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Liberalismo - Ludwig Von Mises

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Qualquer filosofia política deve voltar-se para uma questão central: sobquais condições a iniciação de violência deve ser considerada legítima? Umafilosofia pode endossar tal violência em nome dos interesses de um gruporacial majoritário, como fizeram os Nacional-Socialistas da Alemanha. Outrapode endossá-la em nome de uma classe econômica em particular, comofizeram os Bolcheviques da Rússia Soviética. Uma outra pode preferir evitaruma posição doutrinária de uma forma ou de outra, deixando para o bomjuízo daqueles que administram o estado decidir quando o bem comumdemanda a iniciação de violência e quando não. Essa é a posição dassociais-democracias.

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo

    nvel."

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  • Ludwig von Mises

    LIBERALISMO

    2 Edio

  • Copyright Instituto Liberal eInstituto Ludwig von Mises Brasil

    Ttulo:

    LIBERALISMO

    Esta obra foi editada por:Instituto Ludwig von Mises Brasil

    Rua Iguatemi, 448, conj. 405 Itaim BibiSo Paulo SP

    Tel: (11) 3704-3782Impresso no Brasil / Printed in Brazil

    ISBN: 978-85-62816-45-1

    2 Edio

    Traduzido por Haydn Coutinho Pimenta

    Reviso para nova ortografia:Cristiano Fiori Chiocca

    Capa:

    Neuen Design

    Projeto Grfico:Andr Martins

    Imagens da capa:

    Ozerina Anna /Shutterstock

    Ficha Catalogrfica elaborada pelo bibliotecrioSandro Brito CRB8 7577

    Revisor: Pedro AnizioV947i von Mises, Ludwig.

    Liberalismo / Ludwig von Mises. -- So Paulo : Instituto Ludwig vonMises

    Brasil, 2010. 125p.Traduo de: Haydn Coutinho Pimenta

    1. Economia 2. Liberalismo 3. Poltica 4. Liberdade 5. Mercado I. Ttulo.

  • CDU 330.81

  • Sumrio

    CapaPrembuloPrefcio Edio de 2010

    O Conceito de Mises Sobre uma Sociedade LivrePrefcio Edio em Lngua InglesaPrefcio Edio de 1985Introduo

    1. Liberalismo2. Bem-estar material3. Racionalismo4. O Objetivo do Liberalismo5. Liberalismo e Capitalismo6. As Razes Psicolgicas do AntiliberalismoRodap

    Os Fundamentos da Poltica Econmica Liberal1. A Propriedade2. A Liberdade3. A Paz4. A Igualdade5. A Desigualdade de Riquezas e de Renda6. A Propriedade Privada e a tica7. Estado e Governo8. Democracia9. A Crtica da Doutrina da Fora10. As Razes do Fascismo11. Os Limites da Ao Governamental12. A Tolerncia13. O Estado e a Conduta AntissocialRodap

    Poltica Econmica Liberal1. A Organizao da Economia2. Propriedade Privada e Sua Crtica3. Propriedade Privada e Governo4. A Impraticabilidade do Socialismo5. Intervencionismo6. Capitalismo: O nico Sistema Possvel de Organizao Social7. Cartis, Monoplios e Liberalismo8. BurocratizaoRodap

    Poltica Externa Liberal

  • 1. Os Limites do Estado2. O Direito Autodeterminao3. Os Fundamentos Polticos da Paz4. Nacionalismo5. Imperialismo6. Poltica Colonial7. Livre Comrcio8. Liberdade de Movimento9. Os Estados Unidos da Europa10. A Liga das Naes11. A RssiaRodap

    Liberalismo e Partidos Polticos1. O Doutrinarismo dos Liberais2. Partidos Polticos3. A Crise do Parlamentarismo e a Ideia de Uma Dieta de Representao deGrupos Especiais4. Liberalismo e os Partidos com Interesses Especiais5. Propaganda Partidria e Organizao Partidria6. Liberalismo Como o Partido do CapitalRodap

    O Futuro do Liberalismo1. O Futuro do Liberalismo

    Apndice1. Sobre a Literatura do Liberalismo2. Sobre o Termo LiberalismoRodap

  • Prembulo

    A importncia deste pequeno livro , acredito, muito maior do que sepoderia esperar de seu diminuto tamanho e linguagem despretensiosa.Trata-se, simplesmente, de um livro sobre a sociedade livre; sobre o quese poderia chamar, hoje em dia, de implicaes de poltica econmicapara uma sociedade como essa, na conduo de seus negcios internos eexternos; e muito especialmente sobre alguns dos obstculos e problemas,reais ou imaginrios, que se antepem ao curso da implantao e damanuteno dessa forma de organizao social.

    Muito embora nada haja de extraordinrio em tudo isso, o fatosurpreendente que, praticamente, nenhum dos que tm defendido algumaforma alternativa de organizao social e econmica ofereceu umadiscusso, semelhante a esta, de suas respectivas propostas. Mesmo agora,o crescente nmero de autores que nos regalam com crticas detalhadas docapitalismo e com previses de sua iminente extino mostram-seestranhamente reticentes, ao tratar de quaisquer contradies ou outrasdificuldades que poderiam ocorrer na operao do sistema econmico quepreferem ou preveem.

    Entretanto, o significado desta omisso tem sido comumente posto delado, simplesmente porque a responsabilidade por ela , normalmente, malcolocada. Acusar Marx para citarmos o exemplo mais frequente pelofracasso em descrever os detalhes da operao e as implicaes de umasociedade socialista em O capital indefensvel, pois esse trabalho exatamente o que pretendia ser, isto , um exame altamente crtico dofuncionamento do capitalismo, tal como Marx o concebia. Da mesma forma,seria vazia a acusao a Mises de errar, por no incluir, em seu Socialism,uma discusso dos princpios de um sistema empresarial. Mas o aspectoessencial que Mises, de fato, se lana a essa tarefa em um livro opresente livro ao passo que Marx no o faz. este, ento, o livro queMarx deixou de escrever e que seus seguidores e outros crticos doliberalismo tambm no fizeram.

    A real importncia deste livro, entretanto, no se encontra nestesentido mais estreito e mais polmico, mas num sentido muito maisfundamental e construtivo. A despeito de sua brevidade, este ensaioconsegue tratar de um nmero razoavelmente grande de questes, dvidase confuses em que muitas pessoas se veem envolvidas, ao buscarorganizar seu pensamento sobre problemas controversos, frequentementeemocionais, de natureza social e econmica. O mrito desta obra reside nofato de que, em todas as questes tratadas, Mises fornece vislumbres epontos de vista alternativos certamente muito teis.

  • Uma vez que o leitor, certamente, estar ansioso por examinar econsiderar alguns destes pontos de vista, no me intrometerei comcomentrios prprios, a no ser com uma ou duas reflexes inevitveis,com as quais se encerrar este prembulo.

    Desse modo, tomaremos em seguida uma amostra de questes eopinies comumente presentes na mente das pessoas que pensam sobrequestes controversas, em relao s quais Mises nos tem algo a dizeraqui, e que vale a pena considerar. Por maior convenincia, tais questesso listadas mais ou menos na mesma ordem em que ocorrem asreferncias a elas ao longo do texto.

    1. O sistema de livre mercado tem estado em operaoplena e durante um longo perodo de tempo, mas tem-semostrado inexequvel.

    2. O Liberalismo sofre de uma fixao do desejo deaumento da produo e bem-estar material e,persistentemente, despreza as necessidades espirituais dohomem.

    3. Uma vez que as pessoas nem sempre agem de modoperfeitamente racional, no seria melhor que, em algumasquestes, confissemos menos em argumentos lgicos emais na nossa intuio, nos nossos impulsos, ou, comocomumente se diz no que nos d na telha?

    4. No h como negar que o capitalismo , em essncia, umsistema estruturado para favorecer gente rica e de posses, custa das outras classes.

    5. Por que defender um sistema social que no possibilita acada um e a todos os indivduos realizar seus sonhos ouobter tudo aquilo para o qual se trabalha?

    6. No a propriedade privada dos meios de produo umaparte obsoleta do excesso de bagagem, carregado, desdeh muito tempo, por pessoas que consideram difcil aceitaras condies de vida em constante mutao e seacostumar a elas?

    7. Por sua prpria natureza, a economia de mercadocompetitivo, na melhor das hipteses, no conspirar contraa paz internacional, e, na pior das hipteses, no promover,

  • de fato, as guerras?

    8. Que defesa poder haver de um sistema socioeconmicoque produz to grandes desigualdades de renda e consumo?

    9. Pondo-se de lado o pragmatismo, poder haverjustif icativa moralmente defensvel para os direitos depropriedade privada?

    10. Ao se opor s intervenes do estado, o liberalismo nose inclina, implicitamente, a defender algum tipo deanarquia, em ltima anlise?

    11. No , por si s, evidente que uma sociedade estvel edemocrtica seja mais factvel, sob um sistemadescentralizado de planejamento e de tomada de deciso, doque sob uma economia planejada.

    12. Que razes h para esperar-se que uma sociedadecapitalista seja, necessariamente, mais tolerante sdissenses do que uma sociedade socialista?

    13. O capitalismo cria e preserva uma posio preferencialde detentores de recursos, os quais no trabalham nemcontribuem de modo significativo para a sociedade.

    14. A razo pela qual a instituio da propriedade privadatem sobrevivido por to longo tempo que tem sidoprotegida pelo estado. De fato, como argumenta Marx, apreservao da propriedade privada a nica funo doestado.

    15. O argumento segundo o qual o socialismo no podefuncionar por si prprio, porque lhe faltam meios deproduzir os necessrios clculos econmicos, interessante; mas h exemplos especficos e concretosdessa afirmao?

    16. , tambm, interessante a sugesto de que asintervenes estatais, na operao da empresa privada,levam, necessariamente, a distores, e so, portanto,autoanuladoras: mas possvel mostrar, com exemplosespecficos, que isso necessariamente ocorre?

  • 17. Alm do argumento de que sistemas alternativospropostos podem revelar-se inadequados, h alguma razo,direta e positiva, para defender-se o sistema de livreempresa?

    18. Uma vez que, para poder funcionar, um sistemaempresarial exige um grande nmero de firmasrelativamente pequenas, em concorrncia bastante ativaentre si, no se tornou grandemente obsoleto odesenvolvimento de grandes empresas, monoplios eassemelhados?

    19. Na medida em que a administrao de grandesempresas tende a desembocar na burocracia, tambm acontrovrsia de controle privado versus controle pblico no, em grande parte, uma distino artificial?

    20. a coordenao entre as polticas interna e externamais factvel ou consistente sob o liberalismo do que sobqualquer outro sistema?

    21. No ser a existncia ou a proteo aos direitos depropriedade privada um obstculo, ao invs de um auxlio,na obteno e na manuteno da paz e do entendimentointernacionais?

    22. Parece bvio que o nacionalismo, o colonialismo e oimperialismo somente poderiam evoluir sob o capitalismo.

    23. O interesse prprio das empresas privadas constitui oprincipal empecilho no caminho do desenvolvimento damovimentao mais livre de bens e pessoas entre asdiversas regies do mundo.

    24. Uma vez que representa e promove os interessesespeciais de uma classe os donos de recursos, oucapitalistas o liberalismo cometeu um srio erro ttico aono constituir-se um partido poltico e no buscar seusobjetivos, por meio de compromissos e de acordo comexpedientes polticos.

    Quem quer que tenha tido a oportunidade de observar mais de perto omodo como certos pressupostos, meias verdades e valores,aparentemente evidentes por si s, impedem sempre as pessoas de dar

  • plena e justa considerao a pontos de vista no familiares e incomuns naeconomia, reconhecer muitos dos argumentos mencionados nessa lista. Oque Mises tem a dizer sobre cada um desses pontos deve ajudar o leitorcomum (e o estudante iniciante) a orientar-se em direo a umaperspectiva mais ampla sobre as questes sociais e tambm a lidar comsuas prprias dvidas e suspeitas. A supresso do livro na AlemanhaOriental, a que se refere Mises em seu prefcio, torna-se compreensvelnessa perspectiva, e outra indicao, embora no intencional, de suaimportncia.

    Por fim, h dois pontos sobre os quais gostaria de fazer um brevecomentrio:

    O primeiro deles repete-se um determinado nmero de vezes ao longodo livro, mas em contextos to diferentes e isolados que sua generalidade eimportncia podem passar despercebidos.

    Trata-se da ideia to essencial lgica do verdadeiro liberalismo deque sempre sbio e produtivo fazer o que Mises, em determinado local,chama de sacrifcios provisrios. Reivindicar um benefcio imediato, pormais atraente que seja, um ato de insensatez, se, ao agir assim, algumimpede que um benefcio muito maior possa ser obtido mais tarde; isto ,um benefcio de tal ordem maior que so mais recompensadores tanto arenncia ao ganho imediato quanto o desconforto de esperar por ele.

    Sem dvida, poucas pessoas sensatas que fizessem esse tipo declculo provavelmente escolheriam o benefcio presente sob dadascondies. Porm, eis aqui o mago da questo: algumas vezes, as pessoasno calculam de maneira prudente, e nem mesmo so estimuladas a faz-lo. O mesmo tipo de omisso ocorre em circunstncias muito diferentes, eisto est longe de acontecer apenas com os cidados e consumidorescomuns. Isso tambm pode ocorrer com homens de negcios, em suabusca de lucros ou vantagens comparativas a curto prazo; ou com umlegislador que favorea o aumento imediato das taxas de salrio mnimo,dos benefcios da previdncia social, das tarifas ou de outros impostos; oucom economistas que aconselham o aumento da oferta de moeda ou aredistribuio da renda; ou, ainda, com uma interminvel lista de pessoas.Sem dvida, seria timo exerccio para o leitor buscar outros exemplos naspartes mais importantes deste livro e, especialmente, na reflexo sobrequestes e controvrsias contemporneas.

    Finalmente, torna-se necessria uma explicao, acerca do ttulo dolivro. O trabalho original, publicado em 1927, era intitulado Liberalismus ecomplementou, como indicamos anteriormente, o livro de Mises sobresocialismo. O fato de que se julgou desejvel ou necessrio reintitul-lo A

  • sociedade livre e prspera, quando a verso inglesa foi preparada no inciodos anos 1960, ilustra, de modo muito preciso, o que acredito seja uma realtragdia na histria da intelectualidade: a transferncia de sentido do termoliberalismo.

    O que est por trs disso no , simplesmente, uma questoterminolgica, nem mesmo pode ser deixado de lado apenas como um outroexemplo de degradao geral da linguagem uma entropia de palavras, porassim dizer na qual diferenas de significado e tonalidade anteriorestenderam a se perder. Trata-se, aqui, mais do que da desvalorizao determos, ainda que sejam importantes. Esto envolvidas tambm questessubstantivas do maior significado prtico e intelectual.

    Antes de mais nada, a palavra liberal possui razes claras epertinentes, cravadas no ideal de liberdade individual. H nela, tambm,valioso fundamento histrico de tradio e experincia, bem como depatrimnio de uma literatura rica e extensa de filosofia social, depensamento poltico, de fico literria e de outros campos doconhecimento humano. Por esta e muitas outras razes, inconcebvel que,do ponto de vista ilustrado neste livro, no se confira uso exclusivo einviolvel do termo liberal.

    No obstante, por todas estas razes, o termo liberalismo provou serincapaz de ir alm do sculo XIX, ou do Atlntico, sem mudar seusignificado e no de um modo suave, mas praticamente assumindoacepo contrria! As confuses e imprecises resultantes disso so de talordem que seria muito difcil conceber, deliberadamente, um plano quefosse mais capaz de embaraar-lhe o contedo e o significado.

    O mais triste de tudo isto se constitui de pelo menos mais duasconsideraes: a primeira delas a assombrosa magnanimidade com queos verdadeiros herdeiros do liberalismo no apenas deixaram escapar-lhes otermo mas tambm o repeliram pelo desejo de utiliz-lo como um termode oprbrio para os criptossocialistas, para os quais j existia um rtuloapropriado. Em comparao com este espetculo, a velha fbula do Cameloe da Tenda1 parece um simples caso de relocalizao.

    A outra razo para lamentar-se que, com a perda do termo liberal,tornou-se necessrio recorrer-se a um sem-nmero de substitutosimaginosos e circunlquios tortuosos (por exemplo, libertrio, liberalismodo sculo XIX, ou liberalismo clssico. Haver, por acaso, umliberalismo neoclssico, ao qual qualquer um pudesse dizer-se filiado?).

    A esta altura, o termo liberal estaria irremediavelmente perdido entre

  • ns? Em um apndice a edio original alem (includa na traduo), Misesdiscute a mudana de significado do termo e alude possibilidade derecuper-lo. Mas, em 1962, no prefcio da traduo em lngua inglesa,parece ter abandonado qualquer esperana de faz-lo.

    Com todo o respeito, devo discordar, porque, sob qualquer ponto devista razovel, o Liberalismo pertence a ns, e eu acredito que estejamosdestinados a recuper-lo, por uma questo de princpio, seno por qualqueroutra razo. Mas h outras razes. Em primeiro lugar, na medida em que oLiberalismo, tal como Mises argumenta, encerra mais do que liberdadeeconmica, sem dvida o termo necessrio como o mais apropriado eabrangente. Em segundo lugar, a necessidade de comunicar-nos claramentee sem ambiguidades com o pblico em geral, cujo apoio essencial, emltima anlise, nos faz necessitar de um nico termo de significado direto eno de um artifcio verbal que soa empolado ao homem da rua. Almdisso, a poca e as circunstncias atuais so relativamente propcias odesencanto geral e crescente com as intervenes governamentais e oreavivamento da conscincia de liberdade de escolha podem identificar-se,mais prontamente, com um rtulo respeitado e abrangente.

    Como, ento, deveremos proceder para reclamar nosso nome? Acreditoque, simplesmente, por revertermos o processo pelo qual ns o estamosperdendo. Em primeiro lugar, por pararmos, ns mesmos, de utiliz-lo emseu significado incorreto. Depois, por reforarmos, insistentemente, o usocorreto (o termo, em algumas partes do mundo, no foi aindacompletamente desgastado). Finalmente, por recusarmos, tofrequentemente quanto necessrio, a sua continuada utilizao por aquelescom menor legitimidade para reivindic-lo, os quais devem ser instados abuscar um termo mais apropriado a seus pontos de vista, tanto quanto oLiberalismo o em relao aos nossos.

    Alguns polemizaro, sem razo, quanto inevitvel confuso doutrinria(suspeito que esta preocupao tenha sido parcialmente responsvel pornossa inconveniente pressa inicial em esvaziar a tenda), mas este opreo que deveramos estar prontos a pagar, a esta altura. Ademais, jexiste certa confuso, tal como as coisas se encontram agora; de modoque um pouco mais de confuso, ainda que temporria, no seriaintolervel. Alm disso, a confuso atinge ambos os lados; portanto, outroscompartilharo os custos conosco, e agora, talvez, o desconforto far comque o camelo seja retirado.

    Eis por que a presente reimpresso retoma o ttulo original do livro. de se esperar que outros venham a ajudar, utilizando-se do termo semdesculpas ou restries pois no necessitam disso de modo queliberalismo possa, em ltima anlise, reassumir seu significado tradicional

  • e correto.

    Louis M. SPADAROFordham University, agosto de 1977.

  • Prefcio Edio de 2010

    O Conceito de Mises Sobre uma Sociedade Livre

    Qualquer filosofia poltica deve voltar-se para uma questo central: sobquais condies a iniciao de violncia deve ser considerada legtima? Umafilosofia pode endossar tal violncia em nome dos interesses de um gruporacial majoritrio, como fizeram os Nacional-Socialistas da Alemanha. Outrapode endoss-la em nome de uma classe econmica em particular, comofizeram os Bolcheviques da Rssia Sovitica. Uma outra pode preferir evitaruma posio doutrinria de uma forma ou de outra, deixando para o bomjuzo daqueles que administram o estado decidir quando o bem comumdemanda a iniciao de violncia e quando no. Essa a posio dassociais-democracias.

    O liberal determina um limiar muito alto para a iniciao da violncia.Alm da tributao mnima necessria para manter os servios jurdicos ede defesa e alguns liberais recusam at mesmo isso , ele nega aoestado o poder de iniciar violncia, e procura somente solues pacficaspara os problemas sociais. Ele se ope violncia praticada em nome daredistribuio de riqueza, do enriquecimento de grupos de interesseinfluentes ou da tentativa de aprimorar a condio moral do homem.

    Pessoas civilizadas, diz o liberal, interagem entre si no de acordo coma lei da selva, mas por meio da razo e da discusso. O homem no podese tornar bom por meio do guarda da priso e do carrasco; caso estessejam necessrios para torn-lo bom, ento sua condio moral j estmuito alm de qualquer possibilidade de salvamento. Como Ludwig vonMises afirma em seu livro Liberalismo, o homem moderno deve se libertardo hbito de chamar a polcia sempre que algo no lhe agrada.

    Tem havido uma espcie de renascimento dos estudos misesianos norastro da crise financeira que assolou o mundo em 2007 e 2008, dado queforam os seguidores de Mises que apresentaram as mais convincentesexplicaes sobre os fenmenos econmicos que deixaram a maioria dosespecialistas gaguejando. A importncia das contribuies econmicas deMises para as discusses atuais tendem a nos fazer negligenciar suascontribuies como terico social e filsofo poltico. Seu livro Liberalismoajuda a retificar esse descuido.

    O liberalismo que Mises descreve nesse livro no , obviamente, oliberalismo do qual se fala hoje em dia, mas sim o liberalismo clssico,que como o termo continua a ser conhecido na Europa. O liberalismo

  • clssico defende a liberdade individual, a propriedade privada, o livrecomrcio e a paz os princpios fundamentais dos quais todo o resto doprograma liberal pode ser deduzido.

    No seria nenhum insulto a Mises descrever sua defesa do liberalismocomo parcimoniosa, no sentido de que, seguindo a lgica da navalha deOccam, ele no emprega em sua defesa nenhum conceito que no sejaestritamente necessrio ao seu argumento. Sendo assim, Mises no faznenhuma referncia aos direitos naturais, por exemplo, um conceito quepossui um papel central em tantas outras exposies do liberalismo. Eleenfoca principalmente a necessidade de uma cooperao social de largaescala. Essa cooperao social por meio da qual complexas cadeias deproduo geram um aprimoramento do padro de vida de todos pode sercriada somente por um sistema econmico baseado na propriedade privada.A propriedade privada dos meios de produo, em conjunto com aprogressiva ampliao da diviso do trabalho, ajudou a libertar ahumanidade das horrveis aflies que antigamente devastavam a raahumana: doenas, pobreza opressiva, taxas pavorosas de mortalidadeinfantil, misria e imundcies generalizadas, e uma radical inseguranaeconmica, com pessoas frequentemente vivendo a apenas uma colheitaruim da completa inanio.

    At o momento em que a economia de mercado surgiu para ilustrar acriao de riqueza possibilitada pela diviso do trabalho, era tido comocerto que essas caractersticas grotescas das condies de vida do homemeram imposies irreversveis de uma natureza fria e impiedosa, sempossibilidades de ser substancialmente aliviada, muito menos subjugadainteiramente, pelo esforo humano.

    Os estudantes foram ensinados, por vrias geraes, a pensar napropriedade como sendo uma palavra suja, a exata materializao daavareza. Mises no tolera tal concepo. Se h algo que a histria podeprovar em relao a essa questo, que em nenhum lugar e em nenhumapoca j houve algum povo que, sem a propriedade privada, tenhamelhorado seu padro de vida para alm da mais opressiva penria eselvageria, uma situao dificilmente distinguvel da existncia animal. Acooperao social, Mises demonstrou, impossvel na ausncia depropriedade privada, e quaisquer tentativas de restringir o direito depropriedade iro solapar a coluna central da civilizao moderna.

    De fato, Mises ancora firmemente o liberalismo na propriedade privada.Ele estava perfeitamente cnscio de que defender a propriedade significaatrair a acusao de que o liberalismo meramente uma apologia velada aocapital. Os inimigos do liberalismo o rotularam como a ideologia quedefende os interesses especiais dos capitalistas, observou Mises. Isso

  • tpico da mentalidade deles. Eles simplesmente no conseguem entenderuma ideologia poltica. Para eles, qualquer ideologia que no seja a delesrepresenta a defesa de certos privilgios especiais em detrimento do bem-estar geral. Mises mostra em seu livro, e em todo o restante de sua obra,que o sistema de propriedade privada dos meios de produo resulta embenefcios no apenas para os donos diretos do capital, mas tambm paratoda a sociedade.

    Na realidade, no h nenhum motivo em particular para que as pessoasem posse de grandes riquezas sejam a favor do sistema liberal de livreconcorrncia, em que um esforo contnuo deve ser feito para se estarsempre atendendo aos desejos dos consumidores caso contrrio, essariqueza ser reduzida gradualmente. Aqueles que possuem grande riqueza,especialmente os que herdaram essa riqueza, podem com efeito preferirum sistema intervencionista, o qual tem maior propenso a mantercongelados os padres de riqueza existentes. No de se estranhar, porexemplo, que as revistas de negcios dos EUA, durante a Era Progressiva(1890-1920), estivessem repletas de apelos pela substituio do laissez-faire, um sistema em que os lucros no esto protegidos, por um arranjode cartis sancionados pelo governo e por vrios outros esquemas deconluio.

    Naturalmente, dada a nfase de Mises na importncia da diviso dotrabalho na manuteno e no progresso da civilizao, ele particularmentefranco em relao aos males das guerras, as quais, alm de seus danosfsicos e humanos, geram um progressivo empobrecimento da humanidadeem decorrncia de seu radical rompimento da harmoniosa estrutura deproduo que abrange todo o globo. Mises, que raramente mede as palavras,mas cuja prosa geralmente elegante e comedida, fala com indignao erevolta quando o assunto passa a ser o imperialismo europeu, uma causada qual ele no admite qualquer argumento a favor. Assim como seu pupilo,Murray Rothbard, iria mais tarde identificar guerra e paz como a questofundamental de todo o programa liberal, Mises da mesma forma insiste emdizer que essas questes no podem ser negligenciadas como elasfrequentemente so por liberais clssicos atuais em prol de questespolticas mais incuas e menos delicadas.

    A principal ferramenta do liberalismo, afirmou Mises, era a razo. Issono significa que Mises achava que todo o programa liberal deveria serrealizado por meio de tratados acadmicos densos e elaborados. Eleadmirava consideravelmente aqueles que transmitiam essas ideias nospalcos de teatro, nas telas de cinema e no mundo dos livros de fico.Porm, extremamente importante que a defesa do liberalismo permaneaarraigada em argumentos racionais, uma fundao muito mais slida do queo instvel irracionalismo da emoo e da histeria, os quais outras ideologias

  • utilizam para agitar as massas. O liberalismo no tem nada a ver comtudo isso, insistia Mises. No tem flores nem cores, no tem msica nemdolos, no tem smbolos e nem slogans. Ele tem a substncia e osargumentos. Ambos devem lev-lo ao triunfo.

    Atualmente, estamos vivendo em um momento perigoso da histria.Com vrias crises fiscais ocorrendo ao redor do mundo e asconsequentes escolhas difceis que elas impem e ameaando uma ondade agitao civil por toda a Europa, as promessas impossveis feitas porestados assistencialistas, hoje completamente quebrados, esto se tornandocrescentemente bvias. Como argumentou Mises, no h nenhum substitutopara a economia livre que seja estvel no longo prazo. O intervencionismo,mesmo em prol de uma causa to ostensivamente positiva quanto o bem-estar social, cria mais problemas do que solues, levando assim a aindamais intervencionismos, at que o sistema esteja inteiramente socializado isso se o colapso no ocorrer antes.

    A posio de Mises contrria daqueles que afirmavam que omercado era de fato um lugar de rivalidade e discrdia, em que os ganhosde uns implicavam perdas para outros. Podemos pensar, por exemplo, emDavid Ricardo e em sua alegao de que salrios e lucros se movemnecessariamente em direes opostas. Thomas Malthus alertou para umacatstrofe populacional, a qual implicava um conflito entre alguns indivduos(aqueles j nascidos) e outros (no caso, o suposto excesso que viriadepois). E depois, claro, veio toda a tradio mercantilista, a qual via ocomrcio e as relaes de troca como um tipo de combate de baixaintensidade que produzia um grupo definido de vencedores e de perdedores.Karl Marx apresentou uma clssica declarao de que h um inerenteantagonismo de classes no mercado em seu O Manifesto Comunista. Aindamais velho que todas essas figuras era Michel de Montaigne (1533-1592),que em seu ensaio O Fardo de um Homem o Benefcio de Outroargumentou que todo e qualquer lucro s pode ser feito em detrimento deoutro. Mises mais tarde veio a rotular essa ideia de a falcia deMontaigne.

    Para o bem da prpria civilizao, Mises nos exortou a descartar osmitos mercantilistas que opem a prosperidade de um povo prosperidadede outro, os mitos socialistas que descrevem as vrias classes sociaiscomo inimigas mortais, e os mitos intervencionistas que dizem que aprosperidade s pode ser alcanada por meio da pilhagem mtua doscidados. No lugar dessas ideias juvenis e destrutivas, Mises forneceu umconvincente argumento em prol do liberalismo clssico, o qual vharmonias econmicas pegando emprestada a formulao de FrdricBastiat onde outros veem antagonismos e discrdias. O liberalismoclssico, to habilmente defendido por Mises, no busca dar a ningum

  • nenhuma vantagem obtida coercivamente, e exatamente por essa razo elegera os mais satisfatrios resultados de longo prazo para todos.

    Thomas WoodsLudwig von Mises Institute

    Julho de 2010

  • Prefcio Edio em Lngua Inglesa

    A ordem social criada pela filosofia do iluminismo atribuiu supremaciaao homem comum. Na qualidade de consumidor, o cidado regular erachamado at a determinar, em ltima anlise, o que deveria ser produzido,em que quantidade e com que finalidade, por quem, como e onde. Naqualidade de eleitor, era soberano no estabelecimento de diretrizes daspolticas da nao. Na sociedade pr-capitalista, predominaram os quetinham fora para submeter seus concidados mais fracos. O tovilipendiado mecanismo de livre mercado deixa apenas uma nicaalternativa para a obteno de riqueza, isto , ter xito em servir aosconsumidores da melhor maneira e a preos os mais baratos possveis. Aesta democracia de mercado corresponde, na esfera da conduo dosnegcios de estado, o sistema de governo representativo. A grandeza doperodo compreendido entre as guerras napolenicas e a Primeira GuerraMundial consistiu, precisamente, no fato de que o ideal social na busca doqual se lanavam os homens mais eminentes era o livre-mercado, nummundo pacfico de naes livres. Esse perodo consistiu numa poca demelhoria, sem precedentes, do padro de vida de uma populao em rpidocrescimento. Foi a poca do liberalismo.

    Os princpios da filosofia do liberalismo do sculo XIX esto, hoje,quase esquecidos. Na Europa Continental apenas uns poucos se lembramdeles. Na Inglaterra, o termo liberal , em grande parte, utilizado para darsignificado a um programa que somente em detalhes se diferencia dototalitarismo dos socialistas.2 Nos Estados Unidos, liberal significa hoje oadepto de um conjunto de ideias e postulados polticos que, em todos osaspectos, so o oposto de tudo o que o liberalismo significava para asgeraes precedentes. O liberal de tipo americano busca a onipotncia dogoverno e um inimigo resoluto da livre-empresa, defendendo oplanejamento em todos os nveis pelas autoridades pblicas, isto , osocialismo. Esses liberais se apressam em enfatizar que desaprovam aspolticas do ditador russo, no no que se refere ao seu carter socialista oucomunista, mas simplesmente no que se refere s suas tendnciasimperialistas. Toda medida que vise a confiscar algum dos ativos dos quepossuem mais que a mdia, ou a restringir os direitos de propriedade, considerada liberal e progressista. Um poder discricionrio, praticamenteilimitado, atribudo aos rgos pblicos, cujas decises no so passveisde reviso judicial. Os poucos cidados ntegros que ousam criticar essatendncia ao despotismo administrativo so qualificados de extremistas,reacionrios, monarquistas econmicos e fascistas. Chega-se, at mesmo,a sugerir que um pas livre no deveria tolerar atividades polticas por partedesses inimigos pblicos.

    De modo muito surpreendente, tais ideias so vistas, nesse pas, como

  • especificamente americanas, como a continuao dos princpios e dafilosofia dos Pilgrim Fathers3, os signatrios da Declarao daIndependncia e os autores da Constituio e dos Documentos Federalistas.Apenas poucas pessoas sabem que tais polticos pretensamenteprogressistas se originaram da Europa e que o seu mais brilhante expoentedo sculo XIX foi Bismarck, cuja poltica nenhum americano qualificaria deprogressista ou liberal. A Sozialpolitik de Bismarck foi posta em prtica em1881, mais de cinquenta anos antes de sua rplica, o New Deal, de F. D.Roosevelt. Prosseguindo em meio ascenso do III Reich, ento, o maisbem-sucedido poder poltico, todas as naes industriais europeiasadotaram, mais ou menos, o sistema que pretendia beneficiar as massas custa de uma minoria de individualistas insensveis. A gerao quealcanou a idade de votar, aps o trmino da Primeira Grande Guerra,tomou o estatismo como verdade insofismvel e nada mostrava alm dedesprezo pelo preconceito burgus, a liberdade.

    Quando, h 35 anos, tentei oferecer um sumrio das ideias e princpiosdaquela filosofia social, outrora conhecida sob o ttulo de liberalismo, nome deixei levar pela v esperana e que minha exposio fosse capaz deevitar as iminentes catstrofes em direo s quais as polticas adotadaspelas naes europeias se encontravam. Tudo o que pretendiam eraoferecer a uma pequena minoria de pensadores a oportunidade de travarconhecimento sobre os objetivos do liberalismo clssico e suas conquistase, portanto, pavimentar a estrada que nos levaria ressurreio do espritode liberdade, aps a dbcle que se anunciava.

    Em 28 de outubro de 1951, o professor J. P. Hamilius, de Luxemburgo,solicitou uma cpia do livro Liberalismus Editora de Gustav Fischer, emJena (Zona de ocupao russa, na Alemanha). A editora respondeu, em 14de novembro de 1951, que no havia cpias disponveis do livro, eacrescentou: Die Vorrate dieser Schrift mussten auf Anordnungbehordlicher Stellen restlos makuliert werden (Por ordem das autoridades,todas as cpias deste livro tiveram de ser destrudas). A carta no dizia seas autoridades se referiam s da Alemanha Nazista ou s da RepblicaDemocrtica da Alemanha Oriental.

    Nos anos que se passaram, desde a publicao de Liberalismus, escrevimuito acerca dos problemas em questo. Tratei de muitas questes dasquais no poderia tratar num livro, cujo tamanho tinha de ser limitado, parano tolher o leitor comum. Por outro lado, referi-me, nele, a questes quehoje tm pouca importncia. Alm disso, h neste livro vrios problemas depoltica econmica, tratados de modo a serem entendidos e corretamenteapreciados somente se se levar em conta a situao poltica e econmicada poca em que foi escrito.

  • No alterei coisa alguma do texto original e no influenciei, de modoalgum, na traduo feita pelo doutor Ralph Raico, nem na editorao feitapelo senhor Arthur Goddard. Estou muito grato a esses dois estudiosos emface das agruras por que passaram, ao tornarem disponvel ao pblico estaedio em lngua inglesa.

    Ludwig von MisesNova York, abril de 1962.

  • Prefcio Edio de 1985

    O termo liberalismo, do latim liber, que significa livre, se referia, aprincpio, filosofia da liberdade. O termo ainda mantinha esse significadona Europa, quando este livro foi escrito (1927), de tal modo que os leitores,ao abri-lo, esperavam encontrar uma anlise da filosofia da liberdade doliberalismo clssico. Contudo, infelizmente, em dcadas recentesliberalismo tomou significao muito diferente. A palavra foi apropriadapor filsofos socialistas, especialmente nos Estados Unidos, para uso emseus programas de interveno estatal e de bem-estar. Dentre muitosexemplos, podemos citar o do ex-senador americano Joseph S. Clark Jr.,que, quando prefeito de Filadlfia, descreveu, sem rodeios, a modernaposio liberal, nas seguintes palavras:

    De inicio, para espantar todas as bruxas e deixar de lado a semntica,define-se liberal, aqui, como aquele que acredita na utilizao de toda afora do estado, em favor do progresso da justia social, poltica eeconmica nos nveis municipal, estadual, nacional... Um liberal acredita queo governo seja a ferramenta apropriada para o desenvolvimento de umasociedade que procura dar efeito prtico aos princpios de conduta cristos(Atlantic, julho de 1953, p, 27).

    Esta viso de liberalismo de tal modo prevalecia em 1962, ano em quesurgiu a verso em ingls deste livro, que Mises julgou que traria muitaconfuso a traduo literal do ttulo original, Liberalismus. Deste modo,denominou a verso em lngua inglesa de The Free and ProsperousCommonwealth (A sociedade livre e prspera). No ano seguinte, entretanto,Mises chegou concluso de que os que defendiam a ideia de liberdade emercados livres no deveriam abrir mo do liberalismo em favor dosfilsofos socialistas. Nos prefcios da segunda (1963) e da terceira (1966)edies de sua obra magna, Human Action, Mises dizia que os quepropugnam pela filosofia da liberdade deveriam reivindicar o termo liberal[...] porque simplesmente no h outro termo disponvel que signifique ogrande movimento poltico e intelectual que, na moderna civilizao, seanunciava como promotor da economia de livre mercado, da limitada aogovernamental e da liberdade individual. com este sentido que a palavraliberalismo utilizada por todo este livro.

    A ttulo de informao aos leitores no familiarizados com a obra deLudwig von Mises (1881-1973), esse autor foi, durante dcadas, o principalporta-voz da Escola Austraca do pensamento econmico, assim chamadaporque Mises e seus dois preeminentes predecessores Carl Menger eEugen von Bhm-Bawerk nasceram na ustria. A pedra angular da EscolaAustraca a teoria da utilidade marginal do valor subjetivo. Essa teorialiga todos os fenmenos econmicos, simples ou complexos, s aes dos

  • indivduos, sendo cada uma dessas aes executada como resultado devalores pessoais subjetivos. Baseado nessa teoria de valor subjetivo, Misesexplica e analisa metodologia, valor, ao, preos, mercados, moeda,monoplio, interveno do poder pblico, crescimento e surto econmicoetc., deixando contribuies significativas especialmente nos campos damoeda e dos clculos econmicos.

    Mises obteve seu doutorado na Universidade de Viena em 1906. Suatese, The Theory of Money and Credit, publicada em alemo em 1912, e emingls, em 1934, foi o primeiro de seus muitos trabalhos tericos emEconomia.

    Durante o perodo compreendido entre as duas Grandes Guerras, almde escrever artigos e livros tais como o convincente tratado intituladoSocialism, Mises trabalhou, em tempo integral, na Cmara de ComrcioAustraca como consultor econmico do governo austraco e lecionou, emregime de tempo parcial, como livre-docente, na Universidade de Viena.Dirigia, tambm, seminrios econmicos particulares para iniciados, muitosdos quais com prestgio mundial. Em 1926, fundou o Instituto Austracopara Pesquisa do Ciclo Econmico, instituio privada ainda existente.

    Aps a ascenso de Hitler ao poder na Alemanha, Mises previuproblemas para a ustria. Desse modo, em 1934, obteve um emprego naSua, junto ao Instituto de Ps-Graduao em Estudos Internacionais. NaSua, escreveu Nationaloekonomie, em 1940. Embora houvesse poucosleitores de lngua alem na Europa Nacional-Socialista para o seumonumental tratado econmico, as explicaes de Mises para os princpioseconmicos alcanaram audincia muito mais ampla por meio da suaverso em lngua inglesa do Nationaloekonomie, inteiramente reescrito porele mesmo para os leitores americanos, sob o ttulo de Human Action (1edio, 1949).

    Fugindo da Europa dominada por Hitler, Mises e sua esposa deixaram aSua em 1940, e vieram para os Estados Unidos. Desfrutava de boareputao na Europa, mas era muito pouco conhecido nesse pas. Porconseguinte, viu-se obrigado a praticamente comear tudo de novo, paraatrair estudantes e leitores. De sua pena comearam a surgir livros emlngua inglesa Governo onipotente e Burocracia, ambos em 1944. Em 1949,surgia o seu principal tratado econmico, Human Action. Seguiram-se, logo,os livros Planning for Freedom (1952), The Anti-capitalistic Mentality(1952)4, Theory and History (1957) e The Ultimate Foundations of EconomicScience (1962), todos importantes em teoria econmica.

    Em 1947, Mises desempenhou importante papel na Fundao da Mont

  • Pelerin Society, organismo de carter internacional. Lecionou em muitoslugares dos Estados Unidos e da Amrica Latina e, durante 24 anos, dirigiuo famoso seminrio econmico em nvel de ps-graduao, da Universidadede Nova York. Trabalhou tambm como consultor do National Association ofManufacturers e como conselheiro da Foundation for Economic Education.

    Mises recebeu muitas honrarias no decorrer de sua vida, tais como ottulo de doutor honoris causa do Grove City College (1957), da Universidadede Nova York (1963), e da Universidade de Friburgo, na Alemanha (1964).Seus feitos foram reconhecidos, em 1956, por sua alma mater, aUniversidade de Viena, quando se comemorou o quinquagsimo aniversriodo seu doutoramento, que foi, ento, renovado segundo uma tradioeuropeia, por aquela universidade, e, em 1962, pelo governo austraco.Recebeu, em 1969, o ttulo de distinguished fellow (membro ilustre) daAmerican Economic Association.

    A influncia de Mises continuou a difundir-se entre os pensadores. Seualuno mais preeminente na fase europeia de sua vida, o Prmio Nobel F.A.Hayek, assim escreveu sobre ele: A influncia de Mises ultrapassa agora aesfera pessoal [...] A tocha que voc [Mises] acendeu tornou-se o guia deum novo movimento pela liberdade que ganha fora a cada dia. Um deseus principais alunos nos Estados Unidos, o professor Israel Kirzner, daUniversidade de Nova York, assim descreve o impacto por ele causadosobre os estudantes de hoje: Para o fermento e a ebulio, agoraevidentes, no ressurgimento do interesse por esta perspectiva austraca, ascontribuies de Mises tm sido cruciais e decisivas.

    Mises mostrou-se sempre um terico cuidadoso e lgico, mas nuncaenclausurado numa torre de marfim. Levado pela lgica de seu raciocniocientfico concluso de que uma sociedade liberal, com mercados livres,constitui o nico caminho para a paz e a harmonia nacionais einternacionais, sentia-se compelido a aplicar poltica governamental asteorias econmicas que expunha. Em Liberalismo, Mises no apenas oferecebreves explanaes de muitos fenmenos econmicos importantes, mastambm apresenta, de maneira mais explcita do que em outros livros seus,os pontos de vista sobre a ao governamental e o seu papel limitado,embora essencial, na preservao da cooperao social, sobre a qual o livremercado pode funcionar. Os pontos de vista de Mises se mostram, ainda,atuais e modernos, e o leitor considerar pertinente sua anlise.

    A mensagem de Mises de que as ideias governam o mundo flui portodos os seus livros, como um constante refro, mas surge, com foraespecial, em Liberalismo. O resultado final da luta entre liberalismo etotalitarismo, escreveu ele em 1927, no ser decidido pelas armas, maspelas ideias. So as ideias que renem os homens entre as faces

  • litigantes, que lhes colocam armas s mos e que determinam contra queme a favor de quem as armas devero ser utilizadas. So apenas elas, asideias, e no as armas, que, em ltima anlise, pesam na balana.

    De fato, a nica esperana de evitar que o mundo mergulhe ainda maisno caos e nos conflitos internacionais est no sucesso em convencer aspessoas a abandonarem a interveno do estado e a adotarem polticasliberais.

    Bettina Bien GreavesFoundation for Economic Education, Inc., agosto de 1985

  • Introduo

    1. Liberalismo

    Os filsofos, socilogos e economistas do sculo XVIII e do princpiodo sculo XIX formularam um programa poltico que serviu como diretrizpara a adoo de polticas sociais, primeiro na Inglaterra e nos EstadosUnidos, depois para o continente europeu, e, por fim, tambm, para outraspartes do mundo. Mesmo na Inglaterra, que tem sido chamada a terra nataldo liberalismo e um pas liberal modelo, os proponentes das polticasliberais nunca lograram alcanar todos os seus propsitos. No resto domundo, apenas partes do programa liberal foram adotadas, enquanto outras,no menos importantes, foram rejeitadas de princpio, ou descartadas apsalgum tempo. Ser apenas com um certo exagero que se pode afirmar ter omundo, alguma vez, vivido uma era liberal. Nunca se permitiu que oliberalismo flusse totalmente.

    Em que pese ter sido breve e muito limitada a supremacia das ideiasliberais, ainda assim foram suficientes para mudar a face da terra. Odesenvolvimento econmico ocorrido foi extraordinrio. A liberao do poderprodutivo do homem fez multiplicarem-se, em muitas vezes, os meios desubsistncia. s vsperas da Grande Guerra, que foi, ela prpria, resultadode uma longa e acirrada luta contra o esprito liberal, e que apressou operodo ainda mais amargo de ataques aos princpios liberais, o mundoencontrava-se incomparavelmente mais povoado do que nunca, e cadahabitante podia viver de modo incomparavelmente melhor do que nossculos precedentes. A prosperidade que o liberalismo criara reduziuconsideravelmente a mortalidade infantil, que se constitura impiedosoflagelo em pocas precedentes, e, como resultado da melhoria de condiesde vida, fez ampliar a expectativa mdia de vida.

    No se diga que tal prosperidade apenas tivesse fludo para uma seletaclasse de privilegiados. As vsperas da Grande Guerra, o trabalhador daindstria nas naes europeias, nos Estados Unidos e em possessesinglesas dalm-mar, vivia melhor e mais prazerosamente do que um nobrede no muito tempo atrs. No apenas podia comer e beber segundo seusdesejos, mas podia dar aos seus filhos uma educao melhor. Podia,tambm, se o desejasse, fazer parte da vida cultural e intelectual de suanao e, caso possusse talento e energia suficientes, podia, at mesmo,sem dificuldade, alar a uma posio social mais alta. Era, precisamente,nos pases que mais profundamente adotaram o programa liberal que ocume da pirmide social se compunha, essencialmente, no daqueles que,por fora do bero gozavam de posio privilegiada, em virtude da riqueza

  • ou da alta posio de seus pais, mas daqueles que, em condiesdesfavorveis, encontraram a sada da pobreza por seus prprios meios. Asbarreiras que, em outros tempos, separavam senhores e servos haviamcado. Agora, havia apenas cidados com direitos iguais. Ningum mais eraprejudicado ou perseguido por sua nacionalidade, opinies ou f. Asperseguies polticas e religiosas internas haviam desaparecido e asguerras internacionais comearam a tornar-se menos frequentes. Osotimistas j saudavam a aurora da Idade da Paz Eterna.

    Mas certos eventos fizeram com que a situao se revertesse. Nosculo XIX, surgiram vigorosos e violentos opositores ao liberalismo, quetiveram xito em anular grande parte do que havia sido obtido pelosliberais. O mundo de hoje no quer mais dar ouvidos ao liberalismo. Fora daInglaterra, o termo liberalismo est totalmente proscrito. Na Inglaterra,certamente, ainda h liberais, mas a maioria deles so-no apenas denome. De fato, nada mais so do que socialistas moderados. Hoje, emqualquer parte, o poder poltico est nas mos de partidos antiliberais. Oprograma de ao do antiliberalismo desencadeou foras que deram origem Grande Guerra Mundial e fez, em virtude de cotas de importao eexportao, de tarifas, de barreiras migrao e de medidas semelhantes,com que as naes do mundo se colocassem em mtuo isolamento. Dentrode cada nao, tal programa levou experincia socialista, cujo resultadotem sido a reduo da produtividade do trabalho e o concomitante aumentodas necessidades e da misria. Aquele que no tenha deliberadamentefechado os seus olhos realidade deve identificar, em todo lugar, os sinaisde uma catstrofe que se aproxima na economia mundial. O antiliberalismoest dando lugar a um colapso geral da civilizao.

    Se algum desejar saber o que liberalismo e que objetivos tem, nopoder, simplesmente, voltar-se para a Histria com o objetivo de informar-se e inquirir sobre o que defendiam os polticos liberais e as metas quelograram alcanar, porque, em nenhum lugar, o liberalismo conseguiuexecutar seu programa tal como pretendia.

    Por outro lado, os programas e aes dos partidos que hoje sedenominam liberais no nos podem fornecer luz alguma, no que se refere natureza do verdadeiro liberalismo. J se mencionou que, mesmo naInglaterra, o que se entende por liberalismo, hoje, guarda semelhana muitomaior com o torismo e com o socialismo do que com o velho programa dosdefensores do mercado livre. Se h liberais que achem compatvel com seuponto de vista liberal endossar a nacionalizao de ferrovias, de minas e deoutros empreendimentos e, at mesmo, propugnar tarifas protecionistas,pode-se facilmente verificar que, hoje em dia, nada restou do liberalismo, ano ser o nome.

  • Ademais, nem mesmo suficiente, hoje, formar-se uma ideia doliberalismo, com base nos escritos de seus grandes fundadores. Oliberalismo no uma doutrina completa nem um dogma imutvel. Pelocontrrio, a aplicao dos ensinamentos da cincia vida social dohomem. Assim como a economia, a sociologia e a filosofia nopermaneceram imutveis desde os dias de David Hume, Adam Smith, DavidRicardo, Jeremy Bentham e Wilhelm Humboldt, assim tambm a doutrinado liberalismo diferente hoje do que foi sua poca, muito embora seusprincpios fundamentais tenham permanecido inalterveis. Durante muitotempo, ningum tomou a si a tarefa de apresentar uma exposio concisado significado essencial dessa doutrina. Isto pode justificar nosso presenteesforo em fornecer justamente este trabalho.

    2. Bem-estar material

    O liberalismo uma doutrina inteiramente voltada para a conduta doshomens neste mundo. Em ltima anlise, a nada visa seno ao progresso dobem-estar material exterior do homem e no se refere s necessidadesinteriores, espirituais e metafsicas. No promete felicidade econtentamento aos homens, mas, to somente, a maior satisfao possvelde todos os desejos suscitados pelas coisas e pelo mundo exterior.

    Frequentemente, o liberalismo tem sido censurado por sua atitudepuramente externa e materialista, que privilegia o que terreno etransitrio. A vida do homem, como se diz, no consiste em comer e beber.H necessidades superiores e mais importantes do que o alimento e abebida, o abrigo e a roupa. Nem mesmo as maiores riquezas terrenaspodem dar felicidade ao homem. Deixam o ser interior, a alma, insatisfeitae vazia. O mais srio erro do liberalismo que nada tem a oferecer saspiraes mais profundas e mais nobres do homem.

    Mas os crticos que exploram este vazio mostram apenas que possuemum conceito muito imperfeito e materialista dessas necessidadessuperiores e mais nobres. As polticas sociais, com os meios de quedispem, podem tornar os homens ricos ou pobres, mas nunca conseguirtorn-los felizes ou satisfazer seus anseios ntimos. Aqui falham todos osexpedientes externos. Tudo o que as polticas sociais podem fazer remover as causas externas da dor e do sofrimento. Podem promover umsistema que alimente o faminto, vista o nu e abrigue o sem-teto. Felicidadee contentamento no dependem do alimento, da roupa e do abrigo, mas,sobretudo, do sonho que se acalenta no ntimo. No pelo desdm aos bensespirituais que o liberalismo se concentra, exclusivamente, no bem-estarmaterial do homem, mas pela convico de que o que mais alto e

  • profundo no homem no pode ser tocado por qualquer tipo de regulaoexterna. O liberalismo busca produzir apenas o bem-estar exterior, porquesabe que as riquezas interiores, espirituais, no podem atingir o homem defora, mas somente de dentro, de seu prprio corao. O liberalismo novisa a criar qualquer outra coisa, a no ser as precondies externas para odesenvolvimento da vida interior. No deve haver dvida de que o indivduorelativamente prspero do sculo XX pode satisfazer suas necessidadesespirituais mais prontamente do que, digamos, o indivduo do sculo X, queno podia livrar-se nem da ansiedade de viver com o pouco que tinha parasua sobrevivncia, nem dos perigos que o ameaavam, provenientes deseus inimigos.

    Sem dvida, a todos aqueles que, como seguidores de muitas seitasasiticas e crists medievais, aceitam a doutrina do completo ascetismo, equeles que tomam como ideal da vida humana, a pobreza e a liberdade dosdesejos, prprios dos pssaros da floresta e dos peixes do mar, nopodemos retrucar, quando censuram o liberalismo por sua atitudematerialista. Podemos to somente, pedir-lhes que deixem desimpedidonosso caminho, assim como no os impedimos de ganharem o cu a seumodo. Que se fechem em suas celas, longe dos homens e do mundo, empaz.

    A esmagadora maioria de nossos contemporneos no conseguecompreender o ideal asctico. Mas, uma vez que algum rejeita o princpioda conduta de vida asctica, no se pode reprovar o liberalismo por visar aobem-estar material.

    3. Racionalismo

    O liberalismo , tambm, comumente censurado por ser racionalista.Deseja regular tudo com base na razo e, portanto, no conseguereconhecer que, no que diz respeito aos assuntos humanos, se d e, defato, se deva dar grande latitude aos sentimentos e ao irracional de modogeral, isto , ao que no razovel.

    Ora, o liberalismo de modo algum se mostra inconsciente do fato deque o homem, frequentemente, age irracionalmente. Se os homens agissemsempre com a razo, seria suprfluo exort-los a serem guiados pela razo.O liberalismo no afirma que os homens sempre agem de modo nointeligente, mas, ao contrrio, que devem, em seu prprio interessecorretamente entendido, agir sempre de modo inteligente. E a essncia doliberalismo justamente esta: o liberalismo visa a que se conceda razo,na esfera da poltica social, a aceitao com que j conta, sem maiores

  • disputas, em todas as outras esferas da ao humana.

    Ningum consideraria uma atitude louvvel, se algum dissesse, apster sido recomendado por seu mdico a levar uma vida razovel, isto ,higinica: Sei que seu conselho razovel. Algo me diz, no entanto, queno devo segui-lo. Quero fazer o que prejudicial para a minha sade,muito embora isto seja desarrazoado. O que quer que procuremos fazerem nossas vidas, ns nos esforamos por faz-lo de modo razovel, comobjetivo de alcanar a meta que nos propusemos. A pessoa que desejacruzar uma linha frrea no procurar faz-lo no momento exato em que otrem estiver passando por ela. A pessoa que deseja pregar um botoprocurar evitar que a agulha espete seu dedo. Em toda questo de ordemprtica, o homem desenvolveu uma tcnica ou uma tecnologia que mostracomo proceder, se no desejar agir de maneira irracional. De um modogeral, considera-se desejvel a aquisio de conhecimento sobre as tcnicasque possam ser utilizadas durante a vida, e desastrada uma pessoa queingresse num campo de atividades, cujas tcnicas no domine.

    Apenas no campo das polticas sociais, assim se admite, deveria ser ocontrrio. Nesse campo, nenhuma razo, mas somente sentimentos eimpulsos que deveriam decidir. Em geral, discute-se apenas comargumentos racionais a seguinte questo: como devem ser arranjadas ascoisas, de modo a possibilitar boa iluminao, durante as horas de trevas?No entanto, no momento em que a discusso alcana o ponto de decidir-sesobre se a usina de fora deva ser gerida por particulares ou pelamunicipalidade, ento, a razo no mais considerada vlida. Nesse caso osentimento, a viso do mundo em resumo, a irracionalidade que passaa determinar o resultado. Perguntamos em vo: Por qu?

    A organizao da sociedade humana, segundo o padro mais apropriadopara a obteno dos fins em pauta, uma questo bastante prosaica etrivial, nada diferente, digamos, da construo de uma ferrovia ou daproduo de vesturio ou mobilirio. Os assuntos nacionais egovernamentais so, verdade, mais importantes do que todas as outrasquestes prticas de conduta humana, uma vez que a ordem social deita osalicerces para tudo o mais, e somente ser possvel, para cada indivduo,prosperar na busca de seus objetivos, numa sociedade propcia suaconsecuo. Mas, por mais elevada que seja a esfera na qual se colocam asquestes polticas e sociais, ainda assim referem-se a questes sujeitas aocontrole humano, e, consequentemente, devem ser julgadas segundo oscnones da razo humana. Nessas questes, no menos do que em outrosassuntos mundanos, o misticismo no passa de um mal. Nossa capacidadede compreenso muito limitada. Nunca poderemos descobrir os segredosltimos e mais profundos do universo. Mas, o fato de no termos acapacidade de sondar o significado e o propsito de nossa existncia no

  • nos impede de tomar certas precaues, no sentido de evitarmos doenascontagiosas ou de nos utilizarmos de meios apropriados para nossaalimentao e vesturio, nem mesmo deve nos impedir de nosorganizarmos em sociedade, de tal modo que as metas terrenas, pelasquais lutamos, possam, efetivamente, ser atingidas. Mesmo o Estado e osistema legal, o governo e sua administrao no so assim to elevados,to bons, to grandiosos para que o coloquemos fora do alcance dadeliberao racional. Problemas de polticas sociais so problemas detecnologia social e deve-se buscar sua soluo do mesmo modo e pelosmesmos meios nossa disposio usados na soluo de outros problemastcnicos; isto , por meio da reflexo racional e pelo exame das condiesdadas. O homem deve razo tudo o que ele e que o eleva acima dosanimais. Por que, ento, deveria o homem desprezar o uso da razojustamente na esfera do social, e confiar nos sentimentos e impulsos vagose obscuros?

    4. O Objetivo do Liberalismo

    H a opinio, bastante difundida alis, de que o liberalismo se distinguede outros movimentos polticos pelo fato de que coloca os interesses deuma parte da sociedade as classes abastadas, os capitalistas, osempresrios acima dos interesses de outras classes. Essa afirmao totalmente errnea. O liberalismo sempre teve em vista o bem de todos, eno o de qualquer grupo especial. Foi isso que os utilitrios inglesesquiseram dizer embora, verdade, de modo no muito apropriado comseu famoso preceito, a maior felicidade possvel ao maior nmero possvelde pessoas. Historicamente, o liberalismo foi o primeiro movimentopoltico que almejou a promoo e o bem-estar de todos, e no de gruposespeciais. O liberalismo se distingue do socialismo, que, de modosemelhante, declara lutar pelo bem de todos, no em razo do objetivo aque visa, mas pelos meios que escolheu para a consecuo desse objetivo.

    A opinio de que o resultado da poltica econmica liberal ou deva ser,necessariamente, o de favorecer interesses especiais de certos estratos dasociedade uma questo que ainda permite discusso. uma das tarefasdeste trabalho demonstrar que tal acusao de modo algum se justifica.Porm no se pode, logo de incio, considerar injusta a pessoa que aprofessa. Embora a consideremos incorreta, essa opinio poder muito bemser defendida com a melhor das intenes. De qualquer modo, quem atacao liberalismo desse modo admite que as intenes do liberalismo sodesinteressadas e que o liberalismo nada procura, seno o que diz procurar.

    Bem diferentes, no entanto, so aqueles crticos do liberalismo que o

  • condenam por desejar promover, no o bem-estar geral, mas to somenteos interesses especiais de certas classes. Tais crticos so to injustosquanto ignorantes. Por escolher esse modo de ataque, demonstram ser bemconscientes, em seu ntimo, da fraqueza de sua prpria defesa. Aproveitam-se de armas venenosas, porque, de outro modo, no teriam possibilidade desucesso.

    Se um mdico mostra a um paciente, que deseja alimentos prejudiciais sua sade, a perversidade deste desejo, ningum seria tolo de dizer: Omdico no se importa com o bem do paciente; quem deseja o bem dopaciente no deve regatear-lhe o prazer de comida to deliciosa. Todomundo entende que o mdico aconselha ao paciente esquecer o prazer queo alimento danoso provoca, simplesmente com a finalidade de evitar males sade dele. Mas quando a questo se liga s polticas sociais, algum logose dispe a consider-la bastante diferente. Quando o liberal aconselha aque no se tomem determinadas medidas populares, porque delas esperaconsequncias danosas, censurado como um inimigo do povo, enquantoque se acumulam loas aos demagogos que, sem levar em conta o mal queprovocam, recomendam o que lhes parece conveniente no momento.

    Uma ao racional se distingue de uma ao irracional pelo fato deenvolver sacrifcios provisrios. Tais sacrifcios so apenas aparentes, umavez que so contrabalanados pelos resultados favorveis que surgem maistarde. A pessoa que evita uma comida saborosa, mas prejudicial faz,simplesmente, um sacrifcio provisrio e aparente. O resultado a noocorrncia de males sua sade demonstra que ela no perdeu coisaalguma: ao contrrio, ganhou. Agir desse modo, entretanto, exige que sevislumbrem as consequncias da ao de algum. O demagogo se aproveitadesse fato. Ope-se ao liberal, que aconselha sacrifcios provisrios esimplesmente aparentes, e o denuncia como um frio inimigo do povo, aomesmo tempo em que se coloca como um amigo da humanidade. Emsocorro as medidas que advoga, o demagogo sabe muito bem como tocar ocorao dos que o ouvem e lev-los s lgrimas, com aluses necessidade e misria.

    A poltica antiliberal uma poltica de consumo de capital. Recomendaque o presente seja muito bem provido, custa do futuro. Trata-seexatamente do mesmo caso do paciente de que falamos. Em ambos oscasos, uma desvantagem relativamente dolorosa no futuro se ope a umagratificao momentnea e relativamente abundante. Neste caso, afirmarque esta se restringe a uma questo de frieza de corao versus filantropia absolutamente desonesto e falso. No apenas a maioria dos polticos eda imprensa dos partidos antiliberais que receptiva a esse tipo deacusao. Quase todos os autores da escola do Sozialpolitik fizeram usodesse desleal modo de combate.

  • Que haja carncia e misria no mundo no , como um leitor mdio dejornal, em sua obtusidade, est apto a acreditar, um argumento contra oliberalismo. exatamente a carncia e a misria que o liberalismo buscaabolir e considera que os meios que prope utilizar so os nicosapropriados para a consecuo deste fim. Que prove o contrrio algum queimagina conhecer meios melhores e mesmo diferentes! A afirmao de queos liberais no lutam pelo bem de todos os membros da sociedade, masapenas pelo de grupos especiais, no , de modo algum, um substituto paraesta prova.

    O fato de que haja carncias e misrias no constituiria um argumentocontra o liberalismo, mesmo que o mundo, hoje, seguisse uma polticaeconmica liberal. Seria sempre uma questo em aberto, caso ainda maiorcarncia e misria no prevalecessem, se outras polticas tivessem sidoimplementadas. Em razo dos modos pelos quais o funcionamento dainstituio da propriedade privada refreado e obstado em todo o lugar,hoje em dia, por polticos antiliberais, sem dvida um absurdo procurarinferir algo contra a correo dos princpios liberais, com base no fato deque as condies econmicas no so, de momento, tudo aquilo que sealmejava. Para que se possa apreciar o que o liberalismo e o capitalismoalcanaram, devem-se comparar as condies em que se encontram nopresente com as condies da Idade Mdia ou dos primeiros sculos da EraModerna. Somente se pode inferir, por consideraes tericas, o que oliberalismo e o capitalismo poderiam ter alcanado, se tivessem eles apossibilidade de reinar livremente.

    5. Liberalismo e Capitalismo

    Uma sociedade em que os princpios liberais so levados a efeito ,comumente, chamada de sociedade capitalista, e de capitalismo a condioem que se encontra tal sociedade. Uma vez que a poltica econmica doliberalismo foi, em todos os lugares, executada na prtica apenas de formaaproximada, as condies que se encontram no mundo de hoje nos do, tosomente, uma ideia imperfeita do significado e das possveis conquistas docapitalismo em pleno vigor. No obstante, algum estar coberto de razose chamar nossa era de Idade do Capitalismo, porque tudo o que se crioude riqueza em nosso tempo, pode-se dizer, tem sua origem em instituiescapitalistas. Graas quelas ideias liberais, que ainda permanecem vivas emnossa sociedade, e ao que nelas ainda sobrevive do sistema capitalista, agrande massa de nossos contemporneos pode gozar de um padro de vidabem acima do que, h poucas geraes, era possvel somente aos ricos eaos detentores de privilgios especiais.

  • Sem dvida, na retrica costumeira dos demagogos, tais fatos sorepresentados de modo bastante diferente. Ao escut-los, algum poderiapensar que todo o progresso das tcnicas de produo reverte em benefcioexclusivo de uns poucos favorecidos, enquanto as massas cada vez mais seafundam na misria. Entretanto, necessrio apenas um momento dereflexo para compreender que os frutos de todas as inovaestecnolgicas e industriais concorreram para ampliar a satisfao dascarncias das grandes massas. Todas as grandes indstrias que produzembens de consumo trabalham diretamente para o benefcio dessas massas;todas as indstrias que produzem mquinas e produtos semi-acabadosatuam em favor dessas massas indiretamente. O grande desenvolvimentoindustrial das ltimas dcadas, tal como o ocorrido no sculo XVIII e que denominado pelo termo sob todos os ttulos nada feliz de revoluoindustrial, resultou, acima de tudo, na melhor satisfao das necessidadesdas massas. O desenvolvimento da indstria do vesturio, a mecanizaoda produo de calados e a melhoria do processamento e distribuio dealimentos tm, por sua prpria natureza, beneficiado um pblico maisamplo. graas a essas indstrias que as massas, hoje, so muito maisbem vestidas e alimentadas do que o foram antes. No entanto, a produoem massa no prov apenas alimentos, abrigo e vesturio, mas tambmoutras necessidades das multides. A imprensa serve s massas, damesma forma que a indstria do cinema. At mesmo o teatro e outrascidadelas das artes esto se tornando, dia a dia e cada vez mais, locais dediverso em massa.

    No obstante, com o resultado de zelosa propaganda dos partidosantiliberais, que torcem os fatos completamente, as pessoas hoje passarama associar as ideias do liberalismo e do capitalismo imagem de ummundo mergulhado na misria e na pobreza sempre crescentes. Semdvida, quantidade alguma de propaganda depreciatria jamais poderia terxito, como os demagogos esperavam, em atribuir s palavras liberal eliberalismo uma conotao totalmente pejorativa. Em ltima anlise, no possvel pr de lado o fato de que, a despeito de todos os esforos dapropaganda antiliberal, h algo nessas expresses que sugere o que todapessoa normal sente, quando ouve pronunciar a palavra liberdade.

    A propaganda antiliberal, por conseguinte, evita mencionar a palavraliberalismo com muita frequncia, e prefere fazer uma associao entre osistema liberal com o termo capitalismo. Esta palavra traz mente umcapitalista de corao de pedra, que pensa somente no seu prprioenriquecimento, mesmo que isto seja possvel apenas por intermdio daexplorao de seu semelhante.

    Dificilmente ocorre a qualquer um, ao formar sua ideia de capitalista,que uma ordem social, organizada sob princpios genuinamente liberais,

  • assim constituda, por deixar aos empresrios e capitalistas apenas umnico caminho para a riqueza, isto , melhor prover os seus semelhantescom aquilo de que imaginam eles prprios necessitar. Ao invs de falar docapitalismo em estreita ligao com a melhoria prodigiosa do padro devida das massas, a propaganda antiliberal menciona o capitalismo apenasao referir-se aos fenmenos, cujo surgimento foi possvel apenas em razodas limitaes impostas ao liberalismo. No se faz qualquer referncia aofato de que o capitalismo colocou disposio das massas um bem de luxoto delicioso quanto o acar. Relaciona-se o capitalismo ao acar,somente quando o seu preo em determinado pas elevado acima dopreo do mercado mundial, por fora da ao de um cartel. Como se talao fosse concebvel em uma ordem social em que estivessem operandoos princpios liberais! Em um pas sob regime liberal, no qual no hajatarifas, um cartel, capaz de aumentar o preo de uma mercadoria acima dopreo de mercado mundial, seria simplesmente inimaginvel.

    So os seguintes os elos da cadeia de raciocnio, por meio do qual ademagogia antiliberal obtm xito, ao culpar o liberalismo e o capitalismopor todos os excessos e consequncias malvolas das polticas antiliberais.Em primeiro lugar, parte-se do pressuposto de que os princpios liberaisvisam promoo dos interesses dos capitalistas e empresrios, custados interesses do restante da populao, e de que liberalismo constitui umapoltica que favorece os ricos em detrimento dos pobres. Em segundo lugar,argumentam que muitos empresrios e capitalistas, sob certas condies,advogam tarifas protecionistas, e que ainda outros os produtores dearmamentos apoiam uma poltica de alerta nacional. Por fim, deafogadilho, conclui-se que tais posies so, necessariamente, polticascapitalistas.

    Na realidade, no entanto, trata-se exatamente do oposto. O liberalismono uma poltica que age no interesse de qualquer grupo em particular,mas uma poltica que age no interesse de toda a humanidade. , portanto,incorreto afirmar-se que os empresrios tm algum interesse especial emsustentar o liberalismo; seu interesse em campear por um programa liberal exatamente o mesmo de qualquer outro. Pode haver casos individuais emque alguns empresrios ou capitalistas coloquem seus interessesparticulares no programa de liberalismo. Mas em oposio a estes estosempre os interesses especiais de outros empresrios e capitalistas. Aquesto no assim to simples como imaginam aqueles que em tudofarejam interesses e partes interessadas. O fato de que uma naoimpe uma tarifa sobre o ferro, por exemplo, no pode simplesmente serexplicado pelo fato de que isto beneficia os magnatas do ferro. H,tambm, outras pessoas com interesses conflitantes no pas, mesmo entreos empresrios e, de qualquer modo, os beneficirios da tarifa sobre o ferroconstituem uma minoria em constante diminuio. Nem mesmo pode o

  • suborno ser a explicao, uma vez que as pessoas subornadas podem, damesma maneira, constituir uma minoria. Alm disso, por que apenas umnico grupo, o dos protecionistas, praticaria o suborno e no os seusoponentes, os que propem o livre comrcio?

    O fato que a ideologia que torna possvel a tarifa protecionista no criada nem pelas partes interessadas nem por aqueles que sosubornados por elas, mas por idelogos que propiciam ao mundo as ideiasque dirigem o curso de todos os assuntos humanos. Em nossa era, em queprevalecem as ideias antiliberais, praticamente todos pensam do mesmomodo, exatamente como, h cem anos, a maioria das pessoas pensava deconformidade com a ento prevalecente ideologia liberal. Se hoje muitosempresrios defendem tarifas protecionistas, isso nada mais do que aforma com que se reveste o antiliberalismo no caso deles, e nada tem aver com o liberalismo.

    6. As Razes Psicolgicas do Antiliberalismo

    No tarefa deste livro discutir o problema da cooperao social deoutro modo, a no ser por meio de argumentos racionais. Mas a raiz daoposio ao liberalismo no pode ser compreendida lanando-se mo domtodo da razo. Tal oposio no se origina da razo, mas de uma atitudemental patolgica isto , do ressentimento e de uma condioneurastnica que se poderia chamar de complexo de Fourier, assimdenominado em razo do socialista francs do mesmo nome.

    No que se refere ao ressentimento e a malevolncia invejosa, pouco setem a dizer. O ressentimento ocorre quando algum odeia tanto uma outrapessoa, por esta encontrar-se em circunstncias mais favorveis, que estealgum at mesmo se prepara para suportar pesadas perdas, se a pessoaodiada ao menos pudesse tambm se prejudicar. Muitos dos que atacam ocapitalismo sabem muito bem que sua situao, sob qualquer outro sistemaeconmico, seria menos favorvel. No obstante, com pleno conhecimentodeste fato, defendem uma reforma, isto , o socialismo, porque anseiamque o rico, a quem invejam, tambm sofra com isso. De tempos emtempos, ouvimos socialistas dizerem que mesmo a carncia material sermais facilmente suportvel em uma sociedade socialista, porque aspessoas compreendero que ningum melhor do que outro.

    Em todo caso, tambm se pode lidar com ressentimento por meio deargumentao racional. Afinal, no assim to difcil deixar claro para umapessoa, que esteja cheia de ressentimento, que o mais importante para elano tornar pior a situao de seu semelhante que esteja em melhor

  • condio, mas melhorar a sua prpria situao.

    Combater o complexo de Fourier muito mais difcil. Trata-se de umadoena sria do sistema nervoso, uma neurose, que mais propriamenteuma preocupao do psiclogo do que do legislador. No entanto, estecomplexo no pode ser negligenciado, ao se investigarem os problemas dasociedade moderna. Infelizmente, os profissionais da sade, at aqui, tm-se preocupado muito pouco com os problemas apresentados pelo complexode Fourier. Na verdade, praticamente no chegaram a ser percebidos porFreud, o grande mestre da psicologia, nem mesmo por seus seguidores, nasteorias da neurose, embora seja para com a psicanlise que estejamos emdbito, por ter sido ela que nos abriu o nico caminho que nos leva a umacompreenso sistemtica e coerente das desordens mentais desse tipo.

    Aproximadamente uma entre um milho de pessoas obtm xito nasatisfao de sua ambio de vida. O resultado final dos esforos de umapessoa, mesmo que seja favorecida pela fortuna, acaba sendo muito menosdo que desejam os sonhos da juventude. Planos e desejos esbarram emmilhares de obstculos, e a capacidade de cada um se revela por demaisfrgil, para alcanar as metas que se tinha estabelecido no ntimo. O fimdas esperanas, a frustrao dos planos, a sua prpria incapacidade emface das tarefas que ele prprio se atribui tudo isto constitui aexperincia mais profundamente dolorosa de todo homem. So, de fato, asorte comum dos homens.

    H dois modos pelos quais o homem pode reagir a esta experincia. Umdeles nos indicado pela sabedoria prtica de Goethe:

    Julgas tu que devesse eu odiar a vida, e evadir-me no ermo

    Porque nem todos os sonhos de criana me floresceram?

    Assim clama o Prometeu, de Goethe. E Fausto percebe, no momentomais sublime, que a ltima palavra de sabedoria :

    Nenhum homem merece a liberdade ou a vida

    Se no as conquista a cada dia.

    Esta vontade e este esprito no podem ser subjugados por qualquerinfortnio terreno. Quem aceita a vida como ela e no se permite abater-se, no precisa buscar refgio para sua derribada autoconfiana no confortode uma mentira salvadora. Se o to esperado sucesso no se aproxima,se as vicissitudes da vida destroem, num piscar de olhos, o que havia sido

  • penosamente construdo por anos a fio de trabalho duro, a pessoasimplesmente procurar aumentar ainda mais seus esforos. Poderencarar de frente o desastre sem se desesperar.

    O neurtico no pode suportar a vida real. A vida lhe muito crua,muito dura, bastante rotineira. Para torn-la suportvel, o neurtico notem, como o homem saudvel, fora para prosseguir, a despeito de tudo.Isto no combinaria com sua fraqueza. Em vez disso, busca refgio numailuso. A iluso, segundo Freud, ela prpria algo desejado, um tipo deconsolao. Caracteriza-se por sua resistncia a agir pela lgica e pelarealidade. Por conseguinte, de nada adianta procurar convencer o pacientede sua iluso, por meio da demonstrao conclusiva de seu absurdo. Paraque possa recuperar-se, o prprio paciente deve suplant-la. Ele deveprocurar entender por que no deseja encarar a realidade e por que serefugia nas iluses.

    Somente a teoria da neurose pode explicar o xito obtido pelofourierismo, o resultado maluco de um crebro seriamente tresloucado.Este no o lugar para fornecer evidncias da psicose de Fourier, citandopassagens de seus escritos. Tais descries so de interesse apenas dopsiquiatra e, talvez, tambm daqueles que extraiam certo prazer em ler oproduto de uma fantasia lbrica. Mas o fato que o marxismo, quando seviu obrigado a deixar o campo da pomposa retrica dialtica, o escrnio e adifamao dos seus oponentes e a fazer algumas parcas observaespertinentes questo, nunca tem algo diferente a oferecer, alm do queoferecia Fourier, o utpico. De modo semelhante, o marxismo incapazde construir um quadro de uma sociedade socialista, sem apresentar doispressupostos anteriormente apresentados por Fourier, que contradizem todaexperincia e toda razo. Por um lado, pressupe que o substrato materialda produo, que se encontra j presente na natureza sem a necessidadede esforo produtivo por parte do homem, est nossa disposio em talabundncia que se torna desnecessrio economiz-la; da a crena domarxismo em um crescimento praticamente ilimitado da produo. Poroutro lado, pressupe que, em uma comunidade socialista, o trabalho setransformar de um fardo em um prazer e que, de fato, setransformar na necessidade primordial da vida. Se houver um lugar ondehaja superabundncia de todos os bens, e o trabalho seja um prazer, semdvida, este lugar ser a terra de Cockaigne.5

    O marxismo, das alturas de seu socialismo cientfico, acredita-secapacitado a olhar com desdm sobre o romantismo e os romnticos. Narealidade, porm, seu prprio comportamento no difere do comportamentodestes. Ao invs de remover os empecilhos que se colocam no caminho darealizao dos seus desejos, tambm o marxista prefere que todos osobstculos simplesmente desapaream na bruma da fantasia.

  • Na vida do neurtico, a mentira salvadora tem dupla funo. Noapenas o consola de fracassos passados, mas tambm mantm aperspectiva do progresso futuro. No caso do fracasso social, que nossanica preocupao aqui, a consolao consiste em acreditar que aincapacidade de algum atingir as sublimes metas a que aspira no deveser atribuda sua prpria incapacidade, mas s deficincias da ordemsocial. O descontente espera da derrocada desta ordem social o sucessoque o sistema existente lhe recusou. Consequentemente, torna-seinteiramente intil tentar esclarecer para ele que a utopia em que acreditano factvel e que o nico alicerce possvel para uma sociedade,organizada sobre o princpio da diviso de trabalho, a propriedade privadados meios de produo. O neurtico se aferra sua mentira salvadora e,quando tem de escolher entre renunciar a ela ou lgica, prefere sacrificara lgica. De outro modo, a vida seria insuportvel para ele, na ausncia doconsolo que encontra na ideia do socialismo. Ela lhe diz que no ele, maso mundo, que falhou por ter-lhe causado o fracasso. Esta convico oresgata da decada autoconfiana e o libera do tormentoso sentimento deinferioridade.

    Assim como um mrtir cristo podia mais facilmente suportar oinfortnio que recaiu sobre ele na terra, porque esperava na continuao daexistncia pessoal em um outro mundo melhor, onde aqueles que na terratinham sido os primeiros seriam os ltimos, e os ltimos os primeiros,assim, para o homem moderno, o socialismo tornou-se um elixir contra aadversidade terrena. Porm, se a crena na imortalidade, numa recompensafutura e na ressurreio forma um incentivo a uma conduta virtuosa nestavida, o efeito da promessa socialista bem diferente. Outro dever no selhe impe seno o de dar sustentao poltica ao partido socialista; mas, aomesmo tempo, faz surgir expectativas e demandas.

    Sendo este o carter do sonho socialista, compreensvel que cada umdos partidrios do socialismo dele espere, precisamente, o que, at ento,lhe tem sido negado. Os autores socialistas prometem no apenas riquezapara todos, mas tambm a felicidade no amor para todos, o plenodesenvolvimento fsico e espiritual de cada individuo, o desabrochar dosgrandes talentos artsticos e cientficos em todos os homens etc.Recentemente, Trotsky afirmou, em um dos seus escritos, que nasociedade socialista o homem mdio alcanar as alturas de umAristteles, um Goethe, ou um Marx. E acima dessa cumeada demontanhas, novos picos surgiro6. O paraso socialista ser o reino daperfeio, povoado por super-homens totalmente felizes. Toda literaturasocialista est cheia desta bobagem. Mas justamente esta bobagem quemove a maior parte dos seguidores.

    No se pode mandar todo mundo que sofre do complexo de Fourier para

  • um tratamento psicanaltico; o nmero dos pacientes muito alto. No hremdio para este caso, a no ser o tratamento da doena pelo prpriopaciente. Por si s, ele deve procurar aprender a suportar o seu destino,sem buscar um bode expiatrio sobre o qual possa jogar toda a culpa, eprecisa se esforar para compreender as leis fundamentais da cooperaosocial.

    Rodap

    1 Referncia a uma parbola (no uma fbula), segundo o qual um homemse queixava tanto do pouco espao que havia para si na sua tenda que lheordenaram colocar nela um camelo por algum tempo. O homem passou aqueixar-se ainda mais, j que o camelo lhe roubava quase todo o espao datenda. Ordenaram-lhe, ento, que retirasse de l o camelo, e o homemaprendeu a lio; sem o camelo, a tenda pareceu-lhe maior, e ele no maisse queixou da pequenez de sua tenda. (N. do T.)2 Todavia, deve-se mencionar o fato de que alguns poucos e eminentesingleses continuam a esposar a causa do liberalismo genuno.3 Pilgrim Fathers: os 102 puritanos ingleses que se estabeleceram na NovaInglaterra, fundando a colnia de Plymouth em 1620. Essa colnia hoje oestado de Massachusetts. (N. do T.)4 Lanado em portugus com o ttulo A mentalidade anticapitalista (Rio deJaneiro, Instituto Liberal/Jos Olympio, 1987).5 Pas imaginrio, onde h luxo e vida ociosa. (N. do T.)6 Leon Trotsky, Literature and Revolution, traduzido por R. Strunsky(Londres, J925), p. 256. A verso brasileira foi editada sob o ttulo Literaturae revoluo, Rio de Janeiro, Zahar, 1969. Traduo e apresentao de MunizBandeira. (N. do T.)

  • CAPTULO 1

    Os Fundamentos da Poltica Econmica Liberal

    1. A Propriedade

    A sociedade humana uma associao de pessoas que buscam acooperao. Ao contrrio da ao isolada dos indivduos, a ao cooperada,na base do princpio da diviso do trabalho, traz a vantagem da maiorprodutividade. Se um determinado nmero de homens trabalha emcolaborao, segundo o princpio da diviso de trabalho, esses homensproduziro (tudo o mais permanecendo constante) no apenas a quantidadedo que teriam produzido, se trabalhassem como indivduos autossuficientes,mas muito mais do que isso. Toda a civilizao humana alicerada nestefato. O homem se distingue dos animais, em virtude da diviso do trabalho.Foi a diviso do trabalho que tornou o dbil homem, muito inferior maioriados animais em fora fsica, senhor da terra e criador das maravilhas datecnologia. Na ausncia da diviso de trabalho, no estaramos, em qualquercampo, mais avanados hoje do que nossos ancestrais de h milhares emilhares de anos.

    O trabalho humano, por si s, no capaz de aumentar o nosso bem-estar. Para que frutifique, o trabalho humano tem de ser aplicado aosmateriais e aos recursos da terra que a natureza colocou nossadisposio. A terra, com todas as substncias e poderes nela presentes, e otrabalho humano constituem os dois fatores de produo, de cujacooperao intencional procedem todas as mercadorias destinadas satisfao de nossas necessidades exteriores. Para produzir, o homem devecombinar trabalho e fatores materiais de produo, incluindo no apenas asmatrias-primas e recursos postos nossa disposio pela natureza eencontrados abundantemente na terra, mas tambm os produtosintermedirios destes fatores de produo primrios naturais, janteriormente processados pelo trabalho humano. Na linguagem doeconomista, distinguimos, portanto, trs fatores de produo: trabalho,terra e capital. Por terra, deve-se entender tudo o que a natureza coloca nossa disposio, na forma de substncias e de energia nela encontradas,sob e acima de sua superfcie, na gua e na atmosfera; por bens de capital,todos os bens intermedirios produzidos com elementos originrios daterra, com auxlio do trabalho humano, que so feitos para servir produo posterior, tais como mquinas, ferramentas, artigossemimanufaturados de todos os tipos etc..

    Consideremos, agora, dois diferentes sistemas de cooperao, em

  • regime de diviso do trabalho um deles, baseado na propriedade privadados meios de produo, e o outro, baseado na propriedade comunal dosmeios de produo. Os liberais mantm a opinio de que o nico sistemade cooperao humana que, de fato, funciona numa sociedade baseada nadiviso de trabalho, a propriedade privada dos meios de produo.Argumentam que o socialismo, como um sistema totalmente abrangente,que engloba todos os meios de produo, no funciona, e que a aplicao doprincpio socialista a uma parte dos meios de produo, embora no sejaimpossvel, naturalmente, leva a uma reduo da produtividade do trabalho,de tal modo que; longe de criar maior riqueza, ao contrrio,necessariamente, causa o efeito da diminuio da riqueza. Por conseguinte,o programa do liberalismo, se pudermos condens-lo em uma nica palavra,se resumiria no termo propriedade, isto , a propriedade privada dosmeios de produo (pois, no que se refere s mercadorias prontas para oconsumo, a propriedade privada um fato, e isto no questionado pelossocialistas e comunistas). Todas as outras exigncias do liberalismoresultam deste requisito fundamental.

    Ao lado da palavra propriedade no programa do liberalismo, podem-secolocar, de modo muito apropriado, as palavras liberdade e paz. E no porque o velho programa do liberalismo geralmente as colocava a. Jdissemos que o programa do liberalismo de hoje suplantou o do velholiberalismo, e se baseia numa compreenso melhor e mais profunda dasinter-relaes, uma vez que ele pode beneficiar-se dos avanos da cincianas ltimas dcadas. A liberdade e a paz esto colocadas na vanguarda doprograma do liberalismo, no porque muitos dos velhos liberais asconsideravam coordenadas com o princpio fundamental do liberalismo emsi, ao invs de, simplesmente, consider-las consequncia necessria doprincpio fundamental da propriedade privada dos meios de produo. Assimesto, to somente, porque liberdade e paz passaram a sofrer ataquesespecialmente violentos dos oponentes do liberalismo, e os liberais nodesejavam dar a aparncia, pela omisso desses princpios, de que eles dealgum modo reconheciam a justeza das objees contra eles levantadas.

    2. A Liberdade

    A ideia de liberdade tornou-se to arraigada em todos ns que, pormuito tempo, ningum ousou coloc-la em questo. As pessoas seacostumaram a sempre falar de liberdade com a maior reverncia. Coube aLnin, no entanto, cham-la de preconceito burgus. Embora o fato sejafrequentemente esquecido hoje em dia, tudo isto foi conquista doliberalismo. O prprio nome liberalismo deriva de liberdade, e o nome dopartido de oposio aos liberais (ambas as denominaes provm das lutasconstitucionais espanholas das primeiras dcadas do sculo XIX) era

  • originalmente o servil.

    Antes do surgimento do liberalismo, at mesmo filsofos de ideaismagnnimos, fundadores de religies, clrigos movidos pela melhor dasintenes, estadistas, que sem dvida amavam seu povo, encaravam aservido de parte da raa humana como uma instituio justa, geralmentetil e totalmente benfica. Pensava-se que alguns homens e povos eramdestinados, pela natureza, para a liberdade, e outros para a servido. Noeram apenas os senhores que assim pensavam, mas tambm um grandenmero de escravos. Suportavam sua servido, no apenas porque tinhamde submeter-se fora superior de seus senhores, mas tambm porqueachavam algum bem nisto. O escravo no precisa preocupar-se emassegurar o po de cada dia, pois seu senhor obrigado a prov-lo com asnecessidades da vida. Quando, no sculo XVIII e na primeira metade dosculo XIX, o liberalismo se props abolir a escravido e a sujeio dapopulao camponesa na Europa e a dos negros escravos das colnias dealm-mar, no foram poucos os sinceros humanistas que se declaravamcontrrios. Os trabalhadores escravos se acostumaram servido e no aencaravam como um mal. No estavam prontos para a liberdade e nosaberiam o que fazer dela! A interrupo dos cuidados prestados pelosenhor seria muito prejudicial a eles! No seriam capazes de conduzir seusnegcios de modo a obterem, sempre, algo mais do que as mnimasnecessidades de vida, e muito em breve cairiam na carncia e na misria!A emancipao no seria, apenas, incapaz de lhes dar qualquer coisa de realvalor, mas lhes prejudicaria seriamente o bem-estar material!

    O mais surpreendente era que se podiam ouvir tais pontos de vistaexpressos por muitos dos prprios escravos. Para contrabalanar taisopinies, muitos liberais acreditavam ser necessrio relatar, como regrageral, e, at mesmo, algumas vezes, de modo exagerado, casosexcepcionais em que servos e escravos haviam sido cruelmente tratados.Porm, de nenhum modo, tais excessos constituam a regra. Havia, claro,casos isolados de abusos, e o fato de haver tais casos constitua umarazo a mais para a abolio do sistema. Entretanto, via de regra, otratamento dos escravos por seus senhores era humano e suave.

    Os que propunham a abolio da escravido involuntria, de modo geral,com base em argumentos humanitrios, no tinham o que replic