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1 FACULDADE CATÓLICA DE UBERLÂNDIA CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOPEDAGOGIA EM CONTEXTOS EDUCACIONAIS FABRÍCIO PINTO MONTEIRO LIBERDADE E AUTONOMIA: DIFICULDADES EMOCIONAIS EM SUA CONSTRUÇÃO EDUCATIVA UBERLÂNDIA 2006

Liberdade e Autonomia

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FACULDADE CATÓLICA DE UBERLÂNDIA CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOPEDAGOGIA

EM CONTEXTOS EDUCACIONAIS FABRÍCIO PINTO MONTEIRO

LIBERDADE E AUTONOMIA: DIFICULDADES EMOCIONAIS EM SUA CONSTRUÇÃO EDUCATIVA

UBERLÂNDIA 2006

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Fabrício Pinto Monteiro

LIBERDADE E AUTONOMIA: DIFICULDADES EMOCIONAIS EM SUA CONSTRUÇÃO EDUCACIONAL

Monografia apresentada a Faculdade Católica de Uberlândia com requisito parcial à obtenção do título de Especialista em Psicopedagogia em Contextos Educacionais orientada pelo Prof. Dr. Fernando Antônio Leite de Oliveira.

Uberlândia 2006

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................p.6 CAPÍTULO 1- A construção sócio-histórica da autonomia..............................................................p.12 1.1- O período democrático grego................................................................................p.12 1.2- O período feudal europeu e a modernidade renascentista.....................................p.16 CAPÍTULO 2- Dificuldades emocionais na construção da liberdade e autonomia........................p.22 2.1- Medo, insegurança e angústia frente à liberdade..................................................p.22 2.2- A necessidade do fortalecimento do eu e da vontade individual..........................p.25 2.3- A necessidade da auto-limitação das paixões.......................................................p.30 2.4- Os perigos da auto-limitação emocional...............................................................p.34 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................p.37 BIBLIOGRAFIA........................................................................................................p.41

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AGRADECIMENTOS

Destaco meus agradecimentos a pessoas que, direta ou indiretamente, estão presentes

nas discussões, preocupações e anseios desta monografia:

Janaina Ferreira Silva, pelo apoio geral dado nesta e em todas as outras ocasiões.

João Divino Júnior, por insistir em querer refletir sobre esse nosso mundo.

Délcio Garcia Gomes, pela ironia mordaz a todo nosso academicismo estéril.

Luciano Pereira, pelo mundo visto como moradia de deuses humanos.

Antônio Neto, pela vida transformada sempre, no presente e para o futuro.

E todos que continuam a crer e a buscar construir, cada qual a seu modo, uma

sociedade ácrata.

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Liberdade e Autonomia: dificuldades emocionais em sua construção educacional Fabrício Pinto Monteiro

RESUMO

Esta monografia possui como objetivo a discussão sobre algumas dificuldades emocionais possíveis de se fazerem presentes ante a proposta de uma educação que vise a construção da autonomia individual. Através de uma discussão de caráter teórico-bibliográfico, embasada, sobretudo, pela vertente teórica psicanalítica, é realizada uma reflexão inicial acerca dos significados sócio-históricos da autonomia, para, posteriormente, destacar-se algumas das dificuldades emocionais mais corriqueiras na educação para a autonomia hoje. O medo, insegurança e angústia são alguns dos sentimentos discutidos, juntamente com as necessidades do fortalecimento do eu

subjetivo e da construção da auto-limitação individual das paixões. Alguns dos principais autores utilizados nesta esta pesquisa são os psicanalistas Cornelius Castoriadis, Eric Fromm e Sigmund Freud, além do filósofo Max Stirner. Algumas conclusões envolvem a complexidade e fragilidade da possibilidade da construção da autonomia se observados os aspectos emocionais. O equilíbrio dinâmico entre a auto-limitação das paixões e o fortalecimento do eu subjetivo para a edificação de um ser capaz de fazer suas próprias leis é um dos maiores desafios para a construção desta autonomia individual. Palavras-chave: autonomia, liberdade individual, construção educacional.

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INTRODUÇÃO

Por que será tão difícil a prática de uma educação que objetiva a autonomia dos

indivíduos? Por que temos tantas dificuldades em aprender a criar nossas próprias

regras e limites, preferindo, muitas vezes, aceitarmos os regulamentos que provém “de

fora”, quer dizer, normas sociais historicamente criadas, mas cristalizadas sem a

possibilidade de questionamento e recriação explícita?

Certamente são questões nada simples de se responder –muitos já se debruçaram

sobre elas ao longo de séculos- e mais ainda se nos lembrarmos de toda a complexidade

do processo educativo e das inúmeras e variáveis relações travadas entre os sujeitos

envolvidos neste mesmo processo. Se nossos alunos possuem dificuldades para a

aceitação e a edificação da autonomia pessoal, precisaríamos primeiramente considerar

estas limitações entre os próprios educadores.

Para os estreitos limites desta monografia, porém, delimito como problemática e

objetivo de pesquisa apenas algumas poucas dimensões para uma reflexão mais pontual

sobre estas dificuldades: quais seriam, e como “funcionariam”, os principais limites e

impedimentos emocionais apresentados pelas pessoas ante uma proposta ou

possibilidade da construção do que chamamos liberdade e autonomia?

Meu objetivo não é chegar a receitas ou técnicas psicopedagógicas que possam

ser utilizadas pragmaticamente em intervenções junto a estudantes –sejam crianças

jovens ou adultos-, mas sim tentar ponderar, de uma forma mais geral, sobre

dificuldades emocionais das pessoas frente a educação para a autonomia. A partir daí,

penso estar contribuindo para reflexão do psicopedagogo em sua prática em diferentes

contextos educacionais.

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A escolha de uma pesquisa direcionada para um caráter mais geral das

dificuldades emocionais frente à educação para a autonomia (ao invés de um estudo de

caso delimitado por faixa etária, dificuldades específicas ou instituição etc.), justifica-se

segundo um entendimento particular do que poderíamos considerar educação.

Neidson Rodrigues, afirma que a ação educativa é

um processo regular desenvolvido em todas as sociedades humanas, que tem por objetivos preparar os indivíduos em crescimento (crianças e adolescentes) para assumirem papéis sociais relacionados à vida coletiva, à reprodução das condições de existência (trabalho), ao comportamento justo na vida pública e ao uso adequado e responsável de conhecimentos e habilidades disponíveis no tempo e nos espaços onde a vida dos indivíduos se realiza.(RODRIGUES, 2001, p. 235)

Um elemento importante, porém, que Rodrigues (2001, p. 235-236) chama a

atenção é que, desde fins do século XVIII (na Europa ocidental) até nossa sociedade de

hoje, confundimos cada vez mais educação com escolarização. A escola passou,

gradativamente, a firmar-se como a principal instituição “educativa” legítima, tanto pelo

Estado como pela sociedade em geral, tornando-se um paradigma quase insuperável.

Um problema decorrente deste fato é que a escolarização possui procedimentos e

objetivos muito específicos e limitados frente aos da educação. Deixar com que “os

processos de escolarização colonizem a Educação” (RODRIGUES, 2001, p.253) é

consentir com a limitação de nossas possibilidades de ação e compreensão deste

processo fundamental para os indivíduos e sociedade, inclusive das dificuldades e

limitações encontradas pelos sujeitos nos mais diferentes contextos de suas vidas (onde

efetivamente se realiza a educação).1

Desta forma, considerando os diferentes contextos sociais onde pode efetivar-se

o processo educativo –para além da exclusividade única do contexto escolar-, optei pela

1 A distinção entre educação e escolarização também é base da crítica feita por Ivan Illich à instituição escola. Para ele há um “monopólio” da escola sobre a educação em nossa sociedade. ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1979. p. 35.

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realização de um trabalho de caráter mais teórico a respeito das dificuldades emocionais

na educação para a autonomia.

A corrente teórica predominante nessa pesquisa foi a teoria psicanalítica,

representada por autores como Eric Fromm, Cornelius Castoriadis e o próprio Sigmund

Freud. Preocupei-me em levar em consideração, é claro, as diferenças entre tais autores,

uma vez que a psicanálise ao longo do tempo desenvolveu-se em um sem-número de

variações e interpretações particulares, de acordo com as considerações e interesses de

cada teórico.

Além disso, para a realização de um diálogo que objetivasse um maior

enriquecimento na pesquisa, outros autores também foram utilizados, como Henri

Wallon, Jean Piaget e Max Stirner. Estas discussões teóricas foram realizadas no

Capítulo 2.

Além do caráter teórico desta pesquisa, ela também se desenvolveu, em seu

Capítulo 1, através de um caráter histórico. Tal escolha colocou-se inicialmente pela

própria problemática central da autonomia, tema impossível de ser tratado –mesmo em

um trabalho de Psicopedagogia- sem a consideração de seus indissociáveis aspectos

sociais.

O que poderíamos entender por liberdade e autonomia e quais seriam seus

significados em nossa sociedade hoje? Esta pergunta destaca-se na compreensão das

dificuldades emocionais para a construção educativa da autonomia ao levarmos em

consideração a importância da interação dos sujeitos, natureza e, principalmente,

sociedade na educação. Como nos lembra Maurício Mogilka:

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...ao falarmos de educação para a autonomia, não podemos esquecer que a criança, em processos iniciais de socialização, está simultaneamente formando a si mesma e sendo formada por estes processos. Ela age sobre aquilo que a forma (...) [,mas] ela nunca tem todo o controle sobre estes processos, mesmo os mais próximos ao seu corpo. Essa dialética entre a criança e aquilo que é externo ao seu eu é que nos permite compreender o seu desenvolvimento e estruturação, sem cair em posições empiristas e nem idealistas. (MOGILKA, 1999, p. 59).

Não há o desenvolvimento das potencialidades humanas, como a liberdade e

autonomia, sem o estabelecimento de relações sociais e culturais.

O filósofo e psicanalista Cornelius Castoriadis deixa ainda mais claro a

importância das interações do indivíduo, de tal forma de chega a ultrapassar a relação

dialética como proposta por Mogilka:

O recém-nascido deixado a si mesmo morre ou, na melhor dos casos, torna-se criança-lobo e perde irreversivelmente a capacidade de ser verdadeiramente humano. A socialização é, portanto, constitutiva do ser humano. O que a teoria política, filosófica, econômica, denomina totalmente de “indivíduo” –opondo-o à sociedade- nada mais é do que a sociedade. (CASTORIADIS, 1999, p. 107).

Desta forma, mesmo que tenhamos como foco os elementos emocionais que

envolvem a educação para a autonomia, devemos levar em conta as particularidades

sócio-históricas onde o processo se desenvolve. Certamente a situação da família hoje, a

complexidade das relações sociais, a crescente efemeridade dos laços inter-pessoais, o

sentimento de insegurança e a perda de modelos sociais e morais tradicionais na

atualidade são elementos essenciais para este trabalho.

Nesse sentido, antes da discussão propriamente dita das dificuldades emocionais

na educação para a autonomia, esta pesquisa possuiu como objetivo uma breve reflexão

histórica sobre as relações entre a transformação das emoções e sensibilidades e a

possibilidade da construção social do indivíduo autônomo em alguns momentos sócio-

históricos particulares, a saber, a Grécia Antiga (mais especificamente Atenas em seu

período democrático) e o período moderno renascentista na Europa ocidental. Ambos os

períodos muito ricos para a reflexão sobre a problemática em questão.

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A possibilidade do trabalho histórico sobre a sensibilidade e as emoções já

foram destacadas pelo historiador francês Lucien Febvre (1989). Partindo do

pensamento de Henri Wallon, Febvre considera que

... as emoções, contrariamente ao que se pensa quando são confundidas com simples automatismos de reacção ao mundo exterior, têm um caráter particular de que o homem que se ocupa da vida social dos seus congêneres não pode, desta vez, abstrair. (FEBVRE, 1989, p. 219).

Da forma semelhante ao não-desenvolvimento humano fora da sociedade, não

pode existir também emoção que adquira expressão (interna ou externa ao indivíduo)

sem influência das formas específicas de simbolismo e instituições sociais onde a

pessoa se encontra.

Não podemos, porém, indicar de forma monolítica um “espírito”, ou um padrão

de sensibilidade de uma época. A ambivalência emocional, considera Febvre, é sempre

presente sejam quais forem as realidades sócio-históricas. Em consonância com Freud,

o historiador afirma que “ todo sentimento humano é, ao mesmo tempo, ele próprio e o

seu contrário”. (FEBVRE, 1989, p. 223).

Como então seria possível, e qual seria o valor de, uma investigação histórica

dos sentimentos e emoções humanos? Para cada momento histórico e local social

específico os homens dão sentidos diferenciados para sua realidade e para suas próprias

idéias. Dessa forma, a sensibilidade, desenvolvida de acordo com tais sentidos, também

possui formas diferenciadas de expressão (ou supressão interna dos indivíduos), sendo

assim, um elemento histórico. (FEBVRE, 1989, p. 224-225).

Não se trata, entretanto, de realizar um trabalho de comparação de caráter filo e

ontogenético, que considero, em concordância com Wallon (1995, p. 52), que “não só se

encontra privado de critérios objectivos como comporta inverossimilhanças

insuperáveis.”

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Não é possível encontrar na criança um “estágio de desenvolvimento” do

passado, característico de “sociedades primitivas”. Tentar realizar tal comparação,

afirma Wallon com certa dose de ironia, levaria ao “risco de consideramos uma criança

de 12 anos mais inteligente que Platão...” (WALLON, 1995, p. 55).

Meu objetivo maior através da reflexão histórica foi, inicialmente, discutir o surgimento social da compreensão do que seria a autonomia no ocidente europeu e, posteriormente, levando em consideração as construções simbólicas e institucionais particulares de cada realidade sócio-histórica, realizar analogias entre situações onde se destaquem elementos de dificuldades emocionais frente à possibilidade de construção de liberdade e autonomia individual.

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1- CAPÍTULO

A CONSTRUÇÃO SOCIO-HISTÓRICA DA AUTONOMIA

Conforme esclarecido na Introdução, antes da discussão propriamente dita das

dificuldades emocionais na educação para a autonomia (realizada de forma mais

sistemática no Capítulo 2), o presente capítulo possui como objetivo uma breve reflexão

histórica sobre as relações entre as transformações das emoções e sensibilidades e a

possibilidade da construção social do indivíduo autônomo em alguns momentos sócio-

históricos específicos.

1.1- O período democrático grego

Cornelius Castoriadis identifica o surgimento no ocidente europeu do que

chamou “projeto de autonomia” (social e também individual) o período “clássico” da

história da Grécia antiga; mais especificamente o momento entre os séculos VIII e V

a. C, quando também se desenvolviam –não por simples coincidência- a filosofia e a

polis democrática ateniense. (CASTORIADIS, 2002, p. 186-188).

A importância deste “projeto” seria o rompimento com um elemento, individual

e coletivo, até então onipresente nas sociedades européias: a heteronomia

...encontra-se o início do reconhecimento do fato de que a fonte da lei é a própria sociedade, que nós fazemos nossas próprias leis, e de onde resulta a abertura de possibilidade de pôr em causa e em questão a instituição existente da sociedade, que já não é sagrada ou, pelo menos, não da forma como era antes. (CASTORIADIS, 2002, p. 186).

Teria surgido no pensamento e imaginário social daquele momento, uma

diferenciação filosófica fundamental para esta consideração do homem grego de si

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mesmo enquanto ser autônomo: os conceitos de phusis (ou phisis) e nomos.

(CASTORIADIS, 1999, p. 211).

A phisis relacionar-se-ia ao crescimento espontâneo e natural das coisas, que

tenderia à criação de uma ordem, algo como as “leis da natureza”. O nomos, por seu

lado, também geraria um ordenamento no mundo, mas através de uma convenção, uma

instituição criada pelos próprios homens e não mais por uma força supra-humana, seja

natural ou sobrenatural. (CASTORIADIS, 1999, p. 211).

Apesar do homem inevitavelmente dever se submeter ao ordenamento da

natureza, ele também possuiria a capacidade de criação de um mundo próprio, um

mundo humano e social onde as leis seriam edificadas pelo conjunto de todos os

cidadãos daquela comunidade (da polis). Seria a consideração explícita do homem

frente a si mesmo como capaz de realizar, potencialmente, uma auto-nomia: criação das

próprias leis, limites e ordenamento do mundo, de modo a permitir uma vida coletiva

em comum.

Como define Castoriadis: “ ser autônomo, para um indivíduo ou uma

coletividade, não significa fazer ‘o que se deseja’, ou o que nos apraz no momento, mas

dar-se suas próprias leis.” (CASTORIADIS, 1999, p. 212).

Chamo, neste momento, a atenção para o uso da palavra “lei” feita por

Castoriadis, que não se restringe ao significado que talvez possamos dar-lhe comumente

em nossa linguagem usual. A “lei”, segundo o conceito de Castoriadis, não se limita aos

decretos político-governamentais ou mandamentos do Estado surgidos segundo as

discussões de uma classe burocrática profissional. No sentido utilizado aqui, “lei”

envolve o que o filósofo/psicanalista denomina instituição imaginária.

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Todo grupo humano cria os mais variados símbolos, utilizados para permitir uma

vida em comum: “uma organização dada da economia, um sistema de direito, um poder

instituído, uma religião existem socialmente como sistemas simbólicos sancionados.”

(CASTORIADIS, 1982, p. 142).

Um sistema de educação, por exemplo, a escola, o papel dos professores etc. só

“funcionam” em uma dada sociedade porque existem símbolos criados e aceitos

(instituídos) por aquela sociedade. O imaginário social, praticado e concretizado pelas

convenções humanas, ordena a vida cotidiana das pessoas daquele(s) grupo(s).2

O que os antigos gregos estariam inaugurando naquele momento de

“surgimento” da subjetividade autônoma seria, nesse sentido, uma consciência da

própria capacidade de criação simbólica imaginária do ser humano. Consciência,

inclusive, de que tais símbolos uma vez instituídos pela coletividade podem ser

modificados ou redefinidos pela mesma sociedade que os criou e deu-lhes valor.

Isto significa então que os homens da sociedade grega do século V a. C.

questionava todas suas instituições, normas e símbolos em nome de uma autonomia

“completa” e plenamente racionalizada? Certamente que não. Existiam alguns limites

importantes para o auto-questionamento social e individual dos gregos

Apesar da criação do “projeto de autonomia” -que as sociedades ocidentais

pretendem como herança até hoje-, os significados sociais naquela realidade histórica

para o auto-nomos eram específicos e com diferenças importantes em relação aos

nossos próprios ideais e imaginário:

Para os Gregos, o eu está em íntima e viva conexão com a totalidade do mundo circundante, com a natureza e com a sociedade humana, nunca separado e solitário. As

2 “As sentenças do tribunal são simbólicas e suas conseqüências o são quase que integralmente, até o gesto do carrasco que, real por excelência, é imediatamente também simbólico em outro nível.” (CASTORIADIS, Ibid. loc. cit.).

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manifestações da individualidade nunca são exclusivamente subjetivas. (JAEGER, 1994, p. 151).

O domínio dos interesses da polis, enquanto coletividade, sobre a vida cotidiana

de cidadãos individuais era tão grande (aos nossos olhos contemporâneos) que Fustel de

Coulanges chegou a afirmar que, naquele contexto, “a liberdade individual não podia

existir” e que “o cidadão estava, em todas as suas coisas, submetido sem reservas

algumas à cidade; pertencia-lhe inteiramente.” (FUSTEL DE COULANGES, 1998, p.

146-147).

Para o grego antigo do período democrático, o indivíduo (cidadão) e a cidade

(polis) acabavam por se confundir enquanto essência –e talvez fosse justamente esta

fusão que permitisse a criação de uma autonomia para a elaboração das leis da

comunidade, sem o apelo irrestrito à forças “transcendentais”.

A subjetividade individual de nossos tempos contemporâneos, por seu lado,

parece possuir uma característica de maior “separação” entre indivíduo e coletividade

(comunidade). Em grande parte, esta separação foi fruto de contribuição do imaginário e

pensamentos europeus dos séculos XVIII e XIX, que, por não se tratar de nosso tema e

problemática imediatos, não poderão ser discutidos aqui apropriadamente.

Talvez estas breves considerações sobre o surgimento do ideal e imaginário da

autonomia entre os gregos antigos, limitadas pelo próprio caráter da pesquisa, sirvam-

nos, até este momento, para chamar a atenção para alguns elementos que, embora

simples e talvez “evidentes”, insisto em destacar:

As formas de construção da autonomia (e de uma educação que a objetive)

ligam-se estreitamente a realidade social específica; seus sistemas simbólicos

hegemônicos e suas relações inter-pessoais presentes. O mesmo poderíamos dizer das

dificuldades emocionais que envolvem sua edificação. Por certo a fragmentação dos

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laços sociais tradicionais em nossa contemporaneidade, conforme discutido por diversos

autores (BAUMAN, 2001 e 2004; LIPOVETSKY, 2005a e 2005b) propiciam reações

emocionais particulares em relação à relativa segurança das instituições gregas (como a

própria polis, por exemplo).

O envolvimento emocional destas dificuldades, ainda pensadas sob um aspecto

sócio-histórico, torna-se mais evidente ao refletirmos sobre um segundo momento das

sociedades ocidentais européias: a passagem do feudalismo para o período da

modernidade renascentista.

1.2- O período feudal europeu e a modernidade renascentista

É comum a referência ao período feudal da Europa ocidental como possuidor de

sociedades onde a subjetividade individual “não existia”, ou melhor, onde não era tão

forte uma consciência e um sentimento de separação entre a pessoa e um “todo” (seja

social, natural ou transcendente) quanto na modernidade. Não existiria, assim, qualquer

autonomia dos indivíduos, sendo estes “absorvidos” pela família, comunidade ou

senhorio:

A opressão do múltiplo colectivismo da Idade Média conferiu, assim, à palavra “indivíduo” uma “aura” equívoca. O indivíduo é aquele que só conseguiu escapar ao grupo à custa de alguma patifaria. É objecto, senão de forca, pelo menos de polícia. (LE GOFF, 1984, vol.2, p. 46).

Um indivíduo que se colocasse como isolado das normas, instituições, símbolos,

leis e, sobretudo, da convivência de um grupo podia ser considerado um criminoso, um

louco ou ainda –em um outro interessante extremo- um santo. Seria preciso ser possuído

pela insanidade, ou pela santidade, para ter a coragem de enfrentar, sozinho, os diversos

perigos do mundo, sejam concretos ou imaginários. (DUBY, 1990, p. 504-505).

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Percebe-se aí um elemento emocional importante relacionado, neste caso, à

“ausência” da autonomia e liberdade pessoal: manter-se ligado a algo considerado maior

e de existência mais duradoura que o próprio indivíduo, como a comunidade ou aos

grupos religiosos, significava a garantia de um sentimento de segurança frente às

incertezas da vida cotidiana.

Quando as sociedades feudais começaram a enfrentar mudanças mais bruscas, a

partir dos séculos XI, XII e XIII, como com o crescimento das cidades, a ampliação do

comércio e da divisão do trabalho, o contato com outros povos através das novas rotas

mercantis, o surgimento de novas profissões (e de uma maior dinamicidade da

economia monetária) e a conseqüente quebra da rigidez dos laços comunitários e do

imaginário tradicional (LE GOFF, 1984, vol.2 p.17),3 a nova estrutura social

transformaria também “a estabilidade e relativa segurança que oferecia ao indivíduo” –

nas palavras do psicanalista Eric Fromm. (FROMM, 1977, p. 16).

A nova dinâmica social da modernidade, face à antiga organização agrário-

comunitária feudal, oferecia a parcelas da população (com destaque à nascente

burguesia urbana) uma maior possibilidade de ação individual, mas as “libertava”

também da própria segurança garantidas pela antiga ordem social tradicional.

Como uma das mais características representações desta nova e ainda incerta

situação social surgida naquele momento, o período moderno renascentista resgataria as

imagens da Fortuna e da Virtù (tão presentes, por exemplo, nos escritos de Maquiavel):

o ser humano ainda sofre as influências de forças exteriores a si, mas ele pode também

agir para modificar diretamente sua sorte frente às circunstâncias do mundo.

(DELUMEAU, 1984, vol.1, p. 40). “Mas justamente essa incerteza significa uma nova

3 Ver também DELUMEAU, Jean. A civilização do renascimento. Lisboa: Estampa, 1984. (vol.1) p. 39.

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libertação frente à segurança e ao refúgio representados pela crença medieval na Divina

Providência.” (CASSIRER, 2001, p. 129).

Como bem destaca Fromm:

O indivíduo está livre da opressão dos grilhões (...), mas simultaneamente está livre daqueles vínculos que costumavam dar-lhe segurança e uma sensação de relacionamento (...) ele está livre –isto é, está sozinho, isolado, ameaçado de todos os lados. (FROMM, 1977, p. 18-59).

E também Jean Delumeau:

Por muito tempo se esqueceu a profunda e duradoura melancolia do Renascimento –contrapartida necessária de uma evolução que separava o indivíduo das tradições e hierarquias do passado.(DELUMEAU, 1984, vol.1, p. 45).

Temos, então, a primeira ambigüidade envolvendo as emoções geradas por uma

situação que ruma à autonomia pessoal: a sensação de libertar-se de algo antes

entendido como exterior a si (seja a comunidade, os costumes tradicionais, a posição

herdada dos pais, o domínio irrestrito do Divino sobre o destino, ou seja, as instituições

imaginárias sociais de forma geral) traz também os sentimentos de insegurança, medo e

isolamento.

Este é o primeiro ponto de destaque ao pensarmos sobre as dificuldades

emocionais que envolvem a educação para a autonomia.

Um segundo elemento importante que pode ser destacado ainda através da

reflexão sócio-histórica é a necessidade da construção da auto-limitação (ou

autocontrole) emocional para a edificação da autonomia.

Norbert Elias, sociólogo e psicólogo profundamente influenciado pelas teorias

freudianas, destaca que o comportamento do homem medieval (independentemente de

sua posição social) caracterizava-se pelas manifestações mais diretas de impulsos e

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afetos, inclusive das emoções mais “instintivas”, em suas ações e palavras: (ELIAS,

1994, vol.1, p. 76).

As proibições da sociedade medieval, mesmo nas cortes feudais, ainda não impõem quaisquer grandes restrições ao jogo de emoções. Comparando com eras posteriores, o controle social é suave. (ELIAS, 1994, vol.1 p. 115).

Comportamentos violentos e impulsivos eram, de fato, necessários naquelas

sociedades de guerras, caça e perigos naturais. Não se tratava de “falta de moral”, de

“má consciência” ou algo semelhante: “as pessoas se comportavam de maneira

socialmente útil e tinham prazer nisso.”4

Em outras palavras, a organização geral das sociedades feudais, os

relacionamentos inter-pessoais, o imaginário e as normas das comunidades não exigiam

–e até não incentivavam- o desenvolvimento muito rígido (se compararmos com

sociedades atuais) de uma auto-limitação das pessoas sobre seus instintos e afetos.

Isto não significa, é claro, que havia no homem medieval uma ausência de

controle do ego (ou do superego), apenas que os mecanismos de controle e regulação

atuavam de forma distinta de nossa sociedade:

...em certos setores da sociedade medieval, encontramos formas extremas de misticismo, autodisciplina e renúncia, contrastando com uma entrega não menos extrema ao prazer em outras pessoas; com grande freqüência assistimos a mudanças súbitas de uma atitude para a outra na vida do mesmo indivíduo. (ELIAS, 1994, vol.2, p. 201).

As mesmas formas de vida e pensamento “simples” e estáveis do feudalismo

como, por exemplo, as profissões e status sociais mais permanentes, a economia

agrária, as relações restritas à pequena comunidade, que não permitiam o

4 Ibid. p. 193. A moral religiosa não possui grandes relações com a liberdade de manifestação de pulsões no feudalismo, como destaca Elias: “A religião, a crença na onipotência punitiva ou premiadora de Deus nunca teve em si um efeito “civilizador” ou de controle de emoções.” Ibid. p. 198.

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desenvolvimento de um indivíduo autônomo, também não favoreciam a supressão,

moderação ou controle das emoções.

Por outro lado, já com a nova dinâmica social desenvolvida na modernidade

renascentista, a particularização (objetiva e subjetiva) do indivíduo aumenta. Porém,

este indivíduo que caminha para a autonomia tem que aprender a controlar seus

impulsos frente às relações inter-pessoais cada vez mais complexas, especialmente no

meio urbano:

A teia de ações tornou-se tão complexa e extensa, o esforço necessário para comportar-se “corretamente” dentro dela ficou tão grande que, além do autocontrole consciente do indivíduo, um cego aparelho automático de autocontrole foi firmemente estabelecido.(ELIAS, 1994, vol.2 p. 196).

Ampliam-se, por exemplo, as regras de etiqueta e “bom comportamento”, o

maior cuidado com o contato físico entre as pessoas, o controle e a vergonha frente às

necessidades fisiológicas, até mesmo o policiamento dos próprios pensamentos e

palavras.5

A auto-limitação de pulsões e sentimentos adquire uma dupla função sobre as

quais posteriormente serão importantes para a reflexão sobre as dificuldades emocionais

na educação para a autonomia. Ela permite a convivência mais estreita entre as pessoas

em sociedades onde a complexidade das relações e a inter-dependência é maior e

também auxilia na construção de uma segurança para o indivíduo frente a esta realidade

cada vez mais incerta e fluída.

Internalizar controles, eliminar, ou melhor, “inibir” impulsos emocionais pode

ser uma forma de proteção frente aos perigos e incertezas gerados por uma sociedade

que não mais suporta a espontaneidade dos afetos.

5 Como exemplifica Elias, no século XVII não mais se diz “ deffunct mon père” (meu defunto pai), mas sim “ feu mon père” (meu finado pai). A individualização, o contato e a interdependência social maior com as pessoas passa a exigir inclusive uma “suavidade” maior com as palavras. Ibid. (vol. 1). p. 118.

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Por outro lado, o autocontrole desenvolvido em nome do bom ajustamento

social, em determinados casos, pode terminar por ser tão forte a ponto de suprimir as

possibilidades de desenvolvimento da personalidade individual e, com ela, a própria

autonomia: “a pessoa que é normal em termos de ser bem ajustada freqüentemente é

menos sadia que a pessoa neurótica, em termos de valores humanos [segundo as

convenções sociais].” (FROMM, 1997, p. 116).6

Podemos perceber até aqui diversas ambigüidades nos sentimentos que

envolvem a possibilidade e a construção do indivíduo autônomo.

Se, por um lado, a libertação frente às estruturas externas rígidas, a possibilidade

de fazer para si as próprias leis, pode gerar um desenvolvimento da personalidade da

pessoa (podemos lembrar da “potência” de Nietzsche), por outro lado, a perda da

estabilidade e da previsibilidade antes dadas por aquelas mesmas estruturas, pode

produzir também uma imensa insegurança, medos e angústia.

Outro elemento que podemos apontar como ambíguo, e que será melhor

discutido neste trabalho no capítulo seguinte: a individualização crescente é

acompanhada por uma ampliação da auto-limitação de pulsões e emoções, necessário

para o convívio em sociedades “complexas” como a nossa e fonte de segurança frente a

seus perigos e incertezas; porém, ultrapassando certos limites, o controle e inibições de

sentimentos passam a impedir o crescimento interno do próprio indivíduo, gerando

“neuroses” diversas (segundo Freud), uma personalidade negativamente “niilista”

(pensando em Nietzsche)7.

6 Ver também FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e angústia. Rio de Janeiro: Imago, 2001. 7 Ver, por exemplo, NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Page 22: Liberdade e Autonomia

22

2- CAPÍTULO

DIFICULDADES EMOCIONAIS NA CONSTRUÇÃO DA LIBERDADE E DA

AUTONOMIA

Como já foi destacado anteriormente na Introdução, o objetivo desta pesquisa

não é a análise de casos específicos ou a formulação de “receitas” para a utilização

direta do psicopedagogo em situações escolares, mas sim contribuir com a reflexão

teórica sobre algumas dificuldades emocionais gerais que podem ser enfrentadas pelas

pessoas, nos mais diversos contextos educacionais onde seja proposta a construção da

autonomia individual.

Neste sentido, as ponderações históricas realizadas até aqui podem nos oferecer

indícios importantes a respeito de algumas destas dificuldades, com destaque aos

sentimentos de insegurança, medo e angústia surgidos junto à possibilidade da liberdade

e autonomia e também a fragilidade do equilíbrio da auto-limitação afetiva a ser

construída como parte necessária da autonomia individual.

2.1- Medo, insegurança e angústia frente à liberdade

Na segunda situação histórica destacada pelo capítulo anterior –as

transformações do feudalismo à modernidade renascentista europeus-, pôde-se perceber

como a separação gradativa do indivíduo frente às estruturas estáveis da sociedade

(posição social, moral, família, comunidade etc.) foi também acompanhada por um

sentimento de insegurança frente às novas situações de indeterminação trazidas por esta

separação.

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23

Poderíamos relacionar este sentimento de insegurança frente a esta liberdade à

idéia de “angústia” de Freud: “A angústia [Angst] tem inegável relação com a

expectativa: é angústia por algo. Tem uma qualidade de indefinição e falta de objeto.”

(FREUD, 2001, p. 97).

A angústia poderá ser real ou neurótica (ou “mista”, com características de

ambas) caso o perigo sentido seja, respectivamente, conhecido ou desconhecido. Em

qualquer dos casos, porém, ela surge através de uma “estimativa do paciente quanto à

sua própria força em comparação com a magnitude do perigo e no seu relacionamento

de desamparo em face desse perigo”.(FREUD, 2001, p. 98).

A libertação de uma situação antes estável –e por isso conhecida- apresenta a

tendência de tornar-se fonte de angústia por, potencialmente, ser também fonte de

perigos que o indivíduo pode não se sentir capaz de enfrentar.

Considerando nossa própria sociedade contemporânea, onde os laços

interpessoais, as instituições tradicionais, os modelos morais e de comportamento

tornaram-se muito mais transitórios e “fluídos” (BAUMAN, 2001), podemos pensar nos

medos e angústia causados por estas quebras de paradigmas em nosso tempo presente.

Temos hoje indivíduos

...desesperados por terem sido abandonados aos seus próprios sentidos e sentimentos facilmente descartáveis, ansiando pela segurança do convívio e pela mão amiga com que possam contar num momento de aflição, desesperados por “relacionar-se”.(BAUMAN, 2004, p. 8)

Pois, como enfatiza Fromm, é inerente ao humano a necessidade de relacionar-

se: “sentir-se completamente sozinho e isolado conduz à desintegração mental, tal qual

a fome física conduz à morte” (FROMM, 1977, p. 25). Para uma criança, a

possibilidade de ser deixada só é “forçosamente a mais séria ameaça a toda existência”

(FROMM, 1977, p. 27). Trata-se de um perigo não somente físico, mas também

Page 24: Liberdade e Autonomia

24

psíquico, uma vez que não há ainda na criança pequena um arcabouço mental capaz de

suportar as dificuldades potenciais da situação.

Como destaca Freud, frente a situações e conflitos que possam conduzir a uma

neurose (portanto, conflitos além de sua capacidade de enfrentamento), o ego lança mão

de técnicas para se proteger, chamadas genericamente de “defesas” (FREUD, 2001, p.

95). Eric Fromm, preocupado mais especificamente com a angústia trazida pela

separação e liberdade, denomina estas “defesas” como “mecanismos de fuga”

(FROMM, 1977, capítulo V).

Dentre estes “mecanismos de fuga”, destaco um particularmente importante para

a problemática desta pesquisa sobre as dificuldades emocionais na educação para a

autonomia: o chamado “Autoritarismo”. Fromm o define como

a tendência para renunciar à independência do próprio ego individual e fundi-lo com alguém ou algo, no mundo exterior, a fim de adquirir a força de que o ego individual carece. (FROMM, 1977, p. 118)

A libertação, a distinção de si do que lhe é “externo”, pode ser tão ameaçadora

ao indivíduo –pode trazer-lhe tamanha insegurança e angústia- que ele, como forma de

defesa, pode preferir, muitas vezes de forma inconsciente, permanecer em fusão a uma

autoridade exterior:

...a tentativa de tornar-se parte de um todo maior e mais poderoso, extrínseco ao indivíduo, e de submergir e compartilhar dele. Este poder pode ser uma pessoa, uma instituição, Deus, a nação, a consciência, ou uma compulsão psíquica. Tornando-se parte de um poder que é reputado inabalavelmente forte, eterno e fascinante, a pessoa participa de sua força e glória. (FROMM, 1977, p. 128)

Em termos individuais, esta forma de abrir mão da independência do ego pode

ser uma das conseqüências das dificuldades emocionais surgidas ante a proposição da

construção da autonomia e liberdade, uma vez que algum grau de insegurança e medo

sempre surgirá desta proposição.

Page 25: Liberdade e Autonomia

25

Talvez possamos melhor compreender esta ambigüidade (liberdade/angústia) a

partir de uma proposição destacada por Fromm e que parece de suma importância para

esta discussão: não basta a simples separação do indivíduo do que lhe é “externo” para

garantir a edificação da autonomia efetiva do sujeito.

No caso de uma simples separação da subjetividade individual, tem-se apenas a

“liberdade de”, nos dizeres de Fromm, que pode gerar inseguranças e angústia

rapidamente acompanhadas dos “mecanismos de fuga” (defesas). Para a efetiva

edificação de uma liberdade completa e ativa (uma liberdade verdadeiramente

autônoma), é necessário também um “crescimento do eu”, um fortalecimento psíquico

do próprio ego para que não sobrevenha o medo e, possa assim, efetivar-se uma

“liberdade para”, uma liberdade positiva. (FROMM, 1977, p. 35).

Somente assim seria possível “unir-se uma vez mais ao homem, à Natureza e a si

mesmo, sem renunciar à independência e à integridade de seu ego individual”.

(FROMM, 1977, p. 117). Vejamos o que seria este “crescimento do eu”.

2.2- A necessidade do fortalecimento do eu e da vontade individual

A primeira das dificuldades emocionais que podermos destacar em um contexto

de educação para a autonomia parece, assim, envolver o risco da recusa do indivíduo em

libertar-se (separar-se, tornar-se independente) de objetos, padrões e instituições frente

aos quais seu eu estaria “submerso” (nas palavras de Fromm).

Esta separação, ou a simples proposta de fazê-lo, poderia gerar tamanha

insegurança, medo e angústia que o ego –ainda não se vendo capaz de enfrentar os

perigos da nova situação- lançaria mão de defesas, ou “mecanismos de fuga”, como o

apelo a união a uma autoridade externa.

Page 26: Liberdade e Autonomia

26

Como já sinalizado por Fromm, a possibilidade da liberdade efetiva e da

autonomia deveria envolver, então, o desenvolvimento de uma estrutura mental que se

sentisse capaz de lidar com situações de insegurança e indeterminação. Um

“fortalecimento do ego”, entendido por Fromm essencialmente como a consciência do

indivíduo.

O filósofo e educador alemão Max Stirner já no século XIX preocupava-se com

as relações entre educação e Vontade, destacando a importância do desenvolvimento do

eu (embora sem utilizar estritamente tal conceito) para a autonomia do indivíduo.

(STIRNER, 2001).

De forma semelhante aos conceitos de “liberdade de” e “liberdade para” de Eric

Fromm, Stirner entende diferentes significados para as palavras “liberdade” e

“propriedade”:

Estar livre de qualquer coisa significa apenas estar privado ou desembaraçado dela. “Ele livrou-se das dores de cabeça” equivale a: já não tem dores de cabeça. “Ele está livre desse preconceito” equivale a: nunca o teve ou desembaraçou-se dele. (STIRNER, 2004, p. 128).

Como já discutido, o simples “desembaraçar-se” de algo pode gerar insegurança,

inação e angústia. A autonomia só poderia existir de fato se o sujeito for capaz de agir

de forma independente e ativa frente ao que “se separou” dele, podendo assim criar suas

próprias leis e conduta. Daí a idéia de “propriedade” do filósofo:

Pensando bem, o que tu queres não é a liberdade de ter essas coisas boas, porque com essa liberdade tu ainda as não tens; o que tu queres é tê-las de facto, chamar-lhes tuas e possuí-las como propriedade tua. De que te serves uma liberdade que não te dá nada? E se te libertasses de tudo, ficarias sem nada, porque a liberdade não tem conteúdo. Para aquele que não sabe servir-se dela, essa inútil possibilidade não tem qualquer valor; mas depende da minha singularidade o modo como eu me sirvo dela. (STIRNER, 2004, p. 127).

Page 27: Liberdade e Autonomia

27

É desde o nascimento, afirma Stirner, que o indivíduo empenha-se em uma luta

para “conquistar-se a si próprio no meio da confusão em que, com tudo o que há nesse

mundo, se vê lançado sem orientação” (STIRNER, 2004, p. 15).

Interessante notar como um século depois alguns princípios de Stirner estariam

novamente presentes na psicologia do desenvolvimento (com importantes

transformações, é claro). Henri Wallon, retomando também Pavlov, aceita a existência

de um “reflexo de ‘liberdade’ ou de libertação” (WALLON, 1995, p. 113):

O visível mal-estar do bebé com a roupa demasiado apertada, as suas exuberantes gesticulações assim que se vê livre dos entraves, têm a mesma origem e correspondem às exigências de uma sensibilidade que se descobre e se experimenta. (WALLON, 1995, p. 13).

Como uma diferença importante entre os dois pensadores, porém, devemos notar

em Stirner um maior foco nos conflitos entre o mundo e o indivíduo decorrente do

desenvolvimento de seu ego e vontade. Não há para o filósofo, pelo menos com

qualquer destaque, uma influência positiva do meio para a formação da personalidade

singular. Wallon, por seu lado deixa mais clara uma interação o mundo e o eu individual

em seu desenvolvimento, apesar do conflito também ser evidente.

Para Wallon, alternam-se, durante o crescimento do sujeito, fases de orientação

centrípetas e centrífugas, ou seja, “virada para a progressiva edificação do próprio

indivíduo ou para o estabelecimento das suas relações com o exterior, para a

assimilação ou para a diferenciação funcional e adaptação objectiva.” (WALLON,

1995, p. 111).

Mas mesmos estas fases não se isolam entre si, pois, mesmo que os estímulos

externos pareçam exprimir diretamente, em determinado momento, o comportamento de

uma criança, “uma grande parte de sua actividade é absorvida especialmente por

repetições de gestos, cuja motivação é obviamente íntima.” (WALLON, 1995, p.117).

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28

A definição do eu inicia-se na criança, ainda segundo Wallon, com os exercícios

de separação de si com o mundo, inicialmente em estado de fusão:

...bater, ser batido; levantar o véu, esconder-se debaixo dele. Ao mesmo tempo, treina-se opor aos outros. Estas diferenciações que colocam fora deles seres entre os quais ele próprio permanecia mais ou menos disperso e difuso, introduzem um jogo de combinações novas na sua adaptação ao mundo exterior. (WALLON, 1995, p. 124).

Durante este processo, pode-se perceber como é profunda a fusão inicial do

indivíduo com o mundo:

É assim que a criança pode agir com diversas partes do seu corpo ou do seu organismo como se fossem capazes de sentir, de ver ou de ouvir por si mesmas –encontrando-se em uma varanda, dirá que é para os seus joelhos poderem olhar para a rua. (WALLON, 1995, p. 124-125).

Neste ponto podemos levantar uma convergência de idéias entre Wallon e

Stirner: a consideração das lutas e conflitos como parte fundamental para o

desenvolvimento da personalidade. Neste sentido, afirma Stirner:

Por isso, ficamos à espreita das fraquezas de todos (e as crianças têm um instinto apurado para isto); por isso, gostamos de quebrar objectos, de explorar recantos escondidos, de espiar o que está oculto e afastado, e medimos forças com tudo. Quando julgamos compreender as coisas, sentimo-nos seguros. (STIRNER, 2004, p. 15)

Este seria, para o filósofo, um primeiro passo para o fortalecimento do eu: a

gradativa oposição e o testar da própria potência contra as “forças da natureza” (que

incluem, por exemplo, pai e mãe) (STIRNER, 2004, p. 16). Vencendo tais obstáculos e

ameaças e sentindo as possibilidades da própria força, o indivíduo sentir-se-ia cada vez

mais seguro.

Wallon, localizando de forma mais específica um dos momentos do auge destes

conflitos aos três anos de idade, também afirma existir

uma oposição muitas vezes totalmente negativa que faz [a criança] defrontar-se com as outras pessoas sem outro motivo que o de sentir sua própria independência, a sua

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29

própria existência. O único fito da vitória é a própria vitória: vencida por uma vontade mais forte ou pela necessidade, as criança sente uma dolorosa diminuição do seu ser...(WALLON, 1995, p. 203).

Embora seja um momento fundamental para a edificação do eu, para os dois

pensadores o processo do fortalecimento de si –e os conflitos que lhe são inerentes- não

termina na infância. Ambos localizam na adolescência uma segunda ocasião de

destaque nesta construção.

Para Stirner, o jovem pode conseguir completar a superação do domínio das

“forças da natureza” sobre si, mas acaba por substituir o domínio concreto do mundo

exterior por um novo poder, desta vez interior, o da própria consciência.(STIRNER,

2004, p. 17).

Ele passa a ficar fascinado pelas próprias idéias e abstrações, que muitas vezes

terminam por ganhar vida própria:

Trazer à luz o pensamento puro, ou tornar-se dependente dele, é a paixão da juventude, e todas as figuras luminosas do mundo das idéias, a verdade, a liberdade, a humanidade, o ser humano, etc., iluminam e entusiasmam a alma juvenil. (STIRNER, 2004, p. 17).

Wallon também enfatiza tal tendência após a puberdade, onde a pessoa, na ânsia

de distinguir-se dos pais (e adultos em geral), “não procura disfarçar uma vontade

íntima; projecta-se nas coisas, na natureza, no destino, sob a forma de um mistério a

esclarecer. Seu objecto já não é estritamente concreto e pessoal, mas metafísico e

universal.” (WALLON, 1995, p. 208).

É importante assinalar, contudo, que, na preocupação com o desenvolvimento do

eu e da Vontade, Stirner mostra-se muito mais radical. O filósofo, ao desenvolver suas

idéias acerca do desenvolvimento da personalidade, demonstra pouco apreço pelas

influências positivas do meio para o indivíduo (como faz Wallon). Para ele, ambas as

Page 30: Liberdade e Autonomia

30

dimensões (indivíduo e mundo) são desde o princípio inimigas (“...ou o bastão vence o

homem, ou o homem vence o bastão”). (STIRNER, 2004, p. 15).

No âmbito mais específico da educação, podemos notar tal ênfase na

importância única do crescimento do eu e da Vontade nos debates travados por Stirner

com duas correntes educacionais de sua época, classificadas por ele como “dandismo” e

“industrialismo”. (STIRNER, 2001, p. 68).

Nem a primeira, a educação clássica, “erudita” e literária, nem a segunda, mais

pragmática e voltada para o trabalho e a “vida”, promovem um crescimento real do

indivíduo. De nada valem os conhecimentos que permanecem exteriores ao eu, por isso,

“o Saber também deve morrer para, na morte, reflorescer em Vontade.” (STIRNER,

2001, p. 72). 8

Apesar de ser uma afirmação que, em uma primeira impressão, possa conotar

um radicalismo sem precedentes contra qualquer processo educativo, devemos nos

lembrar como o aspecto da Vontade foi, mais tarde, retomado pelas teorias pedagógicas

como fundamental para o processo de aprendizagem.

Jean Piaget, como um exemplo, ao refletir sobre os jogos de “bolinhas de gude”

de crianças, fica espantado com a complexidade das regras aprendidas e submetidas à

reflexão e modificação pelas mesmas.

Essas regras, com suas sobreposições e suas exceções, são, sem dúvida, tão complexas quanto as regras da ortografia corrente. A esse respeito, sentimos um certo vexame ao comprovar a dificuldade com que a pedagogia clássica luta para fazer penetrar a ortografia em cabeças que assimilam com tanta facilidade o conteúdo mnemônico inerente ao jogo das bolinhas: é que a memória depende da atividade e uma verdadeira

atividade supõe o interesse. (PIAGET, 1994, p. 49, destaque meu).

2.3- A necessidade da auto-limitação das paixões

8 Surge daí a crítica de Stirner à instituição escola: “A escola não forma homens tão profundamente verdadeiros; se, contudo, há alguns deles, é certamente malgrado a escola” (2001, p.75-76). Sua idéia não é “concordar escola e vida”, mas sim que “a escola seja a vida”. (2001, p 82).

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31

Bastaria, então, um fortalecimento da própria subjetividade e da Vontade para

que o indivíduo, ao ir superando seus sentimentos de insegurança e angústia frente às

incertezas da liberdade, construa em si a autonomia? Certamente a simples capacidade

de realização da Vontade não poderia ser considerada o único objetivo da educação para

a autonomia.

Ao relembrarmos o conceito de autonomia de Castoriadis, onde o indivíduo e a

sociedade nesta condição são aqueles que “dão-se as próprias leis”, percebemos que

isoladamente o fortalecimento do eu não é o suficiente para a edificação da autonomia.

Isto talvez favorecesse apenas a existência dos “pequenos tiranos” tão comuns hoje em

dia e que se tornam o pesadelo de pais e professores.

Mesmo Max Stirner em sua apologia à Vontade e ao fortalecimento do indivíduo

frente ao mundo não objetiva ou sugere a pura realização dos desejos e pulsões. Para

ele, da mesma forma que

O puro renuncia à sua relação natural com o mundo (“renuncia ao mundo”), para seguir apenas o “anelo ideal” que o domina. Movido pela avidez do dinheiro [,por exemplo], o avarento renuncia a todos os avisos da consciência moral, a todo sentimento de honra e a toda a compaixão: deita fora toda a consideração, porque a força do desejo é avassaladora. (STIRNER, 2004, p. 54).

Se o “puro” renuncia a si mesmo, sua liberdade e autonomia, frente a Deus e a

leis divinas, o “impuro” faz o mesmo frente a Mamon (e demais alegorias dos “desejos

avassaladores”).

De forma análoga, não poderíamos considerar o homem feudal como

“autônomo” (segundo o conceito aqui utilizado), simplesmente pelo fato de que ele

possuiria maior liberdade social de manifestação de seus instintos e pulsões. Pelo

contrário, como mesmo revela Norbert Elias:

Page 32: Liberdade e Autonomia

32

Alegria e dor eram liberadas mais aberta e livremente. Mas o indivíduo tornava-se sua presa, jogado de um lado para o outro tanto por seus sentimentos quanto pelas forças da natureza. Tinha menos controle de suas paixões. Era mais controlado por elas. (ELIAS, 1994, vol. 2, p. 202).

Se a autonomia requer uma auto-limitação para que as regras não tenham que

partir “de fora”, mas sim criadas pelos próprios indivíduos, o homem medieval não seria

um bom exemplo a ser seguido por nós.

Podemos, desta forma, destacar aqui o que talvez seja potencialmente uma

segunda grande dificuldade emocional na educação para a autonomia: as dificuldades

para a construção de uma auto-limitação dos próprios afetos e pulsões, mas que, ao

mesmo tempo, não seja tão absoluta a ponto de sufocar o crescimento do eu e da

Vontade.

Henri Wallon (1995, p. 89) afirma que a criança pequena –até por volta de seus

cinco anos- não possui ainda desenvolvida em si uma autodisciplina que a permite

libertar-se de suas ocupações espontâneas e concentrar-se em um trabalho motivado por

algo que lhe é exterior: “A criança está totalmente absorvida pelas suas ocupações do

momento e não tem sobre elas nenhum poder de mudança ou fixação.” (WALLON,

1995, p. 90).

Quer dizer, uma interação mais propriamente social não se mostra completa até

que o indivíduo construa em si uma capacidade de controle sobre os próprios impulsos e

afetos.

É certo, porém, que esta “autodisciplina” só se edifica com as próprias trocas e

relações do sujeito com o mundo. A inicial “incontinência de reações” da criança deve,

gradativamente, ser substituída por uma “disciplina de ação”, interiorizada a partir da

interação social. (WALLON, 1995, p. 90 e 92).

Page 33: Liberdade e Autonomia

33

Em sentido semelhante, Jean Piaget tentou compreender como se construiriam as

“regras morais” dos indivíduos a partir de sua infância. (Piaget, 1994).

Apesar do estudo de Piaget referir-se aos juízos morais da criança, e não aos

sentimentos morais, sua importância aqui permanece, principalmente pela ênfase dada

por ele ao processo de internalização de regras sociais, originalmente existentes apenas

no “exterior” do eu individual.

A regra coletiva é, inicialmente, algo exterior ao indivíduo e, por conseqüência, sagrada. Depois, pouco a pouco, vai-se interiorizando e aparece, nessa mesma forma, como livre resultado do consentimento mútuo e da consciência autônoma. (PIAGET, 1994, p. 34).

Para Piaget, semelhante a Wallon, a pessoa nasce como um ser “pré-social” (em

termos de relação cooperativa com o outro). Ao mesmo tempo, porém, todas as regras

sociais, limites e disciplinas individuais da criança, que necessariamente provém “de

fora”, são consideradas como insuperáveis e eternas, “sagradas”, nos dizeres de Piaget.

Isso ocorre porque:

...quanto mais nova é a criança, menor é sua percepção sobre o próprio eu. Do ponto de vista intelectual, não distingue o externo do interno, o subjetivo do objetivo. Sob o aspecto da ação, cede a todas as sugestões (...). Desde então, o adulto ou o mais velho tem todo o poder sobre ela: impõem suas opiniões e suas vontades. (PIAGET, 1994, p. 80).

A esta afirmação de Piaget, podemos relacionar alguns elementos já discutidos

até aqui.

O desenvolvimento do indivíduo exige uma gradativa separação entre o eu

subjetivo (e mesmo corporal) e o mundo. Esta separação, contudo, é repleta de conflitos

e sentimentos ambivalentes: sente-se prazer ao experimentar-se a própria potência frente

ao mundo através da realização da própria Vontade, mas, ao mesmo tempo, despertam-

se medos e angústias frente às incertezas e indeterminações que esta libertação traz

consigo.

Page 34: Liberdade e Autonomia

34

A criança pequena, como analisadas por Piaget, encontrando-se ainda em um

“estágio” heterônomo e parece possuir um grande “temor” (se é que esta palavra pode

ser utilizada nesta situação, onde “incompreensão” talvez seja mais apropriada) às

mudanças de regras, ordens e situações habituais. Neste momento, a grande angústia

surge quando os pais dão ordens incompreensíveis e contraditórias aos pequenos. Quer

dizer, pouco seguras para a criança. (PIAGET, 1994, p. 141).

Para Piaget, a superação da heteronomia só pode ocorrer se for oferecida à

criança situações onde ela possa exercitar a cooperação entre seus iguais, criando em

conjunto suas próprias regras de ação, e não somente uma obediência total frente aos

regulamentos vindos do exterior (inicialmente dos próprios pais):

À heteronomia sucede a autonomia: a regra do jogo se apresenta à criança não mais como uma lei exterior, sagrada, enquanto imposta pelos adultos, mas como resultado de uma livre decisão, e como digna de respeito na medida em que é mutuamente consentida. (PIAGET, 1994, p. 60).

Como já foi chamada a atenção, a pesquisa de Piaget não se concentra em

sentimentos, mas em juízos morais, mas ela auxilia-nos na compreensão de um ponto

fundamental de já iniciada discussão: a necessidade íntima da internalização de regras

sociais para a construção da autonomia.

Se, por um lado, o processo de libertação do eu frente ao mundo requer um

fortalecimento da Vontade para que não se sobreponha a angústia das incertezas e

indeterminações de um mundo sem âncoras, isto não significa que a autonomia envolva

a pura realização dos instintos em qualquer situação. A qualidade do ser autônomo

pressupõe a capacidade de criação de limites, embora limites que não possuam origem

puramente “exterior”, mantidas por coerção social, mas sim uma auto-limitação.

2.4- Os perigos da auto-limitação emocional

Page 35: Liberdade e Autonomia

35

Percebe-se, com tudo isso, como parece frágil e complexo o equilíbrio

necessário para o desenvolvimento emocional do indivíduo na construção ideal da

autonomia pessoal. Mais frágil ainda ao considerarmos que a construção individual de

uma auto-limitação emocional minimamente saudável em termos psíquicos também é

uma tarefa extremamente delicada.

Friedrich Nietzsche, filósofo alemão profundamente preocupado com a

psicologia humana, já refletia sobre possíveis conseqüências negativas do excesso de

controle sobre as pulsões pelo homem: “Todos os instintos que não se descarregam para

fora voltam-se para dentro (...) A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no

assalto, na mudança, na destruição –tudo isso se voltando contra os possuidores de tais

instintos.” (NIETZSCHE, 1998, p. 73).

Sigmund Freud, alguns anos mais tarde, ao lançar as bases da teoria psicanalítica

retomaria esta preocupação de uma forma próxima ao próprio Nietzsche: “...como

afirmamos, quanto mais um homem controla sua agressividade, mais intensa se torna a

inclinação de seu ideal [superego] à agressividade contra seu ego.” (FREUD, 1997, p.

60).

Em concordância com os teóricos até aqui estudados, Freud (1997) também

considera fundamental –e inevitável- para a vida humana o processo de inibição e

limitação dos impulsos. A vida essencialmente social do homem acaba por gerar

estruturas psíquicas que passam a atuar para além da simples geração inconsciente de

instintos, naturais à pessoa desde seu nascimento: o próprio ego, estrutura de maior

ligação com o consciente, seria uma parte modificada do id por influência do mundo

externo (p. 25). O ego

Page 36: Liberdade e Autonomia

36

controla as abordagens à motilidade –isto é, à descarga de excitações para o mundo externo. Ele é a instância mental que supervisiona todos seus próprios constituintes e que vai dormir à noite, embora ainda exerça a censura sobre os sonhos. (FREUD, 1997, p. 15).

Ocorre, porém, que muitas vezes esta “supervisão” do ego e do superego

(estrutura que objetivaria inicialmente reprimir o Complexo de Édipo) torna-se

exagerada e a repressão, consciente e também inconsciente, sobre a procura de

satisfação instintual do id acaba por gerar sintomas considerados patológicos

(compulsões, fobias, impulsos masoquistas ou sádicos etc.). (FREUD, 2001).

Em síntese, se a auto-limitação parece ser uma característica fundamental para o sujeito autônomo e para a vida social de forma geral, a repressão desmedida dos impulsos e da Vontade parece também ser prejudicial ao bem-estar psíquico do indivíduo, conseqüentemente a seu desenvolvimento pessoal e social.

Page 37: Liberdade e Autonomia

37

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção da autonomia individual tem sido um projeto a ser realizado a um

longo tempo na história das sociedades ocidentais. Desde as primeiras considerações

filosóficas que explicitaram a capacidade humana em construir suas próprias leis e

sistemas simbólicos, questionou-se como educar e efetivar tal potencialidade nos

homens.

Longe, entretanto, de envolver apenas um esforço e um treinamento intelectuais

pelo acúmulo de conhecimentos transmitidos por uma academia e mestres

especializados, a educação para a autonomia só é possível ao considerarmos toda a vida

do indivíduo como palco desta prática construtiva.

Neste sentido, os aspectos emocionais – e as próprias dificuldades emocionais-

existentes no processo de edificação da liberdade e autonomia pessoal possuem

importância tão grande que podemos, inclusive, notá-las e destacá-las na história de

nossas sociedades. Ao mesmo tempo em que na Europa Moderna formava-se uma

organização social onde os indivíduos poderiam ter maior independência de ação e

pensamento frente a instituições, símbolos e crenças ortodoxas, evidenciou-se também

uma maior insegurança destas mesmas pessoas frente as suas vidas.

Além do temor frente ao novo e indeterminado mundo, já livre das antes seguras

e sempre-presentes amarras tradicionais, o homem da modernidade renascentista teve

que aprender a lidar também com a ameaça vinda de seu interior, ou seja, com as forças

cada vez mais proibidas de suas próprias pulsões emocionais.

Tal seria a ordem da primeira dificuldade discutida: o medo e a angústia trazidos

pela condição de liberdade. Insegurança frente ao que se torna desconhecido e incerto,

tanto no mundo exterior –lembremos do processo de separação da criança com o

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38

mundo, descrito por Wallon e Stirner- quanto no interior, quer dizer, os perigos que

podem acompanhar as tentativas de satisfação dos instintos do indivíduo em sua vida

social (discussão de Norbert Elias).

Este medo poderia, conforme Eric Fromm, ser experimentado como uma ameaça

tão insuportável pela pessoa que, para livrar-se dessa angústia, ela poderia preferir

renunciar a sua liberdade e tentar emergir novamente seu eu em uma autoridade extra-

pessoal que lhe prometesse segurança e acalento.

A superação do temor frente à liberdade teria como possibilidade de realização

um fortalecimento psíquico, a construção de uma maior capacidade de continência e

tolerância do eu individual. O sentimento de potência da própria Vontade, segundo

Stirner, garantiria novamente ao indivíduo uma segurança frente às diversas ameaças de

um mundo de indeterminações e incertezas.

Chegamos, porém, a uma segunda dificuldade de caráter emocional do processo

de construção da autonomia individual: a necessidade de chegar-se a um equilíbrio,

mínimo e dinâmico, entre o fortalecimento da Vontade e a capacidade de uma auto-

limitação emocional.

Como destacado por Castoriadis, a autonomia envolve a habilidade em fazer-se

as próprias leis e não “fazer-se o que se quer a todo o momento”, justamente para que os

limites não necessitem de provir de uma autoridade exterior.

A internalização de regras é parte essencial deste processo. Conforme discutido

através das idéias de Piaget, os limites de ação dos indivíduos são estabelecidos

inicialmente pelo mundo externo (pais, adultos ou sociedade em geral); o desafio é que

a pessoa adquira a capacidade de produzir os próprios limites, não porque exista uma

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coerção exterior, mas porque aprendeu a cooperar com seus iguais para definir as regras

de convivência pertinentes à determinada situação.

Os problemas aqui podem surgir sob duas faces. Por um lado, a falta de

oportunidades do exercício da cooperação favoreceria a manutenção da dependência do

indivíduo frente a limites traçados por autoridades exteriores. Por outro, o excesso do

controle internalizado colocaria em risco a expressão do próprio eu individual.

Como destacado por alguns dos autores discutidos –Stirner, Nietzsche e,

principalmente, Freud- apesar da auto-limitação emocional ser essencial para a vida

social e para a própria autonomia, uma autoridade interna muito dominadora também se

torna prejudicial, na medida em que reprime desejos, pensamentos e ações espontâneos

da pessoa, fundamentais para sua liberdade.

Nesta monografia, procurei realizar apenas alguns apontamentos gerais e

extremamente limitados sobre potenciais dificuldades emocionais que envolvem a

educação para a autonomia. O caráter teórico desta pesquisa deixa como uma

continuidade natural e necessária à reflexão sobre situações e casos específicos que

envolvam a educação para a autonomia e suas dificuldades.

Uma vez que situações reais forçosamente mostrar-se-iam mais complexas e

ricas, aponto como temas igualmente importantes as questões cognitivas e sociais que

envolvem a construção educativa da liberdade e autonomia.

A autonomia é um anseio, um projeto a ser construído por cada indivíduo e pela sociedade de forma geral. Não é, entretanto, uma tarefa simples e talvez nunca possa ser realizada de forma completa e ideal, pois requer tolerância à liberdade e um sereno fortalecimento de si, elementos cada vez mais difíceis de

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conquistar em nosso mundo, fragmentado em suas relações e corrompido em suas instituições, e onde o anseio pelas autoridades parece retornar com cada vez mais força.

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