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ANAIS XII SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL 1336 MATRIX, CAOS E DIREITO: UMA INTRODUÇÃO PARA UMA TEORIA DE JUSTIÇA A PARTIR DA TEORIA DO CAOS 1358 Matrix, chaos and Law: An introduction to a theory of justice based on Chaos Theory Igor Domingos do Altíssimo 1359 Resumo A proposta deste trabalho é estabelecer uma relação entre a teoria de justiça de John Rawls com a Teoria do Caos, valendo-se da metáfora do filme Matrix. A partir de uma metodologia dialética, estabelecemos interações com fontes transdisciplinares. No intuito de desvelar um legítimo modus operandi dos princípios fundamentais da justiça: liberdade e igualdade, afastamos da proposta positivista de previsibilidade e, por intermédio da Teoria do Caos, aproximamos de uma perspectiva probabilística, na qual os princípios atuam como reguladores do sistema e não como meros comandos de otimização. À luz da teoria de Estado Procedimentalista, a qual está intrinsecamente conectada à compreensão de que Estado, Constituição, Democracia e Direitos Fundamentais são noções que se co-implicam, busca-se a superação de uma perspectiva contratualista e, a assumpção de uma lógica dinâmica e evolutiva da sociedade. Palavras chaves: Teoria do Caos. John Rawls. Matrix. Teoria de Justiça. Direitos Fundamentais. Abstract The purpose of this paper is to establish a relationship between John Rawl’s theory of justice and Chaos Theory using the metaphor of the movie Matrix. Starting 1358 Artigo submetido em, pareceres de aprovação em, aprovação comunicada em 17/05/2016. 1359 Graduando em Direito pelo Centro Universitário Sete Lagoas (UNIFEMM) igor.altissimo@gmail. com

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ANAIS XII SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL 1336

MATRIX, CAOS E DIREITO: UMA INTRODUÇÃO PARA UMA TEORIA DE JUSTIÇA A PARTIR DA TEORIA DO CAOS1358

Matrix, chaos and Law: An introduction to a theory of justice based on Chaos Theory

Igor Domingos do Altíssimo1359

Resumo A proposta deste trabalho é estabelecer uma relação entre a teoria de justiça de

John Rawls com a Teoria do Caos, valendo-se da metáfora do filme Matrix. A partir de uma metodologia dialética, estabelecemos interações com fontes transdisciplinares. No intuito de desvelar um legítimo modus operandi dos princípios fundamentais da justiça: liberdade e igualdade, afastamos da proposta positivista de previsibilidade e, por intermédio da Teoria do Caos, aproximamos de uma perspectiva probabilística, na qual os princípios atuam como reguladores do sistema e não como meros comandos de otimização. À luz da teoria de Estado Procedimentalista, a qual está intrinsecamente conectada à compreensão de que Estado, Constituição, Democracia e Direitos Fundamentais são noções que se co-implicam, busca-se a superação de uma perspectiva contratualista e, a assumpção de uma lógica dinâmica e evolutiva da sociedade.

Palavras chaves: Teoria do Caos. John Rawls. Matrix. Teoria de Justiça. Direitos Fundamentais.

Abstract The purpose of this paper is to establish a relationship between John Rawl’s

theory of justice and Chaos Theory using the metaphor of the movie Matrix. Starting

1358 Artigo submetido em, pareceres de aprovação em, aprovação comunicada em 17/05/2016.1359 Graduando em Direito pelo Centro Universitário Sete Lagoas (UNIFEMM) igor.altissimo@gmail.

com

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from a dialectic methodology, we establish interactions with transdisciplinary sources. In order to reveal a legitimate modus operandi of the fundamental principles of justice, namely liberty and equality, we get away from the positivist proposition of predictability and, through Chaos Theory, approach a probabilistic perspective, where principles act as system regulators rather than mere optimization controls. In light of the theory of the Proceduralist State, which is intrinsically connected to the view that the State, Constitution, Democracy and Fundamental Rights are notions that imply each other, we try to go beyond a Social Contract perspective and adopt a dynamic and evolutionary logic of society.

Keywords: Chaos Theory. John Rawls. Matrix. Theory of Justice. Fundamental rights.

Sumário

1- Introdução. 2- Bem-vindo ao mundo real: evolução do paradigma científico. 2.1. Lorenz, caos, computadores e Direito. 3- Pílula vermelha ou azul: o problema da escolha racional em John Rawls 3.1- O estado original: o que veio antes da Matrix? 3.2- A dependência das condições iniciais na origem dos Direitos Fundamentais. 4- Considerações finais.

1. Introdução

Caos, Direito e Matrix e Caos. Como relacionar essas ideias e apresentá-las ao universo jurídico? Superado o paradigma determinista que dominou o discurso científico por tanto tempo, agora, na modernidade, certezas são reservadas para os manuais.

Neste novo modelo a incerteza aparece como elemento central da condição humana. O indivíduo volta ao centro do palco1360 e, o real passa a ser compreendido através do olhar da subjetividade, esquece-se a objetividade irrealista. O olhar do Oráculo de Delfos sobre o destino. Conhece-te a ti mesmo? Será que existe destino? Não é possível dizer nem pensar o que não é. Mas e o que será?

Essas questões foram introduzidas na filosofia por Epicuro, descendente intelectual de Demócrito, para quem o universo era formado por átomos em constante movimento em trajetórias paralelas no vazio. Neste mundo em que os átomos nunca colidiriam, não poderia surgir nada novo. Como poderia surgir a liberdade em um universo determinista? Epicuro (Apud PRIGOGINE: 2011, p. 18) dizia que: 1360 Como afirma Aronne (2006, p. 26, grifos acrescidos): “o compromisso de nossa pesquisa

está diretamente relacionado aos seus resultados práticos no Direito e na Sociedade. Com a construção de um Estado Social includente, plural e democrático realizador dos direitos fundamentais, não obstante os constantes ataques à Constituição Federal de 1988. Mais ainda. Com o homem concreto e complexo, nela idealizado à luz da dignidade humana enquanto valor transformador.”

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Quanto ao destino, que alguns consideram o senhor de tudo, o sábio ri-se dele. De fato, mais vale ainda aceitar o mito sobre os deuses do que se sujeitar ao destino dos físicos. Pois o mito nos deixa a esperança de nos conciliarmos com os deuses por meio das honras que nós lhes rendemos, ao passo que o destino tem um caráter de necessidade inexorável.

Incerto? Aleatório? Não. Tem a ver com uma revolução científica iniciada por um acidente nos anos 60. É o momento do Direito se (re)encontrar com as outras áreas do conhecimento. Este é o objetivo deste artigo. Transdisciplinarmente. Lançar as bases de uma nova perspectiva de se estudar as ciências jurídicas.

Este artigo volta-se para o mito, a fantasia, arte, literatura e o cinema para falar da física e do Direito, porque a realidade não é mais suficiente. Blasfema contra o ortodoxismo científico, o formalismo da técnica científica, porque não se busca conceder-lhes respostas certas, modelos a serem aplicados autonomamente. Antes, busca-se perturbá-los, inquietá-los, fazê-los questionar. Procura-se trazer à tona aquele caos que existe em todos nós, para, então, enxergarmos o caos também ao nosso redor.

A metodologia adotada é aquela à qual Aronne (2010, p. 203) faz referência, um

pensamento tópico-sistemático identificado em Canaris, para alcançar no diálogo entre a Teoria dos Sistemas, Pensamento Pós-Estruturalista, Teoria do Discurso e da Linguagem, Teoria da Complexidade e Teoria do Caos, embalada nos braços existencialistas do novo paradigma que se erige transdisciplinarmente na pós-modernidade, tudo isso somado às descobertas da Quântica no Século XX e uma Jurisprudência dos Sistemas Dinâmicos, Sensíveis e Não Lineares. Uma Jurisprudência do Caos.

A física tropeça no caos, quando a busca pela certeza e precisão revelou os grandes abismos de incertezas presentes até no mais simples fenômeno. Esse tropeço está intimamente ligado ao surgimento do computador – e aqui faz-se a conexão deste tema com a trilogia dos filmes Matrix. O computador foi a invenção que, antes de revolucionar a comunicação humana, revolucionou a forma como os cientistas fazem pesquisas. Nas décadas de 1950/1960, essa grande máquina barulhenta, movida a válvulas, cujo maior feito era imprimir números em um papel, permitiu aos cientistas colocarem em prática a intuição newtoniana/laplaciana do universo.

O filme Matrix retrata o objetivo dos cientistas de modelarem o universo determinista newtoniano em uma máquina. O universo de Newton realmente continha a intuição de que uma inteligência superior – até mesmo divina – que conheceria todas as leis que regem a natureza e, conhecendo-as, pode determinar qualquer estado. No longa, essa inteligência superior é personificada pelas máquinas que simulam o universo humano para escravizá-lo.

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O Direito também esbarra no caos quando busca superar o positivismo, objetivismo e pureza da ciência jurídica. A elevação dos princípios à categoria de normas jurídicas produz um problema hermenêutico que não é satisfatoriamente resolvido pela doutrina positivista. A primazia dos princípios, a constitucionalização do direito infraconstitucional, revela um sistema jurídico caótico, aberto, não-linear, de geometria fractal e apenas determinista através da ação de um atrator. Esse novo paradigma (re)aproxima a ciência jurídica com a física, através da Teoria do Caos, e impõem-nos uma mudança de perspectiva.

O Direito também está em Matrix, e aqui focamos em uma cena muito significativa para toda a trilogia do filme: o encontro de Neo com o Arquiteto no segundo filme Matrix: Reloaded. Apesar de podermos encontrar relevantes questões jurídico-filosóficas em todos os três filmes dos irmãos Wachowski, essa cena é possivelmente a mais relevante para se entender os filmes. Quando o Arquiteto (não) responde a pergunta de Neo, “Por que eu estou aqui?”, o programa dá como resposta a definição do caos, as irregularidades sistêmicas decorrentes de imprecisões das medidas e variáveis das equações que integram a Matrix.

O problema, como Neo eventualmente deduz, está na liberdade de escolha. Um atributo essencialmente humano, a liberdade é desconhecida pela máquina (divindade) que não pode traduzi-la em um sistema de regras determinista (positivismo). Portanto, há aqui o antigo paradoxo do livre-arbítrio em um universo determinista: permitir que as pessoas escolham livremente inevitavelmente irá produzir aqueles que escolhem não obedecer (Zion).

Na cena do Arquiteto há também outra relevante questão, a criação do universo. Matrix, o universo humano, foi criado, por uma inteligência superior, e isso não é um fato desprezível. Nem sempre foi majoritariamente aceito pelo conhecimento científico que o universo físico teve um começo. A Criação foi, por muito tempo, um mito religioso. A ideia de que o Universo, do ponto de vista da física, teve um começo, um Big Bang, surge como uma consequência da Teoria da Relatividade de Einstein, mais a observação de Hubble de que o Universo estava em expansão. Essa conclusão de que o Universo não é estático e que necessariamente teve um começo levanta uma série de perguntas: o que havia antes? O Universo terá um fim? Qual a configuração das partículas no estado inicial do Universo levou-o a ter essa configuração atual?1361

O Direito não é indiferente a esses questionamentos. Desde os jusnaturalistas como Rosseau, Locke, Hobbes, pergunta-se sobre a existência de um momento anterior à sociedade humana, um Estado de Natureza. Esses filósofos contratualistas do século XVIII idealizaram um acordo chamado de Contrato Social que os homens firmariam entre si com o fim de constituírem um Estado. Essa ideia dos contratualistas é retomada contemporaneamente pelo filósofo John Rawls que também idealiza um

1361 Sobre isso ver mais em Prigogine (2011, p. 13).

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estado original no qual os seres humanos firmariam um acordo quanto aos princípios de justiça que serviriam de base para as instituições daquela sociedade.

O presente artigo pretende trabalhar dialeticamente com a física, através da Teoria do Caos, e o estado original da Teoria da Justiça como Equidade proposta por Rawls, mostrando a presença de elementos de ambos no filme Matrix. O problema que se busca solucionar é precisamente o da origem dos direitos fundamentais. Se tais foram criados ou construídos?

2. Bem-vindo ao mundo real: evolução do paradigma científico

A ideia do caos está presente no ideal humano desde longa história. Na mitologia clássica dava-se o nome de Caos ao estado que se apresentavam o mar, a terra e o céu antes da criação: “uma informe e confusa massa, mero peso morto, no qual, contudo, jaziam latentes as sementes das coisas” (BULFINCH: 2006, p. 23). Somente a partir da ação de Deus e da Natureza a terra foi separada do mar e do céu e colocados em seus lugares e surgiu Ordem (Ibidem).

Na mitologia romana, o Caos era representado pela deusa Janus que possuía quatro faces: uma voltada para o Alfa, ou o Começo, outra voltada

para o Ômega, o Final, uma voltada para dentro e uma para fora. Já a Ordem tinha por divindade a deusa Themis, que também representava a Justiça e ainda hoje pode ser encontrada como símbolo jurídico, ostentando em uma das mãos a espada e na outra uma balança e tendo os dois olhos vendados. A relação entre as duas deusas representa a relação entre o Caos e a Ordem na concepção humana (ARONNE: 2010, p. 23-24).

O homem é inserido em um Universo já ordenado, portanto a Ordem lhe é anterior e dada como um fato característico da natureza. Na Modernidade não havia espaço para adoração a Janus, os homens lançaram-se cegos nos braços de Themis e renegaram o Caos à obscuridade.

No templo moderno de Themis, não há adoração possível para Janus. Como a deificação ocorre pelo discurso, não há signos remissíveis à incerteza e sua simples referência já é suficiente para a marginalização. Quem não crê na divindade da norma ou referência, como dogma e certeza (portanto, fé), “autoperiferiza-se”, no altar Iluminista dos deuses da Razão, que centralizou o olhar cartesiano dos fiéis no templo (sem ídolos?) da Scientia (ARONNE: 2010, p. 24).

Contudo, esse dualismo de Janus e Themis foi sempre uma ilusão. Mesmo na ação de Themis a influência de Janus esteve sempre presente. A ciência que construía cegamente suas certezas esquecia-se que elas provinham de suas próprias mãos e davam-nas caráter absoluto, impessoal. Themis esteve nos braços de Janus o tempo todo (Ibidem).

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A Modernidade é um processo contínuo de liquefação dos sólidos medievais, absolutos, universais, produtos de uma vontade divina. No entanto, não tinha por fim a destruição dos sólidos, como alerta Bauman (2001, p. 9), mas a sua substituição por “novos e aperfeiçoados sólidos”. O Iluminismo substitui Deus pela Razão, na pretensão de construir sólidos mais aperfeiçoados (Ibidem), mas que são “artificiais sem tempo nem espaço, cujo papel é sintetizar-nos e, assim, paradoxalmente constituir-nos, entre seus ritos e dogmas, em indivíduos” (ARONNE: 2010, p. 27).

Esse ambiente de certeza na capacidade racional humana de poder codificar todo o conhecimento é o que leva Lorde Kelvin a dizer que não havia mais nada a ser descoberto. A descoberta do átomo foi, por um momento pelo menos, percebido como a descoberta do elemento fundamental de todo o Universo (Ibidem, p. 28). Indivisível, não havia lacunas, contradições, tudo era ordenado, harmônico, preciso.

Já no fim do século XIX uma revolução se inicia. Maxwell unificou a eletricidade com o magnetismo, elaborando a teoria dos campos eletromagnéticos. Mas a grande contribuição de sua pesquisa foi determinar que a matéria não se toca nunca e a interação entre os objetos ocorre pela interação de campos elétricos e magnéticos. Entre a matéria havia o vazio, o nada.

Thomson irá, também no fim do século, demonstrar que o átomo é divisível descobrindo a existência do elétron. O vazio vai se alargando. No início do século XX a Teoria da Relatividade de Einstein abala os resquícios de absolutismos da Teoria da Gravidade de Newton, relativizando os conceitos de tempo e espaço e, paradoxalmente, unindo os dois em uma só ideia de espaço-tempo. O espaço-tempo não é mais fixo e imutável, sendo alterável pela força gravitacional dos corpos. A gravidade não atua mais como uma força mística à distância em um éter espacial, mas o próprio espaço é alterado e afeta o movimento dos corpos inseridos nele. O tempo já não se “move” igualmente para todos os observadores, mas é afetado pela gravidade e aceleração dos objetos. Os absolutos morrem e as incertezas aparecem. Janus é revelada.

A incerteza reaparece com Heisenberg. A mão de Janus é descoberta lançando os dados de Themis. O caos dentro da ordem e a ordem por detrás do caos. Rutherford remodela o átomo, que passa a ser entendido como formado por um núcleo de prótons e nêutrons e uma nuvem de elétrons orbitando-o. Mais tarde, Bohr demonstra que a nuvem de elétrons são níveis de energia e à medida que eles se movem pelos níveis emitem fótons. Restou-se, com isso, demonstrada a natureza dual da luz, sendo tanto partícula quanto onda. É descoberto um novo mundo (ou seriam vários mundos igualmente reais?), o mundo da Física Quântica, regido por leis que desafiam o nosso conhecimento sobre o mundo até agora. Com a Era da Física Quântica rompem-se as certezas que a Física Newtoniana podia dar a respeito do mundo físico” (ARONNE: 2010, p. 30).

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Ilya Prigogine (2011, p. 9-10) relaciona o problema do paradoxo do determinismo ao que ele chama de flecha do tempo, ou paradoxo do tempo.

O futuro é dado ou está em perpétua construção? É uma ilusão a crença em nossa liberdade? É uma verdade que nos separa do mundo? A questão do tempo está na encruzilhada do problema da existência e do conhecimento. O tempo é a dimensão fundamental de nossa existência, mas está também no coração da física, pois foi a incorporação do tempo no esquema conceitual da física galileana o ponto de partida da ciência ocidental.

A física newtoniana assumia uma simetria temporal, uma equivalência entre passado e futuro. O tempo seria um absoluto, assim como o espaço. O paradoxo da flecha do tempo aparece então apenas como contradição ao paradigma newtoniano. Somente recentemente a ciência passou a se interessar pelos chamados processos dissipativos, ou processos de não equilíbrio. Esses fenômenos têm por característica serem irreversíveis. A irreversibilidade era vista como existente apenas em alguns poucos fenômenos, como um erro de aproximação decorrente da falta da informação completa, mas não mais (PRIGOGINE: 2011, p. 10-12).

A entropia é o elemento distintivo entre os processos reversíveis e irreversíveis (PRIGOGINE: 2011, p. 25-26). Uma das explicações para a entropia é a falta de conhecimento do observador sobre todos os microestados dos fenômenos.

Prigogine (2011, p. 31) chega a três conclusões diante dos recentes desenvolvimentos dos processos irreversíveis:

1 Os processos irreversíveis (associados à flecha do tempo) são tão reais quanto os processos reversíveis descritos pelas leis tradicionais da física; não podem ser interpretados como aproximações das leis fundamentais. 2 Os processos irreversíveis desempenham um papel construtivo na natureza. 3 A irreversibilidade exige uma extensão da dinâmica.

Deve-se ao professor Ricardo Aronne (2010, p. 138) a relação entre a ideia dos sistemas irreversíveis com a Teoria do Direito.

O Direito é, sem dúvida, melhor apreensível em termos de sistema e da Teoria dos Sistemas. É um sistema axiológico não linear, sensível, dinâmico, aberto e teleologicamente orientado de regras, princípios e valores, potencialmente entrópicos que se hierarquizam topicamente, para preservação de sua unidade axiológica fractal.

O importante a considerar é que o ser humano se expressa por meio da linguagem. O homem é um animal cego que necessita de uma interface para enxergar a realidade subjacente. Nesse sentido, o Direito precisa ser lido, interpretado, constantemente (re)construído seu sentido. Nessa tarefa destaca-se o papel do intérprete (ARONNE: 2010, p. 138).

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A linguagem é o fundamento de compreensão, pois é a linha e a agulha na tessitura do sistema e do discurso que o move, nessa totalidade sem costuras, que insistimos em coser. O sistema da natureza é traduzido pelas ‘leis’ da Física, mal traduzidas outrora. A linguagem é, pois, a matemática do Direito. E é atingida por males similares (ARONNE: 2010, p. 140).

O sentido do texto está sempre além das pretensões do seu autor, assim como o sentido da Lei está para além do idealizado pelo Legislador. A procura pela codificação é a busca pelo congelamento do tempo e com isso da história (ARONNE: 2010, p. 140-142). “A pretensão de estatuir o Direito vem ao encontro da vontade de verdade iluminista que é a pedra de escândalo da concepção proprietária monádica do indivíduo moderno” (Ibidem, p. 142).

O Código iluminista/positivista é repleto de descontinuidade, que na linguagem jurídica denominam de lacunas. Isso principalmente pelo homem idealizado por esse Código, o homem burguês, capaz de consumir (e ser consumido), capaz de ter. Um homem ideal que não representava a totalidade da realidade social. Os outros que não se encaixavam nesse modelo idealizado de ser humano não possuíam linguagem e, portanto, não possuíam forma de expressarem-se.

Esse paradigma está em crise, uma crise de racionalidade, uma crise de sentido. Pode-se continuar olhando o mundo através das instituições falidas, cheias de pontos cegos, ou pode-se reposicionar o olhar do observador. Perceber que vivemos dentro das instituições, mas também as criamos e podemos reconstruí-las constantemente, se necessário. Preencher os vazios de sentido que nos constituem é, portanto, o árduo desafio de qualquer teoria que pretenda hoje superar os paradigmas iluministas1362.

A busca por uma reconstrução da linguagem no Direito não perpassa meramente pelo campo do ordenamento jurídico. Está entrelaçada por ele. Para quem pensa que o Direito é um mero jogo de regras, tendo apenas os juristas como personagens protagonistas, esta visão se torna ainda mais embaçada. O direito está na vida. Fato é vida. Norma é vida. Não se dissociam como muitos gênios ingênuos há tempos tentam prescrever (ARONNE: 2010, p. 144).

Neste sentido, o papel da linguagem fica claro em uma cena do terceiro filme da trilogia Matrix quando Neo está na estação de trem, porta de entrada 1362 “Não podemos traduzir a crise sobre o olhar fixo de uma percepção solitária. Não podemos referir

a crise do direito, a crise do Estado, a crise do capitalismo ou qualquer visão que represente uma fatia isolada da realidade, já que ela se dá sem costuras. A crise que aqui tentaremos desenvolver perpassa por aquilo que a escola de Frankfurt eloquentemente percebera: A crise é da racionalidade. E ela se manifesta em todos os campos relacionais por onde passa, em que trata relação como um instrumento. Ou seja; como primordial incumbência teríamos a difícil tarefa de nos transportarmos da racionalidade instrumental para a racionalidade ética, pois quando a realidade transborda de tão real a ponto de não suportar mais os anseios totalizantes dos argumentos bem articulados, resta a reconstrução do fundamento que já não dá conta das aventuras em que o individualismo desenvolveu. Tarefa árdua: construir uma racionalidade que dê conta da multiplicidade de racionalidades” (ARONNE: 2010, p. 143).

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para a Matrix. Nela, vemos a presença dos refugiados, aqueles que a Matrix classifica como irrelevantes, assim como o Direito, classifica e exclui. Violenta. São invisíveis ao Sistema. Até mesmo Neo ali é invisível. A única forma deles entrarem na Matrix é através do contrabando, da ilegalidade. Os sem propósitos são excluídos (ou que não atendem aos propósitos do Sistema). Quando o programa fala de amor

para Neo, ele não compreende como uma máquina pode falar sobre uma emoção essencialmente humana. Mas como aquele o explica, amor é apenas uma palavra, o importante é a conexão que ela representa. “A linguagem resulta em instrumento de violência simbólica, quando é proativa de interesses entrópicos ao sistema” (ARONNE: 2010, p. 139).

Desde Aristóteles se percebe o homem como um animal dotado de fala. A necessidade da fala; da comunicação, nada mais é do que o indício de nossa própria finitude. O infinito não necessita de comunicação. “Deus não precisa de conceitos” já alertara Heidegger. Nós precisamos de conceitos, de linguagem, de linguajar, de produção de significado por que somos finitos enquanto existência. Preenchemos a nossa existência produzindo sentido, através da linguagem, não devido a um telos natural que nos conduz a tal. (ARONNE: 2010, p. 142).

Apresentaremos a seguir as bases da Teoria do Caos que sustenta o paradigma proposto neste artigo. Uma proposta de superação do determinismo laplaciano que domina a Ciência até os dias atuais. Desenvolver-se-á as origens da Teoria e sua relação com a temática do filme Matrix e o Direito. Por ora, concluímos essa exposição do desenvolvimento dos paradigmas científicos com o que acreditamos ser a perspectiva científica atual:

2.1. Lorenz, caos, computadores e Direito

O Caos aparece no centro do palco da ciência na metade do século XX por um acidente. Incompreendido a princípio, revolucionário em seus efeitos. Em poucas décadas as pesquisas científicas em todas as áreas haviam sido infectadas por essa revolução. Gleick (1989, p. 4-5) diz que:

Hoje, uma década depois, o caos se tornou uma abreviatura para um movimento que cresce rapidamente e que está reformulando a estrutura do sistema científico. Conferências e publicações sobre o caos são numerosas. (…) Agora que a ciência está atenta, o caos parece estar por toda parte. (…) O caos rompe as fronteiras que separam as disciplinas científicas. Por ser uma ciência da natureza global dos sistemas, reuniu pensadores de campos que estavam muito separados. (…) O caos suscita problemas que desafiam os modos de trabalhos aceitos na ciência. Vale-se, e com muita ênfase, do comportamento universal da complexidade.

O caos é estudado primeiramente por Edward Lorenz, um matemático por vocação que acabou trabalhando com meteorologia.

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Ao deparar-se com o computador, Lorenz percebeu que ele era perfeito para simular um universo regido pelas Leis de Newton.

Era possível pela primeira vez ao homem programar uma máquina para seguir leis específicas e determinadas, expressas a partir de equações, e, atribuindo valores às variáveis, a máquina simularia as transições de estado do universo sem intervenções humanas subsequentes. Esse era um dos paradigmas que sustentava a física newtoniana. O computador, que essencialmente é uma máquina determinista de transição de estados, era o meio ideal para se testar essa concepção da natureza.

Essa era a ideia presente na mente dos primeiros que desenvolveram pesquisas com um computador e, de certo modo, permanecem até hoje na fantasia de uma Inteligência Artificial.

Havia, contudo, uma pequena ruptura no que, do contrário, seria uma perfeição da matemática determinista. Era uma rachadura tão pequena na textura perfeita do universo newtoniano, que os físicos empiristas chegavam a desconsiderá-la. Mas a verdade é que as aferições das variáveis, dentro da perspectiva newtoniana, nunca seriam absolutamente precisas.

Essa premissa era central para a física de Newton, porque, suas equações, pressupunham que pequenas imprecisões na indicação de medidas e variáveis, produziriam ínfimas alterações nos seus resultados. Os experimentos de Lorenz, contudo, mostraram como essa percepção era falsa (GLEICK: 1989, p. 13).

Mencionada proposição é central na trama do filme Matrix. Em geral, a Matrix é uma simulação virtual do mundo humano. Um Universo inteiro simulado por um programa de computador. As máquinas seriam o demônio de Laplace, capazes de um conhecimento absoluto sobre a natureza, até mesmo a psique humana, o que lhes possibilitariam criar um sistema de escravização completo da raça humana.

No diálogo de Neo com o Arquiteto fica evidente o ideal de perfeição, precisão e certeza no trabalho da máquina. A ideia de controle. Mas mesmo o Arquiteto já admite a falha inerente ao sistema. Aquilo que torna possível a Matrix, provoca também seu constante colapso. A máquina apresenta o Neo como o resultado de uma imprecisão de uma variável (caos!). A anomalia é, contudo, sistêmica. O problema não se limita a falhas isoladas como a ação do Escolhido ou do Agente Smith, mas se espalha por todo o sistema por meio da possibilidade de escolha. Como conceituar a liberdade em um universo determinista? Como conceituar liberdade a partir do positivismo?

Não há como deixar de perceber também a relação entre o positivismo e o determinismo. Uma ciência jurídica voltada para a certeza, ignora as próprias imprecisões inerentes a todo o sistema. Como afirma Aronne (2010, p. 201-202):

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Seu papel é segurança e certeza. Determinismo. Como em Laplace. Se eu sei um determinado estado no presente, eu sei o seu passado e seu futuro. O Código foi dimensionado por esta matemática.

Voltando aos experimentos de Lorenz, cabe-nos ainda falar da sua descoberta que revolucionou a ciência moderna. Decidido a descobrir formas precisas de previsão do tempo, o matemático dedicou-se à criação dos seus modelos de condições meteorológicas. Ficou admirado com os resultados que obteve: linhas de um gráfico impressas em uma folha mostrando as alterações do seu simulador. Depois de repetir várias vezes o experimento, determinado dia Lorenz resolveu alterar as condições iniciais, começando por um estado intermediário de uma sequência. Por acidente, no entanto, inseriu valores ligeiramente inferiores ao da sequência anterior. Pela intuição presente entre os físicos e matemáticos da época, a pequena alteração não provocaria mudanças significantes no resultado. O que Lorenz descobriu, no entanto, foi que essa pequena diferença nos valores produziu um resultado completamente diverso da sequência anterior. Estava identificado o caos (GLEICK: 1989, p. 13-14).

O fenômeno identificado por Lorenz foi relacionado ao que ficou conhecido como Efeito Borboleta, que traduz a ideia da dependência sensível às condições iniciais dos sistemas caóticos. A intuição determinista de que as pequenas imprecisões produziam ínfimas perturbações no resultado mostrou-se falsa. Isso é precisamente o conceito de caos1363.

O mais importante é o efeito que tal descoberta produz no demônio de Laplace. Partindo da ideia de que a indeterminação (o caos) está por toda parte, “ele só poderia predizer o futuro se conhecesse o estado do mundo com uma precisão infinita” (PRIGOGINE: 2011, p. 41).

Neste ponto, podemos obter o conceito de sistema jurídico tomado a partir da perspectiva da Teoria do Caos1364. Como coloca o professor Aronne (2006, p. 29, grifos acrescidos):

As normas, grosso modo, operam como gargalos à conformação concreta dos valores, fornecendo bitolas de variável densidade, ao discurso. Limites ao intérprete, com mecanismos de auto-sustentação no sistema jurídico, concretizados pelos instrumentos processuais recursais e na composição

1363 “Sabe-se muito bem, tanto na ciência como na vida, que uma cadeia de acontecimentos pode ter um ponto de crise que aumente pequenas mudanças. Mas o caos significa que tais pontos estavam por toda parte. Eram generalizados” (GLEICK: 1989, p. 20).

1364 Em trabalho mais recente, o professor Ricardo Aronne (2010, p. 204) assim conceitua o sistema jurídico: “O sistema jurídico é uma rede móvel, entrópica, aberta e axiologicamente hierarquizável de regras, princípios e valores, positivados no ordenamento de modo implícito ou explícito, teleologicamente orientados na concretização tópica. O sistema é sensível às condições iniciais que lhe são propostas, é não linear, respondendo diferente e não proporcionalmente a inputs ou interações diferentes. Decorrência, ainda, de sua abertura, é sua complexidade de arquiteturas e influências à que, necessária e corretamente, se expõe. É indeterminado, porém possui padrões.

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colegiada das respectivas cortes superiores. Um sistema, em escala macro, previsível, porém nada determinístico, como se colhe da jurisprudência. Dinâmico e instável. Um sistema caótico. Indeterminado, por vezes, em certos recortes de microescala. Um sistema muito mais probabilístico do que fundado por certezas de resultado, cuja eficácia, em muitos sentidos, também é variável. Paradoxalmente, profundamente conservador.

Ressalta-se que o caos não aparece apenas agora, ele sempre esteve escondido por detrás da estabilidade do sistema que antecedeu. É possível que da própria estabilidade produza-se instabilidade.

No Direito percebe-se o mesmo fenômeno, como observa Aronne (2006, p. 30):

O sistema codificado original é um sistema aprioristicamente estável, ainda que sensível às condições iniciais; aos elementos axiológicos que constroem a respectiva lide a ser solvida e o discurso que a revela. Mesmo nestes casos, podem-se observar desvios, derivados da riqueza tópica. Da estabilidade também pode surgir o caos. Vários cientistas tiveram a ousadia de reconhecer isto. Muitos outros calaram diante de desvios em sistemas instáveis. A quase integralidade. Simplificaram. Tergiversaram. Agora já não podem se negar a ver. A luz atravessa as suas pálpebras. Isso ocorre com os juristas apenas agora. Ao menos formalmente. Já vinha sendo constatado e estudado. Só não era sabido o nome. Nem se tinham as pontes para fundar a travessia. As pontes estão aqui. O nome: Caos.

O caos é inerente à própria norma, tanto na regra, mas principalmente nos princípios, que não tinham relevância normativa nos paradigmas anteriores. Enquanto as regras têm maior concretude, os princípios são abstratos e irradiam seus sentidos para as demais normas do ordenamento jurídico. O Direito deve ser constantemente reconstruído a partir do princípio do Estado Democrático de Direito e dos Direitos Fundamentais, que atuam como atratores tornando os sistemas caóticos dotados de previsibilidade, mas não aquela determinística pretendida por Laplace (ARONN: 2010, p. 97; ALVES: 2013, p. 29).

No próximo item abordaremos o problema da escolha na teoria de justiça de Jhn Rawls e sua teorização do estado original. Identificaremos os aspectos que aproximam essa abordagem da Teoria do Caos.

3. Pílula vermelha ou azul: o problema da escolha racional em john rawls

John Rawls (1997, p. 4) inicia seu livro superando o paradigma utilitarista. Para o autor “Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar” (Ibidem). Para ele, os direitos de liberdade conferidos a cada indivíduo são invioláveis, mesmo que para se atingir a maior satisfação da maioria. “Sendo virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a justiça são indisponíveis” (Ibidem).

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O utilitarismo, desenvolvido originalmente por Jeremy Bentham no século XIX, baseava-se na concepção de que as pessoas tomam decisões buscando evitar a dor e maximizar o prazer. Essa perspectiva, fundada no conceito de “utilidade”, pressupõe que os homens fazem escolhas a partir de um cálculo aritmético de vantagens e desvantagens, por meio de um tipo muito especial de Razão. Essa forma de pensar estaria, para os utilitaristas, envolvida em todas as condutas humanas, desde as do dia-a-dia até as decisões políticas de uma comunidade. É até hoje uma forma de pensar influente sobre o pensamento das pessoas (SANDEL: 2012, p. 48).

Essa perspectiva ideológica utilitarista requer um tipo de homem que calcula suas decisões a partir de um cálculo econômico, como se estivesse fazendo compras em um mercado. Essencialmente, um homem moderno, um Homo Economicus (ARONNE: 2010, p. 90).

O sistema jurídico, tal qual um computador, cria símbolos, uma linguagem, para representar esse homem. Cria-se um personagem, uma máscara, para atuar no palco jurídico da relação jurídica. É também um recorte, uma exclusão, de todos aqueles que não vestem a fantasia dessa peça. O sistema não pode enxergá-los, dá-los sentido (Ibidem).

Para superar a posição utilitarista, Rawls retoma as perspectivas contratualistas dos filósofos oitocentistas. Ao contrário de um já superado Estado de Natureza, o filósofo postula um estado original no qual as pessoas seriam entendidas como “racionais e mutuamente desinteressadas” (RAWLS: 1997, p. 15). Nessa posição as pessoas fariam a escolha dos princípios que definiriam a concepção de justiça daquela comunidade e, por essa definição, a questão da justiça está associada à teoria da escolha racional (Ibidem, p. 19).

O estado original será abordado mais detalhadamente no próximo item, agora interessa-nos um de seus pressupostos: o homem racional e como ele faz uma escolha. Rawls (1997, p. 154) adota um conceito clássico de racionalidade, assim o definindo:

considera-se que uma pessoa racional tem um conjunto de preferências entre as opções que estão a seu dispor. Ela classifica essas opções de acordo com a sua efetividade em promover seus propósitos; segue o plano que satisfará uma quantidade maior de seus desejos, e que tem as maiores probabilidades de ser implementado com sucesso. A suposição que faço é que um indivíduo racional não é acometido pela inveja. Ele não está disposto a aceitar uma perda para si mesmo apenas para que os outros também obtenham menos. Não fica desanimado por saber ou perceber que os outros têm uma quantidade de bens sociais primários maior que a sua.

Em outras palavras, o homem racional para Rawls é completamente diferente do Homo Economicus utilitarista. Ele não decide com base nos seus anseios de

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evitar a dor ou em uma busca de uma maximização do prazer. A pessoa racional para Rawls é desinteressada. O primeiro problema que se coloca é conceituar a escolha livre em uma visão de Universo determinista. É possível? Existe solução o paradoxo da onisciência? Poderia Deus com toda sua onipotência, encontrar a onisciência necessária para mudar de ideia?

Neo questiona ao Oráculo como seria possível a ele fazer uma escolha se ela já conhecia o resultado. É a escolha apenas uma ilusão, como falado pelo Merovingian em Matrix Reloaded, um truque oferecido por aqueles que detêm poder àqueles que não o detém? Seríamos apenas escravos do princípio da causalidade, que Kelsen transporta para o Direito como princípio da imputação? Ou pode até mesmo um programa como o Agente Smith ser compelido a desobedecer e quebrar as regras do sistema? E se desobedecermos, o que restará do nosso sentido de ordem? Esse é o paradoxo de Epicuro que apresentamos na introdução. É a ideia que permaneceu inconteste até a metade do século XX. Até o aparecimento do caos.

Essa visão determinista dominou a ciência natural, como também influenciou o Direito e influencia até hoje. É, contudo, inaceitável para nós, assim como o pensamento de Epicuro (PRIGOGINE: 2011, p. 21). O Direito na perspectiva dos filósofos oitocentistas não precisa de juízes, assim como a matemática laplaciana não precisa de matemáticos (ARONNE: 2010, p. 89). Não há porque tomar uma decisão livre em um universo determinista, haja vista que todos os estados são conhecidos a partir das condições iniciais. O que abala o determinismo é o poder criativo do tempo, a flecha do tempo a reger nossa existência. A criatividade, a originalidade, a novidade emerge do caos, da indeterminação e apenas em um mundo regido pelas leis do caos é possível conceituar liberdade (PRIGOGINE: 2011, p. 22). “De que serve o tempo? … A existência do tempo não provaria que há certa indeterminação nas coisas?” (BERGSON Apud PRIGOGINE: 2011, p. 22).

O tempo não é mera ilusão. Não é criação, mas cria a própria realidade. As possibilidades serão sempre superiores ao real (PRIGOGINE: 2011, p. 63-64). O quadro de possibilidades de interpretação da norma, como já observava Kelsen, é maior que o resultado de cada caso concreto, daí o decisionismo e discricionariedade do juiz. O papel do observador, ou no Direito o papel do juiz, torna-se relevante na física na solução da equação de onda de Schrödinger, que é determinista e de tempo reversível (PRIGOGINE: 2011, p. 50-51).

É precisamente nessa passagem que a posição do observador torna-se relevante. As explicações para essa anomalia são frágeis (PRIGOGINE: 2011, p. 52).

A conclusão a qual chega Prigogine, contudo, é de que

não precisamos mais de redução da função de onda, pois as leis dinâmicas se escrevem em termos probabilistas e não em termos de funções de onda. O observador não desempenha um papel particular, mas o instrumento de

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medida deve satisfazer a um critério preciso: deve apresentar uma simetria temporal quebrada. A ‘interface’ entre o espírito e a matéria, de que falava Davies, perde seu mistério: a condição necessária para nossa comunicação com o mundo físico, bem como para nossas comunicações com os outros humanos, é uma flecha comum do tempo, uma definição comum da distinção entre passado e futuro (PRIGOGINE: 2011, p. 58, grifos acrescidos).

É a ideia compartilhada de tempo que permite ao homem decidir, escolher, viver, conviver. A Codificação do Direito tinha a pretensão de congelar a passagem do tempo. Não é mais possível entender o universo como estático e determinista, assim como também não é possível entender o Direito desta forma. É preciso adotar uma perspectiva evolutiva. O Arquiteto, como representante do ideal de universo newtoniano, não pode entender as escolhas, não pode computá-las em seu sistema de regras. Para ele o tempo é apenas uma sequência causal infinita, determinista e a escolha é apenas um desvio, um erro a ser controlado.

E no entanto, no entanto… negar a sucessão do tempo, negar o eu, negar o universo são desesperos aparentes e consolos secretos… o tempo é a matéria de que sou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo. O mundo, desgraçadamente, é real; e eu, desgraçadamente, sou Borges (BORGES Apud ARONNE: 2010, p. 196-197).

A partir desses fundamentos que podemos compreender o sentido de pessoas livres e iguais dado por Rawls (2003, p. 26-34). Para o filósofo, as pessoas são “iguais na medida em que se considera que todos têm, num grau mínimo essencial, as faculdades necessárias para envolver-se na concepção social a vida toda e participar da sociedade como cidadãos iguais” (Ibidem, p. 27).

Já o sentido de pessoa livre, Rawls o expressa a partir de duas ideias: “Primeiro, os cidadãos são livres na medida em que consideram a si mesmos e aos demais como detentores da faculdade moral de ter uma concepção do bem” (Ibidem, p. 30) e “Em segundo lugar, os cidadãos consideram a si mesmos como livres na condição de fontes de reivindicações legítimas que se autenticam por si mesmas” (Ibidem, p. 32).

Rawls (1997, p. 4) conceitua sociedade como

uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas. (…) [E] essas regras [especificam] um sistema de cooperação concebido para promover o bem dos que fazem parte dela.

Nessa definição percebemos que a sociedade é marcada por uma cooperação de um lado e também um conflito. Há cooperação porque as pessoas entendem

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que é a vida em sociedade garante maior vantagem a todos do que se vivessem isoladamente. Há um conflito porque as pessoas buscam seus próprios interesses na repartição dos benefícios oriundos da vida em sociedade (Ibidem, p. 4-5).

O importante e que difere a proposta contratualista de Rawls da dos filósofos do século XVIII é que ele não entende que

seja qual for a idéia que escolhamos como idéia organizadora central, ela não pode ser plenamente justificada por sua própria razoabilidade intrínseca, pois esta não é suficiente para isso. Tal idéia só pode justificar-se plenamente (caso se justifique) pela concepção de justiça política a que por fim conduza ao ser desenvolvida, e por como essa concepção se coaduna com nossas convicções ponderadas de justiça política em todos os níveis de generalidade, naquilo que poderíamos chamar de equilíbrio reflexivo amplo (e geral) (RAWLS: 2003, p. 36).

Para uma ordenação social são necessários princípios da justiça reconhecidos publicamente e aceitos por todos (RAWLS: 2003, p. 37). Esses princípios são escolhidos por homens racionais em uma situação de liberdade equitativa e eles atribuem direitos e deveres e determinam a divisão dos benefícios na sociedade (RAWLS: 1997, p. 12-13).

Os princípios da justiça são escolhidos sob um véu de ignorância. Isso garante que ninguém é favorecido ou desfavorecido na escolha dos princípios pelo resultado do acaso natural ou pela contingência de circunstâncias sociais. Uma vez que todos estão numa situação semelhante e ninguém pode designar princípios para favorecer sua condição particular, os princípios da justiça são o resultado de um consenso ou ajuste eqüitativo. Pois dadas as circunstâncias da posição original, a simetria das relações mútuas, essa situação original é eqüitativa entre os indivíduos tomados como pessoas éticas, isto é, como seres racionais com objetivos próprios e capazes, na minha hipótese, de um senso de justiça. A posição original é, poderíamos dizer, o status quo inicial apropriado, e assim os consensos fundamentais nela alcançados são eqüitativos. Isso explica a propriedade da frase “justiça como eqüidade”: ela transmite a idéia que os princípios da justiça são acordados numa situação inicial que é eqüitativa. A frase não significa que os conceitos de justiça e eqüidade sejam a mesma coisa, assim como a frase “poesia como metáfora” não significa que os conceitos de poesia e metáfora sejam a mesma coisa (RAWLS: 1997, p. 13-14, grifos acrescidos).

Entendemos daí que esses princípios de justiça só podem ser alcançados no encontro com o outro (o inferno são os outros!). A ideia de equilíbrio reflexivo amplo é que este estado é alcançado quando a pessoa pondera todas as concepções de justiça e os fundamentos que as sustentam (RAWLS: 2003, p. 43). Isso só é possível dialogicamente no espaço público de discussão. A Razão não é mais um absoluto, alcançável a todos individualmente através do imperativo categórico kantiano. É preciso do encontro com o outro. Contudo, esse encontro no sistema positivista é virtual (Matrix!). É impossível entender porque dois programas de computador

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precisariam se encontrar para conversarem. Programas não interagem assim. No simulacro virtualizado das relações na modernidade líquida, interage-se com o outro como Perseu enfrentando Medusa.

Perseu enfrentara a Medusa, única das irmãs górgonas capaz de ser morta, mas que transformava em pedra todo aquele que olhasse em seus olhos. Recebera de sua deusa protetora, Athena, um reluzente escudo que usou como espelho para conseguir superar a titã, decepando-a sem petrificar. Nunca lhe olha diretamente nos olhos. Apenas o reflexo de sua imagem no espelho. Como nós. Perdidos em nosso medo de petrificar, apenas nos relacionamos com a imagem que fazemos do outro. Mas nunca diretamente com ele. Reduzindo a uma essência, imagem, simulacro, o outro é nadificado por nós. Em nós e entre nós (Levinas). Esquecemos que nossa natureza está em nossas escolhas, condenando-nos à liberdade (Sartre). O Direito não se reduz à Lei tanto quanto o outro não pode se reduzir aos oceanos de ontologia que o Positivismo lhe recobre. Recobre a nós… Encobrindo ao outro e a nós mesmos e perdendo-nos entre todos e cada um de nós. Sitiando a consciência através do servilismo e simulacro, envolvendo o ser em uma Síndrome de Perseu (ARONNE: 2010, p. 91, grifos acrescidos).

A passagem do tempo nos constitui como seres mortais e conscientes de nossa mortalidade. Constrói e destrói. Reconstrói. Condena-nos a sermos livres e compele-nos de encontro ao outro e a um futuro indeterminado. Obriga-nos a escolher, a decidir. Petrificar-nos não é uma opção. A Razão não pode ser alcançada através de um exercício isolado, não é resultado de um imperativo categórico universal e absoluto. É dialógico, discursivo. Esse é o sentido de escolha livre e racional. Fractal, porque recursivamente construído, por meio do discurso público. Caótico, porque indeterminado pela própria condição de vazio de sentido humano, que já não é mais o Homo Economicus utilitarista que preenchia seu vazio pela fria matemática. E apenas determinável pela ação dos princípios da justiça como atratores, produto de um consenso equitativo.

3.1. O estado original: o que veio antes da Matrix? É com Sócrates e Platão que a cultura grega se dedicou compreender o

mundo, iniciando sua tradição de “Cosmos Ordenado”, legitimada na construção de um mundo ideal. Para muito além do Kaos. Não obstante, a própria ideia se corporifica em um mito. No Mito da Caverna… Mas como fomos parar dentro da Caverna? Como nos deixamos levar e aprisionar ao seu fundo morbidamente sombrio?? (ARONNE: 2010, p. 86, grifos acrescidos)

A mais óbvia metáfora extraída a partir do filme Matrix é o Mito da Caverna de Platão. No Livro VII do livro A República, Platão retrata um diálogo entre Sócrates e Glauco no qual aquele apresenta uma situação em que alguns seres humanos estariam acorrentados no interior de uma caverna durante toda a sua vida. Tal caverna teria apenas uma entrada de luz e as pessoas estariam acorrentadas de forma a permanecerem de costas para o mundo externo. Tudo o que eles podem ver durante

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toda a vida são as sombras dos objetos e pessoas que passam no exterior e são refletidos na parede da Caverna. Sair desta situação de prisioneiro é um processo doloroso. Envolve uma subida íngreme, o uso de músculos e forças físicas que a pessoa não está acostumada, e ao chegar ao mundo exterior existe o desconforto com a luz do Sol que impede que se enxergue por um longo momento. Toda essa metáfora envolve a ascensão da alma da ignorância para o conhecimento.

A questão colocada na citação acima levanta a pergunta de como fomos parar dentro da Caverna, quem nos colocou lá? Uma inteligência artificial? Na cena da conversa do Arquiteto com Neo, o Mito da Caverna é revelado como ele realmente é, um Mito. A missão do Escolhido é retornar à Fonte e escolher entre os conectados à Matrix vinte e três indivíduos para recriar o sistema. Reconstruir a Caverna, que na verdade tratava-se de Zion. Na metáfora socrática aquele que consegue se libertar das correntes do fundo da caverna e escapa para o mundo “real” volta para libertar os colegas que ficaram acorrentados. Na distopia dos irmãos Wachowski, contudo, quando Neo volta para libertar seus companheiros descobre que o exterior da Matrix é nada além do que uma extensão do próprio sistema, outra forma de controle. Tanto é assim que os poderes do Escolhido vão para além do mundo virtual. Nesse sentido, não existiria exterior da Caverna. Não existiria Caverna nenhuma.

Continuando a desconstrução do Mito, chega-se à indagação final de quem construiu a Caverna, quem nos acorrentou em suas profundezas e por que. Existiria um mundo antes da Matrix? Questões como o que existia antes do Universo, antes do big bang, permeiam o Direito desde os jusnaturalistas. Existiria um Estado de Natureza anterior ao Estado Social? A sociedade humana teve um início, uma Fonte, uma origem? O mundo humano, assim como o mundo natural, teria saído de um estado caótico e desorganizado para um mundo de ordem e determinação? Filósofos do século XVIII e alguns contemporâneos, como John Rawls, partilham dessa ideia.

Rawls (1997, p. 20-21) idealiza um Estado Original, onde todos se encontram em uma situação de ignorância em relação a sua própria sorte natural ou sobre as suas contingências sociais. Todos seriam iguais nessa situação no sentido de que todos teriam os mesmos direitos de participar na escolha dos princípios da justiça e a partir desse estado as pessoas construiriam a sociedade política.

Deve-se, porém, supor que haverá discrepâncias. Nesse caso temos uma escolha. Podemos ou modificar a avaliação da situação inicial ou revisar nossos juízos atuais, pois até mesmo os julgamentos que provisoriamente tomamos como pontos fixos estão sujeitos a revisão. Por meio desses avanços e recuos, às vezes alterando as condições das circunstâncias em que se deve obter o acordo original, outras vezes modificando nossos juízos e conformando-o com novos princípios, suponho que acabaremos encontrando a configuração da situação inicial que ao mesmo tempo expresse pressuposições razoáveis e produza princípios que combinem com nossas convicções devidamente apuradas e ajustadas. A esse estado de coisas eu me refiro como equilíbrio reflexivo. [...] Nesse momento tudo está em ordem. Mas este equilíbrio não é necessariamente estável.

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Está sujeito a ser perturbado por outro exame das condições que se pode impor à situação contratual e por casos particulares que podem nos levar a revisar nossos julgamentos (RAWLS: 1997, p. 22-23, grifos acrescidos).

Rawls aproxima-se de perceber o caos inerente à sua teoria, mas o deixa passar pelo anseio de ordem e certeza. O filósofo busca livrar o ser humano no estado original de qualquer viés que possa deturpar seu senso de justiça. Encobre-o com um véu de ignorância1365. Apesar de ser um estado conceitual, hipotético, idealiza um humano irreal1366. Como podemos acreditar no senso de justiça de tais humanos para definir os princípios que regeram a sociedade?

Estabelecemos que do caos pode emergir a ordem. Outra forma de ordem. A irreversibilidade tem um papel criativo (PRIGOGINE: 2011, p. 61) e, como afirma Stephen Gould (Apud PRIGOGNE: 2011, p. 170)

Para compreendermos os eventos e as regularidades que caracterizam o caminho da vida, temos de ir além dos princípios da teoria da evolução, na direção de um exame paleontológico do aspecto contingente da história da vida em nosso planeta, única versão atualizada dentre as milhões de alternativas plausíveis que calhou de não acontecerem. Uma tal concepção da história da vida é totalmente contrária aos modelos deterministas habituais da ciência ocidental, mas também às tradições sociais e às esperanças psicológicas maisprofundas da cultura ocidental, as esperanças de uma história que culmina nos humanos, enquanto expressão mais alta da vida e seres destinados a dominar o planeta.

Para compreendermos voltamos aos mitos. Devemos voltar à caverna, às correntes. A Caverna estava lá antes de nós, o outro também, com as correntes que nos aprisionam uns aos outros. “Quem sabe o outro seja “a corrente”. Que nos “acorrente”. Em nós. Entre nós” (ARONNE: 2010, p. 88). Dentro da Caverna somos sombras escravizadas para produzir energia para nossos Senhores (as

máquinas em Matrix). Fora da Caverna somos essências em um mundo criado pelas mãos divinas. “Porém, não somos essência e sim existência, de modo a sermos condenados à liberdade (Sartre).

O que constitui nossa natureza são as nossas escolhas. Porém, fomos deixando de olhar também para nós mesmos. Talvez por medo ou por vergonha do que nos tornamos. Seres patológicos e ideologizados pela modernidade” (ARONNE: 2010, p. 89).

1365 Sobre isso ver mais em: (RAWLS: 1997, p. 146-147).1366 Sobre isso ver mais em: (ARONNE: 2010, p. 89).

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O homem da posição inicial postulado por Rawls é puramente essência e não existência. Os homens na posição original seriam, para o filósofo, racionais1367, em um sentido de racionalidade mutuamente desinteressada1368. Essa condição é resultado do véu de ignorância, o que precisamente transforma o homem real em um ideal.

Do ponto de vista da teoria contratualista, a ética da criação equivale a supor que as pessoas na posição original não sabem absolutamente nada sobre o seu mundo. Como, então, podem elas tomar uma decisão? Um problema de escolha só é bem definido se as alternativas são adequadamente limitadas por leis naturais e outras restrições, e os que estão na posição de decidir já têm certas inclinações para escolher entre elas. Sem esse tipo de estrutura definida, a questão colocada é indeterminada. Por esse motivo, na escolha dos princípios da justiça, não devemos hesitar em pressupor uma certa teoria das instituições sociais. De fato, evitar suposições sobre os fatos genéricos é tão impossível quanto dispensar uma concepção do bem com base na qual as partes classifiquem as alternativas. Se essas suposições são verdadeiras e adequadamente generalizadas, tudo está em ordem, pois sem esses elementos todo o esquema seria inútil e vazio (RAWLS: 1997, p. 171, grifos acrescidos).

A crítica às posições contratualistas é exatamente as suposições necessárias para colocar o universo em ordem. E isso nos remonta à questão do momento inicial, do big bang, da indeterminação, do paradoxo. Estabelecemos que é a flecha do tempo, uma noção compartilhada da passagem do tempo, que nos permite comunicar. A ideia de um universo com um ponto de origem pressupõe que o tempo teve um começo. Contudo, a conclusão a que chegamos que, assim como a ideia de um momento de origem da sociedade humana, a ideia de uma origem do tempo pressupõe uma série de suposições que enfraquecem a teoria. A perspectiva mais simples é uma ideia evolutiva, tanto da sociedade, quanto do universo.

Assim, perde-se o sentido do retorno do Escolhido à Fonte todo momento que o mundo determinista entra em colapso. O retorno à posição original sempre que se depara com um caso difícil de determinar a decisão justa. O Direito não pode ficar conectado a uma Caverna estática.

Isso acontece porque o Direito tem uma necessidade peculiar (…): a de se adaptar constantemente e rapidamente às mudanças que se desenrolam na sociedade como um todo. (…) O Direito tem que dar resposta às perguntas que lhe são feitas. Esteja preparado ou não (ARONNE: 2006, p. 85).

Uma sociedade entendida numa perspectiva evolutiva é melhor expressada pela ideia de Habermas. 1367 “considera-se que uma pessoa racional tem um conjunto de preferências entre as opções que

estão a seu dispor. Ela classifica essas opções de acordo com a sua efetividade em promover seus propósitos; segue o plano que satisfará uma quantidade maior de seus desejos, e que tem as maiores probabilidades de ser implementado com sucesso”. [...](RAWLS: 1997, p. 154).

1368 “[...] As partes não buscam conceder benefícios ou impor prejuízos umas às outras; não são movidas nem pela afeição nem pelo rancor. Nem tentam levar vantagem umas sobre as outras; não são invejosas e nem vaidosas” (RAWLS: 1997, p. 155).

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Com a introdução da Comunidade de Intérpretes, fundada por Habermas, um novo ambiente é criado. Nele trava-se um diálogo entre indivíduos capazes de compartilhar, pela linguagem, de um universo simbólico comum e interagir na construção de um conhecimento crítico, pautado por argumentação submetida a critérios de validade, sem ser orientada pela dogmática. Respeita-se a existência de subjetividades, transcendendo-se pela interação dialética, alcançando-se uma espécie distinta de racionalidade. Intersubjetiva (ARONNE: 2006, p. 76-77).

O próximo item tratará da questão, de uma perspectiva processualista, sobre a origem dos princípios da justiça. Entenderemos como uma perspectiva processualista do Direito encaixa-se com uma perspectiva evolutiva do Universo e dialética da natureza, colocada por Prigogine.

3.2 A dependência das condições iniciais na origem dos Direitos Fundamentais

Rawls (1997), como apresentado no item anterior, retoma a perspectiva contratualista para determinar a origem e o fundamento dos direitos fundamentais. A partir do Estado Original as pessoas definiriam os princípios de justiça que regeriam a sociedade. Rawls (1997, p. 64) parte de dois princípios que entende que haveria um consenso entre os homens na posição inicial:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que seja ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites razoáveis, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.

Liberdade e igualdade seriam, portanto, os princípios que os homens em um estado de mútuo desinteresse concordariam como fundamentais para qualquer comunidade. É preciso, contudo, perceber que “A justiça tem primazia sobre a eficiência e exige algumas mudanças que não são eficientes nesse sentido” (RAWLS: 1997, p. 84). Por isso, Rawls abre mão do sistema de liberdade natural e da aristocracia natural para privilegiar a igualdade democrática. Para o autor,

chega-se à igualdade democrática por meio da combinação do princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades com o princípio da diferença. Este último elimina a indeterminação do princípio da eficiência elegendo uma posição particular a partir da qual as desigualdades econômicas e sociais da estrutura básica devem ser julgadas (Ibidem, p. 79).

Para Rawls (1997, p. 90-91), as considerações acerca da estrutura básica da sociedade, que é o objeto primeiro da justiça, levam à ideia de tratar a distribuição dos bens da sociedade como um problema de “justiça procedimental pura”. A ideia é de que o resultado sempre será justo, pelo menos dentro de certos limites.

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Neste ponto, convém relacionar essa perspectiva com o conceito procedimental de democracia de Habermas (2011, p. 18-19). Habermas vale-se da Teoria do Discurso, dando um caráter de processo deliberativo ao conceito de democracia do autor. Há duas perspectivas distintas de democracia: uma liberal, fundada exclusivamente na formação de consensos entre os indivíduos protegidos pelos direitos fundamentais em sua concepção liberal, e uma republicana, que entende o processo democrático fundado em um “autoentendimento ético-político”. A teoria do discurso agrega elementos de ambas as perspectivas.

Na base da teoria de Habermas encontra-se a superação da razão prática positivista pela razão comunicativa, inserida dentro da teoria do agir comunicativo. “A razão comunicativa compreende a esfera instrumental de conhecimentos objetivos e a esfera da interação entre sujeitos. É marcada por simbolismo e subjetivismo, por experiências pessoais e contextualização dialógica de agentes lingüísticos” (ARONNE: 2006, p. 76).

A teoria do discurso explica a legitimidade do direito com o auxílio de processos e pressupostos da comunicação – que são institucionalizados juridicamente – os quais permitem levantar a suposição de que os processos de criação e de aplicação do direito levam a resultados racionais. Do ponto de vista do conteúdo, as normas emitidas pelo legislador político e os direitos reconhecidos pela justiça são racionais pelo fato de os destinatários serem tratados como membros livres e iguais de uma comunidade de sujeitos de direito, ou seja, em síntese: sua racionalidade resulta do tratamento igual das pessoas jurídicas protegidas em sua integridade (HABERMAS: 2011, p. 153).

A partir da teoria de Habermas, é possível a permanente reconstrução do sentido do Direito na sociedade moderna pautada pela complexidade por meio do diálogo. “Respeita-se a existência de subjetividades, transcendendo-as pela interação dialética, alcançando uma espécie distinta de racionalidade. Intersubjetiva” (ARONNE: 2006, p. 77). É por meio do processo discursivo, também, que os direitos humanos, historicamente fundamentados, transformam-se em direitos fundamentais.

Os Direitos Fundamentais são, para Habermas, a base do Sistema Jurídico. Dentro da perspectiva da Teoria do Direito a partir da Teoria do Caos, os Direitos Fundamentais agem como atratores, que delimitam a região de probabilidade de possibilidades interpretativas do sentido da norma. É certo que, neste sentido, “O sistema jurídico é uma rede aberta, tópica e axiologicamente hierarquizada de regras, princípios e valores, positivados no ordenamento” (ARONNE: 2006, p. 45). Dentro do sistema jurídico positivo normas de diferentes graus de densificação e abstração, desde valores e princípios estruturantes até regras individuais que regulam casos concretos (Ibidem, p. 51-54).

Os valores são anteriores ao próprio conjunto normativo do sistema jurídico. São opções do Constituinte Originário, que estão presentes no ideário da comunidade

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política que conferiu legitimidade ao seu trabalho de construir a ordem jurídica. Seu sentido permeia o conteúdo de todas as normas daí decorrentes, portanto, sua alteração significaria a mudança do sentido de todo o Ordenamento Jurídico (ARONNE: 2006, p. 52). Daí decorre o sentido de sensibilidade às condições iniciais do sistema jurídico em sua perspectiva caótica.

O princípio estruturante, no caso da ordem jurídica atual o Estado Social e Democrático de Direito, é o princípio de maior abstração, que decorre diretamente dos valores. É a partir desse princípio que se constroem o sentido das demais normas do sistema jurídico de maior densidade e concretude. Tratam-se dos princípios fundamentais, princípios gerais, princípios especiais, princípios especialíssimos, regras e normas individuais (ARONNE: 2006, p. 52-53).

Esse é o processo de construção do Direito, da Caverna, da Matrix, do nosso pequeno microuniverso. É um processo constante de (re)interpretação do Direito, no qual

o intérprete (…) guia-se por avaliações subjetivas do respectivo sistema jurídico, para tornar enfraquecidas as tensões sociais, neutralizando a pressão exercida por problemas de distribuição de poder, recursos e benefícios sociais escassos. Essa questão é fundamental. Liga-se também à Teoria do Discurso. Está no núcleo da Teoria do Caos (ARONNE: 2006, p. 83).

E, como coloca Alves (2013, p. 77),

É um movimento complexo, que é tecido junto, que pode envolver o aspecto estático (regras e princípios) ou mesmo dinâmico (jurisprudência), mas é sempre evolutivo e variável, não está pronto, está em permanente construção, no tempo, a seu tempo.

Com isso relaciona-se a questão da origem dos Direitos Fundamentais da Teoria da Justiça, com a perspectiva evolutiva do universo. Supera-se a ideia de um ponto de criação, latente na perspectiva contratualista. Chega-se ao paradigma procedimental proposto por Habermas (2011, p. 190), que estabelece os mecanismos que propiciam uma constante discussão dos problemas enfrentados pela comunidade política. Através da argumentação e do uso da linguagem para um discurso racional as pessoas poderiam, por meio do uso de sua autonomia, constantemente construir o sentido do Direito. Essa construção guarda em si uma tensão entre faticidade e validade decorrente da própria imprecisão do sentido dos símbolos da linguagem humana. Isso mesmo torna o processo caótico, fractal, não-linear e apenas determinável pela ação dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.

4. Considerações finaisCaos, longe de ser desordem, corresponde à natureza dos mais diversos

fenômenos, mesmo os sociais. Caótico não está, necessariamente, ligado ao não

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determinismo. Pela presença de um atrator, as trajetórias dos eventos caóticos seriam previsíveis. Além de caótico, um sistema pode ser não-linear, quando suas variáveis realimentam a equação e não é possível retroagir o sistema a um estado qualquer após alterado e complexo, quando aberto.

O Sistema Jurídico é caótico devido a própria incerteza da vida humana, não-linear e complexo, sendo apenas determinável pela presença de atratores, quais sejam a Constituição, principalmente os direitos fundamentais, e a ação do homem enquanto construtor e intérprete do Direito.

Abordou-se nesse artigo a relação entre a Teoria do Caos, a temática do filme Matrix e a Teoria de Justiça proposta por John Rawls. Partiu-se da falha sistêmica inerente à ideia determinista da física newtoniana e da matemática laplaciana, devido aos erros de aproximação das variáveis das equações. Essa falha descoberta, com o advento do uso dos computados nas pesquisas científicas, pelos estudos de Edward Lorenz é o elemento central da natureza caótica dos fenômenos. Esse elemento está também presente no filme Matrix, na falha sistêmica que a liberdade de escolha produz no mundo virtual de controle criado pelas máquinas.

A questão da escolha racional do ser humana também é um ponto central na teoria de Rawls. Determinou-se o paradoxo na definição de liberdade a partir de uma perspectiva positivista. Como o conceito deste princípio requer uma perspectiva da passagem do tempo. Uma perspectiva que diverge até mesmo de tradicionais entendimentos da física. É o fluxo temporal, a flecha do tempo, que cria as condições para a comunicação humana. Nosso mundo só faz sentido a partir de uma ideia compartilhada de tempo. Que nos leva ao desconhecido, ao outro. Que nos condena a ser livres.

E no contato com o outro construímos constantemente nossa realidade. A realidade fora da nossa construção foi mostrada como inconsistente com as nossas proposições. Um mundo fora da Caverna platônica, fora da Matrix, um Estado de Natureza anterior ao Estado Social. Fora do mundo que o homem constrói para si ele é uma essência etérea. Mas não somos essências, somos existência. Somos produto de nossa própria construção. E essa é a principal falácia do argumento jusnaturalista. Construir um homem essencial como modelo de solução de problemas concretos.

Este estudo nos leva a uma proposição de uma perspectiva dialética da natureza e do Direito. Uma visão evolutiva, construtiva da realidade, que encontra paralelo na ciência jurídica na teoria procedimentalista do Estado de Direito. O Processo é o instituto pelo qual o Direito é (re)construído. É vivo, dinâmico, complexo, caótico, fractal e não-linear. É meio de concretização de Direitos Fundamentais, sendo ele mesmo um direito-garantia fundamental.

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5. Referências

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ARONNE, Ricardo. Direito civil-constitucional e teoria do caos: estudos preliminares. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2006.

________________. Razão & caos no discurso jurídico e outros ensaios do direito civil-constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2001.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Tradução David Jardim. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

GLEICK, James. Caos: a criação de uma nova ciência. Tradução Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume II. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011.

PRIGOGINE, I. (Ilya). O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. Tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

_________________. Justiça como eqüidade: uma reformulação. Tradução: Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

TRIBE, Laurence H. The curvature of constitutional space: what lawyers can learn from modern physics. Harvard Law Review: The Harvard Law Review Association, November 1989.