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ANAIS XII SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL 472 LIBERDADE E CONSTITUCIONALISMO: O CONCEITO DE LIBERDADE ENQUANTO MEDIDA DAS CONSTITUIÇÕES 481 LIBERTY AND CONSTITUTIONALISM: THE CONCEPT OF LIBERTY AS A MEASURE OF THE CONSTITUTIONS Fernando Tomazoni 482 Marco Antônio Confessor Aguinel 483 “Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda” Cecília Meireles Resumo Este artigo buscou verificar a influência do conceito de liberdade no constitucionalismo. Isaiah Berlin estimou a existência de quase duzentos significados para a palavra liberdade, no século XIX, ponderando que alguns deles eram notadamente incompatíveis entre si. Desse modo, assumindo-se que em cada sociedade predomina um sentido para a palavra liberdade, e que já houveram dois estudos importantes nesse sentido – “Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos“ e “Quatro Ensaios Sobre a Liberdade“ -, traçou-se um paralelo 484 entre as transformações do conceito de liberdade ao longo da história e a evolução histórica do constitucionalismo. 481 Artigo submetido em 08/04/2016, pareceres de aprovação em 26/04/2016 e 01/05/2016, aprovação comunicada em 17/05/2016. 482 Graduando em Direito pela UNIOESTE – Campus de Francisco Beltrão. E-mail: ftomazoni@ me.com 483 Graduando em Direito pela UNIOESTE – Campus de Francisco Beltrão. E-mail: maaguinel@ hotmail.com 484 Destaca-se que não foi realizada uma análise a partir da História dos Conceitos ou qualquer metodologia histórica mais exigente. Trata-se de uma pesquisa meramente bibliográfica em busca de evidências que possibilitem a verificação de uma conexão entre dois objetos do trabalho.

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ANAIS XII SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL 472

LIBERDADE E CONSTITUCIONALISMO: O CONCEITODE LIBERDADE ENQUANTO MEDIDA DAS

CONSTITUIÇÕES481

LIBERTY AND CONSTITUTIONALISM: THE CONCEPT OF LIBERTY AS A MEASURE OF THE CONSTITUTIONS

Fernando Tomazoni482

Marco Antônio Confessor Aguinel483

“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda” Cecília Meireles

ResumoEste artigo buscou verificar a influência do conceito de liberdade no

constitucionalismo. Isaiah Berlin estimou a existência de quase duzentos significados para a palavra liberdade, no século XIX, ponderando que alguns deles eram notadamente incompatíveis entre si. Desse modo, assumindo-se que em cada sociedade predomina um sentido para a palavra liberdade, e que já houveram dois estudos importantes nesse sentido – “Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos“ e “Quatro Ensaios Sobre a Liberdade“ -, traçou-se um paralelo484 entre as transformações do conceito de liberdade ao longo da história e a evolução histórica do constitucionalismo.

481 Artigo submetido em 08/04/2016, pareceres de aprovação em 26/04/2016 e 01/05/2016, aprovação comunicada em 17/05/2016.

482 Graduando em Direito pela UNIOESTE – Campus de Francisco Beltrão. E-mail: [email protected]

483 Graduando em Direito pela UNIOESTE – Campus de Francisco Beltrão. E-mail: [email protected]

484 Destaca-se que não foi realizada uma análise a partir da História dos Conceitos ou qualquer metodologia histórica mais exigente. Trata-se de uma pesquisa meramente bibliográfica em busca de evidências que possibilitem a verificação de uma conexão entre dois objetos do trabalho.

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ANAIS XII SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL 473

Palavras-chave: Constitucionalismo na História. O conceito de liberdade. Evolução do Constitucionalismo. Instituições de Direito Constitucional. História do Direito.

Abstract

This paper seeks to examine the influence of the concept of liberty on constitutionalism. According to Isaiah Berlin, there were almost two hundred meanings for the word liberty in the 19th century, and he pointed out that some of those meanings were mutually incompatible. Thus, assuming that in every society a given concept of liberty prevails, and that two important works have been published on this subject – “The Liberty of the Ancients Compared with that of the Moderns” and “Four Essays on Liberty“ –, we draw a parallel between the transformations of the concept of liberty throughout history and the historical evolution of constitutionalism.

Keywords

Constitutionalism in history. The concept of liberty. Evolution of constitutionalism. Institutions of Constitutional Law. History of law.

Sumário

Introdução. 1. Liberdade: conceitos possíveis. 2. O Conceito de Constitucionalismo. 3. Evolução Histórica do Constitucionalismo. Considerações Finais. Referências.

Introdução

A palavra liberdade sofreu transformações ao longo da história. Houve épocas em que ser livre significava pertencer a um grupo dominante e participar de suas decisões. Mais tarde, a noção de liberdade relacionou-se à possibilidade do sujeito se autodeterminar. Alguns séculos atrás, liberdade significava ausência de coerção. Mais recentemente, com o advento dos direitos sociais, o conceito de liberdade foi ampliado, e passou a se confundir com uma ideia de poder: o homem só seria livre na medida em que tivesse acesso aos bens materiais que lhe possibilitassem fazer o que ele quisesse.

Algumas palavras, como bondade, fraternidade e igualdade, carregam em si admirabilidade e aceitação. Liberdade também é uma dessas palavras. Embora existam inúmeras acepções para ela, é inegável que todas elas possuem elevada carga emocional.

Por mais opressor que seja o sistema ou pior que seja a situação na qual o homem se encontre, sempre é possível vislumbrar alguma parcela de liberdade,

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ainda que isso signifique apenas “pensar livremente”. O ato de pensar livremente, decorrente da “liberdade interior”, é o que fez muitos homens seguirem em frente diante das piores adversidades. No entanto, esta liberdade interior - ou espiritual - não será estudada nesse trabalho.

Interessa, aqui, pensar a liberdade enquanto um conceito sociológico (MISES, 2014), ou melhor, considerando o homem no ambiente sócio-político. É exatamente essa liberdade sociológica que interessa ao Direito. Vale enfatizar que, se houveram transformações a respeito do significado de liberdade, ao longo do tempo, essa mudança provavelmente gerou impacto sobre a esfera jurídica. Afinal, o Direito não pode ser isolado das demais áreas do conhecimento, muito menos é insensível às transformações sociais.

Ocorreram mudanças no movimento constitucionalista. Aquilo que se entendia por “Constituição” no século XVIII, não é o mesmo que se entende nos dias de hoje. Ainda que se considere o constitucionalismo no mesmo período de tempo, há expressivas variações em seu significado, considerando a nação em que se insere (por exemplo, França, Inglaterra e Estados Unidos).

Sabe-se que, na Antiguidade Clássica, já existia uma organização do Estado e do exercício do poder político. Essas ideias, historicamente analisadas, demonstram uma espécie de progressão485. A evolução do movimento constitucionalista foi acompanhada, e também ocasionada, pela própria evolução das ideias políticas e filosóficas na sociedade. Porém, resta saber em que grau cada uma delas importou ao movimento.

Ao construir uma trajetória histórica das transformações do conceito de liberdade e discorrer sobre o surgimento e a evolução do movimento constitucionalista, busca-se responder se, e em que grau, as transformações do conceito de liberdade influenciaram o constitucionalismo.

1 Liberdade: conceitos possíveis “Nunca houve uma boa definição da palavra liberdade e, neste momento,

o povo americano tem necessidade urgente de uma definição. Todos nos proclamamos a favor da liberdade: mas, embora usemos a mesma palavra, não lhe atribuímos o mesmo significado... Eis duas coisas não só diferentes, mas incompatíveis, que têm o mesmo nome, liberdade.” Abraham Lincoln

A fim de entender o que significa “liberdade” e delimitar, desde já, o objeto deste estudo, utilizaremos do conhecimento de três autores que, apesar de usarem nomenclaturas diferentes entre si, foram capazes de atingir uma continuidade conceitual do problema: Benjamin Constant comparou a liberdade dos antigos à dos

485 Ressalta-se a não utilização de metodologias históricas mais criteriosas para a construção do texto.

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modernos, Isaiah Berlin apontou o confronto entre a liberdade positiva e a negativa, e, por fim, Friedrich Hayek concentrou seus esforços na defesa do que chamou de liberdade individual.

Na Grécia Antiga, a ideia de liberdade era muito diversa da forma como a encaramos hoje. O cidadão grego se julgava livre por poder participar dos debates que ocorriam em praça pública, na nomeação de magistrados e votação de leis; no entanto, sua vida privada era completamente submissa ao juízo coletivo. Os interesses da cidade-estado sempre se sobrepunham ao interesse individual. Num sentido organicista, o homem era considerado como uma pequena parte de um todo, e só importava na medida em que contribuísse com esse organismo maior.

Nessa época em que o Estado gozava de onipotência, chegou-se a dizer que “os antigos jamais conheceram a liberdade individual” (COULANGES, p. 352). De fato, desde o serviço militar obrigatório até o controle das vestes e do corte de cabelo, passando pelo consumo (ou a proibição) do vinho, e a própria vida íntima e amorosa das pessoas - tudo era controlado pelo Estado. Nem a liberdade de crença era algo acessível aos gregos. Para os atenienses, podia-se crer ou desprezar os Deuses das cidades vizinhas, mas não crer nos Deuses locais era um crime fortemente reprimido pelo Estado. Sócrates, aliás, foi morto por causa disso.

Os antigos, no entanto, não conheciam nem a liberdade da vida particular, nem a liberdade na educação, nem a liberdade religiosa. A pessoa humana valia bem pouco diante da autoridade santa, e quase divina, que se chamava pátria ou Estado. O Estado não tinha somente, como em nossas sociedades modernas, direito de justiça em relação aos seus cidadãos. Podia punir sem que houvesse culpa, bastando que seu interesse estivesse em jogo. (COULANGES, p. 356)

É um erro pensar que na antiguidade as pessoas usufruíam de uma ampla liberdade. Para o homem comum, sequer se cogitava da ideia de que direitos que pudessem se sobrepor aos Deuses ou ao Estado. Independente da forma de governo - monarquia, aristocracia ou democracia - o homem antigo jamais se viu livre da arbitrariedade de seus superiores. Afinal, “[...] ter direitos políticos, votar, nomear magistrados, eis o que se chamava de liberdade; mas o homem nunca deixou de estar sujeito ao Estado” (COULANGES, p. 358). É nesse sentido que o francês Benjamin Constant (1767-1830) explica o que ele chamou de liberdade dos antigos:

[…] consistia em exercer coletiva, mas diretamente, várias partes da soberania inteira, em deliberar na praça pública sobre a guerra e a paz, em concluir com os estrangeiros tratados de aliança, em votar as leis, em pronunciar julgamentos, em examinar as contas, os atos, a gestão dos magistrados; em fazê-los comparecer diante de todo um povo, em acusá-los de delitos, em condená-los ou em absolvê-los; mas, ao mesmo tempo que consistia nisso o que os antigos chamavam liberdade, eles admitiam, como compatível com ela, a submissão completa do indivíduo à autoridade do todo. Não encontrareis entre eles quase nenhum dos privilégios que vemos fazer parte

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da liberdade entre os modernos. Todas as ações privadas estão sujeitas a severa vigilância. Nada é concedido à independência individual, nem mesmo no que se refere à religião. A faculdade de escolher seu culto, faculdade que consideramos como um de nossos mais preciosos direitos, teria parecido um crime e um sacrilégio para os antigos. Nas coisas que nos parecem mais insignificantes, a autoridade do corpo social interpunha-se e restringia a vontade dos indivíduos. Em Esparta, Terpandro não pode acrescentar uma corda à sua lira sem ofender os Éforos. Mesmo nas relações domésticas a autoridade intervinha. O jovem lacedemônio não pode livremente visitar sua jovem esposa. Em Roma, os censores vigiam até no interior das famílias. As leis regulamentavam os costumes e, como tudo dependia dos costumes, não havia nada que as leis não regulamentassem. (CONSTANT, 1980)

Por outro lado, Constant observou que a liberdade que se usufruía na Europa do século XVIII era completamente diferente, em essência e em objetivos. Foi o que chamou de liberdade dos modernos, e a definiu da seguinte maneira:

É para cada um o direito de não se submeter senão às leis, de não poder ser preso, nem detido, nem condenado, nem maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos. É para cada um o direito de dizer sua opinião, de escolher seu trabalho e de exercê-lo; de dispor de sua propriedade, até de abusar dela; de ir e vir, sem necessitar de permissão e sem ter que prestar conta de seus motivos ou de seus passos. É para cada um o direito de reunir-se a outros indivíduos, seja para discutir sobre seus interesses, seja para professar o culto que ele e seus associados preferem, seja simplesmente para preencher seus dias e suas horas de maneira mais condizente com suas inclinações, com suas fantasias. Enfim, é o direito, para cada um, de influir sobre a administração do governo, seja pela nomeação de todos ou de certos funcionários, seja por representações, petições, reivindicações, às quais a autoridade é mais ou menos obrigada a levar em consideração. (CONSTANT, 1980)

Encontra-se importante contribuição para o tema na obra de Isaiah Berlin (1909-1997). No ensaio intitulado “Dois conceitos liberdade”, Berlin classifica duas liberdades: a positiva e a negativa. Qual é a área em que o sujeito pode ser, ou fazer o que quiser, sem a interferência de outras pessoas? Qual fonte de controle que pode determinar que uma pessoa seja (ou faça) isso em detrimento daquilo? A resposta dessas perguntas ajudará a entender o que Berlin entende por liberdade negativa (na primeira) e liberdade positiva (na segunda). “Normalmente sou considerado livre na medida em que nenhum homem ou grupo de homens interfere com a minha atividade” (BERLIN, 2002, p.229). Percebe-se aqui a visão de que a liberdade se dá no sentido da ausência de coerção, quando não há ninguém deliberadamente impedindo o indivíduo de alcançar alguma meta. Quanto mais ampla for essa área de não-interferência, mais ampla será a liberdade - no sentido negativo (BERLIN, p. 230). As liberdades de religião, opinião, expressão e propriedade tinham de ser garantidas contra a invasão da arbitrariedade. No entanto, alguns filósofos políticos clássicos propõem que essa liberdade seja limitada pela lei, só que mesmo a lei deve reservar um espaço em que o indivíduo seja soberano. Esse é o entendimento do britânico J.S. Mill (1806-1873):

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O único propósito com o qual se legitima o exercício do poder sobre algum membro de uma comunidade civilizada contra a sua vontade é impedir dano a outrem. […] Na parte que diz respeito unicamente a ele próprio, a sua independência é, de direito, absoluta. Sobre si mesmo, sobre o seu próprio corpo e espírito, o indivíduo é soberano. (MILL, 1991, p. 53)

Isaiah Berlin novamente resume a questão. Vejamos:

[…] libertários como Locke e Mill na Inglaterra, e Constant e Tocqueville na França, [supõem] que exista certa área mínima de liberdade pessoal que não deve ser violada de modo algum, pois, do contrário, o indivíduo se verá numa área demasiado estreita até para aquele desenvolvimento mínimo de suas faculdades naturais que é o único a possibilitar a busca, e até a concepção, dos vários fins que os homens consideram bons, corretos ou sagrados. Segue-se que é preciso se traçar uma fronteira entre a área da vida privada e a da autoridade pública. (BERLIN, 2002, p. 231)

A liberdade positiva, de acordo com o autor, nasce de uma vontade do homem de ser o seu próprio senhor, de se autodeterminar e de agir de acordo com sua própria vontade. Nesse sentido, os conceitos de liberdade positiva e negativa são muito próximos, pois suas origens são comuns. Berlin alerta que apesar disso o desenvolvimento dessas duas concepções ao longo da história se deram de forma completamente diversa, chegando nos dias de hoje a resultados semânticos antagônicos e irreconciliáveis (Ibidem, p. 237). Ele exemplifica esse conceito positivo ao utilizar a metáfora do ego: se os desejos humanos mais irracionais e espontâneos não forem adequados ao homem (isto é, reprováveis pela ética ou pela eficiência), e ainda assim ele insistir em atendê-los, esse não pode ser um sujeito livre. O homem deve fazer aquilo que passa pelo elevado crivo da razão, atendendo aos seus propósitos maiores, inclusive aos ditames da ética. Se não puder fazer isso, então é um fraco, e jamais poderá se outorgar o título de homem livre. Aplicando essa ideia num contexto coletivo, os interesses individuais são os “desejos mais baixos” e os interesses do Estado são os “desejos mais elevados”, e sendo assim, torna-se legítimo reprimir aquela liberdade inferior (dos indivíduos) para se alcançar a liberdade superior e racional coletiva (do Estado).

Os perigos de se usarem metáforas orgânicas para justificar a coerção de alguns homens por outros, a fim de alçá-los a um nível mais “elevado” de liberdade, têm sido frequentemente apontados. Mas o que confere a esse tipo de linguagem a sua plausibilidade é o fato de que reconhecemos ser possível, e às vezes justificável, coagir os homens em nome de alguma meta (vamos dizer, a justiça ou a saúde pública) que eles próprios buscariam atingir se fossem mais esclarecidos, mas não o fazem porque são cegos, ignorantes ou corruptos. Isso torna fácil que eu me imagine coagindo outros para o bem deles, no interesse deles, e não no meu. (BERLIN, 2002, p. 238)

O conceito de liberdade negativa, atrelado a ausência de coerção, é o mesmo adotado por Hayek, afirmando que “a tarefa de uma política de liberdade deve consistir, portanto, em minimizar a coerção ou os seus efeitos negativos, ainda que não possa eliminá-la completamente” (HAYEK, 1983, p. 5). O mesmo autor estabelece

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a necessidade de se diferenciar outras liberdades, que não passam de meras amplitudes de uma mesma liberdade, mas que não se pode confundi-las. Liberdade política é o direito que os cidadãos têm de participar da escolha de seu governo, do processo legislativo e dos assuntos da administração pública. De acordo com Hayek, essa ideia deriva da aplicação daquele seu conceito de liberdade individual, mas dessa vez aplicada num contexto grupal, uma espécie de liberdade coletiva. Não se poderia dizer que um estrangeiro, ou alguém que não participasse desse processo, não pudesse ser um homem livre - de acordo com o conceito de liberdade individual. Afinal, ninguém está constrangendo ou impedindo, de alguma forma, as ações desse sujeito. (HAYEK, 1983)

Outra concepção de liberdade é a chamada “liberdade interior” (ou metafísica, subjetiva ou espiritual). Ela se refere à possibilidade do sujeito se determinar de acordo com sua vontade e consciência e não suas emoções ou impulsos passageiros, sendo o seu oposto à ação irracional ou até mesmo à fraqueza moral. Diz-se, assim, que um indivíduo que não consegue agir de acordo com sua própria reflexão e seus valores, é um “escravo de suas paixões” (HAYEK, 1983, p. 10).

No pensamento Hayekiano, o conceito de liberdade mais incompatível com a liberdade individual é aquele que o confunde com poder. Essa é a liberdade no sentido de alternativas, de possibilidades materiais, que se refere ao potencial de realização de desejos. Como se vê:

Não há equívoco mais perigoso, no que diz respeito ao conceito de liberdade individual, do que aquele em que se costuma incorrer ao se atribuir à palavra “liberdade” outro significado ao qual já nos referimos rapidamente: “liberdade” no sentido de possibilidade física “de fazer o que eu quero”, o poder de satisfazer nossos desejos, ou o grau de escolha de alternativas que se oferecem. Esta espécie de “liberdade” aparece nos sonhos de muitas pessoas sob a forma da ilusão deque podem voar, de que não estão sujeitas à gravidade e podem movimentar-se “livres como um pássaro” para qualquer lugar, ou ainda de que têm o poder de modificar seu meio ambiente de acordo com sua vontade. (HAYEK, 1983, p. 10)

O homem é livre na medida em que pode fazer, ou ter, aquilo que quer. De acordo com Hayek “tal equívoco só se tornou perigoso depois de ter sido deliberadamente atrelado ao ideário socialista” (HAYEK, 1983, p.11). Dessa forma, há inúmeras maneiras de aplicar sofismas que visam destruir a liberdade em nome da própria liberdade. Essa estratégia foi utilizada pelos estados totalitários em todo mundo, e quem conseguiu captar muito bem esse esquema foi George Orwell no clássico livro 1984, com o emblema “Guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força” (ORWELL, 2009). A justificativa para o argumento da liberdade enquanto poder é que, não faria diferença para um homem se algo que ele necessitasse fosse proibido por lei, ou se ele simplesmente não tivesse condições de obtê-lo: o resultado seria o mesmo. Porém, responderia Hayek, que um rico cortesão ou um importante general - apesar de viverem no luxo - teriam menos condições de se autodeterminar, ou mudar o rumo

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de suas vidas, do que um pobre camponês ou até mesmo um pedinte. Nesse exemplo nota-se que riqueza material (ou poder) não se confunde com a liberdade individual, podendo até, em algumas situações, ser inversamente proporcionais (HAYEK, 1983, p. 14).

Por fim, o autor coloca, enquanto sociedade, diante de uma difícil questão. Essas liberdades, pelas diferenças que possuem, não podem ser sustentadas ao mesmo tempo, no mesmo lugar, com a mesma proporção. Estamos diante de um dilema em que é preciso fazer uma escolha. Aumentar a liberdade individual pode significar diminuir outras liberdades, e vice-versa. E nesse conflito de valores, a verdadeira liberdade - a liberdade individual - tem sido colocada em segunda plano, o que serve de alerta para que não se tome, novamente, o caminho da servidão:

De qualquer maneira, porém, não há razão para se supor que, como empregamos a mesma palavra, essas “liberdades” sejam espécies diferentes do mesmo gênero. Isto gera perigosas tolices, uma armadilha verbal que leva às conclusões mais absurdas. Liberdade no sentido de poder, liberdade política e liberdade interior não são condições da mesma natureza que a liberdade individual: sacrificar parte de uma, a fim de obter uma parcela maior da outra, não nos permitirá ganhar um elemento comum de liberdade. Isto talvez nos permita obter um bem em troca de outro. Mas afirmar que exista um elemento comum que justifique falar do que esta troca implica para a liberdade é puro obscurantismo, o mais primitivo realismo filosófico, o qual supõe que, por definirmos essas condições com uma única e mesma palavra, elas necessariamente têm, também, um elemento comum. Entretanto, nós as queremos por motivos diferentes, e sua presença ou ausência têm efeitos diferentes. Se tivermos de escolher entre elas não podemos fazê-lo debatendo se a liberdade como um todo será ampliada, mas somente decidindo qual dessas condições é mais preciosa para nós. (HAYEK, 1983, p.14)

2 O conceito de constitucionalismo

A conceituação de “constitucionalismo” é algo essencial para o presente artigo. Pois, a depender do conceito que se adote, não será possível relacionar as mutações semânticas de “liberdade” ao fenômeno do constitucionalismo.

André Ramos Tavares, ciente da discussão conceitual que a doutrina faz sobre o constitucionalismo, apontou quatro conceitos síntese:

Numa primeira acepção, emprega-se a referência ao movimento político social com origens históricas bastante remotas que pretende, em especial, limitar o poder arbitrário. Numa segunda acepção, é identificado com a imposição de que haja cartas constitucionais escritas. Tem-se utilizado, numa terceira concepção possível, para indicar os propósitos mais latentes e atuais da função e posição das constituições nas diversas sociedades. Numa vertente mais restrita, o constitucionalismo é reduzido à evolução histórico-cultural de um determinado Estado. (TAVARES apud PUCCINELLI, 2012, p. 21)

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Denota-se que os conceitos, embora não sejam excludentes, são bastantes distintos entre si e podem provocar incompreensões, se adotados isoladamente.

Por exemplo, ao se adotar que o constitucionalismo restringe-se à “imposição de cartas constitucionais escritas”, não seria possível enquadrar os episódios mais importantes do constitucionalismo inglês. Resumir-se-ia este constitucionalismo ao Instrument of Government de 1653, um documento publicado durante o governo absolutista (e republicano) de Oliver Cromwell, aproximadamente um ano após a dissolução do Parlamento (SARLET, et al., 2015, p. 43) . Deturpando as principais características do constitucionalismo britânico.

É oportuno ressaltar que a doutrina costuma dividir os fenômenos constitucionalistas em grupos, de acordo com critérios cronológicos (v.g. Constitucionalismo Antigo, Medieval e Moderno), ideológicos (v.g. Constitucionalismo Liberal e Social) ou, também, de acordo com a nação (v.g. Constitucionalismo Inglês, Francês e Norte-Americano).

Cada experiência constitucional, no entanto, guarda suas peculiaridades. E nem sempre será possível analisar todas elas, o que torna imprescindível a utilização de classificações ou quaisquer outras técnicas que facilitem o trabalho do pesquisador.

Nesse sentido, o terceiro e o quarto conceitos supracitados são demasiadamente vagos, podendo atribuir a experiência do constitucionalismo a qualquer Estado. Por outro lado, o segundo conceito é muito restrito, não conseguindo sequer abarcar nem mesmo os três clássicos exemplos do constitucionalismo.

Pelos motivos expostos, o presente artigo dará preferência ao conceito para o qual o “constitucionalismo” é um movimento político-social, o qual tem como objetivos a limitação do poder arbitrário e a proteção de direitos e garantias fundamentais.

3 Evolução histórica do constitucionalismo

As constituições, tais como conhecemos hoje, são produtos da Modernidade, sobretudo do Iluminismo e das revoluções burguesas do século XVIII. Entretanto, podem-se vislumbrar exemplos de constituições muito mais remotos na história, como veremos adiante.

Ingo Wolfgang Sarlet assevera que:

Embora a noção de constituição, compreendida em sentido material, ou seja, como o modo de organização da sociedade política, seja bem mais antiga, o fato é que a ideia de uma constituição formal, no sentido de uma constituição jurídica ou normativa, portanto, como expressão de um poder constituinte formal, encontrou sua afirmação (teórica e prática) apenas a partir do final do século XVIII. (SARLET et al., 2015, p. 37-38)

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Existem grandes diferenças entre as constituições Antigas e as Modernas. Ao se contrapor as ideias de constituição em “sentido material” e “sentido formal”, vê-se isso nitidamente. Por hora, vale salientar que elas também se distinguem quanto à origem do poder constituinte, ao conteúdo e, sobretudo, ao conceito de liberdade adotado.

É evidente que constitucionalismo está intimamente ligado à de constituição. Por isso, ao mesmo passo que as constituições antigas e modernas distinguem-se, é possível pressupor que os constitucionalismos antigo e moderno apresentem divergências paralelas.

Atentando às diferenças dos constitucionalismos, a doutrina traz algumas classificações. Aqui será utilizada a mesma classificação da obra “Direito Constitucional: Teoria, história e métodos de trabalho” de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza: a) Constitucionalismo Antigo e Medieval; b) Constitucionalismo Moderno; b.1) Constitucionalismo Liberal-Burguês; b.2) Constitucionalismo Social.

Sendo possível associar o constitucionalismo com algumas experiências observadas na Antiguidade Clássica e no Período Medieval, abre-se espaço para estudar as raízes históricas do que entendemos hoje como constitucionalismo.

Logo, ao se relacionar o constitucionalismo com o estabelecimento de limites ao poder político, conclui-se que a primeira experiência constitucional da história provavelmente ocorreu no Estado Hebreu. Por se tratar de um Estado teocrático, os dogmas religiosos expressos na Bíblia representariam limites até mesmo para o soberano.

Por sua vez, a Cidade-Estado de Atenas é analisada com grande entusiasmo pela doutrina. Marcelo Novelino aduz que lá foi adotada a “mais avançada forma de governo: a democracia constitucional” (NOVELINO, 2015, p. 65) e que Atenas, por ter uma constituição (Sólon), seria um “exemplo clássico daquilo que representou o início da racionalização do poder”. Karl Loewenstein observa que Atenas foi, durante dois séculos (Idade de Ouro ou Período Clássico), um “Estado político plenamente constitucional” (NOVELINO, 2015, p. 65, apud LOWENSTEIN).

Cumpre enfatizar que a Constituição de Sólon (politeia) não era revestida de conteúdo propriamente jurídico, nem sequer caracterizava uma constituição em sentido moderno (formal), todavia, definia a organização política da polis e indicava um modelo para realização do bem comum. (SOUZA e SARMENTO, 2014, p. 70)

Além da politeia (constituição em sentido material), vislumbravam-se outras instituições, que podem ser compreendidas como correspondentes do constitucionalismo morderno. Tais instituições estruturavam uma espécie de democracia direta. Os homens livres reuniam-se em praça pública (ágora), sem intermediários ou representantes, para deliberarem em assembléias (ecclesia) e discutirem sobre

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assuntos que eram de interesse para a comunidade. (SOUZA e SARMENTO, 2014, p. 70-71)

A liberdade ateniense era restrita aos cidadãos atenienses, ou seja, homens (as mulheres eram excluídas) que não fossem escravos, estrangeiros ou descendentes de qualquer um destes. Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto trazem importante reflexão sobre o assunto:

A liberdade, no pensamento grego, cingia-se ao direito de tomar parte nas deliberações públicas da Cidade-Estado, não envolvendo qualquer pretensão à não interferência estatal na esfera pessoal. Não se cogitava na proteção de direito individuais contra os governantes, pois se partia da premissa de que as pessoas deveriam servir à comunidade política, não lhe podendo antepor direitos de qualquer natureza. Tal concepção fundava numa visão organicista da comunidade política: o cidadão não era considerado em sua dignidade individual, mas apenas como parte integrante do corpo social. O cidadão virtuoso era o que melhor se adequava aos padrões sociais, não o que se distinguia como indivíduo. A liberdade individual não era objeto da especial valoração inerente ao constitucionalismo moderno. (SOUZA E SARMENTO, 2014, p. 70-71)

Logo, a limitação do poder no constitucionalismo grego preconizava a oportunidade dos homens livres (uma pequena parcela da população) participarem das decisões de sua polis.

Roma, assim como ocorreu no Estado Hebreu e na mais importante polis grega que era Atenas, desenvolveu uma fórmula de limitação do poder. No período republicano, já era possível notar uma separação de poderes políticos entre o Consulado, o Senado e a Assembleia. Alguns pensadores romanos, além de tudo, cogitavam a ideia de se implementar um governo misto, visando à moderação do poder.

O constitucionalismo romano já revelava uma maior proteção do indivíduo. Foram reconhecidos vários direitos civis aos cidadãos romanos. A supremacia da coletividade, presente na civilização grega, foi um tanto mitigada. Nesse sentido, Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto foram cristalinos:

[...] a concepção então vigente já não demandava, como na Grécia, absoluta submissão do indivíduo à coletividade. De fato, já despontava ali a valorização da esfera individual e da propriedade, concomitante à sofisticação do Direito Privado romano e ao reconhecimento de direitos civis ao cidadão de Roma, como o direito ao casamento (jus connubium), à celebração de negócios (jus commercium), à elaboração de testamento (faccio testamenti) e à postulação em juízo (legis acciones). (SOUZA e SARMENTO, 2014, p. 84)

Após a queda do Império Romano, notadamente o início da Idade Média para a escola francesa, o poder político dispersou-se. Nenhuma instituição detinha o

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monopólio do poder, tampouco seria possível falar em Estado soberano. A Igreja, os reis, os senhores feudais, as cidades, as corporações de ofício e o Imperador, eram todos titulares de poder político, sem que nenhum se sobrepusesse ao outro. Essa limitação do poder, através da dispersão, caracteriza o constitucionalismo medieval para Maurizio Fioravanti. (SOUZA e SARMENTO, 2014, p. 71-72)

Pouco a pouco, o poder foi sendo centralizado na mão de alguns poucos homens. No início do século XIII, Inglaterra, O Rei João sem Terra, em função de políticas autoritárias, foi forçado a assinar um documento pelo qual se comprometia a respeitar os direitos dos nobres ingleses. Documento que foi assinado em 1215 e é usualmente conhecido como Magna Carta.

A Magna Carta é, sem dúvidas, um grande marco do constitucionalismo. Se, por um lado, ela reconhecia o poder do soberano, por outro, ela submetia o poder de criação de novos impostos ao crivo dos nobres, sob a forma de autorização que poderia ser concedida através de assembleia.

Traçando um paralelo entre os Constitucionalismos Antigo, Medieval e Moderno, pode-se conceber que a limitação do poder político foi tornando-se cada vez mais sofisticadas. Os instrumentos dos hebreus e gregos, por exemplo, rapidamente desembocaram em governos tirânicos e frequentemente cerceavam os direitos individuais. Roma já revelava maior interesse pelos direitos privados. A Magna Carta, por sua vez, ostentava evidente proteção da nobreza contra os governantes. Finalmente, o constitucionalismo moderno veio para defender os governados do poder arbitrário dos governantes. E foi ainda além, idealizou a defesa da menor das minorias, daquele que é mais suscetível às arbitrariedades, o indivíduo.

Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto sintetizaram, com admirável clareza, os traços do constitucionalismo (moderno):

Naquele contexto, passou-se a valorizar o indivíduo, concebido como um ser racional, titular de direitos, cuja dignidade independia do lugar que ocupasse no corpo coletivo. Evoluiu-se para o reconhecimento de direitos universais, pertencentes a todos. A sociedade não era concebida como um organismo social, formado por órgãos que exerciam funções determinadas (clero, nobres, vassalos). Ela passa a ser concebida como um conjunto de indivíduos, como uma sociedade “atomizada”, formada por unidades iguais entre si. As atividades sociais (o trabalho, por exemplo) deixam de ser atributos naturais relativos ao lugar ocupado no organismo social, e passam a decorrer da vontade livremente declarada pelos indivíduos. O contrato se torna o instituto por excelência de formalização de vínculos sociais. (SOUZA e SARMENTO, 2016, p. 74)

Notadamente, o contexto histórico desse fenômeno era turbulento. Precedido pelas perseguições religiosas da Igreja, pela Reforma e pela Contrarreforma. Permeado não só pelas ideias do Renascentismo como também aquelas originadas pelo

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Iluminismo. Repleto de déspotas, que governavam Estados Absolutistas (DALLARI, 2010, p. 69-99).

Não se pretende aqui averbar, no esteio histórico do constitucionalismo moderno, as particularidades de cada uma de suas versões. Nem mesmo tratar das diferenças que as três versões mais importantes (inglês, francês e norte-americano) possuem. Mas levantar os pontos mais importantes, certamente comuns a elas.

O constitucionalismo moderno funda-se nas premissas de que (1) o Estado precisa ser limitado, e o modo mais eficiente de fazê-lo é dividindo seus poderes, (2) é mister garantir direitos individuais (ou negativos) aos cidadãos, que envolvem uma postura absenteísta do poder político, e a necessidade de legitimar o governo através da democracia representativa (SOUZA E SARMENTO, 2014, p. 72-74). Mais do que isso, a democracia revela-se outra forma de contenção do poder político, uma meio pacífico de trocar os governantes e até mesmo de transformar o Estado, tendo em vista a possibilidade de elaboração de Emendas Constitucionais.

O constitucionalismo moderno pode dividido em dois momentos distintos, de acordo com os movimentos ideológicos que os impulsionaram, o constitucionalismo liberal-burguês e o constitucionalismo social.

Tendo como momento histórico, principalmente, os séculos XVII e XVIII, o constitucionalismo liberal alimentou não só a ideia que o Estado deveria ser contido para que os direitos individuais fossem garantidos, mas que deveria ser contido através de uma constituição formal.

Ao se falar de constitucionalismo liberal, não se pode deixar de lado o movimento liberal e, mormente, a filosofia liberal. Curiosa é a afirmação de Milton Friedman de que o ponto central da filosofia liberal não é a liberdade negativa, como muitos pensam, mas a crença na dignidade do indivíduo:

O cerne da filosofia liberal é a crença na liberdade do indivíduo, em sua liberdade de extrair o máximo de suas capacidades e oportunidades, de acordo com as próprias luzes, dependendo da condição de que não interfira na liberdade dos outros indivíduos de fazer o mesmo. Isso implica crença na liberdade do indivíduo, em um sentido; e em desigualdade, em outro. Cada um tem igual direito à liberdade. Trata-se da prerrogativa importante e fundamental, exatamente porque as pessoas são diferentes, porque cada uma quererá fazer coisas diferentes com sua liberdade e, no processo, contribuir mais que outra para a cultura geral da sociedade em que convivem muitos indivíduos. (FRIEDMAN, 2014, p. 198)

A técnica empregada, de estabelecer uma constituição formal, foi indispensável para o sucesso do constitucionalismo liberal: o mesmo “poder supremo” (LOCKE, s. a., p. 12) que entregava o poder político nas mãos do Estado concedia direitos e

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garantias aos indivíduos e, ainda, dividia o poder político em muitas partes. Tratava-se de uma tentativa de acabar com as arbitrariedades dos regimes absolutistas.

Tal “poder supremo”, ora idealizado por John Locke, veio a ser chamado de “poder constituinte” por Emmanuel Joseph Sieyés, na obra “A Constituinte Burguesa – Qu’est-ce que le Tiers État?”, definição que foi, posteriormente, abraçada pela doutrina.

Resumidamente, o poder constituinte originário é: (1) ilimitado, porquanto não possui limites jurídicos, (2) incondicionado, uma vez que não há quaisquer regras sobre sua forma e conteúdo, (3) autônomo, pois cabe apenas ao seu titular, (4) permanente, por continuar existindo mesmo após o término de sua obra, e (5) inalienável, tendo em vista a impossibilidade de uma nação transferi-lo para outra nação, grupo ou indivíduo. (NOVELINO, 2009, p. 34)

Nesse sentido, a Teoria Decisionista de Carl Schmitt só tem a engrandecer o tema. Esta teoria dividiu as decisões políticas em decisões comuns e decisões políticas fundamentais. Decisões comuns são aquelas tomadas de forma quotidiana pelos representantes do povo, que podem ser exemplificadas como as decisões administrativas do executivo. Decisões políticas fundamentais, ou raras, são decisões dotadas de legitimidade, por serem tomadas pelo próprio detentor do poder político: o povo. As decisões do poder constituinte são decisões políticas fundamentais. (PUCCINELLI Jr, 2012, p. 34)

Pode passar despercebido, mas John Locke já afirmava que a liberdade deveria ser restringida, e concedida, através de um ato consensual - que em muito lembra o que Schmitt denomina “decisão política fundamental”-, isto é, um pacto feito entre os indivíduos de uma comunidade:

A liberdade de um indivíduo na sociedade não deve estar subordinada a qualquer poder legislativo que não aquele estabelecido pelo consentimento na comunidade nem sob o domínio de qualquer lei, a não ser aquele promulgado por tal legislativo conforme o crédito que lhe foi confiado. (LOCKE, s.a., p. 41)

Após a implementação dos ideais liberais, através de constituições que resguardavam essencialmente direitos negativos, o Estado Liberal não ficou imune a críticas. Muitas correntes de pensamento que visavam à distribuição de renda ganharam força, notadamente o socialismo utópico, o marxismo e a doutrina social da Igreja Católica (SOUZA E SARMENTO, 2014, p. 82).

Na mesma proporção que as nações enriqueciam, a desigualdade tornava-se cada vez mais evidente. As revoluções industriais e, mais especificamente, a especialização do trabalho (SMITH, 2006, p. 9-16) fizeram a produção multiplicar de forma que a humanidade jamais havia experimentado. No entanto, as

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políticas de restrição de concorrência em determinadas profissões, de aumentar artificialmente a concorrência de outras e de obstruir a circulação de mão-de-obra e capital, desencadearam uma desigualdade social muito maior do que as “desigualdades decorrentes das naturezas dos próprios empregos” (SMITH, 2006, p. 98-138). Isso impulsionou, veementemente, os movimentos coletivistas.

No âmbito constitucional, os direitos coletivos ganharam força. Disseminavam-se as ideias de se fornecer educação, saúde e previdência públicas, além da proteção dos trabalhadores e outras políticas públicas redistributivas. Como bem colocam Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto:

No novo cenário, o Estado incorpora funções ligadas à prestação de serviços públicos. No plano teórico, a sua atuação passa a ser justificada também pela promoção da igualdade material, por meio de políticas públicas redistributivas e do fornecimento de prestações materiais para as camadas mais pobres da sociedade, em áreas como saúde, educação e previdência social. Naquele contexto, foi flexibilizada a proteção da propriedade privada, que passou a ser condicionada ao cumprimento da sua função social, e relativizada a garantia autonomia negocial, diante da necessidade de intervenção estatal em favor das partes mais débeis das relações sociais. (SOUZA E SARMENTO, 2014, p. 83)

O projeto de distribuição de renda e a defesa dos hipossuficientes pressupunham um aumento da invasão do Estado na esfera do indivíduo e, consequentemente, a flexibilização (quando não a completa estigmatização) de direitos individuais. Assim, constitucionalismo social é considerado um gatilho para o crescimento estatal: suas políticas importam necessariamente uma diminuição da liberdade e da propriedade para a concretização dos fins coletivistas.

Nesse sentido, não se pode olvidar a contribuição de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto:

Nem sempre o Estado Social pautou-se pelo respeito à lógica do Estado de Direito. Em diversos países, a crise do liberalismo levou o ideário constitucionalista a ser visto como relíquia de museu. A necessidade de construção de um Estado mais forte, para atender às crescentes demandas sociais, foi utilizada como pretexto para aniquilação dos direitos individuais e das franquias democráticas. Este fenômeno foi intenso nas décadas de 1930 e 1940, com a instauração de regimes totalitários (Alemanha e Itália), ou, mais frequentemente, autoritários (Brasil, durante o Estado Novo). Nestas situações, pode-se falar em Estado Social, mas não em constitucionalismo social. (SOUZA E SARMENTO, 2014, p. 83-84)

Após os experimentos nazistas e fascistas, cada vez mais, o direito vem apresentando soluções que dão preferência às normas-princípio, ao Judiciário e ao método da ponderação, em detrimento das normas-regra, do Legislativo e do método subsuntivo. A essa corrente doutrinária, que é tudo menos homogênea, dá-se o nome de neoconstitucionalismo, pós-positivismo ou constitucionalismo pós-moderno.

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Finalmente, deve-se enfatizar que o constitucionalismo social vem enfrentando diversas crises, com destaque para a falência dos Estados socialistas e os frequentes retrocessos do Welfare State (SOUZA e SARMENTO, 2014, p. 82-85). Implicando em mudanças sistemáticas do fenômeno constitucionalista, como já foi dito, que culminaram no “constitucionalismo pós-moderno”. O presente artigo, no entanto, não analisará rigorosamente o constitucionalismo pós-moderno, encerrando suas análises sobre a evolução do constitucionalismo neste momento.

Considerações finaisA liberdade dos antigos, que reinava na Antiguidade Clássica, dava-se mais

no sentido de uma deliberação coletiva sobre os assuntos públicos do que em sentido individual. Logo, o constitucionalismo antigo refletia esta ideia quando limitava o poder ao oportunizar aos cidadãos livres o direito de participar das decisões.

A liberdade dos modernos, ou liberdade negativa, defende o indivíduo acima de tudo. Procura delimitar uma clara divisão entre a esfera pública e a privada, protegendo o sujeito tanto da coerção estatal como do arbítrio de terceiros. O constitucionalismo moderno segue esta orientação. Busca a limitação do poder político através da concessão de direitos e garantias fundamentais.

No século XIX, houve uma difusão do conceito de liberdade positiva, ou da liberdade enquanto poder. Isso repercutiu a derrocada do constitucionalismo liberal e a ascensão do constitucionalismo social. Essa passagem se deu com a criação de direitos sociais para garantir a liberdade positiva.

O constitucionalismo social prometia a conciliação das várias liberdades, mas terminou revelando-se um gatilho para o crescimento desenfreado do Estado, que destruía a liberdade de coerção na tentativa de entregar a “liberdade positiva”. Eis o motivo da crise dos estados sociais – ora autoritários, ora totalitários.

Nesse sentido, a história do século XX é contundente: as sociedades que primaram pela liberdade positiva em detrimento da liberdade negativa, terminaram sem nenhuma delas. Enquanto as sociedades que colocaram a liberdade negativa em primeiro lugar, terminaram com uma boa parcela de ambas.

À medida que se discorre sobre as transformações do conceito de liberdade e paralelamente se traça o histórico do constitucionalismo, mais cristalina fica a tese de que esses dois pontos são conexos.

Despertam, finalmente, duas grandes conclusões sobre o tema: o conceito de liberdade é uma excelente ferramenta para o estudo dos constitucionalismos, pois influencia diretamente a forma que o constitucionalismo adquire dentro de uma sociedade; o conceito de liberdade, ao moldar a forma e o tamanho dos constitucionalismos, influencia diretamente no (eventual) produto deles - as constituições. Nesse sentido, o constitucionalismo pode ser considerado a medida das constituições.

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