 anos;

Engraçado, questionador, voluntarioso;

Sua participação foi boa, mesmo tendo entrado depois

(devido à autorização dos pais) e se negado a participar

em alguns momentos

De posse desta pluralidade de informações, registros e narrativas, esta dissertação é

estruturada a partir da descrição e da compreensão do processo investigativo, das

recomendações indicadas nos encontros com minha orientadora, das sugestões apresentadas

nos momentos de seminários e das recomendações pela banca de qualificação e defesa.

Page 79: LIA FRANCO BRAGA

79

CAPÍTULO 2 – OXUM: O ESPELHO DO ENCANTAMENTO

Oxum, a menina dourada

Oxum

Ora Yê Yê Ô menininha Oxum! Oxum

Do cheiro perfumado de mel

Das brincadeiras encantadas nas águas de suas cachoeiras Das danças que todos querem dançar com ela Oxum

Princesa menina doce

E também guerreira Com seu abebé a se mirar

É toda mimosa a rodopiar

É menina valente

E sua maior arma é o amor Amor por si que transborda para o outro

Amor dourado

Negra majestosa Oxum

Quem poderá resistir aos seus encantos?

(Lia Braga, Fortaleza/CE, maio de 2019)

FIGURA 13 – RETRATOS

DE OLINDA, BAIANINHA

Fonte: Fotografia de Carol Andrade

Fotografia Carol Andrade

Page 80: LIA FRANCO BRAGA

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3.1 PERCEPÇÕES E PROPOSIÇÕES SOBRE INFÂNCIAS

Eu amo a Oxum, porque ela vai me proteger!

(Menina Raposa, 6 anos)

Ao experienciar a pesquisa com as crianças,

algumas vezes percebi a menina Raposa expressar seu

carinho por Oxum (Figura 14). É difícil não se encantar

com essa orixá; ela é considerada uma iabá ou aiabá,

como são chamadas as orixás femininas. “Ia”, ou “iya”,

significa “mãe” em Iorubá. Oxum é considerada a mãe das

águas doces, aquela que provê a fartura do mundo através

de suas águas, córregos, riachos, rios, lagos, lagoas e

cachoeiras. Uma das qualidades – especificidades – de

Oxum é que ela gera e cuida da fertilidade, da procriação

e da gravidez das mulheres, sendo responsável por cuidar

das crianças recém-nascidas. É uma das mais vaidosas,

senão a mais vaidosa, das iabás, além de misteriosa,

dengosa e doce (LIMA, 2007).

Apesar de Oxum – a dona do ouro, com sua pele de ébano dourada – não ser minha

mãe, em minha linhagem espiritual me identifico com sua energia, por ter vivenciado um antigo

amor, e desde então sinto como se ela tivesse me adotado.

Com seus cuidados, ela me mostra – através de seu leque dourado com espelho no

meio, o seu abebé, uma de suas ferramentas – a necessidade de, ao me olhar refletida em seu

espelho, primeiro cultivar o amor-próprio, para depois cultivar o amor pelo outro, como se pode

observar na história Oxum e seu mistério (OLIVEIRA, 2009):

Oxum era muito linda e perfumada e todos os meninos e meninas desejavam ficar

perto dela. Desde criança, Oxum tinha como atributos a beleza, a vaidade, o

atrevimento, a genialidade, a determinação e a maternidade. Sabia ser guerreira, mas

preferia cuidar de sua beleza: de suas unhas, de seus cabelos, de sua pele e das joias

de ouro que só ela possuía. Mas a princesa menina Oxum tinha conhecimentos que

ninguém mais tinha: ela conseguia hipnotizar com a sua beleza quem ela quisesse.

Suas cores preferidas eram amarelo-ouro e dourado (OLIVEIRA, 2009, p. 17).

Nesse reflexo amoroso pude perceber, ao vivenciar a pesquisa, que cada criança possui

um universo próprio, que deve ser respeitado e considerado. Com algumas delas precisei criar

outras estratégias para estimular as suas participações, pois algumas não gostavam de interagir

FIGURA 14 – OXUM GANHOU O

TÍTULO DE PROTETORA DAS

CRIANÇAS

Fonte: Google Imagens (internet)

Page 81: LIA FRANCO BRAGA

81

nos momentos coletivos. A menina Lua, por exemplo, gostava bastante dos instrumentos

musicais e de dançar, e esses eram os momentos em que eu tentava prender a sua atenção,

surpreendendo-me com sua disponibilidade e habilidade musical e corporal. Muitas delas, por

exemplo, gostavam de interpretar/representar personagens, e procurei criar estratégias

diferenciadas, a fim de que todas pudessem participar das contações de histórias.

Ao refletir que as crianças são diversas em suas características e formas de expressão,

considero, em vez da concepção de “infância”, a concepção de “infâncias”. Assim ampliamos

o nosso olhar para os diferentes contextos territoriais, sociais, culturais e financeiros, bem como

para as características físicas, emocionais e intelectuais referentes às crianças (OLIVEIRA,

2019).

Por exemplo, o continente africano abriga diversos modos de expressões culturais,

portanto, crianças que moram em países africanos diversos manifestam formas culturais

distintas. Uma criança brasileira, que mora na cidade de Fortaleza, no nordeste, vivencia

costumes diferentes de uma criança que mora na cidade de São Paulo, no sudeste. Uma criança

de terreiro, que vivencia a espiritualidade afro-brasileira, possui outras lógicas de pensamento

e experienciação no mundo, diferentes de uma criança que vivencia a espiritualidade vinculada

ao catolicismo. Uma criança negra poderá, desde muito pequena, enfrentar preconceito e

racismo, diferentemente de uma criança branca.

Os exemplos são numerosos por existirem diversas infâncias, e todas as crianças

devem ser respeitadas como são e terem a oportunidade e o acesso à educação, à arte e à cultura,

dentre outros direitos, sem nenhum tipo de exclusão. Assim sendo, retomo algumas reflexões

relacionadas à Pedagogia da Ancestralidade, quando a autora Oliveira (2019) explicita:

A Pedagogia da Ancestralidade nos traz esse conhecimento sobre a necessidade do

uso de infâncias no plural, uma vez que as entende como múltiplas, afinal, crianças

que vivem as experiências culturais propostas pelos seus grupos de afeto a partir do

lugar são capazes de reproduzir as ações que as/os adultas/os executam de forma

visceral, prazerosa e a partir do corpo mergulhado na experiência e na repetição que

traz o sentido e o significado (OLIVEIRA, 2019, no prelo).

As crianças, ao terem oportunidade de vivenciar prazerosamente e intensamente junto

com seus grupos de afeto, descobrem-se como desbravadoras de suas experienciações. O “corpo

mergulhado na experiência”, guiado por exemplos catalizadores de vivências positivas e não

impositivas, como a autora reflete, se traduz de maneira muito benéfica para a construção e

significação das experiências de crianças no mundo.

Page 82: LIA FRANCO BRAGA

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Porém, pode-se verificar algumas expressões de preconceito e racismo em relação à

turma participante desta pesquisa, no cotidiano escolar do NEI, a partir da explicitação da

Professora Titular, na ocasião da entrevista inicial, realizada no dia 9 de maio de 2019:

[…] o tema de pesquisa nesse momento […], as perguntas e as questões dele não

suscitaram as questões étnicas, étnicas agora. Mas elas não deixam de ser vivenciadas

no dia a dia, por alunas negras que têm o cabelo afro, por exemplo, “Fulana, sai do

meio que o seu cabelo tá atrapalhando”. Então, essas situações surgiram, e ali, com

conversas, né, digamos que informais, sem um tema planejado, a gente vai

conduzindo essas situações, com leitura de histórias. Agora sempre essas histórias a

gente traz, as questões étnicas-raciais [sic], porque também é curricular [...]?

As atitudes das professoras, como essa destacada acima e outras explicitadas

anteriormente, estão em consonância com as problematizações e indicações destacadas na

publicação História e Cultura Africana e Afro-brasileira na Educação Infantil (BRASIL,

2014):

O papel da professora e do professor da educação infantil nesse processo é

importantíssimo. A esses profissionais cabe a realização de práticas pedagógicas que

objetivem ampliar o universo sociocultural das crianças e introduzi-las em um

contexto no qual o educar e o cuidar não omitam a diversidade. Desde muito cedo,

podemos ser educados e reconhecer a diferença como um trunfo e a diversidade como

algo fascinante em nossa aventura humana. Desde muito cedo, podemos aprender e

conhecer diferentes realidades e compreender que a experiência social do mundo é

muito maior do que a nossa experiência local, e que esse mesmo mundo é constituído

e formado por civilizações, histórias, grupos sociais e etnias ou raças diversas. É

também bem cedo em sua formação que as crianças podem ser reeducadas a lidar com

os preconceitos aprendidos no ambiente familiar e nas relações sociais mais amplas.

Essas mesmas crianças têm o direito de ser e se sentir acolhidas e respeitadas nas suas

diferenças, como sujeitos de direitos. Sua corporeidade, estética, religião, gênero,

raça/etnia ou deficiência deverão ser respeitadas, não por um apelo moral,

assistencialista ou religioso, mas sim porque essa é a postura esperada da sociedade e

da escola democrática que zelam pela sua infância. Por isso, as ações e o currículo da

educação infantil, deverão se indagar sobre qual tem sido o trato pedagógico dado às

crianças negras, brancas e de outros grupos étnico-raciais, bem como a suas famílias

e histórias (BRASIL, 2014, p. 15).

Nesse sentido, a Professora Titular, já na ocasião da entrevista final, realizada no dia 19

de junho de 2019, expressou, sobre algumas problemáticas para a contribuição da pesquisa na

formação das crianças, o seguinte:

[...] “Sim, ah, seu filho lanchou bem, mas, hoje, ele, teve uma atitude que não foi

bacana com a colega, porque falou que o cabelo da colega tava atrapalhando ele e ela

tinha de cortar o cabelo”, um exemplo. Mas aí… ele… não fez nada, não fez nenhuma

mediação, não conversou com o filho, mas todos os dias pergunta sobre esse lanche

[a professora expressou o diálogo que teve com um dos responsáveis de uma das

crianças]. Então, isso é algo que me chama atenção, nas famílias e na escola [...] se a

gente puder proporcionar e mostrar as crianças, que o mundo é diverso, e, que todos

nós temos direito de viver nesse mundo... eu, acho que isso contribui muito para

formação deles, formação de valor. A família carrega muita coisa, né? Carrega os

principais valores, mas a escola também, quando passa a dizer que a gente tem de

Page 83: LIA FRANCO BRAGA

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respeitar… que respeito é esse? Têm que vivenciar o respeito. Aí, as brincadeiras, as

histórias, as interações, tudo isso ajuda a construir essa noção de respeito.

Assim, em alguns momentos da vida cotidiana, é importante fazer mediações no

sentido de contribuir para que as crianças, desde pequenas e em contato com outras crianças,

percebam as diferenças entre as pessoas. Quiçá, com exemplos, atitudes e práticas positivas,

possamos minimizar as inúmeras expressões de preconceito e racismo. Os desafios,

contradições, aceitações ou não aceitações surgem a partir das questões étnico-raciais e de

outras ordens, e as relações se estabelecem justamente no convívio, entre os pares que se

reconhecem como iguais – mas também, entre aqueles que se reconhecem diferentes entre si.

No entanto, em uma perspectiva ocidental, algumas sociedades, em alguns períodos

históricos, não consideravam as crianças como sujeitos de direitos. A partir das contribuições

do historiador francês Philipe Ariès (ARIÈS, 2012), verificamos que, por um longo período,

muitas crianças conviviam e vivenciavam atividades com adultos, e a educação delas era de

responsabilidade das famílias. Essas situações, dentre outras, poderiam ter sido abordadas de

uma maneira salutar e positiva; porém, com base nas considerações do supracitado autor, refleti

em outra direção:

[…] no período compreendido entre os séculos XV e XIX, havia certo menosprezo

em reconhecer a capacidade das crianças. Havia o uso de punições corporais bem

como a mistura de idades e certa aproximação da criança de um sentimento da

responsabilidade em ser adulto. As instituições, muitas vezes, também não se

preocupavam com o significado da formação e sensibilização do humano com base

em sua educação, e sim com o sentido da apropriação e aprendizado técnico […]. A

partir do fim da Idade Média, instaurou-se, na sociedade, uma nova forma de

organização de princípios de comando e de autoritarismo hierárquico ou com o

estabelecimento do absolutismo monárquico. Isso deflagrou, no ensino, uma forma

disciplinar rigorosa que, dentre algumas características, encontrou-se o amplo uso de

castigos corporais como forma de correção e punição. Portanto, a expressão corporal,

nessa época, nem sequer era compreendida como forma sadia, natural espontânea de

manifestação. Não havia aberturas estratégicas para a criança desenvolver seu

potencial criativo, visto que os alunos ou pré-alunos, se assim é possível dizer,

deveriam apenas atender às regras e condutas impostas (BRAGA, 2017, p. 39-41).

Nesse contexto, as crianças, além de sofrerem punições corporais, eram consideradas

como um “adulto em miniatura” ou uma “folha em branco”, e iriam apenas reproduzir o que os

adultos lhes impusessem. Eram menosprezadas em suas capacidades, não eram consideradas

como sujeitos sociais, não eram ouvidas e nem respeitadas.

Nessa mesma direção, convém dialogar também com o filósofo francês Michel

Foucault, que, em sua obra Vigiar e punir: Nascimento da prisão, publicada originalmente em

1975, reflete sobre o período compreendido entre os séculos XIV e XVI, e se refere ao conceito

Page 84: LIA FRANCO BRAGA

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de “corpos dóceis” reproduzido no âmbito de muitas instituições de ensino (FOUCAULT,

1999).

O autor menciona a escola como instituição de confinamento, associando-a à imagem

de prisão, fábrica e quartel, que assume uma estratégia de poder e visa a imprimir um

comportamento disciplinado e docilizado dos corpos. Inclusive, o autor compara a metodologia

educacional dos alunos nas instituições de ensino ao treinamento de regimentos para soldados,

destacando o conceito de corpos dóceis: “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode

ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado […]” (FOUCAULT, 1999, p. 118).

Nesse sentido, Foucault explicita, em relação aos processos educacionais, um sistema

demasiadamente rígido, com regras de funcionamento a serem seguidas. Havia o intuito de

enquadrar o aluno e o seu corpo, limitando-os a reproduções de condutas, disciplinando-os:

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo

humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco

aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o

torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma

política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada

de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra

numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe […]

(FOUCAULT, 1999, p. 119).

Essas visões ocidentais, ainda existentes em algumas sociedades, são inexistentes

para algumas sabedorias afro-referenciadas em contextos africanos e afro-brasileiros, dentre

outros. Portanto, nessas outras perspectivas, o corpo tem centralidade, integra-se à natureza, à

mente, ao espírito, e se coaduna com o todo, com o seu entorno:

Não se trata mais de falar pelo corpo, mas proporcionar situações para que o próprio

corpo fale por si, alimentado pela cultura vivida na carne. Esse corpo-templo que se

(re) significa na e para a resistência, acaba por estar conectado com a realidade vivida

na coletividade, em seu entorno e, desta forma, é um corpo que está mergulhado na

linguagem e nas informações (OLIVEIRA, 2019, no prelo).

Para me aproximar de alguns pensamentos africanos sobre crianças ou infâncias, é

importante, primeiramente, nos atentarmos ao que o autor Wanderson Flor do Nascimento

(NASCIMENTO, 2012) desmitifica sobre o imaginário social: a existência de apenas uma

África, como o processo colonizador no Brasil construiu. Vale ressaltar que a África, como

continente imenso territorialmente, é diversa, rica em etnias, costumes, culturas, saberes e

modos de pensar e habitar o mundo.

Nessa linha de pensamento, existem diversos modos de pensar ou de se conectar com

a África: diversas cosmovisões africanas. Assim sendo, estou trazendo esta palavra,

“cosmovisão”, e outras correlatas, com o intuito de aproximar-me de um modo de pensar e

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habitar o mundo diferente do modelo ocidental, bem como do colonizador. Diante da infinidade

de horizontes do continente africano, nesta pesquisa destaco o universo das deusas e deuses

orixás da nação/etnia Iorubá:

Termos étnicos como nagôs, jejes, angolas, congos, fulas, representavam identidades

criadas pelo tráfico de escravos, onde cada termo continha um leque de nações

escravizadas de cada região. Os Yorùbá (como se escreve na ortografia Iorubá) são

um dos maiores grupos étnicos na África Ocidental. A maioria dos Iorubás fala a

língua Yoruba (èdè iorubá) […]. Nagô é o nome que se dá ao iorubano ou a todo

negro da Costa dos Escravos que falava ou entendia o Iorubá (BRITO, 2010, p. 1).

A partir das contribuições de Nascimento (2012, 2018) e Oliveira (2009, 2019), pode-

se destacar que as formas de concepção sobre crianças ou infâncias, para algumas cosmovisões

africanas, seguem outras lógicas, distintas da cultura ocidental.

Destacarei, a partir de um breve recorte, algumas perspectivas com as quais busco

dialogar nesta dissertação; e, apesar de não ter vivenciado este processo com crianças africanas

iorubanas, procuro aproximar-me de algumas concepções dessa nação, através de pesquisa

bibliográfica.

Ressalto que esta ainda é uma tentativa de acercamento; neste curto período de

mestrado, o tempo da lógica ocidental não me permitiu um aprofundamento maior. Creio, ainda

assim, serem importantes esses destaques, como expressão de respeito e busca por maior

aproximação com as perspectivas aqui propostas.

Assim sendo, o tempo afro-referenciado é afetado pela ancestralidade que rege toda a

comunidade:

“A criança é recebida como uma espécie de mensageira da ancestralidade, de modo

que a infância é um signo de continuidade dinâmica, que traz em si toda a potência da

memória ancestral, que deverá ser atualizada na formação” […], de modo que toda

essa potência encarna o caráter dinâmico da tradição. A infância não é, portanto, uma

condenação à repetição do mesmo ou a mera conformação de algo já previsto, mas a

argamassa tradicional através da qual toda a possibilidade de transformação se

instaura. A infância é, assim, a marca de um recomeço que, partindo do já dado na

história, na cultura e nos valores, abre a possibilidade de que outras experiências se

instaurem. A infância, para os bantos e iorubas, recusa a noção de propriedade ou

patria potestas. As crianças são filhas de uma grande família, a comunidade, e trazem

consigo toda a ancestralidade desta (NASCIMENTO, 2012, p. 47).

Os aprendizados, conhecimentos, saberes e vivências partilhados entre os mais velhos

e os mais novos são retroalimentados a cada nova geração. De certa maneira, esse tempo, que

não segue uma lógica ocidental, pode se apresentar em uma ordem não-sequencial; um tempo

em que as experiências são validadas pela qualidade, e não pela quantidade:

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O tempo com o qual a criança está conectada aqui é expresso nessa repetição do

dinâmico, do instável, do incerto, com um compromisso com esse passado que a

todos rege. Não há aqui um eterno retorno do mesmo, mas um eterno retorno da

pirueta, que tem sempre o compromisso com o chão, que vem antes [...]

(NASCIMENTO, 2018, p. 589).

[...] a criança para o pensamento tradicional africano é a marca da continuidade,

uma expressão da ancestralidade. Ela nem é nova e nem começa. Ela segue. Mas

não segue monotonamente. Ela segue em inversões, deslocamentos, fissuras.

Inclusive da própria temporalidade. Um interessante exemplo disso, aparece no

pensamento iorubá. Na figura dos gêmeos, nos partos naturais, uma criança nasce

antes da outra. A primeiro a nascer, é chamada Taiwo – que significa quem vem

experimentar o gosto do mundo – e a segunda, Kehinde – quem chega depois da

outra […]. A criança que nasce primeiro irá verificar o mundo, e quando der o sinal

de que está tudo bem, através de seu choro, Kehindé chegará. E já chegará com os

privilégios que sua senioridade sobre Taiwo lhe garante. Essa relação com a

ancestralidade nos apresenta uma criança marcada pela velhice da história. Quem

chega depois é sempre mais velho, na medida em que traz as bagagens acumuladas

por quem lhe antecedeu, adicionadas à própria experiência de seu nascimento [...]

(NASCIMENTO, 2018, p. 592).

O corpo em consonância com a sacralidade possui experiências que o atravessam

através das danças, em contato e união com a natureza, por exemplo. É um corpo, inclusive,

que pode narrar histórias através de mitos e afirmar a conexão com a sua ancestralidade, ao

enaltecer o empoderamento, a beleza e a realeza negra, como se pode observar em Oxum e seu

mistério (OLIVEIRA, 2009):

O menino Ogum, mesmo criança, trabalhava muito e tinha a responsabilidade de

construir objetos de ferro: utensílios e ferramentas agrícolas em geral. Ele era o melhor

e nem homens adultos conseguiam fazer o que o menino Ogum conseguia. Mas, um

dia, Ogum se cansou de tudo aquilo, parou de produzir tais objetos e decidiu a ir morar

sozinho, no meio da floresta [...]. Quando a princesa Oxum avistou a cabana de Ogum,

fingindo não ter visto nada, começou a dançar com a graça das águas calmas,

delicada... suave... num leve vaivém. Dos movimentos que seu corpinho de princesa

fazia, um perfume delicioso exalava e este perfume chegou à cabana de Ogum.

Conforme Oxum dançava para Ogum, que já estava escondido entre os arbustos, cada

vez mais ela se aproximava dele. Quando Oxum estava bem pertinho dele, já

hipnotizado por tanta graça e beleza, viu uma colmeia de abelhas […]. As abelhas,

encantadas com a beleza de Oxum e com a delicadeza com que havia feito o pedido,

abriram uma fenda na colmeia e o mel começou a escorrer nas mãos de Oxum [...]

(OLIVEIRA, 2009, p. 18-22).

Também se evidencia uma ancestralidade vinculada a uma energia espiritual infantil

que nos acompanha. Nesse sentido, podemos vivenciar relações e aprendizados com as

infâncias que nos cercam, ou ressignificar as relações com a nossa própria infância, outrora

experienciada:

Sobre a infância importante exemplificar: no candomblé, ela é cultuada durante a vida

inteira de uma pessoa, pois mesmo ao envelhecer nesse espaço é possível preservar,

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dentro de si, a energia das crianças, dos erês, “dando erê”, isto é, incorporando a

essência ancestral infantil. As crianças, portanto, vivenciam a infância não somente

nos corpos infantis, mas desde cedo compreendem que a infância pode estar presente

também em corpos não infantis e tem assim, a possibilidade de compreenderem que

os corpos são perecíveis e fenecem, mas a infância não: ela é um traço da

personalidade que deve ser cultivado, para manter-se ativo (OLIVEIRA, 2019, no

prelo).

[…] mais do que uma recusa da infância, como se alguém que se educasse ou se

iniciasse “deixasse” de ser criança, se estabelecem outras relações com ela. Ela retoma

o lugar fundamental da ancestralidade, que estará sempre presente, embora não mais

da mesma forma que experimentada antes. Nunca deixamos de ser o que somos,

mesmo que nos tornemos outra coisa […]. As crianças bantos e iorubas são

completamente dotadas de passado e memória (NASCIMENTO, 2012, p. 48).

A partir dessas percepções, pode-se compreender que crianças instauram um saber a

partir de si e de suas experiências, porque estão fortemente conectadas com suas organicidades,

intuições, sinceridades e lógicas próprias de estar e habitar no mundo. Lógicas estas movidas

por um saber ancestral e coletivo. Nesse sentido, as formas de ver e perceber das crianças diante

do mundo experienciado, por vezes, são permeadas por saberes compartilhados, por imaginação

e criatividade, passíveis de uma realidade vivida.

É relevante situar os aportes apresentados por Merleau-Ponty (2006), que também se

distancia de percepções apontadas por Ariès (2012) a respeito de algumas concepções

ocidentais sobre crianças. Merleau-Ponty (2006) destaca que a consciência infantil das crianças

se difere da consciência do adulto:

[…] se entende que a consciência infantil é diferente da consciência do adulto não

apenas em termos de conteúdo mas também de organização. Ao contrário do que se

pensava antigamente, a criança não é um “adulto em miniatura”, com uma consciência

semelhante à do adulto, porém inacabada, imperfeita – essa idéia é puramente

negativa. A criança possui outro equilíbrio, e é preciso tratar a consciência infantil

como um fenômeno positivo (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 166).

São outras as lógicas movidas pelas crianças, diferentes das dos adultos. Merleau-

Ponty (2006) questiona inclusive a possível “representação do mundo” feita pelas crianças. Na

verdade, esse pensamento reduz e engessa a experiência das crianças, como se elas precisassem

“falsear” a realidade ou produzir uma espécie de encenação das situações. Partindo das

problematizações propostas por Merleau-Ponty (2006), compreende-se que as crianças

vivenciam o mundo, integralizando-o às situações incorporadas em seu cotidiano.

De maneira figurativa, é como se as crianças colassem figuras em cima de um papel

em branco (o que pode simbolizar o encontro com a experiência). A colagem adere-se ao

“vazio” ou ao “nada” anteriormente evidenciado no papel (o que pode simbolizar a experiência

sendo vivenciada). Depois, há a criação de formas emolduradas, repletas de vida, imaginação e

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criatividade (o que pode simbolizar a experiência concretizada, através dos corpos/mundos-

vividos das crianças). Elas são ao mesmo tempo aprendizes e mestras de suas próprias

experiências, e instauram em si saberes particulares às suas expressões e culturas,

compartilhadas também com os mais velhos.

A partir das reflexões de Machado (2010a), que se referenciam nas contribuições de

Merleau-Ponty (2006), compreende-se que crianças e adultos convivem em um mesmo mundo,

assim como em algumas cosmovisões africanas – quando, por exemplo, crianças e adultos

experienciam juntos as partilhas em suas comunidades. A autora destaca que “[…] portanto, o

filósofo não trabalha em termos de ‘mundo infantil’ e de ‘mundo adulto’, mas, antes, um mesmo

mundo percebido de maneiras diversas” (MACHADO, 2010a, p. 58).

Particularmente, esse pensamento descortinou minha maneira de refletir sobre as

crianças, pois, mesmo com um olhar atento às suas formas de expressão, até então eu

comungava com o pensamento de um “mundo infantil” que se diferenciava do “mundo adulto”.

Em minha ingenuidade, ou imaturidade, era como se eu acreditasse que as crianças vivessem

dentro de uma redoma, de um mundo colorido e fossem mais inocentes ou pueris.

Assim, posso redefinir minha percepção e relembrar que, em minhas experiências com

as crianças, elas demonstram curiosidades, inquietações e desafios como nós, adultos, também

vivenciamos. Por exemplo, elas convivem e vivenciam a diversidade étnica, cultural, religiosa,

sexual e social, dentre outras especificidades, e se relacionam com as mesmas em seus

cotidianos. Também podem reproduzir algumas formas de pensamento e atitudes internalizadas

a partir da convivência com adultos, como preconceito e racismo.

Mesmo que compartilhem um mesmo mundo com os adultos, ainda assim, crianças

expressam formas específicas de pensamento, de se fazerem presentes e de vivenciarem o aqui

e o agora concretamente, sinceramente e criticamente, em que uma realidade próxima do

onírico e do non sense se evidencia. Ou seja, elas expressam uma realidade vivenciada a partir

de símbolos e imagens que podem parecer ilógicos ou sem sentido para a percepção por vezes

fechada ou racionalizada dos adultos, mas que, para o pensamento polimorfo das crianças, não

é. Esse pensamento é híbrido, aberto e poroso, e se apresenta de diversas formas (MACHADO,

2010a).

Especialmente em áreas que propiciam uma riqueza de possibilidades, como as artes,

a perspectiva do polimorfismo das crianças nos desafia, enquanto educadoras(es), a estarmos

atentos a algumas questões. Por exemplo, à questão de que crianças demonstram uma

adaptabilidade específica diante das situações, e que muitas vezes essa adaptabilidade não é

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compreendida por nós, adultas(os); como se as crianças estivessem fazendo “birra”, não

acompanhando o exercício ou o ritmo do grupo.

Ao partilharem o mesmo mundo com adultas(os), crianças também vivenciam regras,

limites, desafios, desejos e frustrações – porém, em um espaço que pode propiciar suas

autonomias e processos criativos. Penso ser mais importante intuir e perceber que, após

apresentadas as regras de uma brincadeira, por exemplo, vale a pena abrir mão da insistência

para que brinquem como nós, educadoras(es) pensamos ou idealizamos. Nesse sentido,

expandimos espaços para que as formas de brincar das crianças se expressem de maneira natural

e verdadeira, e para que as possíveis mudanças e múltiplas possibilidades potencializem seus

fluxos criativos.

Como exemplo, quero sublinhar aqui que fui surpreendida na 2ª oficina e pude

aprender com uma criança a importância de escutá-la e validar o seu desejo. Na situação, após

contar uma história com um livro de pano, quando apresentei características de algumas deusas

e deuses orixás, o menino Oceano Tubarão Tigre me pediu para que eu lhe mostrasse o livro.

Eu disse que lhe mostraria no final e lhe convidei a brincar. Ele não entrou inicialmente na

brincadeira; insisti duas vezes e ele me disse que não queria brincar porque queria ver se

encontrava outros deuses no livro. Não insisti mais, deixando-o à vontade, pois percebi que o

tema da história lhe suscitara curiosidade e interesse. Também notei que ele oscilou em alguns

momentos entre se concentrar no livro e entrar para a brincadeira.

Seria então a atitude do menino uma maneira de estabelecer relações mútuas com a

história contada anteriormente e a brincadeira subsequente? Assim nos dimensiona a autora,

“[…] é parte do próprio código da brincadeira ser mutante. Isso faz do jogo corporal e do brincar

de faz de conta atividades relacionadas à linguagem do teatro das mais interessantes e

desafiadoras” (MACHADO, 2010a, p. 87).

No decorrer da trajetória que trilhei com as crianças participantes, e ao ter me

fundamentado também nos conceitos de Merleau-Ponty (1999), foi possível perceber a

dimensão do corpo como um despertar para conhecer e acessar o mundo, de entrar em contato

com ele a partir de um corpo-próprio. Corpo este que é a maneira como nos colocamos e

interagimos com o mundo, um mundo que está intimamente ligado com a nossa experiência.

Evidencia-se não um corpo apartado do mundo ou vice-versa, mas sim um corpo que

abraça o mundo em si mesmo e o mundo que abraça o corpo em sua experienciação. Corpo e

mundo refletem um ao outro, interligados e íntimos, como em um diálogo e uma dança de pares,

corpo e mundo vividos.

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Outra perspectiva que trago de meu livro (BRAGA, 2017) é a relação

experiência/sentido proposta pelo professor de Filosofia da Educação, da Universidade de

Barcelona, Jorge Larrosa (LARROSA, 2015), relação esta que se configura como um campo

fecundo para vivências instigantes. Segundo o autor, em sua etimologia, a palavra “experiência”

significa “travessia” e “perigo”, sendo necessário dar-se tempo/espaço para que ela ocorra e,

assim, para que nos deixemos ser afetados por ela. O sentido é enfocado a partir do sujeito da

experiência, considerando a abertura para a sua transformação e para o desconhecido: “É

experiência aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e, ao nos passar, nos

forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria

transformação (LARROSA, 2015, p. 28).

Larrosa (2015) ainda nos aponta uma maneira de nos relacionarmos com a experiência;

uma maneira que cultiva a delicadeza e o cuidado, bem mais distante de modelos ocidentais e

bem mais próxima de perspectivas afro-referenciadas:

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto

de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar

para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais

devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar- se

nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender

o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos,

falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte

do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2015, p.

25).

O “dar-se tempo e espaço” proposto por Larrosa (2015) parece fazer referência a

marcadores temporais que, através de uma ótica africana, revelam forte vinculação com o

passado, como refletido por Nascimento (2012, 2018) e Oliveira (2019). Não é um passado

construído à base de um muro de lamentações, arrependimentos ou saudosismos, mas sim de

um tempo circular que nos ajuda a entender quem somos e o nosso presente, ancorado no

passado. Ele nos permite abrir espaços para rememorar relações afetivas construídas através de

vivências com os mais velhos. Figuras estas que nos remetem às avós e aos avôs, aos sábios e

aos griots – africanos mantenedores da cultura, mediadores sociais, artistas que desempenham

diversas funções e têm várias habilidades, além de serem exímios contadores de histórias.

O ator, diretor e doutor em teatro pela UNIRIO, Isaac Bernat (BERNAT, 2013), revela

o encontro pessoal e profissional que estabeleceu durante anos com o renomado griot Sotigui

Kouyaté. Em sua pesquisa, o autor desenvolve a arte de contar histórias a partir de uma

perspectiva africana e dos ensinamentos de seu mestre, que influenciaram sua prática como

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ator. Assim, ele constrói referências que subsidiam práticas em termos de processo/criação

artística com base nesses conhecimentos, saberes e vivências.

A partir das reflexões de Bernat (2013), pode-se compreender que a palavra griot tem

origem francesa, a partir de processos de colonização estabelecidos por este país no continente

africano. Apesar dessa figura ter ficado popularmente conhecida por este nome, a depender da

região da África, ela pode ser conhecida de outra forma – como djeli, para o povo Maninca, de

onde vem a família de Sotigui, os Kouyaté.

Os griots são chamados de djeli, que significa sangue em maninca. Uma das

explicações para esta atribuição é que da mesma forma como o sangue circula pelo

corpo humano, os griots circulam pelo corpo da sociedade podendo curá-lo ou deixa-

lo doente, conforme atenuem ou aumentem os conflitos através da sua palavra

(BERNAT, 2013, p. 60).

Nesse contexto, os griots, através de conhecimentos ancestrais e hereditários, exercem

uma importante função sociocultural: questionam e mediam conflitos, preservam tradições e

costumes e podem atuar como conselheiros de reis, tendo a possibilidade de ir e vir pelos lugares

através das histórias, chegando até as mais diversas pessoas:

Desde tempos imemoriais os Kouyaté estão a serviço dos príncipes Keita do

Mandinga: nós somos os sacos de palavras, nós somos os sacos que guardam os

segredos muitas vezes seculares. A arte de falar não tem segredo para nós: sem nós os

nomes dos reis cairiam no esquecimento, nós somos a memória dos homens, pela

palavra damos vida aos fatos e gestos dos reis perante as novas gerações (NIANE,

1960, p. 9 apud BERNAT, 2013, p. 50-51).

Ao consultar a publicação História e Cultura africana e afro-brasileira na Educação

Infantil (BRASIL, 2014), constatei que ela explicita metodologias e atividades afro-

referenciadas, em Projeto: Espaço Griô e Projeto: Capoeira. Os referenciais teórico-práticos

destacam a importância social e cultural dos griots, e como eles são tratados em contextos

africanos:

Os griôs são bibliotecas vivas da tradição oral de vários povos africanos. No

continente africano, um griô nasce griô, seu ofício não é escolhido, relaciona-se a uma

herança e à sua origem. Quando nasce um griô, a ele são atribuídos direitos e deveres,

ele é responsável por guardar e transmitir a história do seu povo. Quando um griô

morre, diz-se que uma biblioteca se foi, porque ele carrega consigo a sabedoria e as

tradições desse povo. É por meio da tradição oral que o griô transmite às novas

gerações o que sabe, especialmente às crianças. Existem mulheres e homens que são

griôs e griotes (BRASIL, 2014, p. 33).

As sábias e sábios, avós e avôs, à luz do luar, pegam na mão de suas netas e netos,

amigos, familiares e outras pessoas da comunidade; os convidam a escutarem suas histórias já

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vivenciadas e as histórias dos seus antepassados, que auxiliam a tecer as histórias do hoje.

Todos, inclusive as crianças, são regidos por essa ancestralidade.

Nesse sentido, a senioridade ancestral não pode e nem deve ser atropelada, pois se

assim o for, mata-se uma das particularidades da própria expressão da experiência, que esses

povos tanto prezam: suas identidades vestidas com tecidos negros, que evidenciam memórias

calçadas no chão da terra em que outros outrora pisaram. Nesse chão, repleto de pisadas e

vestígios, ao som do rufar dos tambores, os sentidos despertam-se e afloram-se. Assim, o corpo

se abre para experienciar e se transformar com a música, o ritmo, os gestos, as narrativas orais

(histórias) e as danças.

Portanto, trata-se de um tempo e um espaço que preservam a essência da experiência,

visto que ela “cultiva a arte do encontro” e “nos passa, nos toca e nos acontece”

verdadeiramente, assim como reflete Larrosa (2015). Ela se instaura e se incorpora ao ser, que

vive e revive tudo o que lhe passou e o que lhe passa. A experiência toca intimamente as

memórias, afagando-as no colo dos sábios griots, ou dos avôs e das avós, assim como a minha

avó contava histórias para mim quando eu era pequena, para que eu pudesse dormir e sonhar.

Com suas sabedorias, as mais velhas e os mais velhos acarinham crianças, jovens e adultos,

contando e revivendo as histórias afro-afetivas e compartilhando experiências junto a toda a

comunidade. No céu, a lua cheia e as estrelas brilham intensamente, sendo a natureza a

testemunha de toda essa afro-poética.

3.2 TRAVESSIAS ENTRE CORPOS BRINCANTES E CORPOS-POROSOS

Para as trilhas afro-referenciadas que orientaram as vivências no âmbito desta

pesquisa, duas importantes perspectivas transitaram e relacionaram-se: a experienciação dos

corpos brincantes e dos corpos-porosos das crianças.

Dessa forma, é importante identificar e referenciar que a acepção do conceito de corpo

brincante é vinculada à cultura popular. Nesse sentido, é também relacionada às várias

manifestações populares (como folguedos, brincadeiras, danças etc.) e aos seus brincantes,

aqueles que brincam com o próprio corpo através de suas danças e dramatizações.

Cabe dialogar aqui com a atriz, arte-educadora e dançarina Juliana Bittencourt

Manhães (MANHÃES, 2010), que analisa o conceito de corpo brincante sob a ótica da cultura

popular, na articulação entre jogo e brincadeira: “É um corpo que se move na espontaneidade

da brincadeira […]. Os brincantes são aqueles que brincam, se divertem […]” (p. 1). A autora

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evidencia que os brincantes vivenciam as ações lúdicas primeiro em torno de si, para depois se

comunicarem e se expressarem aos outros e para o mundo. Portanto,

[…] falamos de um corpo que se comunica a partir da sua gestualidade, e vive os seus

movimentos a partir da sua relação pessoal com a brincadeira, sua memória afetiva e

sua disponibilidade. Seus movimentos são elaborados a partir da repetição, ou seja, a

força de sua sustentação, enquanto brincadeira, é a resistência de um comportamento

restaurado que, através da reiteração, se renova, criando variadas nuances, integrando

divertimento e jogo, transformados em dança (MANHÃES, 2010, p. 3).

Entretanto, os corpos brincantes integrantes das culturas populares são corpos que

resistem às opressões e visões pejorativas construídas em torno de si. Se o corpo já é

estigmatizado social e culturalmente, o corpo que se diverte ao brincar e dançar, que sente

alegria e prazer, muitas vezes é rebaixado a um nível não condizente de fato com a potência

que ele é. Nem de longe se reconhece e se valoriza as suas riquezas, assim como ocorreu com

as culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas, entre outras. Com isso, é possível convocar

as reflexões de Alves (2019a):

As chamadas culturas populares são na verdade culturas repletas de sentidos e

significados, de saberes e fazeres, de racionalidades/sensibilidades próprias e,

inclusive, que possuem relações de poder específicas de cada lugar, de cada povo, de

cada contexto vivido e não era simplesmente incorporá-las de modo romântico, mas

antes de tudo não negligenciá-las, inclusive no espaço acadêmico e das políticas

públicas (ALVES, 2019a, no prelo).

A autora ainda explicita as memórias registradas nos corpos sociais e culturais:

A história vivida pelo corpo está inscrita nele mesmo, com seus registros negativos e

positivos que dão o tom e a melodia da auto-estima, do respeito, da tolerância, da

aceitação de si mesmo e do outro. O que de fato precisamos é entender um pouco mais

dessa sinfonia que rege nossa vida cotidiana, desvelando suas disritmias, suas

melodias, seus timbres, suas letras e canções (ALVES, 2006, p. 81).

O músico multi-instrumentista, cantor, dançarino e ator pernambucano, Antonio

Nóbrega, que possui 48 anos de carreira e pesquisas relacionadas às músicas e danças populares

e às manifestações de culturas brincantes, questiona sobre o lugar do corpo em nossa sociedade,

em entrevista concedida à revista Comunicação e Educação:

Em primeiro lugar, o corpo sempre foi estigmatizado. Nossa herança, principalmente

judaico-cristã, sempre estigmatizou o corpo. Isso já deu à cultura corporal um atraso

em relação às demais artes. O corpo é muito mais relacionado, por exemplo, com a

entidade do mal do que a música; veja a expressão: “Está com o diabo no corpo!”. O

corpo que faz determinados trejeitos é quase condenado, visto com desdém. O corpo

lascivo presente nas nossas danças negras é sempre visto com muito cuidado. Os

batuques raramente chegavam à casa grande, por exemplo (NÓBREGA, 2009, p. 88).

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Porém, o ser que brinca é teimoso por natureza, ele “deita e rola”, “pinta e borda”: é a

antítese do corpo dócil explicitado por Foucault (1999). Às vezes previsível, é um corpo que

pode seguir uma métrica, um compasso, uma base de passos, mas às vezes imprevisível,

surpreende ao criar, no ato de brincar e jogar, que também pode ser um ato de improvisar. Ainda

assim, só de fato aquele que respeita e se conecta com as suas raízes consegue criar e recriar da

maneira mais fluida, intensa e instigante possível.

A atriz, dançarina e professora Rosane Almeida fundou, juntamente com Antonio

Nóbrega, seu marido, o Instituto Brincante, “espaço que há mais de duas décadas se dedica a

estudar e disseminar a cultura popular brasileira […]” (GARCIA, 2018, on-line). Em entrevista

concedida a Cecília Garcia para o site Portal Aprendiz, a artista explicita os sentidos que são

atribuídos pelos próprios brincantes, a partir de seus modos de ser e de suas atividades, bem

como os compartilhamentos de seus saberes:

Os artistas populares se autodenominam brincantes porque brincam uma

“brincadeira” ou “folguedo” quando performam dentro de manifestações culturais.

Suas origens remontam a brincadeiras que foram reivindicadas com muita convicção

em cenários de infrações da dignidade humana, como processos coloniais de

escravidão e genocídio. Ou seja, conclamadas por pessoas que não podiam e não

distinguiam seu fazer artístico de sua vida áspera. Quando alguém se considera

brincante, ele está fazendo uma escolha: quer dar o melhor de si todo tempo. Ele

performa rituais onde concretiza o ideal de uma beleza interior que altera a visão que

os brasileiros mantêm de seu próprio povo, exclamando: “Não somos um povo cinza,

somos coloridos, não somos analfabetos, temos potência, somos reis e rainhas!” […].

O objetivo final de dançar ou encenar um personagem fantástico no cavalo-marinho

deve ser a manutenção de uma integridade psíquica e de um ganho emocional. A

perseguição de uma inteireza do ser (ALMEIDA, 2018, on-line).

A artista situa historicamente o contexto das brincadeiras em períodos coloniais e

escravocratas:

[…] quando as brincadeiras começaram a ser semeadas, o tempo era de caos: você

tinha negros que falavam línguas diferentes a dividirem estruturas únicas, índios

tratados como animais e portugueses que vinham povoar o país como punição por

delitos em sua terra natal. Foram justamente esses encontros forçosos que fizeram

com que nossas festas se desenvolvessem de maneira rica, pois as culturas que as

criaram tinham na memória elementos muito bem estruturados. Repare nos

primórdios do cavalo-marinho, brincadeira tradicional da zona da mata

pernambucana. Quando esses povos se encontraram, todos comemoravam de formas

particulares o solstício de verão. Para se comunicar festivamente, essas populações

trocaram memórias de alegria: os negros trouxeram a pulsão de sua memória rítmica.

O índio, por sua vez, levou uma lembrança de desenhos espaciais, ocupando terrenos

em roda. E o europeu fechou o folguedo com a estrutura melódica (ALMEIDA, 2018,

on-line).

Nesse sentido, as brincadeiras que possibilitam aos sujeitos experienciarem seus

corpos evidenciam memórias e identidades, pautadas na arte e na cultura, que ressignificam o

ser na busca do seu melhor – uma viajem em torno de si e em diálogo com a sua realidade.

Page 95: LIA FRANCO BRAGA

95

A arte e a cultura popular propõem um chão de desafios para nos tornarmos indivíduos

melhores. Na medida em que você toca, dança ou canta, você se realiza em estruturas

que se refletem em todos os aspectos de sua vida. O cantar te coloca diante de palavras

que proporcionam um discurso melhor, orientando o seu falar. O dançar te coloca de

maneira orgânica de encontro com o outro e o território ocupado. E quando você

menos percebe, você está brincando (ALMEIDA, 2018, on-line).

Convém revisitar Alves (2006), que reflete a centralidade do corpo nas culturas afro-

brasileiras, corpo este amalgamado de sentidos e experiências:

A presença do corpo como foco central de muitas manifestações culturais parece ser

ainda mais evidente quando direcionamos nosso olhar para expressões da cultura afro-

brasileira. Nelas é marcante a presença de um corpo que brinca e se diverte, envolve-

se com aspectos místicos, religiosos, étnicos e de resistência. São os Maracatus, as

rodas de Capoeira, os Sambas de Roda, os Tambores de Crioula etc. (ALVES, 2006,

p. 18).

Esses corpos brincam e se retroalimentam de marcadores afro-referenciados,

desvelando as histórias ancestrais que residem nas brincadeiras simbólicas e nos divertimentos

que expressam o pertencimento negro.

A partir de minha pesquisa monográfica, dialogando com esses autores nesta

dissertação, e ao trabalhar no âmbito da arte e da Educação Infantil, contextualizo o conceito

de corpo brincante para esta pesquisa. Reflito que as crianças, ao manifestarem suas lógicas e

seus estados de criações através de suas experiências, podem expressar corpos que são

brincantes no próprio ato de jogar e brincar. Nesse sentido, as crianças, agentes desbravadoras

de suas sensações e criações, experienciam e brincam com seu próprio corpo, adaptando-se ao

fluxo das atividades. Assim, elas revisitam seus próprios desejos e lógicas, fazendo emergir

seus corpos brincantes ao vivenciarem desafios diante do processo de fruição em arte (BRAGA,

2017).

Ao propor a possibilidade de que crianças se sintam à vontade para experienciar suas

corporeidades, e para me aproximar disso de maneira mais brincante, poetizo a ideia de um

corpo-casa:

A menina e o seu corpinho-casinha

Logo pela manhã, quando o sol sorriu para ela

A menina acordou cedinho e logo se espreguiçou

Ela se esparramou todinha da cabeça aos pés

Sua caminha era ela mesma, às vezes bem preguiçosa

Ela queria ficar um pouquinho mais

Mas suas amiguinhas já corriam em frente à sua varanda

Varanda que é o desenho dos olhos dela quando abrem ao

espreguiçar

Cheio de remela, de quem muito sonhou

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Remela feliz de um sonho animado de uma criança que

quis… brincar, pois já era a hora “Tic tac”, passa o tempo

Todo o tempo vai brincando, passando, passarinhando

“Vamos voar? Eu tenho asas! Olha aqui!

De um lado para o outro, de um lado para o outro, olha!”

Brincava a menina com uma de suas amiguinhas Dançando com os seus bracinhos feitos de asa ou seriam de ar?

Ela respirava o seu cheiro limpinho e às vezes sujinho

Menina que era a sua casinha, corpinho-casinha

Verde, azul, rosa, roxa, preta, branca, amarela

Assim, multicolorida, da cor que ela queria e pintava

Afinal ela podia ser da cor que quisesse pois na sua

imaginação brincavam muitas cores

De uma decoração viva e alegre

E quando ela abria a portinha principal que era o seu coração

Era tanta luzinha, tanto “abracinho”, tanto “amorzinho”

Que saía e avoava que nem passarinho livre e feliz

Porque no seu corpinho-casinha

Ela não era engaiolada e sim bem soltinha Para livre brincar e girar, dançar e cantar

Se esparramar, sujar, deitar

Porque as estrelinhas já chegaram para brincar com ela

Agora nos seus sonhos, pois já era a hora de “mimi”

Dar descanso para o seu corpinho-casinha

Que de manhãzinha até a noitinha

Muito brincou e se desmanchou

Soprando palavras soltas ao vento

Que sussurravam nos seus ouvidos

Seus sonhos de menina criança

Brincante, aprendiz, que diz, um giz, “Coloriz”, ela mesma, feliz!

(Lia Braga, Natal/RN, julho de 2018)

A necessidade de afirmar a não separação entre mente, corpo e espírito se deu no

contexto de minha pesquisa monográfica, ao perceber, através do diálogo com alguns autores e

de minhas experiências de ensino, que na sociedade ocidental muitas vezes estes aspectos são

vistos de modo fragmentado. Busquei investigar e percebi as crianças como seres integrais, o

que se aproxima também das perspectivas afro-referenciadas que menciono em várias partes

desta dissertação.

Ao caminhar de acordo com essas percepções, as crianças podem expressar-se através

de corporeidades lúdicas, em experimentações individuais e coletivas, emocionais e físicas, ou

seja, de diversas afetações e transformações. E, ao vivenciarem a ludicidade a partir dos seus

próprios corpos, as crianças podem criar, a partir do brincar:

A palavra brincar tem origem latina, vem de vinculum, que quer dizer laço, é derivada

do verbo vincire, que significa prender, seduzir, encantar. Vinculum virou brinco e

originou o verbo brincar […]. A dança, quando compreendida como linguagem,

também é um sistema, uma rede de relações, portanto, de vínculos […]; os vínculos

se processam entre os corpos dos brincantes e dos dançantes […]. As relações entre

as pessoas que brincam e dançam são eminentemente corporais […]. Corpos em

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relação já formam vínculos, e, ao estabelecerem relações, podem tecer redes

significativas de transformação (MARQUES, 2012, p. 29-30).

As relações estabelecidas por esses vínculos podem constituir pontes para

transformações, expressando corpos brincantes que dançam – corpos estes em estado de

abertura, sensibilidade, flexibilidade, maleabilidade e porosidade. Assim reflito sobre a ideia,

ou composição, de um corpo-poroso, este que propõe um estado diferente daquele corpo muitas

vezes atrelado às culturas ocidentais; este corpo-poroso se difere de um estado de tensão e

prisão.

Cabe dialogar aqui com as contribuições de Herley Medeiros Lins, em sua dissertação

de mestrado em Saúde Pública, cujo título é Corpo Poroso: Passagens Entre Formação em

Saúde e Arte (LINS, 2016). O autor explicita:

O que temos chamado de corpo poroso é uma produção que se dá na imanência da

vida, que extrapola tanto a razão, quanto o binarismo corpo/mente, razão/emoção,

sujeito/objeto, eu/outro, aparência/essência, interior/exterior […]. Sempre coletiva,

ainda quanto individual – cada indivíduo é também habitado e atravessado por

populações, compondo agenciamentos (LINS, 2016, p. 14).

“Poroso” vem de “poros”, o que nos remete aos poros da pele, que expelem suor e

toxinas, auxiliando nossa respiração e nosso bem-estar. Assim, “[...] O poro é descontinuidade

e multiplicidade […]. Trata-se a todo momento de fazer o corpo escoar pelos poros” (LINS,

2016, p. 38). Poros que permitem ao corpo se abrir, sentir e respirar a inteireza da vida: O poro

é abertura, permeabilidade seletiva [...] é multiplicidade […]; o que interessa ao poro é o

movimento – rápido ou lento –, a impermanência. Um corpo poroso está sempre diferindo,

passando, em devir (LINS, 2016, p. 49).

Uma figura de associação interessante é a dos poríferos, que a professora de biologia

Lana Magalhães explica: “Os poríferos, também chamados de esponjas ou espongiários, são

animais invertebrados aquáticos e fixos em um substrato. O nome do grupo deve-se pela

presença de poros pelo corpo” (MAGALHÃES, 2018, on-line). Esses poríferos apresentam

uma gama de formas e cores, diversidade esta que os corpos brincantes em estado de porosidade

também podem apresentar: “os poríferos pertencem ao filo Porifera. Eles possuem as mais

variadas formas, tamanhos e cores […]” (MAGALHÃES, 2018, on-line).

Na própria natureza encontramos a sabedoria desses animais, que filtram (mas não

prendem) e permitem que a água se mova em sua cadência. Água que dá vida, proporcionando

o ato de respirar:

Os poríferos são animais filtradores. Eles promovem uma corrente de água que entra

pelos poros, passa pelo átrio e sai pelo ósculo. Ao entrar, a água fornece oxigênio e

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ao sair, carrega dióxido de carbono e resíduos. Assim, ocorre a respiração, através das

trocas gasosas por difusão (MAGALHÃES, 2018, on-line).

A proposição de um corpo-poroso pode ser observada em danças de matriz africana

ou afro-brasileiras; elas evidenciam que esses corpos se conectam com a natureza e os seus

ciclos, como reflete Petit (2015) a partir do diálogo com o mestre em capoeira “pavão” e doutor

em Artes, Eusébio Lôbo da Silva:

Na dança negra, o fenômeno respiratório, princípio criador, é simbolizado por

movimentos alternados de contração e de expansão, sem rigidez. O Corpo-Dança

Afroancestral precisa estar suficientemente arejado para promover o caráter de

relaxamento, ou como se diz na capoeira, de “atenção sem tensão” […]. Daí decorre

a fluência, outro princípio dessa dança, em que o corpo se move sempre de modo

predominantemente descontraído. A respiração é base para o jeito descontraído do

corpo se mover, pois, para isso, precisa estar em condição de relaxamento ativo: “[…]

partindo do pressuposto de que o molejo ou a flexibilidade nasce do relaxamento

ativo, que por sua vez, nasce da respiração” […]. O movimento de contração e de

expansão é próprio não somente da nossa respiração, mas também da natureza e do

universo como um todo, o que equivale dizer que a natureza funciona de forma

circular, pelos ciclos diferenciados que se alternam de modo sempre igual e diferente,

pois dentro de certa estabilidade dada pela repetição de fenômenos, ela se apresenta a

todo o momento em movimento, e mesmo quando retorna, não volta igual […]. Ora,

tudo que acontece de modo circular, em contraposição ao quadrado, gera o que Silva

chama de princípio de fluência, algo que vemos nas outras manifestações corporais

afro, ou seja, tudo ocorre com o máximo de naturalidade e de relaxamento, o que não

impede movimentos por vezes bem rápidos, e sobretudo ágeis e imprevisíveis, assim

como acontece com os fenômenos da natureza (PETIT, 2015, p. 99-101).

Esse princípio criador, associado ao fenômeno respiratório e relacionado também aos

ciclos da natureza, expressa uma fluência de movimentos, assim como as águas de Iemanjá.

Esta deusa e rainha do mar possui o poder de criação, como representado na história Iemanjá e

o poder da criação do mundo (OLIVEIRA, 2009):

Iemanjá era muito linda e também muito perfumada, mais conhecida como a Rainha

do Mar. Desde criança, Iemanjá tinha atributos como a beleza, a maternidade, a

tranquilidade, o equilíbrio e a determinação. Adorava enfeitar seus cabelos crespos

com pérolas brilhantes e estrelas do mar. Isto porque o mar era a sua morada. Mas a

princesinha Iemanjá tinha poderes especiais: podia criar, de dentro dela, as estrelas,

as nuvens e os orixás [...] (OLIVEIRA, 2009, p. 24).

Assim sendo, os corpos-porosos são aqueles que, em estado de abertura, podem

respirar e sentir a pulsão da criação. Criação que se instaura na pulsação da brincadeira, no

prazer, no divertimento e na alegria dos corpos brincantes, que assim se constituem, no ato de

jogar e de brincar, dançando, teatralizando, performando ritmos e gingas.

Para possibilitar que crianças possam experienciar atividades lúdicas e artísticas

através desses corpos brincantes em estado de porosidade, muitas vezes é necessário que o

processo ocorra de maneira a preservar a qualidade dessas experienciações: os prazeres, os

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desafios e os aprendizados a serem gerados. Precisamos permitir que as crianças se apropriem

de seus tempos para que a experiência em si seja vivenciada, sentida, respirada.

Neste sentido, com esta pesquisa procurei respeitar os tempos das crianças e estar

atenta às performances dos seus corpos brincantes, bem como, através da metodologia artística

e lúdica que fora proposta, fazer emergir algumas características e alguns elementos da cultura

africana. Esses corpos brincantes, quando despertos, puderam ampliar seus repertórios

corpóreos-criativos nas dinâmicas e experienciações acerca do universo cultural africano.

Nessa ambiência dialógica, Ligiéro (2011) utiliza importantes conceitos e reflexões,

dentre as quais destaco as performances culturais afro-brasileiras inseridas no conceito de

motrizes culturais. O autor explica que, em se tratando de cultura, considerar uma única matriz

africana refere-se a um processo identitário. Ainda assim, esse processo não reúne as diversas

características relacionadas à formação histórico-social-cultural afro-brasileira. Sobretudo ao

considerar que, com a chegada das diversas etnias/nações africanas ao nosso país, estas, tendo

em vista as tensões e os conflitos existentes, viram-se obrigadas a se reconstituírem em meio à

diversidade. Assim, construíram elos de união e irmandade, enquanto grupos sociais,

ressignificando seus diversos aspectos, tais como o religioso, artístico e outros.

O autor, portanto, considera o conceito de motrizes culturais mais adequado, além de

identificar que a palavra “motriz” pode ser traduzida como “força que produz movimento”

(LIGIÉRO, 2011, p. 111). Esse conceito se conecta a um dos aspectos de algumas cosmovisões

africanas, ao refletir que o corpo está vivo se está em movimento, ao produzir energia e

dinamicidade. Ligiéro (2011) ressalta ainda a importância das dinâmicas culturais:

O conceito de motrizes culturais será empregado para definir um conjunto de

dinâmicas culturais utilizadas na diáspora africana para recuperar comportamentos

ancestrais africanos. A este conjunto chamamos de práticas performativas, e se refere

à combinação de elementos como a dança, o canto, a música, o figurino, o espaço,

entre outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas manifestações do

mundo afro-brasileiro (LIGIÉRO, 2011, p. 107).

O autor ainda explicita que “as dinâmicas das motrizes culturais se processam no corpo

do performer como um todo. Nesse sentido, o corpo é seu texto. Nele se corporifica uma

literatura viva, desenvolvida a cada apresentação, refletindo o conhecimento da tradição”

(LIGIÉRO, 2011, p. 110-111). E complementa: “A performance de origem africana, ao mesclar

o jogo (a brincadeira) com o ritual, empresta a toda tradição popular brasileira um tônus e uma

rítmica próprios, criando uma literatura corporal que muitos identificam genericamente como

‘brasileira” (LIGIÉRO, 2011, p. 114).

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No contexto desta pesquisa, a partir dessas relações, os corpos brincantes permeados

por elementos da cultura africana Iorubá puderam manifestar-se no contexto artístico e lúdico

das oficinas, através de danças e músicas, quer sejam africanas, afro-brasileiras ou criadas por

mim. Pôde ser vivenciado também o divertimento do jogo e da brincadeira, conectados com

elementos simbólicos e míticos expressados através dessas performances.

Alguns elementos relacionados à espiritualidade afro-brasileira, trabalhados do ponto

de vista lúdico e cultural, explicitaram particularidades da compreensão espiritual de algumas

culturas africanas, como da nação Iorubá: a compreensão de que a natureza evoca a

ancestralidade expressada através das deusas e deuses orixás. Nesse sentido, a consciência

ecológica, o respeito à natureza e a essas divindades foram destacados no processo com as

crianças.

No entanto, apesar das características culturais afro-brasileiras estarem presentes em

vários territórios brasileiros há, ainda, um processo de invisibilização, desvalorização e

preconceito, historicamente construídos. O estabelecimento de institucionalidades conquistadas

por todos aqueles que vivenciam, valorizam e respeitam esta ascendência cultural, vem sendo

lentamente conquistado e será contemplado, de forma mais explicita, no próximo tópico.

3.3 A LEI Nº 10.639/03 E AS RODAS AFRO-BRINCANTES: A QUANTAS ANDAM?

Iansã, a menina ventarola, e Xangô, o menino fogo Iansã era uma linda menina negra que adorava dançar como os ventos

Xangô era um valente menino negro que adorava brincar com o fogo

Juntos, ninguém podia com eles

Era só aparecerem que logo os seus amigos comentavam:

“Lá vêm, lá vêm o casal do dendê!”

Dendê? O que é dendê? Dendê é um óleo de origem africana

Que dá um liga e uma junção maravilhosa gostosa e surpreendente E dessa união do dendê

Além de adorarem brincar de manipular dois de seus elementos, o vento e o fogo

FIGURA 15 – ARQUÉTIPO DE ALGUNS ORIXÁS

Fonte: Google Imagens (internet)

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Iansã e Xangô eram muito atentos as atitudes das pessoas Eles também tinham o dom de mexerem com os raios as tempestades e os trovões

Ou seja, era melhor não contrariar esses dois furacões da natureza

Eles detestavam quem tratava mal as pessoas

Seja pelo tom de pele, por ser pobre, por ter uma cultura diferente do outro

Quando notavam que alguém era maltratado... sai de perto!

Pois lá do céu se ouviam os estrondos de Iansã e Xangô

Avisando que aquilo deveria mudar

Pois ninguém gosta de ser maltratado

Mas muitas vezes as pessoas fazem coisas erradas

E ainda querem seus direitos assegurados

Mas com os direitos também vêm os deveres

Tratar bem aos outros para ser bem tratado

E se assim não for

Deixe que os ventos de Iansã levem toda essa má intenção para bem longe

E que o fogo de Xangô destrua a mesma Porque para brincar com o casal do dendê é preciso ser justo

A justiça que abre espaço para se brincar com o coração e sentir o quão intensa e divertida pode ser a

brincadeira com esses dois juntos, que são bem apimentados!

(Lia Braga, Natal/RN, novembro de 2018)

Iansã e Xangô, orixás que abrem este tópico, foram escolhidos justamente por serem

considerados o casal da justiça, além de muito parceiros. Narra o mito Oiá liberta Xangô da

prisão usando o raio (PRANDI, 2001) – sendo Oiá um outro nome dado a Iansã – que eram

realizadas festas em homenagem a Xangô, com mulheres aos seus pés e homens que o

invejavam. Porém, eram festas hipócritas, tanto que em uma delas prenderam Xangô,

trancando-o em um calabouço.

Ele possuía uma gamela (uma vasilha encantada), onde via tudo o que acontecia, mas

a havia deixado na casa de Iansã. Passados alguns dias, nada do retorno de Xangô; Iansã então

olhou pela gamela e viu que ele estava preso. Xangô pressentiu que ela havia mexido em seu

objeto, lançando então muitos trovões como sinal. Ela entendeu o pedido de socorro, acendeu

sua fogueira e começou seus encantamentos, com cânticos. Pronunciou palavras, cruzando os

braços em direção aos céus. Foi então que o desenho do número sete se formou no céu, e um

raio partiu as grades da cela em que Xangô se encontrava; e, assim, ele foi liberto. Ao sair,

Xangô avistou Iansã dançando no céu como um redemoinho, levando-o para longe daquela

terra de falsidades.

Os mitos de orixás nos surpreendem com imagens diferentes daquelas criadas em torno

dos(as) negros(as). Tanto Xangô quanto Iansã são divindades empoderadas, com suas forças

místicas e ancestrais, representando a inquietude com as injustiças e o lutar perante elas; um

lutar presente e persistente nesses povos negros de origem africana, que foram violados e

invisibilizados ao longo da história.

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Inclusive, Iansã é uma das deusas guerreiras do panteão Iorubá, que não está nem

abaixo e nem acima de seu parceiro, e sim ao seu lado. Ela lutou junto de seu marido e

companheiro Xangô em guerras, o que enaltece o empoderamento feminino vinculado a essas

deusas africanas.

Porém, mesmo com toda a força dos ancestrais e tantas lutas dos movimentos negros,

percebe-se um problema sistêmico no exercício da política, um problema que interfere em

vários âmbitos de nossa sociedade. Apesar de promulgada há 16 anos, a Lei nº 10.639/03 ainda

encontra entraves para a sua prática em determinadas instituições escolares e por alguns

profissionais, como já explicitava Munanga (2001):

[…] alguns professores, por falta de preparo ou por preconceitos neles introjetados,

não sabem lançar mão das situações flagrantes de discriminação no espaço escolar e

na sala de aula como momento pedagógico privilegiado para discutir a diversidade e

conscientizar seus alunos sobre a importância e riqueza que ela traz à nossa cultura e

à nossa identidade nacional (MUNANGA, 2001, p. 7-8).

O autor menciona a importância da transformação através da educação. Transformação

esta que não deve ocorrer apenas nos estudantes, mas também, e primeiramente, em nós,

professoras(es) e educadoras(es):

[…] cremos que a educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos adultos a

possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade e inferioridade

entre grupos humanos que foram introjetados neles pela cultura racista da qual foram

socializados. Apesar da complexidade da luta contra o racismo, que

consequentemente exige várias frentes de batalhas, não temos dúvida de que a

transformação de nossas cabeças de professores é uma tarefa preliminar

importantíssima. Essa transformação fará de nós os verdadeiros educadores, capazes

de contribuir no processo de construção da democracia brasileira, que não poderá ser

plenamente cumprida enquanto perdurar a destruição das individualidades históricas

e culturais das populações que formaram a matriz plural do povo e da sociedade

brasileira (MUNANGA, 2001, p. 9).

Nesse sentido, creio que a transformação, quando também nos toca e nos atravessa,

permite-nos auxiliar os processos dos outros, que também são nossos, à medida que vão sendo

tecidos e compartilhados. Possibilitando, dessa maneira, mesmo entre tensões e diferenças,

relacionarmo-nos com os demais de forma mais respeitosa.

Assim sendo, com esta dissertação, proponho reconhecer e valorizar riquezas

afrodescendentes na Educação Infantil, momento crucial na formação das crianças; além disso,

procuro contribuir para a aplicabilidade da Lei nº 10.639/03, oportunizando também uma ação

política através de uma ambiência lúdica e artística.

A escritora e doutora em Educação Eliane Cavalleiro, há 19 anos, já problematizava

questões sobre racismo, preconceito e discriminação no âmbito da Educação Infantil. Ela

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refletia na época sobre a necessidade de aprofundamento da questão étnica nesta etapa de

ensino:

A realização de pesquisas com o objetivo de compreender a dinâmica das relações

multiétnicas no âmbito da educação infantil representa um recurso de avanço no

combate ao racismo brasileiro, visto que estudos dessa natureza revelam como se dão

as relações interpessoais, seus benefícios e seus prejuízos para os indivíduos que

convivem na escola, bem como fornecem subsídios para a elaboração de novas

práticas educacionais, quer seja na família, quer seja na escola (CAVALLEIRO, 2000,

p. 37).

Mesmo que as problematizações apontadas pela autora tenham ocorrido há quase 20

anos, relatarei aqui algumas expressões e situações que me chamaram a atenção no âmbito da

realização da pesquisa no NEI.

Vale salientar que alguns dos responsáveis pelas crianças demoraram a entregar o

termo de autorização de participação delas, o que retardou a entrada de algumas crianças. Diante

dessa dificuldade inicial, foi preciso que a Professora Titular da turma participante e eu

dialogássemos com alguns pais sobre a necessidade e a importância da participação delas.

Inclusive, foi necessário solicitar mais de uma vez a autorização para alguns dos responsáveis.

Em alguns casos percebi, nas entrelinhas, uma atitude de relutância em relação à abordagem da

cultura africana; em outros casos, foram verbalizadas desculpas pelo esquecimento da entrega

do referido termo.

Em contrapartida, recordo-me de uma curiosidade positiva expressada pelo pai da

menina Raposa, que não retardou a entrega da autorização. O diálogo com ele, antes do início

das oficinas, foi o seguinte:

Pai: “Cultura africana, e é o quê? A cultura e as coisas de lá, é?”

Eu: “Sim, são algumas histórias de lá que têm a ver com o Brasil, com essa herança

que ficou conosco; tudo com lúdico, contações de histórias, o brincar, que é próprio

da idade.”

Pai: “Com certeza! É tudo o que ela gosta. Ela adora essa coisa de África!”

Reflito que, mesmo com a demora da entrada de algumas crianças, isso não prejudicou

a riqueza e a intensidade vivenciada por nós. Outro fato é que precisei adaptar a mediação

artística e lúdica e reduzir o número de oficinas (oito no total), devido à demora do Comitê de

Ética em Pesquisa/CEP em emitir sua liberação para que eu pudesse iniciar a pesquisa no NEI.

Também cancelei a apresentação de uma culminância artística para a comunidade escolar,

inicialmente planejada. Ela tinha o objetivo de mostrar a outras pessoas o que fora vivenciado

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pelas crianças nesta pesquisa, com a reunião de alguns momentos vividos com as mesmas e

com algumas de suas criações: exercícios, cenas, desenhos etc.

Um aspecto que considero importante e positivo foi que, dentre as 14 crianças da

turma, apenas duas não entregaram a autorização. Vale destacar que, enquanto a pesquisa era

realizada com o restante da turma, as professoras se alternavam durante o processo, entre

participar junto à turma ou ficar realizando outras atividades com as crianças não participantes.

Para a Professora Titular, um dos responsáveis, que não autorizou a participação de

uma das crianças, disse: “Eu não conheço essa pessoa”, referindo-se a mim. E como não houve

uma expressão de abertura, optei por não insistir. Já com o outro responsável relutante, tentei

dialogar duas vezes. Na primeira tentativa, busquei ir ao seu encontro, pessoalmente, na

instituição; mas, diante de alguns desencontros, dialogamos por telefone e explicitei os

objetivos e a metodologia da pesquisa. O mesmo me pediu desculpas, argumentou que algumas

questões ainda estavam confusas e por isso não autorizava a participação da criança. Eu

expressei que lamentava, mas que compreendia e respeitava sua decisão.

Essas expressões de resistência e a não abertura para essas temáticas demonstra, em

alguns casos, desconhecimento em relação a elas. Isso pode também estar associado a posturas

de preconceito e racismo reproduzidas nos cotidianos sociais e educacionais. Ainda hoje, esses

posicionamentos têm relação com os contextos históricos de corte colonial e escravocrata que

são refletidos em nossa sociedade. Nessa contextualização, Alves (2019a, no prelo) explicita:

“É fato que com o processo de colonização vieram as dicotomias, exclusões, a racionalização

do mundo sob a ótica eurocêntrica […]”. A autora ainda alerta e propõe:

[…] em meio a preconceitos, exclusões, desrespeito vamos negando o outro como

legítimo outro e restringindo a ideia de educação, de cultura, de sabedoria, de

conhecimento a outras tiranas categorias e dicotomias referentes a poder, a status, a

classe social, a ambiente delimitado, entre outras. Será, portanto, preciso postular à

educação um maior envolvimento com outros espaços e tempos educativos, se

desvencilhando, por exemplo, dessas categorias ocidentais, dicotômicas e

colonizadoras (ALVES, 2019a, no prelo).

Muitas dessas expressões negativas reafirmam posturas intransigentes que não visam

a ampliar os modos de percepção e abertura para conhecerem outras maneiras de concepção de

mundo e de se relacionar com ele.

Quebrar as colonialidades significa, entre outras coisas, considerar outros modos de

ser e viver, outras perspectivas sobretudo daqueles que foram colocados a margem

pela dominação epistêmica eurocêntrica, a exemplo dos negros, indígenas, pobres,

produtores de outros saberes que não necessariamente o científico (ALVES, 2019a,

no prelo).

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Nesse sentido, cabe dialogar com as reflexões desenvolvidas pelo antropólogo,

museólogo e especialista em Arte Africana, Raul Lody, e pelo bailarino e pesquisador sobre

etnografia da dança de matriz africana, Jorge Sabino. No livro Danças de Matriz Africana:

Antropologia do movimento, os autores explicitam:

Se os europeus recém-chegados ao Brasil Colônia viam e estranham o cenário, e

chamavam todo tipo de música ou dança de matriz africana de batuque, há de se

compreender inicialmente que, diante do que é diferente, o impulso primeiro é passar

pela banalização dos fatos, os quais se encontram sedimentados no desconhecimento,

na xenofobia e no preconceito, principalmente (LODY; SABINO, 2011, p. 79).

Posturas advindas desse contexto negam, portanto, as identidades que constroem quem

somos, e também a nossa história, inscrita na memória do corpo:

Os africanos e seus descendentes, despojados de qualquer referência material,

contavam somente com o corpo e a memória, que traziam como referências, revivendo

e reativando identidades no contexto perverso da escravidão no Brasil […]. Sem

dúvida, o corpo é o principal instrumento de transmissão e de expressão pessoal e

coletiva, porquanto comunica patrimônios traduzidos nas inúmeras possibilidades das

danças (LODY; SABINO, 2011, p. 79-80).

Assim sendo, é de suma importância que professoras(es) e instituições problematizem,

junto aos estudantes e seus responsáveis, o significado histórico, social, cultural e político ao

desenvolverem ações, estudos e metodologias que priorizem estes saberes.

Valorizar as experiências e as memórias culturais experimentadas no cotidiano e em

espaços sociais singulares como os terreiros, as associações de afoxés, de maracutus,

de samba, de jongo e demais formas coreográficas de matriz africana, torna-se

imperioso, porquanto constituintes e formadoras da identidade do povo brasileiro

(LODY; SABINO, 2011, p. 181).

Nesta pesquisa, a valorização da história e da cultura afro-brasileira e africana, e o

destaque atribuído às deusas e deuses orixás de forma contextualiza à Educação Infantil, bem

como a referência destas divindades como forças, elementos e protetoras(es) da natureza,

possibilitaram construir uma relação com as crianças na perspectiva ecológica do cuidado, do

respeito e da preservação da natureza. Durante o desenvolvimento das oficinas, a cultura

africana foi abordada e mediada com contações de histórias e jogos/brincadeiras corporais,

associadas às linguagens da dança e do teatro, com uso de elementos de musicalidade.

Acredito que o entrelaçamento entre a metodologia, as linguagens artísticas e os

aspectos simbólicos, culturais e sociais da nação africana Iorubá propiciou o envolvimento

lúdico-corpóreo das crianças, não gerando nenhuma reclamação nem das professoras, nem dos

responsáveis e muito menos do público-alvo desta proposição. A pesquisa ter sido aprovada

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pelo Comitê de Ética, o apoio institucional do NEI e os responsáveis das crianças terem abertura

para dialogarem com as professoras da turma geraram uma ambiência de confiança e aprovação

em relação aos procedimentos realizados.

De maneira natural e progressiva, as crianças foram manifestando afetuosidade em

relação à minha pessoa e às divindades africanas, como será explicitado mais à frente. Levo em

consideração que o bem-estar, o interesse e o envolvimento das crianças durante o processo

vivenciado contaram positivamente para a postura de aceitação de seus responsáveis.

Porém, apesar das relações positivas manifestadas na pesquisa, cabe explicitar que,

durante o seu desenvolvimento, algumas expressões de preconceito e racismo foram

externalizadas por algumas crianças, mesmo que em minoria. Por exemplo, em uma das

oficinas, ao contar histórias com acompanhamento do livro Omo-Oba: histórias de princesas

(OLIVEIRA, 2009), perguntei às crianças qual era a cor daquelas personagens; algumas falaram

“preta”, e eu disse “preta, negra”, e o menino Onça Preta disse: “Eu não dou muito valor a essa

cor!” Na hora eu expressei que adorava essa cor e que achava os negros muito bonitos.

Uma situação extremamente delicada e polêmica foi quando o referido livro sofreu

tentativa de censura em março de 2018:

Escolhido pelo Sesi Volta Redonda (interior do Rio de Janeiro) para compor o projeto

pedagógico, [o livro] sofreu “questionamentos de alguns pais em relação ao conteúdo”

– isto é, críticas em relação à sua temática, fundada na cultura afro-brasileira – e correu

o risco de ser excluído. A reação da autora e de apoiadores nas redes sociais evitou

que isso ocorresse (OLIVEIRA, 2018, on-line).

Pode-se analisar que a problemática vivenciada pela autora, em pleno século XXI,

evidencia o contexto social e político que estamos vivendo, com posturas extremistas, direitistas

e fascistas, e com um perfil de políticos que preservam uma bancada evangélica com o intuito

de priorizar suas crenças em detrimento de outras. Estes tempos obscuros parecem refletir um

retrocesso diante de alguns avanços recentes alcançados; eles nos fazem lembrar dos períodos

históricos como a ditadura militar, a escravidão e a colonização em nosso território. Porém,

como nos foi legado também a inteligência, a força, a resistência e as estratégias encabeçadas

por nossos ancestrais, a luta continua em diversas frentes e esferas. Assim sendo, corroboro

com as reflexões de Alves (2019b, no prelo):

[…] o corpo, as africanidades e as artes são três palcos de uma mesma história

paradoxal: Uma História de submissão e resistência; de dualismos e

complexidades; de limitações e liberdade de expressão. Isto se reflete nos cenários

de lutas e conquistas da população negra brasileira, por exemplo, na política de

cotas; na inserção de artistas negros nas mídias; na educação, que muito embora

ainda seja predominantemente eurocêntrica já dá sinais de avanços ao incluir, por

exemplos, livros sobre a história da África; já abre espaço para outras práticas de

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saberes na escola – porém isto não foi gratuitamente; isto é fruto de lutas do

movimento negro; de novas políticas institucionalizadas: como a Lei nº 10.639 de

2003 e a Lei nº 11.645 de 2008 (ALVES, 2019b, no prelo).

Diante da censura em relação ao seu livro, Kiusam de Oliveira ainda manifesta na

entrevista que o teor da obra busca auxiliar a tentativa de romper com a supremacia de padrões

estéticos brancos e europeus, presentes e reforçados na literatura. Essa situação me faz refletir

que expressões como a do menino Onça Preta, “Eu não dou muito valor a essa cor!”, não se

apresenta como um caso isolado:

Minha preocupação é contar histórias que rompam com as grandes narrativas

universais, também presentes no nosso país e que reforçam, por exemplo, a existência

de princesas brancas, de origem europeia, presentes de forma massificada num país

de negros e mestiços como é o nosso. A partir dessa massificação, apresentam-se tais

princesas como se fossem o ideal a ser seguido, e é exatamente isso que as crianças

entendem. Elas são capazes de afirmar, mesmo lendo meu livro Omo-Oba, que

princesas negras não existem ou que as princesas do livro são feias porque são negras

(OLIVEIRA, 2018, on-line).

Concordo com as considerações da autora, em outra entrevista cedida a Camilla

Hoshino para o portal Lunetas. Oliveira (2017) explicita que as concepções sobre infância estão

atreladas aos modos de tratamento, intervenção e mediação, que nós adultas(os) desenvolvemos

com as crianças:

Penso numa infância em que as crianças são consideradas partes fundamentais de um

todo bem maior que elas, já preestabelecido e onde devem participar de uma gama

variada de experiências que as coloquem frente à frente com novos desafios e

situações para que sejam capazes de desenvolver suas capacidades de protagonizar,

de escolher, de opinar, de se emocionar, de enfrentar problemas e de se solidarizar. É

nessa perspectiva conceitual que haverá quem pense que tratar de preconceito,

estigma, discriminação e racismo estrutural no Brasil não são assuntos para a infância,

inclusive acrescentando que nenhuma criança é racista. Haverá um outro grupo de

pessoas que estimularão as crianças a enfrentarem tais assuntos de frente, porque

mesmo acreditando que a criança não seja racista, se aceita que ela é capaz de

reproduzir o racismo que vê, ouve e aprende em casa. E uma vez que o racismo é

estrutural, isto é, faz parte da construção educativa desde a infância brasileira, precisa

ser desconstruído por pessoas com visões mais dinâmicas sobre a constituição do país,

sem que emitam juízo de valor ou afirmem que as contribuições dos brancos no Brasil

são mais significativas que as contribuições de negros e indígenas (OLIVEIRA, 2017,

on-line).

É possível problematizar certas posturas marcadas por pudor, excesso de zelo e

enquadramento, nas quais adultas(os) supõem ser possível colocar as crianças em uma redoma

de vidro, na tentativa de privá-las de perceber a discriminação, o preconceito, o racismo e a

exclusão ainda existentes em nossa sociedade.

Page 108: LIA FRANCO BRAGA

108

A prevenção de práticas discriminatórias, penso, requer um trabalho sistemático de

reconhecimento precoce da diversidade étnica e dos possíveis problemas que o

preconceito e a discriminação acarretam em solo brasileiro, desde a educação infantil

– familiar e escolar. Tal prática pode agir preventivamente no sentido de evitar que

pensamentos preconceituosos e práticas discriminatórias sejam interiorizados e

cristalizados pelas crianças, num período em que elas se encontram muito sensíveis

às influências externas, cujas marcas podem determinar sérias consequências para a

vida adulta (CAVALLEIRO, 2000, p. 37).

Ao mesmo tempo, ao acreditar que mesmo inconscientemente o menino Onça Preta

tenha expressado uma visão negativa em relação à cor preta, as(os) negras(os), era curioso para

mim o fato de ele expressar ter uma referência familiar: em uma conversa informal entre ele e

eu, em outro dia de oficina, o menino disse que a sua tia era africana. Eu perguntei se ele sabia

de que parte da África ela tinha vindo, e ele disse que não sabia, mas que só sabia que ela era

africana e negra. Depois, ao conversar com a Professora Sol sobre o que o menino tinha falado,

ela disse que ele deveria estar se referindo à sua madrasta, que já havia morado na África.

Mesmo com um período relativamente curto na experienciação das oficinas, foi

interessante perceber que, na escolha do seu nome para a pesquisa, o menino disse,

primeiramente no meu ouvido, “Aquele do Arco e Flecha”, referindo-se ao orixá Oxóssi; depois

quis ser chamado de Pantera Negra, e depois trocou para Onça Preta, incorporando a palavra

em sua identificação com uma expressão positiva e de valorização do tema, o que me

surpreendeu diante da expressão de cunho preconceituoso inicialmente manifestada.

Pode-se observar, a partir do diálogo final com as crianças, na última oficina, uma

expressão positiva em relação aos personagens que apareciam tanto nos mitos que contei dos

Ibejis, através do livro Mitologia dos Orixás (PRANDI, 2001), quanto a orixás que apareciam

no livro Omo-Oba: histórias de princesas (OLIVEIRA, 2009). Ao perguntar se teve alguma

história que as crianças haviam gostado mais, uma delas disse:

Menina Gatinha Folha: “A preferida foi aquela que em vê, aqueles Ibejis que têm

pele negra, que você contou aquela história que tinha um monte de princesas, essa

foi a minha predileta! […] a minha preferida foi da… da… daquela princesa do mar,

Ie…”

Eu: “Ahhhhh! Foi a dos Ibejis e a da princesa do mar! Quem é a princesa-rainha do

mar, gente?”

Quando questionei quem era a princesa-rainha do mar, a maioria das crianças

respondeu que era Iemanjá. Acredito que o processo de vivência artístico e lúdico da pesquisa

tenha auxiliado as crianças a perceberem as deusas e deuses orixás – com características negras

Page 109: LIA FRANCO BRAGA

109

de beleza e de realeza, como a própria menina Gatinha Folha especificou em sua opinião – de

forma positiva.

Há de se considerar que o NEI demarca uma diferenciação em relação à maioria das

instituições escolares, pois a maneira como seus profissionais articulam e problematizam

discussões propicia às crianças vivências diversas e plurais, salientando o respeito e a

valorização de culturas e indivíduos da maneira como se constituem e são. Nesse sentido, posso

destacar que temas afins à cultura africana e africanidades já foram trabalhados na instituição,

inclusive com essa turma de crianças. Também, na turma, há convivência com crianças

deficientes e não deficientes, crianças com características físicas diferentes e com situação

socioeconômica distinta.

O racismo estrutural existente em nosso país, fruto das marcas históricas de negação,

opressão e violência, acarretou em nossa sociedade desconhecimento em relação às verdadeiras

origens de nossas(os) ancestrais negras(os), bem como uma invisibilização em relação a toda a

contribuição histórica, social e cultural com que nos foi legada por elas(es). Infelizmente, o

processo histórico de colonização brasileiro imprimiu a imagem das(os) africanas(os) que

foram aprisionadas(os) em suas terras natais e forçadas(os) a virem para nosso país apenas como

escravas(os). Em contextos educacionais, por vezes essa associação ainda pode ser ressaltada,

a depender do projeto pedagógico da escola e/ou da abordagem da(o) professora(or) e dos

materiais utilizados.

Porém, muitos de nossas(os) ancestrais negras e negros e africanas(os) eram rainhas e

reis, princesas e príncipes, guerreiras e guerreiros. Na etnia e cultura Iorubá, o orixá Xangô,

por exemplo, deus do fogo, raios, trovões e justiça, já foi considerado um grande rei guerreiro

de uma antiga cidade africana chamada Oyo, que lutava de forma justa por seu povo.

Desde que comecei a desenvolver o projeto Brincando com Africanidades, percebo o

desconhecimento das pessoas quando procuro trazer uma imagem positiva em relação aos(às)

negros(as). Esse fato não é isolado, se considerarmos que a maioria das instituições escolares

prioriza o conteúdo eurocêntrico e a escola como espaço de saber; nestes casos, ela introjeta

uma história marcada por preconceito e estereótipos.

Revisitando algumas de minhas memórias que se relacionam diretamente com essas

problemáticas, não me recordo de ter tido alguma boneca negra para brincar quando era criança,

ou algum livro de história que priorizasse positivamente a imagem das(os) negras(os). Ganhei

uma boneca de pano negra de minha mãe, já adulta, após ter me despertado para trabalhar com

esta temática; e eu ainda hoje a chamo carinhosamente de Calunguinha. Calunga foi o nome

sugerido pelo meu pai, e dentre alguns de seus significados, aqui no nordeste, significa boneca;

Page 110: LIA FRANCO BRAGA

110

é muito utilizado no maracatu, uma expressão cultural afro-brasileira que envolve cortejo, dança

e música.

Na escola, sempre gostei de história, literatura, arte e religião. Recordo-me que eu

devia ter de 13 para 14 anos quando vi uma imagem, em um livro de história, de negros

escravizados tentando fugir dos capatazes. Mas no livro a história não tratava de suas origens,

e eu, naquela época, me questionava sobre elas; aquelas pessoas não poderiam ser somente

escravas, elas deveriam ter sua história, uma família, uma origem a qual eu não conhecia e que

por muito tempo continuei a desconhecer.

Já com 16 para 17 anos, em uma das escolas que estudei, recordo que fui chamada por

uma colega de turma e grupo de teatro para participar de uma esquete, um exercício teatral em

torno de 20 minutos que problematizava a violência urbana em relação aos negros. Recordo

também que fiz parte do elenco de uma adaptação livre do espetáculo O Fantasma da Ópera,

um romance gótico de origem francesa, e um dos personagens principais, o próprio Fantasma

da Ópera, foi protagonizado por um colega e ator negro. Este colega também era bastante

atuante nos exercícios ou espetáculos de teatro e dança de que participávamos nesta escola.

Já na graduação, convivi com dois colegas negros, e houve em duas disciplinas (que

eu me lembre) algumas explanações e práticas sobre algumas manifestações culturais e

religiosas das(os) negras(os)em nosso país. No período entre a graduação e o mestrado,

experiências anteriormente citadas na introdução foram importantes para que eu pudesse me

aprofundar nestas temáticas. No âmbito do mestrado, também tive a oportunidade de conviver

com pessoas negras: estudantes, pesquisadoras(es) e colegas, e também me relacionei com um

rapaz negro. Nesta relação, percebi algumas tensões sociais referentes aos nossos tons de pele,

como olhares que demonstravam, para mim, um preconceito velado em relação a nós dois.

Assim sendo, a partir dessas relações e convívios, questionei-me de forma mais

profunda sobre privilégios, lugar de fala e pertencimento étnico-racial, tanto a nível social

quanto pessoal. Porém, desde a minha infância até a fase adulta, eu conto nos dedos quais foram

as pessoas negras de meu convívio.

Se eu, que me considero miscigenada e reconheço minha ancestralidade africana,

reflito sobre um processo de invisibilização, que não se restringe apenas às minhas memórias,

e sim é um reflexo de dores e violências históricas profundas, como negras e negros poderão se

reconhecer ou se identificar com os conteúdos que são trabalhados nas escolas? Ou como

poderão se sentir valorizadas(os) com a maneira como são tratadas(os) social e culturalmente?

Nesse sentido, compactuo com as considerações da pesquisadora e doutora em

educação, Stela Guedes Caputo, ao afirmar que:

Page 111: LIA FRANCO BRAGA

111

Volta-me agora o relato do líder nagô sobre a árvore do esquecimento. Ao reproduzir

uma visão homogênea da sociedade, a escola colocaria as diferenças culturais para

andar em torno da árvore do esquecimento. Seria, ela própria, uma grande árvore do

esquecimento, na qual alunos (as) negros, bem como suas culturas, religiões, formas

de ver o mundo estariam dando voltas até que esquecessem completamente sua

história […]. Quando olha para a TV, o negro não se vê e não se reconhece. Ao olhar

para a escola também não (CAPUTO, 2012, p. 242).

E ainda alerta que “uma das consequências mais perversas do preconceito é que ele se

naturaliza, ou seja, passa a ser visto como normal tanto para quem promove como para suas

vítimas. Só que as consequências de dor, frustração e baixa autoestima ficam com os

vitimizados” (CAPUTO, 2012, p. 244).

Acredito que as tentativas para que outros referenciais sejam trabalhados no cotidiano

escolar sobre a história e a cultura africana e afro-brasileira, referenciais estes que não

depreciem, menosprezem ou excluam, e sim que respeitem e valorizem – permitam que

andemos em torno não da árvore do esquecimento, e sim da árvore Baobá.

O Baobá, cultuado por vários povos africanos, simboliza a árvore da vida, e algumas

das mesmas podem viver até 3 mil anos. Por sua longevidade e grandiosidade, o Baobá pode

ser compreendido também como um parente antigo que protege tudo ao redor e serve de abrigo

tanto para pessoas como para animais (SILVA, 2015).

Pode-se relacionar também o Baobá com uma

árvore mítica, mística e ancestral, que ao invés de

eternizar o esquecimento, perpetua a memória e os

laços afetivos daqueles que se sentem abrigados

por essa grande “árvore-vovô” (Figura 16):

A árvore é um dos símbolos fundamentais das culturas africanas

tradicionais. Os velhos baobás africanos de troncos enormes suscitam

a impressão de serem testemunhas dos tempos imemoriais. Os mitos e

o pensamento mágico-religioso yorubá têm na simbologia da árvore

um de seus temas recorrentes. Na sua cosmogonia, a árvore surge

como o princípio da conexão entre o mundo sobrenatural e o mundo

material. As árvores estão associadas a ìgbá ì wà ñû – o tempo quando

a existência sobreveio – e numerosos mitos começam pela fórmula

“numa época em que o homem adorava árvores” (geledes.org.br, on-

line).

Que possamos então adorar árvores como o Baobá,

que guardam a nossa memória ancestral africana; e que, assim, possamos preservar o passado

em comunhão com o presente, permitindo-nos construir um futuro mais democrático e justo.

FIGURA 16 – LIA AOS PÉS DO BAOBÁ,

DE 110 ANOS, NO PASSEIO PÚBLICO,

EM FORTALEZA/CE

Fonte: Arquivo Pessoal

Page 112: LIA FRANCO BRAGA

112

Reflito que através da arte em intervenção na Educação possa-se construir estratégias

para abrir espaços no intuito de que essas temáticas sejam incorporadas no cotidiano social e

cultural. Estratégias que rompam com o imaginário estigmatizado e negativo associado

as(os)negras(os). Portanto, a arte, por meio de diversas transversalidades, de maneira sensorial

e estética, abrange a dimensão poética e crítica de maneira atemporal, nas variadas formas e

relações organizacionais, e em espaços socioculturais.

Assim, na atualidade e especificamente no cenário de nosso país, ao romper limites de

intervenção e interação com as pessoas, a arte transita através de rotas efêmeras, mas não menos

intensas, percorrendo caminhos e territórios e materializando-se em nichos/locais/grupos

diversos. De maneira interdisciplinar, ela se fundamenta em várias lógicas e formas de

abordagem. Diante disso, questiono: quais os caminhos possíveis e passíveis da arte como

potência cultural e política? Nesse sentido, Alves (2019b, no prelo) reflete sobre algumas

possibilidades com relação às diversas artes africanas:

Há muitas possibilidades de artes africanas, seja a criação de máscaras, esculturas,

pinturas, danças, cânticos, arquitetura, entre outros presentes nesse universo

diversificado, rico em etnicidade, ancestralidade e estética. Porém o que por vezes

falta é o olhar sensível de professores, estudantes, pesquisadores e de um modo geral

da sociedade, para perceber essa diversidade de referências culturais, artísticas e

estéticas presente no contexto da arte brasileira. Estará de fato, sensível nosso olhar,

ao ponto de nos permitir enxergar para além das referências eurocêntricas, inclusive

no campo da arte? Aqui fica o convite para nos sensibilizarmos de corpo inteiro e

vivermos a experiência estética com as várias possibilidades de expressão da arte de

matrizes africanas (ALVES, 2019b, no prelo).

Analiso que, em algumas escolas, os projetos pedagógicos ainda tendem a reproduzir

padrões tradicionais de ensino, carecendo de uma abordagem interdisciplinar e crítica. As

formas homogêneas e/ou “estanques” como os temas e conteúdos são trabalhados intensificam

um processo, em geral, acrítico e de massificação das(os) estudantes. Ou seja, o estudo reflexivo

e problematizado através de experimentações nos contextos individual e coletivo pode

contribuir para ressignificar esse cenário e dialogar com outras áreas, como a arte (BRAGA,

2017).

A partir deste campo do saber, posso fazer relações com outros campos, como a

cultura, a educação e a história – sem, no entanto, minimizar o protagonismo da arte como

mediação de um saber pautado na relação entre teoria e empiria, e também na subjetividade

das(os) participantes.

Referimo-nos aqui a uma pesquisa teórico-prática, seja o pesquisador o próprio feitor,

seja ele testemunha de uma prática. Trata-se então de uma pesquisa em arte. O objeto

de estudo não se encontra pronto, suas fronteiras ainda não são dimensionáveis: está

em processo, na formação, transformação e deformação. Como seria então registrar

Page 113: LIA FRANCO BRAGA

113

as diferentes passagens desse processo sensível, permitindo-se à esta categoria de

registro como instâncias vivas? (JUNIOR; BONFITTO, 2015, p. 112).

Ao refletir sobre o sentido de um processo sensível que permeia o campo de

intervenção das Artes Cênicas, eu, enquanto artista, educadora e pesquisadora, pude participar

ativamente da experienciação com as crianças. Assim, ressignificando a importância da arte

como componente cultural, educativo e formativo, e, enquanto mediadora, pude ser atravessada

e afetada por proposições das crianças.

Por sua gênese crítica, reflexiva, questionadora, a arte estimula diálogos, vivências e

liberdade de expressão acerca de temas geralmente invisibilizados ou tidos como tabus na

sociedade. Trabalhar com a cultura africana através do universo das deusas e deuses orixás é

valorizar nosso legado ancestral negro e estabelecer relações com nossa herança afro-brasileira

presente em nosso cotidiano através de suas comidas, costumes, crenças, atitudes, palavras,

moda, arte, música etc.

Intervir artisticamente com crianças na etapa da Educação Infantil abre um campo de

possibilidades nas quais elas podem vivenciar um pouco desse legado de forma positiva,

oportunizando-as para o acesso à cultura na tentativa de desmistificar alguns preconceitos e

conceitos erroneamente construídos histórica, social e também culturalmente. As crianças, por

meio de suas experienciações, foram afetadas e, ao estabelecerem relações afetivas com os

eixos e as temáticas trabalhadas, puderam reconhecer ou não sua negritude, e, principalmente,

conhecerem a diversidade cultural e os elementos da cultura africana e afro-brasileira.

Nesse contexto, ao se desenvolver uma pesquisa em Artes Cênicas e intervir no âmbito

da Educação Infantil, envolvendo aspectos da cultura africana, permitiu-se às crianças

vivenciarem alguns elementos dessa perspectiva. Petit (2015), ao refletir sobre conhecimentos

pautados em uma ancestralidade africana, concebe que as manifestações coletivas são

recuperadas através das memórias do corpo e dos gestos. As histórias são contadas e recriadas,

através da oralidade, pelas(os) mais velhas(os), para as novas gerações. No cotidiano, as danças

e brincadeiras celebram a vida, a natureza, as divindades e a religiosidade, e perpassam os

saberes dialogados e construídos por todos em comunhão. Os saberes encontram expressão na

beleza que há na simplicidade da vida, no caráter místico dos rituais, na arte e na educação.

Interessava-me, também, intervir e vivenciar com as crianças o processo de criação em

arte; um processo que propusesse a liberdade imaginativa e a autonomia de descoberta dessas

crianças, como artesãs/performers de suas próprias criações, a partir de suas experiências.

A transversalidade entre arte, corpo, ludicidade e cultura africana, em intervenção

escolar, constituiu um desafio que me propiciou vivenciar, junto às crianças, diálogos

Page 114: LIA FRANCO BRAGA

114

interdisciplinares influenciados por múltiplas poéticas contemporâneas, na busca das

performances de seus corpos brincantes e das possibilidades no campo da pesquisa em Artes

Cênicas. Portanto, a pesquisa priorizou o processo artístico como forma de experienciação e

criação.

O entrelaçamento entre arte e educação evidenciou o corpo e o lúdico como trajetos

sensíveis que foram sendo experienciados com as crianças nesta etapa da Educação Infantil. Na

produção de conhecimento artístico, ao valorizar o processo de criação das crianças, procurei

respeitar as suas individualidades em contexto coletivo e instigar uma postura de criticidade em

oposição à naturalização de comportamentos discriminatórios e excludentes.

3.4 HISTÓRIAS DE ORIXÁS: CONTAR E BRINCAR COM O CORPO

Neste recorte específico, busco refletir sobre a perspectiva das contações de histórias

através do universo e das mitologias das deusas e deuses orixás. Desde que me descobri também

como contadora de histórias, há quase três anos, decidi que eram as histórias dessas divindades

que eu iria compartilhar com os outros. Nessa confluência, cabe o pensamento do historiador e

antropólogo Vansina (2010, p. 140): “A oralidade é uma atitude diante da realidade […]”. Isso

me faz reafirmar que minha ação reflete uma escolha espiritual, artística e política.

Espiritual, pela minha ligação com as religiosidades de Umbanda e Candomblé, ao

procurar relacionar os saberes compreendidos nessa ambiência ao meu cotidiano e ao meu

trabalho, dialogando e perpassando estes saberes para outras pessoas; artística, porque a partir

do meu fazer teórico e prático no campo das Artes Cênicas, evidencio outros modos de pensar

e criar arte, diferentes do que tradicionalmente foram sendo impostos como conhecimento a

partir de uma hegemonia branca e eurocêntrica; política, porque minha motivação foi trabalhar

com temas invisibilizados ou tidos como tabus socialmente, como a cultura africana e afro-

brasileira.

Considero ser necessário, frente a todo o legado herdado historicamente e

culturalmente de nossas(os) ancestrais negras(os), problematizar de forma positiva as relações

étnico-raciais presentes em nossa sociedade brasileira. Assim sendo, a partir também de minha

herança espiritual, sinto-me responsável por contribuir positivamente para a desconstrução de

estereótipos construídos em torno de pessoas e culturas negras. Busco me ancorar em outras

formas de concepção e relação com o mundo, como as cosmovisões africanas, nas artes e na

Educação. O desafio de trabalhar com essas temáticas traz também uma teia de afetos gestados

a partir de minha identificação cultural e espiritual.

Page 115: LIA FRANCO BRAGA

115

Quando conto histórias de orixás, evoco conexão e me comunico com a força de minha

ancestralidade africana. Perpetuo alguns de seus mitos, não como a detentora da verdade, e sim

como aquela que está aberta ao ouvinte-participante, construindo e reconstruindo um

imaginário instaurado em nossa memória social e corporal.

Ao me embasar nessas perspectivas, compreendo que a(o) contadora(or) de histórias é

aquele que carrega consigo toda uma tradição, mas se adapta às situações e fica atenta(o) ao seu

público – que é também artesão de histórias, junto com a(o) contadora(or), assim como as

figuras dos griots, já mencionados anteriormente e que me inspiram para este trabalho. Como

exemplo, Bernat (2013) destaca alguns dos relatos de seu mestre Sotigui Kouyaté:

Aliás, quando um griot se apresenta num espaço fechado pede que as luzes da plateia

fiquem acesas, pois precisa ver e sentir o público, perceber sua temperatura, para, de

acordo com a recepção da plateia, alterar a forma e o ritmo de contar a história […]

(BERNAT, 2013, p. 71).

Foi com as histórias dessas divindidades que comecei a aprender a falar e a buscar uma

forma de expressão própria, a partir de minha subjetividade. Aprender, sim, pois o ato de contar

histórias, muitas vezes, permite-nos a escuta e a conversação com o ouvinte-participante-

contador, que ora é passivo, no aspecto de abertura, e ora é ativo, no aspecto de poder

pronunciar-se a partir de si. Nessa confluência, aproximo-me da contribuição de Bernat (2013),

quando o autor explicita:

O ato de contar histórias nos aproxima de nós mesmos, pois a parceria com a história

e a cumplicidade com os ouvintes só se estabelecem se o contador compreender que

não há uma diferença hierárquica em relação ao público, mas sim uma diferença de

circunstância. Por isso costuma-se dizer que na África todos são contadores de

histórias. Isso deveria ser uma aptidão natural na vida de qualquer homem, ter uma

história para contar (BERNAT, 2013, p. 221).

Quando conto histórias, seja em palco ou em outro espaço, procuro, em geral,

organizar a plateia em semicírculo, de modo a garantir maior proximidade e interação. É

desafiante estar bem próxima, olhar “olho no olho” e contar com a participação, por vezes bem

ativa, do público. A partir de perguntas temáticas e outros estímulos, instigo o público para que

interaja em algum momento da encenação junto a mim, como personagens/contadores. Nesse

sentindo, propicio um fazer artístico aberto ao imprevisível e à construção conjunta com os

ouvintes-contadores das histórias. Principalmente quando estou em contato com as crianças, as

surpresas são diversas e os desafios, maiores. Suas lógicas e proposições me permitem brincar

com o corpo, com a voz e com a própria narrativa oral. Cabe aqui contextualizar a contação de

histórias Os Gêmeos Ibejis numa Aventura Dançante, que experienciei com as crianças na

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116

pesquisa e também em outros contextos. Os gêmeos africanos Ibejis são grandes, não em

tamanho físico, mas sim em inteligência, coragem e força. Com suas grandezas de espírito,

tiveram uma ideia para deter Icu, a morte; mobilizaram um desfecho positivo da história, apesar

de alguns desafios e percalços que foram enfrentados ao longo da aventura. Apresento, então,

o mito original que inspirou esta contação de histórias:

Os Ibejis enganam a Morte

Os Ibejis, os Orixás gêmeos, viviam para se divertir.

Não é por acaso que eram filhos de Oxum e Xangô.

Viviam tocando uns pequenos tambores mágicos, que ganharam de presente de sua mãe adotiva, Iemanjá.

Nessa mesma época, a Morte colocou armadilhas

em todos os caminhos e começou a comer todos os humanos

que caíam na suas arapucas.

Homens, mulheres, velhos ou crianças,

ninguém escapava da voracidade de Icu, a Morte.

Icu pegava todos antes de seu tempo de morrer haver chegado.

O terror se alastrou entre os humanos. Sacerdotes, bruxos, adivinhos, curandeiros,

todos se juntaram para pôr um fim à obsessão de Icu.

Mas todos foram vencidos.

Os humanos continuavam morrendo antes do tempo.

Os Ibejis, então, armaram um plano para deter Icu.

Um deles foi pela trilha perigosa

onde Icu armara sua mortal armadilha. O outro seguia o irmão escondido,

acompanhando-o à distância por dentro do mato. O Ibeji que ia pela trilha ia tocando seu pequeno tambor.

Tocava com tanto gosto e maestria que

a Morte ficou maravilhada,

não quis que ele morresse

e o avisou da armadilha. Icu se pôs a dançar inebriadamente,

enfeitiçada pelo som do tambor do menino.

Quando o irmão se cansou de tocar,

o outro, que estava escondido no mato,

trocou de lugar com o irmão,

sem que Icu nada percebesse. E assim um irmão substituía o outro

e a música jamais cessava.

E Icu dançava sem fazer sequer uma pausa.

Icu, ainda que estivesse muito cansada,

não conseguiu parar de dançar. E o tambor continuava soando seu ritmo irresistível.

Icu já estava esgotada

e pediu ao menino que parasse a música por uns instantes,

para que ela pudesse descansar.

Icu implorava, queria descansar um pouco.

Icu já não aguentava mais dançar seu tétrico bailado.

Os Ibejis então lhe propuseram um pacto.

A música pararia,

mas a Morte teria que jurar que retiraria todas as armadilhas.

Icu não tinha escolha, rendeu-se.

Os gêmeos venceram. Foi assim que os Ibejis salvaram os homens

Page 117: LIA FRANCO BRAGA

117

e ganharam fama de muito poderosos, porque nenhum outro orixá conseguiu ganhar

aquela peleja com a Morte. Os Ibejis são poderosos,

mas o que eles gostam mesmo é de brincar.

(PRANDI, 2001, p. 375-377).

Essa história, em especial, me remete à proposta curativa através de mitos africanos,

que Ford (1999) propõe. Ao ler o prefácio de sua obra, me pus a chorar, quando em

arrebatamento compreendi um processo de auto-cura: “Eu sabia que o ponto de virada do

processo de cura individual geralmente ocorria no momento em que as ‘histórias pessoais’ de

traumas transformavam-se de ladainhas sobre a condição de vítima em lendas sobre o poder”

(FORD, 1999, p. 7).

Assim como os Ibejis, eu, criança, tão pequena e recém-nascida, enfrentei Icu, a morte:

eu poderia ter me despedido deste mundo, junto com a minha mãe biológica. De certo, eu não

tinha um tambor mágico para despistá-la, mas meu choro de pequena guerreira evocava os

gritos de guerras de meus ancestrais e a fez perceber que eu ainda tinha muitas lutas a vivenciar,

e que ainda não era a minha hora. Mas sou grata à morte, pois com ela eu pude brincar com o

tempo e costurar as minhas próprias feridas, para que elas se tornassem bálsamos curativos.

Além do mais, creio que esta história incorpora um sentido às crianças, como

protagonistas de suas próprias trajetórias, assim como ocorreu com a protagonista que fui do

meu próprio destino, ao nascer. É através do som mágico do tambor dos Ibejis que Icu, sem

conseguir parar de dançar, é ludibriada. Sem compreender como o som não parava de ecoar,

com a alternância dinâmica dos gêmeos, ela, de tão cansada de dançar, rendeu-se ao acordo

feito com os meninos, deixando em paz toda a comunidade.

Assim também as crianças podem perceber a morte, não como algo que devemos temer

– sentimento propagado em muitas culturas ocidentais. Mas, sim, como um fato natural, que

devemos enfrentar ao nos relacionarmos dinamicamente com ela, assim como os meninos

Ibejis; mesmo que neste processo possamos sentir tristeza, dor, revolta e incompreensão, como

por muitos anos senti em relação à morte de minha mãe biológica.

Tradicionalmente, o contar público dos mitos fornece uma âncora tanto para os

indivíduos quanto para as coletividades. Os mitos são, realmente as “histórias sociais”

que curam. Isso porque nos dão mais do que o desfecho moral que aprendemos a

associar há muito tempo às quadrinhas infantis e aos contos de fadas. Lidos

apropriadamente, os mitos nos deixam harmonizados com os eternos mistérios do ser,

nos ajudam a lidar com as inevitáveis transições da vida e fornecem modelos para o

nosso relacionamento com as sociedades em que vivemos e para o relacionamento

dessas sociedades com o mundo que partilhamos com todas as formas de vida. Quando

enfrentamos um trauma, individual ou coletivamente, as lendas e os mitos são uma

maneira de restabelecer a harmonia à beira do caos (FORD, 1999, p. 9).

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118

O autor ainda explicita que esses mitos nos levam a buscar, juntamente com aqueles

com quem partilhamos as histórias mitológicas, a figura do herói. Mas esse herói não está longe

ou fora de nós, e sim em nosso interior. Se somos integrados ao todo, em uma perspectiva afro-

referenciada, então habitam em cada um de nós, além de heroínas e heróis, deusas e deuses,

guerreiras e guerreiros, rainhas e reis, princesas e príncipes, refletidos nessas histórias curativas.

Em última análise, a busca do herói não se dá num caminho isolado, mas naquele

percorrido por toda a humanidade; não é uma vitória sobre forças externas, mas, sim,

internas; não é uma viajem a mundos distantes, mas ao âmago do self de cada um […].

Como a viajem do herói, a experiência afro-descendente me faz defrontar com

questões como morte e vida, bem e mal, dor e sofrimento, triunfo e tragédia, trauma

e cura, servidão e liberdade, desigualdade e justiça – não apenas como questões

abstratas associadas há muito com meus antepassados, mas como inquietações atuais

relativas à minha vida e à viajem do “herói dentro de mim” (FORD, 1999, p. 31).

Um aspecto significativo dos contos míticos do panteão iorubá é que a terra, e não o

céu, é o palco de suas façanhas. Ao contrário de vários mitos de busca espiritual, os

deuses e as deusas iorubás vêm do céu para a terra em busca da nossa humanidade,

não o contrário […]. Na lógica dos orixás, podemos ver aquele reino diante de nós –

e encontrar os deuses e as deusas, os santos e os sábios no nosso interior (FORD,

1999, p. 210).

Ford (1999) reflete que a mitologia nos faz questionar a vida filosoficamente; e que, a

partir de nossas experiências, encontraremos possíveis caminhos os quais, nos ajudando

mutuamente, auxiliaremos os processos uns dos outros, especialmente os dos afrodescendentes.

A mitologia volta-se para as questões eternas da humanidade: qual a relação entre a

vida humana e o grande mistério do ser por trás de toda vida? Como devemos entender

a relação entre o planeta que habitamos e o Cosmo em que nos encontramos? Como

devo vencer as etapas da minha vida? E como minha vida se coaduna com a sociedade

em que vivo? Não se pode colocar essas questões ao telescópio ou ao microscópio; é

melhor viver as respostas e depois transmiti-las aos que virão – e essa é a trajetória do

mito. Assim, a mitologia tem sido tradicionalmente um meio de tornar saudável o

indivíduo e a sociedade ajudando as pessoas a harmonizar as circunstâncias da vida

com essas inquietações mais amplas, mais permanentes. E é exatamente esse tipo de

cura que se pode obter ao abordar a experiência dos afrodescendentes pela mitologia

(FORD, 1999, p. 32).

Dentro dessa contextualização, pode-se compreender que as(os) orixás nos apontam

perspectivas curativas em relação ao ser humano integrado à natureza.

[…] onde as deidades são vistas como personificações de forças básicas da natureza

e de nós mesmos, as narrativas sobre elas são compreendidas simbolicamente. Como

fatos, as divindades são adoradas e acreditadas principalmente como entidades fora

do indivíduo – “acima” ou “abaixo”, de um céu ou de um inferno para além da

existência humana. Mas, como símbolos representantes das forças básicas da vida, as

divindades são sentidas como partes do self individual: do nascimento à morte, da

fome à raiva, do amor à dor, as forças que nos motivam são em si os deuses e as deusas

que existem em nós (FORD, 1999, p. 206).

Page 119: LIA FRANCO BRAGA

119

Através de um trecho de um mito Iorubá, que fala do princípio da criação de lugares e

pessoas por esta ótica, pode-se perceber a relação próxima das(os) orixás com os humanos. Pois

fora incumbida as deusas e deuses não somente a função de protetoras(es) da natureza, mas também

de protetoras(es) de nós, seres humanos:

À medida que a aldeia de Ifé se transformava em cidade grande, Obatalá ansiava cada

vez mais por voltar a seu lar atrás das nuvens. Certo dia ele subiu pela corrente de

ouro e foi recebido no reino de Olorum com uma grande comemoração em sua honra.

Quando os outros orixás ouviram-no contar dos lugares e das pessoas que ele criara

lá embaixo, muitos resolveram descer à terra para viver junto à humanidade. Eles se

aprontaram para a partida com esse código de conduta ditado por Olorum: “Como

orixás, nunca se esqueçam de que vocês devem proteger até o mais humilde dos seres

humanos. Atendam sempre às preces deles e ofereçam ajuda sempre que necessitarem.

Obatalá, que desceu primeiro pela corrente de ouro para criar esse mundo de seres

vivos, controlará todas as questões terrenas, mas cada um de vocês deverá cumprir

uma função específica entre os seres humanos. Sejam condizentes com essa confiança

e responsabilidade” (FORD, 1999, p. 215).

Ao refletir que essas divindades também residem em nós, pode-se dizer que suas

energias, características e elementos, bem como os ciclos da natureza, são expressados através

de nossas experiências. Nesse sentido, exemplifico, através das(os) orixás mais desenvolvidos

nesta dissertação, o seguinte: quando a fluidez de minha comunicação se presentifica, é Exu

que move o meu discurso; ao enfrentar meus medos e desafios diante da vida, eu guerreio como

Ogum; quando me indigno frente às injustiças do mundo e luto por uma sociedade mais

igualitária, é a coroa de Xangô que impera nos meus atos; quando eu me liberto de meus

opressores, são os ventos de Iansã que banem todas as violências que já vivenciei; quando eu

alimento o meu amor próprio e compreendo que minha beleza não é frágil, e sim empoderada,

são as águas douradas de Oxum que me purificam e me enriquecem; quando eu movo as minhas

emoções e crio ondas ora tranquilas, ora intensas, é Iemanjá generosa que me permite navegar

por seus mares; e quando eu brinco com as crianças, são os Ibejis que fazem a festa, nos alegram

e se divertem junto de nós. Por mais que tenhamos uma(um) orixá que rege e é dona(o) da nossa

cabeça –com quem somos mais parecidos –, outras(os) podem circular em nossa coroa

espiritual, e cada divindade possui uma função específica em nossa vida e na sociedade. Quando

poluímos ou violentamos a natureza, não são apenas essas(es) deusas(es) que estamos

machucando: é também a parte de nós que se espelha nas terras, nas matas, nos ares e nas águas,

e o fogo que poderia purificar acaba externalizando o seu lado negativo, o de destruição.

Como convivermos harmoniosamente com a natureza através de posturas de

destruição? Como respirarmos um ar tão poluído inflamado por desmatamentos e incêndios,

como os que assolam a Amazônia, afetando o nosso planeta, e que de forma recorrente se faz

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120

presente nas discussões mundiais sobre preservação do meio ambiente? Quantas pessoas ainda

precisarão ser soterradas em desastres não-acidentais, como os de Mariana e Brumadinho?

Como viver bem e com saúde, se em muitos alimentos que comemos há venenos (agrotóxicos)

e as sementes são transgênicas (geneticamente modificadas em laboratórios), situações muitas

vezes naturalizadas em nossa sociedade? Como inverter a lógica predominante, que ao apostar

na doença, e não na saúde, tem aumentando o surgimento de novas doenças, alavancando a

indústria farmacêutica, visando ao lucro? Quem serão os próximos assassinados além de

indígenas, negros, mulheres e LGBTQIAP+21? Quantas crianças e adolescentes precisarão

passar fome, sofrer violência sexual e até mesmo se prostituir, ao invés de brincar e estudar?

Até quando a nossa população sofrerá com péssimas condições em termos de saúde pública,

saneamento básico e ensino? Vamos realmente deixar que as nossas universidades públicas se

privatizem para atender aos interesses do capital e do lucro? Quantos terreiros de Umbanda e

Candomblé ainda precisarão ser destruídos para dolorosamente darem visibilidade ao fato de

que, no Brasil, existe preconceito, racismo e intolerância religiosa?

Infelizmente o rosto brasileiro é pintado por homens brancos – um rosto distorcido,

violento, e que não condiz com a real e atual face do Brasil: uma face de diversos rostos e

realidades, e majoritariamente de negros(as), mestiços(as), indígenas e pessoas em situação de

refúgio. O universo das(os) orixás, portanto, toca não apenas nas feridas raciais e religiosas,

mas em tantas outras que, por vezes, não queremos enxergar.

Foi também através dos mitos de orixás e, principalmente, com a referência do livro

Omo-Oba: histórias de princesas (OLIVEIRA, 2009) que pude perceber a importância do

enaltecimento do empoderamento feminino, que nós, mulheres, também carregamos através da

relação com nossas ancestrais e, especificamente nesse contexto, com as orixás femininas.

Porém, muitas vezes me recordo do apagamento e silenciamento desse empoderamento em

minha vida e na vida de muitas mulheres cujos registros de violência familiar e urbana (bem

como de feminicídios) crescem assombrosamente e infelizmente. Ainda somos submetidas a

essa violência, em decorrência de um modelo de sociedade machista e patriarcal, como é a

brasileira.

Felizmente, hoje posso reconstruir-me e minimizar as feridas emocionais vivenciadas

em antigas relações abusivas, o que decerto me faz construir um outro olhar, mais atento, não

apenas para mim, mas também para meninas e meninos, a fim de que essas crianças não

21 Sigla que se refere a pessoas que são Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer/Questionando, Intersexo,

Assexuais/Arromânticas/Agênero, Pan/Poli ou outros.

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reproduzam relações de submissão e dominação nas perspectivas étnico-raciais, de gênero e de

outras ordens.

Assim sendo, cabe dialogar com Oliveira (2018), quando a autora explicita na sua obra

a relevância de uma abordagem que visa ao empoderamento feminino calçado na ancestralidade

africana:

Tal leitura é fundamental também por revelar princesas, que são na realidade rainhas,

que não estão preocupadas com casamento aos 15/16 anos com um homem jovem,

rico e branco, montado num cavalo também branco; essas princesas mostram um jeito

autônomo de ser associado aos elementos da natureza, trazendo a ideia de que cada

uma de nós guarda dentro de si um poder incrível que nos dá força para enfrentar

qualquer situação, porque carregamos o poder da transformação como grande mistério

e ferramenta para a nossa libertação: uma realeza feminina capaz de se transformar

em abelhas, borboletas ou mesmo búfalos, o que revela algo no trato das questões

raciais em territórios racistas e sexistas como vivemos. A depender da situação, devo

sobrevoar as pessoas para compreender o que de fato está ocorrendo, aí eu procurarei

a energia da borboleta; em outras situações, eu devo adoçar com firmeza as pessoas

que estão amargas, então procurarei a energia da abelha; em outros momentos devo

ser capaz de trazer para o campo de ação a energia de um búfalo, porque é com força

e determinação a resposta a ser dada às pessoas (OLIVEIRA, 2018, on-line).

Destaco alguns trechos da história Oiá e o búfalo interior – Oiá é um outro nome de

Iansã –, que compõe também o livro e caracteriza o que a autora explicitou acima.

Desde criança, Oiá tinha como atributos a beleza, a graça, a rapidez, a determinação

e a genialidade. Era de fato uma menina guerreira. Mas a menina Oiá tinha

conhecimentos que ninguém mais possuía: ela podia transformar-se em animais.

Dentre eles, o búfalo era o que ela mais gostava (OLIVEIRA, 2009, p. 9).

[…] Ogum viu sua amiguinha parar, olhar para os lados e ir atrás de uma árvore,

quando... – Mas o que é isto? – gritou Ogum. Era um búfalo, um búfalo filhote, um

búfalo que sorria e que corria como o vento e que, conforme corria, fazia levantar um

poeirão vermelhão do chão (OLIVEIRA, 2009, p. 13).

Ao que Oiá respondeu: - Toda menina, toda mocinha e toda mulher tem dentro de si

a força e o poder de um animal selvagem sagrado que, em certos momentos, devem

ser colocados para fora, devem explodir para o universo com a mensagem de que

fazemos parte de tudo isto[…] (OLIVEIRA, 2009, p. 15).

A autora caracteriza em sua tese de doutorado em Educação, Candomblé de Ketu e

Educação: Estratégias para o empoderamento da mulher negra (OLIVEIRA, 2008), um

momento específico nas vivências religiosas do Candomblé: o xirê das(os) orixás, a festa

pública onde homenageiam as divindades, através de louvações, cânticos e danças.

Neste âmbito, a autora explicita que, por meio do ato de incorporar (receber espíritos

e divindades nos corpos dos fiéis, filhas/os de santo), as(os) orixás narram suas histórias através

do corpo, compartilhando com a comunidade princípios que as(os) reafirmam como

protetoras(es) dos humanos e ancestrais negras(os) vinculados à realeza:

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122

Os orixás retornam para dançar e reviver trechos de suas histórias de vida diante

daquela grande família. Essa segunda entrada é marcada pela elegância das vestes que

recobrem os corpos dos iniciados, por um motivo justo: naquele momento, os

iniciados estão incorporados com seus respectivos orixás. É o momento tão

aguardado: aquele em que os orixás se revelam de forma concreta a todos os presentes;

é o momento em que o orixá vem brincar e compartilhar energias positivas de

prosperidade, de cura, de amor e de equilíbrio de vida. Assim, os orixás, mulheres e

homens divinizados, adentram o salão demonstrando toda a pompa que somente reis

e rainhas portam em seus semblantes, em suas posturas corporais e em suas

ferramentas de poder (OLIVEIRA, 2008, p. 79).

São divindades que estão sempre prontas(os) para atender aqueles que acreditam

nelas(es), seus fiéis e filhas(os), ou mesmo pessoas que necessitam de alento e conforto:

As pessoas se jogam aos pés dos seus orixás preferidos, entregam presentes, gritam,

sorriem, aplaudem: enfim, querem estas junto dos orixás. Enfim, é pura emoção,

porque aquelas deusas e deuses não se negaram a estar próximos de pessoas comuns,

pelo contrário: com humildade e satisfação, eles vêm compartilhar poder com todos

os presentes. Dançam, abraçam, gesticulam, abençoam, aconselham: enfim,

manifestam-se como partes integradas e integrantes do coletivo (OLIVEIRA, 2008,

p. 79).

Ao compreendermos que as divindades estão próximas e suas energias residem em

nós, tornamo-nos seres muito mais conscientes de nosso lugar e atuação no mundo, sempre

visando ao bem do coletivo.

Ali, não existem mais estudantes, doutores, empregadas domésticas, prostitutas,

auxiliares de escritório, o que existem são rainhas e reis que chegaram para

compartilhar o axé, a energia vital, com todos ali presentes; o que prevalece é a ligação

entre o sagrado e o profano revelando, ainda que de forma muito delicada, que existe

uma linha muito tênue, entre deuses, deusas e pessoas comuns ou que, de fato, nosso

corpo é um templo sagrado e guardamos, dentro dele, nossas divindades, expondo-as

em momentos raros, porém coletivos, visando ao bem-estar do grupo (OLIVEIRA,

2008, p. 80-81).

A autora questiona e procura assinalar possibilidades sobre qual a função do dançar

dos orixás no Candomblé, sobre as quais vejo relações com a minha pesquisa, no sentido das

experienciações corporais que foram propostas a partir desse universo.

É possível que seja buscar o êxtase coletivo para revelar, a todos, que nossos corpos

são habitats naturais em perfeita comunhão com a natureza e abrigam corporeidades

africanas capazes de provocar uma grande revolução pessoal e social. Esses corpos

são os grandes receptáculos e guardiões da nossa ancestralidade africana, conhecidos

por nós como orixás, que devidamente acordados, vêm a público para mostrar a

possibilidade de seus mitos estarem sendo revividos por seus fiéis, o que possibilita a

fácil resolução de qualquer problema. Os corpos expressam, a partir da dança dos

orixás, fragmentos de suas vidas e possibilidades de cura dos mais variados aspectos

da vida humana (OLIVEIRA, 2008, p. 81).

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A partir dessas articulações, compreende-se que orixás são divindades muito distantes

das imagens demoníacas que foram associadas historicamente a elas(es) – e que, por vezes,

ainda podem ser. Eu não conheço um demônio que se preocupe em preservar a natureza e

auxiliar o próximo. Seriam estes demônios (na cabeça daqueles que assim o chamam) aqueles,

internos, que algumas pessoas não querem enfrentar? Sim, pois é mais fácil continuar em uma

redoma classista, purista, machista, preconceituosa, racista e violenta, enquanto muitos

realmente sofrem com essas segregações e humilhações.

Pode-se compreender, portanto, que orixás são ancestrais divinizadas(os) que abrem

portais para que possamos traçar caminhos. Nesta pesquisa, procuro percorrê-los galgada nas

perspectivas afro-referenciadas. Essas perspectivas concebem o ser humano como parte da

natureza, e a partir das relações com a cultura, os mitos, a espiritualidade e o coletivo. Assim

sendo, essas divindades permitem que lutemos por uma sociedade mais justa, humanitária e

democrática.

Esse universo também provoca um estado de abertura e respeito para com o outro, pois

através das experiências compartilhadas podemos aprender mutuamente. E, como é possível

perceber através do recorte da figura dos griots, a tradição oral africana vai além do ato de

contar histórias; é uma transmissão intimamente ligada ao respeito às tradições, galgada nos

conhecimentos transmitidos por ancestrais.

Nas sociedades africanas, a oralidade é um elemento central na produção e

manutenção das mais diversas culturas, dos valores, conhecimentos, ciência, história,

modos de vida, formas de compreender a religiosidade, arte e ludicidade. A palavra

falada, para os povos africanos, possui uma energia vital, capaz de criar e transformar

o mundo e de preservar os ensinamentos. As narrativas orais são registros tão

complexos como os textos escritos. Essas narrativas se articulam à musicalidade, à

entonação, ao ritmo, à expressão corporal e à interpretação. São guardadas e

verbalizadas por narradores ou griôs, treinados desde a infância no ofício da palavra

oral. Eles se apropriam e transmitem crenças, lendas, lições de vida, segredos, saberes,

e têm o compromisso com aquilo que dizem (BRASIL, 2014, p. 34).

Tradições estas de base sólida, porém não rígidas. Por vezes, é necessário que as

sociedades se adaptem ou reestruturem-se a partir das mudanças sociais, culturais e

tecnológicas, mas preservem a essência: “Eu ensinei aos reis a história dos seus ancestrais, a

fim de que a vida dos antigos lhes sirva de exemplo, pois o mundo é velho, mas o futuro vem

do passado” (NIANE, 1960, p. 9 apud BERNAT, 2013, p. 51). Dialogo também com Vansina

(2010), quando afirma:

Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação

diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais,

venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é, a tradição oral. A

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tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de

uma geração para outra. Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois

palavras criam coisas. Isso, pelo menos, é o que prevalece na maioria das civilizações

africanas (VANSINA, 2010, p. 139-140).

“Palavras criam coisas”, pois elas possuem axé – que, para o povo Iorubá, significa

“força vital”, ao evocar poder ancestral e pulsão de vida. Assim nos indica o mestre da tradição

oral africana e escritor Hampaté Bâ: “Se a fala é força, é porque ela cria uma ligação de vaivém

(yaa-warta, em fulfulde) que gera movimento e ritmo, e, portanto, vida e ação […]” (BÂ, 2010,

p. 172).

Quando narro os mitos que escolhi narrar, todo o meu ser se move em direção ao

rememoramento do que está inscrito em minha história corporal, abrindo-me para

possibilidades imaginativas e criativas. Assim, enquanto contadoras(es) de histórias, podemos

criar ou possivelmente dar formas ao invisível, ao soprarmos ou desenharmos palavras no ar,

para tornar críveis as histórias que queremos contar.

No momento em que me descobri como contadora de histórias, momento frenético, fui

engolindo e sendo engolida pelas histórias. Tenho a necessidade de abocanhar as palavras e

deixar que se vistam de meu corpo, pintem-no e enfeitem-no de maneira versátil. A palavra-

corpo para mim é como a correnteza dos rios ou as ondas do mar, pois, ondulando, cria

movimentos, ora sutis, ora intensos, um mergulhar interno e externo de múltiplas palavras e

sensações. Quando encarno a palavra, não é somente eu que recrio as histórias: os meus

ancestrais africanos também falam, brincam e dançam comigo, através de mim.

Nessa confluência, Hampaté Bâ reflete, a partir de sua própria experiência de vida,

conceitos sobre a oralidade enquanto tradição africana, vetor de conexão ancestral e espiritual:

“E se é considerada como tendo o poder de agir sobre os espíritos, é porque sua harmonia cria

movimentos, movimentos que geram forças, forças que agem sobre os espíritos que são, por

sua vez, as potências da ação” (BÂ, 2010, p. 174).

Mente, corpo e espírito – em diversas tradições ou cosmovisões africanas,

diferentemente de um contexto ocidental – são compreendidos de maneira integral. Há uma

vivência experienciada na vida que percebe o humano a partir desses três eixos interligados

entre si. Portanto, a oralidade africana é expressada pela fala, pelo gesto, pelo movimento, em

um corpo que está na terra, mas que também se conecta e expressa o espiritual.

Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais útil que seja, nem sempre é vivido,

enquanto o conhecimento herdado da tradição oral encarna-se na totalidade do ser. Os

instrumentos ou ferramentas de um ofício materializam as Palavras sagradas; o

contato do aprendiz com o ofício o obriga a viver a Palavra a cada gesto (BÂ, 2010,

p. 189).

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Reflito que, apesar de não ter tido uma iniciação em África, minha necessidade e

tentativa de aproximação com as perspectivas africanas em meu trabalho, na arte e na educação,

simboliza meu encontro pessoal, espiritual e cultural com uma ancestralidade vinculada as(os)

orixás.

Assim sendo, uma perspectiva que me interessa nesta dissertação é apontada por

Ligiéro (2011), ao se ancorar no filósofo do Congo, Bunseki K. Kia Fu-Kiau, sobre a importante

tríade “Cantar-Dançar-Batucar” que este último pensador propõe. Ligiéro (2011), dentro de sua

pesquisa, reflete que essa tríade pode caracterizar algumas performances afro-brasileiras:

Ao considerar a junção das artes corporais às musicais e, sobretudo, acrescido do uso

do canto como algo simultâneo e percebido como uma unidade dentro da performance

africana, Fu-Kiau destaca um dispositivo que, sem dúvida, continua sendo

característico das performances da diáspora africana nas Américas – não é possível

existir performance negra africana sem este poderoso trio, e o mesmo é aplicável em

relação às performances afro-brasileiras (LIGIÉRO, 2011, p. 108-109).

Na ambiência das oficinas, por exemplo, as crianças eram estimuladas a

experienciarem seus corpos brincantes através do despertar do corpo ao som do tambor africano

djembe, e a se transformarem em animais na floresta, estimulados por música cantada por mim

– entre outros exemplos, que serão mais explicitados no próximo capítulo.

Ainda nessa confluência, é importante cruzar alguns conhecimentos propostos pela

poetisa, professora e pesquisadora da cultura afro-brasileira, Leda Maria Martins (MARTINS,

2003):

Cada uma dessas práticas (o teatro, a dança, o ritual, o esporte, as atividades lúdicas,

os jogos, encenações, coletivas, atos artísticos e mesmo expressões pulsionais

emotivas) são modos subjuntivos, liminares, gêneros performáticos cujas convenções,

procedimentos e processos não são apenas meios de expressão simbólica, mas

constituem em si o que institui a própria performance. Ou seja, numa performance da

oralidade, por exemplo, o gesto não é apenas uma representação mimética de um

sentido possível, veiculado pela performance, mas também institui e instaura a própria

performance (MARTINS, 2003, p. 65).

Nesse sentido, aproximo-me da performance entrelaçada à perspectiva africana, que

ressalta um corpo amalgamado de memória ancestral:

Nas danças rituais brasileiras, sejam de ascendência banto ou nagô-iroubá, as

coreografias côncavas e convexas que criam um espaço de circunscrição do sujeito e

do cosmos remetem-nos não apenas ao universo semântico e simbólico da ação ali

reapresentada, mas constituem em si mesmas a própria ação instituída e constituída

pela performance do corpo. Dançar é performar, inscrever. A performance ritual é,

pois, um ato de inscrição. Nas culturas predominantemente orais e gestuais, como as

africanas e as indígenas, por exemplo, o corpo é por excelência, o local da memória,

o corpo em performance, o corpo que é performance. Como tal esse corpo/corpus não

apenas repete um hábito, mas também institui, interpreta e revisa o ato reencenado.

Daí a importância de ressaltarmos nas tradições performáticas sua natureza meta-

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constitutiva, nas quais o fazer não elide o ato de reflexão; o conteúdo embrinca-se na

forma, a memória grafa-se no corpo, que a registra, transmite e modifica

dinamicamente. O corpo, nessas tradições, não é, portanto, apenas a extensão de um

saber reapresentado, e nem arquivo de uma cristalização estática. Ele é, sim, local de

um saber em contínuo movimento de recriação formal, remissão e transformações

perenes do corpus cultural. Nas tradições rituais afro-brasileiras, alerquinadas pelos

seus diversos cruzamentos simbólicos constitutivos, o corpo é um corpo de adereços:

movimentos, voz, coreografias, propriedades de linguagem, figurinos, desenhos na

pele e no cabelo, adornos e adereços grafam esse corpo/corpus, estilística e

metonimicamente como locus e ambiente do saber e da memória. Os sujeitos e suas

formas artísticas que daí emergem são tecidos de memória, escrevem história.

(MARTINS, 2003, p. 78).

As relações entre oralidade e corporeidade em perspectivas afro-referenciadas são

marcantes, justamente por ser o corpo, esse produtor de saberes, constituído por narrativas e

manifestações experienciadas no mundo. É, portanto, um corpo que se dispõe, que é aberto,

poroso e brincante. Um corpo que me remete aos griots ou djeli, e que evocam uma

corpo(oral)idade: pois ele evidencia as histórias com o axé, a força de minhas(meus) ancestrais

orixás. Texto e corpo são um só, as histórias são encarnadas, presentificadas; são como um

presente, uma oferenda dessas(es) orixás para nós, que a escutamos e a experienciamos.

Após tecer estas considerações, caminho em direção às narrativas construídas por

ocasião das experienciações junto as(os) participantes. Desta maneira retomo e articulo

conhecimentos de alguns autores já apresentados, com os saberes dimensionados nas giras ou

rodas afro-brincantes desta pesquisa.

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CAPÍTULO 3 – BRINCANDO COM OS GÊMEOS IBEJIS E OUTRAS(OS) ORIXÁS

Cirandando com as crianças e as(os) orixás

Nessa ciranda colorida de mãos dadas com deusas e deuses

Brinquei e dancei com meninas e meninos

Nas histórias e brincadeiras nos encantamos e nos embalamos

Éramos princesas e príncipes, rainhas e reis, guerreiras e guerreiros

Aos sons da natureza e ao rufar dos tambores

Giramos sorrimos e nos divertimos nesse embalo afroancestral

Com a mãe Iemanjá embarcamos nos seus mares

Com Oxum nos embelezamos e nos refrescamos em suas águas doces

Com Iansã dançamos os seus ventos

Com Oxóssi caçamos e desbravamos as suas matas

Com Xangô criamos o seu fogo guerreamos e fomos coroados

Com Ogum abrimos os caminhos e lutamos por suas terras

Aonde os Ibejis cavaram buraquinhos e chegaram até a fonte

Para junto à deusa sagrada a água conquistarem e assim retornarmos ao povoado

Para reavivarmos as memórias aquecermos os corações e nos empoderarmos

Com as belas, alegres, festeiras e lúdicas

Negritudes afrodescendentes

(Lia Braga, Fortaleza/CE, outubro 2019)

4.1 CONSTRUINDO SABERES CIRCULARES

Ao experienciar esta pesquisa com as crianças e as professoras da turma participante,

partilhamos uma lúdica viagem ao universo das(os) orixás, mutuamente afetuosa, com diversas

emoções e construção de conhecimentos. Foram vivenciados inúmeros momentos intensos,

divertidos, problematizadores e com uma riqueza de descobertas e desafios instigantes.

FIGURA 17 – ORÍKÌ'S, AS EVOCAÇÕES

PODEROSAS DOS ORIXÁS

Fonte: Google Imagens (internet).

FIGURA 18 – CIRANDA DE LIA

Fonte: Arquivo da pesquisa.

Edição: Lia Braga e Ronildo Nóbrega.

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Para articular, a partir desse processo, relações embebidas em pensamentos afro-

referenciados, proponho criar unidades circulares que trazem em sua essência os principais

temas vivenciados na pesquisa; mas antes é necessário mencionar algumas referências.

Primeiramente, no desenvolvimento desta construção, inspirei-me nas proposições de

Oliveira (2008), que em sua tese de doutorado tece as relações “corpo-natureza”, “corpo-mito”,

“corpo-dança”, “corpo-identidade” e “corpo-feminino”, explicitando concepções afro-

referenciadas a partir de conhecimentos tradicionais de terreiros de Candomblé da nação Ketu.

A autora revisita essas relações no texto Religiosidade de Matriz Africana:

Desconstruindo Preconceitos (OLIVEIRA, 2010), abordando a visão de algumas integrantes

das comunidades tradicionais de terreiro. Aqui, irei me deter em breves explicitações sobre as

relações “corpo-natureza”, “corpo-mito” e “corpo-dança”, pois considero que elas perpassam

minha pesquisa.

A relação “corpo-natureza” expressa uma intrínseca percepção de unidade, integração,

sustentabilidade e respeito entre ser humano e natureza: “No Candomblé a gente tá muito ligada

à água, à terra e à folha, a gente não pega uma folha a mais do que precisa, a gente trabalha com

a terra porque é lá que plantamos o que nós vamos comer e na água está a fertilidade dos peixes”

(EBOMI VERA D’OXUM apud OLIVEIRA, 2010, p. 58).

A relação “corpo-mito” potencializa a identidade, o empoderamento e o fortalecimento

feminino, promovendo diálogos entre meninas e meninos: “Eu costumo dizer que os orixás nos

mitos têm algo de mulheres muito guerreiras […]. A gente precisa tirar esses conhecimentos

dessas mitologias e passar para o dia atual, porque fortalece” (EBOMI VERA D’OXUM apud

OLIVEIRA, 2010, p. 58).

Na relação “corpo-dança” existe um sentido, uma entrega, um reconhecimento e uma

conexão com a energia de uma(um) ancestral divinizada(o), através de uma experiência vivida

no corpo:

[…] como será que dança para cada orixá? Comecei a pesquisar e comecei a pensar:

‘se essa energia é capaz de me dominar dessa forma, de me dar esse poder, ela pode

fazer muito mais.’ E a dança mexe com todas as partes de meu corpo, você dança e

está naquele contato, dançando para Oxum você está lá fazendo todas as reverências

para aquela mulher […] (EBOMI ELIANA D’OXUM apud OLIVEIRA, 2010, p. 58-

59).

Inspirei-me também nos Valores Civilizatórios Afro-Brasileiros, do projeto A Cor da

Cultura22 (Figura 19):

22 “A Cor da Cultura é um projeto educativo de valorização da cultura afro-brasileira, fruto de uma parceria entre

o Canal Futura, a Petrobras, o Cidan - Centro de Informação e Documentação do Artista Negro, o MEC, a

Page 129: LIA FRANCO BRAGA

129

No portal A Cor da Cultura, pode-se perceber algumas particularidades referentes a

esses valores, e aqui irei me deter em alguns deles, por considerar que foram aqueles

vivenciados de maneira mais intensa junto as(os) participantes nesta pesquisa – apesar dos

demais também terem circulado em minha proposição.

A circularidade possui centralidade nas vivências comunitárias, por congregar todos

e evidenciar união, ciclicidade e transitoriedade:

Todos nós conhecemos o prazer que advém do ato de sentar em roda com amigos para

contar histórias, fazer música, brincar com jogos ou manifestar a religiosidade. Os

próprios valores civilizatórios são bons exemplos de circularidade. A vida é cíclica.

Podemos estar muito bem agora e numa posição ruim depois até que voltemos a um

estado satisfatório. A humanidade inteira permanece unida por este sentimento

circular (www.acordacultura.org.br/kit, on-line).

A corporeidade como eixo mobilizador de experiências individuais e coletivas nos

reporta a memórias sociais e culturais:

Este conceito nos ensina a respeitar cada milímetro do corpo humano, que deve estar

presente em cada ação e em diálogo com outros corpos. As demandas corporais devem

ser consideradas. Afinal, o corpo atua, registra nele próprio a memória de várias

maneiras, seja através da dança, da brincadeira, do desenho, da escrita, da fala. Das

Fundação Palmares, a TV Globo e a Seppir - Secretaria de políticas de promoção da igualdade racial. O projeto

teve seu início em 2004 e, desde então, tem realizado produtos audiovisuais, ações culturais e coletivas que visam

práticas positivas, valorizando a história deste segmento sob um ponto de vista afirmativo”. Informações extraídas

do site oficial do projeto, <http://www.acordacultura.org.br/>.

FIGURA 19 – VALORES CIVILIZATÓRIOS AFRO-BRASILEIROS

Fonte: Google Imagens (internet).

Page 130: LIA FRANCO BRAGA

130

músicas às danças, com tudo o que elas anunciam e denunciam. Os corpos dançantes

revelam memórias coletivas [...] (www.acordacultura.org.br/kit, on-line).

A musicalidade como um valor agregado à corporeidade – corpo este que dança e vibra

sons e melodias afrodescendentes:

Famosa no mundo inteiro pela sua qualidade inconteste, a música brasileira tem os

dois pés bem fincados no Continente Negro. Quem resiste aos encantos de uma

batucada? A musicalidade, a dimensão do corpo que dança e vibra em resposta aos

sons só reafirma a consciência de que o corpo humano também é melódico e

potencializa a musicalidade como um valor [...] (www.acordacultura.org.br/kit, on-

line).

A ancestralidade nos reporta a uma teia ancestral que nos guia a cada passo, tecida

nas memórias do passado e reavivadas no presente, construindo o nosso futuro:

Quando se pensa em ancestralidade, faz-se uma imediata ponte com a história e a

memória. Convém não esquecer o passado. Não há fórmulas complexas para vivenciar

o que é, de fato, a ancestralidade. Quer provar? Então saia em busca do relato dos

mais velhos, que trazem o rico imaginário afro-brasileiro [...]

(www.acordacultura.org.br/kit, on-line).

Com a ludicidade aprendemos de maneira divertida e coletiva, com os mais velhos,

juntos aos mais novos:

Entre suas variadas utilidades, os jogos sempre viabilizaram o aprendizado. Também

serviram para transmitir as conquistas da sociedade em diversos campos do

conhecimento. Quando os membros mais velhos de um grupo revelam aos jovens

como funciona um determinado jogo de tabuleiro, por exemplo, eles transmitem uma

série de conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural daquele grupo [...]

(www.acordacultura.org.br/kit, on-line).

A oralidade como elo entre memória, passado e presente, que se corporifica em nossos

atos, gestos e ações, mobilizando a expressão e a inteireza do nosso ser:

Herança direta da cultura africana, a expressão oral é uma força comunicativa a ser

potencializada. Jamais como negação da escrita, mas como afirmação de

independência. A oralidade está associada ao corpo porque é através da voz, da

memória e da música, por exemplo, que nos comunicamos e nos identificamos com o

próximo (www.acordacultura.org.br/kit, on-line).

Além destas referências, os diferentes momentos vivenciados na pesquisa me

inspiraram a construir no contexto desta dissertação as unidades circulares Criança Artista,

Criança Natureza, Criança Orixás e Criança Negritude. Para cada uma delas, afloram

reflexões a partir de suas características específicas e dos temas mais instigantes que emergiram

durante o processo vivenciado. Ainda procurei perceber como alguns conceitos-chave que

Page 131: LIA FRANCO BRAGA

131

nortearam o desenvolvimento da pesquisa foram se vinculando ou se manifestando no contexto

dessas unidades, com especificidades. Para uma melhor visualização, organizei um quadro com

as respectivas unidades circulares e conceitos-chave, além de ter criado uma figura para

apresentá-los de forma mais integrada e circular.

QUADRO 4 – CIRCULARIDADES AFRO-BRINCANTES

Unidades Circulares Conceitos-chave

Criança Artista: experienciações das crianças

com processos criativos a partir de elementos

lúdicos e artísticos;

Corpo-Poroso: corpo aberto, maleável, que se

permite a relação entre respiração e criação. Petit

(2015) apresenta pistas que me fazem refletir esta

última relação;

Criança Natureza: experienciações das crianças

com elementos e características vinculadas à

natureza, tais quais, ar, terra, fogo, água e outros;

Corpo Brincante: corpo que é brincante no

próprio ato de jogar e brincar. Conceito vinculado

à cultura popular e contextualizado em minha

pesquisa monográfica (BRAGA, 2017);

Criança Orixás: experienciações das crianças

com as deusas e os deuses africanas(os), através

da oralidade e da corporeidade;

Corpo-Dança Afroancestral: corpo que

experiencia a dança ou expressões corporais,

conectado e emergido em uma ancestralidade

africana. Conceito criado e fundamentado por

Petit (2015);

Criança Negritude: experienciações das crianças

com manifestações simbólicas, culturais, dentre

outras, que perpassam a negritude, e também,

expressões positivas como valorização,

reconhecimento, etc. ou negativas, como

preconceito, racismo, etc.

Criança Performer: a criança é performer quando

assume o seu estado de presença no mundo,

através de sua realidade, bem como em contextos

de criação artística. Conceito criado e

fundamentado por Machado (2010b).

FIGURA 20 – CIRCULARIDADES AFRO-BRINCANTES

Concepção: Lia Braga.

Arte: Daliana Medeiros Cavalcanti.

Page 132: LIA FRANCO BRAGA

132

A partir de alguns questionamentos e sugestões da banca no exame de defesa desta

dissertação, bem como com a contribuição de minha irmã Júlia Braga para a criação desta

figura, escolhi o símbolo do infinito como base e elo entre as unidades circulares e os conceitos-

chave. Sobre o seu significado é possível destacar que ele “[...] representa eternidade,

divindade, evolução, amor e equilíbrio entre o físico e o espiritual. É representado por um oito

deitado, ou seja, uma curva geométrica com um traço contínuo. Simboliza a inexistência do

início e do fim [...]”23.

Neste sentido, acredito que este símbolo reflete alguns valores afro-referenciados,

principalmente os princípios de integração, circularidade e ciclicidade. Contextualizando-o na

pesquisa, ele fora escolhido para que pudesse imbricar dentro de si as unidades circulares e os

conceitos-chave com a ideia do eterno retorno do que vai e do que vem de maneira fluída e

constante, como os ciclos da natureza se apresentam na vida, sem um início ou fim específico.

Na criação e na construção conjunta com minha amiga Daliana Cavalcanti, escolhemos

o marrom como cor base para se fazer presente no símbolo, com algumas nuances de tons, pois

os mesmos nos remetem à terra, aos chãos sagrados de solos africanos. Solos estes que

germinam e brotam unidades e conceitos desta pesquisa, e que são circundados e embelezados

com o amarelo dourado da deusa Oxum. Também elencamos imagens brincantes para

acompanhar estas nomenclaturas e dar mais vida e riqueza a elas.

Neste contexto, escolhemos a orixá Oxum como o centro da figura, estando esta deusa

dentro do seu próprio espelho (abebé), o espelho do encantamento. Oxum e seu abebé refletem

a união dos cruzamentos das circularidades afro-brincantes, unidades e conceitos que estão

dentro do símbolo do infinito e se movem na dinâmica das águas doces desta deusa. Suas

correntezas suaves proporcionam que estas circularidades se renovem a cada leve e ainda assim

intenso vai e vem de suas águas.

Mamãe Oxum, com toda a sua beleza, graça, doçura, sensibilidade e riqueza, é água

fértil que gesta e faz prosperar as crianças, estando sempre em conexão com as mesmas. Dos

seus rios nascem meninas e meninos, como a continuidade desta ancestralidade que reafirma

valores e cosmovisões afro-referenciadas. Assim sendo, possibilitar que as crianças revelem

suas potencialidades artísticas, a partir e em comunhão com a natureza e as(os) orixás,

evidenciam as negritudes afrodescendentes. Com isto, o ato de respirar e de criar promove que

o brincar, o dançar e o performar das crianças se expressem organicamente e circularmente

nesta infinidade de possibilidades, de entrecruzamentos e diversos encantamentos.

23 Definição retirada de https://www.dicionariodesimbolos.com.br/infinito/.

Page 133: LIA FRANCO BRAGA

133

O Quadro 4 e a Figura 20, anteriormente apresentados, constituem um recurso

metodológico construído para materializar o conjunto de elementos que compõem o todo, as

Circularidades Afro-Brincantes e seus vínculos. Assim sendo, as unidades circulares e os

conceitos-chave me guiarão no processo de tessitura deste capítulo, que é central na minha

trajetória investigativa e, consequentemente, o mais desafiador.

Nesta construção, apresento algumas descrições fenomenológicas com o intuito de ser

o mais fiel possível em relação às experiências e narrativas das(os) participantes. Busquei ir ao

cerne do que fora experienciado, visando à redução fenomenológica para assim desvelar o

fenômeno vivenciado nesta pesquisa. As múltiplas descobertas e os achados com as crianças e

as professoras da turma desvendaram nossa experiência conjunta e orientaram as articulações

aqui tecidas.

4.2 AS CRIANÇAS E SUAS CRIAÇÕES ARTÍSTICAS

FIGURA 21 – JOGO/BRINCADEIRA CORPORAL “NÃO DEIXE O BALÃO CAIR”

Fonte: Arquivo da Pesquisa

Edição: Júlia Braga e Lia Braga

Neste tópico, irei me aprofundar mais na unidade circular Criança Artista, cuja

especificidade são as experienciações das crianças com processos criativos a partir de elementos

lúdicos e artísticos. Mas, antes, trarei de forma resumida minha aproximação inicial com o locus

da pesquisa, o NEI/Cap/UFRN, a fim de explicitar algumas abordagens desenvolvidas na

instituição que se aproximam com a referida unidade circular.

Desde novembro de 2018, realizei os primeiros contatos com a instituição, reunindo-

me presencialmente com a antiga coordenadora pedagógica da Educação Infantil. Depois, em

fevereiro de 2019, fui contatada pelo coordenador de projetos, e, posteriormente, em março,

Page 134: LIA FRANCO BRAGA

134

nos reunimos juntamente com a nova Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil, a fim de

explicitar algumas questões sobre a pesquisa.

Também participei de um ciclo de oficinas ofertadas pelo NEI, abordando diversos

temas. Minha participação foi importante para que eu pudesse compreender e dialogar com

algumas diretrizes e concepções desenvolvidas pela instituição ao longo do tempo.

Desde os encontros com os profissionais já citados nas reuniões sobre o meu projeto,

bem como a partir destas oficinas, percebi que minha pesquisa se afinava com a proposta

pedagógica e metodológica da instituição, e também com as formas de percepção sobre as

crianças.

Anteriormente a esse ciclo de oficinas, contatei a Professora Titular da turma

participante da pesquisa, e desde o princípio percebi sua abertura, de modo que socializei o

planejamento das oficinas. Na reunião seguinte, percebi, por parte da professora, acolhimento

e afinidade em relação à proposta, o que foi muito positivo. Dialogamos sobre o planejamento

e ajustamos algumas questões práticas, como dia e horário para a realização das oficinas, bem

como o encaminhamento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) aos

pais/responsáveis pelas crianças, termo este que permitiu a participação delas na pesquisa.

Na ocasião, ela mencionou algumas características da turma: duas crianças com

deficiência, a existência de diversidade étnica e física e o fato de algumas crianças serem muito

agitadas. Mencionou também que, certamente, elas iriam se afinar com a proposta, pois

gostavam muito de atividades corporais, tais como dança e teatro, e que, portanto, iriam se

sentir bem – que não teriam dificuldade ou rejeição diante das propostas vinculadas ao projeto.

Inclusive, a professora ressaltou em entrevista inicial, no dia 9 de maio de 2019, aspectos sobre

as crianças da turma: “Elas utilizam esse corpo, elas se colocam, elas são donas dos seus

processos criativos [...]”.

Como já explicitado anteriormente, trarei alguns exemplos da rotina escolar das

crianças, o que demonstra que elas vivenciavam atividades lúdicas e artísticas no cotidiano da

instituição – inclusive com a experienciação corporal, nas aulas com as professoras

responsáveis pela turma e nas aulas de teatro e música, com os seus respectivos professores.

Neste seguimento, a narrativa da Professora Substituta, em entrevista inicial cedida no dia 23

de maio de 2019, é bem elucidativa:

[...] a nossa rotina é constituída para as crianças, para o lúdico, então, são momentos

que eles participam. Nós brincamos, brincamos de brincadeiras típicas da infância,

ensinamos a brincar. Muitas crianças ainda não, não conseguem diferenciar

brinquedos de brincadeiras ou não conhecem algumas brincadeiras. Então nós

reservamos momentos fora da sala de aula para brincar de roda, nós temos o espaço

Page 135: LIA FRANCO BRAGA

135

faz de conta que nós brincamos e nesse faz de conta, as crianças podem, vestir

fantasias, usar desse momento para viver de situações [...] do dia a dia [...] em que

eles são protagonistas dessa história e, temos outros espaços dentro da escola que nós

usamos também, as aulas de música, têm a brinquedoteca, a própria biblioteca e o

momento de contação de história, é um momento de ludicidade de interpretação, onde

eles podem viver e recriar personagens.

Assim sendo, é possível articular essas especificidades mencionadas pelas professoras

com as considerações de Japiassu (2010, p. 78), quando o autor explicita: “Costumam-se

introduzir as atividades com a linguagem teatral por meio de jogos tradicionais infantis nos

quais é ressaltado algum aspecto original de teatralidade”.

Nesse sentido, a Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil, na entrevista

realizada no dia 06 de junho de 2019, salienta como as linguagens artísticas desenvolvidas nas

aulas de artes contribuem para o processo formativo das crianças:

[...] de modo muito significativo [...] entendemos também que as linguagens artísticas

envolvem a música, o teatro, a dança e as artes visuais, então são aspectos que são

contemplados [...] na nossa proposta e que ensinam muito as crianças, não só questões

relacionadas a esse conhecimento estético e crítico, né, mas também à questão da

expressão delas, de poderem... da criação, expressão, contextualização, de poder

apreciar, né, também de modo lúdico [...] É um dos recursos que nós estabelecemos

também pra questão da aprendizagem e do desenvolvimento das crianças.

Cabe revisitar em Braga (2017), a partir de diálogo com as contribuições do filósofo

em Educação e professor doutor no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas,

João Francisco Duarte Júnior (DUARTE JÚNIOR, 1981), ao mencionar que a partir da Lei de

Diretrizes e Bases da Educação/LDB nº 5.692/71 a Educação Artística tornou-se obrigatória no

ensino de 1º e 2º graus no Brasil, compreendendo os ensinos de música, teatro e artes plásticas.

Porém, insatisfeito com este direcionamento, o movimento arte-educação passou a

discutir e problematizar esta e outras questões, objetivando uma nova orientação vinculada ao

ensino de Arte por parte das entidades24.

A partir destas articulações e de avanços alcançados com a LDB de 1996, o ensino de

Arte tornou-se obrigatório nos diversos níveis da Educação Básica, sem, no entanto, indicar os

tipos de linguagens artísticas. Já na LDB de 2016 houve a inclusão específica das artes visuais,

24 A Federação de Arte-Educadores do Brasil/FAEB solicitou retificação do termo que designa a área de

conhecimento “Educação Artística” pela designação “Arte, com base na formação específica plena em uma das

linguagens: Artes Visuais, Dança, Música e Teatro”. A Federação ressalta que, na LDB de 1971, o ensino de Arte,

intitulada Educação Artística, considerada como “atividade educativa” e não como disciplina, gerou uma

consequência negativa: “a perda da qualidade dos saberes específicos das diversas formas de arte, dando lugar a uma

aprendizagem reprodutiva” (BRASIL, 2005, p. 1).

Page 136: LIA FRANCO BRAGA

136

da dança, da música e do teatro, como linguagens que constituem o componente curricular

obrigatório do ensino de Arte.

Marques (2012) explicita a importância da compreensão da arte como linguagem, ao

destacar a dança como potencialização da expressividade da criança na fruição do fazer artístico:

Partindo desse olhar para a arte, os processos criativos pelos próprios alunos tornam-

se vitais para que compreendam em seus corpos/mentes esses outros caminhos – os

deslocamentos – para as leituras de mundo. A dança [...] quando trabalhada como

linguagem – e não como um conjunto de passos a serem ensaiados, repetidos,

decorados mecanicamente e apresentados displicentemente – pode abrir caminhos

para que cada criança seja protagonista em/de seu próprio corpo, de seus próprios

movimentos, de sua própria dança, de sua própria vida, enfim. A dança, se

compreendida como arte, linguagem e conhecimento tem o grande potencial de abrir

canais para a expressividade da própria criança no universo da fruição e do fazer arte

(MARQUES, 2012, p. 62).

Nessa confluência é possível também dialogar com as contribuições de Alves (2019),

quando a autora articula as experiências da criança com a dança, o que amplia seus aprendizados

corporais e artísticos, bem como as interações sociais:

Vivenciar a dança na infância, além de poder conhecer aspectos da dança em si, a

criança pode experienciar novos estímulos motores, afetivos, criativos, sociais,

visuais, entre outros, e isso pode levá-la a se perceber como um ser expressivo, com

senso de confiança e convivência em grupo (ALVES, 2019, p. 228).

A autora também evidencia que o processo artístico e pedagógico, através do ensino

de dança, possibilita à criança se desafiar a partir das descobertas vivenciadas:

Ressaltamos que o ensino da dança precisa considerar as possibilidades e dificuldades

da criança, auxiliando-a a se conhecer e a se expressar corporalmente e desenvolvendo

a aquisição de novas habilidades e interações sociais. O relevante, nesse sentido, não

é restringir o ensino da dança em ensaios ou espetáculos para festas da escola. A

prioridade é possibilitar à criança a vivenciar processos pedagógicos de conhecimento

do corpo e de suas possibilidades motoras e expressivas no campo da arte de dançar

(ALVES, 2019, p. 231).

As abordagens interdisciplinares desenvolvidas na instituição NEI, envolvendo as

linguagens artísticas integradas à ludicidade, com certeza auxiliaram o processo de abertura e

envolvimento das(os) participantes diante desta proposta artística. A mesma agregou novos

conhecimentos e experiências às crianças e também às professoras responsáveis pela turma

participante, de maneira articulada com as diretrizes e concepções desenvolvidas na instituição.

Ainda convém destacar o desenvolvimento de atividades corporais com a turma, sendo

o corpo pensado e articulado a partir de estudos e práticas na instituição, conforme depoimento

da Professora Titular, na entrevista inicial:

Page 137: LIA FRANCO BRAGA

137

Também é uma característica da escola, a gente tá muito preocupado, a gente têm

grupos de estudo, que discutem o movimento e o corpo na infância né? Porque, o

corpo está presente né? Ali, é um fato, mas [...] é muito diferente eu sair [...] do ensino

fundamental [...] e voltei para a educação infantil, onde eles são muito o corpo, eu

acho que muito mais até, por N motivos. Então, é, um dos eixos que a gente trabalhou

esse ano já, foi, através da brincadeira, esse corpo nas brincadeiras [...] E aí a gente

têm também na proposta pedagógica, um trabalho com esses movimentos [...] Porque

assim, a gente faz, práticas de relaxamento, é, são pequenos detalhes [...] esse corpo

que, as vezes é muito travado, é muito rígido, então a todo momento, eu estou tentando

soltar esse corpo e o trabalho metodológico têm sido feito com as brincadeiras, dentro

da proposta... dentro do tema de pesquisa deles, que é o NEI [...].

No 1º dia de observação, em um determinado momento da rotina do dia, as crianças

fizeram uma roda em pé, pois a Professora Iemanjá havia proposto uma brincadeira com uma

música que estimulava experimentação corporal. Percebi que eles gostavam de se expressar

com o corpo, às vezes com movimentos rápidos e intensos, e às vezes caíam no chão. Nesse

sentido, as crianças expressaram seu Corpo Brincante, que é brincante no próprio ato de jogar

e brincar, estimulado pela proposição lúdica.

Nessa dinâmica, quando a professora sugeriu “corpo livre para voar!”, percebi também

a manifestação do Corpo-Poroso, aberto e maleável quando a menina Gatinha Folha fez

movimentos de soltar os quadris e outras crianças exploraram um pouco mais o espaço da sala.

Ainda nessa contextualização, a música inicialmente foi colocada em uma caixa de

som, mas a professora se lembrou da falta de luz daquele dia: algumas crianças caíram no chão

e disseram “Ah, eu estou morrendo!”. A expressão verbal e corporal delas me remete ao

conceito-chave Criança Performer e à contribuição de Machado (2010b), quando a autora

explicita que a criança é performer ao assumir o seu estado de presença no mundo, através de

sua realidade, bem como em contextos de criação artística.

Dialogo agora com outra situação, vivenciada na 4ª oficina, quando, ao contar a

história Os Ibejis são transformados numa estatueta (PRANDI, 2001), narrei que um dos

irmãos gêmeos Ibejis caiu em uma cachoeira, foi levado pela correnteza e morreu; demonstrei

a cena movimentando um dos dois bonecos que utilizei para representar este orixá.

A menina Gatinha Folha se aproximou devagar e decidida, pegou o boneco que estava

no chão, levou-o para trás da bolsa de palha e, ao retornar, disse: “Tá lá enterrado!”. Depois a

menina Cachoeira foi para trás da bolsa. A Professora Sol, que naquele dia me acompanhou,

chamou atenção para a menina voltar para o seu lugar. Gatinha Folha então correu para

verificar se o boneco estava no mesmo lugar que ela havia deixado, e só depois voltou para

perto das outras crianças.

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138

Essas situações vivenciadas sobre a morte e a maneira como as crianças relacionaram-

se com ela explicita o que Machado (2010b) expõe: “[...] haveria, na experiência da criança

pequena, uma ‘aderência às situações’ que a impede de representar o mundo: ela não representa,

ela o vive” (MACHADO, 2010b, p. 128). Na primeira situação, é como se a falta de luz abafasse

e reduzisse a vida das crianças, minguando seus corpos performáticos ao chão. Já na segunda,

a menina performou e personificou a morte “enterrando” o boneco, e ainda garantiu que

nenhuma perturbação o retirasse de lá, ao verificar que ele estava seguro atrás da bolsa.

Na 3ª oficina, mesmo sem cogitar inicialmente, decidi repetir o jogo/brincadeira

corporal Espelho, organizando as crianças em duplas ou trios a fim de brincarem de serem o

espelho, imitando umas às outras; primeiro uma se movimentava, e a outra repetia, depois

trocavam e alternavam os movimentos. Quando coloquei a música africana chamada Olélé

moliba makasi – Chanson africaine pour les enfants (avec paroles)25, a maioria das crianças

quis correr, e então solicitei que elas retornassem à dinâmica dos espelhos.

Nessa dinâmica, percebi uma linda experimentação por parte da menina Leoa Oxóssi,

que freneticamente se movimentava no seu eixo, com tremidinhas no corpo e movimentos que

lembravam a ondulação de ondas nos braços, de um lado para o outro; depois deu dois giros

em volta de si mesma e, nesse momento, com os braços juntos, parecia que ela segurava uma

bola. Depois a menina se deslocou pelo espaço, desacelerou o ritmo, fazendo movimentos mais

lentos, tocou em seus cabelos, girou em volta de si, juntou os braços com a imagem da bola e,

posteriormente, com os braços soltos, a imagem era a de que estivesse escorrendo água através

das suas ondulações – esta foi a imagem que se formou em meus olhos.

Notei que a menina Leoa Oxóssi estimulou sua parceira de espelho Coelhinha, e as

duas seguiram no mesmo ritmo e no mesmo desenho corporal, sempre com a sensação de

tremidinhas nos corpos e movimentos ondulares nos braços. Coelhinha girou em seu próprio

eixo e, em seguida, Leoa Oxóssi a imitou, depois com movimentos de braço para o mesmo lado,

que pareciam ser, para mim, a “correnteza” jorrando água para fora.

As experienciações corporais estimuladas e em conexão com a música africana,

através da dança criada pelas meninas, me remeteram ao potencial de criação da orixá Iemanjá,

podendo também ser associadas às manifestações de duas unidades circulares, Criança

Natureza e Criança Orixás, que serão desenhadas nos próximos tópicos.

25 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=kd6ZTylHUx4>. Acesso em: 25/10/2019.

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139

Nesse sentido, Lody e Sabino (2011) explicitam: “Então se vivem o mar, a água, o

peixe, os oceanos nas suas fantásticas e míticas extensões; vive-se a sereia, como diz a lenda

[...] yorubá: ‘Dos grandes seios de Iemanjá jorram dois rios de onde nascem os demais orixás.

Todos chegam das águas’ (LODY; SABINO, 2011, p. 157). Assim sendo, a primeira menina

estimulou a outra a sentir e vivenciar corporalmente o mover e o jorrar de águas, e juntas

estiveram irmanadas nessas proposições.

Ainda na mesma dinâmica, elas se jogaram no chão, como se girassem em cima de

uma grama bem gostosa: primeiro Coelhinha, depois Leoa Oxóssi, girando para a esquerda e

para a direita. As construções coreográficas experienciadas pelas duas meninas revelaram o

Corpo Brincante e dançante delas neste jogo/brincadeira corporal do Espelho. Assim:

Outra proposição bem interessante e que as crianças gostam muito é o jogo do espelho.

De frente uma para outra, é escolhido um condutor (depois há revezamento) entre

movimentos prolongados e repentinos. O espelho (criança que não está conduzindo a

dança) trata de colocar/sentir em seu corpo as proposições do condutor [...] perceber

em si mesmo a maneira como o movimento criado pelo colega se realiza. O divertido

nessa proposta é que o espelho não pode “bobear” quando o condutor passa

rapidamente de um fator de tempo a outro – do prolongado ao repentino, voltando

para o prolongado e assim por diante (MARQUES, 2012, p. 139-140).

As meninas espontaneamente dialogaram com seus corpos em estado de abertura,

plasticidade, inventividade e criação:

[...] é necessário que possibilitemos e motivemos as crianças a criar, inventar,

descobrir, experimentar e experienciar outras formas de estar no mundo com seus

corpos; é necessário que sintam no corpo o prazer dessa inserção e de diálogos

transformadores – e não reprodutores – com o mundo. Uma das possibilidades para

que isso aconteça é engajarmos as crianças em atividades de dança, de arte

(MARQUES, 2012, p. 59).

Ainda no momento das observações, no 5º dia, a Professora Iemanjá propôs um

momento de relaxamento, no qual as crianças iriam meditar, e colocou uma música própria para

meditação. Eu havia pensado que em algum momento poderia propor uma atividade com

respiração, então perguntei a ela se eu poderia ajudar, e ela expressou que sim, dizendo à turma:

“Lia quer nos ensinar uma coisa!”

Algumas crianças já estavam na roda sentadas; eu me aproximei e falei para

organizarmos o corpo e sentarmos, convidando as que ainda não estavam na roda, para

meditarmos. Percebi que a menina Gatinha Folha estava sentada com uma postura que

lembrava o ato de meditar, então pedi para olharmos a sua postura e tentarmos ficar como ela.

O restante das crianças se organizou, mas algumas delas, como a menina Cachoeira, ficou

Page 140: LIA FRANCO BRAGA

140

dentro da roda tentando chamar atenção. Perguntei a ela se me deixaria continuar e depois

comecei a explicar e demonstrar a respiração:

Eu: “Essa é uma respiração simples e que ajuda a gente a ficar tranquilo.”

[A menina Raposa comentou sobre meu colar, que em outra ocasião já havíamos

comentado; algumas crianças vieram até mim, querendo sentir o cheiro com óleo

essencial de lavanda do colar difusor.]

Eu: “Olha como é cheiroso!”

[As crianças demonstraram achar bom o cheiro, e o menino Gato Ninja do Fogo

comentou que conhecia esse cheiro, porque a sua mãe o usava.]

Eu: “Pois vamos sentar para aprender a respirar?”

[Demonstrei uma técnica de respiração que havia explicado para algumas crianças no

3º dia de observação, em uma ocasião no recreio.]

Eu: “Eu quero ver quem vai fazer bem bonito, no final eu vou colocar o cheirinho em

quem fez bem bonito!”

[As crianças foram fechando os olhos, se organizando, praticando a respiração, e eu

mudei de ideia.]

Eu: “Eu tenho uma ideia: enquanto vocês fazem bem bonito, eu vou passar em cada

um para colocar o cheirinho!” [Orientei a respiração.] Puxa o ar pelo nariz e solta pela

boca, e se quiser soltar o som do ar pode soltar, ahhhhhhh!”

[Fui passando de um por um, colocando o óleo essencial no pulso e dizendo para eles

sentirem o cheiro, enquanto relembrava como era a respiração. Eles esperavam

pacientemente, na postura, fazendo a respiração, e a maioria se mantinha de olhos

fechados.]

Eu [ao ver uma menina]: “Gente, vamos olhar um minuto para ela, ela está fazendo

uma postura bem bonita da Yoga26, que é a Flor de Lótus, é uma flor na perninha dela...

Vamos fazer como ela?”

Menina: “Ah, eu ensino!”

Eu: “Pois ensine!”

[A menina começou a explicar e as outras crianças também iam realizando a postura.]

26 Yoga, em linhas gerais, refere-se a uma filosofia e prática física e, dentre outras características, reúne

espiritualidade, bem-estar físico e emocional. Na hora não expliquei isso, ou perguntei às crianças se elas

conheciam Yoga, porque me interessava mais articular as posturas corporais que elas mesmas iam propondo.

Page 141: LIA FRANCO BRAGA

141

Professora Iemanjá: “Eu não consigo.”

Eu: “Ah, cada um vai no seu limite!”

[Depois que passei por todos e me sentei, tentei fazer a postura, mas não consegui

realizá-la completamente.]

Menina Raposa: “Ah, se esforça!”

Eu: “Mas eu não consigo, só consigo a meia Lótus!”

A Professora Iemanjá perguntou se poderia deitar, e eu disse que sim, que quem

quisesse poderia ficar deitado e quem quisesse poderia ficar sentado. Aos poucos começaram a

se dispersar, e percebi que não deveria mais intervir.

Esse foi um momento muito bonito e especial para mim, pois percebi que tanto para

as crianças como para as professoras houve uma vivência de relaxamento, concentração e bem-

estar. Houve momentos, por exemplo, em que todas(os) estavam bastante concentrados, e eu

expressava: “Olha como é bom estarmos assim tranquilos, não precisa estar toda hora

gritando!”, e a Professora Iemanjá expressou, “É ótimo!”. Tanto ela quanto a Professora Sol

agradeceram, no momento em que passei o cheiro nelas. Percebi que tanto o menino Gato Ninja

do Fogo quanto outra menina fizeram mãos de agradecimento no peito, como na prática de

meditação ou Yoga.

Percebo que essa prática, no meu último dia de observação, abriu espaço para uma

maior aproximação com as crianças e também com as professoras, introduzindo outras formas

de experienciar e sentir o corpo, promovendo tranquilidade, sinergia e bem-estar coletivo. Essa

vivência improvisada estabeleceu vínculos, compondo outras maneiras de experienciação

corporal, mais sutil, sensível e sensorial.

Em meio a períodos tão turbulentos, agitados e com tantos estímulos eletrônicos, um

momento para parar, sentir, respirar e relaxar é também um momento para cuidarmos da nossa

saúde física e mental. Penso que as crianças, desde bem pequenas, podem e devem experienciar

outras rotinas e ampliar suas percepções corporais e sinestésicas; afinal, o corpo é livre para

sentir, estar e se mover no mundo, é um amálgama de sentidos, percepções e expressões

múltiplas e híbridas. Sentir, refletir, questionar e experienciar o corpo, a meu ver, está bem

longe de regras, condutas, padrões ou caixinhas de enquadramento. Essa forma de perceber o

corpo também se faz presente nas perspectivas afro-referenciadas: um corpo uno e integral com

o todo, um corpo em que nele próprio a vida pulsa, gira e se move.

Daí se pode dizer que, nesta experienciação, as crianças puderam se conectar com o

Corpo-Poroso, ao aprender umas com as outras, ampliando e socializando novas posturas

Page 142: LIA FRANCO BRAGA

142

corporais. Corpos estes em estados de abertura e maleabilidade na relação entre respiração e

criação, pois, através do ato de respirar, sentimos e criamos vínculos com o mundo, que nos

atravessa enquanto experiência. A respiração é o vento que não cessa de se mover; sem ela de

fato não existiríamos.

Assim, é oportuno destacar que, nessa dinâmica, os corpos das crianças em estado de

disponibilidade ampliaram a percepção de seus corpos e mundos vividos, cabendo revisitar e

articular as proposições de Alves (2019):

Desse modo e a partir de um olhar fenomenológico, entendemos que o ser humano é

antes de tudo o seu próprio corpo, e portanto, as relações estabelecidas com o outro,

com o meio, com os objetos é o que permite, em grande parte, o seu desenvolvimento

e o desenvolvimento de sua capacidade perceptiva. São suas experiências que o

tornam corpos-sujeitos de suas ações e, nesse sentido, estando a criança em um

ambiente favorável que a possibilite vivenciar práticas variadas, mais possibilidades

ela terá de se desenvolver e de perceber o seu mundo-vivido. O corpo e o movimento

tornam-se referenciais de percepção, o ponto de partida para toda experiência humana,

de modo que ao explorar o mundo por meio de experiências concretas, a criança se

desenvolve desde os primeiros dias de vida (ALVES, 2019, p. 228-229).

A incorporação dessas vivências reflete o corpo-próprio das crianças, que, em diálogo

com a sua experiência, ressignifica a si mesmo, conforme salienta Merleau-Ponty (1999):

Assim, a permanência do corpo próprio, se a psicologia clássica a tivesse analisado,

podia conduzi-la ao corpo não mais como objeto do mundo, mas como meio de nossa

comunicação com ele, ao mundo não mais como soma de objetos determinados, mas

como horizonte latente de nossa experiência, presente sem cessar, ele também, antes

de todo pensamento determinante [...]. O corpo surpreende-se a si mesmo do exterior

prestes a exercer uma função de conhecimento, ele tenta tocar-se tocando [...]

(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 136-137).

Corroborando essas reflexões, Machado (2010a) sensibiliza educadoras(es) e

pesquisadoras(es) ao dar relevo à noção de corporalidade, dialogando, assim, com as

contribuições da fenomenologia proposta por Merleau-Ponty (1999, 2006):

Para chegar perto da noção de corporalidade, o educador ou pesquisador deve “olhar

com os olhos”, “cheirar com o nariz”, “tocar com as mãos e pés”, “saborear com a

boca” todas as cores da vida infantil, perscrutando as relações das crianças consigo

mesma, com o outro e com o mundo: “somente a análise da situação infantil e da

situação adulta pode fundamentar a pesquisa fenomenológica” […]. Para saber a

corporalidade, é preciso vivê-la. Para compreender a corporalidade da criança

pequena, o adulto precisa ser um bom observador, capaz de descrever em palavras o

que vê. O dom da imaginação é um ingrediente importante [...] Procurar pensar com

os cincos sentidos, com a memória e a imaginação; partindo da noção de

distanciamento fenomenológico [...] a criança será o foco, não o “eu” adulto – ou,

ainda, a relação criança-adulto será o mote para praticar o modo fenomenológico de

compreensão de contextos e situações vividas (MACHADO, 2010a, p. 42-43).

Page 143: LIA FRANCO BRAGA

143

No decorrer desta pesquisa, “pensar com os cincos sentidos, com a memória e a

imaginação”, como sugere a autora, mobilizou minha experiência junto às crianças, ampliando

nossos olhares, horizontes e corpos-vividos. Os corpos pulsantes das crianças, nos momentos

afro-brincantes, com as experienciações lúdicas, artísticas e os processos de criação, vão ao

encontro do pensamento de Alves (2019):

Dançar é expressar-se, é sentir-se enquanto corpo, é poder brincar com os movimentos

e interligá-los, fragmentá-los, relacioná-los com as variações de tempo e espaço, é

poder construir significado a partir do meu próprio corpo e do corpo do outro, é

perceber-se sendo artista. E quando esse universo é construído com e para crianças,

ele se torna ainda mais propenso à criatividade, ao jogo, ao prazer de dançar [...]

(ALVES, 2019, p. 231).

Portanto, toda a imbricação lúdica dos corpos-porosos, brincantes, dançantes e

performáticos das crianças alargou minha sensibilidade e percepção na construção de férteis

ancoramentos para a unidade circular Criança Artista.

4.3 AS CRIANÇAS E SUAS IMERSÕES NA NATUREZA

FIGURA 22 – CRIANÇAS REPRESENTANDO IBEJIS LEVANDO ÁGUA PARA O POVOADO

Fonte: Arquivo da pesquisa.

Edição: Júlia Braga e Lia Braga.

Neste tópico, a unidade circular Criança Natureza dará visibilidade às experienciações

das crianças com elementos e características vinculadas à natureza, tais como ar, terra, fogo,

água e outros.

Ao apresentar às crianças, na 2ª oficina, algumas(uns) orixás e suas relações com a

natureza, percebi, inicialmente, uma certa dispersão, mas continuei explicando que na África

há muita natureza e um povo chamado Iorubá, e que esse povo “acredita em deuses encantados,

que têm poderes mágicos e mexem com elementos da natureza!”

Page 144: LIA FRANCO BRAGA

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A Professora Sol chamou a minha atenção e a das crianças, dizendo que já tinha ouvido

falar desse povo; que as pessoas se vestiam para cultuar os seus deuses, mas que ela desconhecia

seus nomes, e que eram divindades da natureza: o deus do sol, da lua, da floresta etc. Eu disse

que era isso mesmo, e complementei falando que esses deuses eram chamados de orixás.

Passei a narrar de forma adaptada uma história do princípio da criação do mundo,

segundo esse povo. Olodumare, ou Olorúm, o deus criador dos Iorubá, vivia no orum (céu) e

de lá olhava para o aiyê (terra). Avistava toda a natureza que fora criada, achando-a muito bela,

mas percebeu que faltavam os protetores da natureza; além disso, ele se sentia sozinho. Ele teve

uma ideia e deu um sopro, gerando a vida dos orixás, que, além de deuses protetores da

natureza, são guerreiros e guerreiras, reis e rainhas, príncipes e princesas. Convidei as crianças

para conhecermos alguns deles; algumas concordaram, outras não.

Utilizando um livro de pano, falei os nomes e as principais características de

algumas(uns) orixás: Oxalá, Oxossi, Ogum, Iemanjá, Xangô, Iansã e Oxum; e enquanto isso,

mostrava os desenhos para as crianças. Em alguns momentos, o menino Oceano Tubarão Tigre

tentava pronunciar alguns nomes, como Oxalá e Oxóssi, e nesses momentos passei a utilizar o

corpo para representar esses orixás e dinamizar a ação a partir da energia e das características

de cada um deles – como a representação de um velho corcunda, em Oxalá, e de um caçador

desbravador, em Oxóssi.

Ao utilizar as demonstrações em forma de narrativa corporificada, fui ganhando a

atenção das crianças; algumas me olhavam com curiosidade e começaram a interagir mais.

Quando indaguei qual era a cor preferida de Oxóssi, já que ele era o rei da mata, um caçador,

eles imediatamente afirmaram que era verde. Falei também que esse orixá protegia as pessoas

que moravam na natureza, tais como os índios27, e o menino Onça Pintada frisou: “E os

bichos”. Já o menino Leão Fogo disse que na mata havia “ninja”, e o menino Onça Pintada

disse que não. Eu disse: “O Oxóssi é um guerreiro, como se fosse um ninja, porque ele defende

toda a natureza!”, o que empolgou o menino Leão Fogo.

Também explicitei que, na realidade, muitos humanos não protegem a natureza, e

perguntei se iríamos respeitá-la e valorizá-la; elas disseram unanimemente que sim. Neste

momento, o menino Oceano Tubarão Tigre expressou uma linda reflexão: “Lia, as árvores e a

27 É de conhecimento histórico e antropológico que o termo “índio” foi atribuído pelos portugueses aos vários

povos originários que aqui viviam no período da colonização do Brasil, o que ocasionou generalizações. Um termo

mais adequado seria “indígena” ou “povos indígenas”, não dando margem a rotulações pejorativas em referência

a estes povos e a seus descendentes que aqui residem. Porém, em alguns momentos da pesquisa, nos diálogos

desenvolvidos com as crianças, utilizei o termo “índio”, e não “indígena”. Este uso se deu para facilitar a

compreensão por parte das crianças, já que o segundo termo não é usual para elas e necessitaria de um tempo para

ser aprofundado.

Page 145: LIA FRANCO BRAGA

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mata são seres vivos!”, e a menina Raposa narrou que, uma vez, uns amigos dela estavam

descascando uma árvore e tirando as suas folhas; a mãe de um deles dissera que a árvore

chorava, e um menino disse que a árvore nem tinha vida, mas a menina Raposa afirmou que

ela tinha, sim. Verifiquei, a partir dos conhecimentos prévios das crianças e da contextualização

das(os) orixás com a natureza, que as expressões utilizadas pelas crianças evidenciaram uma

consciência ecológica de valorização da natureza – inclusive, associando-a a seres vivos que

devem ser respeitados. Esses e outros diálogos vão ao encontro de um dos ensinamentos e

princípios do referencial teórico-metodológico da pretagogia: “O reconhecimento da

sacralidade como dimensão que perpassa todos os saberes das culturas de matriz africana,

levando uma postura de identificação, respeito e espiritualidade para com a natureza [...]”

(PETIT, 2015, p. 122).

Quando comecei a falar de Iemanjá, perguntei se alguém já tinha ouvido falar dela. O

menino Leão Fogo disse que sim, e que ela era uma princesa. Eu disse: “É por aí”. O menino

Oceano Tubarão Tigre, ao ver o desenho, disse: “É da água… da lua!” E eu disse: “Tem a ver

com a lua também”, complementando que, sendo uma rainha do mar, ela protegia também os

animais. Nesse momento, ao questionar as crianças sobre o nome de animais marítimos, o

menino Leão Fogo falou sem parar algumas possibilidades, como “peixe” e “tubarão”. Eu

também disse que ela protegia os seres encantados marítimos, como a sereia, e, em algumas

histórias, ela poderia se tornar uma, como diz a música Ciranda do Anel: “Será que parou na

goela da Baleia? Ou no dedo da sereia? Ou quem sabe o pescador encontrou o anel e deu para

o seu amor”. Essa música as crianças cantaram em atividade anterior à minha, e a revisitamos

para abrir o momento de contação de histórias naquele dia.

Por ocasião da 5ª oficina, ao iniciar a contação de histórias com Os Ibejis encontram

água e salvam a cidade (PRANDI, 2001), dialoguei com as crianças sobre o instrumento

africano kalimba, que toquei em uma música de abertura. O menino Onça Preta disse: “Isso é

tipo... um mini-violão!”. Quando perguntei de onde ele tinha vindo, este menino, e também o

menino Oceano Tubarão Tigre, em um clima de animação, expressaram: “Da África!”. Ao

mostrar o som, o primeiro menino disse: “É tipo... um piano!”, e o menino Gato Ninja do Fogo

expressou: “Tipo um... xi-lou-fo-ne!”

Ao perguntar o que aquele som lembrava em relação à natureza, o menino Oceano

Tubarão Tigre disse: “Jesus dando amor para a gente!”, e eu respondi: “Pode ser, pode ser... o

amor, né... a África!”. Insisti na relação com a natureza, fazendo novamente sons com o

instrumento. O menino Gato Ninja do Fogo disse: “Eu lembro... daquele... [alguma palavra

inaudível, e o menino ficou pensativo] aquele deus da natureza!”, e eu disse: “O deus da

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natureza, os orixás, muito bem!”. E o menino: “Nãoooo! Orixássss!”. A menina Gatinha Folha

disse: “A mãe da água!”, e eu falei: “Muito bem!”, e a chamei por seu nome. O menino Oceano

Tubarão Tigre complementou: “A água, as árvores, a mata!”, e eu afirmei: “A kalimba lembra

o som das águas!”

Nas oficinas que se sucederam, apresentei às crianças outros instrumentos, com o

objetivo de torná-los conhecidos e de afirmar a identidade de sons afrodescendentes. No caso

específico do instrumento kalimba, seu som se assemelha a alguns sons de elementos da

natureza, como “a água, as árvores, a mata”, expressados pelo menino Oceano Tubarão Tigre,

bem como a conexão com “a mãe da água”, segundo a menina Gatinha Folha. Houve um

sentimento positivo e de amorosidade quando o primeiro menino expressou, sobre o som do

instrumento, “Jesus dando amor para a gente!”. Nesse sentido, cabe explicitar:

A kalimba é um instrumento de origem africana muito antigo, milenar, cujo nome

original é mbira. A mbira, ou “piano de dedo”, remonta à idade em que o metal chegou

na África, mais precisamente na região sul do Zimbábue. Conforme foi disseminada

pelos diversos povos, apareceram variadas formas e tamanhos de acordo com cada

região [...]; em sua versão moderna, adaptou-se aos formatos orgânicos de cabaças e

madeiras originais para uma caixa de ressonância retangular ou redonda com teclas

de metal afinadas em uma escala ocidental, distante das escalas originais pouco

familiares aos ouvidos europeus. Sua sonoridade remete a uma caixinha de música ou

a gotas de água, de fato este é um instrumento que trabalha o elemento água em nós,

ou seja, nossas emoções [...]; a kalimba evoca o retorno ao lar, o carinho, a doçura e

trabalha o arquétipo da criança interior, pois sua suavidade cria um espaço de bem-

estar instantâneo. Desde a África, sempre esteve associado à contação de estórias em

educação infantil através de inúmeras cantigas que transmitem a sabedoria e coragem

de muitos povos. Até hoje é comum encontrar grupos de crianças a caminho da escola

cantarolando essas cantigas em suas kalimbinhas, ao longo de sinuosos caminhos de

aprendizagem (www.pierrestocker.com, on-line).

Na história, a seca começou a chegar no povoado, e os meninos Ibejis começaram a

cavar buraquinhos na terra. Perguntei se as crianças sabiam por que eles estavam cavando esses

buracos. Algumas delas, como a menina Gatinha Folha, expressou que era para achar água, e

o menino Gato Ninja do Fogo disse: “É, porque debaixo da terra tem água!”

Estimulei todos a entrarem em ação como personagens, pois, no início da contação,

combinei com as crianças que, por ter percebido que adoravam personagens, em determinado

momento elas iriam representar um personagem muito importante, e que todos iriam fazer uma

mesma ação. O menino Onça Preta perguntou: “E aquele menino que morreu?”, referindo-se

ao Ibeji que havia morrido em outra história. Eu disse: “Tem a ver com esse menino [...]. Agora

todo mundo juntinho [...]. Vocês vão dar as mãos e vão fazer os Ibejis procurando no chão o

FIGURA 23 – KALIMBA

Fonte: Arquivo Pessoal

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147

buraquinho, porque vocês vão se encontrar com outro personagem...”. O menino Onça Pintada

perguntou: “Pode ser eu hoje?”, e eu respondi: “Vocês todos vão fazer os Ibejis!”

Pedi então para as crianças darem as mãos, e indiquei que elas iriam para outro ponto

da sala, conduzindo-as. Depois indiquei que se agachariam, procurando os buracos no chão;

algumas engatinharam e foram criando a cena comigo a partir de minha narração. Então eu

disse: “Até que eles encontraram uma deusa da fonte sagrada!”, e uma criança perguntou: “É

você?”. Comecei a interpretar a personagem: “Olá, meninos e meninas, mas o que vocês fazem

no meu reino?”. O menino Oceano Tubarão Tigre olhou para outras crianças e sorriu, e várias

crianças responderam: “A gente tá procurando água!”. A menina Cachoeira expressou: “A

gente tá procurando a água da terra!”, e a menina Gatinha Folha disse: “E também a gente tá

sem água! Não tem água para beber!”. Então eu disse: “Pois eu, a deusa das águas, eu vou... dar

um desafio para vocês, para que vocês possam levar água para o povoado de vocês!”

Com a participação das crianças como personagens, foram vivenciados elementos de

teatralidade próximos do jogo teatral. Japiassu (2010) explicita as suas características,

fundamentando-se na sistematização dos jogos teatrais proposta pela autora e diretora de teatro

norte-americana Viola Spolin (SPOLIN, 1992):

Os jogos teatrais são atividades pedagógicas para aquisição, leitura, domínio e

fluência da comunicação por meio do teatro, de uma perspectiva improvisacional

(sem roteiros nem combinações apriorísticas de como será a atuação na área de jogo

e sem textos de sustentação à representação teatral previamente elaborados).

Basicamente, os jogos teatrais constituem desafios (problemas cênicos de atuação)

apresentados aos jogadores, na forma de jogos com regras (JAPIASSU, 2010, p. 80).

As indicações iniciais para as crianças buscaram estabelecer direcionamento e regras,

para que elas pudessem vivenciar comigo o desafio seguinte, A Ciranda das Águas; mas, por

não apresentar uma sequência cênica, nem textual, as crianças foram encorajadas a improvisar

ações e falas a partir do mote central.

Quando as crianças prontamente se assumiram como personagens Ibejis, permitindo-

se aos acontecimentos, o Corpo-Poroso delas foi ativado na medida em que foram

compreendendo e vivenciando a situação cênica, buscando soluções coletivas e improvisadas,

a fim de resolver o problema e alcançar o objetivo final. Nesse sentido, convém mencionar a

contribuição de Japiassu (2010):

A busca de soluções para o problema cênico colocado para o grupo deve ser

necessariamente ativa, quer dizer, corporal, física, e não apenas intelectual, verbal.

O professor ou coordenador (teatro-educador responsável pela condução das

atividades) deve, se necessário, reativar a atenção dos jogadores no foco da atividade

que lhes foi proposta por meio de instruções (observações, dicas), que são

“cantadas”, isto é, pronunciadas em voz alta (JAPIASSU, 2010, p. 81).

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148

Prosseguindo, comecei a formar uma roda com eles para que realizássemos, dentro da

história, o jogo/brincadeira corporal A Ciranda das Águas – uma proposição de ciranda com o

tema “água” e uma música que criei com essa temática. Mencionei que essa ciranda era parecida

com a que eles conheciam (na época e pela contextualização do São João, eles estavam

estudando a manifestação de coco de roda), mas que eu lhes ensinaria como a dinâmica

particular da brincadeira dançada.

Perguntei se sabiam como era o passo da ciranda, e o menino Gato Ninja do Fogo fez

que não com a cabeça. Então tentei explicar e exercitar ao mesmo tempo com elas: “Bota um

pé para frente, a mãozinha sobe, o pé para trás, a mãozinha vai para... isso, para trás!”. Procurei

incentivá-las para que andássemos na ciranda, mas as crianças faziam os movimentos sempre

no mesmo lugar, sem andarem. Usando o recurso da estátua por alguns segundos, expliquei:

“Agora eu vou cantar uma música e a gente vai fazer esse passo, depois a gente vai... descobrir

outros passos!”, lembrando-lhes do desafio para poderem conquistar o direito de levarem a água

para o povoado deles, enquanto personagens Ibejis. Comecei a cantar uma música criada por

mim:

“E 1-2-3-4-5-6… vaaaaamos todos cirandar no balanço das águas... Parou!”

[Expliquei que mudaríamos a direção de onde a roda estava indo]

“E 1-2-3-4-5-6… vaaaaaamos todos cirandar no balanço das águas.”

[Expliquei que ainda haveria o passo que estávamos fazendo, mas que existiriam outros, e indiquei o lado de

direção da roda]

“E 1-2-3-4-5-6… e o som das águas fazem chuá chuá!”

[Perguntei se eles entenderam o movimento do chuá, em que os braços vão para um lado e para outro, e

repetimos esse movimento]

“E 1-2-3-4-5-6… e o som das águas fazem chuá chuá!”

[Expliquei o próximo movimento, em que todos íamos entrando na roda e subindo os braços, indicando

possibilidades para facilitar o movimento, tais como: “Abre bem grandão para fazer bonito!”; então abrimos

mais a roda, expandindo-a]

“Chuá chuá, chuá chuá, chuá chuááááááá”

[Devagar, fomos entrando na roda, dando passos a cada chuá e frisando uma entonação mais vibrante no

último].

Inicialmente a ciranda pareceu um pouco desengonçada; porém, à medida que ia

cantando, explicando e fazendo junto com as crianças, ela começou a ter mais forma – ainda

assim um pouco parada, sem muito ritmo. Após algumas interrupções, perguntei se poderíamos

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fazer de novo a brincadeira, e o menino Onça Preta expressou com animação: “Pode, pode,

pode!”. Acrescentei uma segunda proposta musical e corporal:

“E 1-2-3-4-5-6… vaaaaamos todos cirandar no balanço das águas... Parou!”

[Expliquei que a ciranda ia andar e que seria para o outro lado]

“E 1-2-3-4-5-6… vaaaamos todos cirandar no balanço das águas... Parou!”

[Como a roda havia fechado bastante, pedi para abrirmos mais]

“E as águas vão prum lado e as águas vão prum outro”

[Indiquei movimentação com o corpo para a esquerda e para a direita]

“E vão para cima e vão para baixo também”

[Indiquei movimentação com o corpo levantando para cima e agachando para baixo]

“E as águas vão prum lado e as águas vão prum outro”

[Indiquei movimentação com o corpo para a esquerda e para a direita]

“E vão para cima e vão para baixo também”

[Indiquei movimentação com o corpo levantando para cima e agachando para baixo]

Na segunda tentativa, inicialmente, houve um pouco mais de dinâmica e ritmo; porém,

algumas crianças ainda ficavam mais paradas, o que fazia com que a ciranda não andasse muito.

Depois de uma grande dispersão, mostrei como seria o movimento da ciranda andando, e disse

que queria concluir a história para passar para outras brincadeiras: fizemos uma última vez com

a primeira proposta musical e corporal.

Engatei novamente a história pegando um pano cintilante na cor azul clara, abrindo e

espalhando-o pelas crianças que o seguravam, o que formou uma imagem que pode ser

observada na Figura 22: uma grande corda azul. Eu disse: “Eu, a deusa da água, a deusa da

fonte sagrada, determino que agora vocês possam levar, um do ladinho do outro, as águas... as

águas pro povoado de vocês!”. Puxei as crianças e voltamos para o início, onde eu estava

contando a história; pedi para elas deixarem o pano que simbolizava as águas no chão e

sentarem.

Outro momento em que utilizei a experienciação corporal dentro da contação de

histórias foi na 6ª oficina, ao narrar a história Iemanjá e o poder da criação do mundo

(OLIVEIRA, 2009). Resumidamente, esta história demonstra os desafios que Iemanjá, quando

criança, enfrentou, vivenciando alguns sentimentos como a solidão. Ela encontrou o poder de

superação dentro de si, e também o poder de criar e dar vida a elementos da natureza e outras(os)

orixás, com a ajuda do deus criador. Em uma determinada situação da história,

Olodumare/Olorum, deus supremo e criador, vendo a tristeza da menina, coloca as mãos em

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150

sua barriga, que cresce muito, e lhe diz para não falar nada, apenas abrir a boca. E “da boca

encantada de Iemanjá...” ele fez com que surgissem primeiro as estrelas.

Enquanto eu representava Iemanjá, a personagem menina interagia com as crianças,

perguntando quem gostava de girar; várias responderam “eu”, e o menino Onça Pintada girou

em seu próprio eixo, em cima de uma almofada, e depois caiu em cima dela dizendo “Gira,

gira, gira!”. A personagem convidou então as crianças para irem a outro lugar da sala, por conta

do espaço. Ao perguntar se as crianças poderiam brincar com ela, as crianças afirmaram que

sim, e ela passou a explicar como ocorreria a brincadeira. O menino Onça Pintada expressou:

“Essa voz é muito linda... pelo amo de deus!”. A personagem cantava uma música (adaptei-a

do meu contexto espiritual) e, na hora em que falasse as palavras “Brilha, brilha”, elas iriam

girar, devagar para que ninguém se machucasse. “E... brilha brilha brilha estrelinha Brilha brilha

brilha estrelinha Brilha brilha brilha estrelinha assim como um raio de sol [ritmo devagar]. E...

brilha brilha brilha estrelinha Brilha brilha brilha estrelinha Brilha brilha brilha estrelinha... e

parou! [ritmo rápido]”.

As crianças e eu girávamos, umas mais devagar, outras mais rápido, com muito

divertimento; a maioria em seu próprio eixo, mas o menino Leão Fogo saiu um pouco do seu

centro girando com os braços abertos e na lateral, bem como o menino Onça Pintada, que girou

bem rápido quando a música aumentou a velocidade. Ao final, todas pararam prontamente e

ficaram firmes em seus locais. Porém, mesmo depois de ter pedido para retornarmos para o

local no qual eu estava contando inicialmente a história, o menino Onça Preta e o menino Leão

Fogo continuaram girando, e depois falaram que estavam tontos; eu pedi para eles sentarem.

Retomando a 5ª oficina, ao final da contação de história Os Ibejis encontram água e

salvam a cidade (PRANDI, 2001), dialoguei com as crianças sobre alguns cuidados para

preservarmos a água no contexto urbano, como fechar a torneira na hora do banho – as crianças

disseram que faziam isso. Depois contextualizei para a natureza: “No mar, no riacho, nas lagoas,

a gente faz o quê?”. A menina Gatinha Folha disse (com expressão de obviedade): “Toma

banho na água!”, e eu: “Toma banho, mas ela precisa tá limpa. E quais são os cuidados?”. A

menina respondeu: “Tem o rio, que… que... não pode tomar banho nele, porque ele tem cocô!”;

e o menino Onça Preta (demonstrando em seu braço): “E tem sanguessuga, aquele bicho que

puxa o sangue!”. Eu: “Certo, e para que a gente possa tomar banho na água limpa, o que é que

a gente faz?”. A menina Gatinha Folha disse: “Não jogar lixo no mar!”, e o menino Leão Fogo

complementou, bem sério e um tanto brabo: “Não pode jogar nada no mar!”. O menino Oceano

Tubarão Tigre disse: “Não pode jogar lixo no oceano!”, e a menina Cachoeira: “Ei,

professora... não pode jogar lixo na praia!”

Page 151: LIA FRANCO BRAGA

151

Ao observar as narrativas das crianças, considero que o universo das(os) orixás

propicia a nós, artistas, educadoras(es) e professoras(es), a possibilidade de desenvolvermos

metodologias que articulem oralidade, corporeidade, perspectivas sociais, históricas e culturais

e educação ambiental. Ao experienciarem, através do corpo, uma consciência ecológica, as

crianças reafirmaram a importância do ato de relacionar-se harmonicamente com a natureza,

valorizando-a, respeitando-a e cuidando da mesma.

Nesse sentido, Marques (2012) menciona interações entre dança e sociedade à medida

que as crianças vivenciam e compreendem o corpo interligado ao mundo e às experiências

coletivas:

Nas propostas de articulação entre a dança e a sociedade devemos nos lembrar da

importância de fazer com que as crianças percebam que seus corpos também são

articulados e conectados ao mundo, à sociedade, às pessoas; é muito importante para

que elas percebam, compreendam e saibam opinar/agir sobre as dinâmicas das

interações sociais em que vivem (MARQUES, 2012, p. 100).

A partir dessas proposições, percebi a interação entre o Corpo-Poroso e o Corpo

Brincante das crianças. Nesse contexto, elas demonstraram abertura, maleabilidade,

adaptabilidade e criatividade em suas experienciações corporais. Como, por exemplo, ao

representarem os Ibejis, passando pelo desafio lúdico de dançarem as águas, através da ciranda

– bem como ao brincarem e girarem como estrelas, o que lhes propiciou uma perspectiva de

integração com a natureza. Houve também um sentido de valorização e cuidado com a natureza,

quando as crianças vivenciaram e venceram o desafio, até conseguirem levar as águas para o

povoado, manejando em suas mãos o elemento.

Essas dinâmicas propiciaram fecundas articulações entre as linguagens artísticas do

teatro e da dança, permitindo, tanto a mim quanto às crianças, aberturas e experienciações

performáticas. Vale mencionar Machado (2010b), quando a autora enlaça proposições entre as

vivências dos professores e das crianças, tendo elas um papel fundamental quando se aproxima

a experiência à performance:

[...] na medida em que os alunos são parte intrínseca de toda e qualquer performance

vivida e/ou proposta por seu professor: momentos da convivência e da continuidade

dos processos de conhecimento, nos quais o professor se faz e comunica algo aos

alunos, seja por meio de diferentes tipos de narrativas ou brincadeiras teatrais a serem

experienciadas pelas crianças [...]; a criança que cria seu faz de conta e que o organiza

durante uma aula de teatro, não exige de si nem do companheiro uma lógica formal;

seja em termos de tempo, seja em termos de espaço, a criança modifica, quase, o

tempo todo, seus roteiros de improviso, e aproxima, recorrentemente, suas narrativas

teatrais da sua vida cotidiana (MACHADO, 2010b, p. 117-118).

Page 152: LIA FRANCO BRAGA

152

Ainda na 5ª oficina, a experienciação de corporificar elementos da natureza também

pôde ser observada no jogo/brincadeira corporal Caminhando com diversas sensações. Aqui,

as crianças caminham e respondem corporalmente a vários estímulos; por exemplo, quando eu

disse que o sol estava muito quente, e que fazia muito calor, perguntei: “Como é sentir calor

sendo o sol?”, e a maioria das crianças, ao chegar próximo a mim, tremiam e vibravam as mãos,

e algumas faziam sons (de modo que cheguei a exclamar “Eita!”).

Continuei: “Agora… vocês estão muito, muito quentes e se transformaram no fogo!”,

e elas correram, gritavam, algumas pulavam, e os meninos Gato Ninja do Fogo, Leão Fogo e

Onça Preta simularam uma luta, em que o primeiro menino caiu no chão – o que me passou

uma ideia de que tinha sido derrotado –, e ainda assim, antes da queda, lançou a energia de fogo

com os braços e as mãos para cima. Onça Preta se agachou para ver o menino, assim como

Leão Fogo. Este último pegou no menino deitado e disse: “Meu amigo!”, e depois se levantou,

expressou algo e finalizou com sons e movimentos de luta.

As experienciações dos meninos me remeteram ao orixá Xangô, não apenas por este

deus manejar e controlar o elemento fogo, da natureza, mas também pela proposição das

crianças, que lutaram umas com as outras. Ao lançar para cima essa energia, a meus olhos, o

menino Gato Ninja do Fogo aproximou-se da imagem do rei, e vale ressaltar que Xangô é

considerado também um grande guerreiro:

Une-se a fogueira de São João à fogueira de Xangô, orixá da civilização yorubá que

é o próprio fogo. É o poder masculino aliado à capacidade de produzir e,

principalmente, de controlar esse elemento (LODY; SABINO, 2011, p. 22).

Em determinados momentos da coreografia, esse orixá representa o ato de lançar

pedras e as atira sobre o mundo. Essas pedras são os coriscos, pedras do raio, das

trovoadas, dos relâmpagos que anunciam o poder do fogo, o poder do rei (LODY;

SABINO, 2011, p. 146).

Pode-se também associar esta proposição com a unidade circular Criança Orixás –

que será delineada no próximo tópico –, visto que essas divindades são a própria expressão da

natureza, em alguns momentos; e, em outros, manipulam seus elementos.

A partir desse diálogo, observo que a natureza se expressa em nós mesmos, quando,

por exemplo, movemos as águas de nossas lágrimas ou de nosso suor, respiramos através dos

nossos pulmões que geram ar, caminhamos de pés descalços em conexão com a terra, muitas

vezes enfrentando desafios de maneira forte e direta, como guerreiras e guerreiros, ou quando

intensamente vivenciamos pulsões, emoções e criações através do fogo, que liga e movimenta

a vida.

Page 153: LIA FRANCO BRAGA

153

Com as proposições lúdicas e corporais, as crianças imergiram em cheiros e cores e

nas florestas afro-ancestrais, nas quais deusas e deuses dominam as águas, o fogo e outros

elementos da natureza. Nessa ambiência, as pequenas e os pequenos brincantes, como estrelas,

brilharam no céu, e sorriram, correram, giraram e rodopiaram, evidenciado a unidade circular

Criança Natureza como um princípio mobilizador de integração entre o ser humano e a

natureza.

4.4 AS CRIANÇAS E SUAS BRINCADEIRAS COM AS DEUSAS E OS DEUSES

FIGURA 24 – OXUM E SEUS ENCANTOS NA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS

Fonte: Arquivo da pesquisa.

Edição: Júlia Braga e Lia Braga.

Ao discorrermos sobre a unidade circular Criança Orixás, foram destacadas as

experienciações das crianças com as deusas e deuses africanos, através da oralidade e da

corporeidade, buscando estabelecer vínculos com a ancestralidade africana.

Por ocasião da 2ª oficina, na contação de histórias Conhecendo as(os) orixás, quando

acompanhada do livro de pano, fui apresentando alguns deuses e deusas e suas características.

Ao falar de Oxum e mostrar o seu desenho, registrei algumas expressões: o menino Gato Ninja

do Fogo se pôs na frente do menino Oceano Tubarão Tigre e disse, tentando afastá-lo: “Eu

quero ver!”; a menina Gatinha Folha tocou no livro de pano; a menina Leoa Oxóssi falou

animadamente: “Ela ama o amarelo!”; o menino Leão Fogo disse: “É igual uma rainha, que a

gente viu!”, a Professora Sol disse: “Pessoal, eu gosto muito de Iansã, mas eu confesso que

Oxum é a orixá mais bonita!”; o menino Onça Pintada ficou curioso porque, na imagem, ela

usava uma coroa que cobria o seu rosto, o adê. Diante do comentário, aproveitei para explicar

que as orixás femininas usavam esse tipo de coroa porque gostavam de manter o mistério delas.

Page 154: LIA FRANCO BRAGA

154

Quando disse que Oxum amava crianças e as protegia, eles se surpreenderam e

animaram-se. A menina Raposa pulou e disse: “Ela protege a gente?”, e, em outro momento,

quando afirmei que ela cuidava dos recém-nascidos, a menina perguntou: “Ela cuida da minha

irmãzinha?”, e eu disse que sim. Depois a menina Gatinha Folha tentou puxar para si o livro

de pano, beijando algumas vezes o desenho de Oxum; a menina Raposa também o beijou,

enquanto o menino Oceano Tubarão Tigre sorria. A partir das expressões afetuosas das

crianças, é possível articular que “Oxum é relacionada também à maternidade e, por isso, às

águas. Águas do nascimento, águas doces para beber e viver: rios, cachoeiras, regatos, todos

esses locais lembram e significam Oxum” (LODY; SABINO, 2011, p. 151).

Por ocasião da 3ª oficina, pude perceber algumas expressões que as crianças fizeram

na tentativa de compreender as(os) orixás. Ao relatar naquele dia que iríamos continuar

escutando histórias dos deuses encantados da natureza, o menino Onça Preta, que não havia

participado da oficina anterior, disse: “Ah, não!”. Eu perguntei: “Como é mesmo o nome dos

protetores da natureza?”, e ele disse: “Índios!”. Então eu frisei: “Os orixás são deuses

encantados que têm poderes mágicos e são protetores da natureza!”, e o mesmo menino disse:

“São seres mágicos!”

Quando perguntei se as crianças se lembravam de onde vinham, muitas começaram a

falar, e a menina Raposa levantou o braço e disse que era da África. Depois perguntei o que

elas lembravam da África e das deusas e deuses, e a menina disse: “Eu lembro que tem um deus

da paz e aí ele deixa [alguma palavra inaudível] tooooooda a paz!”, referindo-se a Oxalá. A

menina Gatinha Folha disse: “A rainha que protege as crianças!”, referindo-se a Oxum. E o

menino Oceano Tubarão Tigre disse: “Tem o que... o que cria armas!”, referindo-se a Ogum.

Um momento interessante ocorreu na 4ª oficina, ao contar a história Os Ibejis são

transformados numa estatueta (PRANDI, 2001): a energia de Oxum mobilizou, a meu ver,

algumas experienciações intuitivas das crianças, sem ter vinculação com nenhum tipo de

jogo/brincadeira corporal.

No enredo da história, os meninos Ibejis vão tomar banho em uma cachoeira. Então eu

aproveitei a deixa para trazer um cântico de Oxum, dizendo que, quando os Ibejis foram para

lá, cantaram para a mãe deles. Eu cantei realizando movimentos de ondulação com todo o corpo

e girei com os dois Ibejis bonecos, segurando um em cada mão. A menina Cachoeira me

acompanhou cantando e o menino Leão Fogo realizou sons com um instrumento de madeira

Page 155: LIA FRANCO BRAGA

155

em formato de peixe, que eu havia levado naquele dia. Esse trecho do cântico pode ser

encontrado na música Canto para Oxum, de Bantos Iguape28:

Oro mi má

Oro mi maió

Oro mi maió

Yabado oyeyeo

Oro mi má

Oro mi maió

Oro mi maió

Yabado oyeyeo O o o Yabado oyeyeo O o o Yabado oyeyeo

Com base na minha sensibilidade espiritual, posso intuir que as crianças se sentiram

embaladas pela energia ancestral de Oxum e pelo cântico em Iorubá, uma língua até então

desconhecida para elas. O fato de a menina Cachoeira ter cantando a música comigo me

chamou atenção, pois não era uma pronúncia habitual para ela; além disso, esta menina

incorporou em seu nome uma das associações que se pode fazer a Oxum: “cachoeira”.

Em outro momento, observei uma maior identificação da menina Cachoeira com essa

orixá, o que foi expressado na 7ª oficina. Primeiramente, para contextualizar esse dia, resolvi

propor as contações de histórias em círculo, e as crianças foram se sentando junto a mim, nas

almofadas. Depois, ao se dispersarem, expliquei a necessidade de termos aquela roda, pois elas

iriam fazer as personagens da história, e duas crianças iriam para o meio do círculo, depois

ficando em estátua – aí trocaríamos com outras crianças, ocorrendo um revezamento.

Após um primeiro momento com música, comecei a narrar a primeira história, Oxum

e seu mistério (OLIVEIRA, 2009), com acompanhamento do livro, apresentando inicialmente

as personagens principais da história, Oxum e Ogum. Na hora da escolha das crianças, como a

roda já estava desfeita e as mesmas já estavam acomodadas de outra maneira, combinei que iria

me afastar dali, ficando mais atrás; e, enquanto eu narrasse, as crianças iriam entrar em ação.

Chamei duas crianças: o menino Leão Fogo havia se levantado e o menino Oceano

Tubarão Tigre também. Este expressou, animado: “Eu e Leão Fogo [chamando pelo nome do

menino]!”. Eles se aproximaram, mas, ao frisar que Oxum era uma menina, a menina Cachoeira

se levantou, pulou e disse: “Eu, eu, eu!”. Pedi para ela ter calma e perguntei se um dos dois

poderia representar a menina – e nenhum dos dois quis. Então pedi para o menino Leão Fogo

se sentar e perguntei se alguma outra menina ou menino gostaria de fazer Oxum, e a menina

Cachoeira expressou novamente: “Eu quero ser, eu quero ser!”, e a chamei.

28 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_D0YjZoyqBw>. Acesso em: 27/09/2019.

Page 156: LIA FRANCO BRAGA

156

Na hora em que a menina iria representar Oxum, no começo, segurei na mão dela, para

centralizá-la, e ela fez um pouco a voz da personagem e as ações de mexer os dedos. Na hora

em que narro e indico as ações para a menina Cachoeira – “Oxum vestiu uma saia com cinco

lenços pendurados e perfumados que, com o vento, esvoaçavam. Tirou seu adê, sua coroa,

soltou seus lindos cabelos negros e crespos e colocou os pés em contato com a terra [...]”

(OLIVEIRA, 2009, p. 20) –, a menina propõe uma dança.

Ela soltou um som que lembrou vento ao tomar impulso com os pés e as pernas, que

primeiramente tocavam o chão, o que fazia com que suas pernas ficassem flexionadas e depois

uma delas fosse para o alto, enquanto a outra lhe dava apoio ao tocar o chão. Esse momento

pode ser observado na Figura 24, que abre este tópico. Os seus cabelos esvoaçavam; e ela dava

giros, várias vezes, a partir dos impulsos que se repetiam e demonstravam uma dança com

movimentos livres e circulares, em volta de si mesma e também se deslocando pelo espaço,

com braços para o lado e às vezes para cima, em um desenho redondo.

Depois a menina correu dando uma volta por trás das outras crianças e um pulinho, e

quando eu indiquei para ela voltar, ela retornou à cena. Na hora da narração das características

dos cabelos de Oxum, toquei e afaguei os cabelos da menina Cachoeira; e, no contato com a

terra, mostrei a ela meus pés fincados no chão, ao que a menina se posicionou ao meu lado.

Enquanto ela dançava e fazia a cena, a Professora Sol disse: “Bem linda, bem linda... ô, que

linda!”, e eu também frisei: “Bem linda!”

Dando seguimento à história, Oxum avista a cabana de Ogum e, fingindo não vê-lo, se

põe a dançar. A menina Cachoeira propôs uma movimentação próxima à da sua primeira dança,

com a diferença de que ela dançou mais para a lateral; e, como o próprio texto propõe, “começou

a dançar com a graça das águas calmas, delicada... suave... num leve vai e vem” (OLIVEIRA,

2009, p. 21). Então ela fez movimentos mais suaves e lentos, e por vezes os braços iam para

cima e agarravam a sua barriga, cintura e pernas, e seus pés acompanhavam a inclinação de seu

corpo, para um lado e depois para o outro.

Ao analisar algumas características da dança de Oxum, posso dizer que a menina

Cachoeira improvisou, experienciou e criou uma dança com alguns elementos característicos

da dança desta orixá. Com a graça e a beleza de se movimentar livremente, com giros e

movimentos circulares, dentre outros, a menina Cachoeira dançava como em um balançar

suave das águas doces das cachoeiras ou dos rios de Oxum. Assim, encontrei semelhanças entre

a proposição da menina e o pensamento da doutora em Artes Cênicas, professora, bailarina,

coreógrafa e diretora Denise Mancebo Zenicola, sobre a dança de Oxum:

Page 157: LIA FRANCO BRAGA

157

Sua dinâmica postural é mais suave do que a encontrada na dança de Iansã. Seu tronco

ondula mais e o corpo divide-se em movimentos ora para o lado direito, ora repetidos

pelo lado esquerdo, alternadamente. A transferência do peso é igualmente suave,

contendo pouca oscilação de tronco para compensar a transferência. A expressividade

de sua dança é composta por um fluxo livre de movimentos, leveza, um tempo

desacelerado e contínuo (ZENICOLA, 2014, p. 106).

Após esta e outra contação de histórias, as almofadas foram guardadas e passamos para

a próxima dinâmica: o jogo/brincadeira corporal Dançando com as(os) Orixás, na qual foram

experienciadas seis danças: Iemanjá, Ogum, Oxum, Oxóssi, Oiá-Iansã e Xangô. Aqui farei um

recorte para me deter a quatro danças experienciadas. Tentei explicar em roda, mas as crianças

demoraram um pouco a prestarem atenção. Depois explicitei as regras: primeiro eu iria mostrar

a dança de alguns orixás, colocaria uma música e, então, eles iriam “brincar com essa música,

dançar essa música!”

Depois de vivenciarmos a dança de algumas(uns) orixás, fomos para a dança de Oxum,

e a menina Cachoeira, após um tempo, reclamou, chorando um pouco, porque eu não lhe dera

atenção – outra associação com a deusa Oxum, pois é muito emotiva, chorona e dengosa. Em

contextos espirituais, por vezes, Oxum, ao se manifestar (incorporar) em seus filhos, chora, com

lágrimas, expressando sons, ou até mesmo quando as(os) participantes sentem sua energia – há

uma comoção emotiva, o que me faz recordar um cântico espiritual: “Foi na beira do rio / Aonde

Oxum chorou / Foi na beira do rio / Aonde Oxum chorou / Chora aiê êo / Ô chora pelos filhos

seus / Chora aiê êo / Ô chora pelos filhos seus...”

Eu expliquei à menina que não tinha como dar atenção apenas a ela, e assim ela se

recusou a continuar brincando. Porém, ao perguntar quem era Oxum na história, ela, animada,

disse: “Eu sou ela!”, e um dos meninos disse que era uma menina. Eu lhe perguntei: “De onde?”,

e o menino Leão Fogo disse: “Do mar!”. Eu disse: “Das águas doces, da cachoeira, e protege

as crianças!”, e o menino Oceano Tubarão Tigre disse para o menino Leão Fogo: “Então agora

eu sou Oxum, tá?”

Expliquei que Oxum dança como as cachoeiras; fiz movimentos com braços e, depois,

me movimentei como se tomasse um banho de cachoeira, fazendo como se ela se olhasse em

seu espelho e girasse. Algumas crianças faziam seus movimentos junto a mim, a partir de minha

narração e demonstração, como a menina Gatinha Folha e o menino Onça Preta. A menina

Cachoeira ficou pulando e caminhando pelo espaço, dizendo: “Ei, ela pode fazer assim!” – e

fazia movimentos ondulares com os braços e as mãos para cima.

Coloquei a música Canto para Oxum, de Bantos Iguape, e os meninos Oceano

Tubarão Tigre e Leão Fogo, lado a lado, fizeram movimentos ondulares com os braços e com

as mãos para frente, enquanto a menina Cachoeira fazia movimentos com os braços soltos,

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158

como se nadasse. Quando indiquei que Oxum estava se olhando no espelho, os meninos Oceano

Tubarão Tigre e Leão Fogo fizeram, com uma das mãos, espelhos imaginários, e giraram no

próprio eixo, depois se deslocando pelo espaço sem parar e cada vez mais rápidos. O primeiro

menino depois apoiou o braço que estava com o espelho no outro braço; já o segundo menino

deixou o outro braço, sem ser o do espelho, livre.

Como eles giraram muito, pedi que parassem um pouco, para não ficarem tontos;

depois, voltariam a dançar como se estivessem nas cachoeiras. O menino Oceano Tubarão

Tigre disse: “Eu já tô tonto!”, enquanto Leão Fogo se apoiava nele. Os meninos saíram com

um braço esticado para frente, com a mão para baixo; depois, quando perguntei: “Cadê a

cachoeira?”, Oceano Tubarão Tigre intensificou com a mão e o braço um movimento ondular.

Enquanto isso, o menino Leão Fogo e a menina Cachoeira corriam pelo espaço.

A menina Cachoeira afirmou sua identificação e conexão com a mamãe Oxum – como

a chamamos em contextos espirituais – ao expressar: “Eu sou ela!”. Até mesmo o menino

Oceano Tubarão Tigre expressou essa identificação, quando disse para o amigo “Então agora

eu sou Oxum, tá?” – em uma vivência que agregou meninas e meninos, independente do gênero

feminino da deusa. Em outro momento, a menina Cachoeira compartilhou seus conhecimentos

a partir de sua vivência criativa com a dança de Oxum,

ao me dizer: “Ei, ela pode fazer assim!”, com os

movimentos ondulares dos braços e das mãos.

As crianças, ao experienciarem a dança de

Oxum, demonstraram autorias em suas criações, ao

serem estimuladas pelas características simbólicas e

mitológicas da deusa, além da música escolhida para

esse momento. Mergulhados nas cachoeiras de Oxum,

os Corpos Brincantes e dançantes das crianças

potencializaram uma conexão energética afroancestral,

na qual meninos e meninas, ao se balançarem no vai e

vem das águas doces de Oxum, evidenciaram o Corpo-

Dança Afroancestral (PETIT, 2015). Esse corpo, ao

experienciar a dança ou as expressões corporais, conecta-se à e evidencia uma ancestralidade

africana.

Nesse sentido, Ford (1999) potencializa a compreensão espiritual vinculada as(os)

deusas(es) orixás, em conexão com o indivíduo, a partir de diversas expressões artísticas e

cotidianas:

FIGURA 25 – DANÇANDO

AS ÁGUAS DE OXUM

Page 159: LIA FRANCO BRAGA

159

Portanto, pode-se chegar à segunda parte dessa fórmula espiritual do panteão iorubá:

se você seguir os deuses e as deusas, se você se envolver com os arquétipos presentes

nos seus inconscientes, por meio do mito, do ritual, da dança, da poesia, da intuição e

de outros modos de meditar sobre eles, também você será levado de volta à plenitude

divina original. Depois, por fim, existe a revelação de que o mesmo ciclo que dá vida

a deuses e deusas, dá vida a você, já que a grande pedra de Atunda [segundo o autor,

a palavra de origem Iorubá significa “aquele que destrói e cria de novo”] ressoa em

todos os momentos da sua vida, para a sua consciência de que: você está sempre sendo

esmagado de numerosas maneiras só para ser gerado outra vez física, mental e

espiritualmente (FORD, 1999, p. 209).

Observei outros momentos de curiosidade e interesse nas crianças, bem como de

identificação energética em relação a outras(os) orixás. Na 2ª oficina, utilizei um livro de pano

para a contação de histórias Conhecendo as(os) orixás, na qual falei de Xangô e disse que ele

também era um guerreiro lutador, que tinha dois machadinhos. Imediatamente, o menino

Oceano Tubarão Tigre, ao ver o nome no desenho, disse: “E o nome dos machados é Oxé!”, e

a menina Gatinha Folha repetiu o nome da ferramenta. Ao falar de algumas características

desse orixá, os meninos Leão Fogo e Onça Pintada brincaram com movimentos corporais que

lembravam uma luta. Algo que me chamou atenção foi o fato de o menino Leão Fogo afirmar

que esse deus poderia ser do bem ou do mal, e explicitou algum motivo, incompreensível na

gravação do vídeo. Eu lhe disse que ele era do bem.

O menino Oceano Tubarão Tigre, nessa oficina em questão, expressou, após o término

da contação de histórias, que gostaria de continuar olhando o livro para ver se encontrava outros

deuses: ele ficava alternando entre olhar o livro e entrar para a dinâmica do jogo/brincadeira

corporal Animais e emoções na floresta. Ao final da oficina, ele me devolveu o livro,

aproximou-se de outras crianças e se preparou para ir embora. Eu me aproximei do menino e

disse que iríamos continuar conhecendo os orixás nas outras oficinas, e ele demonstrou uma

expressão de alegria, surpresa e curiosidade.

Ao perguntar-lhe se havia gostado da oficina, e de qual dos orixás tinha gostado mais,

ele disse que gostou, sim, e manifestou interesse por “aquele que tem arma!”. Perguntei se era

“Oxóssi, o da mata”, e ele indicou que não; virando a página, mostrou Ogum e continuou

insistindo: “Aquele da arma!”. Além disso, indagou: “Ogum é aquele do trovão?”, e eu disse

que não. Mostrei Xangô, então ele disse: “Eu quero ser os dois!”. Eu disse ao menino que ainda

haveria uma brincadeira para ele escolher ser os deuses, e o menino ficou me mostrando e

indicando quem iria ser, através do livro.

Essa possibilidade de o menino Oceano Tubarão Tigre vir a “ser” os deuses ocorreu

na 7ª oficina, no momento das contações de histórias, quando ele interpretou o personagem

Ogum, destacando-se na primeira história Oxum e seu mistério (OLIVEIRA, 2009).

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160

Apresentei Ogum como o segundo personagem da história, amigo de Oxum, já

anunciando que estava próximo o momento de as crianças entrarem em ação. Nesse momento

a roda já tinha se desfeito, e todas as crianças estavam na minha frente, umas deitadas e outras

sentadas. O menino Oceano Tubarão Tigre perguntou: “É aquele dos reis dos trovões?”,

referindo-se a Xangô. Eu disse: “Não, não é esse, mas ele é da guerra, do ferro, ele faz armas!”.

Como já explicitado anteriormente, esse menino foi escolhido para representar Ogum, e a

menina Cachoeira, para representar Oxum.

Continuei narrando que Ogum, mesmo criança, trabalhava, e pedi para o menino

Oceano Tubarão Tigre ir mais para frente, para fazer a cena; ele ficou em uma postura que

lembrou como se estivesse mexendo na terra. Ogum construía ferramentas de ferro e o menino

continuou na sua proposição. É oportuno destacar que “Ogum é o desbravador, aquele que na

mitologia yorubá transformou a natureza criando as primeiras ferramentas. Por essa razão,

Ogum é relacionado à agricultura, à fabricação de armas brancas e à descoberta de inúmeras

técnicas artesanais” (LODY; SABINO, 2011, p. 129).

Esse mesmo menino também teve a oportunidade de experienciar “ser” os deuses no

jogo/brincadeira corporal Dançando com as(os) Orixás. Na dança do orixá Ogum, eu lhes

perguntei: “Na história, Ogum era quem?”, e Oceano Tubarão Tigre disse: “Um menino?”. Eu

disse: “Um menino que fazia o quê?”, e ele: “Armas”. Eu falei: “Armas, muito bem!”, e depois

ele vibrou pulando e dizendo: “Eu quero ser ele, eu quero ser ele!”

Mostrei alguns movimentos da dança de Ogum, como o de cortar as plantas, por

exemplo, portando uma espada (no caso imaginária), com as mãos fechadas, e com um desenho

pontudo nelas, passando uma por cima da outra várias vezes: “As duas mãos espalmadas, com

os dedos unidos, fazem movimentos alternados como se fossem lâminas, ora para cima, ora

para baixo” (LODY; SABINO, 2011, p. 131).

Ao caminhar e depois pular, o menino Oceano Tubarão Tigre expressou novamente:

“Ô, Lia, Lia, eu posso ser?”, e eu respondi: “Pode, pode”. E continuei a narração e a

demonstração dos movimentos: “Aí ele vai cortando aqui [fiz movimentos para baixo], aí ele

corta para cima, corta para baixo, aí ele puuuulaaa e ele giiiiiraaaa!”. Ao mesmo tempo em que

eu narrava e demonstrava, o menino Oceano Tubarão Tigre me acompanhava, fazendo à sua

maneira, com bastante vigor e energia – “assim, ô Lia” –, pulando com intensidade, com os

braços e a cabeça bastante energéticos, e os seus pés, ao tocar o chão, estalavam sons de pisada,

assemelhando-se à dança desse orixá, conforme descrição a seguir:

Ogum é o orixá do movimento, da rapidez, das descobertas, e tudo isso está

identificado nas coreografias das suas danças, que relatam de maneira teatral seus

Page 161: LIA FRANCO BRAGA

161

papéis na natureza e no mundo. Ogum também vive nas matas e possui um caráter tão

determinado e forte quanto o ferro, elemento de imediata identificação [...]. Ogum

desloca-se com velocidade, empreendendo trajetórias contínuas, como se estivesse

caminhando apressadamente ou mesmo correndo ao encontro de uma caça ou de um

material que será recolhido e por ele transformado (LODY; SABINO, 2011, p. 129-

130).

Reconheço que há, metodologicamente, outras formas de estabelecer relações com as

danças das(os) orixás – não apenas coreográficas –, que possibilite às crianças, além de

dançarem com seus corpos, vivenciarem a brincadeira no corpo e com as deusas e deuses. Essa

perspectiva foi experienciada quando eu disse que Ogum tinha um cavalo, no qual ele andava,

e fiz uma movimentação – som de cavalgada –, ao que o menino Oceano Tubarão Tigre me

acompanhou.

A relação com o cavalo se dá mais pelo sincretismo na Umbanda, entre Ogum e São

Jorge, mas achei interessante levar a figura deste animal, assim como do ser mitológico da

sereia, em Iemanjá, na ocasião da contação de histórias desta orixá, para que as crianças

tivessem mais elementos para brincar e dançar corporalmente.

Em uma segunda demonstração, o menino Leão Fogo também fez sua movimentação

de cavalgada, e depois Oceano Tubarão Tigre sentou em cima do outro menino, como se ele

fosse o cavaleiro, e o amigo, o cavalo. A Professora Sol lhes chamou atenção, mas eles

continuaram nessa movimentação.

Coloquei a música São Jorge, Ogum29, pertencente ao CD Ciranda dos Orixás, criado

e produzido pelo grupo Tempo de Brincar. O menino Oceano Tubarão Tigre, que era o

cavaleiro, uniu esta proposição com a outra, de Ogum, quando fez movimentos de corte com as

mãos para frente, passando uma mão em cima da outra, montado no cavalo representado pelo

menino Leão Fogo, que caminhava pelo espaço.

Solicitei que os dois meninos fizessem sozinhos, e distantes um do outro, movimentos

semelhantes de pular e soltar – o movimento de “corte no ar” –, o que depois se transformou

neles correndo pelo espaço, como se Leão Fogo seguisse Oceano Tubarão Tigre. Assim,

demonstraram uma espécie de luta, não entre si, mas com inimigos imaginários, e enquanto

Leão Fogo soltava sons fortes, Oceano Tubarão Tigre, ao final, girava um pouco.

Algumas danças simulam uma luta com facões, relatando nas coreografias o caráter

guerreiro do orixá [...]. Um comportamento ágil, repleto de impulsos rápidos, faz com

que as danças de Ogum sejam vigorosas e extremamente masculinas, [...] cada gesto,

cada movimento circular com o corpo, saltos (LODY; SABINO, 2011, p. 130).

29 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=m5Apebl43B8>. Acesso em: 24/10/2019.

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162

FIGURA 26 – GUERREIROS E GUERREIRAS DE OGUM DANÇAM

Fonte: Arquivo da Pesquisa

Edição: Lia Braga

Era a vez da dança de Xangô, e além do menino Oceano Tubarão Tigre, outro menino

se destacou na experienciação, que foi Leão Fogo. Algumas vezes, inclusive, senti que Leão

Fogo comandava energética e coreograficamente a dança.

Explicitei que Xangô era o deus do raio, dos trovões, e logo os dois meninos se

colocaram à minha frente, pulando animados, demonstrando que queriam participar. Oceano

Tubarão Tigre perguntou: “Eu posso ser, Lia?”, e Leão Fogo: “Eu também?”. Eu afirmei que

sim e continuei: “Vocês agora vão observar como é que Xangô dança! Xangô é o deus, é o rei

do fogo, dos raios e dos trovões, e da justiça! Vocês sabiam que Xangô tem a ver com o São

João?”. Enquanto eu falava, o menino Leão Fogo abraçava o menino Oceano Tubarão Tigre e

afagava o seu cabelo. O primeiro menino disse, colocando o peito para frente e os braços para

trás: “Eu sou o raio!”. A Professora Sol perguntou sobre a relação com o São João: “É mesmo,

Lia?”, e eu respondi que sim.

A menina Raposa perguntou: “Lia, ô Lia, a menina do vento [referiu-se a Oiá-Iansã],

ela ajuda Xangô?”, e eu confirmei que sim. Continuei narrando e demonstrando as

movimentações dançadas: “Xangô tem a ver com o São João por quê? O que é que tem no São

João? Uma fogueira! Aí Xangô, ele tem duas machadinhas que ele usa para se proteger”. O

menino Oceano Tubarão Tigre disse: “Sei, sei!”, e eu levantei as mãos para o alto, como se

segurasse os objetos imaginários, depois os cruzei em frente ao peito, e o menino Leão Fogo

também fez esse movimento. Continuei: “Aí ele dança assim, ó, em volta do fogo, girando com

as suas machadinhas [eu girei e as crianças giraram em volta de mim], ele usa seu machado

para atacar e defender”. Fiz uma movimentação que deu essa ideia, e os meninos Leão Fogo e

Oceano Tubarão Tigre também fizeram.

Page 163: LIA FRANCO BRAGA

163

Enquanto eu colocava a música São João, Xangô Menino30, de autoria de Caetano

Veloso e Gilberto Gil, interpretada pela dupla musical Palavra Cantada, o menino Leão Fogo

disse: “Esse é o machado!”, olhando para seu amigo Oceano Tubarão Tigre, que respondeu:

“Ei, esse é o machado de Xangô!”

Com a música, os meninos começaram a pular, e o menino Leão Fogo fez movimentos

como se soltasse algo pelas mãos; a menina Cachoeira também pulava freneticamente, e uma

hora se agachou bem rápido, e depois levantou rodopiando. O mesmo menino levantou os

braços para cima com energia e disse gritando: “Trovãooooooo! Fogo!”, enquanto o menino

Oceano Tubarão Tigre se posicionava de forma a se proteger.

Depois o menino Leão Fogo saiu um pouco da posição em que estava, colocou uma

das mãos em sua cabeça, girou com os braços bem abertos, depois parou e lançou um dos braços

para cima – o que me remeteu à imagem de lançar raios. Enquanto isso, eu disse: “Olha aí, o

que é que a música diz? Vamos lá, Xangô, o fogo!”. O menino Oceano Tubarão Tigre disse:

“Ahhhh, a gente tá fazendo o fogo!”, e eu, sorrindo, pedi: “Pois mostra aí o fogo, bem bonito

para eu ver!”. O menino lançou rapidamente um braço para baixo e foi para o chão; enquanto

isso, Leão Fogo, que vinha acompanhando, disse: “Eu também sou o fogo!”, e lançou os braços

para baixo, também se agachando.

Quando eu disse: “O machado de Xangô, o machado, o machado!”, eles se levantaram.

Leão Fogo fez como se marchasse com os machados imaginários para cima, depois os

posicionou em frente ao peito. Ao correr com o outro menino, eles começaram a lutar. O menino

Leão Fogo girou sem parar, de braços abertos, e o menino Oceano Tubarão Tigre girou uma

vez, tentou golpeá-lo, lançando um braço para frente. Depois, o outro menino, parando de girar,

lançou os dois braços para cima do outro. O menino Oceano Tubarão Tigre pulou um pouco e

soltou um som com a mão para cima do amigo, enquanto o primeiro menino girava e lançava

os braços para cima do outro.

A partir dessas experimentações corporais teatralizadas e dançadas, é possível

relacioná-las com a dança de Xangô:

A dança de Xangô é caracterizada pelo sentido de majestade, pela solenidade em estilo

marcial, cadenciado. Em determinados momentos da coreografia, esse orixá

representa o ato de lançar pedras e as atira sobre o mundo. Essas pedras são os

coriscos, pedras do raio, das trovoadas, dos relâmpagos que anunciam o poder do

fogo, o poder do rei [...] ao som do alujá [ritmo específico de Xangô] é uma dança

viril, que mostra o poder masculino daquele que, segundo a mitologia yorubá, conhece

e domina o fogo. A dança do alujá é uma sequência coreográfica à qual se pode

chamar de expansão, dança com grande plasticidade, que exige de quem dança

capacidade física e grande energia para poder acompanhar todos os gestos [...]. A

30 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=UaM7Hmmbs_c>. Acesso em: 27/10/2019.

Page 164: LIA FRANCO BRAGA

164

culminância dessa dança se dá pela realização de vários giros do corpo em torno do

próprio eixo, tendo os braços estendidos para cima e as mãos espalmadas, podendo

essa sequência ser intercalada com saltos, retornando-se depois a coreografia, desde

o começo (LODY; SABINO, 2011, p. 145-146).

FIGURA 27 – DANÇANDO O FOGO DE XANGÔ

Fonte: Arquivo da pesquisa.

Edição: Lia Braga.

Os arquétipos das(os) orixás, também como guerreirass e guerreiros, aproximaram a

experienciação dançada das crianças às possibilidades cênicas teatrais, como quando elas

simulavam lutas entre si. Portanto, uma hibridização entre as linguagens da dança e do teatro,

principalmente, tornou possível a performance das crianças, quando elas criavam as suas danças

ou vivenciavam personagens diversos, dentro das suas lógicas.

Nesse sentido, aproximo essas atitudes e experienciações das crianças às contribuições

de Merleau-Ponty (2006). O autor explicita o caráter essencial do pensamento infantil:

Pode-se falar de verdadeira representação do mundo na criança? [...] Supor na criança

alguma coisa desse tipo talvez seja desconhecer o essencial da mentalidade infantil

[...] Diferença essencial entre adulto e criança, é que para a criança tudo é, em certo

sentido, evidência, não há lugar para dúvidas [...] Atribuir à criança uma

“representação do mundo” é certamente fazê-la semelhante demais ao adulto, no

sentido de atribuir-lhe um conjunto de teses e explicações de adultos - e ao mesmo

tempo diferente demais do adulto -, pois a experiência infantil, cristalizada em

“representação do mundo”, aparece como absolutamente estranha à do adulto e

baseada em outra lógica. Talvez não falar de “representação do mundo” na criança

fosse a condição para chegarmos a tomar consciência dessa aderência às situações

dadas, que seria o caráter essencial do pensamento infantil (MERLEAU-PONTY,

2006, p. 230).

Page 165: LIA FRANCO BRAGA

165

Ainda no contexto da 7ª oficina, comecei a narrar a história Oiá e o búfalo interior

(OLIVEIRA, 2009), e perguntei se as crianças conheciam ou sabiam o que era um búfalo. A

maioria disse que não, e eu falei: “O búfalo parece um touro, ele tem um chifre, assim, ele é

grandão, o búfalo é muito legal!”

No início pedi para que o menino Leão Fogo e a menina Raposa, que iam representar

as personagens, ficassem lado a lado. A menina começou a representar Oiá-Iansã, caminhando

pelo espaço de forma diferente do seu andar cotidiano, e eu a incentivei. Depois fez movimentos

como se pulasse, abrindo as pernas e os braços retos para os lados; primeiro para um, depois

para o outro lado, de costas e de frente. O menino ficou um pouco perdido em suas

movimentações, andando um pouco, e depois se escorou nas paredes. A menina tentava falar

as falas da personagem, e pedi para ela: “Devagarinho, você vai rodopiar como o vento!”. A

menina repetiu a mesma proposição anterior, só que mais devagar, e em alguns momentos seus

pés ficavam em meia ponta, e ela pulava um pouco. Em outra ocasião, descobri que a menina

fazia aulas de ballet clássico; nesse sentido, ela já tinha uma experiência anterior em dança. Em

alguns momentos, a menina reproduziu as falas da personagem olhando para o público.

Em outro momento da história, quando expliquei que a personagem Oiá-Iansã se

transformara em búfalo – pois “a menina Oiá tinha conhecimentos que ninguém mais possuía:

ela podia transformar-se em animais. Dentre eles, o búfalo era o que ela mais gostava [...]”

(OLIVEIRA, 2009, p. 29) –, a menina Gatinha Folha e o menino Onça Preta expressaram que

queriam representar o animal: eu os chamei, mas não vieram.

Percebi que as crianças estavam muito dispersas, então resolvi terminar a história,

resumindo-a. Representei um pouco o búfalo com o meu corpo, enquanto narrava, agora sem o

livro, e o menino Leão Fogo, acocorado, imitou os chifres do animal. Terminei com a

mensagem final da história, adaptando-a, porque sua escrita original propõe uma profundidade

e um sentido filosófico maior. Na hora da contação, expressei desta forma: “Oiá-Iansã disse

assim para eles: ‘Toda menina tem dentro de si, e todo menino também, um animal, que tem a

força da natureza! E todos nós temos que respeitar os animais da natureza!’”

No jogo/brincadeira corporal Dançando com as(os) Orixás, quando experienciamos a

dança de Iansã (“Nós vamos conhecer a dança de Oiá-Iansã, lá da história, quem é Oiá-

Iansã?”), o menino Oceano Tubarão Tigre empurrou a menina Raposa, que até então estava

sentada e só observando as danças anteriores. Assim, ela se aproximou de mim, em meio a

outras crianças que já estavam participando, manifestando que queriam continuar, e eu disse:

“Ela é a menina dos ventos, dos raios… e também, ela se transforma no búfalo… Olha aqui

Page 166: LIA FRANCO BRAGA

166

como é que ela dança, ela dança muito rápido, com as mãos como se fossem os ventos, olha

aqui... Lá vem Iansã muito forte... e ela roda no vento, muito linda!”

Enquanto ia narrando, demonstrei alguns movimentos característicos da dança de Oiá-

Iansã, como um rápido deslocamento pelo espaço com os braços levantados para cima, com

movimentações para cima e para baixo, como se

chicoteasse algo, pelo uso do seu iruquerê (um

“espanta-mosca” de rabo de boi) nos rituais. Os autores

explicitam algumas características:

Suas sequências de ações […] apresentam as mãos como se

espanassem e empurrassem o vento ou os seres invisíveis […];

através dos movimentos da pessoa que dança, se entra em contato

com os eguns – ancestrais […] (LODY; SABINO, 2011, p. 141).

Como se pode observar na Figura 28, girei com

essa movimentação de braços, e as crianças me

acompanharam; o menino Oceano Tubarão Tigre, com

uma rápida caminhada, com suas perninhas e bracinhos

ágeis pelo espaço; e as meninas Cachoeira e Raposa

nos giros, comigo no centro e elas em volta de mim –

depois giraram intensamente e sem parar. No momento da caminhada eu pisava com força no

chão, provocando alguns sons, e a Professora Sol incentivou as crianças: “Com o pé bem forte,

pisa o pé bem forte no chão!”

Antes mesmo de colocar a música Oiá31, da dupla musical Palavra Cantada, a menina

Raposa continuou girando, com os braços bem abertos, para cima, e as palmas de suas mãos

estavam bem vivas; depois caminhou em meia ponta pelo espaço. Durante o início da música,

a menina continuava a girar e se movimentar pelo espaço, e, à sua maneira, realizou o

movimento de chicote que eu havia mostrado com os braços.

A menina Cachoeira girou com os braços abertos na lateral e depois os fechou para

baixo; já a menina Borboleta caminhou com os braços para cima e punhos cerrados, e marcava

bem os pés no chão, realizando sons. A menina Raposa continuou girando para um lado e para

o outro, se deslocando bastante pelo espaço, e por vezes dando saltinhos, sempre realizando as

“chicotadas” à sua maneira: “O voo – mobilidade das danças de Iansã – tem como princípio

31 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=BM_Z-zjxwfQ>. Acesso em: 27/10/2019.

Fonte: Arquivo da pesquisa.

Edição: Júlia Braga e Lia Braga.

FIGURA 28 – DANÇANDO OS

VENTOS DE IANSÃ

Page 167: LIA FRANCO BRAGA

167

um sentimento, uma intenção; é um estilo de quase flutuação no ar, implicando movimentos

rápidos de tronco e pequenos saltos sucessivos [...]” (LODY; SABINO, 2011, p. 142).

Algumas crianças se afastaram e a menina Raposa destacou-se, bailou sozinha pelo

espaço por alguns segundos, e seus braços ficaram no alto e também na lateral, para frente.

Algumas vezes a incentivei com “Linda!”. Quando eu disse “O vento, a liberdade!”, as outras

crianças retornaram, e a menina Raposa soltou mais seus braços, repetiu os movimentos e

depois girou várias vezes, enquanto a menina Cachoeira e o menino Leão Fogo realizaram

movimentos que me remeteram à ideia de soltarem raios com as mãos, fazendo sons. As

“danças de expansão de Iansã mostram diálogos coreográficos com o vento e com o ar, seu

principal elemento. Em suas coreografias há muita movimentação, exigindo-se rápidos

deslocamentos e trabalhos intensos com os braços” (LODY; SABINO, 2011, p. 141).

Ao propor o jogo/brincadeira corporal Dançando com as(os) Orixás, afino-me com as

reflexões e proposições de Oliveira (2010):

A Dança Mítica dos Orixás traz, em seu bojo, a história do protagonismo feminino e

negro na criação e manutenção do planeta Terra, as guerras vencidas, as conquistas

de terras, a nobreza de mulheres e homens negros. É preciso que se tenha a noção de

que, antes de se tornarem orixás, em solos africanos, tiveram uma história social para

além da mitológica, que ficou mais conhecida. Nesse sentido, levar à escola uma

professora de dança afro com esse conhecimento específico [...] capaz de mostrar o

movimento da dança [...] feito por Oxum nas águas dos rios, se olhando no espelho

enquanto penteava seus cabelos crespos; ou o movimento do rei Ogum quando, com

um facão na mão, abria clareias nas florestas, pode ser uma brincadeira bem

interessante: a professora faz os movimentos e os demais repetem. Além das

explicações dos movimentos e seus significados associados aos elementos da

natureza, o/a educador/a poderá contar algumas histórias, mitos afro-brasileiros para

ilustrar a oficina de dança [...]. Será um momento pedagógico inesquecível

(OLIVEIRA, 2010, p. 63).

A partir das experienciações e criações das crianças no jogo/brincadeira corporal

Dançando com as(os) Orixás, saliento a percepção da Professora Sol em relação às temáticas

propostas na pesquisa, na entrevista final cedida no dia 17 de junho de 2019:

Primeiro... eu adorei, assim. Achei uma prática bem inovadora, bem diferente. Gostei

do que foi proposto pras crianças... achei que você veio com uma proposta própria pra

idade delas... pro tema e procurou adequar sempre o tema e como eles intitularam as

brincadeiras... foi um tema intitulado por eles... uma ação intitulada por eles e eu achei

que ela ainda podia crescer mais sabe... sair de dentro da sala... a gente promover uma

ação maior, por exemplo, ali fora da sala, no pátio... aproveitar os movimentos... a

última… eu acho que a última intervenção que eu assisti foram dos movimentos... que

cada uma fazia um movimento... e eles conseguiram reproduzir movimentos bem

característicos dos orixás… eles reproduziam a mão pra frente, o balanço das ondas,

do vento... eu achei bem proveitoso.

Page 168: LIA FRANCO BRAGA

168

Outras relações interessantes entre as crianças e as(os) orixás ocorreu na 6ª oficina,

quando, na contação de histórias Iemanjá e o poder da criação do mundo (OLIVEIRA, 2009),

após algumas organizações iniciais, comecei com uma música criada por mim, com

acompanhamento do som do instrumento kalimba: “Vêm para cá vêm brincar com as ondas do

mar / Junto à mãe Iemanjá, a mãe dos orixás / É rainha do mar a mamãe Iemanjá / Odociabá

odociabá Odô Iyá”. Cantar “o-do-cia-bá” pode soar como “ô, doce iabá (mãe)”.

Na hora da música, uma criança tentou cantar, e a menina Gatinha Folha ficou atrás

da bolsa de palha que eu levava. Quando comecei “Junto à mãe…”, ela se levantou majestosa

e começou a dançar. Ela expressou movimentos circulares com o corpo e os braços em

amplitude, para um lado e para o outro, depois para baixo e com as mãos para frente. Também

moveu bastante os quadris de um lado para o outro, e por vezes acentuando-os para cima, como

se a menina manejasse as ondas do mar em seu próprio corpo.

O menino Leão Fogo, logo depois da menina Gatinha Folha, saiu detrás da bolsa, foi

para frente, movendo os braços para um lado, depois tocou rapidamente nas suas coxas, barriga,

peito e coxas novamente, realizando percussão corporal. Na última estrofe, “Odociabá…”,

levantou devagar os braços, bem abertos, para cima e para baixo, como se fossem asas de um

pássaro, levantando-os para cima em “Odô Iyá”. A menina Leoa Oxóssi, sentada na plateia,

também fez movimentos de braços para um lado, como se fossem pequenas ondas, e depois

levantou os braços na última frase musical. A menina Cachoeira levantou o dedo e disse: “Eu

adorei essa música!”

Considero que as crianças, encantadas e estimuladas pelo canto “da sereia”,

experienciaram e performaram, à sua maneira, o mar de Iemanjá. Assim, observo o Corpo-

Poroso delas, corpo este que respirou a maresia do mar, abrindo-se à criação na cadência das

ondas fluentes de seus movimentos, conectando-se também ao Corpo-Dança Afroancestral

(PETIT, 2015) evocado pela mãe das(os) orixás, Iemanjá, e seus filhinhos peixes – YèYé Omó

Ejá, “mãe cujos filhos são peixes”, no caso, as crianças.

Em um outro momento da contação, foi emocionante perceber o encantamento das

crianças diante da personagem/orixá Iemanjá. Por vezes, elas pareciam imaginar ser eu a

própria deusa. Acredito que, dada a minha conexão espiritual, a energia de minha mãe Iemanjá

estava comigo, me orientando, assim como a energia das(os) outras(os) orixás esteve presente

durante todo o processo com as crianças – sempre me inspirando e me guiando para este

trabalho.

Há um momento no desenvolvimento da ação cênica, de transição da Iemanjá criança

para a Iemanjá adulta, no qual pego uma saia branca de três camadas e a visto por cima de um

Page 169: LIA FRANCO BRAGA

169

vestido longo, azul-claro com estrelinhas prateadas, acrescentando um cinto prateado enfeitado

com búzios, imitando pérolas e outros elementos, além de uma fitinha azul com búzios e outras

composições, amarrada em minha cabeça. Então, expresso como narradora: “A menina Iemanjá

foi crescendo e deixou de ser uma menina, para se tornar...”. Nesse momento, a menina Gatinha

Folha apontou o dedo para mim e perguntou: “É você a Iemanjá?”, e eu respondi: “Não, eu não

sou a Iemanjá, eu estou representando Iemanjá!”. Continuei: “Ela se tornou uma grande mulher,

uma linda deusa do mar!”

Em momentos anteriores e também neste, várias crianças, com espontaneidade,

demonstraram expressões carinhosas: a menina Leoa Oxóssi cheirou meus cabelos cacheados

e expressou: “Uhmmmm, como você tá cheirosa!”; o menino Onça Pintada disse: “Tá

lindona!”; o menino Onça Preta, levantando os braços, disse: “Você tá muito, muito, muito

linda!”; o menino Onça Pintada, novamente, se manifestou: “Tá linda do tamanho do planeta!”;

o menino Onça Preta, dessa vez, se levantou, chegou perto de mim e, pulando, disse: “Você tá

linda do tamanho do sol!”, entre outras expressões.

Enquanto as crianças se manifestavam, eu agradeci e busquei continuar a narração, um

tanto envergonha e achando graça, como a Professora Iemanjá, que riu em alguns momentos.

Ela interveio no final, quando expressou: “Eu também tô achando a Lia muito linda, porque

agora ela não é Lia, ela é Iemanjá!”

Cabe mencionar a narrativa da Professora Iemanjá, por ocasião da entrevista final,

cedida no dia 19 de junho de 2019, ao considerar a contribuição de minha intervenção

metodológica, artística e pedagógica, sob a forma de pesquisa:

[...] eu sou fã de pesquisa, eu acho que, não existe docência sem pesquisa, né? E as

pessoas pensam que os professores de Educação Infantil não precisam pesquisar, é

bem assim, é um engano! Porque a gente tem que pesquisar muito! Até porque a nossa

metodologia se constitui através de um tema de pesquisa [metodologia desenvolvida

no NEI], então a gente pesquisa sobre as crianças, a gente pesquisa o que é melhor

para elas, a gente pesquisa a metodologia da escola, a gente pesquisa a melhor maneira

de ensinar, material, tanta coisa, antes de estar ali, na sala de aula, né? É, muita coisa

envolvida, então, quando vem um pesquisador, que traz coisas novas, por exemplo,

eu também, nunca mais tinha me fantasiado, para ler história? Isso era uma coisa que

eu fazia muito quando eu entrei na escola, e eu adoro! [...] Aí, eu lembro, eu vejo que

eles, quando estão prestando atenção, na história, que você tá contando, e você está

com os trajes, isso faz [ela riu] muita diferença, né? Para [...] essa entrada na, na

ludicidade. É como se eles [expressão e som de surpresa] imaginassem realmente que

você era Iemanjá.

A professora destaca que as crianças realmente imaginaram que eu fosse Iemanjá, ao

representar a personagem/deusa, dando voz e corpo a ela, com adereços e figurinos específicos

– como coroa de cabeça, que simboliza o adê; o espelho, que simpoliza o abebé; dentre outros.

Page 170: LIA FRANCO BRAGA

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Procurei utilizar também referências, como três bonecas negras: uma abayomi – que a simboliza

criança –, uma sereia chamada Janaína, amiga da Iemanjá criança, e uma outra boneca, maior,

com as características dessa orixá, simbolizando-a na fase adulta. Essa especificidade será

retomada e aprofundada no próximo tópico.

Ao propor performar as personagens, articulando dança, teatro e música, acredito que

a(o) proponente ou facilitadora(or), seja professora(or), educadora(or), artista ou

pesquisadora(or), pode estimular as crianças a trilharem novos caminhos de aprendizagem e

construírem novas relações e visões de mundo. Assim sendo, crianças podem ser instigadas a

exercitarem suas percepções, imaginações, sensibilidades e criações, bem como interpretarem,

vivenciarem e performarem, com seus corpos, as personagens, as músicas, as histórias, os jogos

e as brincadeiras, como destacado em alguns exemplos.

Nesse sentido, adultos e crianças, aprendem mutuamente, construindo juntos

articulações propositivas e criativas, artísticas e educacionais. Nesse cenário, as contribuições

de Martins (2003) enriquecem a discussão, ao explicitarem relações entre corpo, performance

e espiritualidade afro-brasileira:

[...] Minha hipótese é a de que o corpo em performance é, não apenas, expressão ou

representação de uma ação, que nos remete simbolicamente a um sentido, mas

principalmente local de inscrição de conhecimento, conhecimento este que se grafa

no gesto, no movimento, na coreografia; nos solfejos da vocalidade, assim como nos

adereços que performativamente o recobrem [...]. No âmbito dos rituais afro-

brasileiros, a palavra poética, cantada e vocalizada, ressoa como efeito de uma

linguagem pulsional e mimética do corpo, inscrevendo o sujeito emissor, que a porta,

e o receptor, a quem também circunscreve, em um determinado circuito de expressão,

potência e poder. Como sopro, hálito, dicção e acontecimento performático, a palavra

proferida e cantada grafa-se na performance do corpo, portal de sabedoria. Como

índice de conhecimento, a palavra [...] é essencialmente [...] movimento dinâmico, e

carece de uma escuta atenciosa, pois nos remete a toda uma poesia da memória

performática dos cânticos sagrados e das falas cantadas no contexto dos rituais

(MARTINS, 2003, p. 66-67).

Destaco algumas expressões das crianças e da Professora Iemanjá em relação as(os)

orixás, por ocasião da 8ª oficina, nos Afrodiálogos finais, quando formei uma roda e desenvolvi

diálogos sobre a pesquisa:

Eu: “Certo, e sobre as histórias...”

Menino Gato Ninja do Fogo: “Eu achei triste, quando aquele irmãozinho Ibeji

morreu!”

Menina Borboleta: “A parte que eu mais gostei foi quando o irmão Ibeji viveu de novo!

Eu tô toda doida!”

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[Várias crianças falaram ao mesmo tempo, e outra disse: “Quando o Ibeji morreu!”]

Eu: “Certo. […] E dos personagens das histórias, o que é que vocês acharam deles?”

Menina Gatinha Folha: “Bem legal!”

Professora Iemanjá: “Qual foi? Diz aí um que vocês se lembram”.

Menina Gatinha Folha: “Oxóssi!”

Professora Iemanjá: “Pois, eu lembro de uma, que eu mais gostei, Lia...”

Menina Raposa: “A mãe do mar?”

Professora Iemanjá: “Foi essa! Como é o nome dela?”

Algumas crianças: “Iemanjá!”

Eu: “Iemanjá, que legal! [...] Para vocês, o que é que vocês aprenderam sobre os

orixás?”

Menina Raposa: “Eu aprendi que o Oxóssi, ele fazia muitas armas, e plantas [...] pra

se defender dos inimigos! [...] Ele gostava muito dos animais que tinha lá, ele brincava

muito com eles! Mas [...] os inimigos, ele [...] combatia os animais, com suas

armaduras!”

Menina Gatinha Folha: “E também eu aprendi que, [...] Oxóssi [...], ele gosta muito

da cor verde, ele tem o bicho de estimação, que é uma onça!”

Eu: “Muito bem! Diga, Gato Ninja do Fogo!”

Menino Gato Ninja do Fogo: “Eu sei que quem criou as armas foi o cara que Raposa

falou, que era o irmão...”

Alguma criança: “Oxóssi!”

Eu: “Quem criou as armas foi Ogum! Oxóssi também tinha um arco e flecha da mata!

Por isso que ele usava essa arma para proteger os animais!”

Menina Gatinha Folha: “[Alguma palavra inaudível] falar uma coisa ainda! Eu acho

que os orixás são, são [...] deuses, deuses da mata, deuses do... da água e deuses da...

África!”

Menina Borboleta: “Irmão gêmeos!”

Eu: “Os irmãos gêmeos são um orixá! Para você, eles eram pessoas comuns, eram

deuses? Eram o quê?”

Algumas crianças: “Deuses!”

Menino Gato Ninja do Fogo: “Eles eram filhos de...”

Menina Gatinha Folha: “Da mãe do mar!”

[Menina Raposa começou a puxar a música “Iemanjá é a mãe do mar / Iemanjá é

Iemanjá…”, e algumas crianças também começaram a cantar.]

Page 172: LIA FRANCO BRAGA

172

Professora Iemanjá: “É, Lia, é porque durante o São João a gente escutou essa

música... ‘Coco para mãe do mar, coco de roda32.’”

Eu: “Pronto! E aí, gente, o que é que vocês aprenderam sobre a África? Vocês já

conheciam a África?”

Menina Gatinha Folha: “Eu aprendi que lá tem muitos deuses, bem legais!”

Menina Raposa: “Eu também aprendi que [frase que não consegui compreender pelo

barulho]… que ele era o orixá da paz! Tem, tem um orixá que ama o branco [...] ele é

da paz e, e, então por isso que toda vez que um alguém tá estressado, ele faz a paz pra,

pra, se alguém ficar, ficar… fica bem tranquilo! Então, ele nunca está estressado, ele

está seeeempre da paz!”

Eu: “Você lembra o nome dele?”

Menina Raposa: “Nããão!”

Eu: “O-xa...”

Alguma criança: “…ssi!”

Eu: “O-xa-lá! É o nome desse orixá!”

Menina Gatinha Folha: “E também… Aí... aquele que… tem a paz, ele… adorava

ficar com armas!”

Eu: “Ele era velho!” [A partir de um comentário de uma criança]

Menina Gatinha Folha: “E ele adorava ficar, adorava armas!”

Eu: “O da paz adorava armas? Eu acho que não!”

Menina Gatinha Folha: “Não, é porque ele tinha um negócio aqui...”

Eu: “Um cajado!”

Várias crianças: “Um cajado!”

Eu: “Porque ele era velho, né?”

[Algumas crianças falaram ao mesmo tempo]

Menina Gatinha Folha: “E também ele… gostava muito de tambores, eu acho!”

Eu: “É, gostava de tambores, com certeza!”

Alguma criança: “Deixa eu fazer uma música?”

Por ocasião da 7ª oficina, após o jogo/brincadeira corporal Dançando com as(os)

Orixás, reservei um tempo para que, com base nos conhecimentos e práticas desenvolvidas, as

crianças realizassem desenhos, na atividade Desenhando as(os) Orixás.

32 Música escutada na versão da cantora Khrystal. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=W9S4piYHxHc>. Acesso em: 07/10/2019.

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173

Inicialmente elogiei a todos, dizendo: “Meus amores, eu achei lindo vocês dançando!”.

Depois fomos ver um cartaz que elaborei com os nomes e algumas características das

divindades trabalhadas durante a pesquisa, para auxiliar no processo de escolha das crianças

em relação a(o) orixá que gostariam de desenhar.

Destaco alguns comentários naquele momento preparatório. Quando falei de Oxum, a

menina Raposa expressou: “A que eu mais gosto é a que você disse que ama!”, e eu respondi:

“É a Oxum!”, e ela disse: “Eu amo a Oxum, porque ela vai me proteger!”. Eu falei: “Exatamente,

que coisa boa, eu também amo Oxum!”. Questionei as crianças: “Os orixás, qual é a cor dos

orixás, da pele deles?”, e o menino Onça Preta disse: “Neeegra, como sempre!”. A seguir,

apresento os desenhos das crianças que participaram da 7ª oficina:

FIGURA 29 – ORIXÁS PELAS CRIANÇAS

Edição: Daliana Medeiros Cavalcanti e Lia Braga

A partir das intensas experienciações das crianças estimuladas pelo universo das(os)

orixás, por meio das histórias, das músicas, das encenações teatrais, das danças, dos jogos, das

brincadeiras e de suas performances corporais, os quatro conceitos-chave propostos aqui –

Corpo-Poroso, Corpo Brincante, Corpo-Dança Afroancestral e Criança Performer – se

articularam nessa gira contextualizada na unidade circular Criança Orixás. Evidenciamos assim

Page 174: LIA FRANCO BRAGA

174

o encantamento e a potência que essas deusas e esses deuses negros mobilizaram nas criações

afro-brincantes, artísticas e poéticas das crianças.

4.5 AS CRIANÇAS E SUAS RELAÇÕES COM A NEGRITUDE

FIGURA 30 – GINGANDO E DANÇANDO CAPOEIRA

Fonte: Arquivo da pesquisa.

Edição: Júlia Braga e Lia Braga.

Será desenvolvida neste último tópico a unidade circular Criança Negritude, que se

refere às experienciações das crianças sobre as manifestações simbólicas e culturais, entre

outras, que perpassam a negritude, bem como expressões positivas (como valorização,

reconhecimento etc.) ou negativas (como preconceito, racismo, etc.) sobre elas.

Na 1ª oficina, comecei a comentar em forma de narrativa as fotografias do livro

Crianças – Olhar a África e ver o Brasil, do fotógrafo Pierre Verger, que contém 14 fotografias

e textos de acompanhamento. Explorei 11 fotografias, com os títulos curiosidade, brincar,

alegria, o pequeno camelo, tambores, kalimba, flauta, afoxé, esculturas, embarque e homem

sábio, e tentei dialogar com as crianças, associando as características culturais dos povos

africanos e sua aculturação ao contexto brasileiro.

Quando apresentei a fotografia intitulada alegria, a menina Coelhinha expressou:

“Tenho medo de africanos!”. Eu lhe perguntei: “Você tem medo dessa menina?”. Ela olhou,

pensou por alguns segundos e disse “Não”. Eu falei: “Pois ela é africana!”. Já na 4ª oficina, em

conversa informal, a mesma menina demonstrou uma opinião diferente da anterior e indagou

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se haveria histórias dos índios. Eu disse que dos índios, não, mas sim dos africanos. Então ela

disse: “Eu adoro as histórias dos africanos, eu adoro aprender com vocês!”

Na 4ª oficina, para a história Ajê Xalugá e o seu brilho intenso (OLIVEIRA, 2009),

decidi contar com o acompanhamento do livro. Perguntei como era o nome do livro, e o menino

Oceano Tubarão Tigre disse: “Omo oba”, ao que eu complementei: “Omo-Oba: histórias de

princesas”. Falei o nome da autora, Kiusam de Oliveira, e a menina Raposa perguntou: “Ela

é... uma africana?”. E eu respondi: “Ela tem origem africana, mas nasceu no Brasil!”. Ao

mostrar a primeira imagem do livro, que apresenta a personagem Ajê Xalugá, houve algumas

manifestações:

Professora Sol: “Uauuuu, que lindooo!”

Eu: “Essa menina aqui, que vocês estão vendo…”

Menina Raposa: “Ela parece uma deusa da água!”

Menino Oceano Tubarão Tigre [animado e apontando para o livro]: “Olha, acho que

ela é da água!”

Eu [com energia de empolgação]: “Muito bem, da água! E aí, Ajê Xalugá tem que cor,

qual é a cor dela?”

Várias crianças: “Preeeto!”

Eu: “Preto, negra, né?”

Menino Leão Fogo: “Neeeegra, igual a você!”

Eu: “Eu… tu me acha negra? Eu acho lindo ser negra, que legal! Muito obrigada!”

Menino Onça Preta: “Eu não gosto de ser negro!”

Eu: “Ai, pois eu adoro ser negra, eu adoro pessoas que são negras!”

Menina Leoa Oxóssi: “Eu não gosto!”

[Vários burburinhos]

Menino Oceano Tubarão Tigre: “A minha avó é negra!”

Eu: “A sua avó é negra, que legal!”

Menina Raposa: “Eu sou um pouquinho negra!”

Eu: “É um pouquinho negra, né? Muito bem! Vocês sabiam que os orixás são negros

e negras? Os que eu tô contando as histórias? Eles são negros e negras! E essa menina

é uma orixá feminina, e essas histórias são da época que elas eram crianças, igual a

vocês!”

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Enquanto eu narrava, a menina Gatinha Folha pegou o braço da menina Borboleta e

passou-o por cima de seu pescoço, pousando o braço da menina em seu ombro; ficaram por um

bom tempo escutando a história abraçadas. Em alguns momentos, as suas cabeças se uniam, e

a menina Gatinha Folha fazia carinho na amiga. Isso me chamou atenção, porque as meninas

têm características extremamente diferentes uma da outra – uma com características brancas, e

a outra com características negras.

Outras expressões parecidas das crianças foram manifestadas quando, na 7ª oficina,

comecei a narrar a história Oxum e seu mistério (OLIVEIRA, 2009), com o acompanhamento

do livro. Com a primeira imagem em aberto, com uma linda figura da menina Oxum, a menina

Lua tocou com seu dedo na figura e sorriu. Depois se apoiou em mim e pegou o instrumento

que estava no meu colo. O menino Oceano Tubarão Tigre disse: “É Oxum, é Oxum!”

Eu disse que achava a menina muito bonita, e o menino Onça Preta disse: “Eu não

acho!”. E eu respondi: “Eu acho ela linda, mas você tem o direito de não achar!”. O menino

Oceano Tubarão Tigre expressou: “É porque você gosta das pessoas negras!”, e eu respondi

sorrindo e concordando com o menino. Então, o menino Leão Fogo apontou o dedo para mim

e disse: “Então você é negra!”, e eu respondi: “Eu não sou neeegra, mas eu gosto muito das

pessoas negras, certo?”. O menino Oceano Tubarão Tigre falou, assim como da vez passada,

que uma de suas avós é negra, e a Professora Sol sorriu; então o menino Leão Fogo disse: “A

minha também!”. Perguntei qual era a cor da menina da ilustração do livro, e o menino Oceano

Tubarão Tigre disse: “Verde!”, e eu perguntei: “Ela é verde?”. O menino Onça Preta falou:

“Neeeegra!”, e eu completei: “Neeegra, muito bem!”

Pode-se perceber, mesmo com algumas manifestações negativas, que certas crianças

expressaram uma postura de afirmação em relação à negritude – a partir de laços familiares,

por exemplo, como os meninos Oceano Tubarão Tigre e Leão Fogo, que disseram que suas

avós são negras, e na fala da menina Raposa, na contação anterior, que disse: “Eu sou um

pouquinho negra!”

Ocorreu um fato curioso entre a penúltima e a última oficina. Cruzei casualmente com

o menino Oceano Tubarão Tigre, em um passeio em um parque da cidade de Natal. O menino

estava com seus pais e, ao me ver, agarrou-se em mim; nos abraçamos, e seus pais expressaram

simpatia. A mãe disse: “É a tia Lia, da pesquisa?”, e eu respondi que sim. Ela comentou: “A

gente vinha conversando sobre Salvador, né? Aí disse [ela referiu-se à fala do menino], ‘Eu

acho que a Lia ia amar Salvador, porque ela ama negros!”. E, abraçando o menino, finalizou:

“Então ela ama você?”, e eu falei: “Com certeza!”, e nos despedimos.

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Na 4ª oficina, a partir das personagens da história Ajê Xalugá e o seu brilho intenso

(OLIVEIRA, 2009), referi-me às personagens Olocum e Iemanjá e consegui desenvolver um

diálogo sobre a valorização positiva de características negras, como o tom de pele e os cabelos

cacheados, enfatizando a diversidade de belezas com as quais as crianças conviviam em suas

realidades:

Eu: “E vocês perceberam como é a cor deles? Que é a cor... Negra, né?”

Menino Onça Preta: “Que é a cor... que eu não dou muito valor!”

Eu: “Mas eu acho a cor negra linda, meu amor, sabia?”

Menino Onça Preta: “Eu não acho!”

Eu: “Ó, a cor branca é linda, a cor negra é linda! Eu tenho os cabelos… e como é, ele

é liso ou cacheado?”

Alguma menina: “Cacheado!”

Eu: “Eu adoro o meu cabelo cacheado!”

Menina Borboleta [levanta-se um pouco e diz, tocando em seu cabelo]: “Eu também!”

Eu: “Que lindo, meu amor!”

Menina Leoa Oxóssi: “Eu também!”

Eu: “O cabelinho da [referi-me a uma das meninas] é liso.”

Menina Raposa: “E ela tem olhos verdes [várias crianças falando ao mesmo tempo]…

e é a única que tem olhos verdes!”

Eu: “E ela é tão linda como a [fui falando o nome de algumas meninas, com diversas

características], como todo mundo aqui. Todo mundo é lindo e linda do jeito que é!”

[Enquanto eu falava, as meninas ficaram bem próximas umas das outras, quase se

abraçando, olhando-se entre elas.]

Convém ressaltar algumas das considerações da Professora Sol, na entrevista final,

quando ela destaca os aspectos relevantes vivenciados na pesquisa e a contribuição desta para

a formação das crianças:

Como, por exemplo, os conteúdos ministrados, né, eles conseguiram entender, é... que

existe outra formação além do que é dado socialmente pra eles... eles conseguiram

diferenciar... não tive condições de conversar com eles sobre religião, mas acredito

que eles já conseguem diferenciar e desmistificaram [...] muita coisa do que eles já

sabiam, se identificaram com livros, né... de matriz afro, tanto que agora eles

identificam quais são os livros e sugerem as leituras [...] e assim discursos bem mais

empoderados e mais fortes sobre cabelo, cor, como se portar diante das outras

pessoas... um discurso bem mais forte que eu percebo nas crianças agora [...], elas

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conhecem melhor a temática e já conseguem indicar, falar sobre esse tema com outras

pessoas, entre si também, já é muito comum.

Nessa confluência de olhares, retomo a autora Kiusam de Oliveira, em entrevista

cedida a Camilla Hoshino, para o portal Lunetas, a respeito de como a literatura infantil e a arte

podem servir como ferramentas para se falar sobre representatividade:

A literatura infantil e a arte devem caminhar juntas e podem ser vistas como ferramentas

importantes para pensar e construir esse “corpo-resistência”. Escrevo focada no

empoderamento das crianças e jovens negros, mas indiretamente meus textos

proporcionam oportunidades para que não negros se vejam no processo relacional com a

diversidade entre as pessoas a partir das diferenças. Proponho textos capazes de revelar a

beleza do povo negro, fortalecendo as características da criança negra que possui cabelos

crespos, nariz largo, lábios grossos, etc. Isso também revela a possibilidade de brancos

refletirem sobre seus privilégios em sociedades racistas como a nossa, entendendo que

há outros padrões de beleza e que podem ser solidários numa luta que é de todos. Tenho

chamado o tipo de literatura que produzo de “Literatura Negra do Encantamento”. Ela

está focada na ancestralidade e no fortalecimento das identidades negras. Ela é capaz de

atingir as estruturas psíquicas mais profundas de jovens e crianças negras, provocando as

costuras psíquicas necessárias para que suas identidades, fragmentadas pelas vivências

racistas, sejam reconstruídas de forma saudável. Tal literatura depende da arte presente

nas ilustrações que devem encantar crianças e jovens negros para que se sintam

orgulhosos do que veem e se reconheçam naquelas imagens. Esse tipo de literatura

considera as situações de conflitos existentes nos corpos negros bem como no corpo

social, as tensões presentes nas relações interpessoais, sem perder de vista a necessidade

de reencantamento pelo próprio corpo (OLIVEIRA, 2017, on-line).

Considero que uma das formas de se trabalhar com a representatividade negra é usando

bonecas e bonecos, entre outros objetos. Utilizei, durante algumas oficinas em que contei

histórias dos Ibejis, dois bonecos para representar os gêmeos; e, na 6ª oficina, utilizei bonecas

na contação de histórias Iemanjá e o poder da criação do mundo (OLIVEIRA, 2009).

Durante a contação, as crianças ficaram muito curiosas quando peguei uma boneca

abayomi para representar Iemanjá criança, bem pequenina: aproximaram-se para ver, e o

menino Onça Pintada ficou intrigado, porque não conseguia ver o rosto dela, comentando isso

diversas vezes.

Narrei que Iemanjá, quando ainda era pequena, criança e princesa, morava no “Orun,

que é assim como o povo Iorubá chama o céu!” e se sentia muito sozinha, mas tinha o poder

da imaginação. Ela havia criado uma amiguinha para ela, para lhe fazer companhia. Tirei então

da bolsa de palha uma sereia negra, de longos cabelos em vários tons de azul e rosa, e,

interpretando Iemanjá criança, eu disse: “Janaína, oi, Janaína, você veio me fazer companhia,

vamos lá!”. A personagem Iemanjá começa então a cantar: “Janaína Janaína Janaína / É a

sereia menina Janaína Janaína / É a sereia do mar / Onde eu quero morar / E também brincar /

Ô, Janaína / Me leva para lá.”

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Quando retirei a boneca da bolsa de palha, a Professora Iemanjá sorriu, e a menina

Gatinha Folha ficou balançando animada a cabeça. Na hora em que comecei a cantar, passei a

boneca bem próximo às crianças, fazendo movimentos ondulares com ela, a Janaína. A menina

Cachoeira expressou: “É uma sereia, uma sereia!”, enquanto a menina Borboleta se levantava,

ria e a admirava. A menina Gatinha Folha e o menino Onça Preta primeiro se agacharam e

tocaram nela, e depois se levantaram, para pegar melhor, principalmente a cauda, feita de

lantejoulas prateadas.

Enquanto personagem, a menina Iemanjá reclama de solidão e tira da cesta um espelho

azul, o seu abebé, movimentando-o com o lado que reflete a imagem, mostrando-o para as

crianças. A personagem Iemanjá questionou se um dia iria conhecer tantas crianças lindas como

as que estava vendo. Naquele momento, a maioria das crianças se aproximou para se olhar

através do espelho.

Há um determinado momento em que, da boca de Iemanjá – depois que

Olodumare/Olorum, o deus criador, colocara as mãos em sua barriga, que cresce muito –,

surgem as nuvens. A menina diz que gosta muito das nuvenzinhas, porque elas se abraçam; e

mesmo antes de pedir permissão, a menina Gatinha Folha abraça o menino Onça Preta. Depois,

a princesa Iemanjá pede para as crianças abraçarem quem estiver ao seu lado, e conta até três.

As crianças se abraçam carinhosamente, formando às vezes um montinho, com um grupo maior.

Mesmo dizendo “Pronto!”, elas continuaram por mais alguns segundos nos abraços. A

Professora Iemanjá, que sorriu no momento dos abraços, pede para elas pararem, para

continuarmos a história, expressando: “Que abraço gostoso!”

Nesse sentido, a história de Iemanjá, no momento dos abraços, permitiu que fossem

estimulados gestos de carinho e respeito para com todas as crianças, independentemente do tom

de pele e de outras características físicas. Apesar de algumas expressões de preconceito já

internalizadas e manifestadas por algumas crianças durante alguns momentos, a turma

embalou-se em abraços coletivos e “gostosos”, como a própria professora expressou.

Ao continuar narrando, perguntei se eles sabiam que Iemanjá havia tido muitos filhos

orixás, porque ela era a mãe dos orixás. E muitas crianças disseram que sim; o menino Leão

Fogo expressou: “Porque ela é uma rainha!”. Aproveitei a deixa do menino, para tirar da cesta

de palha um acessório que é feito com muitos búzios e que utilizo para coroar Iemanjá adulta

– é o seu adê, sua coroa, que, no caso do meu acessório, também acaba cobrindo parte do meu

rosto. O menino Onça Pintada disse: “Tá atrapalhando a sua vista, é?”, e eu disse que não.

Retiro uma boneca que representa Iemanjá como adulta/orixá, e o mesmo menino

disse: “Poxa, como ela tá muito grande!”. Peguei o abebé dela e, com o espelho em uma das

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mãos, e a boneca em outra, me pus a girar: “E ela ia dançar, enquanto as pessoas saudavam

ela... Odô Iyá Odociabá, mamãe Iemanjá, salve a rainha do mar! Odô Iyá Iemanjá, salve a

rainha do mar, salve a mamãe Iemanjá!”

Após a contação, quando disse que iríamos brincar, as crianças vibraram; e enquanto

eu ia organizando os objetos, algumas crianças pegavam neles e até brincavam. O menino Onça

Preta pegou a boneca abayomi, que representa Iemanjá criança, ficou pulando, deu uma volta

e disse: “Quá quá, eu sou o boneco, quá quá quá, eu sou o bonequinho!”, repetindo isso várias

vezes; a menina Leoa Oxóssi ficou com a boneca Janaína sereia, jogando seus cabelos para

baixo e alisando seu corpo, e em um momento girou com ela de mãos dadas; a menina Borboleta

colocou a coroa de búzios em sua cabeça e saiu andando, enquanto a menina Gatinha Folha a

seguia, e depois colocou a coroa em sua cabeça, ao que o menino Gato Ninja do Fogo elogiou:

“Ficou bonita, ficou bonita!”. Contei com o apoio da Professora Iemanjá para envolver as

crianças na tarefa de guardar as coisas. A menina Leoa Oxóssi ficou de frente para a câmera do

computador e, com muita criatividade, ao brincar

com a boneca sereia Janaína, disse: “Olá, eu sou

a Iemanjá [...] Odô Iyá Odô Iyá [como no som da

música que cantei]”. Depois eu peguei da menina

a boneca e fui guardá-la.

Dessa oficina, a menina Lua não quis

participar. Quando terminou, fiquei interagindo

com ela e lhe mostrando alguns objetos

utilizados – como, por exemplo, o espelho de

Iemanjá –; ela ficou rindo e se mirou, e depois

tocou um pouco o instrumento kalimba, que eu

havia levado no dia. Depois ela pegou novamente

o espelho para se olhar, voltou a tocar o

instrumento e cantou uma música. Ela saiu de

perto de mim, ao que levei embora a boneca

sereia Janaína; ela observou e interagiu com a

boneca nesse momento. A menina Cachoeira, a

respeito da boneca que representa Iemanjá como

orixá, perguntou: “Compra essa boneca para mim?”, e eu lhe respondi: “Meu amor, eu não

posso comprar essa boneca para você!”

FIGURA 31 – LIA MIRANDO-SE NOS

ABEBÉS (ESPELHOS) COM AS BONECAS

IEMANJÁ ORIXÁ E JANAÍNA SEREIA

Fonte: Fotografia de Malvinier Macedo

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Destacarei a seguir algumas apreciações da Professora Sol a respeito do uso de alguns

recursos metodológicos com foco nas relações étnico-raciais e, mais especificamente, na

negritude e nas africanidades, mencionando as estratégias metodológicas da pesquisa e a

contribuição desta à sua prática docente:

Passei a conhecer muita… muita... muita coisa... assim... eu tinha algumas leituras,

conhecia algum ou outra coisa da cultura, mas eu não tinha tido a experiência como a

sua, como você proporcionou... então minha leitura vinha da universidade ainda, dos

cursos de formação, mas eu nunca tinha vivenciado uma prática... então você clareou

muito, de como começar, de onde começar, de que materiais trazer, então eu sempre

me encantava muito com os instrumentos, tanto que eu acho que você puxava um

instrumento e você dizia “oh o kalimba... é um tambor, é isso... é aquilo”... eu sempre

tive muita vontade de trazer, mas eu não... realmente eu não sabia como [...] então

procuro ter muito cuidado com o discurso com as crianças, então eu não sabia como

trazer essa temática pras crianças, como adequar meu discurso ao discurso delas e isso

você trouxe muito bem, né. E nos envolveu muito, todos... crianças e adultos.

É oportuno fazer alguns entrelaçamentos entre o Corpo-Poroso, o Corpo Brincante e

o Corpo-Dança Afroancestral (PETIT, 2015) manifestados pelas crianças. Assim, é possível

integrar negritudes e africanidades. No início da contação de histórias da 5ª oficina, Os Ibejis

encontram água e salvam a cidade (PRANDI, 2001), frisei que o som do instrumento kalimba

é muito suave, e que eles precisariam fazer silêncio para escutar. O menino Onça Preta

colaborou e disse: “Muito silêncio, assim!”, e colocou o dedo na boca. Comecei a cantar e a

tocar uma música criada por mim: “Vamos lá, vamos lá, vamos todos escutar / Vamos lá, vamos

lá, vamos todos escutar / Esse som da kalimba, que agora vou tocar / Esse som da kalimba, que

agora vou tocar / E de onde é que ele vem? / Ele veio da África! / E de lá também vêm deuses

da natureza! / Orixás, Iorubá / Um povo tão bonito! / E de lá também vêm os gêmeos Ibejis.”

Logo após ter iniciado a música, o menino Onça Preta se levantou e começou a fazer

uma dança com braços e mãos, o que me remeteu a uma estátua egípcia em movimento. Em

sua dança, seus braços em oposição iam para frente e para trás, alternando-se quanto à direção.

Com um ritmo mais pausado, fez leves paradas; os joelhos ficaram um pouco flexionados e

fizeram com que a parte da frente de seus pés se fincassem no chão. Em certo momento, escutei

o som de uma pisada mais forte.

O menino Gato Ninja do Fogo achou engraçado esse momento e, rindo, começou a

dançar também, cruzando com o primeiro menino, que se sentou depois de um tempo. Gato

Ninja do Fogo propôs o mesmo desenho de movimento; porém, de maneira mais frenética e

ágil, com os braços também em oposição, mas sem trocá-los de direção e com o corpo mais

ereto. Em determinado momento, a menina Borboleta quis também propor a dança, mas ela

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apenas se levantou em um impulso e ficou por alguns instantes em estátua com o desenho

coreográfico, o que me remeteu mais à proposição do menino Onça Preta.

Depois, o menino Onça Pintada levantou o dedo e disse: “O nome disso é kalimba!”.

Em outro momento, olhou para o menino Gato Ninja do Fogo dançando e riu discretamente,

apontando o dedo para o colega. Já no final do canto, quando finalizei com “os gêmeos

Ibejis…”, o menino Onça Preta completou: “Que morreu!”, e eu disse, “Um deles morreu,

né?”, pois estávamos nos referindo a uma história anterior.

Ao iniciarmos a 8ª e última oficina, a menina Raposa espontaneamente me falou de

uma brincadeira africana: “Ô, Lia, eu tenho uma brincadeira africana!”. Depois fez uns

movimentos de pular, e eu disse que naquele dia iríamos fazer outras brincadeiras, mas que

tinha adorado conhecer essa que ela estava apresentando.

Depois, perguntei onde ela havia aprendido essa brincadeira. Pedi para ela me explicar

detalhadamente, e a menina disse: “Eu aprendi… com uma música africana, que… fala muito

sobre a África… fala de onde a África fica… e aí nela tem essa brincadeira que pula vassoura!”.

A menina pegou dois bonecos e tentou demonstrar: “Aí uma criança vai tá aqui e vai fazer

assim [mexeu as pernas do boneco], e aí a outra vai tá aqui… aí vão ter que pular, um pé

dentro… aí se fechar você tira o pé, aí depois você bota o outro pé dentro… aí a brincadeira

termina quando as crianças quiserem!”. Eu falei: “Muito bem! Amei a sua explicação! Vamos

para roda, agora?”, e a menina, em um pulo e vibrando, disse: “Vamos!”

Nessa última oficina, centrei-me na manifestação cultural afro-brasileira da capoeira.

Primeiramente nos sentamos em roda, para uma conversa inicial; depois de um tempo entre

organização e dispersão, indaguei: “Gente, nas histórias que eu contei para vocês, vocês acham

que havia guerreiros e guerreiras?”. O menino Onça Pintada disse: “Siiim!”, e eu: “Sim? Eu

também acho! E olha aí, hoje a brincadeira que eu trouxe tem a ver com guerreiros e guerreiras!

Há muuuito tempo atrás, inventaram uma dança, que é uma luta que tem a ver com o Brasil e

com a África”. O menino Gato Ninja do Fogo me interrompeu e disse: “Eu já sei...

capoeeeeeira!”, e eu disse: “Capoeeeiraaaa, muito bem! O que é que vocês conhecem da

capoeira?”

Depois de um tempo de dispersão, continuei: “E, meus amores, vocês sabem a história

da capoeira?”. A menina Raposa levantou-se e disse: “Eu seeei! É que os negros vindos da

África...”, e a menina se remeteu à história do livro Chico Rei, de Renato Lima, perguntando se

podia pegar o livro. Eu disse que sim. Ela expressou: “É o livro que eu trouxe para a ciranda

[livros que ficam na sala à disposição das crianças]”. O menino Onça Preta disse: “E é dos

negros, da África!”. Eu falei: “Dos negros... estou aprendendo com vocês sobre a capoeira!”,

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ao que o menino expressou: “Comigo!”. Eu disse, sorrindo: “Com todos vocês!”. A menina

mostrou o livro e disse: “Esse livro aqui é da África!”, e eu: “Que lindo!”. Ela disse: “Você

pode ler para gente?”, e eu confirmei: “Eu vou ler um pouquinho, certo? E depois a gente vai

continuar a brincadeira!”

A menina tentou contar um pouco da história: “Era uma vez um homem chamado

Chico, mas… colocou o apelido dele de Chico Rei...”. Então ela disse que eu iria continuar a

história; eu e a Professora Sol nos olhamos, rimos, e eu disse: “Tá certo... é o seguinte, essa

história do Chico Rei, no final, se der tempo, eu conto, tá bom?”, e a Professora Sol frisou:

“Chico Rei, que veio lá da África… na terra dele, ele era filho de reis e rainhas...”.

A menina continuou falando um pouco da história, mostrando algumas imagens do

livro para todos nós, que estávamos na roda, e uma hora disse: “E os negros também, eles

andavam de barco!”. Eu disse: “Prooonto, você chegou no momento da história que eu queria!

Como é que os africanos vieram parar aqui no Brasil, alguém sabe?”, e o menino Gato Ninja

do Fogo disse: “Andavam de barco! Eu acho que... eles agradeciam a Iemanjá?”. E eu: “Olha,

os negros africanos que vinham para cá, eles agradeciam a Iemanjá, e Iemanjá era quem?”. O

menino Leão Fogo e a menina Borboleta responderam juntos: “A mãe do mar!”, e a menina

Gatinha Folha disse: “A princesa!”. E eu falei: “A mãe do mar, né?”. O menino expressou

como em um cântico: “Iemanjá é a mãe do mar!”. Eu continuei: “Como é o nome dos deuses

que eu falei, os africanos?”, e o menino Oceano Tubarão Tigre falou: “Oxum!”. Eu disse:

“Orixás, Oxum é um orixá. E há muito tempo atrás, vocês sabiam que os africanos foram presos

lá na África, foram trazidos para cá e obrigados a trabalharam muito? Mas eles eram muito

fortes, alegres, e eles tinham várias formas de resistir e de mostrar a sua fé, a sua dança, as suas

cores, e uma delas era a capoeira! Vocês sabem como é que se faz a capoeira?”

Imediatamente, o menino Gato Ninja do Fogo disse: “Eu sei!”. Ele se levantou e,

juntamente com a menina Raposa e o menino Leão Fogo, começou a demonstrar alguns passos

de capoeira: o menino Gato Ninja do Fogo apoiou o corpo todo no chão, sustentando-o com a

força dos braços e das pernas; a menina o chamou corporalmente para um outro espaço, e os

dois ficaram na posição proposta pelo menino; depois ele subiu e lançou um golpe de perna

para ela, e o menino Leão Fogo, que os havia acompanhado, lançou alguns golpes também,

assim como o menino Gato Ninja do Fogo, que lançou um último golpe, enquanto a menina

esperava agachada no chão. Então eu disse: “Estátua! Os três vão voltar para a roda, para a

gente continuar descobrindo sobre a capoeira!”

Foi muito interessante a abordagem inicial sobre a capoeira, pois reafirmei como é

importante estimular o protagonismo infantil. Nesse sentido, as crianças foram manifestando

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184

suas narrativas orais e corporais, e elas mesmas auxiliaram a construção dessa dinâmica. Assim,

possibilitamos que conhecimentos já acumulados das experiências vividas por algumas dessas

crianças fossem partilhados com a turma, e isso gerou um enriquecimento do repertório delas.

Revelou-se como um recurso pedagógico motivador para a participação e o exercício da

criatividade das crianças, sobretudo considerando-se o contexto da Educação Infantil –

cabendo, portanto, dialogar com os esclarecimentos e as indicações presentes em Brasil (2014):

A dúvida sobre a origem da capoeira persiste. O mais importante não é superar essa

controvérsia, mas compreender que o princípio da capoeira é africano, ou seja, trata-

se de uma construção dos africanos e seus descendentes no contexto brasileiro, uma

reelaboração da ancestralidade em outro tempo e lugar. Esse entendimento possibilita

perceber que a capoeira sofreu adaptações, entretanto, guarda no seu desenvolvimento

marcas da experiência e da expressividade negras [...]. É possível encontrar entre as

crianças, mesmo entre as pequenas, praticantes de capoeira oriundos de diferentes

vertentes e que tenham sobre ela compreensões distintas. Por isso, é necessário que

todo e qualquer projeto a ser desenvolvido na educação infantil se baseie no que as

crianças já sabem sobre determinado tema ou assunto (BRASIL, 2014, p. 87).

Em seguida, ao utilizar o livro Diário de Pilar na África, de Flávia Lins e Silva,

expliquei que, pelo fato de ele ser volumoso, eu havia selecionado algumas partes mais

importantes para aquela oficina. Mostrei primeiramente algumas imagens de instrumentos

utilizados na capoeira; mostrei o agogô e perguntei quem se lembrava dele, uma vez que já

tínhamos o utilizado na semana anterior. Algumas crianças levantaram a mão. Em seguida,

mostrei o pandero, caxixi, fazendo alguns sons, e mostrei a imagem do atabaque e do berimbau.

Enquanto isso, algumas crianças tocavam nas imagens. Depois cantei, à minha maneira, uma

letra de música contida no livro. As crianças tentaram me acompanhar no refrão: “Paranauê,

paranauê, paraná”… E puxei um cântico com elas, a partir desse refrão, com acompanhamento

de palmas.

Passei para a próxima imagem, com personagens executando passos de capoeira, e

disse: “Olha aqui, vamos aprender os passos da capoeira… Quem quiser, eu vou dizendo o

passo, aí a criança vem, olha aqui como é e faz para tooodo mundo aprender!”. Os passos

apresentados no livro são Bênção (cumprimento inicial), Meia-Lua de Frente e Esquiva,

Bananeira, Macaco e Ponteira, Meia-Lua de Compasso e Cocorinha, Martelo e Início de Volta

por Trás. Nós fizemos a demonstração de alguns, com crianças em dupla experienciando os

passos, e, em determinado momento, a Professora Sol comentou: “Ei, sabia que quando eu era

criança, ao invés de ballet, eu fazia capoeira?”. Eu disse, surpresa: “Sério?”, e ela sorriu.

Ao formarmos uma roda para o desenvolvimento da vivência corporal Brincando de

Capoeira, houve certa dispersão. Eu os estimulei a começar: “Para brincarmos de capoeira, nós

precisamos fazer uma roda bem bonita!”, mas as crianças ainda falavam muito, e a Professora

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185

Sol interveio, mesmo depois de algumas tentativas minhas. Agradeci a ela e continuei: “Agora

eu vou explicar como é a brincadeira… eu vou cantar uma música e vou botar umas músicas

no computador de capoeira, sempre vai ter duas crianças no meio [da roda] brincando de

capoeira...”. As crianças estavam bem agitadas e, mesmo antes de começar, algumas já foram

propondo passos experienciados a partir das imagens do livro e de seus conhecimentos.

Depois de uma grande dispersão, a Professora Iemanjá trocou de lugar com a

Professora Sol e, em determinado momento, a menina Raposa pediu para falar uma coisa sobre

a capoeira: “É tipo uma luta, só que também é uma dança!”, e eu disse: “Exatamente! Muito

bem!”. Baixei um pouco meu tom de voz e consegui finalizar a explicação.

Cantei a música Guerreiros e guerreiras de Iorubá, com o acompanhamento do caxixi,

para que as crianças dançassem livremente. Aprendi essa música no grupo de pesquisa

NACE/FACED/UFC. Meu colega, o artista e educador Gerson Moreno, ministrou uma prática

em que utilizava a palavra Nagô, e eu a adaptei para a minha pesquisa, com o uso da palavra

Iorubá. Essa música é também uma adaptação da famosa Escravos de Jó, com a intenção de

enaltecer uma imagem diferente da que sempre fora associada aos negros. No caso da prática

da temática da capoeira proposta, introduzi algumas especificidades; portanto, esta não é a letra

original: “Guerreiros e guerreiras de Iorubá / Jogavam capoeira / Ginga, dança, a capoeira /

Guerreiros com guerreiras dançam dançam a capoeira / Guerreiros com guerreiros gingam

gingam a capoeira”.

Destaco aqui algumas proposições ocorridas na hora da música: as crianças

inicialmente se preparavam para uma luta; depois, os meninos Onça Pintada e Leão Fogo, bem

como as meninas Raposa, Gatinha Folha e Leoa Oxóssi, levantaram uma das pernas para cima

algumas vezes; depois, as meninas Raposa e Gatinha Folha se agacharam, e a segunda menina

pulou, enquanto a primeira, em um impulso, apoiou os braços e as mãos no chão, de cabeça

para baixo, lançando as pernas para o ar. O menino Onça Pintada deu três chutes e um leve

giro, posicionando-se de costas para a roda, realizando o mesmo movimento de sua amiga

Raposa; o menino Leão Fogo fez um som de grito, deu um giro com uma perna levantada para

cima e os braços soltos para trás, ficando de barriga para cima, com apoio de um dos braços e

as mãos no chão, e as pernas e pés também; inclinou-se para um lado, depois saltou para o outro

lado, com os braços e as mãos apoiadas no chão. A menina Leoa Oxóssi quase plantou

Bananeira, ficando com uma de suas pernas eretas no ar.

O menino Gato Ninja do Fogo e a menina Borboleta, que estavam até então olhando,

do lado de fora, se aproximaram da roda. O menino fez o mesmo movimento com pulo e pernas

para cima que os outros amigos já haviam feito; algumas crianças, além dele, ficaram alternando

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186

esse movimento, no nível médio33, com ir ao chão, no nível baixo, como uma espécie de pegar

impulso para as “perninhas” no ar, como o menino Leão Fogo e as meninas Raposa e Gatinha

Folha fizeram; a menina Borboleta dava pulinhos enquanto a menina Leoa Oxóssi deu um

chute, se acocorou, girou, pulou e repetiu a movimentação de acocorar, girar e dar um chute ao

levantar; o menino Oceano Tubarão Tigre ficou o tempo todo em pé, e em alguns momentos

batia as mãos na boca, soltando som.

Enquanto isso, a Professora Iemanjá se aproximou um pouco da roda e convidou a

menina Lua para dançar; ela me mostrou com o olhar a flexibilidade da menina, quando Lua,

de cabeça para baixo, com mãos e braços sustentados no chão, pendeu uma das pernas para o

alto e para trás. Eu sorri, a professora então acompanhou a menina em sua proposição, ficando

uma de costas para a outra, e a menina deu um sorriso sapeca para a professora, que expressou

divertimento. Após terminar a música, elogiei: “Que lindo!”

É possível visualizar essas cenas através da Figura 30, que abre este tópico. É possível

também relacionar, com base nas expressões das crianças, alguns detalhamentos sobre a

manifestação a capoeira:

Na capoeira, o corpo desempenha a movimentação coordenada de aproximação e

distanciamento, avanço e defesa, que são os elementos constituintes da ginga. O corpo

realiza o preenchimento de todo o espaço da roda de capoeira [...]. É pelo corpo e no

corpo que as regras, condutas éticas e conceitos da capoeira se exercem. Posicionar-

se, ocupar o espaço e se movimentar são estruturas fundamentais aprendidas na

capoeira. [...]. Além disso, por se tratar de um jogo, a capoeira pressupõe a interação

entre os participantes. Desse modo, relacionar-se com seu corpo implica também

relacionar-se com o corpo do outro, de forma respeitosa e sem preconceito (BRASIL,

2014, p. 93).

A partir dessas e de outras interações das crianças com a ludicidade, a corporeidade e

a música, que abordavam elementos da cultura africana Iorubá e de outras manifestações afro-

brasileiras explicitadas anteriormente, cabe destacar a entrevista cedida pela autora Kiusam de

Oliveira à Semana Mundial do Brincar34, promovida pela instituição SESC Campinas. A autora

tece reflexões que envolvem o brincar na infância, a valorização da ludicidade, a convivência

com as diferenças e outras questões:

Dentro [...] de uma reflexão, numa linha, africana ou afro-brasileira, o brincar ele se

dá sempre na coletividade e... as ações se dão em círculo, frente a frente com o outro,

porque, nada impede, é, que a visão do todo, daquele outro, daquela outra, se forme

33 O conceito de nível se refere à utilização de experimentação no espaço e à altura: nível alto (movimentação do

corpo mantendo a maior distância do chão), nível médio (movimentação do corpo mantendo parte relativa do corpo

em distância ao chão, porém com algumas partes já podendo tocá-lo) e nível baixo (movimentação do corpo

totalmente em contato com o chão) (FERNANDES, 2009). 34 Entrevista disponível em: <https://www.facebook.com/watch/?v=2210238792639714&external_log_id=afd8

ad407f95e406a2a7aca0a41b9911&q=Sesc%20S%C3%A3o%20Paulo%20brincar20kiusam%20de%20oiveira>

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diante do nosso olhar... os olhos né, eles são caminhos, e o brincar possibilita isso [...]

é na roda, em círculo, que nós estamos vendo [...] as primeiras características que nos

diferem... uns dos outros, umas das outras [...] é olhar e se perceber, e aí a gente

começa a ver essa diversidade do nosso corpo e a partir daí, porque não, é, em relação

as brincadeiras, em relação as culturas... a letra de uma música brincante, é, uma

cantiga, ela têm haver com um povo, ela têm haver com um local, ela têm haver com

um determinado período, com conhecimentos e saberes, com tradição... brincar é

coisa séria, trazer pro cotidiano brincadeiras saudáveis e que de fato proporcionem

um encontro salutar entre as pessoas envolvidas naquele brincar... a criança, ela

carrega, essa inocência que ela é poderosíssima, poderosíssima e eu penso que, com

esse exemplo, adultos e adultas, têm muito a aprender, que, o adulto celebre a

brincadeira, é, esse lúdico, entendendo, o valor que o sentimento de uma criança têm,

porque essa criança, ela não carrega, esse preconceito essa discriminação dentro de si,

para ela, o brincar é um convite a brincar com todos e com todas de uma forma geral...

a partir do momento que alguém, que algum adulto começa a colocar na cabeça dela,

limites, para esse brincar, é que a coisa aparece... é entender que, essa diversidade de

corpos, de cabelo, cor de pele, não pode impedir, não pode ser uma limitação para o

brincar de uma criança, porque a criança ela têm o mundo inteiro para sonhar, ela

pode ser, quem e o que ela quiser.

Na continuidade da vivência, coloquei músicas do CD Abadá-Capoeira (Capoeira

Infantil, Jogos e Brincadeiras e Brincando no Ritmo da Capoeira)35. Durante toda a

experimentação das duplas no centro, inclusive quando eu também ia brincar, ao formar dupla,

por exemplo, com as meninas Leoa Oxóssi e Lua, procurei incentivar as crianças em relação às

suas proposições e criações de movimento, dizendo: “Isso, lindo, muito bem!”. As outras

crianças que não estavam no centro, e sim formando a roda enquanto as duplas experimentavam

a brincadeira dançada, em vários momentos se movimentavam com pulos, giros, levantar de

pernas, impulsionar e cair no chão, meia cambalhota, cócoras, saltos etc.

Pedi para ficarem em estátua e expliquei que as duplas poderiam se locomover pelo

espaço, brincando e dançando capoeira. A menina Raposa perguntou se poderia fazer outra

dupla, e eu disse que sim. As duplas repetiram várias movimentações que já haviam sido

testadas na roda, como os chutes com as pernas, os corpos inclinados para baixo, com braços e

mãos apoiadas no chão, com chute de pernas para o alto, entre outros – a partir de então, de

maneira mais dinâmica e rápida.

Em um determinado momento, eu disse: “Estátua! Vocês são guerreiros e guerreiras

africanos, capoeiristas… bem bonito agora, vai lá!”, e eles se deslocaram pelo espaço, lutando

entre si, agilmente e sem parar, gingando com seus corpos, que alternavam constantemente

entre os níveis, alto, médio e baixo; inclusive, o menino Onça Pintada revisitou a Bananeira

com as pernas não para cima, e sim para trás, o que fez com que seu corpo pendesse e caísse no

chão. Os movimentos das crianças repetiam a estrutura e a dinâmica que fora experienciada

desde o início, ganhando novos contornos e nuances, passeando entre brincadeiras e danças dos

35 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qZT4lD_G-1o&t=30s>. Acesso em: 29/09/2019.

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repertórios coreográficos criados por essas(es) pequenas(os) guerreiras(os) capoeiristas. A

menina Lua não quis participar desse momento, e tanto eu quanto a Professora Iemanjá

tentamos estimulá-la, sem sucesso.

Sugeri concluirmos a vivência: retornarmos para a ideia da roda, inicialmente com

muita dispersão. Tentei explicar novamente como iríamos desenvolver a dinâmica, e o menino

Onça Pintada disse para a professora: “Plimeilo a gente dança!”, e depois correu e chegou perto

de mim: “Plimeilo a gente dança! Plimeilo a gente faz as… as… coisas na roda, é? A gente

plimeilo dança, né?”. E eu respondi: “Dança na hora da dupla, tá bom?”, e ele retornou para a

roda.

Basicamente as duplas de jogadores repetiram as mesmas movimentações, com a

diferença de que, em alguns momentos, nós, que estávamos formando a roda, batíamos palmas

coletivamente para as duplas de dentro experienciarem.

Dando continuidade, convém mencionar a narrativa da Professora Iemanjá, na

entrevista final, ao explicitar algumas considerações sobre aspectos relevantes vivenciados no

processo da pesquisa:

Eu acho que ampliar conhecimento, ampliar vivência e experiência, ampliar interação,

porque, se a gente sabe, enquanto professora, que eles aprendem por interações e

brincadeiras, então [...] a maior diversidade de brincadeiras e de interações que eu,

favorecer, principalmente na escola, se isso, se traduz em aprendizagem, né? E, como

a gente, como pesquisadora, que sabe que existe um preconceito relacionado à

temática, eu acho que, a gente também amplia a questão... emocional, sensorial da

criança e tudo o que envolve movimento [...] e esse corpo, que quer brincar, que quer

sair, que quer correr, então, eu destaco, é, a alegria de receber, a pesquisa... [nós

começamos a ficar os olhos marejados, ela com a voz embargada; nós rimos e

dissemos uma para a outra que estávamos emocionadas] [...]. Porque lendo e, e

fazendo uma vez um trabalho que eu já fiz com essa temática, eu fiquei muito

emocionada... por saber que as pessoas e as crianças que... participam dessa pesquisa,

professores ou profissionais que pesquisam sobre essa temática, passam, por essa

situação. E, aí, como professora, eu queria, eu quero que os meus alunos além de

aprender leitura, escrita e matemática, eles sejam pessoas diferentes, né? Que aceitem

a diversidade, respeito e se apropriem de outros conhecimentos. Eu acho que a escola

também pode oferecer isso.

A Professora Sol, na entrevista final, expressou o significado do que foi, para ela,

participar da pesquisa; teceu reflexões sobre a temática, destacou o seu envolvimento na

pesquisa e desejou que ela fosse multiplicada em outros contextos:

Ah... eu adorei [risadas]. Eu tinha muita vontade de participar todos os dias e participar

como as crianças participavam... fazendo os movimentos, de ouvir a história, tanto

que, às vezes, eu embarcava muito no mundo das ações das crianças e acabei que fiz

também o que era destinado para as crianças, mas eu sempre tive vontade de estudar

e que isso fosse muito explícito... e assim como eu me envolvi bastante eu queria que

fosse algo... [risadas]... que fosse pra todo mundo, que fosse apresentado pra todo

mundo, que fosse dito assim, como algo comum, é tão nosso, tão nosso, tá tão dentro

Page 189: LIA FRANCO BRAGA

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da gente [...] para fora dos nossos olhos e a gente nem sabe as vezes ou não quer saber

e eu queria que fosse pra todo mundo. No resumo eu me envolvi demais [...] meu

desejo que essa sua pesquisa cresça, cresça para muita gente sabe Lia… acho que nós

estamos precisando... [...] principalmente nesse momento que estamos vivendo,

precisamos que a escola também abrace isso, que não veja como algo de outro mundo

como algo assim que quer atravessar que quer passar por cima... não! É algo nosso...

é cultura nossa... e tomara que cresça!

Ainda cabe destacar algumas manifestações das crianças a respeito da pesquisa, nos

Afrodiálogos finais, na 8ª oficina: o menino Onça Pintada e a menina Borboleta disseram que

haviam gostado de tudo, e a menina disse que tinha gostado mais das brincadeiras. O menino

Oceano Tubarão Tigre expressou (o que fez com que eu e a Professora Iemanjá ríssemos): “Eu

amei, mei, mei, mei, mei, mei etc.”. O menino Leão Fogo também disse que amou; o menino

Oceano Tubarão Tigre manifestou que as brincadeiras que ele havia gostado mais foram a do

Espelho, assim como a menina Raposa. O menino também disse que havia gostado da

brincadeira Boneco de Modelar; o menino Leão Fogo disse que havia gostado de dançar, e a

menina Lua, das histórias e de brincar. Muitas crianças destacaram a capoeira como sendo a

dinâmica que mais gostaram de vivenciar.

A menina Gatinha Folha disse: “Eu lembro do boneco e também lembro daquele

que… Lia, era… uma mulher que andava devagar e a gente corria bem rápido… e se ela pegasse

na gente… a gente tinha que ficar estátua, até uma pessoa tocar na gente e a gente se salvar!”.

Eu expliquei: “É porque a Icu estava pegando os Ibejis, né? E eu fazia Icu naquela… naquele

dia, e vocês eram os Ibejis! Muito bem!”; a menina Leoa Oxóssi frisou: “Eu gostei da… dos

Ibejis e da menina véa que não podia correr rápido!”. Nós estávamos nos referindo ao

jogo/brincadeira corporal Icus velhinhas e os rápidos Ibeijizinhos, momento vivenciado na 3ª

oficina.

Ao perguntar por que a menina Gatinha Folha havia gostado de participar de tudo, a

mesma expressou: “Porque teve brincadeiras, porque teve histórias dos africanos”. A menina

Raposa disse como foi para ela participar da pesquisa: “Eu achei muito interessante, eu aprendi

muito… e isso vai ser muito importante para minha vida… e eu também gostei muito!”. Eu

disse: “Ô, que lindo!”

Com as expressões das crianças e das professoras participantes, sinto-me feliz e

estimulada a continuar nessa empreitada, corroborando o ensejo de discutir e propor práticas

afro-referenciadas. Nesse sentido, cabe dialogar com as considerações de Ligiéro (2011):

Essa aproximação é feita por meio da vivência do manancial lúdico-filosófico que

sempre esteve perto de nós, mas que nos foi negado por preconceitos históricos [...].

As diversas modalidades artísticas (além da rica mitologia e dos simbolismos

religiosos) [...] valorizam a autoestima de quem a pratica, trabalhando com sua

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190

identidade cultural, sem deixar de discutir, em termos efetivos e práticos, questões de

identidade do indivíduo e de seu grupo de teatro e/ou comunitário. Dessa forma, o

trabalho ganha um contorno político mais evidente; sai da esfera do autoconhecimento

[...] para se inserir num plano de desenvolvimento de práticas individuais carregadas

de matrizes culturais, muitas vezes adormecidas dentro de cada indivíduo por terem

sido consideradas primárias ou inferiores por pertencerem às chamadas culturas

populares. A discussão do conhecimento teórico dessas tradições ajuda no processo

de descoberta e na sua valorização [...]. Possibilita ainda a assunção de novos

processos criativos e de treinamentos não ortodoxos, induzido, por si só, à interação

com o grupo ou a comunidade e permitindo não apenas que o indivíduo se liberte da

opressão em que vive, mas que o que vive dentro dele, oprimido por séculos de

repressão judaico-cristã, possa tornar-se matéria-prima do trabalho. Afinal, as

tradições afro-ameríndias disponibilizam centenas de práticas celebratórias corporais

e improvisacionais que o emergente campo dos estudos da performance engendra nas

artes cênicas contemporâneas (LIGIÉRO, 2011, p. 256).

Por fim, a partir da ambiência lúdica e artística proporcionada pela pesquisa, na

unidade circular Criança Negritude afloraram questões íntimas e coletivas, dialogadas e

ressignificadas nas experienciações corporais e afro-referenciadas. Nesse contexto, as crianças

manifestaram expressões negativas e positivas, além de curiosidade, interesse, afetuosidade e

empoderamento, que perpassam questões envolvendo as relações étnico-raciais. Estas e outras

manifestações me impulsionam a continuar construindo novas formas de sociabilidade sobre a

cultura africana. Ao abraçar e brincar de mãos dadas com as diversas crianças e infâncias,

estarei contribuindo para a construção de uma sociedade mais respeitosa, que valoriza a

pluralidade étnico-racial e cultural e, consequentemente, nossas raízes afro-brasileiras.

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191

TRILHAS PERCORRIDAS… NOVOS HORIZONTES – OXÓSSI, O CAÇADOR:

DESBRAVANDO SUAS MATAS

FIGURA 32 – OXÓSSI

Fonte: Google Imagens (internet).

As matas negras curativas de Oxóssi

Salve Oxóssi caçador promissor

Que com o seu arco e flecha conquista e percorre

Verdes e intensos caminhos abertos

Das curas que desejamos

Ele nos legou o poder da natureza

Majestosa bela e impiedosa

Quando o homem a tenta destruir ela dá a sua reviravolta

Pois é preciso remexer as estruturas para que possamos desestruturar

Os padrões racistas e excludentes

E quem sabe um dia as amarras persistentes sejam destruídas

Para que não apenas sonhemos

E também, vivenciemos, resgatemos e valorizemos

Nossa afro descendência

Okê Arô Oxóssi Ê

Salve Oxóssi!

(Lia Braga, Fortaleza/CE, outubro de 2019)

Page 192: LIA FRANCO BRAGA

192

O orixá Oxóssi é o caçador das matas, que, com o seu ofá (arco e flecha), percorre a

natureza à espreita, para se defender ou atacar, e assim conquistar os territórios e as caças, a

fim de prover fartura ao seu povo. Narra o mito Oxóssi mata o pássaro das feiticeiras

(PRANDI, 2001) que o pássaro assombroso das Iá Mi Oxorongá (mães feiticeiras) aterrorizava

as pessoas que as temiam. Oxóssi, sendo estrategista e inteligente, foi o único caçador a acertar

o pássaro, com sua flecha certeira, após as feiticeiras terem aceito o ebó (oferenda) feito pela

mãe do caçador. As feiticeiras se apaziguaram, e assim ele se popularizou; todos festejaram o

seu grande feito.

Na história, compreendo que Oxóssi não esteve sozinho: ele fora auxiliado por sua

ancestral mais próxima, sua mãe. E eu também não estive sozinha no processo desta pesquisa:

fui auxiliada por minhas/meus ancestrais para acertar flechas afro-referenciadas. Flechas que

tiveram o intuito de estimular o pulsar dos corações das crianças e das professoras responsáveis

pela turma participante. Dessa maneira, foi muito importante contar com a abertura, a

curiosidade e o interesse dessas(es) participantes, no tocante às temáticas que foram propostas

e experienciadas.

Vale ressaltar que, na instituição NEI/Cap/UFRN, as crianças, além de vivenciarem a

ludicidade e as atividades que envolviam a expressividade corporal em suas rotinas, também

tinham aulas de artes (teatro e música). Além disso, questões envolvendo as relações étnico-

raciais eram constantemente promovidas, ou através de diálogos (em estudos sobre o Egito, por

exemplo), ou com recursos lúdicos (como com intervenção com boneca abayomi).

A abordagem interdisciplinar constante no projeto pedagógico do NEI e a postura das

professoras responsáveis pela turma facilitaram o processo de desenvolvimento desta pesquisa.

O fato de terem participado crianças com características diversas, e também duas com

deficiência, potencializou o processo criativo e artístico, a dinâmica de ensino-aprendizagem e

a sociabilidade com as mesmas.

Percebi que o grupo imergiu no universo das deusas e deuses orixás através da

metodologia afro-brincante, com contações de histórias e jogos/brincadeiras corporais;

metodologia lúdica esta ancorada nas linguagens artísticas da dança e do teatro, e com uso de

elementos de musicalidade. Esse mergulho desenvolveu-se de maneira intensa e articulada a

conhecimentos anteriores das(os) participantes sobre as africanidades.

Como exemplo, posso destacar os saberes das crianças sobre a capoeira, manifestação

afro-brasileira que eu não havia planejado abordar previamente. Porém, a partir das expressões

das crianças – e também por querer promover um fechamento com uma intensa dinâmica

corporal unindo dança, jogo e relacionar o povo Iorubá, como guerreiras e guerreiros africanas

Page 193: LIA FRANCO BRAGA

193

(os), visto que as(os) orixás também têm essa característica –, a capoeira foi um ótimo tema

experienciado com entusiasmo pelas crianças na 8ª e última oficina.

Outras vivências intensas que posso destacar ocorreram na 7ª oficina, quando algumas

crianças representaram alguns orixás através da contação de histórias do livro Omo-Oba:

histórias de princesas (OLIVEIRA, 2009). Destaco a relação da menina Cachoeira com Oxum,

ao vivenciar a personagem, sem termos ensaiado nada anteriormente, o que abriu espaço para

improvisação a partir de elementos simbólicos relatados na história. Assim, Cachoeira trouxe

elementos da dança dessa deusa, quando desenvolveu suas características específicas: a menina

performou à sua maneira e narrou corporalmente a história, criando a sua própria dança, que

remeteu às livres e graciosas águas doces de Oxum.

Em outra contação de histórias, na 4ª oficina, cantei um cântico em Iorubá desta deusa,

e a mesma menina me acompanhou cantando a música comigo, o que me chamou atenção, por

ser uma pronúncia diferente da que ela estava habituada em seu dia a dia. Em momento algum

ela expressou, por exemplo, vivenciar as religiões de Umbanda ou Candomblé, o que poderia

justificar a manifestação do cântico da menina.

Outras relações estabelecidas pelas crianças com as divindades africanas,

evidenciando intensa conexão, foram vividas ainda na 7ª oficina, quando, dançando com as

deusas e os deuses, as crianças, além de dançar, brincaram, teatralizaram e performaram

elementos simbólicos e mitológicos específicos das danças de algumas(uns) orixás.

O menino Oceano Tubarão Tigre abriu os seus próprios caminhos com o facão

imaginário do seu guerreiro Ogum, e até mesmo cavalgou com o seu cavalinho, interpretado

pelo menino Leão Fogo. Já Leão Fogo, imageticamente lançou o fogo de Xangô pela boca, e

as pedras e raios pelas mãos, às vezes até mesmo afirmando que ele era o próprio fogo; além

disso, majestosamente guerreou como o rápido e intempestivo rei de Oyó. A menina Raposa

parecia uma ventarola, com seus rápidos manejos de mãos, “chicoteando” o ar, fazendo intensos

giros e pulinhos na sua dança de Oiá-Iansã (a “menina do vento”, nas palavras de Raposa). Isso

sem contar com os movimentos suaves e ao mesmo tempo intensos das crianças quando, na

dança de Oxum, a menina Cachoeira parecia nadar, e os meninos Oceano Tubarão Tigre e Leão

Fogo embelezavam-se nos seus giros com espelhos imaginários.

Foi evidenciado também, durante as várias oficinas, uma intrínseca relação entre o

brincar e o performar com seus corpos, quando as próprias crianças propuseram serem

personagens, ou quando eu oportunizava momentos em que elas pudessem vivenciá-los – o que

também inicialmente eu não havia pensado. Abri-me a esta possibilidade a partir das

manifestações das crianças, trazendo mais enriquecimento ao processo.

Page 194: LIA FRANCO BRAGA

194

Essa relação pode ser observada nas proposições que focavam a relação com

características da natureza, como quando eles representaram os Ibejis e após o desafio de A

ciranda das águas (conquistando o direito de levar água para salvar o seu povoado da seca),

além de corporificarem e vivenciarem elementos como as estrelas, que giravam em uma história

de Iemanjá. Nesse sentido, elas também brincaram de ser elementos como o sol e o fogo, em

um dos jogos/brincadeiras corporais; e fizeram a associação com vários animais, incorporando-

os em seus nomes fictícios.

A relação das(os) orixás com a natureza – como protetoras(es) da mesma e que moram

em vários habitats – possibilitou às crianças expressarem níveis de consciência ecológica em

relação ao respeito, à valorização e ao cuidado com a natureza. Assim, foram gerados diálogos

a partir das histórias e das vivências experienciadas.

A partir desses destaques e dessas relações, considero que o primeiro objetivo

específico ao qual me propus, que era vivenciar processos de criação em arte com um grupo de

crianças entre 5 e 6 anos, no NEI/Cap/UFRN, foi alcançado.

Foi muito importante, na construção do último capítulo, ter estabelecido alguns eixos

norteadores e o enlace entre o que fora vivenciado e os aportes teóricos, de acordo com as

características da pesquisa e os temas transversais nela presentes. Em síntese: performances,

corpos brincantes, cultura africana, artes cênicas e Educação Infantil.

Nesse sentido, as unidades circulares Criança Artista, Criança Natureza, Criança

Orixás e Criança Negritude, e os conceitos-chave Corpo-Poroso, Corpo Brincante, Corpo-

Dança Afroancestral (PETIT, 2015) e Criança Performer (MACHADO, 2010b)

proporcionaram que eu me aprofundasse nas temáticas de maneira a perceber seus

engendramentos, quando um ou mais conceitos-chave se coadunaram entre si a partir de suas

manifestações nas unidades circulares.

Decerto, essas características me proporcionaram não incorrer em um caminho

marcado pela linearidade e por narrativas que dicotomizam o todo. Assim, a compreensão dos

vários materiais obtidos durante as oficinas me proporcionou apreender um princípio cíclico da

pesquisa, remetendo-me a uma grande gira, ou círculo afro-referenciado, integrando

conhecimentos e metodologias artísticas e acadêmicas em intervenção escolar, com foco na

Educação Infantil.

Essa hibridização teórico-prática possibilitou que eu reunisse um material riquíssimo

e, através de escrita, de fotografias, de vídeos e de desenhos obtidos nas minhas experienciações

com as crianças, pude concretizar o segundo objetivo específico desta pesquisa, que foi registrar

as performances dos seus corpos brincantes.

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195

Em momentos planejados para estimular essas performances – através de

jogos/brincadeiras corporais –, as crianças se manifestaram, bem como em momentos

inusitados: por exemplo, na 6ª oficina, quando na contação de história de Iemanjá eu toquei

uma música ao som do instrumento africano kalimba. A menina Gatinha Folha dançou

majestosa, performando em seu corpo brincante, através do estímulo sensorial e lúdico, as

ondas do mar, assim como o menino Leão Fogo e a menina Leoa Oxóssi, que também

improvisaram com movimentos que me remeteram às águas da rainha do mar, Iemanjá. Assim,

as crianças vivenciaram e corporificaram esse elemento da natureza a partir de suas

improvisações e criações.

No último capítulo, especialmente, pude enlaçar três especificidades fundamentais

para o desenvolvimento desta pesquisa com base na fenomenologia proposta por Merleau-

Ponty (1999, 2006): a descrição fenomenológica (expondo de fato a experiência vivida tal como

ela ocorreu, com o maior número de detalhes possíveis); a redução fenomenológica (focando

nas experiências que mais se aproximaram do meu objeto e dos objetivos de pesquisa); e a

compreensão fenomenológica (na qual logrei ou consegui estabelecer diálogo com as(os)

participantes da pesquisa, entrelaçando a minha experiência com a delas(es) e propondo, através

da arte, que cada criança expressasse seus sentimentos, emoções e narrativas).

Essas especificidades – a partir das contribuições de Merleau-Ponty, em articulação

com as proposições de Machado (2010a, 2010b), ao “pensar com os cincos sentidos, com a

memória e a imaginação” (MACHADO, 2010a, p. 39) – inspiraram-me a ficar atenta, aberta,

maleável e porosa. Foi possível, nas vivências com as crianças, aflorar nossos sentidos, pelos

quais vimos, cheiramos, saboreamos, ouvimos e tateamos as histórias. Brincamos com

personagens fantásticas, nos jogos, nas brincadeiras, com as músicas, os ritmos, as gingas e as

danças afrodescendentes, partilhando deste universo encantado junto aos orixás. Assim sendo,

foi evidenciado o terceiro e último objetivo específico desta pesquisa, que era o de desvelar o

fenômeno das performances dos corpos brincantes das crianças, as quais foram vivenciadas e

manifestadas.

Compreendo que o sentido de desvelar tem um conteúdo simbólico e processual, ou

seja, construir um cenário no qual a transparência possa se sobressair, sendo possível ver e

enxergar algo que ainda estava encoberto ou adormecido. Nessa perspectiva, o desvelamento

fenomenológico proporcionou conexões com as dimensões mais profundas das crianças. No

caso, a inteireza do brincar, do jogar, do performar/ser um corpo brincante e um corpo vivido,

movente e pulsante na sua própria experienciação. Nos corpos brincantes e performáticos das

crianças, o universo das(os) orixás girou e brindou todo o potencial afrolúdico, poético e

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196

artístico dos povos africanos e suas negritudes que em solo brasileiro aportaram a dor, a beleza

e a riqueza de serem o que são, sem jamais esquecer e negar suas origens, memórias e

identidades.

A partir desses objetivos específicos e através das metodologias artísticas e lúdicas que

foram propostas, pude aproximar-me do objetivo geral, que era o de compreender como as

crianças estimuladas pelo universo das(os) orixás experienciam e constituem

as performances de seus corpos brincantes.

Algo relevante a ser destacado, por um lado, foram algumas expressões de preconceito

e racismo externalizadas e reproduzidas por algumas crianças tão pequenas. A partir das

relações com as outras crianças, com perfis diferentes, bem como através das temáticas

vivenciadas na pesquisa, por meio de deusas e deuses com características negras, estas tensões

raciais afloraram e foram discutidas em grupo.

Mesmo assim, por outro lado, durante a experienciação nas oficinas, as crianças

expressaram curiosidade sobre as(os) orixás a partir das intervenções pensadas de maneira a

articular ensinamentos afro-referenciados e metodologias artísticas e lúdicas; foram sendo

construídas e manifestadas pelas crianças expressões de reconhecimento, respeito, valorização,

encantamento, afetuosidade, identificação e empoderamento diante deste rico universo.

Portanto, o objeto de estudo desta pesquisa, que se refere às performances dos corpos

brincantes de crianças na Educação Infantil em diálogo com elementos da cultura africana, a

partir do universo das(os) orixás da nação Iorubá, foi manifestado e vivenciado de forma a

integralizar esta pesquisa em arte, dentro do campo das Artes Cênicas.

Ainda cabe ressaltar que, durante o desenvolvimento da pesquisa, uma perspectiva

ocorreu de maneira natural e surpreendente nas dinâmicas afro-brincantes: o encantamento

surgido através do universo das deusas e deuses orixás, divindades estas que circularam,

envolveram, embalaram e mobilizaram as experiências vivenciadas e compartilhadas com as

crianças.

Estas divindades, que também nos conectam diretamente com nossa ancestralidade

africana, perpetuam a partir de suas histórias, mitos enegrecidos e curativos (FORD, 1999).

Bálsamos medicinais que empoderam as crianças e a nós adultas(os), quando contamos

histórias e dançamos, teatralizamos e performamos nossos corpos brincantes na gira encantada

das(os) orixás.

Esta gira/roda brincante me faz refletir sobre a palavra encantar, que me remete ao ato

de cantar: proferir sons e palavras, entoar cânticos emergidos em águas profundas. Cânticos

estes energizados e potencializados com o canto da sereia, que nos seduz.

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Também podemos pensar no reflexo das águas doces que guardam o precioso espelho

(abebé) de Oxum, revelando potências e belezas negras. Assim, esse espelho mágico é o salto

da consciência das potencialidades e riquezas que habitam em nosso interior, apresentando-se

como a possibilidade para mirarmos dentro de nós. Quando nos enxergamos verdadeiramente,

podemos olhar a nós mesmos e ao outro de forma plena, o que também reflete coletividades

afro-ancestrais.

Este enfrentamento e encantamento que o espelho promove me faz refletir

filosoficamente que nos constituímos como seres viventes e integrais neste mundo

(MERLEAU-PONTY, 1999), a partir de nossas experienciações, sem anular as experiências de

nossas(os) antepassadas(os). Assim, somos o que somos porque em nós estão encarnadas

memórias individuais e coletivas, que nos apontam aonde iremos e como podemos vivenciar e

desfrutar das nossas vivências no mundo.

Neste sentido, canto, conto e reconto histórias de orixás para me encantar e encantar-

me com o outro, tecendo experiências e entrelaçando mundos orientados pelo chão ancestral

negro. Chão este que nos situa diante de um futuro que pisa muito mais no agora e no outrora,

do que no que ainda está por vir. Sentir este chão é permitir-se a mirada do espelho e a guinada

do encantamento, que pulsa de maneira circular memórias e vivências afro-brincantes.

Para além de minha identificação, amor e engajamento com relação às temáticas aqui

propostas, desenvolver esta pesquisa foi de suma importância para o meu crescimento pessoal

e profissional. Neste processo, pude aprender muito com as crianças, revisitando várias vezes

meu planejamento inicial, além de atentar-me ainda mais para suas narrativas, expressões,

criações e culturas, respeitando-as e valorizando-as como sujeitos pensantes, criativos, atuantes

e que ajudam a construir um mundo melhor. Mundo este experienciado, o que proporcionou a

nossos corpos vividos a possibilidade de se relacionarem diante de tantos encantamentos

sensíveis, ricos e férteis.

Nessa contextualização, frente a entraves e posturas políticas, sociais e culturais que

ainda persistem em corroborar a invisibilização, a desvalorização, os preconceitos e a

intolerância com relação às africanidades, a negritude e suas manifestações, as práticas artísticas

e pedagógicas têm um papel fundamental – e, assim, a luta antirracista incorporará os sujeitos

desde a mais tenra idade.

É possível reconhecer algumas imperfeições e lacunas que existem no presente estudo.

Essa consciência me moverá a realizar um olhar cada vez mais atento, afirmando uma postura

comprometida com estas temáticas, com o intuito de contribuir com um futuro que dialogue e

valorize as crianças e as diversas infâncias do nosso Brasil, que também é afrodescendente.

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De mãos dadas com as crianças, reafirmo que é, sim, possível construir um mundo

mais respeitoso diante das diversidades, aprendendo com elas e com os saberes artísticos e afro-

referenciados, valorizando, brincando, dançando, gingando e performando ritmos e cores

dessas divindades.

A ancestralidade negra, presente neste trabalho, nos fez ressignificar a história de

sofrimento de africanas e africanos, como escravas e escravos, ampliando nossos horizontes.

Isto acalenta nossos sonhos, alegrias, vivências, realizações e lutas no mundo, ao nos blindar

com escudos de guerreiras e guerreiros, embelezando-nos com espelhos de princesas e

príncipes, brindando a nossa majestade com as coroas de rainhas e reis e fortalecendo a

construção de histórias curativas, pessoais e coletivas, de heroínas e heróis de seus próprios

destinos.

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Título: “História Completa dos Orixás”.

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=N9bDnMS1vpg>.

Título: “Orixás da Bahia”.

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rRDXA0uInUc>.

Page 206: LIA FRANCO BRAGA

206

APÊNDICE

PLANEJAMENTO DAS OFICINAS

1ª Oficina – 02/05/2019 – 50 minutos

1ª Oficina Atividade Descrição Objetivo(s) Recurso(s)

Utilizado(s)

1

Contação de Histórias a

partir do livro Crianças

– Olhar a África e ver o

Brasil, de Pierre Verger,

e diálogo sobre as fotos

e fatos narrados.

Organizar as crianças

em semicírculo para

narrar alguns

elementos sobre a

África.

Introduzir o continente

africano, algumas de

suas características e

elementos, a partir das

fotos e escritas do

livro; Estabelecer

relações com o Brasil,

pincelando a época da

escravidão. Dialogar

com as crianças sobre o

que fora narrado e as

fotografias.

Narração oral, livro

de fotografias e

outros recursos

lúdicos.

2

Alongamento. Em roda, despertar e

alongar o corpo das

crianças.

Estimular movimento

corporal a partir da

música, sensibilizar e

preparar o corpo das

crianças para a próxima

atividade.

Voz de comando da

proponente e música

cantada.

3

Jogo/Brincadeira

Corporal “África -

Brasil”.

São formados dois

grupos, o grupo

“África” e o grupo

“Brasil”, que ficam

um de frente para o

outro; África e Brasil

são muito vaidosos e

adoram mostrar suas

qualidades um para o

outro – no caso, a

facilitadora sugere

alguns comandos, e

entre um e outro,

utiliza o comando

“Estátua”, em que

todos param o que

estão fazendo. Assim:

África, em

cima/Brasil, em cima

(Estátua)

África,

embaixo/Brasil,

embaixo (Estátua)

Aquecer o corpo,

trabalhando o controle

e a expressão corporal.

Voz de comando da

proponente.

Page 207: LIA FRANCO BRAGA

207

África, embaixo

encolhidinho/Brasil,

em cima se esticando

(Estátua)

África, em cima se

esticando/Brasil,

embaixo

encolhidinho

(Estátua)

África, em cima

pulando/Brasil,

alisando o chão

devagarinho (Estátua)

África, embaixo

alisando o chão

devagarinho/Brasil,

em cima pulando

(Estátua)

África encima

girando/Brasil

embaixo girando

(Estátua)

África, em cima

andando com a ponta

do pé/Brasil, embaixo

arrastando o pé no

chão

(Estátua)

África, embaixo

arrastando o pé no

chão/Brasil, em cima

andando com a ponta

do pé

(Estátua)

África e Brasil se dão

as mãos

(Estátua)

África e Brasil se

abraçam

(Estátua)

4

Jogo/Brincadeira

Corporal “Espelho”.

Em duplas ou trios,

as crianças brincam

de ser o espelho umas

das outras (podendo

continuar da

brincadeira anterior,

em que uma África se

junta com um Brasil e

vice-versa, ou duas

Áfricas, dois Brasis

etc.)

Trabalhar a expressão

corporal das crianças,

despertando possíveis

danças criadas em

conjunto.

Voz de comando da

proponente e música

de fundo.

Page 208: LIA FRANCO BRAGA

208

Uma criança se

movimenta e a outra

repete, depois trocam

de lugar. Por fim,

atuam em simultâneo.

2ª Oficina – 09/05/2019 – 35 minutos

2ª Oficina Atividade Descrição Objetivo(s) Recurso(s) Utilizado(s)

1

Contação de

Histórias

Conhecendo as(os)

orixás e diálogo

sobre a história.

Organizar as crianças

em semicírculo para

contar uma história

sobre algumas (alguns)

orixás africanos.

Introduzir as(os)

orixás e seu

universo,

caracterizando-

os como deusas

e deuses, com

elementos

simbólicos e

integrantes da

cultura africana,

a partir de suas

mitologias e da

sua relação com

a natureza.

Dialogar com as

crianças sobre a

história e as

personagens.

Narração oral, livro de

pano e outros recursos

lúdicos.

2

Jogo/Brincadeira

Corporal “Animais

e emoções na

floresta”.

As crianças são

convidadas a se

imaginar em uma

grande floresta e a

caminhar pelo espaço,

respondendo

corporalmente aos

vários estímulos – no

caso, a facilitadora

pode sugerir alguns

comandos e, entre um e

outro, utilizar o

comando “Estátua”, em

que todos param o que

estão fazendo. Assim:

Pássaro

(Estátua)

Pássaro Tranquilo

(Estátua)

Onça Curiosa

(Estátua)

Cavalo Muito Rápido

(Estátua)

Aquecer o

corpo,

trabalhando o

controle e a

expressão

corporal.

Voz de comando da

proponente.

Page 209: LIA FRANCO BRAGA

209

Peixe Carinhoso

(Estátua)

Leão Valente

(Estátua)

Borboleta Livre

(Estátua)

Formiguinha Bem

Pequenininha

(Estátua)

Gato

(Estátua)

3ª Oficina – 16/05/2019 – 1 hora e 10 minutos

3ª Oficina Atividade Descrição Objetivo(s) Recurso(s)

Utilizado(s)

1

Contação de

Histórias Os

Gêmeos Ibejis

numa Aventura

Dançante e

diálogo sobre a

história.

Em semicírculo,

contar uma história

sobre o orixá Ibeji e

iniciar a abordagem

deste orixá, que

estabelece conexão

com outras deusas e

deuses africanos.

Caracterizar as(os)

orixás e abordar

elementos simbólicos e

culturais africanos, a

partir de suas mitologias,

bem como a valorização

das crianças, suas

inteligências e formas de

expressão.

Dialogar com as crianças

sobre a história e as

personagens.

Narração oral,

bonecos,

instrumentos

musicais, músicas,

dentre outros

recursos lúdicos.

2

Despertar o corpo

ao som de tambor.

Em roda, despertar e

alongar o corpo das

crianças, solicitando

uma parte por vez,

desde o pé até a

cabeça e outras

partes, como olhos,

nariz, queixo, dentre

outras.

Sensibilizar e preparar o

corpo das crianças para a

próxima atividade.

Voz de comando da

proponente e

música cantada e

executada na hora.

3

Jogo/Brincadeira

Corporal

“Icus velhinhas e

os rápidos

Ibeijizinhos”.

Formação de dois

grupos: um que

representa Icus

velhinhas, e o outro

grupo que representa

os rápidos

Ibeijizinhos.

O grupo das Icus está

em ritmo lento e deve

pegar o grupo dos

Ibeijizinhos, que está

no ritmo que quiser.

Trabalhar noções de

ritmo corporal em grupo,

a partir de personagens

da história contada

inicialmente.

Voz de comando da

proponente.

Page 210: LIA FRANCO BRAGA

210

Caso alguma Icu

pegue algum

Ibeijizinho, algum

outro Ibeijizinho pode

salvá-lo;

depois, os grupos

podem trocar de

lugar.

4

Desenho. As crianças escolhem

um local no chão para

desenhar livremente,

a partir do que foi

vivenciado na oficina

do dia.

Propiciar

desaceleramento

corporal, outra forma de

expressão artística e

relaxamento final.

Voz de comando da

proponente.

4ª Oficina – 23/05/2019 – 1 hora e 20 minutos

4ª Oficina Atividade Descrição Objetivo(s) Recurso(s)

Utilizado(s)

1

Contação de Histórias

Os Ibejis são

transformados numa

estatueta (PRANDI, 2001)

e Ajê Xalugá e o seu brilho

intenso (OLIVEIRA,

2009) e diálogos sobre a

história.

Organizar as crianças

em semicírculo e contar

as histórias sobre orixás

dos livros.

Caracterizar as(os)

orixás e abordar

elementos simbólicos

e culturais africanos,

a partir de suas

mitologias, bem

como a importância

da união.

Dialogar com as

crianças sobre a

história e as

personagens.

Narração oral e

outros recursos

lúdicos.

2

Despertar o corpo com a

brincadeira “E o orixá

pediu para eu mexer (...)”.

Em roda, despertar e

alongar o corpo das

crianças, solicitando

uma parte por vez,

desde o pé até a cabeça

e outras partes, como

olhos, nariz, queixo,

dentre outras.

Sensibilizar e

preparar o corpo das

crianças para a

próxima atividade.

Voz de comando da

proponente.

3

Jogo/Brincadeira Corporal

“Cego e Condutor”.

Em duplas ou trios, uma

criança ficará de olhos

fechados, e a outra de

olhos abertos. A de olho

aberto guiará a sua

dupla pelo espaço, com

as mãos ou com a voz.

Depois é efetuada a

troca de lugar.

Possibilitar que as

crianças trabalhem a

perspectiva de

companheirismo e

ajuda ao próximo;

despertar o corpo

para outros sentidos e

percepções dentro do

espaço.

Voz de comando da

proponente, das

crianças e música de

fundo.

4

Jogo/Brincadeira Corporal

“Boneco de Modelar”.

Em duplas ou trios, uma

criança será modelada

pela outra, ganhando

vida. A criança que

modela toca na outra, e

assim esta vai se

mexendo. Depois é

Dar continuidade à

exploração de outros

sentidos corporais, a

partir do comando e

da ajuda do outro. As

crianças poderão

criar inúmeras

Voz de comando da

proponente, das

crianças e música de

fundo.

Page 211: LIA FRANCO BRAGA

211

efetuada a troca de

lugar.

figuras corporais em

movimento.

5

Roda para a escolha dos

nomes na pesquisa.

Em roda, as crianças,

uma a uma, escolhem os

seus nomes fictícios

para a pesquisa.

O tambor djembe passa

de uma por uma. Ao

tocá-lo, elas dizem o

nome escolhido em voz

alta.

Possibilitar

desaceleramento

corporal, criação e

afirmação das

crianças a partir de

seus nomes

escolhidos.

Voz de comando da

proponente e uso de

tambor djembe.

5ª Oficina – 04/06/2019 – 1 hora e 20 minutos

5ª Oficina Atividade Descrição Objetivo(s) Recurso(s)

Utilizado(s)

1

Contação de Histórias

Os Ibejis encontram água e

salvam a cidade (PRANDI,

2001) e diálogo sobre a

história.

+

Jogo/Brincadeira Corporal

“A ciranda das águas” .

Organizar as crianças

em semicírculo e contar

as histórias sobre as(os)

orixás.

+

Em roda, despertar e

alongar o corpo das

crianças a partir de uma

ciranda com foco no

elemento água.

Caracterizar as(os)

orixás e abordar

elementos simbólicos

e culturais africanos,

a partir de suas

mitologias, bem

como a importância e

valorização da água.

Dialogar com as

crianças sobre a

história e as

personagens.

+

Desenvolver a

dinâmica dentro do

contexto da história.

As crianças precisam

passar por um

desafio – no caso, a

ciranda – para

conseguir água.

Sensibilizar e

preparar o corpo das

crianças para a

próxima atividade.

Narração oral e

outros recursos

lúdicos.

+

Voz e música

cantada e

executada na hora,

bem como

movimentações

corporais indicadas

pela música e pela

proponente.

2

Jogo/Brincadeira Corporal

“Água 1-2-3”.

Obs.: Na dinâmica original,

utiliza-se a palavra

“Batatinha 1-2-3”, mas ela

pode ser substituída por

outra.

Um jogador fica em um

extremo da sala, virado

de costas e segurando

um pano azul que

representa a água (na

dinâmica original é uma

camiseta de laycra, que

pode ser esticada e

vestida).

Aquecer o corpo,

trabalhando o

controle e a

expressão corporal.

Voz de comando

da proponente e

das crianças. Um

pano azul.

Page 212: LIA FRANCO BRAGA

212

No outro lado da sala,

ficará um grupo de

jogadores.

O objetivo de cada

jogador é chegar ao

jogador virado de costas

e pegar o pano.

Este mesmo jogador terá

uma voz de comando,

“Água 1-2-3”, e ao se

virar, ninguém poderá

se mexer. Caso alguém

se mexa, deverá voltar

para o local de partida,

retornando ao jogo na

contagem seguinte.

Vence quem chegar e

pegar o pano do jogador

que está com a voz de

comando, trocando de

lugar com o mesmo.

3

Jogo/Brincadeira Corporal

“Caminhando com diversas

sensações”.

As crianças caminham

no espaço e respondem

corporalmente aos

vários estímulos – no

caso, a facilitadora pode

sugerir alguns

comandos, e entre um e

outro, utilizar o

comando “Estátua”, em

que todos param o que

estão fazendo. Assim:

Mar/Calmo/Agitado

(Estátua)

Chuva/Fraca/Forte

(Estátua)

Terra/Lama/Areia

(Estátua)

Sol/Muito Quente/Fogo

(Estátua)

Vento/Forte/Suave

(Estátua)

Mãe Natureza:

Alegre

Triste

Carinhosa

Tranquila

Com sono

Possibilitar que as

crianças trabalhem, a

partir de suas

expressões corporais,

a conexão com

elementos da

natureza.

Voz de comando

da proponente e

das crianças.

4

Desenho. As crianças escolhem

um momento das

oficinas para retratar em

desenho.

Possibilitar

desaceleramento

corporal, outra forma

de expressão artística

e relaxamento final.

Voz de comando

da proponente e

música de fundo.

Page 213: LIA FRANCO BRAGA

213

6ª Oficina – 06/062019 – 1 hora e 15 minutos

6ª Oficina Atividade Descrição Objetivo(s) Recurso(s)

Utilizado(s)

1

Contação de Histórias

Iemanjá e o poder da

criação do mundo

(OLIVEIRA, 2009).

Em semicírculo, contar

uma história sobre a

orixá Iemanjá,

abordando o

enfrentamento da

solidão, a valorização

do ser menina/mulher e,

neste caso específico, do

seu habitat mar.

Caracterizar esta

orixá, narrando uma

de suas histórias;

abordar elementos

simbólicos e culturais

africanos, a partir de

sua mitologia.

Dialogar com as

crianças sobre a

história e as

personagens.

Narração oral e

outros recursos

lúdicos.

2

Alongamento/Despertar o

corpo.

Em roda, despertar e

alongar o corpo das

crianças.

Sensibilizar e

preparar o corpo das

crianças para a

próxima atividade.

Voz de comando da

proponente e música

de fundo.

3

Jogo/Brincadeira Corporal

“Espelho”.

Em duplas ou trios, as

crianças brincam de ser

o espelho umas das

outras; uma se

movimenta e a outra

repete; depois, trocam

de lugar e atuam em

simultâneo.

Trabalhar a

expressão corporal

das crianças,

despertando

possíveis danças

criadas em conjunto.

Voz de comando da

proponente e música

de fundo.

4

Jogo/Brincadeira Corporal

“Corpo colado, tente se

movimentar”

Nas mesmas duplas ou

trios da dinâmica

anterior, as crianças

devem colar o corpo

(parte ou partes) uma

nas outras, como

queiram, e começar a se

movimentar pelo

espaço, não podendo se

desgrudar.

Aquecer o corpo,

trabalhando a

concentração e

expressão corporal.

Voz de comando da

proponente e música

de fundo.

5

Jogo/Brincadeira Corporal

“Não deixe o balão cair”

Cada criança recebe um

balão, dança,

movimenta-se com ele

pelo espaço, tocando-o

em partes de seu corpo,

sem deixar que ele caia

no chão.

Caso caia, a criança fica

parada em estátua por

um breve tempo e

depois retorna à

dinâmica.

Se houver oportunidade,

formar duplas.

Possibilitar

aquecimento corporal

e estimular que as

crianças se

movimentem e criem

livremente possíveis

danças a partir do

contato com o balão.

Voz de comando da

proponente e música

de fundo.

Page 214: LIA FRANCO BRAGA

214

7ª Oficina – 13/06/2019 – 1 hora

7ª Oficina Atividade Descrição Objetivo(s) Recurso(s)

Utilizado(s)

1

Contação de Histórias

Oxum e seu mistério

(OLIVEIRA, 2009) e

Oiá e o búfalo interior

(OLIVEIRA, 2009), e

diálogo sobre as histórias.

Em círculo, contar

histórias de orixás

femininas, enaltecendo

suas características e o

empoderamento

feminino, com a

participação das

crianças, que

representam

personagens.

Caracterizar as orixás

e abordar elementos

simbólicos e culturais

africanos, a partir de

suas mitologias.

Dialogar com as

crianças sobre a

história e as

personagens.

Narração oral e

outros recursos

lúdicos.

2

Jogo/Brincadeira corporal

“Dançando com as(os)

Orixás”.

O proponente, em um

primeiro momento,

mostra as possibilidades

de danças de

algumas(alguns) orixás

(Iemanjá, Ogum, Oxum,

Oxóssi, Oiá-Iansã,

Xangô), apresentando

alguns repertórios de

movimentos específicos

destas danças.

Posteriormente, as

crianças são estimuladas

a criar suas próprias

danças, imaginando-se

como as(os) orixás.

Proporcionar às

crianças contato com

as danças das(os)

orixás, permitindo-

lhes criar livremente

suas próprias danças,

a partir da

simbologia e de

códigos corporais

próprios.

Voz de comando da

proponente e música

de fundo.

3

Desenho

“Desenhando as(os)

Orixás”.

As crianças desenham

a(o) orixá ou orixás que

quiserem.

Possibilitar

desaceleramento

corporal, outra forma

de expressão artística

e relaxamento final.

Voz de comando da

proponente e música

de fundo.

8ª Oficina – 19/06/2019 – 1 hora e 10 minutos

8ª Oficina Atividade Descrição Objetivo(s) Recurso(s) Utilizado(s)

1

Roda de

conversa inicial

sobre a

Capoeira.

Em roda, dialogar com as

crianças sobre a

manifestação cultural

afro-brasileira capoeira e

mostrar alguns códigos

corporais/passos através

do livro Diário de Pilar

na África (SILVA,

2015).

Enlaçar alguns

conhecimentos

histórico-culturais a

respeito desta

manifestação, a partir

das opiniões e

expressões das

crianças.

Voz de comando da

proponente, música

cantada na hora e outros

recursos lúdicos.

2

Vivência

Corporal

“Brincando de

Capoeira”.

São desenvolvidos 4

momentos para esta

vivência:

1) Despertar o corpo a

partir de música cantada

Estimular a

experimentação

corporal das crianças,

a partir de repertórios

anteriormente

apresentados e de

Voz de comando e

música de fundo.

Page 215: LIA FRANCO BRAGA

215

com acompanhamento de

instrumento caxixi, em

que as crianças dançam

livremente;

2) Formar roda, em que

uma dupla de crianças

fica no centro, e depois

são trocadas por outras.

As crianças dançam a

partir dos códigos

apresentados

anteriormente, podendo

criar seus próprios

repertórios, com

acompanhamento de

música;

3) As crianças dançam

em duplas, podendo

locomover-se pelo

espaço com a ideia de

serem guerreiros(as)

capoeiristas, com

acompanhamento de

música;

4) Retorno à roda, para

revisitação corporal das

duplas capoeiristas, com

acompanhamento de

música.

outros, criados pelas

mesmas, aliando o

brincar com o dançar.

4

Afrodiálogos

finais.

Formar roda para

desenvolver diálogos

com as crianças sobre a

pesquisa.

A partir de algumas

perguntas-chave,

dialogar com as

crianças para que elas

expressem suas

narrativas a partir dos

eixos e temáticas

vivenciados.

Voz de comando da

proponente e das

crianças.