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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Henrique Zoqui Martins Parra Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas e a construção sócio-política da economia Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Sociologia para a obtenção do título de Mestre em Sociologia sob orientação da Profª Dr.ª Maria Célia Pinheiro Machado Paoli São Paulo, Agosto de 2002

Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

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Page 1: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS

HUMANAS

Henrique Zoqui Martins Parra

Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas e a construção

sócio-política da economia

Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Sociologia para a obtenção do título de Mestre em Sociologia sob orientação da Profª Dr.ª Maria Célia Pinheiro Machado Paoli

São Paulo, Agosto de 2002

Page 2: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

2

”Uma obra de arte é boa quando

ela é nascida da necessidade.”

Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta

“Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi

quando pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa.

Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas.

Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados.”

Clarice Lispector, A hora da estrela

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3

Aos meus pais, Wilke e Nelci,

por todo o amor e liberdade.

Ao meu irmão, Mauricio,

por nossa amizade e

pelo seu impulso de vida

de todos os dias.

Page 4: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

4

Agradecimentos

Dizem que o trabalho de pesquisa é bastante solitário. Entretanto, o

percurso que marcou a tecitura desta dissertação, ajudou-me a dar concretude

àquela bela distinção de Rilke, entre o estar isolado e o estar solitário. São

inúmeras as contribuições que recebi nesse caminho, e sem o apoio de todas

essas pessoas, conhecidas ou anônimas, os anos de pesquisa teriam sido muito

mais áridos. Se em alguns momentos, procurei o isolamento para elaborar e redigir

partes do texto, estes instantes nunca foram solitários, pois a presença de todos

esses colaboradores, conscientes ou não, dialogava permanentemente comigo.

Este texto, procura abrigar essa polifonia de idéias, falas, discussões,

relatos e observações. Certamente, o que mais me impulsionou nesses anos, foi a

busca de uma maior profundidade e intensidade na relação com todo esse universo

de pessoas, sentimentos, sonhos e ações. Agradeço...

À Maria Célia Paoli, minha orientadora, por inspirar-me no mergulho

científico à maneira da construção de uma obra de arte. Seu exemplo de dedicação

à reflexão crítica motiva todos nós que estamos próximos a desmistificar nossos

conceitos e pré-formulações. Sua compreensão em nossos vários encontros e

discussões ajudou-me a conectar a vida subjetiva-emocional com o trabalho

sociológico.

À professora Heloisa Martins que motivou-me, primeiramente, a procurar as

relações entre o “mundo do trabalho” e a “educação para a democracia”. Foram

suas sugestões que me levaram ao encontro da ANTEAG no início de 1998, onde

“tudo” começou. Ao professor Glauco Arbix pelas muitas contribuições que durante

seu curso infiltrarem-se definitivamente nesta pesquisa; seus mensagens

eletrônicas, na época da disciplina da pós-graduação, afirmavam a disposição de

ensinar sempre mais. Ao professor Sedi Hirano, que nos seminários de projeto,

soube orientar o debate construtivo entre os estudantes em nome do que ele

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chamava de “cidadania acadêmica”. Ao professor Flávio Pierucci, que nos anos de

trabalho sob sua orientação e na disciplina sobre Max Weber, ensinou-me a decifrar

os textos para além das suas linhas.

Aos amigos e amigas da Incubadora Tecnológica de Cooperativas

Populares da USP - professores, alunos e funcionários – que souberam sonhar e

realizar, ensinar e aprender, transformar se transformando. Aprendemos muito

nesses anos. Agradeço a “todos” para não cometer injustiças nessa hora em que a

memória padece de atenção.

Àqueles que constituem, criam e recriam a ANTEAG e que me receberam

tão abertamente como pesquisador e militante, o Cido, Luigi, Cátia, Maria, Derly,

Valdir, Aninha, Sola, Jaime…

Aos companheiros do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e da UNISOL, em

especial ao Tadashi e ao Heli, pelo abertura e acesso ao material sindical e pela

orientação no contato com as empresas autogeridas de produção industrial.

À UNIWIDIA e todos os seus trabalhadores, que me receberam,

concederam entrevistas, explicaram-me o ofício e narraram pacientemente as

transformações pessoais e do trabalho.

À Coop-Arte e os trabalhadores vidreiros, que me abrigaram durante muitos

meses, entre idas e vindas, próximo aos fornos da produção e no refeitório onde se

realizavam as reuniões das comissões e assembléias. Sou imensamente grato pela

colaboração dos entrevistados. Agradeço também, ao Douglas, por ter me colocado

em contato com essa empresa de trabalhadores.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pela bolsa de

mestrado que durante dois anos possibilitou a dedicação exaustiva à investigação.

O compromisso que dediquei a este trabalho, na sua feitura quase artesanal, só

foram possíveis numa temporalidade própria que está, nos dias de hoje, em

contradição cada vez maior com a especificidade das Humanidades.

Ao professor Paul Singer, mestre e amigo, pela profunda generosidade,

carinho e disposição sempre que procurado. Suas críticas e contribuições no

exame de Qualificação e em tantos outros momentos de discussões, na ITCP, no

NESOL, em bate-papos ou mesmo na troca de correspondências, foram

Page 6: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

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fundamentais para que eu superasse algumas limitações teóricas e políticas.

Nossos encontros tinha a virtude de não terminar com as despedidas.

Ao professor Francisco de Oliveira, pelas sugestões, questionamentos e

pela “totalidade” exigida na discussão de Qualificação. Vários meses mais tarde,

quando escutava o registro da nossa discussão, pude compreender tantas outras

coisas sobre o meu trabalho que o tempo desta dissertação foi insuficiente para que

eu fosse capaz de amadurecer algumas lições.

Ao CREPUQ (Programa de Intercâmbio USP-Quebec), que financiou meus

estudos em Montreal. Nessa cidade sou muito grato a Neil Gerlach e Greg Nielsen

da Concordia University, pelo apoio, incentivo e rigor na reflexão sociológica e

metodológica. Com os dois aprendi a contextualizar e radicalizar minha própria

formação. Aos professores e pesquisadores Paul Sabourin (Université de Montréal);

Eric Shragge e Marguerite Mendell (School of Community and Public Affairs);

Dorval Brunelle e Yves Vaillancourt (Université du Québec à Montréal), pela

paciência, receptividade e abertura de suas salas a um estudante falante que ainda

não dominava outros idiomas.

Também sou imensamente grato a Bill Reimer, coordenador do Projeto New

Rural Economy e aos colegas que integravam a equipe: Sara, Mike, Deatra, Anna e

Andrea. Seu apoio e atenção foram fundamentais para que a minha experiência

acadêmica pudesse se realizar. Senti-me verdadeiramente acolhido por eles.

Ao pessoal do Centre de Formation Populaire e, especialmente, Catherine e

Sophie Vaillancourt, pela amizade e pelas inesquecíveis experiências: a

Conferência dos Povos da América; as barricadas gazeificadas da cidade de

Quebec, em abril 2001, e tantas outras aventuras (ainda por vir). Foram momentos

intensos que deram concretude a toda uma reflexão que naquela época se

esboçava.

À Aninha Tomioka, pela intensidade do seu amor e carinho. Ela participou

profundamente de quase toda essa jornada, trasformando-me num ser mais

sensível. Sem sua presença o presente não seria o mesmo.

Aos amigos e amigas do NESOL, que ainda está nos seus primeiros

passos, pelas discussões que muito enriqueceram essa investigação. Se esta

dissertação tiver alguma vocação interdisciplinar ela se deve a este instigante

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exercício praticado entre vocês de diluir as barreiras dos saberes. Agradeço à Lú e

Teca Barbieri, Sandra, Quenes, André Ricardo, Ana Lúcia, Gabriela, Fernando e

Agnaldo, colegas que analisaram e discutiram coletivamente esta e outras

dissertações. O trabalho de escrita leva-nos muita vezes para caminhos confusos.

Seus comentários foram muito importantes para que eu soubesse achar o caminho

de volta. Além deles, os professores Paulo Salles, Sonia Kruppa e Silvia Leser

ensinaram-me com palavras, exemplos e com a própria vida. Sou muito grato a

todos.

Aos queridos amigos de todas as discussões e orientações que envolveram

o projeto de pesquisa: Cecília (pelo marxismo sempre atento); Luciano (pela

disposição radical); Maurício (pela poesia) e Juliana (pelo realismo).

Nos momentos finais ainda contei com o apoio de colegas que analisaram

de forma concentrada partes especiais do texto: Mariana Almeida, seu olhar

cuidadoso e cheio de curiosidade apontou questões fundamentais; Fernando

Kleiman, suas observações sobre teoria econômica ajudaram-me a delimitar (e

eliminar) alguns problemas, e Luciana Barbieri, que revelou-me uma outra

complexidade sobre o Direito.

Ao Pablo e ao Maurício, que ajudaram prontamente nas traduções de última

hora. À Alina, que viabilizou a padronização técnica do texto. Mais do que prima,

amiga em muitos momentos, bons e difíceis, que marcaram essa trajetória. Seu

apoio foi fundamental para a formatação final deste trabalho. À Angela, da SDTS,

pela compreensão e apoio nos momentos finais da redação.

À Lilian Sampaio, sem a qual o texto nunca seria entregue à tempo. As suas

leituras e críticas à dissertação, em diferentes momentos da pesquisa, foram de

uma grandeza só encontrada em pessoas de atitude sincera e generosa. Ao

querido Fabio Sanchez, que tanto contribuiu para a minha formação humanística e

para a descoberta dessa cidade maluca. Amigo de vida compartilhada e solidária,

em tempos alegres e tempos sombrios.

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À Laura, que está sempre a me lembrar das tantas coisas importantes de

que uma vida é feita. Seu abrigo parisiense contribuiu para a leveza séria da

estruturação final do texto; sua leitura caprichosa inspirou-me no cuidado com a

escrita. Agradeço pelo inesperado, pela paixão e pela liberdade. Nosso encontro

ensinou-me um outro olhar sobre o mundo.

Agradeço finalmente, aos meus pais, Wilke e Nelci, por todo o apoio e

carinho sempre cheios de um amor incondicional. Ao meu irmão, Mauricio, por

ensinar-me o sentido da palavra “vocação”.

Dito isso, quem poderia falar que fazer ciência é um trabalho solitário? O

saber aprender é feito de muitas vidas.

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Sumário

Resumo______________________________________________________ 12

Abstract _____________________________________________________ 13

INTRODUÇÃO________________________________________________ 14

CAPÍTULO 1: DELIMITANDO A COMPLEXIDADE __________________ 33

1. As transformações no mundo do trabalho na década de 90 ___34

1.1 O cenário da política econômica___________________________34

1.2 O mercado de trabalho brasileiro nos anos 90________________38

1.3 Desregulamentação do contrato de trabalho _________________44

2. Possíveis caminhos e descaminhos dos desempregados:

reações e proposições face à crise do emprego_______________48

2.1 Saídas de emergência e estratégias de sobrevivência _________48

2.2 Em busca de alternativas coletivas _________________________51

3. Construindo o campo empírico de investigação: as Empresas de

Trabalhadores Autogeridas ________________________________54

3.1 Empresas de trabalhadores e/ou cooperativas autogeridas _____55

3.2 Processos de formação e constituição ______________________60

4. Entre a liberdade e a necessidade ________________________66

CAPÍTULO 2 – GESTÃO VERSUS POLÍTICA________________________ 76

1. Divisão Técnica ou Política do Trabalho ___________________79

1.1 Produção e Administração _______________________________80

1.2 Transparência e auto-disciplina____________________________82

1.3 Alternativas na divisão sócio-técnica e intensidade do trabalho __85

1.4 Partilha do Trabalho ____________________________________88

1.5 Politizando a Eficiência__________________________________91

1.5.1 Redefinindo os conceitos de Divisão Técnica e Divisão Social do

Trabalho_________________________________________________

____96

2. Limites da igualdade econômica: a disputa pelos rendimentos

_______________________________________________________103

2.1 Fortalecendo velhos critérios e desconstruindo outros ________106

2.2 O conflito de racionalidades em Max Weber ________________113

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3. Para além da contradição degeneração X falência __________124

3.1 As contradições das cooperativas para Karl Marx e Rosa

Luxemburg ____________________________________________________132

CAPÍTULO 3 – DE EMPREGADOS A COOPERADOS:

PARTICIPAÇÃO, AUTONOMIA E SERVIDÃO VOLUNTÁRIA__________ 139

1. Lei é aquela que a gente faz _____________________________143

2. Transformações e Permanências ________________________152

3. Aprendizado democrático_______________________________159

CAPÍTULO 4 – INSERÇÃO SÓCIO-POLÍTICA DAS EMPRESAS DE

AUTOGESTÃO_______________________________________________ 169

Apêndice Teórico: algumas tendências da sociologia econômica

_______________________________________________________174

1. Sindicalismo e Cooperativismo: entre a criação e a destituição

_______________________________________________________177

1.1 A experiência da CUT __________________________________183

1.2 O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC _____________________186

1.3 Reconhecendo as diferenças ____________________________192

2. Contexto institucional: legislação, polícia e política_________202

2.1 Instituir a política como condição de existência ______________210

3. Crédito e Financiamento: os limites dos critérios de avaliação218

3.1 Estado e Autogestão: campos de conflitos__________________224

3.2 Os limites dos critérios de avaliação do desempenho econômico228

3.3 Crédito: sistema simbólico e o espaço instituinte da política ____234

CAPÍTULO 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

DO MOMENTO ______________________________________________ 236

1. Economia Solidária: ação ou reação face ao desemprego? __239

2. Autogestão no fio da navalha: ___________________________243

desregulamentação e a instituição da política________________243

3. As condições socias e econômicas da participação ________246

4. Gestão e Política: o encontro de duas lógicas conflitantes___249

BIBLIOGRAFIA______________________________________________ 253

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1. Bibliografia citada _____________________________________254

2. Bibliografia complementar ______________________________263

6.3 Documentos, Jornais _________________________________265

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Resumo

No plano teórico, ao problematizar a rígida sepação entre meios e fins, liberdade e necessidade, esta dissertação interroga sobre as possibilidades e os entraves à criação democrática no interior de relações de produção, que estão submetidas aos imperativos da esfera da reprodução. No plano empírico, as empresas de trabalhadores autogeridas, que surgiram a partir das transformações no mundo do trabalho no Brasil da década de 90, introduzem de forma contraditória elementos da ordem moral no seio das relações de trabalho. O que emerge do conflito entre a lógica gestionária e a lógica política? Quais são os dilemas que estão postos por essas experiências? Essas questões são analisadas em três dimensões: as relações de produção, os trabalhadores e o contexto socioeconômico em que as empresas autogeridas estão inseridas. Partindo das contradições (internas e externas) vividas pelas empresas autogeridas a discussão evidencia a própria constituição sócio-política do campo econômico e das condições de eficiência. Na parte final, o texto questiona a emergência das empresas autogeridas e da Economia Solidária a partir das seguintes encruzilhadas: a relação entre a criação de espaços democráticos e o processo de desregulamentação das relações de trabalho; a relação entre teoria e instituição do real; entre técnica e política, e ainda, entre ação de sobrevivência e ação criativa. A dissertação conclui afirmando que é justamente o fato das empresas autogeridas introduzirem uma descontinuidade na ordem gestionária da vida (não-política e não-humana), que cria a possibilidade de constituição de um espaço potencialmente democrático que pode ou não se realizar.

Palavras chave: sociologia política; sociologia econômica; autogestão; economia solidária; trabalho.

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Abstract

From a theoretical perspective, throughout a reflection on the rigid

separation between ends and means, freedom and necessity, the following thesis intends to investigate the possibilities and the limits for democratic creation inside productive relations that are under the rules of the reproduction sphere. From the empirical perspective, the worker´s self-management enterprises - that arose from the 90´s Brazilian labor´s world transformation context – introduce moral elements into the labor relation in a contradictory way. What does come out of conflict between the management and political logics? What are the dilemmas posed by those experiences? Those questions are analysed in three dimensions: production relations; workers, and the socioeconomic context that selfmanagment enterprises are embeded in. As the discussion departes from the contradictions (internal and external) lived by the self-management enterprises, it shows the economic field and the efficiency conditions socio-political constitution.The last part of the text interrogates self-management enterprises and Solidary Economy emergence from the following crossroads: the relation between the creation of democratic spaces and the labor relations de-regulation process; theory and reality construction; technique and politic, and between survival and creative actions. To conclude, the thesis proposes that is the very fact that self-management enterprises introduces a discontinuity into the lives´ management order (non-political, non-human) that creates the potential to constitute democratic spaces that might, or might not, be accomplished.

Keywords: political sociology; economic sociology; self-management; solidary economy; labor.

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INTRODUÇÃO

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O processo de investigação é uma viagem espacial e temporal. Preciso

dirigir-me à velha Estação da Luz, onde as imagens de um metal em forma de outro

continente misturam-se à cacofonia produzida pelo movimento permanente da

cidade. Entre os milhares de trabalhadores que migram diariamente de diversos

pontos da megalópole paulista, sou arrastado para a plataforma de embarque e

jogado para dentro do vagão. O trem às vezes me surpreende pelo desencontro. Se

estivesse num bom dia cairia no chamado “Trem Espanhol”, com ar condicionado,

música clássica no sistema de som e vidros fumé adornados com buracos de

pedras que foram atiradas de fora. Ou, se estiver num mau dia, o que é mais

recorrente, cairei num trem superlotado, sem refrigeração e com algumas portas

que permanecem abertas para o delírio dos passageiros espremidos. Tudo isso,

sinais que marcam o percurso entre o centro e a periferia.

Em ambos os trens a cantoria dos ambulantes atualizam o tempo histórico:

“Oito pilhas é um Real”; “dez barbeadores por um Real”; “cortador de unha mais um

alicate é um Real”; “duzentas e cinqüentas piadas é só um Real”! Dentro e fora do

trem o mundo real. Entre São Paulo e Mauá, meu destino final, a vista parece um

mergulho nas várias temporalidades que marcam a industrialização dessa região.

Fábricas, galpões, edifícios, moradias, todos reduzidos a escombros de uma pós-

guerra econômica.

Entre os mortos, algumas fábricas ressuscitam como almas penadas, agora

sob a forma de empresas de trabalhadores, contrariando o exorcismo empreendido

pela lógica de acumulação privada do capital. A emergência dessas experiências

revela-nos que o sistema capitalista é muito mais complexo do que as ciências

compartimentadas imaginam. A existência contraditória dessas iniciativas é um

interessante convite para a reflexão sobre os mundos possíveis continuamente

silenciados no passado e que emergem no presente como fagulhas de um outro

modo de organização social.

***

Na cidade de Mauá fui em busca da UNIWIDIA. Poucos anos antes a

indústria que ocupava o mesmo espaço chamava-se Cervin Indústria e Comércio

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Ltda. Fundada pelo empresário alemão Josef Hellbruegg na Vila Prudente, em São

Paulo, transferiu-se para Mauá em 1975. Na década de 80 era líder do setor, tinha

250 trabalhadores e vendia 12 toneladas/ano de ferramentas em Metal Duro

(widia), faturando aproximadamente US$ 1 milhão/mês. A partir de 1993 a Cervin

entrou em dificuldades por razões societárias e administrativas, precedidas por uma

série de problemas também relacionadas à abertura comercial da Era Collor.

Seguiu-se então a demissão de trabalhadores, o não recolhimento do Fundo de

Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e nem do 13° salário, o não pagamento de

férias e de alguns salários.

Entre 1995 e 1998 os problemas se intensificaram. Houve acusações

informais de desvios de verbas por parte dos proprietários, sugestões de uma falsa

concordata e tentativa de venda da empresa para um grupo de advogados que

seriam mais tarde expulsos da empresa pelos próprios trabalhadores. No final de

97, esse grupo que apresentou-se como potencial comprador da indústria, chegou

na empresa aterrisando com um helicóptero no pátio central. Conforme me relatou

um trabalhador, todos acharam que era o Papai Noel chegando com a solução para

os seus problemas, como presente natalino. “No Brasil imagem é tudo” - disse o

entrevistado.

Durante o ano de 98 algumas ações do novo grupo controlador começaram

a gerar suspeitas. Como resposta os trabalhadores ocuparam o prédio da

administração, expulsaram os administradores e exigiram que os proprietários da

Cervin apresentassem uma solução satisfatória para os trabalhadores e para a

empresa.

Nesse momento, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC passou a dar suporte

aos trabalhadores nas negociações. Tendo sido feita a demissão de todos os

trabalhadores, eles se uniram na constituição de uma cooperativa. Ainda sem estar

completamente legalizada, iniciou-se um processo de co-gestão (também chamado

de “período de congestão” pelos trabalhadores), onde o faturamento era dividido

entre a cooperativa e a administração, que ficou responsável pela compra dos

insumos e pela comercialização dos produtos.

No dia 13 de agosto de 1999, um caminhão da empresa fornecedora de dois

insumos básicos para a produção de peças em widia tentou retirar sem qualquer

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17

ordem judicial os cilindros que armazenavam os combustíveis. Os trabalhadores

impediram a retirada do material e pediram uma nova negociação com os

proprietários. Nesse mesmo dia foi acordado o arrendamento da Cervin pelos

próprios trabalhadores, retirando, portanto, os antigos proprietários da

administração dos negócios. Agora toda a empresa estava sob controle operário.

De acordo com Luiz Marinho, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do

ABC, após a conquista da gestão pelos trabalhadores, a Cervin (a UNIWIDIA ainda

não estava formalizada) retomou com sucesso suas atividades. No final de 1999 a

produção era de 700 kg/mês de ferramentas vendidas a uma ampla carteira de

clientes industriais, os salários estavam normalizados e os impostos estavam todos

sendo recolhidos.

O processo de legalização da cooperativa foi uma outra luta. No dia 4 de

janeiro de 2000, após uma série de tentativas frustradas junto aos órgãos

competentes, os trabalhadores e o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC conseguiram

uma audiência com o então Governador do Estado de São Paulo, Mario Covas,

pressionando-o para que a formalização da cooperativa se concretizasse

rapidamente, pois havia uma demora excessiva na Junta Comercial. Entretanto,

antes que a inscrição comercial da cooperativa estivesse pronta, ocorreu uma nova

surpresa.

No dia 7 de janeiro, a empresa foi lacrada e toda a produção que naquele

momento já ocorria sob a gestão dos trabalhadores foi interrompida em decorrência

de uma sentença judicial proferida por uma juíza do Fórum de Mauá sobre o

processo falimentar da Cervin. Seguiu-se então uma luta em duas frentes distintas.

Foram realizadas várias manifestações em frente ao Fórum de Mauá contra a

decisão da juíza local, além de vigílias diárias reivindicando que o processo fosse

revisto durante os quase 60 dias de fechamento da empresa. O Sindicato, por sua

vez, entrou com um recurso jurídico no Fórum de São Paulo para reverter a decisão

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18

da juíza de Mauá e negociou com o síndico da massa falida1, que se posicionou

favoravelmente ao arrendamento pela cooperativa.

Finalmente, após 55 dias de fechamento, um Desembargador do Tribunal

de Justiça de São Paulo deu ganho de causa para a Cooperativa, alegando que o

seu trabalho seria positivo para a própria manutenção da massa falida. Essa

decisão permitiu que a cooperativa se tornasse a “fiel depositária” da massa falida

através de um contrato de arrendamento com seu síndico. Neste contrato, o único

fiador aceito foi o próprio presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Luiz

Marinho2.

***

Mas o que mudou para esses trabalhadores no interior das empresas

autogeridas?

Hoje é bem melhor – disse José, da UNIWIDIA. Você fica uma pessoa mais responsável. Você se dá mais valor. Porque além de fazer o serviço você sabe que você está trabalhando em prol de uma coisa que é sua mesmo. Você está trabalhando em prol de uma empresa que se você desenvolver você vai ter seus lucros. Você é um cooperado, ela é sua. Isso muda bastante.

As relações sociais no interior de uma empresa de trabalhadores autogerida

fascinam pelo encontro de lógicas distintas, pela ruptura e permanência de práticas

e significados anteriores, mas, sobretudo, pela capacidade de evidenciar o sistema

social anteriormente instituído. A forma, entretanto, como cada trabalhador e cada

empresa de trabalhadores autogerida responderá a esse processo será

determinada pela experiência prévia de cada trabalhador e pelas suas expectativas,

1 O síndico da massa falimentar é normalmente indicado pelos principais credores da antiga empresa. Sua missão principal é administrar e liquidar o patrimônio da empresa falida em prol dos credores. Como normalmente os maiores credores são instituições financeiras, fornecedores de insumos ou outras empresas que fornecem equipamentos ou serviços, seus interesses costumam pesar mais na balança do que os interesses dos trabalhadores que deveriam receber rapidamente seus créditos (salários atrasados, direitos trabalhistas e verbas rescisórias). 2 Este breve relato é fruto de entrevistas individuais com cooperados da UNIWIDIA e também da leitura do Jornal da Tribuna Metalúrgica do período entre outubro de 1999 e maio de 2000.

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pelo histórico da empresa e pelo atual campo de forças sociais e políticas em que

ela está inserida.

A passagem da situação de empregados assalariados para a de

trabalhadores associados é recheada de inúmeras resistências e transformações

culturais. A opção pelo trabalho coletivo nem sempre é consciente e pacífica, pois,

em muitos momentos, assumir uma empresa em estado pré-falimentar foi a única

“opção” que restava diante da certeza do desemprego.

Ao mesmo tempo, os anos mergulhados em relações de mando,

subordinação e consentimento, somados à uma capacitação profissional para um

trabalho fabril fragmentado e compartimentado, produziram trabalhadores com um

perfil que colide frontalmente com os princípios não hierárquicos e participativos

promulgados pela autogestão. A situação fica ainda mais complexa quando a

empresa autogerida assume toda a antiga infraestrutura de uma fábrica onde

cristalizou-se, na divisão sócio-técnica presente no sistema fabril, um conjunto de

práticas, ritos, símbolos e significados que constrõem um certo tipo de relação de

trabalho.

Nesse caso, o processo de instituição de um outro padrão de

relacionamento social, resultado da construção autogestionária, pode instalar uma

alteridade que desnaturaliza as relações anteriores, evidenciando, muitas vezes, o

sistema de valores que legitimavam a ordem anterior. Nesse encontro, surgem

inúmeros questionamentos para os próprios trabalhadores, que respondem, ora

reforçando as práticas anteriores ora instituindo novas relações sociais.

É interessante realçar que no momento em que esses trabalhadores

decidem montar coletivamente um empreendimento econômico, eles definirão as

regras que orientará as suas ações. Tal iniciativa introduz duas problemáticas que

devem ser analisadas. Primeiro, em que condições esse processo favorece ou mina

as condições de autonomia desses trabalhadores, pois a simples conquista dos

meios de produção não é condição suficiente para a mudança nas relações sociais

anteriores. Segundo, de que forma essa capacidade de autodeterminação pode se

realizar na medida em que as empresas de trabalhadores devem responder às

condicionantes de um mercado competitivo?

Page 20: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

20

Por exemplo, como fica a divisão dos salários entre os trabalhadores?

Antes, é preciso esclarecer que os trabalhadores, na condição de autônomos

associados, recebem “retiradas”, e não salários3. Na UNIWIDIA de Mauá, um

cooperado relatou como eles elaboraram as diferenças nas remunerações durante

o processo de transição da empresa para a cooperativa industrial:

A gente fez, se reuniu umas duas ou três vezes, o conselho fiscal, o conselho de administração, e tanto os suplentes também, “vamos tentar chegar em um valor”, fizemos uma faixa. Depois de umas três reuniões chegamos nos valores, aí fizemos a assembléia. Falamos assim... antes da assembléia chamamos pessoa por pessoa, falava assim “devido à situação a gente tentou fazer o mais... tá certo que não vai ser 100% certo, mas o mais próximo possível disso daí, para a gente levar a vida nossa numa boa, equalizar, ficar uma coisa mais igualitária de todas as pessoas. O seu salário é esse e seu salário reduziu para tanto, seu salário aumentou para tanto... porque você estava fazendo o serviço igual ao daquele, ele ganhava menos, você vai ganhar igual a ele”, para o outro você falava “você faz o mesmo serviço que aquele, então o dele a gente subiu um pouquinho e o seu a gente abaixou, aproximou o máximo possível para ficar mais próximo...” (Pedro – UNIWIDIA).

Em algumas situações, a disputa pelos rendimentos pode instalar um campo

político no interior da empresa de trabalhadores no instante em que o grupo cria um

conflito pelos critérios de partilha e de justiça no seio desta comunidade (Rancière,

1996). Muitas vezes, os trabalhadores irão reivindicar os critérios anteriores que

legitimavam as hierarquias de funções e salários. Fala-se, portanto, em

competência (saber prévio e acumulado), antigüidade ou tempo de trabalho,

funções com maior ou menor responsabilidade, diferenças salariais que motivam a

dedicação, etc. Por outro lado, às vezes, os argumentos baseiam-se em outros

critérios, como necessidades individuais, colaboração com o coletivo e trabalhos

realizados para a comunidade do entorno, igualdade na realização das tarefas e

nas responsabilidades.

Observa-se, entretanto, que existem sérios limites à implementação das

estratégias de remuneração no interior das empresas de autogestão. As

experiências de algumas cooperativas mais antigas têm mostrado que os valores

3 Essa diferenciação será explicada em um capítulo apropriado.

Page 21: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

21

das remunerações acabam convergindo para valores próximos àqueles estipulados

pelo mercado de trabalho mais amplo4. Uma razão para isso é a necessidade de

manter os bons trabalhadores nas cooperativas e não perdê-los para outras

empresas. Outro argumento diz respeito às “necessidades da própria empresa”.

Essa expressão poderia ser traduzida nos termos da “racionalidade

econômica” que também constitui as empresas de trabalhadores. Tais limitações

poderiam ser expostas numa longa série de pares de oposição: racionalidade

econômica versus racionalidade democrática; valor de troca versus valor de uso;

ação gestionária versus ação política; técnica versus moral. É justamente esse

caráter complexo e contraditório que torna os empreendimentos autogestionários

interessantes para o pensamento.

Em várias ocasiões, constatou-se nas falas dos dirigentes das empresas de

autogestão uma quase “esquizofrenia”, causada pelo desencontro vivenciado pelas

pessoas que se confrontam com duas lógicas sociais distintas: “No interior da

cooperativa temos que ser solidários, mas no mercado temos que ser competitivos”,

disse um diretor. O mesmo problema aparece claramente nos instantes de

deliberação sobre a aplicação dos excedentes da empresa autogerida. Alguns

cooperados querem aumentar as retiradas mensais de todos os trabalhadores,

enquanto outros dizem que é necessário reinvestir em novos equipamentos para

expandir ou readequar a produção. Esses dilemas aparecem mais claramente para

aqueles que estão na fronteira entre os dois universos, aqueles que conhecem as

necessidades dos trabalhadores no interior das cooperativas e as condições

colocadas pelo mercado competitivo.

Mas não seria essa contradição constitutiva de todas as experiências

limiares (entre a criação e a reprodução), uma vez que não existe qualquer

empreendimento humano que possa negar, simultaneamente e em todas a suas

dimensões a sociedade em que ele está inserido?

4 As cooperativas que compõem o complexo de Modragón no País Basco já enfrentaram vários desafios com relação à diferenciação salarial. Ver Whyte & Whyte (1988) e Kasmir (1994).

Page 22: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

22

Então, poder-se-ia perguntar: por que esses trabalhadores resolveram

montar uma empresa coletiva? A resposta mais rápida, porém errada no seu

reducionismo, seria que com a iminência do desemprego causado pelo fechamento

da indústria em que trabalhavam, somada à dificuldade para encontrar um novo

trabalho, os trabalhadores decidiram individualmente (como atores racionais

economicamente orientados) pela única opção possível, ou seja, resistir com a

antiga empresa.

Mas essa não é uma boa resposta e nem a melhor questão. O melhor talvez

seria observar e analisar o que surge em termos de novas práticas e significados

para esses trabalhadores que optaram pelo trabalho cooperativo, bem como refletir

sobre as permanências e mudanças que ele engendra. Antes de procurar uma

simples resposta através de categorias construídas de antemão, talvez fosse

interessante interpretar os elementos sociais, culturais, econômicos e políticos que

constituem, determinam e são determinados pelas escolhas desses sujeitos. Diante

dessas dúvidas perguntei a vários cooperados:

- Se tivesse a chance de voltar a ser empregado numa outra empresa você aceitaria? Em que condições aceitaria voltar para um trabalho semelhante ao que você fazia antes?

- Ahhhhh, ia avaliar que é começar tudo de novo. “Pô, começar tudo de novo!”. Marcar cartão, não participar, não saber o que está se passando na administração, não ter um relacionamento direto nas coisas na firma, eu acho que não seria mais interessante pra mim. É chato....a gente acompanhou o processo de falência aqui e a gente vê tanta coisa que foi de errado na administração aqui, tanta coisa que pessoas que saíram prejudicadas com isso, tudo por uma má administração. Então muitas vezes ocorre isso. Então pra sair daqui pra ir pra uma outra firma eu acho que não faria mais isso não. Como empregado você é limitado. Você às vezes tem chance de crescer, mas essa chance é remota. Aqui não. Se você mostra a capacidade de fazer determinada coisa....você tem a chance de mostrar de que você é capaz. Você tem capacidade. Então isso estimula o seu ego, “pô eu faço, eu vou lá” (José – UNIWIDIA).

***

Do ponto de vista das relações de produção no interior das empresas

autogeridas, os problemas não são menos complexos. A divisão social e técnica do

Page 23: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

23

trabalho expressas, por exemplo, na arquitetura da fábrica, na disposição dos

equipamentos, nas hierarquias, nos gestos e na própria subjetividade dos

trabalhadores, sofre profundos questionamentos no processo de transição da

relação assalariada para o trabalho associativo, enunciando, muitas vezes, um

campo político silenciado sob as relações de produção anteriores. Essa percepção,

no entanto, ocorre de forma diferenciada e não significa necessariamente

mudanças.

Muitas empresas de trabalhadores continuam a reproduzir a forma de

organização do trabalho anterior e, às vezes, pode-se encontrar no interior das

cooperativas de produção uma divisão sócio-técnica do trabalho que deixaria Taylor

e Ford orgulhosos. Em alguns casos, onde o desencontro entre a forma de trabalho

atual e anterior é mais evidente, fala-se, por exemplo, do “trabalhador que virou

patrão” ou do “cooperado que ainda acha que é empregado”. Entretanto, em

algumas delas os trabalhadores questionam o modelo prévio de trabalho e ao

reconhecerem os princípios que legitimam as hierarquias e as distribuições

desiguais dos direitos e deveres, consideradas agora injustas pelo grupo, tentam

criar modelos diferenciados de organização do trabalho.

Em outras empresas de trabalhadores, ao contrário, observa-se maneiras

outras de se organizar a produção, mostrando que o caminho da eficiência não é

necessariamente tão estreito como julgam muitos administradores, cientistas

sociais, economistas e os próprios trabalhadores.

A forma como uma inovação tecnológica é introduzida em uma empresa

pode ser analisada como o resultado de um conflito de forças entre diferentes

atores, simultaneamente determinante e determinado pelo campo político e social

historicamente dado. Por exemplo, quando se desenvolve uma técnica que permite

produzir duas vezes mais rápido, temos imediatamente três opções: 1) produzir a

mesma quantidade de produtos com a mesma jornada de trabalho e com a metade

de trabalhadores; 2) produzir a mesma quantidade com o mesmo número de

trabalhadores trabalhando meia jornada; 3) produzir mais com o mesmo número de

trabalhadores e uma jornada não reduzida.

Há, nesse cenário, três sujeitos coletivos interagindo entre si: os

consumidores, os proprietários ou administradores do capital e os trabalhadores. A

Page 24: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

24

opção escolhida, nesse caso, será o resultado da configuração sócio-política

formada pelo conflito entre esses grupos num certo contexto histórico. Poder-se-ia

ainda acrescentar, como quarta dimensão, o “meio ambiente físico-químico-

biológico”, influenciando na geração de insumos e na absorção de produtos diretos

e indiretos da produção, circulação e consumo de mercadorias. Mas esta dimensão

só conta se houverem grupos organizados que reivindiquem o direito universal de

usufruto da natureza ou o direito das gerações futuras aos bens comuns, do

contrário, o meio ambiente fica reduzido às “externalidades” dos modelos

econômicos.

Numa cooperativa de produção de vidros e cristais, por exemplo, a seguinte

estratégia foi organizada. A empresa precisava reduzir a produção para um nível

abaixo da capacidade anterior e, como não podiam “demitir” cooperados, decidiram

reduzir a jornada de trabalho entre todos eles. Num outro momento, precisavam

ampliar a produção e, ao invés de trabalharem uma jornada mais longa, decidiram

convidar outros trabalhadores que estavam desempregados para integrarem a

cooperativa, podendo assim ampliar a produção sem aumentar a jornada de

trabalho.

***

Numa direção complementar, não se pode reduzir a análise do

empreendimento econômico autogerido às suas dimensões internas, ainda que

essas sejam muito ricas e diversas. Existem outros componentes do universo

analítico que devem ser contemplados. A relação dessas experiências, por

exemplo, com o movimento sindical, com o mercado em que estão inseridas, com a

legislação que as circunscrevem e com as linhas de crédito e financiamento que

elas podem ou não ter acesso, terão sérias consequências sobre a organização

interna dessas empresas.

Retomando o relato sobre a UNIWIDIA descrito acima, observa-se que o

sindicato teve um papel fundamental nos passos iniciais da cooperativa. Entretanto,

essa aproximação do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC com as empresas de

trabalhadores e com o cooperativismo não foi um fenômeno isolado. Ela faz parte

Page 25: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

25

de um cenário mais amplo de mudanças que atingiram o mundo do trabalho e suas

instituições reguladoras no Brasil, no início dos anos 90. Como relatou Luis Inácio

Lula da Silva, na abertura do 3° Congresso do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC,

sobre o cooperativismo:

é uma coisa tão nova pra muitas pessoas que estão aqui! É tão nova como era discutir o fim da escravidão no começo do século passado [...] Discutir cooperativismo na década de 80 [...] seria praticamente uma heresia. E por que seria uma heresia? Porque na década de 60, 70... a palavra desemprego não era utilizada por nós no sindicato, nós utilizávamos “rotatividade de mão-de-obra [...] Se nós fossemos discutir cooperativas num congresso dos metalúrgicos em 1980, certamente os trabalhadores nos apedrejavam. Primeiro porque era um tema que a gente só sabia de cooperativismo no campo, e segundo porque tinha pleno emprego5.

Na década de 90, o sindicalismo cutista iniciou um namoro com certas

organizações econômicas de trabalhadores6, entretanto, como em toda nova

relação, os termos dessa interação e suas conseqüências nunca estão desde o

início bem definidas. Tome-se como exemplo um diálogo, em que eu estava

presente, com um líder sindical e o diretor de uma cooperativa de produção

industrial. O diretor-cooperado falava do atual sucesso do empreendimento, as

vendas estavam crescendo e os demais cooperados estavam recebendo suas

retiradas conforme os valores acertados. Os negócios mostravam uma tendência

de expansão e diante disso o diretor da cooperativa pensava em como eles

poderiam atender a uma maior demanda pelos seus produtos. “Precisamos de mais

trabalhadores” – disse ele. Perguntei se eles pretendiam incorporar novos

cooperados. De imediato respondeu-me que isso não seria possível, pois poderia

comprometer a eficiência da empresa e as relações com os antigos cooperados, e

propôs, em seguida, a inevitável contratação de outros trabalhadores como

empregados. Nesse instante, a liderança sindical que prestava suporte àquela

empresa deu um salto e esbravejou:

5 Transcrição da exposição de Luis Inácio Lula da Silva durante a abertura do 3° Congresso dos Metalúrgicos do ABC, realizada em Santo André no dia 4 de novembro de 1999. 6 Sob a noção de “organização econômica de trabalhadores” insere-se um amplo leque de empreendimentos coletivos, tais como cooperativas, empresas solidárias, empresas autogeridas, associações de produtores, distribuidores ou consumidores, etc. Mais adiante esses outros conceitos serão delimitados.

Page 26: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

26

Então você não entendeu nada do que se trata o cooperativismo. O sindicato dá um apoio pra vocês constituírem uma cooperativa e aí vocês vão virar patrão pra contratar outros empregados? No mesmo dia em que vocês fizerem isso a gente (o sindicato) vem aqui na porta da cooperativa fazer greve!

A entrada do sindicalismo em cena junto às empresas de autogestão se

insere numa teia de relações bastante complexa. O que significa, por exemplo, a

aproximação do sindicalismo brasileiro – que construiu-se a partir de um modelo de

relação trabalhista baseada no vínculo empregatício – das empresas autogeridas,

onde inexiste, em tese, o trabalho assalariado? O que muda, em termos da

redefinição do papel sindical e das categorias que são por ele representadas? Ou

ainda, o que pode enunciar o crescimento de experiências em que predomina o

trabalho autônomo (seja individual ou coletivamente organizado) em termos da

regulação social do mercado de trabalho, uma vez que tais empreendimentos

surgem num contexto de profunda transformação no contrato social de trabalho e

de suas instituições reguladoras?

O cooperativismo no Brasil esteve, de maneira geral, associado às

iniciativas rurais e a um caráter predominantemente patronal7. Quando ele

(re)aparece na década de 90 no meio urbano, suas características são muito

heterogêneas. Em muitos casos, como será discutido adiante, as cooperativas de

trabalho (tanto urbanas como rurais), que se constituíram na onda dos processos

de terceirização, foram utilizadas como uma maneira de intermediar a contratação

de trabalhadores com o único objetivo de diminuir custos e precarizar a relação de

7 Essa discussão remonta às décadas de 60 e 70, onde grandes cooperativas agropecuárias eram organizadas com forte apoio do Estado como projeto de levar a modernização ao campo. Elas estiveram, de maneira geral, associadas a determinados produtos (leite, álcool, açúcar, beneficiamento de grãos, entre outros) e se consolidaram sobre uma forma concentradora da propriedade da terra (Pinho, 1963, 1977). Essas cooperativas reuniam-se sob a Organização das Cooperativas Brasileiras, que até a Constituição de 1988, detinha o monopólio de representação de todas as cooperativas existentes no Brasil (com o Artigo 5° da Constituição eliminou-se esse monopólio). A OCB era uma instituição vinculada ao Ministério da Agricultura e exercia um papel tutelar sobre todas as cooperativas através das ramificações estaduais (OCESP, OCERGS, etc.) e das federações de cooperativas. Portanto, é compreensível que a atual constituição que regula o cooperativismo, elaborada em 1971, refira-se principalmente a uma realidade rural. Somente na década de 90, o cooperativismo de trabalho no meio urbano ganha forte expressão, surgindo, inclusive, outras entidades de representação, como as FETRABALHO estaduais (Federação das Cooperativas de Trabalho) e a Associação Nacional dos

Page 27: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

27

trabalho (pois inexiste vínculo empregatício entre o cooperado, a cooperativa e a

tomadora dos seus serviços). Não é sem razão, portanto, que o movimento sindical

tratou o tema com bastante reserva.

O ressurgimento, o crescimento e a diversidade de organizações

econômicas de trabalhadores se relacionam, portanto, a um novo contexto histórico

que fomentou o surgimento de experiências que buscam alternativas para as

“novas” formas de exclusão socioeconômica. Se por uma lado, algumas dessas

cooperativas fortalecem esse processo de precarização, existem muitas outras que

procuram resistir contra o desmoronamento de um mundo comum, criando outras

possibilidades de pertencimento e de referências coletivas.

Muitas dessas experiências têm sido identificadas a um “Novo

Cooperativismo”, à “Economia Social” (Dowbor & Kilsztajn, 2001) ou à “Economia

Solidária” (Singer, 2002). Tais nomenclaturas, porém, já instalam um campo de

disputa política pelos possíveis sentidos que tais projetos podem assumir. Antes,

porém, desses empreendimentos autogeridos serem reconhecidos como um novo

campo de organização social, produção econômica ou mesmo de investigação

científica por inúmeras entidades de apoio, sindicatos, partidos políticos,

organizações não-governamentais, governos e acadêmicos, seus precursores – os

trabalhadores e trabalhadoras que se auto-organizaram – percorreram uma

trajetória que ainda é muito breve.

No tocante à legislação, por exemplo, são inúmeros os desencontros

verificados entre uma prática que se transforma sempre mais rápido que os

instrumentos legais. As empresas autogeridas e seus trabalhadores enfrentam na

Justiça problemas de diferentes naturezas. Estes variam desde o não

reconhecimento formal das especificidades do trabalho associado e autogerido até

a perseguição policial daqueles operários que reivindicam o direito ao trabalho.

Trabalhadores em Empresas de Autogestão (ANTEAG), que reúnem cooperativas de trabalho majoritariamente urbanas.

Page 28: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

28

Segundo Francisco Dias Barbosa8, do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC,

um grave problema vivido pelos trabalhadores que assumem empresas em estado

falimentar é que a Justiça atribui constantemente aos trabalhadores a

responsabilidade sobre as dívidas da empresa anterior, poupando assim os antigos

proprietários. Como será descrito adiante, esse problema apareceu de forma clara

numa das primeiras experiências de autogestão assessoradas pela Associação

Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária

(ANTEAG).

Em outra situação bastante recorrente, os trabalhadores que aguardam pelo

recebimento dos seus créditos trabalhistas e salários atrasados, oriundos da

execução do processo falimentar da empresa em que eram empregados, chegam

muitas vezes a esperar até dez anos para receber os pagamentos. No final deste

período, o patrimônio da empresa ou já está completamente sucateado pelo síndico

da massa falida em favor de credores “mais interessantes” ou já foi completamente

destruído e desvalorizado pelo tempo.

Existem, ainda, outros casos mais chocantes, onde a ocupação de fábricas

pelos trabalhadores é respondida violentamente pela polícia. Na maior parte das

vezes os trabalhadores reivindicam o direito à gestão de fábricas falidas ou

simplesmente tentam proteger o patrimônio da empresa como única forma de

garantir o recebimento de seus créditos e salários atrasados, pois em muitos casos

os empresários retiram, de forma criminosa, o maquinário da empresa em processo

falimentar. Um exemplo disso foi a história da Cooperminas, em Criciúma, onde a

luta dos trabalhadores pelo direito de gestão da empresa carbonífera foi trágico e,

ainda hoje, inovador.

Mas os problemas não páram por aí. Como a legislação que regula o

cooperativismo foi produzida num contexto específico, tendo-se em mente um certo

tipo de cooperativa (sobretudo as rurais e de gestão centralizada), a diversidade

dos empreendimentos econômicos de trabalhadores não mais correspondem ao

modelo legal constituído. Além disso, são inúmeros os casos onde o ambiente

8 Conforme exposto no seminário “Sindicalismo e Cooperativismo” no Sindicato dos

Page 29: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

29

institucional (o sistema de crédito e financiamento, tributos, Justiça do Trabalho,

etc) têm dificuldade para tipificar e caracterizar esses empreendimentos, gerando,

constantemente, interpretações díspares na avaliação dessas experiências.

Do ponto de vista dos trabalhadores a situação não é menos complexa.

Como trabalhadores de uma empresa autogeridas, eles passam da categoria de

empregados assalariados para trabalhadores autônomos. Entretanto, a natureza do

trabalho fabril reforça os mecanismos e rotinas de cooperação entre esses

trabalhadores, de forma que eles desenvolvem necessariamente uma condição de

interdependência para a execução das tarefas. Ora, tal situação, a de trabalhadores

autônomos e associados, coloca inúmeras questões do ponto de vista da

constituição jurídica desses sujeitos. São eles trabalhadores, empresários,

autônomos, produtores associados ou empregados disfarçados?

No contexto das intensas transformações que atingiram o contrato social de

trabalho na década de 90, no Brasil, a análise de algumas experiências e também

das reivindicações elaboradas por inúmeros agentes envolvidos na constituição e

suporte dessas organizações econômicas autogeridas, parece indicar a constituição

de um novo campo político que interroga os atuais modelos de desenvolvimento

socioeconômico centrados na relação de trabalho assalariado.

Desafios semelhantes podem ser observados com relação às instituições de

crédito e financiamento. Primeiramente, pode-se indicar as dificuldades

encontradas pelas empresas autogeridas para obterem financiamento. Tais limites

são causados por diferentes razões. A falta de confiança do setor financeiro na

gestão dos trabalhadores, o perfil das empresas assumidas pelos trabalhadores ou

mesmo as orientações “políticas” de Governos que definem o tipo ideal de

empresas que devem receber financiamento, todos esses fatores revelam as

diferenças de tratamento recebido pelas empresas autogeridas quando

comparadas às empresas ditas tradicionais. Essas dificuldades, são reveladoras

das características institucionais que regulam e determinam o campo econômico.

Químicos de São Bernardo do Campo no dia 3 de novembro de 1999.

Page 30: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

30

Além desses elementos, os critérios de avaliação da produtividade e da

rentabilidade do capital investido nas empresas autogeridas pelas instituições de

financiamento podem entrar em choque com a lógica interna da produção dessas

empresas. Nesse sentido, a necessidade de crédito, por parte das empresas de

trabalhadores, cria inúmeros desafios para o coletivo que terá que responder aos

critérios de eficiência financeira que poderão, em certos casos, colidir com as

“necessidades” sociais que caracterizam os empreendimentos autogeridos.

Portanto, a sobrevivência dessas experiências esbarra em múltiplas

contradições que lhes são constitutivas. As empresas de trabalhadores, ao mesmo

tempo que tentam instituir novas relações sociais no mundo do trabalho, trazem

consigo, assim como toda iniciativa que introduz algo de novo no sistema social,

uma série de contradições no seu interior e também para com o ambiente no qual

elas tentam se instituir. Alguns desses elementos conflitantes podem ser facilmente

identificados. Porém, existem outros que são mais fluidos e que escapam às pré-

categorizações, pois são simultaneamente reprodutores das antigas relações de

trabalho e criadores de novas relações sociais, práticas, símbolos e significados

que muitas vezes passam desapercebidos para os olhos acostumados ao preto e

branco.

***

Trabalhadores assumem coletivamente a propriedade e a gestão de uma

fábrica: por que uma idéia tão simples incomoda profundamente o pensamento?

Ora, a pura existência de tais iniciativas questiona a aparente “ordem dos fatos”,

interroga a “natureza” das organizações empresariais que se apresentam como

modelos únicos e ideais da eficiência produtiva e propõem, para o desespero

daqueles acostumados a refletir com categorias muito restritivas, a transgressão da

visão dicotômica de mundo.

Assumir coletivamente um empreendimento econômico de forma autogerida

significa se dispor a construir as condições de gestão da própria reprodução da vida

econômica a partir de critérios outros que não aqueles unicamente impostos pelo

capital. Mas se a lógica do capital através do “sistema reprodutor de mercadorias”,

Page 31: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

31

para a usar a expressão de Kurz, é cada vez mais onipresente, quais são as

chances de sucesso de tais iniciativas?

Não há uma única resposta para essa questão. Entretanto, tal interrogação

leva-nos a outras. Aqui, interessa analisar as contradições internas e externas que

emergem a partir das empresas de trabalhadores autogeridas na sua inserção

paradoxal em relações socioeconômicas mais amplas.

Logo de início, elas impõem uma reflexão filosófica. Tanto o senso comum,

como certas tradições dentro da sociologia do trabalho e da filosofia, separam

rigidamente o reino da liberdade do reino da necessidade. De forma bem

simplificada, pode-se dizer que, no primeiro, encontra-se a política, a possibilidade

de emancipação e realização plena dos seres humanos. No segundo, o espaço da

reprodução cotidiana da vida, o trabalho enquanto autoconservação e, portanto,

escravo da permanente contingência da vida.

Como bem discutiu Arendt (1988), a partir do exemplo dos conselhos

operários da Revolução Húngara, essas experiências instalam uma ordem

democrática no interior da ordem gestionária fabril. Entretanto, o fracasso de tais

empreendimentos, ao contrário do que afirmam muitos liberais e marxistas, não se

deve apenas à essa combinação conflituosa.

As análises que dissociam o mundo do trabalho do mundo político, acabam

por neutralizar as possibilidades de constituição de espaços democráticos no

interior das relações de produção. Nessa perspectiva, a liberdade só pode se

realizar no não-trabalho. As experiências de autogestão, ao contrário, na sua difíc il

tarefa de conciliar duas lógicas sociais conflitantes (racionalidade democrática e a

racionalidade econômica), podem produzir um campo político no instante em que

tentam submeter o mundo econômico às condições sociais (de participação e

deliberação democrática), criadas pelo coletivo de trabalhadores.

É esse encontro impossível que me interessa analisar. A partir de um

problema fundamental, a combinação contraditória da racionalidade econômica

(reino da necessidade) com a racionalidade democrática (reino da liberdade), foram

identificadas três dimensões possíveis de análise: as relações sociais de produção;

a experiência dos trabalhadores, e a relação das empresas com o ambiente

institucional em que estão inseridas. Portanto, a presente dissertação irá tratar dos

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32

sentidos e significados, dilemas e contradições, criações e reproduções, que

emergem desse choque de “mundos” diferentes, tanto para os trabalhadores como

para as empresas autogeridas na sua relação com o meio social instituído.

Objetivando-se problematizar as relações econômicas enquanto um campo

socialmente construído, a discussão a partir das empresas autogeridas irá

interpretar as possibilidades e limites de um processo de “invenção” Política. Esta,

pode instituir-se no momento em que a prática dos trabalhadores no processo de

implementação da autogestão interroga e desnaturaliza a aparente neutralidade

dos critérios de eficiência produtiva, da divisão sócio-técnica do trabalho e a

distribuição dos recursos econômicos na sociedade.

Mas, para dar conta dessa proposta, será necessário um exaustivo trabalho

simultaneamento descrito e interpretativo, quase como o etnógrafo de uma cultura

desconhecida. Tal procedimento faz-se necessário para se evitar muitos pré-

conceitos que limitariam o “objeto-sujeito” da dissertação a uma experiência

residual, marginal, híbrida, fadada ao fracasso ou à degenerescência. Como o que

interessa é capturar justamente as mudanças, a situação limítrofe vivida por tais

empreendimentos e o que emerge nesse processo, o método deve ser capaz de

apreender essa dinâmica e delimitar a complexidade do problema.

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33

CAPÍTULO 1: DELIMITANDO A COMPLEXIDADE

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34

1. As transformações no mundo do trabalho na década de 90

1.1 O cenário da política econômica

Se os anos 80 no Brasil foram a “década perdida” para os economistas, e a

“década de novas lutas” para os cientistas sociais, como será que esses estudiosos

denominarão a década de 90? Chega-se ao final do século XX com a sensação de

que os anos 90 representaram uma aceleração nas transformações econômicas,

políticas e sociais em curso sem, no entanto, definir uma trajetória para o terceiro

milênio que se inicia9. Talvez a única certeza com relação a essas modificações é

que os valores e os princípios do sistema produtor de mercadorias tornaram-se

hegemônicos numa escala nunca antes conhecida (Kurz, 1993).

Desde o final dos anos 60, tem-se acompanhado uma transformação radical

nas relações de trabalho e na forma de produção e reprodução do capital

internacional. O período que sucedeu os “Anos Dourados” do capitalismo –

momento da construção do Welfare State nos países da Europa ocidental e do

crescimento das formas de produção que, de maneira heterogênea10, orientavam-

se pelo regime fordista (Hobsbawn, 1996) - foram marcados por profundas

transformações nas instituições reguladoras do mercado de trabalho que se

consolidaram no pós 2a Guerra Mundial.

9 De acordo com o Banco Mundial, entre 1970 e 1999 o número absoluto de pobres aumentou de 2 bilhões para 2,5 bilhões de pessoas no mundo. Ao mesmo tempo, o índice Gini de concentração de renda piorou: passou de 0,668 para 0,683 (onde zero representa a igualdade de renda e 1 a desigualdade máxima). Ainda, de acordo com o relatório da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), o número de pessoas que vivem em condições de pobreza cresceu de 40,5% para 43,8% entre 1980 e 1999 na América Latina. Em números absolutos em 1999, existiam 211 milhões pessoas em situação de pobreza. O número de indigentes também aumentou. Em 1980, existiam 62,9 milhões e em 1999 passaram a existir 89,4 milhões de pessoas vivendo em condições de indigência. 10 Diz-se heterogênea para questionar a idéia de modelos homogêneos de produção, já que, mesmo nos países centrais, as organizações fordistas de produção conviviam e muitas

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35

Os sinais dessa transformação começaram a ficar evidentes no começo dos

anos 70. Dentro das fábricas observou-se a implementação das novas tecnologias,

as reengenharias, a terceirização e os novos modelos gerenciais que acabaram

levando a uma outra configuração do universo das relações sociais que

compunham as fábricas (Antunes, 1999; Burawoy, 1990). Nas indústrias de

produtos com maior valor agregado, intensificou-se a substituição do trabalho vivo

pela utilização de instrumentos com elevada concentração de capital (trabalho

morto). Esses elementos acentuaram o desemprego11 nos países centrais de uma

parcela crescente da população no decorrer das décadas de 80 e 90. Nessa nova

constelação de relações o conjunto das identidades dos grupos sociais modificou-

se, levando a uma perda das referências de pertencimento coletivo (Quijano, 1998).

A essas novas formas de se organizar internamente à produção, somaram-

se outras externas. A partir da década de 70, na busca por mercados mais

liberalizados, com mão-de-obra mais barata e menos organizada, intensificou-se o

fracionamento das cadeias produtivas das empresas transnacionais que

espalharam seu processo produtivo em diferentes países do mundo. Nessa divisão

internacional do trabalho, normalmente os países centrais ficaram com as partes

das empresas responsáveis pela coordenação dessas redes, pela pesquisa e

desenvolvimento de novos produtos, pelas estratégias de investimento e de

propaganda, enquanto que aos países periféricos restaram as etapas que

necessitam de uma concentração maior de trabalho vivo, barato e, de preferência,

desregulamentado. Se nos primeiros predominam as relações formais de trabalho,

nos demais temos uma maioria de trabalhadores em condições informais e

precárias (Dupas, 2000).

Ainda faz parte desse cenário as transformações no capitalismo financeiro

que, no início dos anos 70, caminharam para uma maior liberalização. Esse

fenômeno não pode ser dissociado de transformações anteriores, uma vez que,

vezes incorporavam outras formas de produção. O livro World of Possibities, organizado por Sabel & Zeitlin (1997), trata dessa diversidade. 11 Conforme dados da OCDE, a taxa de desempregados passou, aproximadamente, de 7% em 1980 para 13% em 1998 na França; na Espanha de 16% para 23%, enquanto na Alemanha passou de 5% para quase 11% no mesmo período (Dupas, 2000).

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36

cada vez mais e numa velocidade ainda maior, as economias produtivas interligam-

se às economias financeiras.

Bem sinteticamente, já que essa explicação foge aos objetivos da

dissertação, alguns pontos serão destacados sem, no entanto, fazer um

encadeamento preciso: em 1971, durante o governo Nixon nos EUA, houve o fim

do tratado de Bretton Woods, rompendo-se o padrão ouro-dólar com o objetivo de

liberalizar o mercado financeiro norte-americano para possibilitar uma maior captura

dos capitais que estavam se concentrando no mercado europeu; entre 73 e 79,

iniciado com a crise do petróleo, tivemos um período de inflação mundial, onde

muitos países, principalmente da América Latina, se endividaram em dólares, num

momento em que as taxas de juros dos EUA estavam baixas; em 79, os EUA

elevaram seus juros de 6% para 12% ao ano, recuperando a capacidade

centralizadora da economia mundial. Na primeira metade dos anos 80, a economia

dos EUA, com o dólar supervalorizado, “puxou” as economias dos países

exportadores; simultaneamente ocorreu a acumulação de superávit nas economias

da Alemanha e do Japão; os EUA se endividaram e passaram a emitir títulos da

dívida pública em grande quantidade. Neste período ocorreu a securitização dos

papéis das dívidas públicas, tornando-os negociáveis internacionalmente e

aumentando a liquidez do mercado financeiro. Na segunda metade dos anos 80, a

economia japonesa fortaleceu sua moeda (o Iene); mas, entre 85 e 90, ocorreu uma

inflação de ativos nesse país – nesse momento o Japão concentrava em torno de

20% dos títulos da dívida pública americana – gerando uma instabilidade no

mercado financeiro que respondeu com a fuga de capitais. No início da década de

90, esses capitais do mercado financeiro se somaram aos capitais produtivos das

empresas que estavam internacionalizando seus processos produtivos. Teve-se,

então, o aparecimento de economias “emergentes” em alguns países da periferia

do capitalismo, como por exemplo, no sudeste asiático. No entanto, essa crescente

liberalização do capital financeiro foi acompanhada por uma também crescente

desestabilização das economias nacionais, como foram os casos da crise do

México em 95, da crise da Ásia em 97 e da Rússia em 98 (Singer, 1998b; Tavares,

1998; Fiori, 1998).

Page 37: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

37

Observa-se, no plano político internacional, ações correspondentes a essas

transformações. O governo Reagan nos EUA e o de Margareth Thatcher na

Inglaterra são as melhores expressões de um novo alinhamento liberal na

condução das políticas públicas. Se a greve dos mineiros em 85 na Inglaterra pode

ser interpretada como o ponto de inflexão na distribuição do poder nas sociedades

dos países centrais (Beynon, 1999), o mesmo pode ser dito do Brasil com a greve

dos petroleiros em 1995. Em ambas, como mostra Cibele Rizek, foram travadas

tanto uma luta prática quanto uma luta simbólica pela redefinição dos sentidos dos

“Direitos Sociais” (Rizek, 1998). O resultado dessa batalha – a vitória dos governos

identificados à gestão neoliberal – abriu caminho para a conversão semântica dos

“direitos” em “privilégios”, expressão das ações aparentemente técnicas que

privatizam as relações sociais através da rejeição da mediação pública dos direitos

(Paoli & Telles, 1998).

A eleição de governos identificados à implementação de “ajustes estruturais”

representou a desestruturação dos sistemas de Welfare State nos países em que

ele havia sido implementado. Isso pode ocorrer, em parte, devido ao crescente

desemprego e à fragmentação da classe trabalhadora desses países, ocasionada

pelos novos processos produtivos e pelas novas tecnologias (Dupas, 2000). Numa

perspectiva distinta, Oliveira (1999) argumenta que o enfraquecimento político da

classe trabalhadora no Welfare State teria sido provocada por um processo de

“naturalização” das conquistas históricas dessa classe, resultado de um processo

de apaziguamento e de gerenciamento dos conflitos sociais pelas instituições

estatais. Se, por um lado, a classe trabalhadora foi atingida por profundas

modificações na centralidade do trabalho, por outro, as elites passaram a viver a

experiência subjetiva da desnecessidade – ilusória – do público. Portanto, a

aparente dívida pública dos Estados no Welfare State é, segundo Oliveira, a

apresentação invertida de uma situação onde o Estado utiliza os fundos públicos

para impedir uma crise de valor da riqueza do capital privado.

Page 38: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

38

1.2 O mercado de trabalho brasileiro nos anos 90

No caso brasileiro, essa aparente “desnecessidade do Estado” (Oliveira,

1999) possui contornos próprios. No governo Collor, a partir de 1989, teve início um

processo de abertura comercial bastante acelerado. De acordo com Singer (1998b),

essa abertura teria contribuído para que entre o período de 1989-1992 o produto

total brasileiro caísse 4,95% e o industrial 13,22%, expressões da crise industrial e

do processo de desindustrialização12. Ainda segundo este autor, a

desindustrialização é o reflexo de uma tendência universal, fruto da Terceira

Revolução Industrial que permitiu o surgimento de tecnologias de informação e de

produção capazes de obter grandes ganhos de produtividade sem o respectivo

aumento de postos de trabalho no setor industrial. Ao lado desse processo,

observou-se, no decorrer da década de 90, o deslocamento da distribuição das

ocupações em direção ao setor de serviços (cf. Tabela 1).

12 A desindustrialização, segundo Singer (1998b), é a diminuição em termos relativos da parcela do tempo de trabalho socialmente alocada à indústria.

Page 39: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

39

Tabela 1: Distribuição dos Ocupados, segundo Setor de Atividade Econômica do Trabalho Principal Região Metropolitana de São Paulo 1985-99 Em porcentagem

Distribuição dos Ocupados Anos Setor de Atividade 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999

TOTAL 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Indústria de Transformação 32,8 34,7 33,8 32,2 33,0 31,2 28,3 26,4 25,2 25,3 24,7 22,6 21,0 19,8 19,6

Construção Civil 3,3 3,4 4,0 4,3 3,9 3,4 2,9 3,3 2,9 3,0 2,6 3,0 2,7 2,6 2,3 Comércio 14,1 14,0 14,5 14,1 14,8 16,0 16,3 16,3 16,3 16,9 17,0 17,2 17,0 16,7 16,1 Serviços 40,7 39,4 39,9 41,6 41,3 42,5 44,9 46,0 47,7 46,9 47,6 48,6 50,3 51,8 52,7 Serviços Domésticos 8,2 7,7 6,9 6,9 6,1 6,0 6,9 7,3 7,1 7,2 7,6 8,1 8,4 8,4 8,9 Outros 0,8 0,7 0,7 0,5 0,5 0,6 0,4 0,5 0,5 0,5 0,4 0,5 0,5 0,5 0,4 Sem Declaração 0,2 0,2 0,2 0,3 0,4 0,4 0,2 0,2 0,1 0,2 0,1 0,1 0,1 0,1 0,1

Fonte: SEP. Convênio SEADE-DIEESE. Pesquisa de Emprego e Desemprego.

Os baixos níveis de crescimento econômico da década de 90, somados

àqueles da “década perdida”, contribuíram para o aumento do desemprego. Para se

ter uma idéia do cenário veja alguns dados macro-econômicos13. Segundo o

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de crescimento do

Produto Interno Brasileiro (PIB) em 1989 teve um pico de crescimento por volta de

3% naquele ano, enquanto que em 1998 ele foi quase zero. Com base nesses

13 As políticas macro-econômicas adotadas durante os anos 90 tiveram grande influência nas contas internas e externas da economia nacional. Segundo o IBGE (1998), o saldo comercial brasileiro em 1989 era de US$ 16.119.382.000, passando para um saldo negativo em 1998 de US$ 6.400.829.000. Após a desvalorização do Real, no início de 1999, o saldo comercial começa a se recuperar. O ano de 99 fechou com um saldo negativo de US$ 1,261 bilhões. O ano seguinte conseguiu reduzir para um valor negativo de US$ 697 milhões e, pela primeira vez desde a adoção do Plano Real, a balança obteve um superávit de aproximadamente US$ 37 milhões no ano de 2001, até setembro (Conjuntura Econômica, outubro 2001, p.XVI-XVII).

Page 40: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

40

dados, Dupas (2000) afirma que entre 1990 e 1998 o Brasil teve uma média anual

de crescimento do PIB per capita de apenas 0,4%.

Somados aos processos de reestruturação produtiva e de inovações

tecnológicas, os baixos índices de crescimento econômico levaram a um aumento

dos índices de desemprego no Brasil. Em 1989 a taxa de desemprego total,

segundo o DIEESE14, era de 8,7%. Fechamos o ano de 99 com um valor em torno

de 19,3% (as taxas de desemprego aberto são, respectivamente, 6,5% e 12%).

Entretanto, seria equivocado reduzir o problema do desemprego às inovações

tecnológicas. Novas tecnologias por si só não destrõem postos de trabalho, elas

podem, inclusive, criar novas ocupações. O que acontece, sobretudo no setor

industrial, é a combinação das inovações técnicas com formas de divisão social do

trabalho no sentido de minimizar o trabalho humano15. Dessa forma, sob a palavra

desemprego esconde-se um processo mais amplo de transformação no mercado

de trabalho.

Em seu livro Globalização e Desemprego – diagnósticos e alternativas,

Singer (1998b) realiza uma análise detalhada das transformações do mercado de

trabalho na Região Metropolitana de São Paulo. O problema do desemprego vem,

segundo o autor, acompanhado de uma crescente informalização nas relações de

trabalho e do desassalariamento. Como se pode verificar na Tabela 2, entre 1989 e

1999 houve uma diminuição na porcentagem da população economicamente ativa

trabalhando em regime de assalariamento (de 72,1% para 61,4%).

Simultaneamente, constatou-se uma escalada nas porcentagens de trabalhadores

autônomos (de 15,6% em 1989 para 21,0% em 1999); aumento também na

categoria dos empregadores (de 4,1% para 5,4%). No setor assalariado a

14 Para o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE) a taxa de desemprego total é o resultado da soma do desemprego aberto (para o período de referência de 30 dias) com o desemprego oculto (subdividido em desemprego pelo desalento e trabalho precário). Com tal categorização, segundo o DIEESE, procurou-se abranger três requisitos: 1.procura ativa por trabalho; 2.realização de alguma atividade eventual; 3.atividade que não contempla perspectiva de continuidade e assiduidade. 15 Encontramos, como sugere Dupas (2000), países como o Japão com elevado nível tecnológico e baixo desemprego e, por outro lado, países como a Espanha onde o nível de difusão tecnológica é mais baixa e os índices de desemprego são muito maiores.

Page 41: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

41

porcentagem de trabalhadores sem carteira assinada passou de 9,1% em 1989

para 12,5% em 1999.

Para Singer, essa transferência de trabalho da indústria para o comércio e o

crescimento do setor de serviços significam também “a substituição do trabalho

assalariado pelo trabalho por conta própria” (1998b, p.44). Portanto, ao lado do

crescimento do trabalho autônomo com a diminuição na porcentagem de

trabalhadores com vínculo empregatício formal, temos a elevação do desemprego e

de formas mais flexíveis e precárias de trabalho16 (cf. Tabela 2).

16 Entende-se por “trabalho flexível” aquele trabalho que é realizado através de uma relação contratual formal não-empregatícia. Por “trabalho precário” entende-se aquele trabalho que é realizado sem relação contratual formal, ou ainda o trabalho flexível que se revela descontínuo, inseguro, insalubre, instável, com jornadas de trabalho exageradas ou onde a subordinação é escamoteada sob a aparente condição de autônomo.

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42

Tabela 2: Distribuição dos Ocupados, segundo Posição na Ocupação no Trabalho Principal Região Metropolitana de São Paulo 1985-99 Em porcentagem

Distribuição dos Ocupados Anos Posição na Ocupação 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999

TOTAL 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Assalariado 70,3 70,9 70,7 71,7 72,1 71,6 67,4 66,6 65,8 65,8 65,1 63,0 61,6 62,2 61,4 Setor Privado 60,1 61,1 61,3 61,6 62,1 61,3 57,4 55,8 54,4 55,7 55,4 53,9 53,2 53,5 52,8 Com Carteira Assinada 51,9 52,7 53,2 53,0 53,0 53,0 48,2 46,7 44,9 45,3 44,5 42,5 41,3 41,5 40,4 Sem Carteira Assinada 8,2 8,4 8,1 8,5 9,1 8,3 9,2 9,1 9,5 10,4 11,0 11,4 11,9 12,0 12,5 Setor Público 9,9 9,7 9,3 9,9 9,8 10,2 9,9 10,7 11,3 10,0 9,6 9,1 8,3 8,6 8,5 Autônomo 15,1 15,1 15,7 15,1 15,6 16,0 18,2 18,5 18,6 18,6 18,7 19,8 20,5 20,6 21,0 Trabalha para o Público 8,6 8,8 9,8 9,6 10,1 10,7 12,2 12,1 11,9 11,7 12,0 12,5 12,9 12,9 12,9 Trabalha para Empresa 6,5 6,3 5,9 5,5 5,5 5,3 6,0 6,4 6,7 6,9 6,7 7,4 7,5 7,7 8,1 Empregador 4,2 4,3 4,5 4,2 4,1 4,3 5,0 4,8 5,1 5,4 5,5 5,8 6,0 5,5 5,4 Empregado Doméstico 8,2 7,7 6,9 6,9 6,1 6,0 6,9 7,3 7,1 7,2 7,6 8,1 8,4 8,4 8,9 Trabalhador Familiar Sem

Remuneração Salarial 1,6 1,4 1,6 1,5 1,5 1,5 1,6 1,9 2,3 2,0 2,0 2,1 2,2 2,0 1,9 Outras 0,7 0,5 0,6 0,6 0,5 0,6 0,9 0,9 1,0 1,0 1,0 1,2 1,4 1,3 1,5 Fonte: SEP. Convênio SEADE-DIEESE. Pesquisa de Emprego e Desemprego.

Quando o processo de desindustrialização, com o relativo aumento das

ocupações no setor de serviços, somou-se ao crescente desemprego e

informalização, os trabalhadores foram duplamente atingidos, tanto

economicamente quanto na sua capacidade política de articulação. Como o

empregado assalariado formalmente registrado é o principal elemento constitutivo

do sindicalismo brasileiro, essas modificações levaram a um enfraquecimento

dessas organizações de trabalhadores, diminuindo a capacidade de resistência das

Page 43: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

43

organizações coletivas de trabalhadores frente ao aumento das formas precárias de

contratação.

Portanto, as dificuldades de articulação e de negociação dos sindicatos

diante do fortalecimento de formas precárias de trabalho e também o elevado

desemprego acabaram pressionando essas entidades para uma mudança nas suas

estratégias de luta17. Além disso, as recentes formas de divisão técnica e social do

trabalho criam uma nova arquitetura nas relações sociais entre os trabalhadores,

dificultando as formas tradicionais de identificação coletiva e de organização social

(Antunes, 1999). Como bem mostra o seguinte depoimento de Lula, é o movimento

sindical tentando se adequar às modificações do mundo do trabalho e também ao

próprio processo inventivo dos trabalhadores:

Se o sindicato não se mete a discutir cooperativa, os trabalhadores vão discutir, e vão tentar encontrar solução para os seus problemas. E aí, ao invés de ter essa cooperativa de trabalhadores como aliado, vai ter como inimigo. Então é saber se vamos ter coragem de dar esse passo...o sindicato ser um instrumento, junto com a prefeitura, junto com o governo do estado, junto com outras entidades, o sindicato...ser um instrumento que possa facilitar a organização dessa gente. Porque se a gente não consegue mais a garantia do emprego formal, a gente vai ter que garantir o direito ao trabalho de milhões de brasileiros que são marginalizados. E isso não implica que o sindicato tenha que abrir mão de sua luta política. [...] Uma coisa é nossa briga com o governo, nossa briga com o patrão que vai ter que continuar cada vez mais. E a outra é organizar aqueles que já foram marginalizados. [...] Ora, se o povo tá fazendo, e a gente não tem como dizer se é contra, porque não tem nada pra oferecer pro cara, vamos aprender o que é isso e vamos tentar introduzir no nosso meio um mecanismo a mais pra ajudar nossa gente que tá desesperada18.

17 Sobre as transformações no sindicalismo brasileiro ver Rodrigues (1999) e Antunes (1997). 18 Transcrição da exposição de Luis Inácio Lula da Silva durante a abertura do 3° Congresso dos Metalúrgicos do ABC, realizado em Santo André no dia 4 de novembro de 1999.

Page 44: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

44

1.3 Desregulamentação do contrato de trabalho

A situação socioeconômica descrita acima acaba forçando ainda mais o

mercado de trabalho por uma maior desregulamentação dos direitos sociais: o

desemprego funciona como força disciplinadora da classe trabalhadora; as

subcontratações permitem uma diminuição nos custos de contratação da mão-de-

obra; as terceirizações são feitas com contratos de médio e curto prazo e sem

vínculo empregatício, transferindo para os executantes todas as responsabilidades

da reprodução da força de trabalho; pressão dos empregadores sobre o Estado

brasileiro para que ele deixe de intermediar a relação trabalho-capital.

Quando o trabalhador passa da situação de empregado para a de

trabalhador autônomo, todos os direitos trabalhistas (fundo de garantia por tempo

de serviço, férias remuneradas, descanso semanal, 13° salário, etc.) que se

constituíram a partir da relação de emprego deixam de existir. Além disso, sua

relação de trabalho deixa de ser regulamentada pela legislação trabalhista

(Consolidação das Leis do Trabalho - CLT), que reconhecia, ainda que de forma

tutelar, as condições desiguais entre o trabalhador que vende sua força de trabalho

e o tomador (empregador) de seu trabalho, estabelecendo critérios que limitavam

minimamente a exploração do trabalhador e garantiam uma relativa estabilidade no

emprego. Assim, na condição de trabalhador autônomo19, entende-se que o

trabalhador está em pé de igualdade com o empregador, uma vez que,

19 De acordo com Nascimento “o modo como o trabalho é prestado permite distinguir melhor entre trabalho subordinado e trabalho autônomo desde que seja percebido que há trabalhos nos quais o trabalhador tem o poder de direção sobre a própria atividade, autodisciplinando-a segundo os seus critérios pessoais, enquanto há trabalhadores que resolvem abrir mão do poder de direção sobre o trabalho que prestarão, fazendo-o não coativamente como na escravidão, mas volitivamente como exercício de uma liberdade, transferindo, por contrato, o poder de decisão para terceiros em troca de um salário, portanto, subordinando-se”. E ainda, “aqueles que detêm o poder de direção da própria atividade são autônomos e aqueles que alienam o poder de direção sobre o próprio trabalho para terceiros em troca de remuneração são subordinados” (apud Mauad, 1997, p.166).

Page 45: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

45

teoricamente, o trabalhador é livre para vender sua força de trabalho da maneira

que desejar20.

Altera-se, portanto, a relação Estado-capital-trabalho na medida em que o

pacto social sobre a relação de trabalho – baseado na responsabilidade

compartilhada por toda a sociedade na forma de um sistema regulador público

capaz de universalizar os direitos de cidadania (Direitos Sociais) para o conjunto

dos trabalhadores – transforma-se numa responsabilidade individual (privada), onde

o trabalhador torna-se o responsável pelas suas condições de sobrevivência. Nos

termos propostos por Santos (1999), as mudanças nas regulamentações sobre a

relação de trabalho podem indicar a passagem de um modelo de contrato social,

mediado por organizações sociais (p. ex. Sindicatos) e estatais (p. ex. Ministério do

Trabalho), para uma relação nos moldes do contrato liberal-individual.

Conforme esse autor, o contrato social da modernidade emerge da tensão

dialética entre a regulação social e a emancipação social, dando origem à

racionalidade social e política da modernidade ocidental, onde os critérios de

inclusão e de exclusão fundamentam a legitimidade da contratualização. Será em

torno desses critérios de inclusão e exclusão que, diacronicamente, forma-se um

campo de lutas sociais pela conquista e ampliação dos direitos. Porém, para Santos

(1999), o contrato social está sendo abalado nos seus principais pilares: crise do

regime geral de valores; crise do sistema comum de medidas (que define critérios

de justiça social), e crise do espaço-tempo nacional estatal. Nessa perspectiva, a

crise do contrato social se concretiza com a emergência de uma “nova”

contratualização, conforme o contrato liberal-individual, moldado na idéia do

contrato de direito civil, entre indivíduos e não entre agregações coletivas de

interesses sociais divergentes.

20 No modelo de contrato social de trabalho existe o reconhecimento da desigualdade de poder entre o trabalhador que vende a sua força de trabalho e o tomador de serviço (empregador). No modelo de contrato individual entende-se que a relação de trabalho ocorre entre sujeitos igualmente livres (aquele que vende e aquele que compra a força de trabalho), sendo a relação de trabalho uma relação privada e particular, portanto, alheia a uma dimensão de responsabilidade pública.

Page 46: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

46

Pode-se visualizar, muito bem, o que significa a desregulamentação da

relação Estado-capital-trabalho em termos de insegurança social, principalmente no

caso brasileiro, onde, historicamente, a cidadania foi institucionalizada numa

relação vertical com o Estado – de cima para baixo – aparecendo como a doação

de um Estado protetor, separada, portanto, da liberdade política como valor e como

prática efetiva (Telles, 1992). Ou ainda como uma “cidadania regulada”, cuja

existência cívica está vinculada ao pertencimento corporativo, não constituindo a

figura do cidadão como sujeito moral e soberano21.

No Brasil, o processo de desregulamentação dos direitos sociais – que

nunca chegaram a se consolidar universalmente – assume dimensões trágicas num

contexto de elevadíssimo desemprego e de privatização dos serviços estatais que

deveriam fazer a cobertura desses direitos, como a área da saúde, educação e

previdência social. Como nos revela Chauí (1999) ao discutir o sistema universitário

nacional, o neoliberalismo na década de 90 introduz a competição como “solo

intransponível” das relações sociais, políticas e individuais, fazendo da ação

econômica o paradigma da ação humana.

Se há algo de “novo” no neoliberalismo, talvez seja justamente essa

capacidade de operar a dissolução da política e substituí-la por uma racionalidade

técnico-administrativa, gerando um eclipse sobre a responsabilidade pública dos

direitos sociais (Paoli & Telles, 1998). Se tomarmos a “política” nos termos

propostos por Rancière (1996), ou seja, como o ato de ruptura da forma como a

riqueza social e a capacidade de auto-determinação estão distribuídas entre os

diferentes grupos sociais que participam de uma certa comunidade, as “gestões”

neoliberais representariam a tentativa de anulação das esferas de mediação pública

e de representação, e portanto, a transformação da política num procedimento

pretensamente técnico.

Um dos riscos imediatos de tal processo de desregulamentação das

relações de trabalho é que ele vem acompanhado da desresponsabilização do

21 Conforme SANTOS, Wanderley Guilherme. Fronteiras do Estado mínimo. Indicações sobre o híbrido institucional brasileiro. In: Razões da desordem. Rio de Janeiro: Rocco, 1993 apud Telles, 1992.

Page 47: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

47

Estado sobre os cidadãos, que deixam de estar inseridos no mercado formal de

trabalho, criando uma população cada vez mais excluída – se é que estiveram em

algum momento inseridas – dos direitos de cidadania. A gravidade dessa situação,

argumenta Oliveira (1999), se acentua na medida em que o Estado brasileiro é,

simultaneamente, enfraquecido objetivamente pela sua dilapidação financeira e

subjetivamente pela “falsa consciência da desnecessidade do público”,

disseminando uma experiência burguesa antipública (p.73).

Assim, as classes sociais que se encontram mais ameaçadas pelo

desemprego e por essa crescente desresponsabilização do Estado sobre a

efetivação dos direitos sociais, talvez estejam vivenciando uma “nova” forma de

exclusão social. A dinâmica histórica que se enuncia não permite diagnósticos

fechados sobre os rumos de todas essas mudanças que têm como epicentro a

relação de trabalho. Acredito que estejamos num momento em que essas

transformações podem nos levar para caminhos distintos, tanto no sentido da

criação de novas formas de contratualização (social e individual) com a

correspondente conquista de novos direitos de cidadania, como para uma situação

de precarização e destituição desses direitos.

Page 48: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

48

2. Possíveis caminhos e descaminhos dos desempregados: reações e

proposições face à crise do emprego

Diante dessa situação de intensa transformação no mercado de trabalho, de

elevados índices de desemprego e da incapacidade dos setores público e privado

gerarem postos de trabalho estáveis e regulamentados, quais são os caminhos e

descaminhos que os trabalhadores têm encontrado ou que lhes têm sido impostos

para a sobrevivência?

2.1 Saídas de emergência e estratégias de sobrevivência

Uma grande parcela dos trabalhadores deslocou-se para a condição de

autônomos formais ou informais, alguns são assalariados sem carteira e outros

vivem do trabalho eventual (o chamado “bico”). Ainda sob a categoria de

“desempregados” encontram-se muitos trabalhadores que não tem qualquer

perspectiva de continuidade ou de re-inserção no mercado de trabalho22. Muitos se

tornaram vendedores ambulantes, prestadores de pequenos serviços ou

trabalhadores domésticos e se camuflam sobre as estatísticas de

“empreendedores” ou “autônomos”.

De maneira geral, a situação de desestruturação do mercado de trabalho

acaba empurrando o trabalhador para a busca de soluções individuais para os seus

problemas. Muitos são os motivos que o levam para uma trajetória solitária. A

possibilidade de conseguir inserir-se individualmente numa das franjas desse

mercado precário aparece como caminho único diante da guerra de todos contra

todos instalada pelo elevado desemprego.

22 Só para se ter uma idéia da dificuldade de conseguir um novo emprego na Região Metropolitana de São Paulo: em 1989 os desempregados gastavam em média 15 semanas para conseguir um outro trabalho, enquanto que em 1999 o tempo despendido na procura

Page 49: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

49

Essa é, pelo menos, a forma aparente e superficial que o problema assume

na vida cotidiana - lugar do imediato e da impressão fragmentada da realidade, mas

também, o lugar da manifestação das contradições e que abrem caminhos para a

sua crítica23.

Ao mesmo tempo, tem-se acompanhado formas de adaptação às

transformações do mercado de trabalho que se caracterizam pela formação de

empreendimentos coletivos pelos trabalhadores. Existe um grande número dessas

iniciativas que surgem no rastro dos processos de terceirização, uma vez que as

empresas têm encontrado, nas pequenas empresas e nas cooperativas de trabalho,

uma boa maneira de baixar seus custos de produção e de flexibilizar (e precarizar)

as relações contratuais. O que acaba acontecendo concretamente é que muitas

empresas constituem cooperativas próprias, colocando seus administradores na

direção dessas cooperativas e “convidando” seus trabalhadores a se integrarem a

ela.

Nessa situação os trabalhadores acabam executando as mesmas tarefas;

os empregadores deixam de pagar os salários da categoria e os impostos relativos

à relação empregatícia; a cooperativa não possui nenhuma autonomia de buscar

novos mercados e, portanto, os trabalhadores não têm a opção de não se tornarem

sócios já que a recusa vem acompanhada do desemprego. No final das contas o

empregador corta custos, flexibiliza a contratação em seu favor e transforma custos

fixos em custos variáveis conforme a produção. Por outro lado, o trabalhador é, na

realidade, um empregado contratado como cooperado, ficando com a subordinação

do primeiro e a inexistência de direitos trabalhistas do segundo.

Aqui, flexibilização converte-se em precarização, desregulamentação em

destruição dos direitos e autonomia em nova heteronomia. Neste modelo, elas se

de trabalho subiu para 44 semanas (Dados referentes ao “desemprego total”. Fonte: SEP – Convênio Seade-Dieese. Pesquisa de Emprego e Desemprego). 23 Uma interessante discussão sobre a vida cotidiana enquanto espaço e tempo da alienação e da possível emancipação encontra-se em Martins (1996), Lefebvre (1991), Heller (1982) e Kosik (1976).

Page 50: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

50

aproximam daquilo que os sindicatos convencionaram chamar por “coopergatos”24,

uma vez que utilizaram a forma legal de uma cooperativa simplesmente para

camuflar uma relação de subordinação e de precarização dos direitos trabalhistas25.

No Nordeste brasileiro são recorrentes as cooperativas industriais criadas,

algumas vezes, por governos estaduais para atrair empresas privadas para esses

Estados, contando ainda com incentivos que alimentam a “guerra fiscal” entre os

Estados da Nação26. As empresas que ali se instalam, muitas delas fugidas do Rio

Grande do Sul em busca de custos de produção mais baixos e de trabalhadores

menos organizados, encontram a resistência dos sindicatos locais que exigem a

devida contratação daqueles trabalhadores que estão em regime de subordinação.

Por outro lado, alguns sindicatos do Rio Grande do Sul têm apoiado a formação de

cooperativas autogestionárias27 na busca por alternativas ao desemprego (Araújo &

Lima, 1998).

Existem, ainda, as cooperativas e associações comunitárias que surgem da

auto-organização de pessoas desempregadas e que acabam se inserindo nas

cadeias produtivas fragmentadas de grandes companhias, algumas delas

multinacionais. Nesses casos, ainda que os trabalhadores tenham autonomia sobre

a maneira como eles organizam e realizam o trabalho, são totalmente dependentes

das diretrizes externas decididas em algum centro de planejamento longe dali.

Essas iniciativas acabam realizando partes da produção de mercadorias que

necessitam de uma elevada quantidade de trabalho humano sem, no entanto,

participarem da concepção dos produtos ou dos lucros finais das empresas que

24 “Coopergato” é o apelido dado às cooperativas que são constituídas, normalmente, por empregadores ou por agentes intermediários de mão-de-obra com o objetivo de baratear custos e precarizar a relação de trabalho. Nas coopergatos os critérios que definem o conteúdo da relação cooperativa, como por exemplo as relações democráticas na gestão e na propriedade e outros princípios do cooperativismo, não são cumpridos na prática. 25 Cf: Folha de S. Paulo, Brasil, “Setor de calçados cearense tem 3.500 cooperativados”, e “Cooperativas deixam 2,5 mi sem direitos”, 18/01/1998, p.12-13; Diário Comércio & Indústria, “Cooperativas fraudulentas para fugir de encargos”, 17/07/97, p.16; O Estado de S. Paulo, “Sapato ‘made in Ceará’ abastece Manhattan”, 6/07/97, p.D2. 26 idem. 27 Os autores em questão, Araújo & Lima, designaram essas cooperativas como “autogestionárias” em oposição às “coopergatos” e às cooperativas patronais. Mais adiante as noções de “autogestão” e “cooperativas” serão melhor delimitadas.

Page 51: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

51

detêm o poder decisório e o direito de utilização das marcas. Nessa perspectiva,

elas se inserem na nova divisão internacional do trabalho, realizando uma pequena

fração da totalidade do processo produtivo.

Em outros casos, essas iniciativas têm a chance de encontrar vários

compradores para o trabalho que realizam, diminuindo o grau de dependência a um

único comprador. Entretanto, o elevado desemprego e a falta de organização entre

esses empreendimentos têm levado a uma acirrada competição entre eles próprios,

pressionando para baixar ainda mais o valor do seu trabalho28.

2.2 Em busca de alternativas coletivas

Além de todos esses casos, temos ainda acompanhado o surgimento de

experiências que se caracterizam pela busca de soluções coletivas alternativas29.

Muitos trabalhadores em situação de desemprego têm se articulado, através da

auto-organização (voluntária) em grupos comunitários, associações, cooperativas,

pequenas ou micro empresas (familiares ou não), na tentativa de gerar renda

coletivamente, procurando, ainda, ampliar o controle sobre o próprio trabalho

através de uma gestão democrática que fortaleça a autonomia do grupo. Todas

essas organizações econômicas de trabalhadores são bastante heterogêneas no

tocante à forma como a propriedade e os excedentes são distribuídos entre os

associados, na maneira como o trabalho está internamente organizado e no tipo de

atividade econômica realizada30.

28 Por exemplo, em uma pequena cooperativa de costureiras na cidade do Rio de Janeiro que fora visitada, as mulheres realizam jornadas de até 14 horas e vendiam seus produtos a preços irrisórios para uma grande empresa de confecções. 29 Os termos “solução” e “alternativa” são aqui utilizados com uma certa impropriedade, uma vez que eles não significam a construção de um caminho que certamente levará à superação da situação anterior. Portanto, quando me referir a “soluções” ou “alternativas” essas palavras devem ser entendidas de forma relativa. 30 Pinho (1962) propõe uma interessante tipologia para as cooperativas, fazendo uma separação quanto à forma de atividade, quanto aos fins (econômicos ou políticos) e quanto à iniciativa de seus organizadores.

Page 52: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

52

Existem organizações de trabalhadores que têm por objetivo permitir que os

participantes da associação tenham melhores condições de adquirir determinados

bens ou serviços através dessa entidade criada e controlada por eles. São

exemplos dessas iniciativas algumas cooperativas habitacionais, educacionais e de

consumo, onde os sócios administradores são os próprios executantes e

beneficiários desses serviços. Um bom exemplo disso são as escolas comunitárias

onde os pais dos estudantes e os professores constituem uma cooperativa

educacional e são todos igualmente responsáveis pela gestão da escola. Outros

exemplos são as associações ou cooperativas de consumo onde todos os

associados são os próprios consumidores. Além de todos participarem da

administração, a cooperativa executa a compra, a distribuição e a venda dos

produtos para os associados31.

Nas periferias das grandes metrópoles brasileiras estão surgindo muitas

experiências comunitárias em torno de atividades de produção, distribuição,

consumo e prestação de serviços. Em algumas cidades, como no caso de São

Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, estão se constituindo Fóruns Municipais e

Regionais que reúnem principalmente iniciativas de pequeno porte (entre 15 e 40

pessoas) para a elaboração de estratégias econômicas conjuntas, inclusive no

desenvolvimento de legislação e políticas públicas para esse setor32.

No espaço rural talvez as mais expressivas organizações econômicas de

trabalhadores sejam as cooperativas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra, que hoje estão organizadas no Sistema Cooperativista dos Assentados. Este

sistema reúne iniciativas, espalhadas por várias regiões do Brasil, com diferentes

31 Segundo os dados da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) o número de cooperativas habitacionais, educacionais e de consumo era de, respectivamente, 179, 101, 311 em 1990. Em 2001 os números são, respectivamente, 297, 278, 189 (Fonte: OCB/GETEC/Banco de Dados – dezembro 2001). 32 Nessas cidades já existem diferentes tipos de comissões e fóruns de “Economia Solidária” e/ou “Economia Popular”, que reúnem experiências de produção, distribuição e consumo “alternativas”, entidades de apoio e pesquisa, mas também com presença do Poder Público. Em São Paulo, Porto Alegre, Santo André, Recife e Belém, entre outras cidades, os governos municipais das gestões do Partido dos Trabalhadores implementaram políticas públicas de apoio e fomento à auto-organização popular como ação estratégica governamental de geração de renda e postos de trabalho.

Page 53: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

53

características: Núcleos de Produção, Cooperativa de Prestação de Serviços,

Cooperativa de Produção, Cooperativa de Produção Agropecuária, etc.

(CONCRAB, 1998).

Nas cidades, por sua vez, multiplicam-se as experiências onde os

trabalhadores formam empresas, associações ou cooperativas para executar

coletivamente ou de forma autônoma a produção de bens ou serviços. Na

cooperativa que presta serviços, os associados executam um projeto ou uma tarefa

qualquer para os contratantes. No município de São Paulo, por exemplo, existem

grupos que se especializaram na área de informática e processamento de dados.

Finalmente, existem empresas de trabalhadores (ou cooperativas de

produção autogestionárias) onde os cooperados são os proprietários dos meios de

produção de uma fábrica e produzem coletivamente determinados bens. Um

exemplo desse caso é a Hidro-Phoenix em Sorocaba, que produz diversos tipos de

macacos hidráulicos. Seus trabalhadores são os gestores da empresa e os

proprietários de todo o maquinário33. É sobre este último tipo de empreendimentos,

as empresas de trabalhadores autogeridas de perfil industrial que essa dissertação

irá tratar.

33 Ainda de acordo com a OCB, o número de cooperativas de trabalho (produção e prestação de serviços) cresceu de forma vertiginosa na década de 90. Em 1990, o número de cooperativas de trabalho era de 625, atingindo em 2001 o expressivo número de 2538 cooperativas (Fonte: OCB/GETEC/Banco de Dados – dezembro 2001).

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54

3. Construindo o campo empírico de investigação: as Empresas de

Trabalhadores Autogeridas

Durante a segunda metade da década de 90 surgiram, no Brasil, um grande

número de fábricas que foram assumidas pelos trabalhadores diante da sua

possibilidade de fechamento. A história das lutas pela autogestão na produção

pelos trabalhadores, no entanto, é muito mais longa. Fazem parte dessa história,

além das primeiras cooperativas documentadas no final do século XVIII na

Inglaterra, as sociedades cooperativistas de consumo, produção e distribuição do

século XIX (Cole, 1944), a formação dos Conselhos Operários da Itália e do Leste

Europeu (Gramsci & Bordiga, 1981), alguns momentos da organização econômica

de países como a ex-Ioguslávia, Polônia, Hungria e Espanha (Bourdet & Guilherm,

1976; Castoriadis, 1985) e as experiências francesas de cooperativas operárias da

década de 60 deste século (Lojkine, 1999).

As empresas de trabalhadores autogeridas de perfil industrial foram

escolhidas como o objeto empírico privilegiado para a análise e interpretação das

questões sociológicas que serão aqui discutidas. A indústria é o modelo de

empreendimento econômico que emerge e se consolida simultaneamente ao

desenvolvimento das sociedades modernas ocidentais. Elas são produto e

produtoras de uma forma de organização do trabalho própria ao seu tempo,

instituindo uma racionalidade socioeconômica que, no decorrer do tempo,

transbordou para outras esferas da vida social (Adorno & Horkheimer, 1944). Os

princípios de eficiência, produtividade, calculabilidade, padronização, o controle do

tempo, a divisão sócio-técnica do trabalho, as profissões, o sistema educacional e

vocacional, as burocracias estatais, os modelos de gestão e mesmo as cidades

modernas, todos esses elementos partilham com a indústria capitalista certos

pressupostos ordenadores da vida social (Adorno & Horkheimer, 1944; Lefebvre,

1968; Weber, 1922, 1904).

Portanto, como esta dissertação tem por objetivo discutir alguns dos

fundamentos que fazem da indústria capitalista o paradigma de um modelo de

Page 55: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

55

organização racional eficiente, foram escolhidas aquelas experiências que, de

forma contraditória, partilham de alguns desses fundamentos, ora reproduzindo-os

ora questionando-os, pois é justamente a inserção paradoxal das empresas de

trabalhadores autogeridas nas relações econômicas mais amplas que ajuda a

evidenciar os elementos sociais e políticos que serão discutidos.

Neste texto, as noções de cooperativas autogestionárias ou empresas de

trabalhadores autogeridas referem-se àquelas iniciativas que partem dos próprios

trabalhadores como uma forma coletiva de gerar benefícios econômicos orientados

para a satisfação das suas necessidades historicamente determinadas, sendo,

portanto, fruto da voluntária associação. São iniciativas que procuram desenvolver

condições de participação direta de todos os associados nas principais

determinações do empreendimento; onde todos os meios de produção estão sob o

controle desse coletivo de trabalhadores, e que criam formas mais equânimes de

distribuição da propriedade, das remunerações e dos excedentes. A partir dessa

definição mínima há uma diversidade de experiências concretas que ajudam a

melhor delimitar essa noção ainda abstrata. Elas se diferenciam, basicamente,

segundo a sua origem, a forma da propriedade e a forma de gestão.

3.1 Empresas de trabalhadores e/ou cooperativas autogeridas

No Brasil, quando as empresas de trabalhadores se formalizam – já que

muitas das pequenas iniciativas permanecem sem registro legal –, elas assumem,

na maioria das vezes, a figura jurídica de uma associação ou de uma cooperativa,

mas também existem alguns poucos casos que se consolidaram como pequenas

ou médias empresas (neste caso, sociedades anônimas de capital fechado). A

escolha da figura jurídica dependerá, entre outras coisas, do tamanho do

empreendimento e dos objetivos econômicos e sociais do grupo.

De acordo com a legislação que regulamenta o cooperativismo no Brasil

existe uma série de características que tipificam o que é uma cooperativa. Segundo

Mauad (1997), as principais determinações estão dispostas nos artigos 3° e 4°, da

Lei n. 5764 de 1971:

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56

Artigo 3° - Celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro. Artigo 4° - As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características: I – adesão voluntária com número ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços; II – variabilidade do capital social, representado por quotas-partes; III – limitação do número de quotas-partes do capital para cada associado, facultado, porém, o estabelecimento de critérios de proporcionalidade, se assim for mais adequado para o cumprimento dos objetivos sociais; IV – inacessibilidade das quotas-partes do capital a terceiros, estranhos à sociedade; V – singularidade do voto, podendo as cooperativas centrais, federações de cooperativas, com exceção das que exerçam atividade de crédito, optar pelo critério de proporcionalidade; VI – “quorum” para funcionamento e deliberação da Assembléia Geral baseado no número de associados e não no capital; VII – retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente, às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembléia Geral; VIII – indivisibilidade dos Fundos de Reserva e de Assistência Técnica Educacional e Social; IX – neutralidade política e indiscriminação religiosa, racial e social; X – prestação de assistência aos associados, e, quando prevista nos estatutos, aos empregados da cooperativa; XI – área de admissão de associados limitada às possibilidades de reunião, controle, operações e prestação de serviços34 (Mauad, 1997, p.31).

Apesar da legislação brasileira conter uma série de determinações que

visam garantir a autenticidade das cooperativas e dos seus objetivos sociais, seria

interessante perguntar por que essa lei não tem sido capaz de evitar o surgimento

de cooperativas pouco identificadas com os interesses dos seus associados. O

Ministério do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho, além de juristas e de

representantes das cooperativas e de organizações de apoio, todos têm discutido

essa questão. Existe, hoje, tramitando no Congresso Nacional, três projetos de lei35

34 Um excelente trabalho sobre a legislação brasileira de cooperativismo é a tese de mestrado de Mauad, 1997. Para conhecer melhor a história dos princípios do cooperativismo presentes nessa legislação ver Singer (1998a). 35 Neste momento, os 3 Projetos de Lei do Senado que estão tramitando no Congresso são os elaborados pelos Senadores Eduardo Matarazzo Suplicy, Osmar Dias e José Fogaça. O

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57

que procuram alterar alguns pontos dessa legislação, objetivando regulamentar as

novas cooperativas que surgiram na década de 90.

Esse debate, no entanto, é bastante polêmico, pois envolve a própria

definição do que é uma “cooperativa”. O mapeamento discursivo dessa questão

daria por si só um interessante trabalho de investigação, pois nele poderíamos

observar os conflitos políticos sobre uma significação prática e jurídica (do conceito

de cooperativa) entre diferentes grupos sociais que recuperam a experiência

histórica de mais de dois séculos da existência de cooperativas para resignificá-las

de diferentes maneiras.

Só para se ter uma rápida idéia dessa diversidade, existe hoje no Brasil

grupos identificados com distintas vertentes do cooperativismo: há o

posicionamento das grandes cooperativas agropecuárias e de prestação de

serviços (como as da área médica) filiadas à Organização das Cooperativas

Brasileiras (OCB) que representam, de certa maneira, um cooperativismo

empresarial-concorrencial; há o “cooperativismo alternativo” protagonizado pelo

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que faz oposição ao chamado

“cooperativismo tradicional” da OCB (CONCRAB, 1998); no meio urbano existe um

cooperativismo defendido pelas cooperativas de trabalho, que hoje se concentram

em torno das FETRABALHO estaduais; há também uma crescente organização do

chamado “cooperativismo popular”, mais ligado aos movimentos sociais urbanos e

rurais; existem novas associações que reúnem cooperativas de produção industrial

e que defendem a criação de uma nova legislação para as empresas de

trabalhadores autogeridas (por exemplo, ANTEAG e UNISOL)36 e, finalmente, um

“novo cooperativismo” apoiado por sindicatos como o Sindicato dos Metalúrgicos do

ABC e a CUT.

novo Código Civil que entrará em vigor a partir de 2003 também trará modificações que afetarão as cooperativas. 36 Respectivamente: Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Particiação Acionária e União e Solidariedade das Cooperativas do Estado de São Paulo. Além dessas duas associações existe, ainda, uma entidade menos conhecida denominada Ação Trabalho Capital (ATC).

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58

Não existe no Brasil nenhuma estatística que dê conta do conjunto das

empresas de autogestão. A OCB, órgão que até a Constituição de 1988 detinha o

monopólio da representação de todas as cooperativas, possui dados nacionais e

regionais, entretanto, eles se referem às cooperativas que estão filiadas ao seu

sistema. Acontece que a maior parte das empresas de trabalhadores não estão

filiadas à OCB. Uma das razões apresentadas para a não filiação é o fato de essas

organizações econômicas de trabalhadores possuírem características próprias que

as diferenciam da maioria das cooperativas representadas pela OCB37.

A mais antiga entidade que representa exclusivamente empresas de

trabalhadores no Brasil é a ANTEAG. Ela se constituiu por um grupo com uma

trajetória de atuação no meio sindical, organizações populares e políticas que se

aglutinaram, principalmente, a partir do núcleo de formação do Sindicato dos

Químicos de São Paulo na década de 80. A ANTEAG vem implementando, desde

1994, projetos de autogestão em empresas de vários Estados do Brasil, passando

de 50 projetos em 1999 para 223 projetos em 2001. Dependendo da região, a

ANTEAG tem promovido iniciativas integradas a Governos Estaduais e Municipais,

sindicatos e outras organizações sociais.

Serão utilizados, portanto, dados fornecidos por essa entidade para

apresentar uma realidade mais ampla, porém ainda incompleta38, sobre esses

empreendimentos no Brasil. As empresas de autogestão (como são chamadas pela

ANTEAG) filiadas a essa entidade geraram em 1999 aproximadamente 20 mil

postos de trabalho e 80 mil empregos indiretos; tiveram um faturamento de R$ 320

milhões; pagaram o equivalente a R$ 91,5 milhões em salários diretos e R$ 26,83

milhões em impostos. Dois anos mais tarde (até maio de 2001) os dados da

entidade revelam um crescimento no número de ocupações geradas: 32.500 postos

37 A OCB esteve, desde seu início, muito ligada ao cooperativismo rural e só mais recentemente passou a abrigar muitas cooperativas de trabalho. Essa entidade é normalmente identificada a um cooperativismo de caráter empresarial-capitalista, característica esta que as empresas de trabalhadores vêem de forma conflituosa. Tal opinião é o que foi observado nos vários eventos públicos que têm reunido diferentes entidades apoiadoras e as empresas de trabalhadores.

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59

diretos de trabalho e 135 mil empregos indiretos a um custo de trabalho recriado

próximo a zero39. De acordo com a área de atuação as empresas vinculadas à

ANTEAG dividem-se da seguinte maneira:

Figura 1: Distribuição das Empresas segundo área de atuação

Metalúrgico e extração mineira: 37

Serviços (educação, turismo, setor público, etc) 31

Alimentação e produtos alimentícios 27

Têxtil, confecções, malharia, tinturaria e lanifício 26

Curtume, artefatos de couro e calçados 25

Agricultura, agronegócios e sucroalcooleiro 23

Limpeza pública e reciclagem 17

Móveis e produtos de madeira 06

Artesanato 05

Frigoríficos e abatedouros 04

Pesca 03

Artefatos de vidros e cristais: 03

Plástico 03

Construção Civil 03

Hortifrutigrangeiro 03

Comércio 03

Piso, azuleijo e material sanitário 02

Outros 02

Fonte: ANTEAG, documentos internos, maio 2001 Obs: esses dados são relativos às empresas que já estão com projetos autogestionários em andamento. Aqui também estão inseridas empresas e cooperativas que oferecem serviços.

38 Esse dados deixam ainda escapar um número expressivo de empresas de trabalhadores de produção industrial organizadas pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (em torno de 15) e algumas outras agrupadas em torno da Associação Brasileira de Autogestão. 39 Fonte: documentos internos da ANTEAG, 2001.

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60

Outra entidade que merece destaque, a União e Solidariedade das

Cooperativas do Estado de São Paulo (UNISOL Cooperativas), está sendo

organizada a partir do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, que diante da criação de

empresas pelos próprios desempregados metalúrgicos, percebeu a possibilidade de

uma nova forma de articulação e representação coletiva. A UNISOL Cooperativas

surgiu no final de 1999 com a reunião de 9 empresas de trabalhadores de produção

industrial que somaram-se a um projeto sindical de incentivo às “cooperativas

autogestionárias” como mais uma frente de atuação política e de reação aos

elevados índices de desemprego.

3.2 Processos de formação e constituição

No Brasil, quase todas as empresas de trabalhadores contatadas surgiram

de indústrias que estavam prestes a serem fechadas. As razões que levaram essas

empresas à crise são várias: a rápida abertura comercial no início dos anos 90 teria

contribuído para o acirramento da competição internacional, criando condições

muitas vezes desfavoráveis para algumas empresas nacionais; má administração

pelos proprietários; mudanças no mercado consumidor de determinados produtos;

defasagem tecnológica e obsolescência do maquinário; administrações

fraudulentas, entre outras (ANTEAG, 1998; Singer, 1998b).

Numa dimensão complementar, os motivos que levaram os trabalhadores a

se organizarem em torno de um projeto coletivo de geração de renda também são

muito diversos. O elemento aglutinador e motivador que aparece com maior

recorrência nas várias entrevistas é a situação de elevado desemprego durante

esse período, criando enormes dificuldades para se conseguir um outro trabalho. A

esse fator soma-se uma série de outros elementos sociais, culturais e morais.

Diante da possibilidade de desestruturação da sua vida individual (representada

pelo desemprego), mediante a ruptura do pertencimento a uma determinada

comunidade do trabalho (o sindicato, a relação com os companheiros de fábrica, a

perda das identificações de classe e da categoria, etc.), os trabalhadores reagiram

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61

na busca de uma “alternativa” coletiva. Assim, na medida em que eles optaram por

uma forma coletiva de trabalho que introduz mudanças na sua experiência prévia

de trabalhador, interessa analisar as possíveis práticas, significados, contradições e

dilemas que podem emergir dessa combinação.

Essas empresas foram contatadas para a pesquisa através de algumas

entidades que prestam suporte técnico, organizacional, educativo e político ao seu

desenvolvimento (como a ANTEAG, a ATC e o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC

representado pela UNISOL Cooperativas). Uma das primeiras tarefas assumidas

por essas instituições é ajudar os trabalhadores a identificar as causas dos

problemas que atingem a empresa, pois existem muitos casos em que a crise é

provocada estrategicamente pelos empresários com o objetivo de conseguir uma

falência fraudulenta ou ainda para passar a “batata-quente” para os empregados.

De acordo com a ANTEAG, os trabalhadores só devem assumir aqueles

empreendimentos que tenham condições efetivas de se manterem no mercado, não

assumindo, portanto, os passivos das antigas empresas e nem as indústrias que

sejam inviáveis economicamente. Conforme documentos dessa entidade, as

empresas fecham por vários problemas: falta de capital de giro; incompetência

administrativa; juros elevados; obsolescência das máquinas; disputas entre

acionistas; falta de investimento em tecnologia; fusões e racionalizações;

problemas com sucessão familiar; problemas com dívidas ocasionadas pelas

sucessivas mudanças na economia; concorrência desleal, etc40.

A forma de organização desses trabalhadores, a sua participação prévia em

outras lutas operárias, a relação com o sindicato e, por outro lado, as condições

econômicas da empresa como suas dívidas e seus ativos, todos, são fatores que

influenciam na formação da empresa de trabalhadores. Além disso, a forma como

os trabalhadores assumem a propriedade da empresa dependerá das razões que

estão levando ao possível fechamento da fábrica. De maneira geral, a tomada do

controle da empresa pelos ex-empregados ocorre basicamente por dois caminhos

distintos. Quando as empresas entram em crise os salários começam a atrasar e os

40 Informações retiradas de material de divulgação da ANTEAG, sem data.

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62

impostos deixam de ser recolhidos (o não recolhimento do FGTS é,

frequentemente, um dos primeiros sinais de que as coisas não estão indo bem).

Com os crescentes problemas financeiros, pressionada pelos credores e pelos

empregados que passam a exigir o pagamento dos salários e direitos trabalhistas

devidos (13°, férias, FGTS), a empresa pode tomar dois rumos possíveis.

Uma possibilidade é a indústria ter a falência decretada. Nessa situação

suas atividades são imediatamente encerradas, ela é lacrada e fica sob a

responsabilidade de um síndico que executará a venda do patrimônio para pagar os

trabalhadores e os credores.

Existem alguns casos, como a antiga CONFORJA do município de

Diadema, que se encaixam nessa situação41. Com a falência, os ex-empregados

constituíram quatro cooperativas de trabalho e conseguiram, através de uma

articulação política junto ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, o direito na Justiça

de arrendar a massa falida para que eles pudessem continuar trabalhando.

Enquanto o processo falimentar percorria os trâmites legais, os cooperados

continuaram trabalhando na empresa, agora sob seu controle, produzindo e

acumulando capital para no momento do leilão da massa falida comprarem aquilo

que lhes interessava. Como a execução do processo jurídico de falência costuma

demorar, em média, até 3 anos, período este em que os trabalhadores aguardam

pelo recebimento dos seus créditos trabalhistas, essa foi uma alternativa que

garantiu, desde o início, alguma renda para os trabalhadores.

Nessa perspectiva, os trabalhadores podem criar uma associação ou uma

cooperativa que aluga os meios de produção, assumindo apenas a gestão dos

negócios e dos meios de produção, ficando os proprietários originais com os ativos

e continuando responsáveis por todas as dívidas anteriores. Um dos principais

riscos no momento de constituição da empresa de trabalhadores é se configurar

41 O caso da CONFORJA foi marcado por mobilizações em Diadema e pela luta dos operários para conseguire assumir o controle. Como disse Severino em uma entrevista sobre o dia em que a justiça foi tentar lacrar o prédio: “vamos explodir tudo, a gente morre com tudo isso aqui. Pode chamar a polícia que a gente só sai daqui morto e amarrado”. Severino era um empregado que operava o maçarico e hoje é o presidente da

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uma “sucessão”, fazendo com que as dívidas anteriores da fábrica passem para

essa nova empresa, desonerando os verdadeiros responsáveis por elas.

Outra possibilidade é aquela onde os ex-empregados assumem a empresa

antes que seja decretada a sua falência. Nesses casos, é feita uma negociação,

conflitiva ou não, entre os empregados e os proprietários do empreendimento no

sentido de buscar uma solução que evite o fechamento da empresa, uma vez que,

quando a falência é decretada, torna-se necessário um novo contrato para que os

trabalhadores possam arrendar o maquinário, além da concordância do síndico da

massa falida. Assim, antes que a empresa seja fechada, é efetuada a troca entre os

créditos trabalhistas e os ativos da empresa (maquinário, matéria-prima, produtos

em estoque, instalações de infra-estrutura, etc). Esse é o caso da antiga Sílica,

produtora da marca Cristal, onde o valor total dos ativos da empresa era superior à

dívida que ela tinha com os empregados. Esse valor foi dividido entre todos os

trabalhadores que resolveram montar a Coop-Arte42 (uma cooperativa de produção

artesanal de vidros e cristais), recebendo cada um deles uma parte dos ativos da

empresa equivalente ao que eles teriam direito conforme seus créditos

trabalhistas43. Aqui, as dívidas da Sílica permaneceram com ela, uma vez que esta

empresa continua existindo como detentora da marca Cristal. Mas existem outros

casos onde os trabalhadores assumem algumas das dívidas consideradas

estratégicas para a manutenção dos negócios, como, por exemplo, a

COOPERMINAS de Criciúma, Santa Catarina, empresa que realiza extração de

carvão mineral44.

COPERLAFE, uma das quatro cooperativas que formam o consórcio que dividiu e assumiu todas as atividades da ex-CONFORJA. 42 O nome desta cooperativa e dos seus cooperados é fictício. Primeiro, porque nem todos os entrevistados estavam de acordo com sua identificação e, segundo, porque existe um processo judicial em andamento envolvendo esta empresa. 43 No caso da Coop-Arte cada trabalhador é o proprietário de uma fração diferente que é “emprestada” à cooperativa. As cotas-parte, que constituem o Capital Social da cooperativa, foram igualmente divididos entre todos os cooperados. O valor correspondente aos créditos trabalhistas que foram trocados pelos ativos é corrigido por um índice determinado pela Justiça para que no momento em que o cooperado resolva sair da cooperativa ele receba esse valor corrigido. 44 As dívidas consideradas estratégicas são, normalmente, aquelas que podem levar a uma imediata interrupção das atividades, como por exemplo, as dívidas com fornecedores únicos

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As empresas também diferem muito conforme a gestão do processo

produtivo. Algumas empresas de trabalhadores possuem uma estrutura interna

pouco hierarquizada, com rodízio de funções, com pequena ou quase nenhuma

diferenciação nas remunerações, com comissões e assembléias deliberativas e

consultivas onde todas as pessoas dos diferentes níveis da estrutura participam

diretamente na tomada de decisões fundamentais. Esse é caso, por exemplo, da

BRUSCOR, empresa que fabrica cordas e linhas, localizada na região de Brusque,

Santa Catarina, que desenvolveu estratégias de superação das hierarquias internas

e da diferenciação nas remunerações, bem como formas participativas de

deliberação que envolvem todos os trabalhadores45. Por outro lado, existem outras

empresas onde a divisão técnica e social do trabalho mantém-se bastante rígida e

hierarquizada, como é caso da COOPERTEX46, empresa têxtil da cidade de São

Paulo.

Finalmente, existe uma combinação múltipla desses dois fatores: a

propriedade e a gestão. A maneira como esses dois elementos se combinam será o

resultado de uma interação de co-determinação com as relações sociais no interior

dessas empresas e também das relações dessas empresas com o seu entorno (os

sindicatos, o mercado, outras empresas, etc). Portanto, dentro dessa diversidade, o

que define minimamente as empresas de trabalhadores autogeridas é o caráter

voluntário da associação em torno de um empreendimento econômico de

propriedade coletiva onde todos os sócios são os próprios trabalhadores com

igualdade de voto na Assembléia Geral (órgão máximo deliberativo tanto das

associações como das cooperativas).

Aqui, a tipificação “autogestionária” é introduzida para enfatizar a diferença

de orientação prática e política entre essas experiências e aquelas que desde o

início não estão comprometidas com a crescente autonomia dos seus trabalhadores

de matéria-prima. As informações relativas a CONFORJA, a COOPERMINAS e a COOP-ARTE foram obtidas na pesquisa de campo. 45 Sobre a BRUSCOR veja Pedrini (1998). 46 Nesse caso, a diferença entre as remunerações é de 11 para 1, entre a menor e a maior retirada mensal, conforme descrito por Marina Farkas Bitelman em seu relatório científico de iniciação científica para a FAPESP em setembro de 1999.

Page 65: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

65

(como as “coopergatos”, por exemplo). Entretanto, ainda que se fale da autogestão

no nível das relações de trabalho e na determinação das principais diretrizes da

empresa, é necessário afirmar que essa autogestão é posta como um permanente

processo em construção, o que não significa, entretanto, que ela se realize

plenamente na prática.

A autogestão é geralmente pensada sob dois grandes aspectos: a

autogestão da sociedade, enquanto forma de direção participativa da política, da

economia e das demais instituições da sociedade; e, por outro lado, como

autogestão do local de trabalho, tomando o universo da produção, a sua

administração, a gestão dos processos decisórios e das relações de trabalho. Mas,

como bem analisou Castoriadis (1987), não existe um empreendimento realmente

autogerido se a sociedade como um todo não for autogerida.

A noção de autogestão agrega uma contribuição importante para a

investigação, pois ela pode ser aplicada a diferentes empreendimentos econômicos

e transcende à caracterização formalista proposta pela legislação brasileira

referente ao cooperativismo.

Enquanto o cooperativi smo põe a alternativa do trabalho assalariado na redistribuição paritária da propriedade dos meios de produção entre todos os membros de uma unidade econômica, a autogestão considera, ao invés, a redefinição do papel e do poder dos trabalhadores no processo econômico, pondo como condição de tal processo não já a aquisição do status de proprietário privado, mas sim a superação de tal status e a conquista igualitária do poder de gestão, mediante o direito indivisível de usufruto dos meios “sociais” de produção (Follis, 1995, p.75).

Ao observar essa conceituação elaborada por Follis e ao confrontá-la com

os diferentes exemplos de cooperativas citadas acima, pode-se compreender que a

cooperativa define muito mais uma forma de propriedade sem, no entanto, definir a

maneira como as relações sociais se organizam no interior do empreendimento

econômico. A autogestão, por sua vez, privilegia a determinação do conteúdo

dessas práticas, por exemplo: a maneira como se processa a construção das

normas e princípios que irão orientar o empreendimento, a forma de legitimação da

autoridade, a participação nos processos decisórios e a definição dos critérios de

distribuição dos excedentes econômicos.

Page 66: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

66

Entretanto, essa distinção deve-se apenas ao propósito de investigação da

dissertação. Na prática, as idéias de cooperativa e de autogestão podem se

misturar conforme o entendimento que é feito sobre esses dois termos. Como foi

indicado em parágrafos anteriores, para lidar com o fato desses conceitos estarem

situados sobre um campo de disputa semântica, que é também um campo de

disputa política, adotou-se essa estratégica separação conceitual.

4. Entre a liberdade e a necessidade

O surgimento das empresas de trabalhadores autogeridas trouxe à tona um

velho debate com raízes sociológicas e econômicas sobre a possibilidade de êxito

dessas iniciativas dentro do mercado capitalista. Como muitas iniciativas

semelhantes que existiram em momentos específicos da história de muitos países

(ex-Iugoslávia, Hungria, França, EUA, Espanha, etc) não “sobreviveram” até os dias

de hoje, não é raro encontrar pessoas que proclamam imediatamente a ineficiência

daquelas experiências, baseadas num simples critério de permanência no mercado,

esquecendo-se de analisar o contexto histórico em que estavam inseridas.

O debate parece mudar um pouco conforme a arena acadêmica em que é

travado. Nas ciências econômicas, neoclássicos e neomarxistas apontam, cada um

à sua maneira, os pontos positivos e os pontos negativos intrínsecos às

cooperativas de trabalhadores que funcionariam como vetores de diferenciação

competitiva e, portanto, seriam indicadores de sua eficiência ou ineficiência

econômica. Fala-se, por exemplo, de custos de administração, capacidade de

investimento, flexibilidade do trabalho e da produção, resultados econômicos da

participação na gestão, custos de agency, entre outros (Bowles & Gintis, s/d;

Ollman, 1998). É interessante notar que ambos tomam como pressuposto do

funcionamento econômico e da motivação das escolhas individuais a racionalidade

capitalista como definidora do que é “eficiência”.

Mas, este assunto não é ponto pacífico mesmo entre aqueles que defendem

a criação de empresas de trabalhadores. Singer (1998b) argumenta que nos

Page 67: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

67

momentos de intensificação das crises capitalistas os empreendimentos

cooperativos tendem a reaparecer como alternativa à exclusão econômica e social.

As cooperativas autogestionárias seriam “implantes socialistas nos interstícios do

capitalismo” que poderiam desenvolver um mercado próprio concorrente com o

mercado capitalista. Mas, para isso, as cooperativas devem apresentar um “vigor

econômico” que faça com que elas sejam competitivas no interior do capitalismo,

independentemente de um cenário político favorável:

Não se pode condicionar a autogestão à vitória política[...] Na primeira derrota política ela afunda. Eu prefiro que as cooperativas criadas pela gente sejam realmente capazes de competir em igualdade de condições com as outras empresas convencionais (Singer, 1999, p.31).

Mas será que essa “igualdade de condições” não implicaria em profundas

modificações políticas e institucionais? O argumento de Singer baseia-se numa

distinção entre Revolução Social e Revolução Política: a primeira entendida como

“processo multissecular de passagem de uma formação social a outra”, e a

segunda como “episódio de transformação institucional das relações de poder”

(1998b, p.11). O autor propõem que dentro de uma determinada formação social

coexistem diferentes modos de produção47 que competem entre si. Dessa maneira,

dentro da formação social capitalista ter-se-ía simultaneamente a produção de

empresas, a produção pública, a produção doméstica, a produção simples de

mercadorias e a produção cooperativa, todas, em permanente interação.

Entretanto, o modo de produção que se torna hegemônico é o definidor do caráter

da formação social, determinando, portanto, a supra-estrutura política e cultural.

Assim, dentro da formação social capitalista, as empresas de trabalhadores devem,

para Singer, ser capazes de competirem economicamente com os outros modos de

produção existentes e, através desse embate, lutar pela modificação do caráter da

formação social atual.

47 Sinteticamente, Singer (1998b) está interpretando esses conceitos da seguinte maneira: formação social como a relação entre o conjunto das diferentes infra-estruturas econômicas que a constituem, com a supra-estrutura política, cultural e institucional; modo

Page 68: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

68

Caminhando numa perspectiva complementar, Haddad (1998a) desloca o

problema para outro centro. Segundo este autor as empresas de trabalhadores

estão permeadas por um potencial educativo que pode transformar a prática da

autogestão no trabalho numa prática política diferenciada. Esta ação política seria

de fundamental importância para que as cooperativas criem um ambiente mais

favorável para o seu desenvolvimento, pois, de acordo com o argumento de

Haddad, as cooperativas só poderão sobreviver num mercado capitalista através da

criação de políticas públicas que estabeleçam estratégias de suporte (linhas de

crédito, tecnologia, infraestrutura, formação de trabalhadores, etc.) ao seu

desenvolvimento.

Pode-se, ainda, descrever uma outra linha de pensamento, representada

por Gaiger (1999), que apontará outros vícios e virtudes dos empreendimentos

autogestionários. Para este autor, são justamente as novas relações sociais que se

estabelecem no interior das empresas de trabalhadores autogeridas, ao se conjugar

a lógica empresarial com a lógica solidária, que dão a elas um diferencial

econômico positivo frente a outras empresas. Para o autor, as empresas

autogeridas inovam “as relações que definem o processo social imediato de

trabalho” sem criar imediatamente um novo modo de produção48. No entanto, se

essas experiências persistirem no interior da economia capitalista enquanto uma

nova forma social de produção, renovando o conteúdo material do processo de

trabalho, elas poderão “gerar novas forças produtivas, materiais e intelectuais

adaptadas às suas especificidades” (Gaiger, 1999, p.17). Isso seria possível

porque, na acepção deste autor, os “empreendimentos econômicos solidários”

funcionam dentro de uma racionalidade social diferente da racionalidade capitalista.

Cada um desses autores privilegia na sua argumentação um determinado

recorte da realidade para, a partir dele, analisar esse fenômeno social denominado

empresas de trabalhadores autogeridas. Certamente, nenhum deles está alheio às

de produção como a “forma específica de organizar a atividade produtiva e de repartir o resultado entre os participantes” (p.137). 48 Como Gaiger utiliza essa noção diferentemente de Singer é necessário especificá-la. Para Gaiger (1999) o modo de produção é o “princípio último organizador da vida social, assente nas condições materiais de existência a um dado tempo e espaço histórico” (p.17).

Page 69: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

69

outras dimensões teóricas e empíricas desse objeto de estudo, mas, para efeito

analítico, cada autor elegeu um ponto de vista que julga mais interessante para

desenvolver sua reflexão.

Dessa maneira, o argumento de Singer, sem menosprezar a importância da

luta política pela criação de melhores condições para as empresas de

trabalhadores, reforça a tese de que essas iniciativas podem desenvolver formas

econômicas mais eficientes de produção e de comercialização do que aquelas

representadas pelas empresas capitalistas tradicionais. Haddad, por sua vez,

defende que a atuação na esfera política institucional é a pedra fundamental para

consolidar uma economia solidária, sem a qual as cooperativas de trabalhadores

dificilmente terão chances competitivas no mercado capitalista. Ainda, numa

posição complementar, encontramos o argumento de Gaiger, segundo o qual os

empreendimentos autogeridos aparecem como portadores de uma outra

racionalidade social, representando, portanto, uma sociabilidade que cria um

diferencial econômico.

Mas a questão permanece: será possível manter essa outra racionalidade

social, que se manifesta no interior das empresas autogeridas, num

empreendimento que atua no mercado capitalista e que, portanto, está sujeito à

racionalidade do capital? Ou, ainda, será que se pode falar em termos de uma

“outra” racionalidade social?

Para escapar de armadilhas teóricas, esta dissertação optou por uma outra

estratégia investigativa. Foram identificadas três dimensões de análise em que o

choque entre a racionalidade econômica e a racionalidade democrática podem ser

observados para, em seguida, interpretar em cada uma delas a dinâmica desse

encontro contraditório.

1) A pesquisa se inicia a partir da seguinte constatação. As empresas de

trabalhadores e as cooperativas autogeridas introduzem elementos de uma ordem

moral (orientada por valores democráticos e igualitários) no seio das relações de

produção (que na atual conjuntura histórica estão submetidas a critérios

capitalistas). Tal combinação gera um conflito permanente, na medida em que os

trabalhadores devem ser capazes de conciliar (ainda que de forma contraditória e

Page 70: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

70

provisória) a eficiência econômica com a gestão democrática. A partir desse conflito

constitutivo, interessa observar como os trabalhadores lidam com esse problema. O

fato de todos serem proprietários do empreendimento cria novos direitos e deveres

para esses trabalhadores. Como será que isso impacta na organização do

trabalho? Acredita-se que esse choque de racionalidades contribua para

desnaturalizar a forma como o trabalho é normalmente organizado, evidenciando,

assim, seus componentes sociais e políticos.

Esse conflito descrito acima, manifesta-se também sob outras formas nas

empresas autogeridas. Como a maior parte desses empreendimentos é bastante

recente e originaram-se a partir de outras empresas capitalistas de gestão

centralizada, onde muitos dos trabalhadores que formaram a cooperativa eram

empregados, essa investigação será realizada sobre uma situação em processo de

intensa transformação. Isso cria uma dificuldade adicional, pois não estará sendo

analisado um conjunto de instituições e relações sociais já estruturadas e

ordenadas no tempo e no espaço segundo classes sociais, valores simbólicos,

status, princípios éticos e morais. Ao contrário, se estará tentando capturar

justamente as mudanças e as permanências na relação entre esses termos.

Portanto, nesse primeiro recorte são as relações de produção que estarão

no centro da análise. O que significa, do ponto de vista da organização do trabalho,

a tentativa de combinar a eficiência econômica com pressupostos de participação e

deliberação democrática? Quais são os limites e possibilidades que as empresas

autogeridas enfrentam face às condicionantes do mercado em que estão inseridas

e das determinações tecnológicas a que estão submetidas? O objetivo desse item

será identificar e discutir alguns componentes sociais e políticos que permeiam as

relações de produção e as condições de eficiência que se apresentavam como

tecnicamente neutras.

2) Numa outra direção, na perspectiva dos trabalhadores em empresas

autogeridas, serão observadas quais são as mudanças, permanências e dilemas

que emergem na situação de transição entre o trabalho assalariado e o trabalho

associado. Ao mesmo tempo em que eles tentam lidar com os conflitos descritos

Page 71: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

71

acima, eles serão confrontados com a formação de sua própria experiência de

trabalhadores assalariados no instante em que tentarem implementar a autogestão.

Toda iniciativa que se apresenta como original carrega consigo a

contradição entre uma práxis inovadora e uma práxis mimética (Lefebvre, 1968).

Foi observada essa disputa quando na tentativa de instituir novas formas de

organizar o trabalho, os cooperados acabavam reproduzindo a divisão social e

técnica do trabalho anterior, ou mesmo as relações de dominação que

correspondem ao vínculo empregatício. Entretanto, o instante de colisão entre

essas duas formas de trabalho, mas também entre duas racionalidades sociais

conflitantes, pode provocar a passagem da práxis repetitiva para a práxis inovadora

ao introduzir descontinuidades no processo global sócio-histórico, permitindo a

inteligibilidade concreta nas relações sociais, tornando consciente para os

indivíduos as formas de dominação que antes se encontravam naturalizadas

(Lefebvre, 1968).

Essa experiência de transição coloca muitos desses trabalhadores em

contato com novas questões e vivências. Os casos selecionados procuraram

evidenciar os momentos onde esse choque de experiências desencadeou um

processo de ação ou reflexão que despertou questões fundamentais em torno dos

direitos e deveres de pertencimento e partilha no interior da empresa autogerida. A

finalidade dessa parte do texto é descrever e analisar as consequências, dilemas e

resistências do processo de construção da autogestão face às relações anteriores

de assalariamento, destacando, em situações precisas, a instituição de espaços

democráticos.

3) O mesmo problema aplica-se à relação das empresas de trabalhadores

com o meio socioeconômico dominante. No momento em que elas realizam a

produção de uma forma diferenciada, quando entram na disputa por crédito público,

quando demandam por uma legislação específica ou quando passam a competir no

mercado com as demais empresas capitalistas, instala-se a possibilidade de

Page 72: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

72

criação de um dissenso49 sobre modelos de desenvolvimento socioeconômico

realizáveis. Aqui também, nestes momentos de disputa, instala-se um campo

político que evidencia a forma como as condições de competição intercapitalista

são construídas e distribuídas.

Nesse sentido, será analisada a relação das empresas autogeridas com o

sindicalismo cutista. O que significa em termos das práticas sindicais e da

orientação “política” dessa central sindical quando a CUT passa a estimular a auto-

organização produtiva dos trabalhadores? E, mesmo, quais são as questões que

emergem sobre o contrato social de trabalho nessa situação?

Com relação à legislação que regulamenta as cooperativas e o trabalho

associado, mas sobretudo, a forma como a Justiça trata as empresas autogeridas e

os trabalhadores comparativamente às empresas capitalistas “tradicionais”,

interessa problematizar os componentes sociais e políticos que informam a

elaboração das decisões judiciais.

Os problemas de crédito e financiamento também se tornam um

interessante foco de tensões. A disponibilidade ou não de linhas de crédito e as

dificuldades encontradas pelas empresas de autogestão para obtê-los, interroga os

critérios e as formas de distribuição dos recursos públicos e também privados. Qual

é o modelo ideal de empresa que interessa fomentar? Ao mesmo tempo, como será

que os critérios de avaliação de produtividade se aplicam ou não às empresas

autogeridas, ou ainda, qual será o resultado da introdução dos critérios de

rentabilidade financeira, trazidos pelas condições de concessão de crédito, sobre a

autogestão no interior da empresa?

Portanto, o propósito dessa terceira parte será identificar e refletir sobre as

condicionantes sociais e políticas que constituem as relações econômicas em que

as empresas autogeridas estão inseridas.

49 Ou ainda, como nos termos propostos por Rancière (1996): “As estruturas de desentendimento são aquelas em que a discussão de um argumento remete ao litígio acerca do objeto da discussão e sobre a condição daqueles que o constituem como objeto” (p.13).

Page 73: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

73

***

Indiretamente, a motivação que percorre transversalmente essas três

dimensões (as relações de produção, os trabalhadores e as relações com as

instituições externas à empresa autogerida) poderia ser resumida à seguinte

proposta: refletir sobre as possibilidades e os entraves à criação democrática

(esfera da liberdade) no interior das relações de trabalho que estão submetidas aos

imperativos da esfera da reprodução (reino da necessidade).

Tal proposta exige a análise do interior das empresas de autogestão e a

maneira como elas se relacionam com o seu entorno. É preciso entender que essas

experiências não surgem de qualquer maneira e em qualquer tempo e lugar. Os

seus sujeitos, os trabalhadores que se auto-organizam, fazem parte de uma

constelação de fatores relacionados ao mundo do trabalho que estão em profunda

mudança. Elas emergem num contexto econômico, político e cultural de intensa

transformação e para sobreviver lutam, simultaneamente, contra suas contradições

internas e contra o meio adverso em que estão inseridas.

As contradições internas são o resultado da difícil combinação entre a

necessidade de responder à racionalidade econômica “imposta” pelo mercado

capitalista e a necessidade de se construir relações de trabalho mais democráticas

e igualitárias; são também frutos dos conflitos que emergem entre a cultura50

instituída do trabalhador empregado e a cultura instituinte do trabalho associado.

Na dimensão externa, as dificuldades enfrentadas pelas empresas de autogestão

podem fomentar a luta por novas formas de representação política (criação de

associações e de nova legislação, relação com os sindicatos), a disputa por capital

junto às agências estatais e fundos públicos (como o BNDES, FAT, etc) e a

definição de políticas de apoio e financiamento (nos níveis municipal, estadual e

federal), ao mesmo tempo em que estão na disputa concorrencial no mercado.

50 Cultura é aqui entendida como o conjunto de práticas, de valores e princípios, de hierarquias, de diferenciações materiais e simbólicas que interagem dinamicamente entre si e com as relações sociais que as instituem.

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74

Portanto, as empresas de trabalhadores autogeridas, graças à sua inserção

paradoxal nas relações econômicas, tornam-se o objeto empírico privilegiado para

se observar o conflito permanente entre duas lógicas sociais distintas. Por um lado,

existe a racionalidade econômica dominante, enquanto uma ação social orientada

para a acumulação privada e reprodução ampliada do capital socialmente gerado.

De outro, uma racionalidade democrática, na forma de uma ação social orientada

por princípios socialmente instituídos que privilegiam a interação e a coesão social

segundo valores de igualdade e solidariedade.

Ao concentrar sobre os processos de mudanças em que as empresas de

autogestão estão inseridas e refletir sobre os dilemas e contradições enfrentados

por elas, espera-se contribuir para evidenciar algumas dimensões sociais, culturais

e políticas que permeiam a aparente neutralidade da racionalidade econômica. Ou

seja:

Atrás do agir instrumental dos critérios de gestão, há também um agir teleológico (definição dos objetivos, das finalidades) e normativo, que define as regras societais segundo as quais funcionam os instrumentos de avaliação da eficácia econômica. Regras privilegiando a remuneração dos capitais privados ou a solidariedade social, a livre concorrência individual ou o interesse comum (Lojkine, 1999, p.228).

Todos esses conflitos evidenciam a presença de elementos morais que

permeiam as relações de produção, sendo justamente o debate em torno desses

critérios de avaliação que institui um campo político no interior das empresas de

autogestão e na sua relação com outras instituições sociais. É o fato dessas

experiências abrigarem de forma conflitiva a necessidade econômica e a liberdade

política que instala uma descontinuidade na ordem gestionária (não-política e não-

humana) da vida, criando a possibilidade de construção de um espaço

potencialmente democrático.

A riqueza desse processo é que nele pode-se observar o surgimento de

soluções (para organizar os interesses conflitantes) que criam “outras” formas de se

fazer (portanto, outras tecnologias) e que geram, muitas vezes, um aprendizado

democrático. As possíveis respostas da questão “como produzir?” podem indicar

que o caminho da eficiência produtiva não é único e nem axiologicamente neutro, e

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75

que a experiência da autogestão no nível das relações de produção pode ser um

importante espaço de vivência democrática que desnaturaliza as relações

anteriores de dominação.

Portanto, como enuncia Lojkine (1999), “deixa-se o domínio do econômico e

do social, para abordar o campo político, no sentido forte do termo: o lugar de

discussão e elaboração das regras de governo de uma sociedade por si mesma”

(p.228). É o questionamento, o conflito e a disputa sobre as condições e o conteúdo

dessas regras que instituem a política. Tomo o conceito de “político” tal qual

entendido por Rancière (1996), como o ato de ruptura da forma como a riqueza

social e a capacidade de autodeterminação estão distribuídas entre os diferentes

grupos sociais que participam de uma certa comunidade.

Neste caso, a política pode se manifestar em certos momentos no interior

das empresas de trabalhadores. Momentos estes onde a ordem previamente

estabelecida é interrogada com base nos critérios de justiça que estão

dinamicamente em construção pelos grupos que formam uma comunidade. Tais

rupturas manifestam-se, muitas vezes, através do desencontro entre as diferentes

racionalidades socioeconômicas que permeiam as empresas autogeridas,

questionando a legitimidade da ordem instituída no modelo anterior de gestão e

produção.

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76

CAPÍTULO 2 – GESTÃO VERSUS POLÍTICA

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77

Neste capítulo, as relações de trabalho nas empresas autogeridas serão

analisadas a partir da observação das formas que a divisão sócio-técnica do

trabalho, as diferenciações de funções, remunerações, responsabilidades e tarefas,

assumem nessas experiências. Para tanto, foram escolhidos alguns casos

exemplares manifestos em certas empresas onde pode-se visualizar, com maior

clareza, as permanências e rupturas das relações anteriores de trabalho no

processo de formação de uma empreendimento econômico autogerido.

A investigação se inicia a partir do conflito entre duas lógicas sociais

distintas: de um lado uma racionalidade econômica orientada pela crescente

acumulação privada de capital e de outro lado uma racionalidade democrática

orientada por princípios morais coletivamente instituídos pelos trabalhadores da

empresa autogerida. As situações que serão descritas nascem desse conflito que é

constitutivo das empresas de autogestão no atual contexto histórico. Nelas, tal

contradição é mais evidente justamente porque a ordem de normas e valores

previamente instituída é questionada pela nova relação de propriedade e

participação na gestão. A formação dessas experiências instala, pelo menos em

tese, uma igualdade fundamental, a igualdade da fala, do poder de voto e

deliberação sobre as diretrizes centrais do empreendimento. Surge, portanto, um

campo potencialmente democrático que ora se realiza e ora se anula.

Diz-se “potencialmente”, porque ele nunca está dado ou permanentemente

instituído. Ao contrário, ele só se realiza nos momentos de atualização de uma

reivindicação fundamental: a igualdade (da fala). Aqui, presencia-se um claro

embate entre uma liberdade política que reclama pela construção de novas formas

de partilha e pertencimento no seio dessa comunidade chamada empresa de

autogestão, e a necessidade econômica que impõem algumas limitações sobre as

quais o coletivo terá que decidir. Esta dissertação pretende analisar alguns desses

elementos sócio-políticos presentes nas relações econômicas e que são

normalmente obscurecidos pela pretensa neutralidade axiológica da noção de

eficiência técnica que será aqui discutida.

Do ponto de vista teórico, as questões abordadas neste capítulo terão como

pano de fundo o conflito entre a adminstração ou gestão das coisas e a política da

ação humana. Enquanto a primeira dimensão diz respeito à busca dos melhores

Page 78: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

78

meios para responder às necessidades da vida (no caso, econômica), a segunda

relaciona-se à discussão dos fins, valores e medidas que orientam a ação humana.

Tradicionalmente, essas duas esferas são tratadas como opostas e excludentes.

Quando Arendt (1988) analisou os conselhos das fábricas instituídos durante a

Revolução Húngara, ela afirmou: “os conselhos das fábricas introduziram um

componente de ação [política] na gerência das coisas, e isso, na verdade, só podia

gerar o caos” (p.219). Neste capítulo será discutido como as empresas de

autogestão procuram sobreviver em meio ao suposto caos e o que pode surgir a

partir desse processo de criação e resistência.

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79

1. Divisão Técnica ou Política do Trabalho

O processo de transformação de uma empresa convencional em uma

empresa de trabalhadores autogerida é permeado de muitas dificuldades e

contradições. A simples passagem da propriedade dos meios de produção das

mãos do antigo proprietário para os trabalhadores51 é um elemento central para a

sua constituição, mas insuficiente para desencadear mudanças nas relações de

trabalho. É comum os trabalhadores falarem sobre colegas que ao se tornarem

cooperados passam a reproduzir dentro da fábrica relações de mando com

companheiros que pertenciam a um nível imediatamente inferior, ou de

subordinação para com aqueles que se situavam numa posição considerada

superior. Nesses casos, visualiza-se de maneira clara a força da hierarquia no

trabalho, cuja instituição está intimamente ligada à própria formação da sociedade

capitalista (Marglin, 1980; Castoriadis, 1985).

Em algumas das empresas de trabalhadores visitadas, quando se olha para

o seu processo produtivo e faz-se uma comparação com a produção de uma

empresa convencional que atua no mesmo setor, observa-se algumas diferenças

quanto à forma de realização do trabalho, entretanto, às vezes, o cenário é

exatamente o mesmo. Então, o que será que surge de novo em termos de valores,

sentidos e significados, não apenas em relação ao trabalho, mas no que se refere

às relações sociais em que esses trabalhadores estão envolvidos? Se em alguns

casos as práticas continuam as mesmas, se os gestos não foram alterados, se a

“linha” continua a mesma, será que tais procedimentos são tão insignificantes a

ponto de serem desprovidos de qualquer relação de poder, ou mesmo de qualquer

conteúdo moral, podendo assim se adequar a fins bastante diversos? Ou ainda,

51 Em alguns casos os trabalhadores constituem uma associação que se torna a proprietária dos meios de produção. Em outros casos os trabalhadores são proprietários individuais de “partes” da antiga empresa e formam uma cooperativa onde cada um deles “aluga” ou “empresta” a sua fração para a cooperativa. Há casos ainda onde a cooperativa se constitui como a reunião de pequenos produtores individuais. O mais comum, no entanto, é que a

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80

será que o trabalho no interior das empresas de autogestão ou cooperativas

poderia ser organizado diferentemente das empresas de propriedade e gestão

centralizadas?

Na medida em que essas organizações econômicas coletivas precisam

responder às condições de competição que integram o “sistema produtor de

mercadorias”52, instala-se um debate teórico e prático sobre as questões acima

descritas. Contemporaneamente, essa questão surge para os trabalhadores e

teóricos das organizações econômicas coletivas da seguinte forma: como é

possível organizar o trabalho no interior desses empreendimentos de forma a

garantir tanto a eficiência53 quanto a autogestão?

Como não há uma resposta simples, o texto limita-se a descrever e

interpretar algumas situações onde se pode visualizar o surgimento de certas

alternativas na organização do trabalho e as permanências e resistências do

modelo produtivo anterior. A pergunta, tal qual formulada acima, exigirá, num

segundo momento, o próprio questionamento dos termos dessa equação.

1.1 Produção e Administração

Na UNIWIDIA (cooperativa de produção metalúrgica descrita no início do

texto) o “chão-de-fábrica” e a “diretoria” intensificaram a comunicação direta para a

discussão de questões que afetavam pontos fundamentais na vida da empresa.

Como existia um bom nível de participação e transparência nessa empresa, os

cooperativa seja proprietária da totalidade dos meios de produção e os cooperados sejam cotistas da cooperativa. 52 Esse termo é utilizado no sentido proposto por Kurz (1993): o sistema produtor de mercadorias caracteriza-se pela constituição de uma formação social onde o trabalho abstrato traz em si sua própria finalidade, transformando a sociedade numa máquina de consumo da força de trabalho. Aqui, a mercadoria moderna cria um sistema de autovalorização (a mais-valia) que não se extingue mais no valor de uso, dando início ao automovimento do dinheiro. 53 Mais adiante a noção de eficiência será analisada detalhadamente. Neste ponto, basta destacar que ser eficiente significa ser competitivo de forma multidimensional: com relação a preços, qualidade do produto, disponibilidade e diversidade (sobre a concorrência de multicritérios ver Louchart, 1995, p.54).

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81

trabalhadores do setor produtivo costumavam se informar sobre o que estava

acontecendo nas outras áreas da cooperativa. Como relatou o diretor Paulo:

O cliente faz um pedido, a gente elabora [parte de vendas]. A gente chama um cara lá da produção pra saber quanto de material a gente vai ter que comprar, pra aquele pedido. A gente não fica comprando a olho. Tem opinião de todo mundo. Lideranças que estão lá dentro sabem o que vai ser preciso pra usar naquele material, naquela peça. Hoje em dia todo mundo tem acesso. Se um cooperado lá de dentro trouxer um serviço pra cá, ele pode ganhar a comissão que um vendedor iria ganhar. Todo mundo quer saber quanto tem na conta....” (Paulo – UNIWIDIA).

Neste caso, as informações da produção são preciosas para se saber

exatamente a quantidade de matéria-prima necessária para se atender um

determinado pedido. A participação dos trabalhadores responsáveis pela produção

trás um conhecimento valioso, pois evita desperdícios e a criação desnecessária de

estoques. O tempo de trabalho também passa a ser redimensionado. Numa outra

situação um cooperado desta empresa disse que a diretoria procurava sempre

consultar os trabalhadores da produção para saber o tempo necessário para se

produzir certas mercadorias. A negociação e a entrada de novos pedidos exigia,

portanto, uma troca de informações entre os diferentes setores da empresa para

que eles fossem capazes de atender de forma eficiente à demanda. Na elaboração

de um orçamento, por exemplo, a produção colaborava bastante fornecendo

informações sobre a capacidade e o tempo de produção das máquinas e a

disposição do pessoal.

Mas a troca entre os diferentes setores não se limitava às informações.

Como ambos os diretores da UNIWIDIA já trabalharam na produção e eram

considerados bastante experientes, em alguns momentos eles eram requisitados

para ajudar, pois como relatou Pedro: “às vezes tem que fazer uma solda especial,

e como ele [o diretor] tem entendimento, ele deixa lá, arregaça as manguinhas, vem

da manutenção, solda a peça, termina; vem aqui e se suja, lava a mão e volta pra

lá” .

Essa multiplicidade de papéis, que pode ser encontrada em muitas outras

empresas de trabalhadores, não é bem entendida por todos. Como será descrito na

última parte do texto, durante as audiências de um inquérito realizado pelo

Ministério Público do Trabalho, tanto a Promotora do caso quanto o sindicato, que

Page 82: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

82

denunciava uma empresa de trabalhadores por achar que ela estava camuflando

relações de assalariamento, não acreditavam que os diretores da cooperativa em

questão também trabalhavam na produção.

Normalmente, o sistema de comunicação interna numa empresa pode criar

centros de poder que controlam o fluxo e o acesso a informações estratégicas.

Tanto a qualidade da informação que circula entre os trabalhadores, como a

possibilidade de discutir e deliberar sobre questões que afetam a vida de todos, são

critérios que devem ser levados em conta para se avaliar as condições de

efetividade das relações democráticas no interior de um empreendimento produtivo.

Se por um lado, a participação do setor produtivo ao informar a gestão sobre

determinados elementos que afetam as condições de produção pode gerar ganhos

de produtividade para o conjunto da cooperativa, por outro lado, essa contribuição

deve ser recíproca, no sentido de garantir ao setor produtivo a participação na

discussão e determinação do quê e como produzir.

Pois é justamente a possibilidade de discussão coletiva das questões

fundamentais à vida de uma cooperativa que a tornam autogerida. Nesse sentido,

pode-se dizer que será apenas nos instantes de dissenso (Rancière, 1996) sobre

os critérios que orientam e organizam a produção (o debate em torno dos fins) que

se terá a emergência de um campo político no interior das relações econômicas,

pois fora disso, prevalece a lógica gestionária: dado um fim (o quê e quanto

produzir) impõem-se uma estratégia (escolha dos meios) à produção.

1.2 Transparência e auto-disciplina

O direito de participar em todos os assuntos da cooperativa pode melhorar a

transparência dos procedimentos adotados no interior da empresa e descentraliza o

controle sobre informações que antes eram sigilosas. É evidente, entretanto, que

isso só ocorre onde os trabalhadores são participantes ativos na vida da empresa.

Se em muitas empresas convencionais não é difícil encontrar esquemas de

superfaturamento, desvios de verba, etc., nos empreendimentos autogeridos, em

que a transparência é praticada, tais práticas se manifestam raramente. Como

Page 83: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

83

relata um dos diretores da UNIWIDIA: “aqui não tem jeito de ter caixa-dois”, pois

onde muitos participam, uma ação como essa exigiria o consentimento de todos.

Porém, em cooperativas onde os trabalhadores não possuem amplo acesso

às informações, seja porque poucos participam criticamente ou porque existem

grupos que controlam o acesso aos dados fundamentais, a desconfiança e os

conflitos ganham força. O caso da Coop-Arte descreve um pouco esses problemas.

Nessa cooperativa de vidros e cristais, alguns cooperados suspeitavam dos

contratos que foram firmados entre a cooperativa e a empresa que faz a

distribuição e a comercialização dos seus produtos. Como o contrato de facção

determinava uma distribuição do lucro54 final entre a cooperativa e a distribuidora,

com base na estrutura de custos de cada uma das empresas, alguns cooperados

afirmavam que a estrutura de custos da distribuidora também precisava ser

analisada. O relato de um cooperado exemplificou esse conflito:

A cooperativa foi muito benéfica pra eles [para a distribuidora], mas muito mesmo. Se eu dizer pra você que a cooperativa não foi benéfica pra nós seria mentira minha, agora eu acho que pra eles foi mais. Porque com a cooperativa nós conseguimos manter o nosso salário, nosso pró-labore, retirada mensal, sei lá! Agora eles estão conseguindo manter uma coisa muito melhor que é a riqueza deles, é o luxo que eles têm. Porque aqui a gente trabalha, a gente se arrebenta ali na boca do forno pra ganhar 1.050 [reais], só que eu duvido que eles ganhem 1.050. Não ganham! (Carlos – Coop-Arte)

Ou ainda:

Agora o que eu acho que tinha que ter era uma conversa do pessoal da distribuidora com os cooperados aqui. Porque o pessoal da distribuidora só conversa com a diretoria [da cooperativa]. E a gente não sabe...eu não tô lá pra ver. Eles trazem o resultado e dizem: “olha a nossa conversa foi boa, conquistamos isso, conquistamos aquilo e aquele outro”. Mas eu não tô lá pra ver, não tô participando. (Carlos – Coop-Arte)

A não participação agora é percebida como falta, como ausência de controle

sobre as condições do próprio trabalho. Ao mesmo tempo, a existência de uma

certa dose de desconfiança pode trazer resultados positivos para o grupo se ela for

54 Utiliza-se “lucro” pois trata-se do excedente econômico obtido pela empresa de distribuição e comercialização sobre a venda total das mercadorias que ela comprou da cooperativa.

Page 84: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

84

utilizada positivamente. É comum os trabalhadores dizerem que a cobrança, ou a

“fiscalização” por parte de outros cooperados, é bastante freqüente, seja entre os

trabalhadores que estão na produção ou mesmo deles em relação à diretoria.

A cobrança, porém, assume uma nova forma. Primeiro, porque o

instrumento coercitivo anterior mais freqüentemente utilizado era a ameaça da

demissão. Hoje, como sócios da empresa os cooperados gozam de uma

estabilidade e de direitos que lhes conferem maior segurança. Existem, sim, casos

de desligamento da cooperativa, mas para se chegar a tal extremo são inúmeros os

procedimentos que devem ser adotados. Em segundo lugar, porque as normas a

que eles devem respeito foram, em tese, elaboradas por eles mesmos, modificando

a relação de autoridade e legitimidade do poder disciplinar. O poder, para Foucault

(1996, 1993), é uma relação, uma prática social. O poder disciplinar caracteriza-se

pela produção de uma relação docilidade-utilidade, que exige, por sua vez, um

certo tipo de organização do espaço, um sistema de vigilância como instrumento de

controle (o surgimento de um olhar invisível), o controle do tempo e o registro

contínuo do conhecimento.

Se antes a autoridade da diretoria ou dos coordenadores da produção era

inquestionável, agora ela pode ser sempre objeto de discussão. Ao mesmo tempo,

se antes a disciplina era organizada de forma centralizada e hierarquizada, ela

agora se encontra difusa, uma vez que cada cooperado pode se tornar um agente

de observação e cobrança. Foi observado em algumas reuniões um

questionamento bastante forte da diretoria por parte de alguns cooperados (no caso

da Coop-Arte) que reivindicavam, indiretamente, a legitimidade e a origem das

deliberações que foram tomadas pela diretoria. Outra modificação interessante é

que, anteriormente, a cobrança era muito motivada pela produtividade:

E antes era aquela cobrança: “vamos trabalhar que nem cavalo pra ver se a gente ganha mais no final do mês. E acabava até algumas vezes tendo desentendimento...alguém se machucava. Agora não! Você trabalha sossegado. Você sabe que você tá trabalhando não é pro patrão, você não tem mais um patrão, você tá trabalhando pra você (Carlos – Coop-Arte).

Com o trabalho associativo, a cobrança se desloca, na maioria das vezes,

para o cumprimento das normas disciplinares instituídas pelo coletivo que passa a

exigir a participação em reuniões, pontualidade, controle sobre consumo de álcool,

Page 85: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

85

etc.. Este mesmo cooperado, que discorreu sobre a “cobrança” é o coordenador do

Comitê de Ética e Disciplina. Ao ser indagado sobre sua função ele respondeu:

Eu não fui eleito pelos cooperados para prejudicar ninguém. Eu fui eleito pra de alguma forma tentar ajudar. Se isso aqui é uma cooperativa e eu fui eleito por eles, se eles confiarem no meu trabalho, é pra cooperar com eles e não pra prejudicar.

Anteriormente, os responsáveis pela disciplina no interior da fábrica,

utilizavam freqüentemente o poder atribuído à sua posição para finalidades

pessoais como, por exemplo, aplicar pequenas vinganças. Na antiga empresa, que

mais tarde deu origem à Coop-Arte, os encarregados, que faziam o controle de

qualidade das peças produzidas pelos vidreiros (os quais eram pagos por peça),

costumavam punir alguns trabalhadores rejeitando as peças produzidas por eles.

Hoje, como relatou outro cooperado, as pessoas que fazem o controle de qualidade

têm um postura distinta, pois qualquer perda na produção será repartida por todos

os membros da empresa.

1.3 Alternativas na divisão sócio-técnica e intensidade do trabalho

Na empresa de autogestão UNIWIDIA, em Mauá, os cooperados, que a

constituíram, organizaram as tarefas produtivas entre si de uma forma diferente.

Após inúmeras dispensas de trabalhadores e com o fechamento posterior da

empresa, os 48 sócios que decidiram montar a cooperativa utilizam as mesmas

máquinas e instalações que chegaram a funcionar, na década de 80, com

aproximadamente 250 trabalhadores. É verdade, portanto, que o maquinário está

sub-utilizado se comparado àquela época. Entretanto, a produtividade da empresa

vem crescendo dia-a-dia e com apenas esse pequeno grupo de trabalhadores os

negócios tornaram-se viáveis e competitivos no mercado. É provável que, com o

crescimento da demanda pelos seus produtos, eles tenham que incorporar novos

membros.

Conforme relatou um cooperado, na Cervin (empresa que deu origem à

UNIWIDIA), cada empregado era designado para trabalhar numa máquina,

devendo produzir um certo número de peças. Entretanto, este trabalhador não tinha

Page 86: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

86

qualquer controle sobre a quantidade de peças que deveriam ser produzidas e nem

sobre o tempo necessário para a sua produção. Os efeitos de tal alienação são

bastante conhecidos. Se o número de peças era inferior à capacidade do

trabalhador, ele acabava controlando o seu ritmo de trabalho de forma a produzir

apenas o necessário. Se, por outro lado, a quantidade de peças era muito grande, a

intensidade do seu trabalho aumentava até a exaustão, não sendo raro os

acidentes de trabalho nessa situação.

Como descrito no item anterior, uma das modificações interessantes na

gestão da UNIWIDIA diz respeito à participação dos trabalhadores da produção na

determinação das metas de produtividade, tendo, portanto, controle sobre o tempo

e a quantidade de peças produzidas. Essa mudança foi acompanhada de outras

alterações no processo de trabalho.

Antes de se tornar uma cooperativa, segundo o relato de um cooperado, no

setor da ferramentaria da UNIWIDIA, os trabalhadores determinavam entre si um

certo ritmo de trabalho. Nessa situação, aqueles que trabalhavam para mais ou

para menos dessa “média” estipulada coletivamente recebiam olhares de

desaprovação por parte dos outros trabalhadores. Da mesma forma, a maneira

como os trabalhadores se apropriavam das máquinas também era diferente:

Porque numa empresa sempre tem aquela... se você sai do seu torno, se você liga o torno do lado, é mesmo... é difícil até, você olha assim e fala “tá lá, né”, mas é obrigação do outro. Mas se você for fazer, as pessoas te olham também, “o cara terminou o serviço dele e ainda vai pegar o do outro, está querendo pegar o lugar do outro”. Tem esse tipo de coisa, apesar de você saber fazer as outras coisas, mas você não faz [...] Em firma que tem uma estrutura mais ou menos igual a essa... minha ferramentaria tinha cerca de umas vinte ou trinta pessoas, e tinha o encarregado, tinha o supervisor... então você está ali, te jogam lá, aquela máquina você tem que desempenhar lá. Se você...o encarregado até gostaria que você saisse e fosse fazer outra coisa, mas as pessoas, com certeza, te olham meio torto, “o cara pode vir trabalhar aqui amanhã e tirar meu lugar”(Pedro - UNIWIDIA).

Realmente, na situação de empregado, tal atitude poderia ser vista como

competitiva, uma vez que poderia criar conflitos no interior da produção e até

fomentar a disputa por postos de trabalho e por melhores salários. Para evitar tais

problemas, é compreensível que os empregados instituíssem formas coletivas de

gerir o próprio trabalho e de responder estrategicamente às metas impostas pela

direção. Na cooperativa, entretanto, a situação se alterou. Como os trabalhadores

Page 87: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

87

da produção passaram a participar da definição das metas de produtividade e como

os trabalhadores não podiam mais ser facilmente eliminados, surgiram novas

formas possíveis de se organizar eficientemente a produção:

Agora hoje, eu trabalho no torno... como eu peguei bastante agilidade, experiência, então eu faço meu serviço rapidinho e trabalho na retífica de furo, onde eu mais trabalho, no torno e na retífica. Só que por exemplo, essa semana o serviço apertou na parte de ajustagem, de plano e de fresa... então eu estava na fresa essa semana [...] Hoje é diferente, é outro posto. Se o cara está...por exemplo, eu estou no meu torno e ele está na retífica apertado, o interessante para ele e para mim é que a peça saia logo, que a gente fature... faça dinheiro. Então ele fala assim “tomara que ele termine lá para ele vir me ajudar” (Pedro – UNIWIDIA).

Ou seja, a competição anterior entre os trabalhadores deu lugar a uma

atitude cooperativa que pode trazer ganhos para o coletivo. Entretanto, isso não

significa que os conflitos tenham desaparecido, eles apenas assumiram novas

configurações. Ao mesmo tempo, a autonomia conquistada pelos cooperados

(sobre o controle do tempo e a quantidade de trabalho) será sempre uma

autonomia relativa.

Os trabalhadores podem determinar a maneira como irão realizar as tarefas

e a intensidade do seu trabalho. Porém, em alguns momentos, essas condições

revelam-se muito limitadas. Um fragmento de Marx descreve muito bem esse

constrangimento: “como associação os trabalhadores são os capitalistas deles

próprios, o que quer dizer que utilizam os meios de produção para valorizar o seu

próprio trabalho” (Marx, O Capital, livro III, cap. XXVII – Papel do crédito na

produção capitalista, p.509). Enquanto trabalhadores de uma empresa inserida no

sistema produtor de mercadorias, eles continuam sujeitos às determinações

impostas pela racionalidade econômica dominante, que impõem certas condições à

produção. Por exemplo, o sistema de preços pode determinar as metas de

produção, a quantidade de trabalho necessária à manufatura e o custo máximo dos

produtos comercializados.

Portanto, para que a cooperativa sobreviva economicamente, ela terá que

conciliar as necessidades internas dos trabalhadores com as necessidades do

mercado externo. Os resultados das possíveis combinações para essa contradição

serão uma luta política permanente no atual momento histórico, uma vez que os

critérios de eficiência e as condições de permanência no mercado são

Page 88: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

88

determinadas pela racionalidade econômica dominante que colide frontalmente com

a racionalidade democrática proposta pelas empresas autogeridas.

Algumas cooperativas, para enfrentar a competição no mercado, são

forçadas, muitas vezes, a reduzir as retiradas (equivalentes aos salários) dos seus

sócios, a ampliar a jornada e/ou intensificar o ritmo de trabalho. No caso de alguns

trabalhadores que assumiram várias funções (na produção e na coordenação) o

problema de intensificação do trabalho foi marcante:

É um desgaste maior, porque no meu caso eu vesti a camisa mesmo, então eu trabalhava até às duas [da tarde], as duas eu tomava um banho e vinha para cá, ia para reuniões, reunião na Comgás, reunião na Sabesp, reunião lá na avenida Paulista. Teve dia de eu acordar às cinco horas da manhã, trabalhar até as duas na produção e ficar até às dez [da noite] em reunião, chegar em casa onze e meia, meia-noite, dormir, e cinco horas de novo precisar vir trabalhar (João – Coop-Arte).

Entretanto, esse aumento na quantidade de trabalho pode ser, para alguns

trabalhadores, re-significada de uma outra maneira:

É desgastante, mas compensa, tem um lado que compensa, não é só o financeiro, você como diretor executivo tem um salário melhor, te compensa também você ver que o negócio está dando certo, você sentir que aquilo ali está progredindo, que seus amigos estão bem e antes só reclamavam. Você começa a ver o camarada ficar mais alegre, o cara comprar um aparelho de som, os caras comentar que estão vivendo melhor com a família. Então isso é gratificante, a gente perceber que o negócio está dando certo. (João - Coop-Arte)

1.4 Partilha do Trabalho

Outra possível estratégia adotada pelas empresas de autogestão para

responder às necessidades econômicas externas e internas55 é a partilha do

trabalho entre os sócios da empresa. Numa situação em que é necessário reduzir

os custos, as empresas convencionais costumam analisar a mão-de-obra enquanto

55 As necessidades externas seriam aquelas que têm origem no ambiente externo à empresa autogerida, como por exemplo as condições de competição no mercado, as condições de crédito, etc.. As necessidades internas dizem respeito às condições de trabalho no empreendimento ou às exigências de investimento e manutenção da infraestrutura.

Page 89: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

89

um recurso humano que deve ser prioritariamente economizado. Na empresa

autogerida tal possibilidade encontra limitações. Como membros da cooperativa ou

sócios da associação proprietária da empresa, os trabalhadores não podem ser

simplesmente demitidos. Então, como se adequar à uma nova realidade no

mercado?

No momento de constituição da Coop-Arte, 228 trabalhadores se uniram

para montar a cooperativa de vidros e cristais, mas o forno para a fusão do vidro

precisava ser reparado e ampliado, para que a produção atingisse um nível

satisfatório. Para adequar e otimizar o número de trabalhadores disponíveis às

condições técnicas de produção haviam algumas opções (como será adiante, para

uma dada situação técnica existem diversas formas possíveis de se organizar as

tarefas entre os trabalhadores).

Antes de criar uma cooperativa, os vidreiros trabalhavam em 3 turnos de 8

horas. Sob a nova relação de trabalho, eles constataram que essa distribuição de

turnos não permitiria uma combinação eficiente entre a quantidade de trabalho

necessária às condições de produção e ao número de trabalhadores disponíveis.

Portanto, para maximizar a utilização do vidro produzido e não dispensar qualquer

cooperado, eles decidiram implementar quatro turnos de seis horas, pois nesse

arranjo seria possível manter todos trabalhando. Para tanto, reduziram as retiradas

individuais em 10% e o tempo de trabalho em 25%. A outra possibilidade elencada

nas discussões internas seria a realização de um sorteio que deixaria de 40 a 50

pessoas sem trabalho, mantendo os demais com 3 turnos de 8 horas.

Ao fazerem tal escolha, os cooperados encontraram uma solução

economicamente eficiente e que possibilitou a socialização do tempo de trabalho e

do excedente gerado, sem excluir nenhum indivíduo de sua atividade. Trabalhando

de fevereiro à outubro de 1999 nesse esquema, a cooperativa foi capaz de

economizar o suficiente para investir num novo forno que ampliou a produção de

vidro. A partir de outubro, com o crescimento da produção, eles retomaram os 3

turnos de 8 horas e ainda abriram novos postos de trabalho.

Para preencher as novas necessidades produtivas da cooperativa, o coletivo

decidiu incorporar 30 novas pessoas que, após uma fase probatória, tornaram-se

membros da cooperativa. É importante ressaltar que tal opção revela uma forte

Page 90: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

90

identificação aos princípios de solidariedade, uma vez que os trabalhadores

poderiam ter decidido pela contratação de novos vidreiros sob o regime de

assalariamento. A criação de postos de trabalho nesse setor surpreendeu a todos

naquele contexto, pois na segunda metade da década de 90, conforme dados do

próprio sindicato da categoria, o número de vidreiros empregados na indústria caiu

de, aproximadamente, 20.000 para 14.000.

Mas, distribuir o trabalho nem sempre é tarefa fácil. Como descrito na

introdução da dissertação, tome-se, por exemplo, o seguinte diálogo entre o diretor

de uma cooperativa de produção e uma liderança do sindicato que havia dado

apoio à constituição daquela cooperativa. Face à expansão da produção a

cooperativa precisava incorporar mais trabalhadores. Com receio de prejudicar a

eficiência da empresa e de criar conflitos entre os novos e antigos cooperados, o

diretor disse que a cooperativa pretendia contratar essas pessoas como

empregados. De imediato a liderança sindical retrucou:

Então você não entendeu nada do que se trata o cooperativismo. O sindicato dá um apoio pra vocês constituírem uma cooperativa e aí vocês vão virar patrão pra contratar outros empregados? No mesmo dia em que vocês fizerem isso a gente [o sindicato] vem aqui na porta da cooperativa fazer greve!

Em suma, pode-se dizer que qualquer modificação no processo de trabalho

implementada através da autogestão carrega consigo múltiplos possíveis (uma

diversidade de soluções não previstas que criam outras formas de organização do

trabalho). Uma vez que essas experiências vivem numa situação de limiaridade

(entre duas lógicas sociais distintas) de um processo de mudança social, qualquer

“novo” elemento trazido por elas desperta simultaneamente forças emancipatórias

(ampliação da autonomia individual e coletiva) e forças repressivas (outras relações

de dominação).

Também seria interessante observar como todas essas mudanças

impactam na eficiência produtiva da empresa: as mudanças nas motivações dos

trabalhadores para o trabalho, a forma como eles se identificam com a empresa e

com o resto do grupo, o impacto econômico de serem sócios (que participam tanto

das sobras como dos ganhos), o fortalecimento de relações de cooperação onde

antes haviam relações de competição, enfim, elementos que podem afetar as

condições de eficiência dessa experiência. Sem querer mensurar ou quantificar tais

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91

mudanças, a presente dissertação optou por descrever e interpretar algumas

direções possíveis dessas “novas” relações de trabalho, indicando, assim a

possibilidade da emergência de outras formas de eficiência.

1.5 Politizando a Eficiência

O debate em torno das condições e possibilidades de eficiência das

empresas de autogestão no interior do mercado capitalista é muito instigante.

Entretanto, na maioria das vezes, a discussão sobre o que é “ser eficiente” acaba

se confundindo com a aceitação pura e simples dos critérios de eficiência

atualmente existentes, como se eles fossem desprovidos de um contexto histórico e

social.

A noção de eficiência exige uma delimitação precisa da realidade analisada,

de forma que se possa avaliar os melhores meios para se atingir um determinado

objetivo. Abstratamente, pode-se definir a “eficiência” como a capacidade de se

conseguir um certo objetivo sem se perder outros elementos julgados importantes56.

Nesse sentido, a noção de eficiência é tomada numa perspectiva relacional, onde

os objetivos que devem ser alcançados são definidos e os impactos diretos e

indiretos que resultam da busca desses objetivos serão também avaliados.

Portanto, quando se fala em eficiência é necessário defini-la com relação a

algo: busca do menor custo por unidade produzida; busca da menor utilização de

insumos para a produção de uma unidade de produto; a busca da maior

produtividade aparente do trabalho57; a criação de condições de vida mais

eqüanimes e sustentáveis, etc.. O que significa dizer que uma empresa é eficiente?

Alguns pesquisadores poderiam afirmar que é eficiente aquela empresa que

consegue maximizar os recursos que tem disponíveis; outros diriam que é aquela

que pode vender seus produtos e conquistar mercados crescentes; outros, que são

aquelas empresas que conseguem apresentar balancetes trimestrais positivos de

56 Essa definição foi, na realidade, proposta por Michel Albert, um dos téoricos fundantes da corrente “Participatory Economics” (PartEcon), durante um seminário organizado na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade de São Paulo em 7 de fevereiro de 2002.

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92

forma que suas ações na bolsa de valores estejam sempre em alta; ou,

simplesmente, poder-se-ia argumentar que ser eficiente significa ser capaz de

permanecer atuante no mercado.

Do ponto de vista do sistema sistema produtor de mercadorias, a noção de

eficiência que instituiu-se como dominante – quando se apresenta como técnica e

axiologicamente neutra – define-se como a capacidade de obter a melhor relação

entre custos e benefícios (reais ou simbólicos, presentes ou potenciais) na forma de

lucro (em termos da taxa de rentabilidade do capital). Entretanto, o que este

capítulo pretende evidenciar é que as empresas, mesmos as capitalistas, são

permeadas por diferentes racionalidades socioeconômicas, de forma que a

racionalidade econômica capitalista não é nem monolítica nem unidirecional. Ela

também é portadora de contradições. Resumidamente, poder-se-ia afirmar que a

eficiência é multidimensional (sujeita a vários critérios) e determinada

historicamente (que variam no tempo, no espaço e de acordo com a configuração

do campo econômico).

Assim, mesmo no âmbito da significação econômica, a palavra “eficiência”

será objeto de disputa. Como bem analisou Roy (1997), as definições de eficiência

dentro do setor industrial variam na história e conforme a orientação das diretorias

das empresas: quando as diretrizes partem dos departamentos de produção, a

eficiência é definida como custos de produção e crescente output; quando o setor

comercial é o mais forte, são os índices de vendas que definirão a eficiência; ou

ainda, quando as decisões financeiras passam a dominar, serão os valores dos

papéis da empresa no mercado de ações que irão definir o grau de eficiência do

empreendimento.

Portanto, ao afirmar que existem critérios em disputa sobre o sentido do que

é ser “eficiente”, Roy descreve a existência de um conflito entre diferentes

segmentos no interior das empresas e também a modificação histórica nas

determinações exteriores (forma de acumulação capitalista; tipo de interação

57 Segundo Marx, a produtividade aparente do trabalho é a relação entre as diferenças de volume de valor agregado por cada unidade de trabalho humano diretamente dispendido no processo de produção.

Page 93: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

93

Estado-Sociedade-Mercado) que acabarão interferindo nas condições e na

definição da “eficiência”. Através dessa reflexão, o autor procura questionar os

critérios de eficiência que se orientam apenas em termos da racionalidade do

capital. Esses critérios permitem a comparação “objetiva” – do ponto de vista da

ciência econômica – da eficiência entre diferentes empresas, tendo apenas como

parâmetro as condições técnicas e materiais de produção.

Tal instrumentalização já estava presente em Adam Smith e percorreu boa

parte da história da ciência econômica. Com bem mostra Murphy (1993), era

preciso lidar com um problema prático: como medir e comparar a eficiência? Poder-

se-ia imaginar critérios de qualidade e quantidade, valores de uso e possibilidades

de reutilização dos produtos, satisfação dos consumidores, menores preços e maior

durabilidade, tempo de trabalho, etc.. Entretanto, no momento vivido por Smith,

qualquer índice associado à qualidade ou a uma outra referência de origem moral,

social ou cultural, deixaria de ser válido como medida, pois não serviria para o

estabelecimento de critérios universais, mensuráveis e cientificamente legitimados

como tais:

A rejeição da “qualidade” por Smith ilustra a mais abrangente “história” da história da ciência como a busca pelo conhecimento verificável intersubjetivamente, que não é baseado em tradições interpretativas particulares. A virada de Smith para o “quantitativo” é motivada pela busca do conhecimento objetivo, que não esteja sujeito à moral, cultura ou à disputa política (Murphy, 1993, p.154).

Portanto, o debate em torno da definição de eficiência tem origem nos

próprios fundamentos da ciência econômica moderna, afinal, como medir a

riqueza? Numa economia de mercado, o sistema de preços funciona como um

importante alocador de recursos, ainda que se possa discutir sobre a forma como

esses recursos são bem ou mal distribuídos na sociedade, pois como já bem

percebera Adam Smith, esse sistema distribui os ganhos econômicos de forma

diferenciada. Poder-se-ia tentar medir a eficiência em termos de preços, ou seja,

são mais eficientes aqueles que conseguem os melhores preços no mercado.

Entretanto, Smith percebeu que tal medida só seria válida para se medir a eficiência

dentro de um sistema de análise muito fechado, dado que os preços são sempre

relativos. Assim, como comparar a eficiência através do preço de produtos criados

em situações e regiões do globo em situações totalmente diferenciadas?

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94

Face a tal dificuldade, Murphy (1993) argumenta que Adam Smith irá se

concentrar simplesmente na produção física como medida quantificável para avaliar

a superioridade técnica de uma empresa. Como os preços são sempre preços

relativos a outras mercadorias, eles também não serviriam como critério objetivo de

comparação da eficiência. Daquele momento em diante, passando pelos próprios

marxistas, a produção física de mercadorias quantificáveis torna-se a medida

universal de progresso social e econômico: “o socialismo só pode ser a realização

(superação) do capitalismo se ambos os sistemas econômicos estiverem sujeitos

aos mesmos critérios de produtividade física” (Murphy, 1993, p.155). É desse ponto

de vista, a partir da limitação a esse critério de produtividade física, que se originam

muitas das críticas contra às outras formas possíveis de produção que foram

silenciadas pelos modelos que se consolidaram historicamente como “vencedores”.

Nessa perspectiva, se o desenvolvimento histórico das indústrias estivesse

unicamente submetido às regras do aprimoramento técnico, objetivando-se apenas

o aumento da produtividade do trabalho humano e, portanto, seguindo uma

racionalidade econômica unidimensional, a história desse processo seria um

caminho bastante estreito e com poucas opções.

De acordo com esse modelo interpretativo, a empresa, utilizando os

melhores meios para produzir mais e a um custo menor, teria uma determinada

forma de funcionamento que seria considerada a mais adequada. Essa técnica

apareceria então como a melhor expressão do caminho a ser trilhado. Ao mesmo

tempo tal técnica não seria a manifestação de nenhuma força política, já que seu

único objetivo é permitir uma maior produção de riquezas, sendo apenas a

concretização da utilização racional dos recursos existentes. A conseqüência

imediata seria que tal técnica é neutra, pois não traduz o interesse de nenhum

grupo ou nenhuma classe, mas simplesmente o inexorável aprimoramento dos

processos técnicos mediante a utilização racional da ciência moderna.

Conforme Piore & Sabel (1984), esse é um dos argumentos que sustenta a

tese da inevitabilidade do modelo de produção de massa, como a única e melhor

forma de aprimoramento das forças produtivas, fundamento esse que estaria

presente tanto nas teorias marxistas como nas liberais. Contra a neutralidade da

eficiência técnica, e contra o estreito caminho do desenvolvimento econômico,

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95

Piore & Sabel elaboraram um interessante estudo sobre a história do processo de

constituição do modelo de produção de massa. Eles destacaram o surgimento de

instituições sociais capazes de regulamentar as relações de produção, que estavam

em processo de formação, e todo o cenário político e social que criou as condições

favoráveis ao desenvolvimento da indústria de massa e as condições sufocantes

impostas às outras formas de produção concorrentes.

A tese central do livro The Second Industrial Divide é que o sucesso de um

determinado modo de produção dependerá da distribuição das forças sociais e

políticas na sociedade. Aqui, a eficiência de determinada forma organizativa e

tecnológica será também o resultado de um arranjo de forças sociais que

combinam fatores técnicos (que conferem vantagens competitivas) com fatores

sociais e políticos que criam um ambiente econômico propício para tais técnicas.

Para eles, assim como para Roy (1997), a eficiência surge como o reflexo

de uma relação de poder, a qual traduz uma capacidade de mobilizar recursos

materiais e simbólicos a seu favor. Por exemplo, a relação entre os direitos, os

títulos de propriedade e as responsabilidades dos indivíduos para com a produção

e a distribuição da riqueza socialmente gerada, modificam-se na história. Portanto,

para esses autores, uma técnica nunca está dissociada do seu contexto social de

origem, e a eficiência econômica só pode ser analisada na perspectiva histórica da

sua relação com as demais instituições sociais:

No mundo que agora vislumbramos, tanto a taxa como a direção do crescimento econômico dependem da distribuição dos “títulos” econômicos, e como essa distribuição está ligada ao poder Estatal para privilegiar ou punir grupos e atividades, isso permite dizer que o desenvolvimento econômico reflete a política. (Piore & Sabel, 1984, p.38).

Fora da sociologia industrial, essa crítica já havia sido feita na década de 50,

dentro da própria esquerda, por Cornelius Castoriadis, ao descrever como as

técnicas de produção são manifestações das relações de poder entre as classes

sociais constituintes da sociedade capitalista. Para Castoriadis, a opção

tecnológica, ou a forma de se produzir, é sempre uma dentre várias outras

possíveis, onde a escolhida é o resultado de uma luta política (entre os

trabalhadores, os gerentes, os detentores do capital, o Estado e os consumidores)

dentro de um campo de forças sociais (França, 1995; Castoriadis, 1985).

Page 96: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

96

Ao recusarem o determinismo tecnológico a-histórico, Piore, Sabel, Roy e

Castoriadis, entre outros, criticam também as leituras que procuram isolar as

condicionantes econômicas das demais forças sociais. Ao se retomar a análise

numa perspectiva histórica atenta para as dimensões políticas, culturais e sociais

(uma vez que todas essas dimensões se mostram interligadas), surge a noção de

“multiplicidades de mundos possíveis” em contraposição às teorias do

desenvolvimento econômico que apontam para “a melhor” forma de se produzir58.

Partindo desses livros, pode-se refletir sobre as possibilidades que existem

e que existiram ao lado do modo de produção de massa59, e sobre toda a rede de

instituições sociais reguladoras da produção, dos investimentos, da inovação

tecnológica, da comercialização, dos títulos de propriedade e das formas de

intercâmbio. Esses autores explicam que o modo de produção de massa aparece

como uma criação histórica, num contexto de competição entre nações, onde as

grandes corporações industriais conseguiram impor e fixar socialmente seus

interesses e definir um determinado caminho tecnológico, que passou a atuar como

condicionante do modelo de desenvolvimento futuro.

Portanto, existem outras maneiras possíveis de produzir, mas tornar-se

eficiente implica em ações políticas, econômicas e sociais, uma vez que o Estado,

principalmente, mas não só, é o responsável pela implementação, fiscalização e

determinação das regras do desenvolvimento, como é também a arena onde se

dará o combate pela definição das mesmas. Isso permite dizer que o debate sobre

a eficiência das empresas de autogestão não pode estar dissociado do debate das

condições sociais e políticas que determinam e instituem os critérios que definem

essa eficiência.

58 A noção de “multiplicidades de mundos possíveis” foi utilizada por Piore & Sabel (1984) e retomada de forma menos rígida por Sabel & Zeitlin (1997). 59 O exemplo citado por Piore & Sabel (1984) é o caso dos distritos industriais italianos. Poder-se-ia ainda acrescentar outras formas de organizações econômicas (mas que não se caracterizam como outros modos de produção) as cooperativas de produção francesas, espanholas e italianas, ou as múltiplas experiências de economia social, solidária e popular da Europa, Canadá e América do Sul.

Page 97: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

97

1.5.1 Redefinindo os conceitos de Divisão Técnica e Social do Trabalho

A redução da noção de eficiência apenas aos elementos técnicos e físicos

quantitativamente mensuráveis relaciona-se a um outro problema conceitual que

deve ser analisado, pois ele também fundamenta a tese de que a divisão do

trabalho presente nas empresas capitalistas mais competitivas no mercado é a

única e melhor forma de se produzir. As conseqüências de tal argumento já são

conhecidas, mas nunca é demais explicitá-las: existe uma melhor forma de se

organizar o trabalho (one best way), e tal forma é expressão de uma simples

adequação técnica (a maneira como as tarefas são divididas ou a introdução de

determinada maquinaria) que expressa a pura maximização da utilização de

recursos mediante a aplicação de procedimentos científicos e, portanto, neutros

axiologicamente.

O problema conceitual aqui descrito envolve as noções de divisão social do

trabalho e divisão técnica do trabalho. É fundamental introduzir aqui uma distinção

entre esse dois termos comumente misturados. As instigantes reflexões de James

Murphy (1993) sobre os princípios da economia política ajudarão neste percurso.

Para esse autor, a divisão instrumental do trabalho é a análise das etapas

e procedimentos que compõem uma tarefa de forma a possibilitar a fragmentação

do processo de trabalho em pequenas unidades. A divisão substantiva do

trabalho, por sua vez, é a forma como cada parte do processo de trabalho é

distribuída entre os trabalhadores. Assim, por exemplo, a produção de um carro

pode ser dividida em várias etapas (divisão instrumental) e a maneira como cada

uma dessas etapas é realizada por um ou mais indivíduos é chamada de divisão

substantiva do trabalho60.

60 Murphy (1993) irá redefinir os conceitos de divisão técnica e divisão social do trabalho. Entretanto, como esses dois conceitos já foram utilizados exaustivamente na sociologia e na economia com diferentes conteúdos, serão substituídos por outras palavras para não serem confundidos com os conceitos utilizados por autores clássicos. Dessa forma, o termo, utilizado por Murphy, “Divisão Técnica” do trabalho será substituído por “Divisão

Page 98: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

98

Tal conceituação ajudará na superação de alguns problemas teóricos de

longa data. Como analisa o autor, de Smith a Marx, passando por Ricardo e J.S.

Mill, todos confundem os dois conceitos, de forma que, a divisão substantiva do

trabalho (no sentido dado por Murphy) é simétrica à divisão instrumental do

trabalho61. “Simétrica” significa dizer que uma crescente divisão instrumental do

trabalho se reflete numa maior divisão substantiva do trabalho62.

Adam Smith assume que deve existir uma correspondência de um-para-um

entre a divisão instrumental do trabalho e a sua divisão entre os trabalhadores: para

cada tarefa um ser humano. Marx também tomará a crescente divisão substantiva

do trabalho como índice da superioridade técnica do modo de produção capitalista.

O que esses autores não levam em conta é que para uma determinada divisão

instrumental do trabalho existe uma pluralidade de formas possíveis de se organizar

a divisão substantiva entre os trabalhadores.

De maneira geral, como elabora Murphy (1993), a não distinção entre esses

dois momentos da divisão do trabalho baseia-se na idéia de que os meios e os fins

de uma ação podem ser dissociados. Normalmente, a racionalidade técnica é

entendida como a faculdade de escolher entre diferentes meios para se obter um

fim previamente determinado. Entretanto, uma ação puramente instrumental só

pode ocorrer quando os meios não influenciam os fins, e quando a relação entre

meios e fins está isolada das relações causais exteriores63.

O que está em questão neste momento é justamente o fim que motiva a

crescente divisão do trabalho. Não é necessariamente a busca de uma maior

eficiência na produção que orienta a crescente divisão sócio-técnica do trabalho,

Instrumental” do trabalho; o que ele caracteriza como “Divisão Social” do trabalho será chamado “Divisão Substantiva” do trabalho. 61 Para Karl Marx a divisão técnica do trabalho é aquela realizada no interior da empresa, enquanto que a divisão social do trabalho é aquela realizada entre as empresas, ou seja, a divisão social geral da sociedade. 62 Como bem mostra Murphy, esse argumento já estava presente em Platão, dando razão para a crescente especialização como única forma de atender às novas necessidades técnicas. 63 Murphy, 1993, cap. 1, parte III: “The moral and technical dimensions of labor”.

Page 99: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

99

mas a busca pelo controle e gestão da produção e o desejo de obtenção de

maiores lucros.

Pode ser encontrada argumentação semelhante em S.Marglin e

H.Braverman. Para ambos autores a divisão substantiva do trabalho na indústria

ocorre para que os capitalistas tenham o controle sobre a totalidade do processo

produtivo, ainda que Braverman considere essas técnicas as mais eficientes

(Marglin, 1980; Braverman, 1974). Castoriadis, por sua vez, afirma que tal forma de

dividir o trabalho é também uma maneira de se tentar atingir a maior objetivação

possível da produção, realizando assim a autonomização do capital frente aos

elementos subjetivos do trabalho (França, 1995). O argumento do processo de

objetivação do trabalho proposto por Castoriadis lembra-nos da tese da

racionalização do mundo desenvolvida por Weber, onde as empresas buscam

maneiras de se atingir o máximo de calculabilidade do capital. A diferença, no

entanto, é que Castoriadis critica esse processo como portador de relações de

dominação social e política.

Mesmo o argumento da produção a preços menores como motivador da

busca por uma crescente divisão instrumental e substantiva do trabalho é

questionada por Sabel, pois, conforme o estudo elaborado por esse autor, as

primeiras fábricas conhecidas não produziam necessariamente mercadorias mais

baratas. Elas produziam, sim, maiores lucros para seus proprietários (Sabel, 1982,

apud Murphy, 1993).

Para Marx, é o desenvolvimento das capacidades técnicas que pede uma

determinada divisão social do trabalho. Nessa perspectiva, como mostra Murphy

(1993), predomina um determinismo tecnológico em duas dimensões: a tecnologia

adotada é simplesmente determinada pela divisão instrumental das tarefas; a

divisão substantiva do trabalho é determinada pela tecnologia64.

Portanto, se não for levada em conta a existência desses dois momentos

distintos que constituem a divisão do trabalho, a reflexão ficará limitada à

compreensão da divisão substantiva (entre os trabalhadores) como mera adaptação

64 Murphy, 1993, cap.5, parte II: “Marx – division of labor and technological determinism”.

Page 100: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

100

natural às necessidades impostas pela divisão instrumental, o que acaba por

erradicar qualquer componente moral e político das relações imediatas de produção

e por reduzir uma multiplicidade de possibilidades organizativas a um caminho

único e estreito.

O argumento, aqui proposto, entende que a tecnologia é a mediação entre a

divisão instrumental e a divisão substantiva do trabalho. Seguindo a argumentação

proposta por Murphy (1993), tem-se que: para uma dada divisão instrumental do

trabalho existe uma pluralidade de tecnologias eficientes disponíveis, ou ainda, para

uma dada tecnologia existe uma pluralidade de formas eficientes de divisão

substantiva do trabalho.

Autores como Castoriadis e Marglin, entre outros, examinaram esse

problema numa outra perspectiva. O primeiro, ao criticar a adoção pelos regimes

comunistas, que pretendiam a “libertação dos homens”, das formas de trabalho

desenvolvidas com a indústria de produção de massa, em especial a taylorista; e

Marglin quando questiona a tese marxista segundo a qual o desenvolvimento das

organizações econômicas capitalistas é o resultado do desenvolvimento técnico das

forças produtivas, para afirmar exatamente o contrário – “não foi a fábrica a vapor

que nos deu o capitalismo, foi o capitalismo que produziu a fábrica a vapor”

(Marglin, 1973, p.77).

Dessa forma, a tese da neutralidade dos procedimentos de trabalho baseia-

se, por um lado, na crença da existência de um caminho único para a eficiência

econômica (pressuposto discutido acima) e, por outro lado, na confusão entre

divisão técnica e divisão social do trabalho. Aqui, cabem perguntas fundamentais:

mas são eficientes para quem? Para os trabalhadores, para os consumidores, para

os gerentes, para os proprietários?

Em resumo, as maneiras como a divisão instrumental e substantiva do

trabalho se combinam podem ser diversas, pois para cada tipo de tarefa há muitas

maneiras tecnologicamente eficientes de se distribuírem as pessoas (Murphy,

1993). Como o próprio critério de eficiência é solo movediço de batalha, a forma

como ocorre essa combinação será sempre o resultado de uma luta política entre

os trabalhadores e os agentes do capital – como foi discutido na primeira parte do

texto (Castoriadis, 1985) – ou ainda, nas palavras de James Murphy:

Page 101: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

101

A eficiência requer apenas que o trabalho seja analisado em seus elementos fundamentais, e não que os trabalhadores sejam restritos à performance desses poucos elementos. Uma vez que o trabalho tenha sido analisado tecnicamente ele poderia, então, ser sintetizado (organizado) eficientemente de várias formas - da restrição de cada trabalhador para que execute uma só tarefa à capacitação de cada trabalhador para que desempenhe várias tarefas sequencialmente. A forma como a divisão técnica do trabalho foi traduzida em uma divisão social do trabalho, dependeu, em grande medida, das relações de poder da indústria (1993, p.23).

***

Um exemplo interessante do conflito entre as diferentes formas possíveis de

se realizar a divisão social do trabalho dentro das empresas capitalistas de gestão

centralizada, é o estudo realizado por Berggren (1992) sobre a indústria

automobilística Volvo. O autor mostra como no caso sueco, devido às

características sociais e políticas locais, algumas empresas, entre elas a Volvo,

passaram a buscar formas alternativas de produção, em contraposição aos

modelos fordistas, tayloristas ou flexíveis de organização do trabalho. Através de

estudos comparativos, ele observa que a Volvo utiliza uma variedade de formas

organizacionais que se modificam conforme as diferentes condições sociais do

mercado de trabalho dos países em que ela se implanta65.

As mudanças alcançadas pela Volvo representam, para Berggren, um

compromisso social entre diferentes forças: interesse da administração em delegar

tarefas e responsabilidades sem abrir mão do controle e, também, a aspiração dos

sindicatos em atingir uma alteração real na balança de poder. O argumento central

do autor é que há uma interdependência entre as mudanças organizacionais e as

mudanças tecnológicas, e que ambas são determinadas pelas condições do

mercado de trabalho, pelas ações das centrais sindicais, pelas estratégias das

políticas governamentais e pelas diretrizes das instituições nacionais

regulamentadoras da economia (Berggren, 1992).

65 Neste ponto, Berggren aproveita para criticar o trabalho de Piore & Sabel (The Second Industrial Divide) no que eles apresentam de mais sistemático. Em oposição à idéia de

Page 102: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

102

Esse problema aparece de forma explícita no processo de transformação

das indústrias convencionais em empresas de trabalhadores autogeridas. Muitas

vezes, o desenvolvimento das novas relações de trabalho, pautadas pelos

princípios democráticos da autogestão, encontra resistência na estrutura interna de

trabalho da fábrica como, por exemplo, na divisão social (ou substantiva) do

trabalho. Como introduzir práticas igualitárias quando preexiste toda uma hierarquia

de conhecimento, de salários, de tarefas e de responsabilidades que se traduzem

em relações de poder?

Em um seminário internacional sobre cooperativismo66, um assessor técnico

da ANTEAG disse o seguinte, quando descrevia o processo de mudança cultural

que estava ocorrendo numa empresa de trabalhadores assessorada por essa

entidade: “é preciso acabar com a dominação através da arquitetura, é preciso

mexer no layout da fábrica, mudar a disposição dos equipamentos”. Sua

experiência prática dispensa citações. Nela, o próprio espaço fabril surge como

manifestação de uma relação de dominação social e política que se traduz numa

forma de se produzir.

modelos organizacionais, que são extremamente rígidos para Berggren, ele afirma a necessidade de se utilizar uma pluralidade de conceitos de produção. 66 “Seminário Internacional de Cooperativismo: uma alternativa de organização do trabalho do século XXI”. Realizado no Parlatino do Memorial da América Latina, em São Paulo, no dia 25 de novembro de 1999 e promovido pela Secretaria do Emprego e das Relações do Trabalho do Governo do Estado de São Paulo.

Page 103: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

103

2. Limites da igualdade econômica: a disputa pelos rendimentos

Os trabalhadores membros de uma empresa autogerida não recebem

salários. Como sócios proprietários do empreendimento (cooperados), eles

recebem “retiradas”, ou seja, um valor monetário correspondente à uma parcela do

excedente gerado pelo trabalho coletivo. Como muitas dessas experiências

originam-se de fábricas de propriedade e gestão privadas e centralizadas, os

trabalhadores que nela estavam e que passam agora a constituir o novo

empreendimento autogerido, saem de uma relação de vínculo empregatício para

uma situação de trabalhadores autônomos. Entretanto, tal processo de mudança é

permeado de inúmeros desafios.

Cada organização econômica de trabalhadores possui uma forma própria de

realizar essa distribuição entre seus membros. Seria impossível dar conta dessa

infinidade de arranjos, entretanto, existem alguns elementos recorrentes entre

vários empreendimentos que indicam problemas centrais para a prática e reflexão.

Quando a empresa de trabalhadores é formalmente registrada como uma

cooperativa significa que ela deverá seguir normas – da legislação que regula as

cooperativas no Brasil – que determinam critérios sobre a aplicação dos excedentes

(Lei 5764/1971). Segundo a lei, das sobras líquidas da cooperativa um mínimo de

15% deve ser reservada para os fundos indivisíveis67. A Assembléia, entretanto,

tem o poder de criar outros fundos conforme o desejo do coletivo. Em muitos casos,

os cooperados optam por criar fundos que arrecadem um valor que mais tarde

possa ser distribuído entre eles na forma de seguros de saúde, descansos

remunerados, poupança por tempo de trabalho, por exemplo, numa clara referência

67 A legislação determina que um mínimo de 10% das sobras líquidas sejam destinadas ao Fundo de Reserva (destinado a reparar perdas e atender ao desenvolvimento das atividades da cooperativa) e pelo menos 5% sejam reservadas para o Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social – FATES – destinado à prestação de assistência aos associados, familiares e empregados da cooperativa (cf. Manual “Cooperativismo de Trabalho” da Secretaria do Emprego e Relações do Trabalho, Agosto 1998).

Page 104: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

104

aos direitos outorgados pela CLT, como as férias remuneradas, fundo de garantia

por tempo de serviço, etc..

Nesses casos, os trabalhadores acabam se orientando pelo patamar mínimo

de direitos trabalhistas que tinham enquanto empregados e que agora deixam de

existir visto que deixaram de ser assalariados. Não se fala, portanto, em “perdas de

direitos”, mas em mudança do status desses trabalhadores, que agora deixam de

ser empregados assalariados para se tornarem trabalhadores autônomos.

Enquanto tais, espera-se que eles sejam os responsáveis pela gestão e pelas

condições de realização do próprio trabalho, em oposição à situação de

empregados assalariados, onde a legislação trabalhista reconhecia uma

desigualdade fundamental entre o trabalhador (que vende sua força de trabalho) e

o tomador de serviço (o empregador).

Tal modificação não é apenas formal, ela também possui contornos políticos

que podem indicar uma profunda transformação em andamento no sistema de

regulação público-estatal das relações de trabalho. Como será discutido mais

adiante, a passagem da situação de emprego, regulado pelo contrato social de

trabalho, para uma situação de trabalhador autônomo, está circunscrita por uma

problemática mais ampla que diz respeito a uma mudança estrutural no sistema de

regulação e contratação do trabalho. Como indicam alguns autores, pode-se estar

vivendo um momento de passagem de um contrato social de trabalho para um

contrato individual civil, onde a forma de responsabilização social deixa de ser

compartilhada na esfera pública-estatal para tornar-se de natureza privada (Oliveira

& Paoli, 1999).

Entretanto, seria reducionista afirmar que tais direitos sociais foram

simplesmente substituídos nas empresas de autogestão por um “equivalente”

monetário na forma de fundos divisíveis. A referência aos direitos sociais

historicamente conquistados podem também indicar a percepção de uma situação

limítrofe de crise identitária vivenciada por esses trabalhadores: eles são

trabalhadores operários, trabalhadores-empresários ou trabalhadores autônomos

em regime cooperativo?

Feitas as deduções dos fundos obrigatórios e optativos, as sobras líquidas

serão distribuídas entre os membros da empresa. Mas como os trabalhadores

Page 105: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

105

dividem entre si essas sobras? Quais são os critérios e as possibilidades de divisão

desse excedente? Como tal resposta cabe à Assembléia Geral de cada

cooperativa, as possíveis estruturas de remuneração são muito diversas.

Entretanto, existem algumas limitações que serão dadas pelo contexto em que as

empresas estão inseridas, às possibilidades de determinação dos rendimentos

individuais, bem como às decisões referentes aos investimentos nos equipamentos

e na infraestrutura da própria empresa.

No momento de deliberação sobre suas próprias retiradas, os trabalhadores

terão que enfrentar uma difícil equação. Ora, como proprietários da empresa

autogerida, eles poderiam, em tese, estipular a retirada que quisessem. Entretanto,

é necessário que o empreendimento sobreviva economicamente, o que de imediato

coloca limites à distribuição dos excedentes. Na medida em que tais

empreendimentos estão inseridos numa economia de mercado regulada pelo

sistema de preços, a empresa de autogestão terá que responder a critérios

exteriores que determinam, por exemplo, a composição do capital da empresa, o

nível de investimento, a taxa de lucro e a estrutura de custos. Isso ainda deve variar

conforme o setor econômico em que tal empreendimento está inserido. Por

exemplo, uma empresa do setor metalúrgico, em oposição a uma empresa que

presta serviços de alimentação, possui uma composição do capital (relação entre o

capital financeiro, fixo, potencial, cultural, organizacional, simbólico, comercial,

social e tecnológico) completamente diversa (Bourdieu, 2000).

Outro desafio à distribuição dos excedentes diz respeito ao sistema anterior

instituído pela divisão sócio-técnica do trabalho, com sua correspondente forma de

remuneração, sistema de premiação, reconhecimento e legitimidade das

diferenciações nas funções e capacitações adquiridas no passado. O fato dos

trabalhadores criarem uma organização econômica de propriedade coletiva e

gestão democrática não significa que eles desejem romper com todo o sistema

prévio de ordenamento do seu mundo social.

De maneira geral, os trabalhadores terão uma retirada mensal e outra anual,

equivalentes a uma parcela das sobras mensais e anuais. Existem algumas

empresas de autogestão que optam por manterem uma diferenciação entre os

trabalhadores conforme as funções que ocupam, seguindo os critérios anteriores de

Page 106: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

106

remuneração. Num outro extremo, existem cooperativas autogestionárias que

decidem implementar retiradas iguais, conforme critérios de necessidade ou tempo

de trabalho.

Mas, pode-se afirmar que, de certa forma, o cálculo da remuneração será

uma combinação dos conflitos internos entre os trabalhadores e também definido

em função da posição ocupada pela empresa num determinado campo

econômico68 que impõem certas limitações à organização interna da fábrica. Essa

explicação, pode ser melhor compreendida através da análise concreta do processo

de construção dos critérios que fundamentam as diferentes remunerações.

2.1 Fortalecendo velhos critérios e desconstruindo outros

“Eles estão confundindo aí cooperativa com comunismo. Comunismo acho que é tudo igual, aqui não pode ser tudo igual, porque o trabalho que faz um carregador e um ajudante não pode ser comparado ao de um vidreiro” (Wilson – Coop-Arte).

Esse fragmento, extraído de uma entrevista com um dos diretores de uma

cooperativa de produção de vidros e cristais de São Paulo, doravante denominada

Coop-Arte, dá a tônica dos dilemas que serão aqui analisados. Nesse caso, o

diretor referia-se a um conflito interno que no momento da entrevista se acirrava. O

novo conselho da cooperativa, formado por 21 membros, acabava de ser eleito pelo

conjunto dos trabalhadores com uma renovação de 14 pessoas. Dos 21, três foram

eleitos indiretamente para a direção, sendo que apenas um dos diretores foi

substituído.

68 A noção de “campo econômico” é utilizada no sentido proposto por Pierre Bourdieu. Um campo é formado por diferentes empreendimentos produtivos que engendram as relações de força que o constitui. São essas relações de força e as posições ocupadas pelos diferentes agentes exonômicos que irão configurar esse espaço (campo) com uma certa estrutura. Assim, a força que cada agente econômico terá dentro dessa estrutura, e as determinações a que ele estará sujeito, dependerá de um conjunto de fatores (strategic markets assets) que se relacionam à sua posição dentro desse campo (Bourdieu, 2000). O capítulo quatro da dissertação tratará detalhadamente dessa temática.

Page 107: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

107

Essa cooperativa possui uma estrutura de remuneração relativamente

próxima àquela da empresa que lhe deu origem, mas com algumas modificações

interessantes. De maneira geral, a diferença entre as maiores e menores

remunerações diminuiu. Se antes o salário mais baixo era de R$278,00 (reais)

agora a retirada desse trabalhador passou para R$500,0069. Na Assembléia de

constituição70 da cooperativa, decidiu-se que a diferença entre a maior e a menor

retirada não deveria ultrapassar a relação de 1 para 6. Entre os extremos, porém,

existem aproximadamente 11 faixas de remuneração (500, 600, 700...até 3.000

reais).

Assim, dentro do convencionado, a retirada mais elevada (3.000 reais) seria

dos trabalhadores que ocupassem cargos na direção da empresa. Entretanto, um

dos diretores, com uma longa experiência no setor vidreiro e único, aliás, com

formação superior em engenharia, recusou a proposta. Seu argumento era de que

se estivesse numa outra empresa ele poderia ganhar mais. Os demais cooperados,

por sua vez, não queriam perder aquele membro que consideravam importante

para o bom andamento da produção. Foi então que, numa reunião do conselho, um

outro diretor propôs que suas retiradas (a sua e a de um outro diretor) fossem

reduzidas em 500 reais e que esses 1000 reais fossem para o diretor que

ameaçava sair. Tal proposta foi aceita pelo outro diretor e pelo coletivo. Ambos os

diretores que decidiram abaixar suas retiradas ocupavam pela primeira vez um

cargo de coordenação. Até aquele momento, eles sempre haviam trabalhado

diretamente na produção.

Esse é um típico problema enfrentado por muitas cooperativas. Na medida

em que elas estão inseridas no mercado mais amplo, onde o trabalho é também

uma mercadoria, os quadros mais qualificados na organização econômica coletiva

são constantemente “seduzidos” por outras propostas que oferecem remunerações

69 Conforme dados obtidos durante pesquisa de campo nessa empresa que foi de janeiro de 1999 à março de 2000. 70 Curiosamente, a decisão de manter a diferença de um para seis entre a maior e menor remuneração não consta do Estatuto da Cooperativa. Segundo um dos antigos diretores essa decisão estava inclusa no rascunho do Estatuto, entretanto no momento de registrar o Estatuto tal cláusula foi eliminada por razões até então desconhecidas do grupo.

Page 108: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

108

mais elevadas. Aceitar ou não tais oportunidades dependerá de uma série de

fatores, tais como as necessidades individuais, a motivação e adesão aos princípios

autogestionários, a busca por reconhecimento no ambiente de trabalho ou fora

dele, etc.71.

O próprio sindicato da categoria possui uma certa influência, mas não o

poder de determinação sobre tais valores. Durante uma entrevista com um dos

diretores do Sindicato dos Vidreiros do Estado de São Paulo, uma liderança sindical

disse que algumas empresas do setor estavam pressionando o sindicato para que

ele interviesse na cooperativa, sob a alegação de que a Coop-Arte estaria pagando

menores salários (no caso retiradas) e menos impostos como cooperativa e,

portanto, estaria tendo vantagens competitivas no mercado. Tal situação estaria

gerando perdas para as outras empresas, que por sua vez ameaçavam com

demissões ou reduções salariais72.

Mas a diferença entre os valores pagos, no caso da Coop-Arte, não era um

ponto pacífico. Ainda que a maioria dos trabalhadores estivesse de acordo com

uma diferenciação nas remunerações segundo as funções, a luta por melhores e

mais equânimes retiradas sempre esteviveram presentes. Tanto que os novos 14

membros do Conselho elegeram-se sobre a promessa de provocar mudanças

gerais nas remunerações. É curioso observar, entretanto, como o antigo sistema de

divisão social do trabalho (a forma como as tarefas são distribuídas entre os

trabalhadores) e a correspondente diferenciação nas remunerações são legitimados

pelo conjunto dos cooperados. É bem verdade que tal cooperativa é muito marcada

por uma organização do trabalho quase artesanal, onde os trabalhadores se

formam na própria produção e onde pré-existia, portanto, um reconhecimento

legitimado pelo saber acumulado e por um status adquirido e compartilhado pelo

conjunto dos trabalhadores nas suas diferentes posições. No caso, critérios

71 Alguns estudos sobre o Complexo Mondragon descrevem as modificações nas diferenças de remuneração no interior das cooperativas que formam o sistema. Ver: Kasmir (1994) ou para um perspectiva oposta Whyte & Whyte (1988). 72 A veracidade dessas declarações não foram investigadas. É importante destacar que este Sindicato, em especial, tinha uma postura contrária à criação da Coop-Arte. A relação entre Sindicatos e Cooperativas será melhor discutida no quarto capítulo desta dissertação.

Page 109: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

109

tradicionais, como competência, antigüidade, domínio técnico e tempo de trabalho,

eram predominantes.

Porém, se algumas diferenças são aceitas, existem outras que não são

toleradas sob a forma do trabalho cooperativo. Numa acalorada reunião do

Conselho da Coop-Arte, foi observado um debate onde os cooperados discutiam as

possíveis utilizações de uma parte das sobras líquidas. Foi então sugerida a criação

de um outro fundo (então chamado de 14º) que seria dividido entre os cooperados

conforme a remuneração de cada um73. Ou seja, enquanto o fundo originava-se de

uma parcela do excedente econômico socialmente produzido, sua distribuição

deveria ser feita conforme as diferenciações nas remunerações, seguindo assim

uma forma de distribuição próxima àquela proposta pela CLT. Portanto, quem

tivesse maiores retiradas receberia uma parcela maior desse fundo no final do ano.

Enquanto um grupo de cooperados apoiou tal iniciativa, um dos

conselheiros (um jovem membro do conselho) questionou tal proposta. Ele

argumentou que a Coop-Arte não era uma empresa privada como as outras, ela era

uma cooperativa, e como tal não fazia sentido ficar tomando os direitos trabalhistas

e nem a CLT como referência. Se aquele recurso disponível era uma sobra da

cooperativa, dizia ele, como tal deveria ser dividida em partes iguais entre todos os

membros.

Nesse instante, o debate saiu do terreno meramente econômico e adentrou

os próprios critérios de igualdade e justiça do grupo. São em momentos como

esses que se visualiza aquele choque de racionalidades descrito anteriormente, ou

seja, quando o mundo das necessidades econômicas é permeado por elementos

que têm origem social, moral, cultural ou que restabelecem a política. São instantes

onde o trabalho associado instala uma igualdade fundamental (o direito à fala e à

determinação do trabalho) e desnaturaliza as formas anteriores de dominação, de

pertencimento e de partilha numa comunidade. Para se usar os termos de Rancière

(1996), são esses os momentos de constituição de uma comunidade política,

“quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma

Page 110: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

110

parcela dos sem-parcela”, a partir da “afirmação de uma igualdade que cria uma

liberdade política” (p.26-27).

Conforme o argumento proposto pelo jovem cooperado, todos deveriam ter

uma participação igual na distribuição daquele fundo, uma vez que todos estavam

trabalhando com igual dedicação e as eventuais diferenças de capacitação ou

antigüidade já estavam compensadas nas diferenças das retiradas mensais. Se por

uma lado os direitos trabalhistas serviam como uma referência mínima dos critérios

de partilha sob o regime de assalariamento, por outro lado, eles também

evidenciavam uma certa hierarquia social com sua correspondente relação de

mando e subordinação.

Agora, na medida em que o trabalho cooperado instala uma igualdade de

deliberação sobre esses critérios no seio dessa comunidade, a ordem anterior

revela-se, então, portadora de certos valores sociais que eram tomados como

“naturais”.

Os instantes de “desnaturalização” dessas relações sociais criam um campo

político no interior da produção. São momentos em que a liberdade floresce

enquanto experiência educativa, rompendo a aparente univocidade das

necessidades econômicas. Porém, o resultado de tal embate dependerá da

constelação de forças sociais que se manifestam no interior da empresa de

autogestão. Naquela situação, em especial, a opinião do jovem cooperado foi voto

vencido. Os demais conselheiros optaram pela criação de um fundo com divisão

final conforme as diferentes retiradas.

Entretanto, existem outros exemplos onde se encontra uma estrutura de

remuneração mais equânime. No caso da UNIWIDIA, cooperativa de produção

industrial do setor metalúrgico, os cooperados decidiram introduzir um processo de

equiparação nas remunerações. Anteriormente, conforme relatou um cooperado,

quando a empresa ainda era de propriedade e gestão centralizada (nos tempos da

Cervin) havia muitas diferenças salariais e os critérios para a diferenciação não

eram discutidos e nem conhecidos. Às vezes, para a mesma função, os salários

73 Nesse caso, eles queriam criar um fundo denominado 14º como substituto monetário ao

Page 111: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

111

eram completamente distintos, sendo modificados conforme a vontade dos

encarregados ou da direção. Porém, após uma longa ação sindical, os

trabalhadores conseguiram implementar um processo de equiparação salarial.

Segundo o cooperado, no momento em que a empresa passou para a mãos dos

trabalhadores, algumas das faixas salariais que eles tinham já haviam sido

determinadas, anteriormente, pelos próprios trabalhadores com a ajuda do

sindicato. Certamente, essa ação prévia deve ter contribuído para uma maior

aceitação, por parte dos associados, de uma nova equiparação das remunerações

na cooperativa.

No momento de constituição da empresa autogerida, o Sindicato dos

Metalúrgicos do ABC também prestou importante apoio logístico. Feito o estudo da

viabilidade econômica do empreendimento, o sindicato e os trabalhadores

concluíram que, para viabilizar a cooperativa nos seus primeiros passos, seria

necessário reduzir um pouco a folha de pagamento. A solução encontrada foi

aproximar as retiradas, reduzindo daqueles que ganhavam mais e aumentando os

rendimentos mais baixos. Procuraram também igualar as retiradas das mesmas

funções. Um cooperado da UNIWIDIA foi indagado sobre qual era o argumento

utilizado nas discussões:

Bom senso. A gente falava....eu torneava aqui, e tinha o torneiro que tinha 10 anos, 15 anos lá. Eu ganhava mil e ele ganhava 1400, e a gente fazia a mesma coisa, o meu às vezes muito mais preciso do que o dele. Falava assim “puxa vida, a gente é torneiro, estamos aqui trabalhando juntos, o que você faz eu faço, e o que eu faço talvez você não faça, e só porque você... pelo antigo sistema que você... pela Cerwin... você ganha 1400 e eu ganho 1000. Você acha que está certo?” (Pedro – UNIWIDIA).

O certo e o errado são, então, resignificados no momento em que são os

próprios trabalhadores os responsáveis pela construção dos critérios de partilha.

Enquanto no modelo anterior as diferenças salariais eram reconhecidas como

“normais”, uma vez que a origem daquelas determinações era exterior e de certa

forma inquestionável, agora os trabalhadores são a origem e o objeto de suas

próprias determinações.

que eles receberiam como Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).

Page 112: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

112

Outro exemplo interessante é caso da BRUSCOR, detalhadamente

estudada por Pedrini (1998). Nessa empresa de autogestão, a igualdade nas

retiradas mensais é um princípio consensual no grupo, independente do ritmo e da

intensidade dos trabalhos. Como Pedrini afirma, tal proposta foi introduzida pelo

coletivo como estratégia para motivar positivamente os trabalhadores, pois a

diferenciação poderia motivar a competição intra-grupal que acabaria por prejudicar

o andamento do processo autogestionário. Segundo a autora, houve ainda

momentos em que diferenças nas remunerações foram introduzidas para dar conta

de necessidades específicas que alguns sócios tiveram.74

É interessante observar como a introdução de novos critérios na

determinação das retiradas pode gerar modificações no processo produtivo. Os

argumentos apresentados, tanto para a diferenciação quanto para equiparação nas

retiradas, apoiam-se em fundamentos morais comumente obscurecidos no

processo de discussão. Alguns cooperados argumentam que é necessário manter a

diferenciação como forma de motivação daqueles que se encontram nos pontos

mais baixos da escala de remunerações, enquanto outros argumentam o contrário,

ou seja, que é justamente a igualdade nas remunerações que pode gerar uma

maior motivação e assim produzir ganhos coletivos.

De qualquer maneira, o fundamental nessa discussão é que ela introduz

uma descontinuidade no ordenamento das relações sociais instituídas e introduz

um debate pela redefinição ou confirmação dos critérios de pertencimento e partilha

no interior desse coletivo. Tal procedimento, como será discutido adiante, tem valor

próprio enquanto prática democrática.

Da mesma forma, também se poderia refletir sobre a relação entre tal

desencontro de racionalidades e os aspectos econômicos dos empreendimentos.

Alguns autores afirmam que a introdução de critérios não-econômicos nas relações

de produção tem um efeito perturbardor na gestão da empresa, podendo gerar uma

ineficiência produtiva. Como diria Arendt, ao se referir às experiências dos

74 Outro exemplo bastante complexo de estrutura de remunerações é o caso da ex-Conforja, que agora existe como um condomínio de 4 cooperativas de produção interligadas (Oda, 2001).

Page 113: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

113

conselhos durante as revoluções do século XIX e XX: “os conselhos de fábrica

introduziram um componente de ação na gerência das coisas, e isso, na verdade,

só podia gerar o caos” (Arendt, 1988, p.219). Seria, talvez, a penetração da

liberdade política no reino da necessidade econômica, causando, assim, um

choque entre as possibilidades de ação (política) e gestão (idem, ibidem).

Poder-se-ia, entretanto, perguntar se é possível separar empiricamente em

esferas completamente autônomas as dimensões econômica, política e social. A

experiência das empresas de trabalhadores autogeridas parece indicar que tanto o

processo produtivo quanto a inserção no mercado mais amplo são, na realidade,

constituídos pela permanente interpenetração dessas diferentes dimensões.

É justamente essa característica que instala um debate teórico-prático sobre

as condições de sucesso de tais empreendimentos no interior da economia

capitalista, como se essas três dimensões não estivessem também presentes nas

empresas ditas tradicionais. Em seguida, será feita uma breve digressão teórica

sobre uma das vertentes dessa discussão, na qual a introdução de elementos

estranhos à esfera econômica na produção aparece como geradora de

“ineficiências”. Para tanto, toma-se como exemplo de tal posição alguns

argumentos elaborados por Max Weber, uma vez que eles irão fundamentar as

opiniões de muitos outros autores que o sucederam.

2.2 O conflito de racionalidades em Max Weber

Esta parte do texto convida a um pequeno mergulho na sociologia

weberiana para que se possa compreender alguns dos pressupostos

compartilhados por outros pensadores da economia liberal. Mais do que

problematizar a análise weberiana, pretende-se identificar os pressupostos liberais

que irão compor as teorias sociais e econômicas posteriores, para, em seguida,

criticá-los.

Poder-se-ia observar, do ponto de vista weberiano, a convivência de ações

comunitárias e societárias no interior das empresas de trabalhadores autogeridas.

Para Weber (1922), a ação comunitária é uma relação social em que “a atitude na

Page 114: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

114

ação social [...] se inspira no sentimento subjetivo (afetivo ou tradicional) dos

partícipes em constituir um todo”. Por outro lado, a ação societária é definida como

“uma relação social [...] na qual a atitude na ação social se inspira numa

compensação de interesses por motivos racionais (de fins ou de valores) ou ainda

numa união de interesses de mesma motivação” (Weber, 1922, p.33). O autor ainda

explica que a ação societária se funda através de um pacto racional recíproco que

pode estar orientado tanto por valores como por finalidades.

A relação entre economia e ação comunitária é muito freqüente, e será

discutida exaustivamente por Max Weber, em Economia e Sociedade (Parte II,

“Economia e Sociedade em Geral”). Como mostra o autor, diferentes formas de

comunidade e de sociedade interagem entre si e com os interesses econômicos.

Há casos em que uma comunidade cria uma sociedade para ajudar na subsistência

de uma ação comunitária, e outros em que um processo de socialização é

acompanhado de um processo de comunização o qual cria uma comunidade que

ultrapassa a sociedade. Weber chama a atenção para algumas circunstâncias onde

a ação comunitária deu lugar a uma ação societária que acabou por colocar o

conteúdo comunitário em segundo plano através da “colonização” pelos interesses

econômicos.

O que interessa, neste ponto, é que Weber (1922), ao recusar a conexão

funcional entre a economia e as estruturas sociais, afirma que tanto a ação

comunitária (que no caso das empresas de trabalhadores autogeridas poderia ser

expressa na solidariedade entre seus membros) quanto a ação economicamente

orientada, ou seja, aquela ação em que “seu sentido subjetivo esteja orientado pelo

desejo de obter certas utilidades” (Weber, 1922, p.46), possuem uma “própria

legalidade” e que, portanto, em determinados momentos podem entrar em conflito:

“como veremos constantemente, as formas estruturais da ação comunitária têm sua

'própria legalidade' e, além disso, em alguns casos, se encontram co-determinadas

na sua formação por causas diferentes das econômicas” (Weber, 1922, p.275).

Assim, no exemplo das empresas de trabalhadores autogeridas, não ocorre

a simples superação de um tipo de ação para um outro tipo, mas o convívio

simultâneo dessas ações. O resultado dessa interação dependerá, para Weber, do

sentido dado pelos sujeitos para as suas ações, pois enquanto para esse

Page 115: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

115

empreendimento coletivo é uma forma de construir ou de manter um mundo comum

baseado em valores compartilhados (de participação democrática e solidária), para

outros ele pode ser uma forma de se atingir unicamente objetivos econômicos.

Veja, agora, um plano de análise complementar. Weber, em sua teoria do

processo de racionalização, faz uma distinção entre o desenvolvimento da

racionalidade material e da racionalidade formal. Neste ponto, interessa discutir

como essas duas racionalidades atuam sobre a ação economicamente orientada, já

que a empresa de trabalhadores autogerida é uma organização produtiva que atua

no mercado, lugar por excelência da ação econômica formal.

Segundo Weber, a racionalidade material atua numa ação economicamente

orientada por postulados de valor quando os meios e as conseqüências da gestão

econômica são medidos em termos de exigências éticas, políticas, utilitaristas,

igualitárias, etc., os quais determinarão a forma de distribuição dos bens materiais

entre as pessoas do grupo. A racionalidade formal, por sua vez, diz respeito à

busca dos meios mais racionais, puramente mais eficientes, do ponto de vista da

exploração técnica para o ganho de produtividade. Para Weber (1922), quanto

maior a formalização da ação econômica, maiores serão as possibilidades de

calculabilidade do capital e de administração racional do empreendimento

produtivo. É importante destacar que, na acepção deste autor, as duas

racionalidades são conflitantes, uma vez que a racionalidade material introduz

elementos na relação econômica que são de origem extra-econômica.

A racionalidade formal e a material (qualquer que seja o valor que a oriente) se diferenciam, em princípio, em todas circunstâncias, ainda que sejam numerosos os casos empíricos nos quais coincidam [...] Pois a racionalidade formal do cálculo em dinheiro não diz em si, nada sobre a natureza da distribuição dos bens materiais. (Weber, 1922, p.83).

Assim, na perspectiva weberiana, poder-se-ia observar nas empresas de

autogestão, além do conflito entre as ações comunitárias e societárias, a

convivência da racionalidade material (expressa na orientação por valores de

solidariedade, eqüidade e participação deemocrática) com a racionalidade formal

(expressa na adminstração e gestão do empreendimento) na própria constituição

da cooperativa.

Page 116: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

116

Tendo, portanto, que conciliar a sobrevivência do negócio e o respeito à

orientação de valores, a vida do trabalhador das empresas autogeridas é um bom

exemplo dos embates entre valores e as ordens do mundo vivenciados pelo homem

moderno. E quanto mais a empresa de autogestão aproxima-se do seu modelo

ideal, tanto mais difícil e “esquizofrênica” pode se tornar a vida dos seus

trabalhadores, pois as diferenças entre os valores que estão nutrindo e os valores

da economia dominante caminham em sentidos opostos. A consciência dessa

tensão, e a percepção da necessidade de se tentar conciliar e fazer escolhas nesse

panteão, manifesta-se permanentemente na luta pela manutenção do

empreendimento autogerido em meio a um ambiente econômico hostil.

Do ponto de vista da racionalidade econômica weberiana, todos esses

elementos se constituem em irracionalidades econômicas, já que interferem na

maximização da eficiência produtiva. O fato dessas iniciativas serem formações

econômicas que reúnem elementos de uma ordem extra-econômica (ética ou

política, por exemplo) será, para Weber, um forte indicador de possível ineficiência

no mercado, já que unem esferas regidas por racionalidades distintas, afastando-

se, portanto, do seu modelo ideal de empresa de exploração lucrativa.

2.2.1 A empresa racional weberiana

Max Weber (1904), ao conceituar o “capitalismo moderno” nos moldes de

uma individualidade histórica, ou seja, como “um complexo de elementos

associados na realidade histórica, que unimos em um todo conceptual do ponto de

vista de um significado cultural” (p.28), destaca a empresa racional como uma das

características que compõem esse conceito. Nessa perspectiva, a empresa

(Unternehmung) com utilização racional do capital e com organização capitalista

racional do trabalho torna-se a força dominante na determinação econômica desse

período.

A racionalidade das operações nas empresas capitalistas dá-se através de

um aparato de dominação legal chamado burocracia, que se soma à empresa na

constituição daquela individualidade histórica. Esse sistema de organização

Page 117: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

117

burocrática, presente também na administração estatal, é uma estrutura de

racionalização formal das tarefas, baseado em uma hierarquia de mando e

subordinação legitimada por um estatuto. O processo de burocratização das

instituições sociais é apontado por Weber (1922) como uma das forças inexoráveis

da modernidade, que instala a penetração do racionalismo em todas as formas de

vida. Seu caráter revolucionário é paradoxalmente, para o autor, um elemento de

transformação e de escravidão, pois ao mesmo tempo em que liberta e iguala os

homens, cria formas de dominação e de desencantamento (enquanto perda de

sentido) do mundo.75

A burocracia, para Weber, apresenta uma superioridade técnica baseada na

objetividade, na precisão, na rapidez, na univocidade, na oficialidade, na

continuidade e conformidade, todas, características adequadas para a máxima

calculabilidade exigida pela economia capitalista moderna, segundo o princípio sine

ira ac studio:

Sua peculiaridade específica, tão bem-vinda para o capitalismo, desenvolve-se em maior grau quanto mais se “desumaniza”, quanto mais completamente alcança as peculiaridades específicas que são contadas como virtudes: a eliminação do amor, do ódio e de todos os elementos sensíveis puramente pessoais, de todo os elementos irracionais que se subtraem ao cálculo (Weber, 1922, p. 732).

O seu bom funcionamento exige, no entanto, a concentração dos meios

materiais, fator esse que será encontrado nas empresas capitalistas, entre outras

organizações sociais. A expropriação individual e coletiva dos trabalhadores dos

meios de produção é importante para que a gerência disponha livremente da

seleção e do modo de emprego dos trabalhadores, evitando assim os

“impedimentos tecnicamente irracionais e as irracionalidades econômicas que

surgem quando há apropriação dos postos de trabalho ou direitos de co-direção”

(Weber, 1922, p.109). Assim, a gerência individual poderá realizar o cálculo de

capital sob o ponto de vista técnico-racional, atuando, portanto, segundo o modelo

ideal do racionalismo econômico.

75 Weber, M. Sociología de la Dominación. In: Economia y Sociedad (1922). México: Fondo de Cultura Económica, 1997.

Page 118: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

118

Com a empresa racional também se introduz a possibilidade da separação

entre a propriedade e a direção do empreendimento. Weber afirma que, com essa

divisão, a gestão poderá ser ainda mais eficiente, pois além do gerente ser

selecionado pela sua qualificação, ou seja, pela sua rentabilidade, a sua

remuneração dependerá do sucesso da empresa, fazendo com que o seu interesse

esteja ligado à persistência da associação. A possibilidade da longa duração é um

importante elemento de diferenciação das empresas racionais para com as outras

formas de produção.

A exploração metódica continuada exigirá, além de novas técnicas, como a

contabilidade, por exemplo, uma forma de administração e gestão baseada na

burocracia; a expropriação dos meios de produção dos trabalhadores e a sua

concentração nas mãos de poucos empreendedores; a separação entre concepção

e execução na produção e gestão através da formação de quadros de especialistas

e técnicos de diferentes tipos; a separação da propriedade e da direção através da

profissionalização da gerência; e, finalmente, a necessidade de mão-de-obra livre.

Todos esses elementos, segundo Max Weber, somam-se no sentido de permitirem

a máxima calculabilidade e controle do negócio, agindo conforme o máximo de

racionalidade formal econômica e, portanto, obtendo os melhores resultados em

termos da eficiência capitalista, possibilitando que a empresa realize o fim que a

define: o lucro.

Portanto, se for comparada a organização das empresas de trabalhadores

autogeridas com a de uma empresa capitalista racional, será constatado que elas

se distinguem em vários aspectos. Com relação à posse dos meios de produção, os

trabalhadores são coletivamente os proprietários da empresa, tendo assim o direito

e o dever de igual participação nos seus excedentes e prejuízos. No âmbito da

administração, uma empresa autogerida deve, pelo menos idealmente, ter uma

estrutura de funcionamento democrática, a qual estará em constante tensão com a

organização burocrática do empreendimento.

Dessa maneira, pode-se dizer que, na perspectiva weberiana, as empresas

de trabalhadores autogeridas estão atravessadas por irracionalidades econômicas,

ou por irracionalidades formais, que prejudicarão a eficiência capitalista dessas

empresas no mercado. A introdução de fatores extra-econômicos num

Page 119: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

119

empreendimento produtivo revela, para Weber, um desconhecimento do verdadeiro

funcionamento da economia capitalista, a qual não respeita qualquer princípio ético

ou moral. A ética e a economia capitalista são, para este autor, esferas de valor

com legalidades próprias e que, portanto, podem caminhar em sentidos totalmente

opostos. Como afirma Weber em uma ácida crítica:

Chega-se a tal grau de infantilidade que se imagina a economia geral, a economia da solidariedade e a economia da cooperativa como precedentes em linha direta da futura transformação da consciência econômica que fará renascer, organicamente, a um nível mais elevado a ética econômica do passado, que caíra em desuso. Em tudo isso o que torna intolerantes aqueles que entendem desses problemas é sobretudo a profunda ignorância dos nossos literatos a respeito da natureza do capitalismo76.

Resta pensar em que medida é possível separar e unir essas esferas

(economia e moral), e discutir porque para Weber o máximo de racionalidade

econômica é identificado a critérios de eficiência técnica, supostamente neutros ou

formais.

2.2.2 Racionalidade ou irracionalidade econômica?

Max Weber constrói sua reflexão a partir do ponto de vista do pensador e

político liberal. Segundo Tragtenberg (1992), esses fundamentos liberais estão

presentes na ênfase no indivíduo como unidade explicativa do processo de

conhecimento e na construção das “individualidades históricas” como conceitos

sociológicos; na garantia da igualdade de trabalho e de capital no mercado através

do predomínio da racionalidade formal pela burocratização; no contrato como

elemento básico do capitalismo que regula a livre disposição da força de trabalho;

na liberdade que aparece ligada à categoria da autonomia da vontade individual e

que deve ser protegida ante os perigos da crescente burocratização do mundo; na

tolerância fundada no politeísmo dos valores; na propriedade como posse privada;

na forma da empresa privada como exemplo da racionalidade econômica máxima;

Page 120: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

120

e, finalmente, na identificação da racionalidade econômica à idéia de eficiência

técnica.

De acordo com Tragtenberg, esses são alguns dos pressupostos que estão

na formação da sociologia weberiana. Na perspectiva desse crítico, o problema que

surge é a perda da neutralidade axiológica do método (tal qual proposta por

Weber), pois ao omitir esses elementos do processo explicativo não ficam claros os

valores que orientaram a referência da abordagem, a escolha do objeto e nem

quais foram as dimensões privilegiadas pelo pesquisador na análise, prejudicando,

portanto, a objetividade do estudo. Entretanto, o que o autor não considera é que

essa forma de construção do objeto é fruto da escolha metodológica “típica ideal”

de Weber.

Os elementos em questão não precisam ser evidenciados porque Weber é

um pensador liberal e, portanto, parte desse ponto de vista. Entretanto, a crítica de

Tragtenberg interessa, neste momento, pela caracterização que ele fez dos

fundamentos da sociologia econômica de Weber, a qual está na base do trabalho

de outros teóricos que se serviram desses argumentos para analisar as empresas

de autogestão.

Ao descrevê-lo como um homem do seu tempo, lendo sua obra numa

constante relação texto-contexto, Tragtenberg mostra as conexões e as rupturas

entre o pensamento liberal alemão e o pensamento weberiano, para em seguida

tecer uma pesada acusação (e talvez injusta) sobre o autor alemão:

O conceito de referência a valores de Weber é colocado em questão. Ele só designa [para Weber] um momento preliminar do método na Ciência Social; a influência se esgota na delimitação do campo de pesquisa.[...] A neutralidade não é suficiente para preservar qualquer pesquisa de juízos de valor. A intenção de preservar o caráter científico da Ciência Social deve partir do estabelecimento das condições de objetividade que se refiram à utilização da referência a valores, sem a hipótese de uma neutralidade impossível. Assim, a premissa de valor deve ser explícita e auto-reconhecida. Ela deve confirmar ou infirmar a pesquisa em relação à experiência (Tragtenberg, 1992, p.113).

76 WEBER, Max. Gesammelte politische schriften. Tubingen: Ed. J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1958 apud Tragtenberg, 1992, p.125.

Page 121: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

121

Mas seria interessante observar como essa problemática afeta a relação

entre racionalidade e irracionalidade econômica exposta no item anterior. Weber

propõe a ação racional orientada para fins como a ação racional por excelência,

onde a previsibilidade da ação social é maior. A racionalidade que ordena a escolha

dos melhores meios para se atingir os fins desejados é legitimada pela coerência

interna dos procedimentos, estando, nessa perspectiva, alheia ao juízo de valor. A

ação social pode, então, ser dividida entre o mundo da racionalização técnica ou

eficiência e o mundo dos valores e das significações humanas. Conforme esse

argumento, um bom exemplo da racionalidade formal weberiana é a burocracia

que, através da eliminação de qualquer “humanidade” nas suas ações, obtém um

resultado ótimo do ponto de vista da racionalidade orientada por fins e, portanto, da

eficiência técnica. O mesmo acontece com a ação economicamente orientada, que

será tão mais racional e eficiente quanto mais formal ela for.

Tal interpretação resulta da própria metodologia weberiana. Este autor

divide as racionalidades segundo diferentes esferas de ação, mostrando assim que

o que é racional numa determinada esfera pode ser totalmente irracional numa

outra, uma vez que cada esfera possui a sua própria legalidade (coerência entre os

termos internos). A burocracia, por exemplo, quando se estende para outros

domínios da vida, torna-se irracional para Weber.

Para efeito de compreensão e análise, este autor, assim como outros

liberais, separa a esfera econômica das demais esferas da vida. Em cada uma das

esferas, Weber irá definir quais são os critérios que legitimam a ação e, no limite,

quais são os valores que definem o que é ou não racional. É nesse momento, que a

crítica de Tragtenberg torna-se mais evidente. Quando Weber define o que é uma

ação econômica racional ele o faz da perspectiva de um pensador liberal, sem

relativizar ou explicitar os pressupostos que a formam.

Seu conceito de racionalidade formal é ligado a valores, embora não o admita explicitamente, pois Weber vincula a idéia da distribuição social dos bens a um efeito perturbador no processo de produção eficiente, onde a propriedade privada dos meios de produção aparece como paradigma da eficiência técnica (Tragtenberg, 1992, p.183).

Outra característica do pensamento liberal é a transposição das metas

sistêmicas do mundo econômico para o indivíduo, determinando o que é racional

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122

para este último. Essa “tradição” confunde a lógica do sistema econômico com a

racionalidade do indivíduo, afirmando que os sujeitos agem racionalmente quando

querem maximizar os seus ganhos ou quando querem acumular capital. Assim, as

“vontades pessoais, de modo implícito, encontram-se subrogadas e os fins

individuais nada mais são que tradução particular de metas sistêmicas gerais, tais

como a eficiência da organização, o lucro da empresa, o crescimento da economia,

etc.” (Prado, 1993, p.127). Por isso a gerência profissionalizada, a separação entre

propriedade e direção, a gestão centralizada, o trabalho assalariado e o sistema

burocrático da administração da empresa são identificados ao máximo de

eficiência.

Há, portanto, uma determinada construção do que se entende por

racionalidade econômica, pois assume-se como racional uma ação que é

considerada como tal apenas do ponto de vista liberal capitalista. Nele, o ganho de

produtividade ou o aumento do lucro são os fins em função dos quais os critérios de

racionalidade são definidos. Porém, esses elementos não são axiologicamente

neutros. Nesse caso, a racionalidade econômica formal é identificada à Razão que

leva ao melhor desenvolvimento do sistema econômico, como se essa Razão fosse

alheia a juízos de valores. Portanto, o que as críticas de Tragtenberg e Prado

evidenciam são os próprios fundamentos valorativos e morais que compõem a

construção ideal típica da racionalidade econômica formal weberiana.

A aparente autonomização da esfera econômica, e a determinação do seu

funcionamento segundo um certo padrão de racionalidade, leva ainda a outros

problemas. Principalmente, quando se percebe que tanto o pensamento liberal

quanto o pensamento marxista, nas suas versões ortodoxas materialistas, afirmam

o crescente domínio da racionalidade econômica sobre as outras dimensões da

vida. O crescente processo de burocratização, a penetração do racionalismo

econômico nas outras esferas da vida e o processo de reificação do sujeito através

da generalização da forma mercadoria nas relações sociais são possíveis

interpretações, respectivamente, das obras de Weber e Marx, onde se pode

encontrar um sistema econômico que possui uma lógica própria, a lógica da

acumulação de capital. Tanto numa abordagem, quanto na outra, ocorre uma

separação entre o mundo econômico e o mundo da produção e da reprodução da

Page 123: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

123

vida sócio-cultural, havendo uma crescente colonização do segundo pelo primeiro77.

Prado explica claramente como a racionalidade instrumental, individual ou coletiva,

nesse processo de “imperialismo” econômico, acaba sendo tomada como princípio

de constituição e organização da sociedade.

Ora, se esse raciocínio for levado às últimas conseqüências, tudo o que se

terá é a racionalidade econômica formal capitalista única orientando todas as ações

sociais. Tudo estaria reduzido à lógica implacável do capital e não existiria qualquer

possibilidade de existência de um sujeito com um mínimo de autonomia. Será esse

o destino dos nossos tempos?

Portanto, é preciso colocar em questão as interpretações econômicas

ortodoxas, recuperando outras dimensões da ação social que nunca deixaram de

existir e que são de fundamental importância na orientação das relações sociais. Ao

abandoná-las, segundo Prado, corre-se o risco de reforçar no plano do discurso o já

avançado processo de racionalização do mundo no sentido da sua

instrumentalização (Prado, 1993). A afirmação do domínio econômico sobre todas

as esferas da vida, com a correspondente exclusão das outras dimensões da vida

social, acaba por eliminar a possibilidade de alternativas frente ao pensamento

tecnocrático que emerge como verdade absoluta.

Tragtenberg ainda argumenta que: “a soberania da economia tão decantada

pelo liberalismo como elemento de libertação do homem das potências irracionais

acaba por submetê-lo à lei férrea da necessidade econômica” (1992, p. 207). Nas

palavras de Weber, poder-se-ia dizer que tal interpretação do mundo, onde a razão

instrumental passa a dominar todas as relações sociais, leva-nos a um

aprisionamento ainda maior na “gaiola de aço” de uma vida totalmente

desencantada.

77 Ainda que Weber e Marx tenham criticado as ciências histórico-sociais que abusam de uma interpretação economicista, que estabelecem uma relação funcional e mecânica entre a economia e a vida social, cultural e política, sabemos que é bastante comum atribuir, equivocadamente, a esses autores tal leitura da sociedade.

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124

3. Para além da contradição degeneração X falência

O desafio de conciliar a “eficiência” econômica (aqui entendida

simplesmente como a capacidade de manter-se competitivo no mercado) com os

princípios democráticos que orientam o processo autogestionário, é vivido todos os

dias pelos trabalhadores. A cada momento em que é preciso fazer uma adequação

no processo produtivo, na determinação das suas remunerações ou mesmo no

tempo e na intensidade do trabalho, os cooperados se confrontam com os

constrangimentos internos e externos à empresa que decorrem das próprias

necessidades econômicas do empreendimento.

Uma queda na demanda do principal produto comercializado por uma

empresa autogestionária não pode ser respondida com a dispensa dos

trabalhadores, como ocorre freqüentemente numa empresa tradicional. É preciso

encontrar uma outra solução. Ao mesmo tempo, a descoberta e a introdução de

determinada tecnologia no processo produtivo de uma empresa autogestionária não

podem gerar prejuízos para o conjunto dos trabalhadores. É necessário buscar

outra forma de socializar os ganhos e os prejuízos.

Nesse sentido, pode-se dizer que as empresas de trabalhadores

autogeridas são organizações “complexas” e “híbridas”, pois ao mesmo tempo em

que elas devem responder a critérios de eficiência determinados pelo campo

econômico em que estão inseridas, elas terão que respeitar a sua “natureza”

interna que privilegia o trabalho humano gerido democraticamente. Como foi

descrito acima, para Max Weber essa seria uma razão que impediria o bom

desenvolvimento de tais empreendimentos no interior da economia capitalista. Mas,

numa perspectiva contrária, existem autores que destacam essa racionalidade

sócio-política, presente nas empresas autogeridas, como um diferencial produtivo

positivo que tende a modificar, inclusive, as próprias condições de competição no

Page 125: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

125

mercado78. Os mecanismos de cooperação interna e entre empresas, as formas de

participação na gestão e na propriedade do empreendimento, entre outros, são

algumas das razões apresentadas por esses autores.

Na esquerda de origem marxista e na social-democracia dos séculos XIX e

XX, esse conflito de racionalidades ficou conhecido pela contradição falência X

degeneração, que poderia ser resumido nos seguintes termos: ou as cooperativas

autogestionárias abrem mão dos seus princípios de gestão democrática e se

moldam à racionalidade econômica dominante, afim de sobreviverem no mercado,

ou elas se mantêm fiéis aos seus princípios originais e vão à falência79. Nessa

perspectiva, gestão democrática e eficiência econômica no mercado capitalista são

vistas como incompatíveis.

Entretanto, nos termos em que esta contradição estava posta, onde tanto a

autogestão como a racionalidade econômica são tomadas nas suas formulações

essenciais e, portanto, partes opostas de um mundo dividido, torna-se teoricamente

impossível fugir dessa equação. Portanto, analisar as condições históricas de

eficiência econômica das empresas autogestionárias sem definir ou questionar os

termos em que essa eficiência está posta, seria um puro exercício logístico. Por

isso, sem propor uma saída para tal armadilha (uma vez que ela só se arma dentro

de certas formulações teóricas), é fundamental a análise dos termos que

constituem esse conflito para, em seguida, descrever os atuais limites vividos por

esses empreendimentos coletivos.

É bem verdade que a propriedade coletiva dos meios de produção e a

gestão democrática não são suficientes para desencadear um processo de

transformação nas relações de trabalho no interior de uma empresa de

78 Tal argumento fundamenta diferentes correntes teóricas. No âmbito do Socialismo de Mercado de origem norte-americana poderíamos citar Bowles & Gintis, (s/d) e Ollman, (1998). Na discussão brasileira sobre Ecomomia Solidária tal argumento, em diferentes versões, está presente em Singer (2002 e 1999), Singer & Souza (2000), Gaiger (1999a; 1999b), Haddad (2001; 1998b). Sobre a Economia Social e Solidária francófona pode-se citar Laville (1994), Lévesque et al. (2001), Lévesque & Mendell (1999), Favreau apud Shragge & Fontam (2000) e Yves Vaillancourt, organizador da revista Lien Social et Politiques - RIAC, Montréal. 79 Conforme Luxemburg (1990) e Bernstein (1997). Esse debate, que está presente em Karl Marx e se prolonga nesses autores, será aprofundado no item seguinte.

Page 126: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

126

trabalhadores. O processo de implementação da autogestão, como bem descrito

pelos formadores da ANTEAG (2000), é contínuo. Pode-se dizer que não existe

autogestão consolidada, da mesma forma que não existe sistema democrático

consolidado. Ambos são dotados de uma permanente incompletude produtora de

uma sinergia social, onde o apaziguamento desse movimento só geraria a sua

própria dissolução.

Portanto, o conflito entre a racionalidade econômica do mercado e a

racionalidade democrática é, sob a atual “formação sócio-histórica” (nos termos de

Castoriadis), permanente. Talvez, num outro contexto histórico tal conflito deixe de

existir, mas essa discussão foge aos propósitos desta dissertação.

Esse choque de lógicas distintas é facilmente observável na sua

manifestação epidérmica. Será nos coordenadores ou dirigentes das empresas de

autogestão que esse desencontro explode mais fortemente, pois são eles que estão

em contato simultâneo com esses dois universos interdependentes: a dimensão

solidária e democrática no interior da cooperativa e o mercado competitivo e

excludente do lado de fora.

Foi perguntado a um dos coordenadores da ANTEAG como eles tratam

esse tema nos seus programas de formação de dirigentes das empresas de

trabalhadores:

O que vale a pena chamar a atenção é que sempre trabalhamos com duas formas de intervenção, uma delas é trabalhar com a capacitação de pessoas, capacitação dos dirigentes particularmente. Quem foi eleito para dirigente tem que ser capaz de manter o negócio funcionando. O dirigente tem que saber economia, tem que saber de marketing, tem que saber como ele equilibra a produção, os custos. Ele tem que conhecer minimamente economia e administração, para tocar esse processo, para poder se manter no mercado. Por outro lado você faz um trabalho de formação, daí se mexe um pouco com a questão dos hábitos, dos costumes, que significa trabalhar com cooperação e não mais com compartimentação, significa você trabalhar não só com o aspecto empresarial, mas também com os aspectos organizativos[...] São dois trabalhos: um trabalho é você se garantir no mercado, o outro é um trabalho de destruir e construir algumas coisas. É um trabalho de destruição, você tem

Page 127: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

127

que desfazer a cabeça deles, para você construir uma outra coisa80 (Luigi Verardo – ANTEAG).

De maneira geral, a capacitação para a gestão do negócio exige um

aprendizado técnico-instrumental, visto que na maior parte das empresas de

autogestão os trabalhadores que decidem montar o empreendimento não são os

que ocupavam os cargos mais altos na antiga hierarquia da empresa, estando,

portanto, afastados das questões administrativas do negócio. Ao mesmo tempo, a

realidade mostra que com uma capacitação adequada os operários são tão aptos

quanto os antigos empresários. Fato que pode ser comprovado pela rápida

recuperação de empresas que tiveram problemas causados pela má gestão

anterior dos proprietários, e agora existem como empreendimentos

autogestionários.

A formação para a autogestão, entretanto, é bastante complicada, pois ela

exigirá uma mudança radical nos hábitos e práticas instituídas por todos os

trabalhadores envolvidos. É a tal “destruição para construir coisas novas” a que se

referia um dos coordenadores da ANTEAG. Os dirigentes, em especial, terão que

tomar cuidado para não reproduzirem o modelo anterior de gestão, devendo assim

combinar os aspectos administrativos com a dimensão organizativa autogestionária.

Mas, como foi afirmado acima, essa combinação não é tarefa fácil:

Há uma contradição intrínseca entre você pensar em um trabalho de autogestão, que você propõe para ele, dele tocar o negócio, como trabalhador e não contratar quase ninguém, uma coisa que você discuta, que tenha uma democracia interna , que tenha uma relação solidária, como dizem eles... O mercado é competitivo, é concorrencial, é materialista ao extremo, então, o que você tem são duas realidades muito distintas. Eles têm que estar no mercado, e essa relação deles com o mercado é uma relação de conflito e contradição permanente .[...] Vai ter que viver com a crise eternamente. [...] Quando o sujeito resolve...o presidente começa a segurar tudo que tem conflito, que tem problema, ele começa a concentrar um trabalho de direção para fazer o negócio dar certo, ele não cuida mais da sua vida pessoal, aí a coisa fica difícil. Ele tem que saber que essa tensão não é dele, é uma tensão coletiva. Essa crise não é uma crise individual, é uma crise dessa relação, se ele não entender isso ele se arrebenta (Luigi Verardo – ANTEAG).

80 Entrevista realizada em 15 e 23 de março de 2000 com Luigi Verardo na sede paulista da ANTEAG.

Page 128: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

128

Alguns exemplos concretos desses dilemas poderiam ser descritos. É

comum, nas assembléias gerais, surgirem conflitos sobre a destinação final das

sobras líquidas da cooperativa. Normalmente, aqueles que estão mais sintonizados

com as mudanças no mercado (que atingem o produto da empresa em questão)

compreendem melhor as necessidades de adequação da produção à uma nova

situação, o que exige muitas vezes novos investimentos em equipamentos,

infraestrutura, treinamento e etc.. Porém, outros sócios da empresa podem querer

aplicar tais recursos para um outro objetivo como, por exemplo, aumentar suas

retiradas. Os desentendimentos em torno da aplicação desses recursos costumam

ter relação direta com as diferenças de conhecimento e informação sobre a

realidade da empresa. Supõe-se que quanto mais transparente, participativa e

democrática for a cooperativa maiores são as chances de haver entendimento em

torno da aplicação das sobras finais. A democracia no interior dessa comunidade (a

empresa autogerida) não deveria ser medida apenas em termos da possibilidade de

escolha entre certos “meios” para a realização de objetivos determinados

externamente, mas também em termos da capacidade de discussão e avaliação

dos próprios “fins” do empreendimento coletivo.

O tempo para a tomada de importantes decisões também costuma ser outro

elemento conflitivo. Muitas vezes é necessário deliberar rapidamente sobre

questões contratuais com outras empresas, ou mesmo tomar decisões estratégicas

numa negociação. O processo de discussão e deliberação democrático costuma ter

uma temporalidade própria, pois decidir coletivamente exige não apenas a

socialização das informações, mas também escutar diferentes interesses e pontos

de vista. Porém, em alguns momentos não é possível realizar uma ampla consulta

para se tomar uma rápida decisão. Também nesses instantes o “tempo

democrático” pode entrar em conflito com o “tempo do mercado”:

Por exemplo, você assume um compromisso de ter entregado determinados produtos, então, você tem um prazo para entregar. Aí não dá para você entender por exemplo que atrasou mais a produção porque...o que aconteceu? Houve uma discussão lá, que o pessoal não estava envolvido naquele projeto, e faltou uma comunicação interna. E aí começam a fazer... porque como são donos, eles querem saber o que estão fazendo...Antes dizia “tem tal prazo para produzir tal coisa, e acabou”. Agora não tem mais isso. Tem o prazo,

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129

mas eu tenho que saber também o que eu estou fazendo. Isso demanda também um tempo, aí dá um problema (Luigi Verardo – ANTEAG).

Esse tempo de reflexão coletiva, denominado “tempo público” por

Castoriadis (1987), diz respeito à constituição de uma dimensão em que uma dada

comunidade investiga o seu próprio passado enquanto resultado de suas ações e

onde o futuro se revela um campo de atividades indeterminadas.81 Saber o que está

acontecendo na cooperativa é condição fundamental para que os trabalhadores

possam participar positivamente nos debates. A disposição, a qualidade das

informações e do processo comunicativo são importantes veículos para uma

participação crítica e ativa.

Aqui, seria interessante destacar dois pontos. Primeiro, as relações

democráticas aparecem como necessidade para a própria viabilidade da empresa

autogerida. Se ela não tiver relações participativas, transparentes e igualitárias,

tudo indica que os conflitos tendem a se acirrar até a dissolução da organização

coletiva. Portanto, ao invés de se ter a racionalidade democrática como um

impedimento para o bom desenvolvimento econômico, no caso das empresas

autogeridas é justamente o contrário, pois a qualidade dessas relações

democráticas são um importante componente da coesão e da motivação do grupo.

Comentando um problema semelhante àquele descrito acima pelo técnico da

ANTEAG, um cooperado afirmou:

Hoje é muito esclarecido, por exemplo, o cara está fazendo umas peças, de qualquer cliente, você chega e fala “você viu essas peças aí? O prazo dela é....”. Se o cara quiser saber ele tem uma folha, porque é tirado, como se fosse um extrato bancário, tem umas folhas, um demonstrativo mesmo, daí tem o nome do cliente, a quantidade de peças, o preço da peça e o prazo de entrega. Daí o cara olha e fala “tá vendo, você está fazendo três peças aí, essas peças valem cinco mil reais, se a gente entregar até o dia tal, o prazo de entrega vai daqui a duas semanas, você fazendo isso aí...o cliente já deu ordem que pode entregar a peça e fazer o faturamento...” (Pedro – UNIWIDIA).

No caso dessa cooperativa, o conhecimento de todo o processo de trabalho,

da produção da peça até a entrega ao cliente, tornou-se um fator importante para a

81 Castoriadis, C. A pólis grega e a criação da democracia. In: As encruzilhadas do labirinto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

Page 130: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

130

dinâmica grupal, uma vez que a transparência ajuda a evitar a concentração de

informações e a sua conseqüente cristalização em grupos que concentram poder.

O segundo é que a prática constante da democracia no interior da fábrica

implica num aprendizado. A experiência parece indicar que, com o passar do

tempo, o processo decisório se torna mais ágil e de melhor qualidade, uma vez que

os envolvidos acumulam e desenvolvem uma prática de discussão e deliberação82.

Pode-se ainda acrescentar a hipótese segundo a qual as decisões coletivas num

empreendimento econômico tendem a serem mais acertadas do que decisões

tomadas por um pequeno grupo de pessoas, uma vez que a diversidade e a

qualidade das informações enriquecem o processo decisório, agregando opiniões

do setor produtivo, comercial, financeiro etc..

Para lidar com tais conflitos, a única alternativa possível, já que a superação

dessa contradição essencial não está posta, seria a utilização de mecanismos

democráticos capazes de acolher, discutir e deliberar sobre os diferentes interesses

e necessidades dos trabalhadores e da empresa. A democracia, aqui, é condição

para o bom funcionamento econômico da empresa. Ao mesmo tempo, essas

relações democráticas só se tornam possíveis porque todos os trabalhadores

possuem igual poder de fala e voto independentemente do capital que tenham

aplicado na cooperativa e do valor das suas retiradas. Essas condições atestam a

co-determinação entre as condições sociais e econômicas e as possibilidades de

participação democrática no seio de uma comunidade.

Portanto, ainda que o conflito entre a racionalidade econômica e a

racionalidade democrática sejam constitutivas das empresas de autogestão, pode-

se afirmar que entre a “falência” e a “degeneração” existem muitos outros

elementos que surgem a partir e no interior dessa dinâmica social, que poderiam,

por exemplo, gerar novas relações sociais onde o conceito de “degeneração” não

se aplicaria. As disputas em torno das remunerações, as alternativas de

organização do trabalho, o processo auto-organizativo dos trabalhadores, os

82 Tal argumento pode ser encontrado em alguns autores “participacionistas” da Ciência Política, como Pateman (1970) e Cohen & Rogers (1995). Pode-se dizer que essa tradição partilha de fundamentos presentes em Rousseau e J.S. Mill, entre outros.

Page 131: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

131

mecanismos de comunicação e deliberação criados para facilitar o fluxo de

informações, a mudança da situação de empregado para a de trabalhador

cooperado, a relação dessas entidades com outras organizações sociais etc., todos

esses fatores não podem ser simplesmente reduzidos à idéia de “estratégias de

sobrevivência”83.

Dessa forma, não é possível definir os sentidos, significados e os resultados

desse processo a priori. Dizer que algo degenerou, implica numa idéia de essência

que foi perdida, ou ainda, significa dizer que se desviou do seu caminho original,

como se o destino final da trajetória fosse algo previamente definido e certo.

Classificar essas experiências apenas em termos de conceitos pré-estabelecidos

poderia gerar um “desperdício da experiência” que emerge no cotidiano desses

trabalhadores. Ao fugir dessas contradições teórico-práticas, pretende-se

simplesmente analisar as possíveis configurações sociais e políticas que surgem

nesse processo simultaneamente criativo e reprodutivo.

83 A noção de “estratégias de sobrevivência” é bastante recorrente entre alguns intelectuais e políticos de esquerda. Nela, a economia social, solidária ou popular aparece, na maioria das vezes, como uma reação desesperada e marginal face ao desemprego, que não contribuiria para uma mudança estrutural das relações econômicas. Como será discutido no item seguinte, tal argumentação baseia-se numa determinada visão de processo social em que as estratégias de luta e seus sujeitos já estão previamente definidos. Para um bom exemplo desses argumentos ver: Antônio José da Silva (pseudônimo de Plínio de Arruda Sampaio), no Correio da Cidadania, de 10 à 17 de janeiro de 2000.

Page 132: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

132

3.1 As contradições das cooperativas para Karl Marx e Rosa Luxemburg

Muitos são os autores que analisaram as relações entre o pensamento de

Marx e os socialistas que o antecederam, bem como as suas reflexões sobre as

experiências de cooperativas de trabalhadores da época84. Encontra-se, em

diferentes momentos de sua obra, referências às associações de trabalhadores que

realizavam a produção, o consumo e a distribuição de mercadorias ou mesmo o

crédito de forma cooperativada.

Em um trecho já muito examinado de O Capital, Marx descreve com

precisão aquele conflito de racionalidades referido anteriormente:

Pelo que diz respeito às cooperativas operárias, elas representam, dentro do antigo sistema, a primeira brecha nele aberta, embora produzam necessariamente e em todos os seus aspectos, na sua organização real, todos os defeitos do sistema existente. Todavia, dentro das cooperativas o antagonismo entre o capital e o trabalho encontra-se superado ainda sob uma forma imperfeita: como associação os trabalhadores são os capitalistas deles próprios, o que quer dizer que utilizam os meios de produção para valorizar o seu próprio trabalho.[...] Quer as sociedades capitalistas por ações quer as empresas cooperativas são de considerar como formas de transição entre o modo de produção capitalista e o sistema de associação, com a única diferença de que, nas primeiras, o antagonismo é superado de maneira negativa e, nas segundas, de maneira positiva (Marx, 1974, p.509).

Representam uma “brecha”, pois a sua própria existência questiona a

univocidade do modelo de produção capitalista. Ao produzirem de forma

socializada, superam a contradição Capital-Trabalho de “uma forma imperfeita”,

pois o fazem apenas na propriedade dos meios de produção, entretanto, o

mecanismo de criação de valor (que gera a mais-valia) não se altera. Nessa

perspectiva, as cooperativas de produção, assim como as empresas capitalistas, na

medida em que estão inseridas na mesma formação econômico-social, acabam

submetidas ao sistema que se faz dominante, expresso numa forma específica de

valorização e acumulação do capital.

84 Bourdet & Guillerm (1976); Hobsbawn (1983); Luxemburg (1990); Bernstein (1997); Singer (1998a), entre outros.

Page 133: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

133

Para Marx, as cooperativas também mostram na prática que o papel dos

dirigentes e dos proprietários dos meios de produção são, na realidade,

desnecessários para o bom funcionamento da empresa. Entretanto, a inexistência

desses dois sujeitos não é suficiente para propiciar a completa autonomia dos

trabalhadores, pois essa continuará sendo determinada externamente em pelo

menos duas outras dimensões presentes na produção cooperativa: por um lado, a

inserção da cooperativa no mercado mais amplo que impõe a heteronomia do

capital sobre as possíveis organizações do processo produtivo; por outro, a

diferença que existe entre as necessidades da empresa coletiva e as necessidades

individuais de cada trabalhador.

Reconhecendo essas contradições, Marx ainda defenderá, em 1864, na

Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, a

possibilidade das cooperativas serem tão ou mais eficientes que as empresas

capitalistas:

Mas, estava reservada uma vitória ainda maior da economia política do trabalho sobre a economia política da propriedade. Falamos do movimento cooperativo, especialmente, das fábricas cooperativas erguidas pelos esforços, sem apoio, de algumas “mãos” ousadas. O valor destas grandes experiências sociais não pode ser exagerado. Mostraram com factos, em vez de argumentos, que a produção em larga escala e de acordo com os requisitos da ciência moderna pode ser prosseguida sem a existência de uma classe de patrões empregando uma classe de braços; que, para dar fruto, os meios de trabalho não precisam ser monopolizados como meios de domínio sobre e de extorsão contra o próprio trabalhador; e que, tal como o trabalho escravo, tal como o trabalho servo, o trabalho assalariado não é senão uma forma transitória e inferior, destinada a desaparecer ante o trabalho associado desempenhando a sua tarefa com uma mão voluntariosa, um espírito pronto e um coração alegre. Em Inglaterra, os germines do sistema cooperativo foram semeados por Robert Owen; as experiências dos operários, tentadas no Continente, foram, de facto, o resultado prático das teorias, não inventadas, mas proclamadas em alta voz, em 1848 (Marx, 1974, p.11-12).

Décadas mais tarde, Luxemburg retomará algumas teses de Marx para

analisar o desenvolvimento das cooperativas de produção e consumo. No seu

debate com Bernstein, ela também descreve essa natureza “híbrida” das

cooperativas. Híbrida, porque a produção socializada seria sucedida pela relação

de troca de natureza capitalista no mercado. Seu argumento baseia-se no

pressuposto de que na economia capitalista a troca domina a produção, uma vez

Page 134: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

134

que a concorrência intercapitalista fortalece a dominação completa do processo de

produção, de forma que os trabalhadores têm dificuldade de impor seus interesses

(orientados por uma racionalidade que privilegia a existência e a qualidade do seu

trabalho) face às necessidades de adequação dos procedimentos de produção

impostas pela racionalidade capitalista dominante (Luxemburg, 1990, p.87-97).

A concorrência, portanto, desempenha um papel fundamental na

determinação dos processos produtivos na medida em que ela reforça um modelo

de divisão sócio-técnica do trabalho, expressa nos termos do “despotismo da

divisão manufatureira do trabalho” (Marx apud Haddad, 2001, p.14). Essa forma de

organização da produção manifesta-se naquilo que Marx nomeia de “Lei do

Desenvolvimento Industrial” (cf. Luxemburg, op.cit.).

Para Luxemburg, assim como para vários outros pensadores e militantes

que a seguiram, as cooperativas de produção têm apenas duas possibilidades: ou

elas se tornarão uma empresa capitalista para se manterem no mercado, abrindo

mão, portanto, dos princípios cooperativistas ou elas se dissolverão quando os

trabalhadores tentam manter a todo custo os seus interesses (ou seja, lutar pela

manutenção do seu trabalho).

Esse argumento se baseia na radicalização de algumas idéias presentes

naquele conceito marxiano da “lei de desenvolvimento industrial”. A empresa

capitalista de produção industrial, desse ponto de vista, torna-se mais eficiente no

mercado através do revolucionamento tecnológico e dos processos produtivos,

instalando uma forma de produção identificada como a “mais eficiente”. De fato,

pode-se encontrar uma “coincidência” entre um fenômeno real e uma possível

explicação teórica para ele: a existência de fábricas com capital e gestão

concentrados e centralizados explicar-se-ia simplesmente pela eficiência obtida por

esse modelo de produção. Aqui, o caminho do desenvolvimento tecnológico, ou

seja, a divisão técnica do trabalho, e a maneira como ele é transformado numa

certa forma de organização do trabalho, aparecem como “caminho único”.

É por isso que, do ponto de vista de Luxemburg, só restam essas duas

opções para as cooperativas: a falência ou a degeneração (entendida como o

abandono dos princípios cooperativos autogestionários). Nessa perspectiva, o

problema que a cooperativa de produção enfrenta é que ela terá que ser eficiente

Page 135: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

135

nos mesmos termos que são definidos pelas empresas dominantes daquele setor

da economia. Essa eficiência (que aparece como modelo único de obtenção de

ganhos de produtividade) é, entretanto, contrária aos princípios da organização

cooperativa do trabalho, na medida em que ela se realiza pela maximização do

trabalho morto (realizado pelas máquinas) em oposição ao trabalho vivo (realizado

pelo homem), e pela concentração do capital socialmente gerado em detrimento de

sua socialização.

Como bem percebeu Haddad, naquela segunda citação de Marx, pode-se

constatar a indicação de que a cooperativa pode competir com a empresa

capitalista fazendo uso dos mesmos procedimentos utilizados por esta última: “a

produção em larga escala e de acordo com os requisitos da ciência moderna”

(Haddad, 2001). Rosa Luxemburg, por sua vez, na sua crítica ao desenvolvimento

das cooperativas, parte de alguns pressupostos que são comuns a Karl Marx.

Os escritos desses autores permitem o desenvolvimento de argumentos em

duas direções distintas.

1) Os argumentos de Marx e Luxemburg partem da idéia de que a

racionalidade econômica capitalista cria um sistema onde a racionalidade

econômica se realiza de maneira única, fortalecendo ainda um modelo único de

desenvolvimento, onde a técnica e a ciência são manifestações neutras

axiologicamente que permitiriam o aprimoramento da produção. Para esses

autores, a performance das cooperativas poderia ser avaliada a partir dos mesmos

critérios de eficiência que são aplicados às empresas capitalistas. Tal

entendimento, no entanto, trás conseqüências diretas sobre a forma como a relação

entre o Estado e o mercado é concebida. Um outro fragmento de Marx exemplifica

os possíveis desenvolvimentos dessa posição teórica. Ao recusar o apoio do

Estado às cooperativas de trabalhadores expressa no Programa de Gotha, Marx

afirma:

No que, porém, diz respeito às actuais sociedades cooperativas, elas só têm valor na medida em que são criações dos operários, independentes, nem protegidas pelos governos, nem pelo burguês (Marx, 1974, p. 23-24).

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136

Nessa perspectiva, as cooperativas terão que competir com as empresas

capitalistas dentro dos mesmos critérios de eficiência capitalista que, em última

instância, será dado pelo mercado, onde apenas o “mais eficiente” sobreviverá.

Aqui, as cooperativas enfrentam a racionalidade dominante capitalista que impõe

um modelo de organização produtiva (domínio do Capital sobre o Trabalho)

podendo, entretanto, obter sucesso econômico mesmo dentro desse jogo mercantil

(para Marx).

Ainda que Luxemburg discorde em parte desse argumento – pois para ela

as cooperativas só podem sair do dilema falência X degeneração através da

completa superação da competição intercapitalista –, ela afirma que as

cooperativas de produção podem sobreviver se estiverem associadas, de alguma

maneira, a outras cooperativas de consumidores, garantindo, portanto, a venda de

seus produtos. Entretanto, essa situação seria, no seu entender, o “retrocesso do

capitalismo para a economia mercantil da Idade Média” (Luxemburg, 1990, p.89).

Nesses exemplos (Marx e Luxemburg), a noção de eficiência é reduzida

apenas à sua dimensão econômica e, portanto, limitada à racionalidade do capital.

Nesse sentido, afirma-se que determinado empreendimento pode ser

intrinsecamente mais ou menos eficiente que outro, tendo como parâmetro as

condições técnicas e materiais de produção. Esse argumento apóia-se,

basicamente, em quatro pressupostos que normalmente não estão explicitados: 1)

na tentativa de redução de todas as variáveis envolvidas na produção em termos do

cálculo de capital e, portanto, objetivação de toda ação humana a uma dimensão

quantitativa única; 2) no isolamento das condições histórico-sociais que interferem

nas condições de produção e, portanto, de eficiência; 3) avaliação da eficiência

apenas em termos da produtividade técnica; 4) redução da organização social do

trabalho no interior da empresa à divisão técnica do trabalho (como discutido na

primeira parte do segundo capítulo).

Esse tipo de interpretação leva, no limite, a um determinismo tecnológico a-

histórico, tornando inimaginável qualquer outra forma de organização da produção

que não parta daqueles considerados “os mais eficientes” nas empresas

capitalistas. Como no caso de Luxemburg, ao inferir que tal modelo de produção

levaria a um retrocesso na economia, como a volta de um “modelo medieval”. Sua

Page 137: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

137

conclusão resulta da transposição dos mesmos critérios de avaliação da

performance econômica para um contexto histórico desconhecido (futuro), sem

levar em conta que numa outra configuração socioeconômica, o dinamismo dentro

das empresas, e delas entre si, poderia se dar de uma outra maneira, capaz

também de gerar excedentes econômicos e de possuir um elevado nível

tecnológico.

Nessa direção, os procedimentos técnicos são despolitizados num duplo

sentido: ao se negar os conteúdos sócio-políticos que uma técnica comporta no

instante em que ela é inserida numa relação social e ao se negar o contexto

histórico que faz com que aquela experiência seja a mais eficiente no mercado.

2) Outro caminho possível, e que talvez seja mais interessante para a

análise do objeto teórico em questão, é aquele que toma a própria eficiência

econômica como o resultado do conflito e coordenação entre diferentes forças

sociais. É certo que todo empreendimento econômico que surge no presente terá

que competir com aquelas empresas do mesmo setor que já estavam atuando no

mercado e que instituíram, no decorrer do tempo, as “regras do jogo” em que se

dará a concorrência capitalista (definição do mercado consumidor, tipos de

produtos, organização tecnológica, redes de distribuição, políticas fiscais e de

financiamento, etc.). Nesse sentido, é correto afirmar que as empresas de

autogestão terão que competir nos mesmos termos de eficiência que as empresas,

ditas, tradicionais.

Entretanto, seria uma imprecisão reduzir tal cenário a uma aceitação pura e

simples do “sistema produtor de mercadorias”. Na medida em que as empresas de

trabalhadores autogeridas são portadoras de um conflito, simultaneamente interno

(a forma como a racionalidade econômica dominante se manifesta dentro da

fábrica) e externo (da relação entre essas empresas e o mercado), que as institui

como tais, sua própria existência depende da luta pela instituição de novos critérios

de performance econômica, chamando atenção, portanto, para as condicionantes

sociais e políticas em que estão mergulhadas todas as relações econômicas.

Dessa forma, quando se pensa em empreendimentos econômicos que

introduzem no seu interior critérios alheios àqueles identificados à pura

Page 138: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

138

maximização do capital, deve-se estar atento para outras formas de eficiência – que

afetam não apenas o empreendimento em si, mas a sociedade a sua volta – que

podem surgir a partir dessas experiências. No caso das empresas de trabalhadores

autogeridas, falar em racionalidade socioeconômica ou eficiência, implica

necessariamente numa redefinição desses termos, e tal redefinição significa

problematizar os objetivos sociais da própria economia.

Portanto, os problemas que as empresas de autogestão e as cooperativas

de produção enfrentam para se realizarem como tais dizem respeito a uma luta

política, pois sua existência dependerá da sua capacidade de criar novos critérios

de pertencimento social e de partilha do excedente econômico no interior de uma

sociedade. Se a prática e a reflexão ficarem limitadas à utilização de critérios

analíticos que sejam incapazes de perceber o que pode estar surgindo em termos

simbólicos e concretos a partir dessas experiências, corre-se o risco de sufocar a

diversidade e as possíveis experiências sociais que contribuem para a

desnaturalização e crítica do mundo contemporâneo.

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139

CAPÍTULO 3 – DE EMPREGADOS A COOPERADOS:

PARTICIPAÇÃO, AUTONOMIA E SERVIDÃO VOLUNTÁRIA

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140

Talvez um dos fatores mais complexos na constituição dos

empreendimentos econômicos autogeridos seja a transformação cultural e

psicológica pela qual os trabalhadores devem passar quando assumem a gestão

individual e coletiva do seu trabalho. Como a maior parte das empresas de

autogestão originou-se de fábricas que por diferentes razões estavam em crise, os

trabalhadores que aceitaram o desafio de constituí-las eram na sua maioria

empregados da antiga empresa. Existem, é claro, trabalhadores que se associaram

a tais empreendimentos e que não faziam parte da antiga fábrica, ou ainda

trabalhadores que nunca trabalharam sob o regime de assalariamento com registro

formal em carteira.

Não existem amplas estatísticas sobre o perfil dos trabalhadores que

formam as empresas de autogestão no Brasil, entretanto, a partir da observação de

diferentes experiências e de informações obtidas junto às entidades

representativas, pode-se, ainda que de forma incompleta, traçar algumas

características desse grupo.

Muitos dos trabalhadores que resolveram “ficar” para constituir a empresa

de autogestão no momento de fechamento da antiga empresa são aqueles com

mais idade e com maior tempo de serviço prestado. Conforme dados fornecidos

pela pesquisa IBASE-ANTEAG, 57,67% dos trabalhadores entrevistados possuem

entre 31 e 50 anos de idade; 11,04% possuem mais de 50 anos; 29,49% possuem

entre 18 e 30 anos de vida85. Não se pode especular sobre as razões que

motivaram esse grupo na escolha pelo empreendimento autogerido, entretanto,

pode-se interpretar outros elementos que compõem este cenário de transição.

Quando as empresas fecham suas portas, elas normalmente deixam muitas

dívidas para com os trabalhadores. São salários atrasados, verbas rescisórias e

direitos trabalhistas não recolhidos, às vezes por anos, pelos quais os

trabalhadores terão que lutar para conseguir o recebimento, visto que o processo

85 Essa pesquisa utilizou uma amostragem de 13 empresas autogeridas para um universo de 100 empresas do Rio Grande do Sul. “Iniciativas Autogestionárias no Rio Grande do Sul”, IBASE/ANTEAG (Lopes, 2001).

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141

de liquidação do patrimônio da empresa para saldar os créditos trabalhistas pode

levar até 10 anos.

Em algumas empresas, uma forma possível de negociação encontrada para

saldar mais rapidamente as dívidas para com os trabalhadores foi realizar a troca

de parte dos créditos trabalhistas por ativos da empresa (maquinário, prédio, etc.).

Outro arranjo interessante é quando o síndico da massa falida aluga a “empresa”

para a cooperativa de trabalhadores e esta aguarda o momento do leilão para

arrematar o que lhe interessar dos ativos. Nesse sentido, aqueles trabalhadores

com mais tempo de trabalho na empresa anterior podem ter maior interesse em

participar desse processo, uma vez que isso pode garantir, em parte, o recebimento

dos seus créditos trabalhistas mais rapidamente. Outros fatores que podem

corroborar para esse fenômeno são os elevados índices de desemprego do período

(década de 90) e a dificuldade ainda maior para pessoas com mais idade

encontrarem um novo trabalho.

Guardadas as devidas especificidades e assumindo a impossibilidade de

melhor detalhar o perfil etário e o histórico profissional dessas pessoas, as análises

seguintes se reportam, sobretudo, aos trabalhadores que passaram de uma

situação de empregados para a de trabalhadores autônomos associados.

Isso significa dizer que esses trabalhadores já trazem consigo uma forma de

se relacionar, de produzir, de agir e pensar sobre o trabalho que se constituiu

simultaneamente, e numa relação de co-determinação, ao processo de trabalho em

que eles estavam imersos. Assim, as dimensões subjetivas, culturais e simbólicas

que se formaram durante esse percurso entrarão em choque com a experiência de

trabalho autogerido, que se orienta pela participação e pela autonomia. Por

participação entende-se a ação de se informar, discutir e deliberar sobre todos os

assuntos que afetam a vida do sujeito no trabalho. Por autonomia entende-se a

capacidade interna (individual e coletiva) para se auto-determinar e se auto-realizar

(Chauí, 1982b).

Esse encontro, entre duas formas de trabalho distintas, pode ser melhor

observado a partir das dificuldades vividas para vencer as práticas anteriormente

instituídas. Cada empresa autogerida terá que enfrentar problemas próprios, uma

vez que as características da antiga fábrica e do tipo de trabalho que lá era

Page 142: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

142

realizado (como o modelo de organização do trabalho, tipo de atividade realizada,

nível tecnológico), bem como o histórico dos trabalhadores e de suas lutas, terão

efeitos completamente diversos sobre a constituição da nova empresa. Para usar

as palavras de um coordenador da ANTEAG, a “herança” da empresa que fechou,

referindo-se ao conjunto material, organizacional e simbólico que passa para

empresa de autogestão, terá uma grande influência sobre esse processo de

transição.

Constata-se, por exemplo, dificuldades para vencer as hierarquias e as

rígidas separações entre os diversos níveis da empresa que possuía um sistema

próprio de reconhecimento e legitimidade instituído; dificuldades para ultrapassar

uma atitude de passividade e subordinação, produto de anos de trabalho sob uma

autoridade inquestionável; problemas com uma formação extremamente

compartimentada e segmentada que limita a compreensão do conjunto produtivo da

empresa e da inserção do trabalhador nesse processo; resistência à participação

na gestão e na deliberação de assuntos que lhes digam respeito, motivada pela

falta de confiança no processo ou por desconhecimento da importância de sua

ação; problemas com a falta de auto-estima e com o não reconhecimento do valor

do seu próprio saber que fora negado sistematicamente por uma sociedade

dominada pelos discursos competentes (Chauí, 1982a). Resumindo, dificuldades

para vencer um conjunto de práticas e valores instituídos pela sociedade

assalariada industrial (e especialmente marcada por relações autoritárias no caso

brasileiro).

Page 143: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

143

1. Lei é aquela que a gente faz

A partir de algumas questões que emergem no interior das empresas

autogeridas, pode-se observar interessantes cruzamentos entre o universo jurídico

e o econômico. Tanto a legislação brasileira que regulamenta esses

empreendimentos coletivos (legislação sobre o cooperativismo) quanto o estatuto

que funda uma cooperativa expressam uma certa relação entre o capital econômico

gerado pela cooperativa e o trabalho realizado pelos seus sócios.

O Direito Cooperativo brasileiro entende que a principal razão da existência

de uma cooperativa é atender ao associado, permitindo que ele realize seus

objetivos sociais e econômicos (consumo, trabalho, crédito, etc.) de uma forma

mais proveitosa. Assim sendo, o capital social da cooperativa deixa de ser a razão

primeira da cooperativa para ser um instrumento de realização dos objetivos dos

cooperados86. Tal aspecto, que se origina nos princípios morais e políticos do

movimento cooperativo, terá conseqüências práticas para a constituição e a

organização interna da própria cooperativa.

Na empresa capitalista tradicional o lucro é o objetivo fundamental e

organizador das suas atividades. Nela, essa dimensão econômica (o lucro) está

acima de todas as outras, colocando, por exemplo, o desenvolvimento social dos

seus trabalhadores em segundo plano. É o social submetido ao econômico.

Entretanto, seria incorreto afirmar que nelas o econômico se torna independente do

social. O que ocorre, na realidade, é a instrumentalização das relações sociais para

se obter o máximo de lucratividade (remuneração do capital). Portanto, essas

mesmas relações econômicas se apóiam e se realizam, necessariamente, através

das relações sociais.

86 Este ponto foi orientado pelas reflexões da advogada Barbieri (2002) integrante da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade de São Paulo.

Page 144: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

144

Nas cooperativas, diferentemente, as relações econômicas devem respeitar

certos princípios (de participação democrática e distribuição das cotas-partes) que

regulamentam as forças econômicas num outro sentido. São esses os princípios

que irão impor uma forma de organização social para a realização dessas relações

econômicas. Por exemplo, a Assembléia Geral (conforme determina a legislação) é

soberana. Nela, cada cooperado tem direito a um voto, independentemente do

número de cotas-partes subscritas ou integralizadas. Isso instala um limite ao poder

econômico que poderia emergir no caso de uma distribuição desigual das cotas-

partes, como costuma ocorrer numa empresa tradicional, onde o número de votos é

definido conforme o montante de capital investido por cada sujeito no

empreendimento.

Além da Assembléia Geral existem outros órgãos que têm a sua existência

definida e regulamentada pela legislação. São eles o Conselho Administrativo e o

Conselho Fiscal. Enquanto cooperados, os trabalhadores têm o direito de serem

candidatos para os cargos desses Conselhos, podem eleger seus membros, definir

as normas de funcionamento, bem como fiscalizá-los e colaborar para a efetivação

dos seus objetivos. Como deveres, os cooperados deverão respeitar as normas

coletivamente instituídas pela Assembléia.

Cada empresa de trabalhador pode, entretanto, criar ainda outros

conselhos, conforme o desejo do coletivo e as necessidades de realização do

processo de trabalho. Portanto, para melhorar o fluxo de informações, as

possibilidades de participação, responsabilização e divisão do trabalho, cada

cooperativa irá desenvolver seus próprios mecanismos consultivos e deliberativos.

Ora, disso decorre que a situação de cooperado implica em direitos e

deveres que irão diferenciá-lo de um empregado. Aqui, a participação e a

autonomia são características fundamentais. Dessa forma, enquanto membro de

uma empresa autogerida, o trabalhador deverá participar ativamente de uma série

de atividades que na situação de empregado não existiam. Sua participação nas

assembléias, nas reuniões de grupos de trabalho, a compreensão das novas

dimensões do empreendimento que antes eram desconhecidas, a gestão das

sobras da cooperativa, tudo isso implica num aprendizado que na maioria das

Page 145: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

145

vezes resulta em maior dedicação e trabalho. Afinal, não existe participação e

autonomia individual sem a sua correspondente responsabilidade.

Assim como as retiradas, os cooperados irão determinar todas as regras e

procedimentos que organizam o trabalho na empresa autogerida. Tais

determinações poderão, ou não, ser formalizadas no estatuto ou no regimento

interno da cooperativa. A institucionalização de regras criadas pelos cooperados,

bem como a percepção desses direitos, relacionam-se de forma mais ampla com a

vivência que eles tinham, enquanto empregados, com os direitos da CLT.

Numa empresa autogerida, ainda que os trabalhadores sejam formalmente

“trabalhadores autônomos”, eles realizam de fato um trabalho coletivo, o que

significa que para a coordenação das tarefas algumas normas e procedimentos

serão compartilhadas, caso contrário, a cooperação não seria possível. A principal

diferença nesse caso é que os próprios trabalhadores são os legisladores de si.

Como disse um cooperado: “o que nós decidimos é lei pra nós, mas nós podemos

mudá-la”87.

A percepção das regras criadas pelo grupo e o reconhecimento do Estatuto

da cooperativa assumem uma forma própria, como no caso da determinação das

remunerações daquela empresa autogerida de vidros e cristais citada

anteriormente. Perguntei a um cooperado qual tinha sido o argumento utilizado para

não dar o aumento reivindicado por uma cooperada:

Eu utilizava aquela cláusula do nosso estatuto anterior que falava que um salário não podia ser seis vezes maior que o outro....eu falei “pô, eu defendi isso na assembléia...”, a faxineira, não lembro o nome da faxineira, ela falou assim “por que quinhentos e não seiscentos?” O meu argumento foi o seguinte “porque se você ganhar seiscentos, você está dando o direito para que o diretor ganhe três mil e seiscentos, ele pode ganhar seis vezes mais do que o seu salário. Por isso quinhentos, três mil é seis vezes maior”, era o que dizia nosso estatuto (João – Coop-Arte).

Entretanto, a institucionalização de algumas práticas pode gerar um

distanciamento da consciência dos princípios que deram origem àquela regra.

Nesse caso, a imposição de limites à diferenciação nas remunerações deveria levar

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146

à futura superação dessas diferenças. A naturalização dessas normas, por outro

lado, pode levar ao abandono dos fundamentos daquele direito. Mas, ao mesmo

tempo, a formalização de certas normas pode fornecer o suporte objetivo à

“consciência desse direito” (Lefort, 1987), como no caso da faxineira que

questionou o valor de sua remuneração.

Quando os espaços de discussão e deliberação no interior das empresas de

autogestão realizam-se efetivamente, eles contribuem para o aprofundamento dos

princípios instituídos pelo grupo. Nas palavras de um outro cooperado:

As reuniões são muito importantes. Se não tiver reunião a pessoa começa a perder a visão, a perder o alvo, a diretriz e acaba desviando a rota. A reunião é sempre importante para lembrar que a gente tem um compromisso e tem um alvo a atingir. [...] A pessoa que trabalha em cooperativismo tem que ser muito consciente do que ela faz, como ele faz. Se perder o cooperativismo a tendência da cooperativa é desabar (Carlos – Coop-Arte).

Nesse caso, poderia-se entender o “cooperativismo” expresso nessa fala

como um conjunto de valores e práticas instituídas pelo grupo e que precisam ser

continuamente celebradas para permanecerem existindo. Ao mesmo tempo, a

construção de algumas “novas regras” numa empresa de autogestão tomam como

referência, na maioria das vezes, os direitos sociais afirmados pela CLT. A

passagem, porém, da situação de empregado numa fábrica para a de trabalhador

autônomo numa cooperativa, como relata esse diretor cooperado, é bastante

complexa:

É meio assustador trabalhar sem os direitos trabalhistas....férias, fundo de garantia. A gente tá começando agora. Pode ser que seja até melhor do que ter os direitos. Se você tem um lucro bom aqui, sua retirada vai ser bem....e a sobra vai ser melhor ainda. Numa cooperativa a gente pode criar o nosso próprio fundo de férias, o 13°, a gente pode criar aqui dentro. A gente separa os lucros pra isso daí né? Se a empresa é viável e se a gente tá indo bem....é só ter organização. O que a gente quiser a gente pode fazer aqui dentro. Dá pra gente fazer, e talvez dê pra gente tirar até um pouco mais (Paulo – UNIWIDIA).

87 Fala registrada de um sócio da Coopercal de Recife, que realizou uma exposição durante o 7º Encontro Nacional da ANTEAG, realizado em São Paulo, no Teatro TUCA, em maio de 2000.

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147

A perda dos direitos trabalhistas associa-se, num primeiro momento, à

insegurança. Muitos sócios receiam sair da cooperativa com “uma mão na frente e

outra atrás” pois não sabem exatamente como lidar com a ausência daqueles

direitos que de alguma forma davam uma certa segurança e organizavam uma

“poupança” para os trabalhadores. Ao mesmo tempo, tais direitos sociais sempre

aparecem nas falas dos cooperados apenas na sua dimensão monetária,

dissociada, portanto, de uma experiência política que lhe dê um conteúdo mais

amplo. Exemplo disso é a constante referência à substituição daqueles direitos

sociais pela criação de fundos coletivos pela empresa de autogestão.

Mas a situação é ainda mais grave quando se percebe que tais direitos

sociais só se realizaram (ainda que apenas na sua dimensão monetária) na

experiência de vida de alguns poucos trabalhadores:

Eu tenho um monte de primos que estão trabalhando, que foram mandados embora, arrumam como terceiro, se muito registra...temporário, que direitos que eles têm? Não têm. Só que eles não têm direitos, não têm salário, porque ganha muito pouco” (Pedro – UNIWIDIA).

Ou ainda, conforme um outro cooperado:

Se fizer uma comparação... se você pensar friamente, mesmo em uma empresa que você tem a CLT do seu lado, aí de repente eu trabalhei três anos em uma empresa chamada Cristais Armando, em 68,69,70, três anos. Agora quando eu me aposentei fui levantar o negócio do fundo de garantia, eles nunca depositaram um centavo. Mesmo na época quando eu saí de lá, eu tentei mudar para outra firma, a outra firma não me informou e eu não sabia que eu poderia ir no banco confirmar se eu tinha aquele dinheiro, eu mudei para outra firma e falei “eu quero fazer a transferência desse fundo de garantia”. Eu pensei que eles tinham feito, aí ninguém fez e eu deixei passar. Quando eu fui receber, cadê? Cadê a CLT? Quando eu cobro isso do sindicato, o sindicato fala dos meus direitos, eu falo e daí, a firma lá que eu trabalhei três anos e não recebi, cadê a CLT, cadê os meus direitos? Isso não existe. Então é meio ilusório também você estar garantido pela CLT...o patrão faliu, fechou a firma, não tem como te pagar, ninguém te paga mesmo, e acabou (João – Coop-Arte).

Se num primeiro momento a perda dos direitos trabalhistas aparecem como

“insegurança”, no momento seguinte a incerteza vivida pelo empregado numa

fábrica é substituída pela estabilidade conquistada na cooperativa. Como

empregado, o trabalhador está sujeito a todas as decisões que ocorrem sem o seu

conhecimento e fora do seu poder de interferência. Uma crise qualquer na

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148

empresa, um erro na execução de uma tarefa ou mesmo qualquer conflito com a

estrutura de subordinação, tudo pode gerar uma repentina demissão. Portanto,

esses elementos são também geradores de medo e insegurança.

Já numa empresa autogerida, o controle sobre o próprio trabalho, o acesso

às informações estratégicas da empresa, a transparência, a participação nas

decisões estruturais afirmadas pela situação de sócio do empreendimento,

conferem uma nova estabilidade ao trabalhador:

O cara se sente mais estável também, você falou bem, a estabilidade... antigamente o cara estava sempre com a corda no pescoço, se ele visse qualquer coisa que diminui a venda ou que tal loja não está comprando, está falindo... ele já ia dormir preocupado, e hoje não tem muito esse problema, o cara pensa assim “da cooperativa eu não posso ser demitido, então mesmo que eu chegar no final do mês não puder receber meu salário total, algum jeito eles vão ter que dar, ou diminuir a carga horária, que nem nós já tivemos que fazer durante o ano...”. Então o cara se sente mais seguro, mais tranqüilo (João – Coop-Arte).

Essa segurança e controle sobre o próprio trabalho é fundamental para a

formação dos valores que orientam as trajetórias individuais dos trabalhadores.

Submetidas ao constante risco de uma situação de precariedade, as pessoas são

impedidas de articularem a sua experiência passada com o presente vivido. Na

situação de desemprego, de trabalho informal ou de trabalhos eventuais, o risco

impede a constituição de narrativas pessoais, privando as pessoas do material

subjetivo que constrói nossos valores ético-morais e nossas relações emocionais

(Sennett, 1999). A empresa de autogestão, por sua vez, oferece essa alternativa

aos trabalhadores que estavam no limite do desemprego.

Através de uma ação afirmativa de auto-organização, o trabalhador pode

tomar os rumos dos negócios, resignificar a sua própria experiência e construir um

projeto coletivo que possibilite a sua sobrevivência econômica e, sobretudo, a sua

inserção num mundo compartilhado:

Chega um momento que você precisa ter uma iniciativa dessa aí. Então eu acho que era um bom momento, não só pra mim mas também pra maioria do pessoal. É um momento de você se expandir, é uma chance de você crescer. Crescer como pessoa e profissionalmente. Porque aqui você tem essa liberdade. Não é uma liberdade de qualquer jeito. Aqui você pode ser um representante, você tem essa facilidade de participar de tudo. [...] São coisas que hoje estão difíceis no mercado e como cooperativa você tem mais essa facilidade. Se uma pessoa se adapta a um serviço ela, pode fazê-lo (José - UNIWIDIA).

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149

Assumir, porém, a responsabilidade sobre a gestão de um empreendimento

coletivo não é tarefa fácil. Essa transição envolve novas dimensões da ação que

para um trabalhador habituado ao regime de assalariamento poderão ser difíceis de

assimilar. Como autônomo membro de uma cooperativa, o trabalhador deverá ser o

responsável pela administração das suas retiradas. Caso ele queira fazer uma

poupança para substituir o seu anterior FGTS, ele será o responsável por esse

recolhimento (ainda que a cooperativa possa ajudá-lo nesse processo ao organizar

os depósitos).

Alguns cooperados afirmaram que a situação de assalariamento não lhes

ensinou a gerirem os seus próprios recursos. Um coordenador de um comitê interno

de uma empresa de autogestão disse-me que os trabalhadores estão tendo que

aprender a administrar o seu dinheiro. Agora, com a participação na cooperativa, as

pessoas passaram a prestar mais atenção no orçamento doméstico: “ele tem que

virar um bom administrador, senão ele dança. Isso é bom porque cria

responsabilidade” (Carlos – Coop-Arte). Nesse sentido, a participação na gestão e

a responsabilização dos trabalhadores pela administração dos seus próprios

recursos estariam contribuindo não apenas para um aprendizado que extrapola os

muros da fábrica mas que também contribui para um reconhecimento dos

processos de valorização e acumulação da riqueza gerada pelo seu trabalho.

Entretanto, se as coisas fossem tão seguras com as empresas de

autogestão, não se estaria vendo uma explosão no número de denúncias feitas

pelo Ministério do Trabalho, alegando que muitas dessas empresas são falsas

cooperativas que apenas camuflam relações de assalariamento.

Uma característica fundamental das empresas de autogestão é a sua

autonomia interna. É através dela que os trabalhadores podem instituir um conjunto

de regras que lhes permitam garantir o melhor desenvolvimento possível de

relações democráticas na empresa, ou mesmo deliberar sobre as formas de

distribuição dos excedentes econômicos e sobre a criação de fundos que possam

substituir os antigos direitos trabalhistas (como 13º, licença maternidade, FGTS,

etc.). Porém, a realização dessas propostas não está assegurada na forma de

Direitos Sociais, tal qual acontece com os diretos trabalhistas. Portanto, a

realização ou não dos objetivos dos trabalhadores das empresas de autogestão

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150

depende não apenas da qualidade da democracia interna mas também do

resultado econômico da empresa autogerida.

A existência formal da cooperativa parece não ser condição suficiente para

se evitar a exploração do trabalho. Como descrevi acima, a legislação que regula o

cooperativismo possui uma série de determinações que tipificam a relação de

trabalho associado. Entretanto, o que ocorre de fato é que, em muitos casos, sob a

aparente forma de uma cooperativa, tem-se relações de subordinação,

pessoalidade, habitualidade e onerosidade, elementos esses que configuram o

vínculo empregatício88. São esses os casos em que o Ministério do Trabalho entra

em ação.

A legislação e o estatuto da cooperativa garantem formalmente o direito de

participação de todos os sócios. Entretanto, a maneira como uma cooperativa se

organiza internamente, a forma como o capital está distribuído entre os membros, a

formação dos conselhos diretivos, a qualidade democrática das relações (nível de

participação, fluxo e qualidade das informações), todos esses fatores são bastante

flexíveis a ponto de permitirem a cristalização de grupos de poder que podem

estabelecer novas relações de dominação sobre os demais trabalhadores. A

diferença, no entanto, é que na cooperativa a possibilidade de mudança está posta

nas mãos do coletivo.

Portanto, para que uma empresa de trabalhadores seja definida como

autogerida, além da sua forma jurídica, é necessário analisar o conteúdo das

práticas no interior do empreendimento. Os casos em que as relações de trabalho

se identificam ao vínculo empregatício são facilmente identificáveis. São as

chamadas “coopergatos”, como dizem os sindicalistas. Mas, preocupa também os

casos onde a qualidade democrática da cooperativa está comprometida sem, no

entanto, haver a exploração deliberada dos trabalhadores. Tome-se o seguinte

caso quando o cooperado foi indagado sobre a Assembléia Geral da sua

cooperativa:

88 Conforme descrição jurídica das relações de trabalho (Barbieri, 2002).

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151

As assembléias não cumprem com o papel dela, tipo assim, queria se mudar coisas do estatuto, o pessoal lá embaixo era radicalmente contra aquela idéia de aumentar de um para dois anos [os mandatos da direção], essa era uma idéia do advogado. Aumentar o mandato da nova diretoria, o pessoal era contrário, “isso aí não vai mexer”. Chegou aqui, o pessoal da ATC89, vivido, experiente, calejado, colocou tudo em um bloco só, e votou tudo em um bloco. O pessoal levantou a mão e aprovou uma coisa que eles eram contrários. Não que foi fraudulento, não foi fraude, porque estava se votando em um mandato para a nova diretoria e não para nós, então normal. Mas a maneira como foi colocado, não foi falado assim “agora vamos votar aqui mandato para a nova diretoria”. Colocou tudo em um bloco só, leu ali o papel... [rápido], “quem é contra e quem é a favor?” (João - Coop-Arte).

A falta de experiência na participação em espaços coletivos de debate e

deliberação acaba favorecendo aqueles que conhecem melhor as estratégias de

ação dentro da formalidade. Ao mesmo tempo, o que as empresas de autogestão

indicam é que elas introduzem o aprendizado de uma prática democrática no

interior das relações de trabalho, ainda que no primeiro momento elas sejam muito

marcadas pelas relações de não-participação e subordinação do regime anterior.

Mas, romper com a servidão voluntária, como nos ensina La Boétie (1574),

exige o desejo de liberdade. As empresas de autogestão, ao instituírem normas e

procedimentos de caráter democrático tanto na propriedade quando na gestão do

empreendimento, ainda que na prática a realização desse ideal esteja em

permanente construção, procuram recolocar as forças econômicas no terreno

social, na contramão, portanto, da aparente autonomia da esfera econômica.

89 Ação Trabalho Capital (ATC) era o nome da entidade que prestava assessoria a essa cooperativa.

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152

2. Transformações e Permanências

A história passada da empresa falimentar e o momento de constituição da

empresa autogerida são fundamentais para se compreender as possíveis

configurações das relações sociais no interior da empresa e dela com outras

instituições (como os sindicatos e o poder público, por exemplo). A existência prévia

de mobilizações operárias em luta por melhores condições salariais ou de trabalho,

assim como experiências anteriores de forte atividade sindical nas empresas

falimentares, parecem criar condições mais propícias para o surgimento de laços de

solidariedade entre os trabalhadores que irão constituir a empresa autogerida.

As duas cooperativas de produção analisadas mais detalhadamente

(UNIWIDIA e Coop-Arte) tiveram um processo de constituição diverso, entretanto,

em ambas pude constatar uma forte presença sindical (ainda que os sindicatos, no

momento de constituição dessas cooperativas, tenham tomado posições distintas

com relação ao projeto das cooperativas). Além da ação sindical, o momento de

transição da empresa falimentar para a empresa autogerida parece ser fundamental

na adesão coletiva dos trabalhadores ao projeto de autogestão. A maneira como

alguns cooperados se reportam a esse momento inicial indica a sua importância

enquanto um “ritual de passagem” que pode ter o potencial de re-socializar os

trabalhadores sob um novo conjunto de práticas e valores.

Nesse sentido, a radicalidade de algumas dificuldades vividas pelos

trabalhadores no seu dia-a-dia pode contribuir para a construção de laços de

solidariedade que mais tarde se convertem em um fator positivo para o

empreendimento autogestionário. Na UNIWIDIA, por exemplo, o período em que a

empresa ficou lacrada por determinação da juíza, impedindo que as pessoas

trabalhassem na empresa fechada, criou uma situação de penúria para muitos

trabalhadores. Ainda assim, eles se organizaram durante 55 dias para realizar

manifestações públicas de protesto contra a decisão de fechamento da indústria.

Para viabilizar tais manifestações e para ajudar alguns colegas e suas famílias que

estavam passando por sérias dificuldades (fome), os trabalhadores criaram um

“fundo” e um sistema de “vales” para emprestar dinheiro entre eles. Esse processo,

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153

segundo alguns cooperados, teria contribuído para a construção de uma forte

coesão social.

Mas houve ainda, uma outra etapa que teria contribuído para uma nova

“conscientização” sobre o trabalho cooperativo. Quando os cooperados assumiram

a empresa que ficara fechada, foi necessário realizar uma série de tarefas de

manutenção e limpeza. Como naquele momento não haviam muitas encomendas

por produtos da empresa, os trabalhadores estavam com mais tempo disponível e

resolveram se dedicar àquelas atividades de manutenção. Quase todos os

trabalhadores se envolveram para realizar atividades que eram consideradas

menos nobres (como cortar grama, limpar as máquinas, o chão e os banheiros,

pintar as paredes, etc.). Nas palavras de um cooperado: “dá mais união, porque

você fica lá junto, você fica conversando, você fica limpando. É como se você

estivesse lavando a sua casa”.

Esses “pequenos” trabalhos podem ter contribuído para a quebra de alguns

preconceitos que sustentavam algumas hierarquias entre funções. Esse momento

inicial, entretanto, possui uma sinergia própria, característica das situações de

mudança social. É comum ouvir dos cooperados de diferentes empreendimentos

autogeridos constantes referências aos primórdios da cooperativa. Os momentos

iniciais dessas experiências coletivas aparecem sempre revestidos de uma certa

magia que estabelece uma narrativa própria dando lugar, às vezes, a um “mito

fundador”. E, enquanto mito, ele organiza as experiências, apazigua os conflitos e

significa a própria experiência individual e coletiva. Tal momento de origem costuma

ter tamanha força que em muitas cooperativas pode-se encontrar fortes distinções

entre os sócios “fundadores” e os “novos” sócios.

Como bem analisou Holzmann (2000, 1992) ao descrever a experiência das

cooperativas que sucederam a fábrica de fogões Wallig no Rio Grande do Sul, o

início de uma cooperativa vem acompanhado, na maioria das vezes, de uma

“síndrome de participação”, onde os trabalhadores estão bastante ativos, engajados

e preocupados com a gestão e com os rumos do empreendimento.

Entretanto, com o passar do tempo, os desafios iniciais e a motivação que

impulsionava um esforço extraordinário – que está além da vivência cotidiana e que

não se sustenta indefinidamente – dá lugar às necessidades rotineiras da própria

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154

empresa autogerida, a qual passa a exigir um outro tipo de envolvimento por parte

dos trabalhadores. Esse é o momento em que a ruptura entre o sistema anterior de

trabalho e a nova forma de trabalho cooperativo transforma-se numa relação social

com um sistema reprodutor e criador de práticas e valores próprios, mas que está

sempre sendo confrontada com a experiência prévia dos trabalhadores e com o

meio em que estão inseridos.

Uma das primeiras dificuldades encontradas para que os trabalhadores

assumam o controle da gestão da empresa é o não-reconhecimento da sua própria

experiência e do seu saber. Muitos são os cooperados que são incapazes de

compreender a função que exerciam no interior da empresa e qual o conhecimento

que possuem sobre o processo de produção. É bem verdade que anos de trabalho

segmentado sob uma gestão centralizada foram eficientes na captura do saber

operário. Portanto, o primeiro desafio é a reconquista e a re-apropriação (prática e

simbólica) de um saber que lhes aparece como alheio. Como relatou Luigi Verardo

da ANTEAG:

Nós sempre achávamos que o trabalhador quando tivesse as condições objetivas de poder tocar um negócio, eles iam tocar. Que ilusão! Eles incorporaram que eles são incapazes, que eles não conseguem fazer, “imagine que nós vamos fazer isso!”. Não só os patrões falam “esse negócio não vai para frente se vocês pegarem isso”, como eles acham que realmente eles são incapazes de fazer isso. E de fato eles são incapazes de fazer isso mesmo. Para serem capazes eles precisam ter uma disponibilidade, eles precisam aprender, primeiro precisam ter disponibilidade, acreditar e aprender. Porque se eles ficarem no nível que eles também já acumularam de informação é uma coisa muito restrita. Eles têm informações úteis, mas está lá na cabeça de cada um individualmente, não estão no coletivo. Então você transformar aquilo em uma coisa coletiva é um crescimento. Depois todo mundo fala para eles, desde a mulher em casa, “mas vocês são capazes de tocar isso?”, tudo isso trabalha contra.

Reverter essa característica e transformar um conhecimento parcelar em um

conhecimento coletivo que seja compartilhado por todos os cooperados será um

trabalho permanente para a realização da autogestão. O não reconhecimento de

sua própria experiência enquanto algo de positivo manifesta-se também na baixa

auto-estima de muitos trabalhadores. Esse sentimento de inferioridade acaba

minando as possibilidades de participação dos trabalhadores na gestão do

empreendimento, uma vez que aqueles que possuem um conhecimento

socialmente reconhecido como “saber” (um diploma universitário, por exemplo)

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podem acabar criando e ocupando posições com poder de mando, além de

desestimular a participação daqueles que se consideram inferiores. Holzmann

também detectou o mesmo problema nas cooperativas em que investigou.

Conforme sua descrição, muitos cooperados deixavam de participar das

assembléias porque não dominavam a linguagem considerada “adequada” para se

falar em público nas assembléias. Dessa forma, omitiam-se para não serem

ridicularizados por aqueles que tinham a fala “correta” (Holzmann, 2000, 1992).

Marilena Chauí, em seu livro Cultura e Democracia examinou detalhadamente o

problema dos chamados “discursos competentes” e como eles se outorgam um

poder de fala que deslegitima e silencia os outros saberes e discursos (Chauí,

1982a).

Tal fenômeno é recorrente em algumas empresas de autogestão e suas

manifestações mais evidentes são a baixa participação dos cooperados nas

assembléias, a cristalização de uma “elite” gerencial, a manutenção de relações

hierárquicas da empresa original, entre outros. “Eles ainda me vêem como o chefe

deles. Não deveria, mas alguns me vêem ainda como chefe deles” – disse o diretor

de uma cooperativa.

A autogestão nas relações de produção introduz uma igualdade fundamental

que é o direito à fala e o poder de voto. Entretanto, a sua realização plena depende

de inúmeros fatores que extrapolam a formalidade dos processos de discussão e

deliberação propostos pela autogestão. Isso nos permite dizer que o

desenvolvimento de relações democráticas é um processo em permanente

construção e sob constante risco de fracasso. Porém, sem o direito que institui a

igualdade de fala e voto, que é assegurado formalmente e que independe do poder

econômico de cada um dos agentes, e sem a participação de todos os envolvidos

na propriedade socializada do empreendimento, tais relações democráticas não

teriam chances de emergir.

Mas são várias as razões que levam à reprodução das relações de não-

participação e subordinação presentes no modelo anterior de trabalho. Além do

problema descrito acima, a manutenção da divisão sócio-técnica do trabalho

anterior impõe limites à transformação dessas relações de dominação (veja capítulo

anterior). Seria reducionista deduzir a partir de algumas poucas observações se há

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uma relação entre a qualidade da participação nas empresas de autogestão e as

modificações que foram implementadas no processo produtivo. Como são muitas

as variáveis envolvidas na determinação das relações sociais no interior de um

empreendimento econômico coletivo, o estabelecimento de qualquer relação direta

entre apenas dois fatores pode levar a interpretações equivocadas. Por exemplo,

será que as empresas que na passagem para a gestão e propriedade dos

trabalhadores mantiveram seu processo produtivo inalterado (a divisão social e

técnica do trabalho) terão maiores dificuldades para implementar relações de

trabalho autogeridas? Os casos estudados indicam algo nesse sentido. Entretanto,

para responder a essa pergunta seria necessário realizar um amplo estudo

comparativo entre diversas empresas, observando-se a relação entre mudanças no

processo produtivo e o grau de autonomia e participação desenvolvidos no interior

do empreendimento.

Na UNIWIDA, onde o processo de trabalho sofreu profundas alterações, os

diretores são pessoas que trabalhavam na produção; há uma significativa

participação dos demais cooperados; as diferenças de remuneração não são muito

grandes; e as pessoas se relacionam sem fortes assimetrias. A Coop-Arte, por sua

vez, apesar de ter introduzido várias modificações na gestão, criando maiores

condições de participação de todos os trabalhadores, teve seu processo produtivo

praticamente inalterado. Aqui, encontra-se a manifestação de relações mais

hierárquicas, maiores diferenças nas retiradas e uma maior assimetria nas relações

pessoais se comparada à UNIWIDIA. Alguns desses indícios podem ser

reconhecidos nas palavras e nos hábitos de muitos cooperados. A identificação de

certas pessoas à categoria de “chefe” ou “patrão”, a fala mais alta e a fala que se

cala, o olhar que reprime e vigia em oposição ao olhos que fogem do olhar, o corpo

que se dobra para pedir permissão90.

Mas a pouca participação também pode se relacionar à falta de confiança no

projeto e ao desejo de não querer se responsabilizar sobre outras tarefas diferentes

90 Como existem muitas diferenças estruturais (número de trabalhadores, tipo de produção, histórico da empresa, etc.) entre essas duas empresas, seria equivocado deduzir qualquer “lei” a partir dessa simples constatação.

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daquelas que o trabalhador realizava anteriormente. Nas palavras do diretor da

Coop-Arte:

Ele tem que sentir confiança. Tem que sentir confiança. A hora que ele já sentir, a remuneração está tudo em ordem, está saindo no dia, o ano passado receberam uma sobra a mais... vê que está crescendo, vai mostrando aos poucos, deixando a coisa clara, eu acho que não tem do quê ter medo. É encarar para valer mesmo e acabar com o medo. (Wilson – Coop-Arte)

O resultado econômico positivo é importante para a identificação dos

trabalhadores ao projeto coletivo. Entretanto, ele não é suficiente para engendrar o

fortalecimento de relações mais cooperativas. É muito corrente se ouvir nas

cooperativas, ou mesmo dos diretores das empresas autogeridas, sobre os sócios

que só querem receber o “salário”. Esses são os trabalhadores que, na opinião dos

entrevistados, não querem assumir as suas responsabilidades enquanto

cooperados (o que pode muitas vezes implicar numa maior carga de trabalho),

preferindo não participar das discussões e deliberações. Afinal, como dizem alguns

sócios, “cooperativa dá muito trabalho”!

Participar da gestão da cooperativa e assumir as responsabilidades

correspondentes dependem, certamente, de um longo processo de aprendizado. Se

for levada em conta que a maior parte desses trabalhadores passou vários anos de

sua vida – não apenas no trabalho mas em outras dimensões da vida social, como

escola, família, etc. – sob fortes relações hierárquicas, é compreensível que muitos

trabalhadores não se sintam motivados para assumirem uma postura mais crítica e

propositiva. Como analisou o diretor da Coop-Arte:

Adaptou, porque não tem outra opção, ele está lá fora, ele está desempregado, ele não arruma nada [...] Eu acho que ainda hoje... ainda tem que se conversar muito com esse pessoal, tem que se explicar muito, que é um pessoal... eu até entendo, é um pessoal bem humilde, nunca se sentiram dono, nunca tiveram essa pretensão na vida, mas de repente calhou e hoje ele é o dono, não tem o que fazer, hoje ele é um dos donos, sei lá se é a sorte ou se é azar, o tempo é que vai dizer isso. Mas pelo menos ele está trabalhando, sabe que vai chegar aqui amanhã, vai acordar e vai vir trabalhar, por dentro das novas, sabendo o que está acontecendo, ninguém vai mandar ele embora (Wilson – Coop-Arte).

Para ele, a cooperativa aparece como um acidente. O “pessoal bem

humilde” nunca foi proprietário de qualquer coisa, não têm casa, carro, boas

roupas, etc.. Então, o que significa ser dono de um empreendimento? Muitos,

segundo o diretor, ainda não perceberam quais são as implicações disso e por isso

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só querem receber o seu “salário”. Mas não perceberam por quê? Talvez porque

leve tempo para mudar certos hábitos ou, ainda, porque a empresa autogerida não

esteja na prática permitindo que esse trabalhador realize a sua condição de

cooperado. Mas, “de repente, calhou e hoje ele é o dono”, pois para ele, os

trabalhadores que entram na cooperativa, mais do que uma opção livre e

consciente por uma relação de trabalho diferenciada, querem um bote salva-vidas

na enchente do desemprego.

A própria utilização freqüente da palavra “salário” pelos cooperados em

oposição à “retirada” carrega muitos sentidos. Luigi Verardo, da ANTEAG, analisa

esse problema na perspectiva dialética senhor-escravo:

Ele deixa de ser empregado para ser dono, por isso que você tem que fazer um trabalho... o trabalho educativo é um trabalho de você mudar as palavras. [...] Quando eu mudo as palavras tem que significar o quê?... quando eu falo que não tem mais salário, significa que não tem mais empregado, quando eu falo que não tem mais pro-labore, eu não tenho mais patrão. Essa questão é fundamental. Por isso eu acho errado o cara falar assim: “o trabalhador-patrão”. Não, não é! Só tem patrão se tem empregado. Só tem pai se tem filho.

Se o trabalho educativo é um processo de mudança da própria linguagem,

ele é também um processo de re-socialização num outro conjunto de práticas e

valores. Ainda que no primeiro momento desse processo de transição da relação de

emprego para o trabalho cooperativado (e pode-se dizer que a maior parte dessas

experiências no Brasil ainda estão nesse primeiro momento de sua história) a maior

parte dos trabalhadores constituam uma cooperativa por falta de outra opção (como

um emprego, por exemplo), o que importa analisar aqui são as transformações e

permanências que surgem nesse processo e quais são os sentidos e significações

que emergem para esses trabalhadores a partir dessa experiência.

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3. Aprendizado democrático

A constituição do empreendimento coletivo e a implementação do processo

autogestionário mergulham o trabalhador em uma nova e desconhecida

experiência. Neste capítulo, tem-se procurado interpretar a forma como o trabalho

associativo instala, ou não, um processo de desnaturalização das relações de

poder previamente instituídas sob a forma do trabalho assalariado. Ou ainda, como

foco de atenção, tem-se privilegiado a análise das mudanças, adaptações e

resistências face à nova realidade do trabalho, pois, como dizem os trabalhadores,

diante de uma situação difícil como o desemprego é preciso agir:

Devido ao desemprego nós tivemos que arriscar e eu não me arrependo não [...] A mudança de trabalho foi espantosa. Eu não sei muita coisa não. Eu estou aprendendo. É bom porque você vai aprendendo como funciona a administração de uma empresa. Pra mim tá sendo gratificante. (Paulo – UNIWIDIA).

Se por um lado, a opção pelo trabalho cooperativo traz em seu bojo

inúmeras dificuldades aos trabalhadores, por outro lado, mesmo que não

represente, no primeiro momento, uma melhora significativa na renda, parece que

desperta esses trabalhadores para um processo de inserção e pertencimento num

projeto coletivo:

Na área de produção mudou porque o pessoal voltou a ter esperança. Que era um pessoal que você via que era triste, sem esperança, não recebia, estava com falta de dinheiro, você imagina os problemas em casa que essas pessoas deviam ter. Então eu acho que com isso voltou a ter esperança. As pessoas às vezes vêm aqui preocupadas como é que vai ser o pagamento, porque ele está construindo, ele está reformando a casa dele, ele está investindo na família dele. Então, o cara trabalha com mais vontade, já adquiriu a dignidade dele como ser humano, como pai de família... A pessoa ficar desempregada, sem dinheiro, com uma família para sustentar, é uma situação muito horrível, muito horrível. (João – Coop-Arte).

Esses aspectos morais do trabalho são fundamentais na organização da

própria vida prática e simbólica dos trabalhadores. Nesse sentido, participar de um

empreendimento econômico coletivo pode contribuir para a constituição de laços

sociais que ajudam os indivíduos a se protegerem do total desamparo representado

pelo desemprego, além é claro, da renda econômica que é restabelecida. Essa

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160

dimensão moral aparece claramente quando os entrevistados eram motivados a

comparar a antiga empresa e a cooperativa:

Tem que ser muito diferente de como funciona uma empresa. Por exemplo, aquilo que eu te falei no início, a empresa tem uma relação mais fria com os funcionários, aliás a relação da empresa com o funcionário é “você produz e acabou, você produz e eu te pago e acabou”, não quer saber se você tem um problema pessoal, se você está com problema com sua filha, com seu filho, não está nem aí. É uma relação mais fria. A relação da cooperativa com o cooperado tem que ser uma coisa mais humana . Você tem que ter uma relação diferente da empresa, você tem que ser pai às vezes, você tem que ser irmão, você tem que ser camarada, tem que ser tudo, você tem que ter um jogo de cintura, de perceber quando o cara está te enrolando, para você dizer não... (João – Coop-Arte).

A dimensão “humana” se manifesta no interior das relações de produção

das cooperativas pela inserção de critérios extra-econômicos que irão regulamentar

o processo gestionário. Essa dimensão “humana” também está presente nas

empresas capitalistas convencionais, entretanto, nelas o componente “humano”

será continuamente convertido em “recurso humano” de produção, ou seja, deixa

de ser o “fim” da atividade econômica para se tornar “meio”. Nas cooperativas, ao

contrário, o que se procura realizar, ainda que de forma conflitiva e contraditória

com o regime dominante de produção e acumulação de capital, é colocar o

elemento “humano” como finalidade das relações econômicas. Em outras palavras,

existe a permanente tentativa de recolocar a economia a serviço do indivíduo e do

social. O termo “recolocar” é utilizado porque nem sempre a economia esteve

“contra” a sociedade. É justamente a percepção de que a atividade econômica é

parte constituinte da sociedade que permite dizer que toda atividade econômica é

social (Polanyi, 1968).

Ao mesmo tempo, as relações sociais de trabalho, que antes eram

mediadas por um conjunto de códigos impostos pela gerência da empresa

capitalista, criavam uma despersonificação das relações de poder, como se a

autoridade e o poder que criavam a subordinação tivessem origem em algum lugar

intocável. Quando esse sistema de autoridade é substituído pela autogestão, novas

relações de poder são instituídas. Porém, como a origem dessa autoridade é

identificada aos próprios indivíduos e ao coletivo, ela se torna passível de ser

questionada (como foi explicitado no primeiro item deste capítulo). Nesse instante,

os conflitos pessoais podem se intensificar caso o grupo não seja capaz de

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161

distinguir a origem do poder disciplinar ou gestionário dos seus executantes. Um

dos antigos diretores da Coop-Arte explicou as razões que levaram à sua não re-

eleição para o conselho de administração:

A dificuldade maior que eu enfrentei foi a minha personalidade, por exemplo, eu tive muitos atritos durante o ano com os companheiros [...] Eu estava pensando assim “seu trabalho não foi bem aceito, você fez com a maior boa vontade e não foi bem aceito”. De repente eu era um cara antipático para alguns, que nem me falaram aqui que eu era muito autoritário... não é. É que você tenta fazer as coisas melhor, que nem você falou, para o grupo, você está pensando no grupo, e o pessoal vê por um outro lado (João - Coop-Arte).

Portanto, trabalhar numa empresa autogerida exige dos trabalhadores

inúmeras habilidades que estavam, no momento anterior, pouco valorizadas ou

mesmo reprimidas pelo regime de trabalho fortemente hierárquico:

Você muda de um sistema padrão operário-patrão, e agora você muda pra cooperado, agora é totalmente diferente. A responsabilidade, o empenho... A pessoa não deve ficar ociosa, ela tem que ser participativa, ela tem que ir atrás das coisas.[...] Você fica uma pessoa mais responsável. Você se dá mais valor (José – UNIWIDIA).

O ficar “mais responsável” é interpretado pelos trabalhadores em pelo

menos dois sentidos distintos. Enquanto para alguns isso pode significar apenas

uma sobrecarga no trabalho, para outros “ficar mais responsável” é o resultado de

um processo de ampliação e conquista de sua autonomia. Afinal, a consciência da

autonomia reforça o sentido de responsabilidade tanto pelas nossas ações como

pelas nossas não-ações. Para aqueles que tomam essa responsabilidade na sua

dimensão positiva, o processo de auto-realização manifesta-se, entre outras coisas,

através de um aprendizado: “você se dá mais valor”.

A vontade de aprender e o “orgulho” pela conquista de um novo

conhecimento aparecem em inúmeras falas: “é muito gratificante, você está

sabendo de tudo”; “agora o trabalho fica na nossa mão”; “aí você percebe que o

cara vai ganhando uma mentalidade melhor”; “é um momento de você se expandir,

é uma chance de você crescer”, são alguns dos exemplos que podem expressar

um desejo dos trabalhadores em desenvolver suas capacidades.

A descoberta da fala, da capacidade de expressar e debater sua opinião em

público, é talvez o melhor exemplo desse processo de aprendizado:

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162

Eu vou dizer para você, eu tinha até problemas, quando começou, de falar em microfone, de me expressar; eu ainda tenho, eu ainda... às vezes eu me enrosco. Mas eu desenvolvi isso daí, eu aprendi, eu li muito, eu fui aprendendo a falar, a peitar, a colocar as palavras certas. Às vezes eu ainda me enrosco, às vezes eu ainda falo coisas erradas, mas foi bom assim para mim, culturalmente foi bom para mim, para mim aprender certas coisas, moralmente também. Você passa a dar mais valor para determinadas coisas, foi bom nesse sentido (João – Coop-Arte).

O fortalecimento da capacidade de expressão vem acompanhado de outros

processos de afirmação da pessoa enquanto sujeito ativo. Suas falas instituem uma

relação de alteridade no coletivo, afirmam uma existência, delimitam sua

participação no grupo, reivindicam sua pertença e as regras desse pertencimento.

Normalmente, nas primeiras assembléias, são poucos os cooperados que se

manifestam. Como foi discutido acima, o domínio dos “discursos competentes” e as

formas de deslegitimação e hierarquização social, através da estigmatização das

maneiras consideradas “impróprias” de se falar, acabam forçando muitos

trabalhadores ao silêncio ou a buscarem alternativas defensivas para expressarem

suas opiniões no coletivo. Com o passar do tempo, entretanto, a prática das

reuniões e assembléias parece introduzir um aprendizado que capacita as pessoas

para o processo de discussão e deliberação em público sobre os assuntos que lhes

dizem respeito:

Todos participam das reuniões. No início aqui era muito difícil. Só tinha umas duas pessoas que falavam, mas agora não, a coisa tá abrindo mais. O presidente é um cara bem dinâmico, ele abre bem a opinião do pessoal. Agora que a participação tá mais ativa.[...] Aqui não foi fácil pra ninguém no começo. Era uma experiência totalmente nova, então a gente não tinha noção, como isso funcionava. Mas com o passar do tempo a gente vai pegando mais firmeza. (José – UNIWIDIA)

Para alguns trabalhadores, esse aprendizado pode ser revolucionário em

suas vidas. Foi observado que, nas empresas de autogestão de perfil industrial

visitadas e em outras atividades da pesquisa de campo que envolviam esses

empreendimentos, a maior parte dos trabalhadores eram do sexo masculino.

Entretanto, também não se realizou a possibilidade de conhecer qualquer empresa

autogerida de produção industrial que fosse constituída majoritariamente por

mulheres. Entre alguns exemplos, poderia citar o caso da Coopervest –

Cooperativa dos Trabalhadores de Confecções de Sergipe Ltda –, localizada no

Estado de Sergipe, que é formada quase que exclusivamente por trabalhadoras.

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Nela atuam aproximadamente 530 cooperadas que trabalham com a produção de

jeans e camisas para diversas marcas do mercado. Se nos seus primeiros anos a

empresa produzia para outras marcas (realizando, portanto, contratos de facção)

hoje ela já tem marca própria (Gino Benotti) e quatro lojas em 3 estados

diferentes91.

É interessante destacar que, nos dois primeiros anos da cooperativa (de

1994 à 1996), o presidente era do sexo masculino, ainda que a maioria

esmagadora das sócias fossem mulheres. As razões para a escolha do presidente

podem ter sido motivadas por inúmeros fatores: grau de escolaridade; reprodução

de padrões patriarcais de dominação e autoridade; falta de autoconfiança; ou

mesmo a discriminação externa anti-feminina por parte de bancos ou sindicatos que

se negavam, muitas vezes, a negociar com mulheres em postos de comando.

O fato é que, após dois anos de gestão “masculina”, houve uma completa

reviravolta nos cargos de direção, tendo hoje como presidente uma mulher. Tal

fenômeno de crescente ganho de poder pelas mulheres tem sido recorrentemente

constatado nas cooperativas populares92 formadas por mulheres das classes

socioeconômicas mais excluídas da sociedade brasileira. Muitas delas trazem

consigo um histórico de vida marcado pela dominação masculina (que se manifesta

em diferentes dimensões: familiar, trabalho, social, política, psicológica) e pela

exclusão da participação em atividades econômicas remuneradas. Isso pode ser

diretamente observado através da participação em algumas atividades de pesquisa

e intervenção realizadas pela Incubadora Tecnológicas de Cooperativas Populares

(ITCP)93 da Universidade de São Paulo.

91 As informações sobre a Coopervest foram obtidas nos seminários realizados pela ANTEAG, quando membros da Coopervest fizeram exposições orais, e também nos materiais de divulgação elaborados por essa entidade (ANTEAG, 2000). 92 Cooperativas Populares são organizações econômicas de trabalhadores constituídas por pessoas das classes e grupos sociais de baixa renda. Muitas dessas iniciativas estão sendo fomentadas e acompanhadas por movimentos sociais, políticas públicas de governos municipais e incubadoras de cooperativas populares como estratégias de geração de trabalho e renda e, sobretudo, como modelos de desenvolvimento socioeconômico com inclusão social. 93 A Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade de São Paulo nasceu em 1998 como um projeto de extensão universitária. Constituído por alunos,

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164

Para muitas dessas mulheres, a participação nas cooperativas tem

significado enormes ganhos de emancipação e autonomia. A possibilidade de

inserção coletiva no mercado de trabalho (ainda que muitas vezes um trabalho

informal), permitindo a geração de renda para si e, muitas vezes, para sustentar

toda a sua família, contribui para uma emancipação financeira, ao mesmo tempo o

reconhecimento recebido pelo trabalho remunerado e o fato de se tornar a

provedora da família pode alterar em muito a situação dessa mulher no ambiente

doméstico e também o da própria organização familiar.

Soma-se a essa experiência o aprendizado democrático vivido dentro das

cooperativas (orientadas pela autogestão, diferentes portanto das “coopergatos”)

que capacita muitas dessas mulheres para a reflexão e práticas críticas, que

contribuem muitas vezes para questionar os padrões de dominação masculina a

que poderiam estar submetidas. Informalmente, é comum se ouvir das pessoas que

trabalham nas ITCPs que um dos primeiros sinais de que a cooperativa está “dando

certo”, ou seja, que ela está funcionando socialmente e economicamente, é o

surgimento de algumas crises familiares. Tais conflitos teriam origem, conforme

relatos dos participantes das ITCPs, no fato de muitas mulheres tornarem-se a

provedora financeira da família e também “levarem pra casa” a prática das

discussões coletivas onde elas teriam “redescoberto” a própria fala.

Todos esses fenômenos que se relacionam à perspectiva de gênero devem

ser melhor analisados e compreendidos. Esta dissertação, entretanto, apesar de

estar limitada à introdução dessa questão, encontrou resultados na pesquisa que

reforçam outras investigações sobre desenvolvimento socioeconômico realizadas

em diversos países. Sen (2000), sistematizou inúmeras dessas pesquisas sobre

ações políticas e sociais que tinham como foco estratégico as mulheres de regiões

pobres de diferentes países. Suas conclusões, longe de serem novidade, são

importantes porque se baseiam em amplas pesquisas empíricas. Como afirma o

professores e funcionários dessa Universidade, esse projeto de caráter interdisciplinar de intervenção e pesquisa faz parte de uma ampla rede nacional de incubadoras tecnológicas de cooperativas populares. Para conhecer mais sobre a experiência de algumas incubadoras veja: Singer (2002); Singer & Souza (2000); Parra (1999); Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares - UFRJ (1998).

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autor, a conquista de poder pelas mulheres (em especial em sociedades muito

marcadas por estruturas de dominação masculina) e a possibilidade de assumir

uma posição ativa na sua condição de agentes da mudança social, são bastante

favorecidas por ações políticas e sociais que combinam tanto a emancipação

econômica como atividades educativas:

Na evolução dos sistemas de valores e das convenções da divisão intrafamiliar, a educação, o emprego e os direitos de propriedade das mulheres podem exercer um papel importante, e essas características “sociais” podem ser cruciais para os destinos econômicos (bem como para o bem-estar e a liberdade) dos diversos membros da família [...] A liberdade para procurar e ter emprego fora de casa pode contribuir para reduzir a privação relativa – e absoluta – das mulheres. A liberdade em uma área parece contribuir para aumentar a liberdade em outras (mais liberdade para não sofrer fome, doença e privação relativa) (Sen, 2000, p. 225-226).

Tal interpretação convida os cientistas a investigar mais detalhadamente os

fenômenos relacionados a gênero nas pesquisas sobre desenvolvimento

socioeconômico no Brasil. Como descrito acima, parece que os interventores e

pesquisadores que atuam junto às ITCPs perceberam essa importante relação. Sen

(2000) conclui afirmando que a “condição de agente das mulheres é um dos

principais mediadores da mudança econômica e social, e sua determinação e suas

conseqüências relacionam-se estreitamente a muitas das características centrais

do processo de desenvolvimento.” ( p.235).

Em suma, a necessária combinação da dimensão econômica, política e

social nas empresas de autogestão sugere que, no nível das relações de trabalho,

tais experiências podem contribuir, se forem capazes de conciliar a eficiência

econômica com a participação democrática na gestão, para o surgimento de

relações sociais mais autônomas. Entretanto, a consolidação e ampliação dessas

conquistas dependerão também de fatores que estão para além do micro universo

fabril. O contexto mais amplo do mercado de trabalho, das condições de produção

e da influência de outras instituições sociais reguladoras (sindicatos de

trabalhadores, organizações patronais, poder público e situação macro-econômica),

determina as possíveis configurações sócio-políticas dos empreendimentos

produtivos (como será analisado no capítulo seguinte).

Como a maior parte dessas experiências no Brasil são muito recentes, é

difícil estabelecer um diagnóstico seguro sobre os possíveis rumos que esses

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empreendimentos tomarão. O presente texto, portanto, limita-se à análise dos

processos de mudança e dos elementos sociais concretos e simbólicos que estão

emergindo a partir dessas experiências. Existe alguns teóricos que partem da

hipótese de que todas essas experiências são manifestações marginais de um

momento de baixo crescimento econômico com elevados índices de desemprego e

que, caso a economia volte a apresentar um maior crescimento com

correspondente geração de empregos, tais cooperativas e empresas de autogestão

serão facilmente absorvidas. Nessa perspectiva, elas perderão mercado, seja

porque não terão condições de competir em termos de eficiência com as empresas

capitalistas num cenário de forte expansão econômica ou porque seus

trabalhadores irão procurar empregos mais bem remunerados em outras empresas.

É difícil analisar tais possibilidades porque elas envolvem inúmeras variáveis

que não são explicitadas ou mesmo bem compreendidas no seu comportamento.

Sabe-se, por exemplo, que existe uma relação entre crescimento econômico e

geração de postos de trabalho, entretanto, o mercado de trabalho vem passando na

última década por inúmeras transformações: os tipos de trabalho e de contratos de

trabalho que são criados, os níveis de distribuição de renda entre as diferentes

profissões, e mesmo a maneira como a expansão da economia impacta na criação

de novos postos de trabalho, todos esses elementos estão em processo de intensa

mudança.

É interessante a observação das reações dos cooperados quando eles são

confrontados com a possibilidade de mudar para uma outra situação de trabalho.

Poderia-se imaginar como seria o seu comportamento caso a cooperativa fechasse,

ou ainda o que aconteceria num momento de expansão econômica com geração de

empregos. Mas, entre outros elementos desta análise, foi também adotada a

estratégia de perguntar aos trabalhadores das empresas de autogestão de perfil

industrial pesquisadas o que fariam caso tivessem a possibilidade de ser

empregados numa outra fábrica:

Não vou. Em uma outra empresa de vidro, como empregado eu não vou mais não. Porque essa experiência foi muito boa para mim, está sendo muito boa para mim, então eu não voltaria não, porque é difícil a relação empregado e patrão, é muito difícil. Eu não voltaria. (João – Coop-Arte)

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Só iria se fosse pra ganhar bem mais. Mas se fosse por apenas um pouco mais, “uns 1200, 1300” eu não iria porque não ia conseguir suportar pressão e encheção de saco de patrão. Olha só, já são 3 horas e a gente tá conversando aqui há um tempão. Quando é que eu poderia fazer isso numa empresa privada?[...] Aqui o trabalho é sossegado, é mais tranqüilo. (Carlos – Coop-Arte).

Eu já tive a oportunidade. Não só eu mas outras pessoas já tiveram convite pra sair. Eu não volto não! Aqui o ambiente é bom, tem muito companheirismo...Na empresa é tudo frio. Na empresa uma hora você tá servindo, na outra hora você não serve. Aqui não. Pra você sair daqui você tem que ou roubar, ou matar. Aqui você é tranqüilo. Você tem a sua liberdade, você não é obrigado a fazer o que você não quer, você procura ouvir. Você tá livre pra fazer o que você quiser, com as suas diretrizes, as suas obrigações. Mas não é igual à firma. Na empresa mesmo que você seja eficiente, se ele passa por uma dificuldade ele mete o pé na bunda. Aqui não. Você só sai mesmo se você roubar....a assembléia deliberar, senão você não sai. (Paulo – UNIWIDIA)

Encontra-se nessas falas algumas evidências que questionam os modelos

de interpretação da ação do sujeito predominantemente baseados em critérios de

utilidade ou orientados por motivações econômicas. Ainda que essas dimensões

tenham um peso bastante significativo na vida das pessoas, a redução da análise

sociológica apenas a esses fatores pode gerar sérias distorções. Em primeiro lugar,

a relação patrão-empregado surge como conflitiva e geradora de insatisfação em

comparação ao companheirismo que pode se manifestar nas empresas

autogeridas. A segurança pelo controle sobre o próprio trabalho e, portanto, sobre

a própria vida também aparece como elemento tranqüilizador. A dignidade que

emerge da capacidade de autodeterminação confronta-se com o sentimento de

desprezo, insegurança e impotência face às determinações obscuras e

imprevisíveis da empresa capitalista tradicional. A liberdade de seguir as “suas

diretrizes, as suas obrigações” é comparada à ausência de escolhas face à

autoridade da firma.

Enfim, são inúmeros os elementos que remetem a esfera do trabalho à

ordem moral e potencialmente política. Tais elementos são constitutivos das

relações sociais e estão presentes no mundo do trabalho. Não se pode, portanto,

dissociar a dimensão econômica do trabalho dessas outras dimensões, sob pena

de não se compreender a complexidade dos processos sociais. Na medida em que

esses elementos sociais permeiam as relações de produção, eles podem interferir,

positivamente e negativamente, na organização do trabalho, na distribuição das

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relações de poder entre as pessoas e grupos e, portanto, na própria eficiência

econômica do empreendimento. Ignorar tais conexões limita em muito a capacidade

de interpretação das situações de mudanças e fenômenos sociais emergentes.

Neste capítulo, através da análise das empresas de autogestão e tomando-se os

trabalhadores como eixo interpretativo, procurou-se evidenciar a interdeterminação

dessas diferentes dimensões.

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CAPÍTULO 4 – INSERÇÃO SÓCIO-POLÍTICA DAS

EMPRESAS DE AUTOGESTÃO

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Se nos capítulos anteriores foi privilegiada a análise das relações sociais no

interior das empresas de autogestão, neste capítulo a atenção será deslocada para

o exterior dessas experiências, afinal, a compreensão dos conflitos internos é

indissociável do amplo universo socioeconômico em que estão inseridas. No

capítulo dois foram descritas as relações de produção, destacando-se os desafios

que emergem a partir do choque de duas racionalidades distintas, com seus

respectivos impactos sobre a organização da divisão sócio-técnica do trabalho. No

capítulo três os trabalhadores dessas empresas passaram para o centro da análise,

focalizando-se o estudo das transformações e permanências nas relações sociais

que existiam sob o trabalho assalariado e que agora se organizam em torno do

trabalho associado. Neste capítulo serão analisadas algumas dimensões da relação

das empresas de autogestão com outras instituições que constituem o campo

econômico em que elas estão imersas.

Como foi afirmado anteriormente, as organizações econômicas de

trabalhadores são iniciativas que surgem dentro de um determinado contexto

histórico, onde pré-existe uma certa estrutura social. Elas são o produto das

profundas transformações que atingem o mundo do trabalho durante a década de

90 (transformações essas que são também constitutivas do próprio processo

econômico capitalista) e, por outro lado, são simultaneamente produtoras de outras

relações de trabalho.

Enquanto empreendimentos econômicos, elas irão produzir mercadorias

(bens ou serviços) que serão comercializadas. Como quase todas as empresas

autogeridas se originaram de outras fábricas, elas irão, na maior parte dos casos,

se inserir no mesmo nicho de mercado que era ocupado pela empresa anterior.

Dessa forma, pelo menos nos primeiros momentos de constituição, quem produzia

calçados continuará a vender calçados e quem produzia fornos de metal continuará

suas atividades no ramo metalúrgico. Visto que a produção de um novo produto

exige, na maior parte dos casos, um maquinário completamente diferente, as

empresas de trabalhadores acabam herdando não apenas o saber-fazer, mas

também a infra-estrutura produtiva e uma certa participação no mercado. Esta

última, existirá apenas no caso do produto da empresa em questão não ter sido

ainda completamente substituído por um outro, pois a incapacidade das empresas

Page 171: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

171

em adequar a sua produção às constantes mudanças no mercado consumidor é

uma das grandes causas de falências que deram origem a algumas das empresas

de trabalhadores.

Portanto, é no mercado atualmente existente que essas empresas de

autogestão compram seus insumos e vendem os seus produtos. Tal constatação

elimina, logo de início, a idéia corrente segundo a qual essas empresas podem e

devem viver à margem do mercado dominante. No caso dos empreendimentos em

questão, eles existem no e pelo mercado, sendo simultaneamente determinados e

determinantes em sua interação mercantil. Será justamente a sua inserção na

instituição social “mercado” e a sua relação com outras dimensões exteriores a

essas empresas (como a relação com os sindicatos, por exemplo) que serão

abordadas neste capítulo.

O “mercado” caracteriza-se por um conjunto de relações econômicas de

compra e venda que são mediadas e organizadas por um conjunto de instituições

sociais que determinam e regulam os encontros entre os possíveis compradores e

vendedores. O mercado, tal qual está sendo descrito, é, portanto, parte

determinante e determinada do “campo” econômico de que as empresas de

autogestão fazem parte.

Utiliza-se aqui a noção de “campo econômico” no sentido proposto por

Bourdieu (2000), onde diferentes empreendimentos produtivos surgem como as

“fontes” que engendram o campo e as relações de força que o caracterizam. São

essas relações de força e as posições ocupadas pelos diferentes agentes que irão

configurar esse espaço (campo) com uma certa estrutura. Assim, a força que cada

agente econômico terá dentro dessa estrutura dependerá de um conjunto de fatores

(strategic markets assets) que garantirão a sua posição dentro desse campo.

Para Bourdieu, toda estrutura social possui uma tendência de

autoreprodução, uma vez que as próprias forças do campo procuram reforçar as

posições dominantes. No caso dos empreendimentos produtivos, a posição

dominante será alcançada mediante a combinação de uma série de fatores que

variam conforme a configuração do campo econômico em que a empresa estiver

inserida (Bourdieu, 2000). Fatores como a composição do capital (financeiro, fixo,

potencial, cultural, organizacional, simbólico, comercial, social e tecnológico); a

Page 172: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

172

dimensão do empreendimento; o grau de integração da produção; a distribuição

dos custos bem como a porção ocupada no mercado; todos esses elementos se

organizam eficientemente de uma forma diferente em cada campo econômico.

Assim, a maneira como empresas de áreas distintas (metalúrgica, informática,

agrobusiness, etc.) tornam-se dominantes no seu campo econômico exige

estratégias adequadas à configuração do espaço em que estão imersas.

Nessa perspectiva, a empresa dominante é aquela que ocupa uma posição

tal dentro do campo que faz com que as forças desse campo ajam em seu favor. É

assim que ela consegue operar e definir o padrão em que se dá a concorrência no

mercado, impondo aos demais competidores um conjunto de obstáculos. Portanto,

é a luta entre os agentes econômicos que institui e modifica as condições em que

se dão as relações de compra e venda. Esse conflito é simultaneamente

determinante e determinado pela estrutura do campo econômico, influenciando,

portanto, a distribuição dos fatores e das condições de produção (políticas de

financiamento, cultura tecnológica, organização do trabalho, etc.). Finalmente, isso

que se chama de Mercado:

é o conjunto de relações de troca entre os agentes em posição de concorrência, interações diretas que dependem, como disse Simmel, de um "conflito indireto", ou seja, dependem da estrutura de relações de força socialmente construída, às quais os diferentes agentes participantes do campo contribuem em graus diversos, através das modificações que eles chegam a impor, usando notadamente os poderes estatais que eles estão em condições de controlar e orientar (Bourdieu, 2000, p.250).

A idéia segundo a qual as relações econômicas, em especial o mercado,

estão imersas num ambiente social não é novidade. Bourdieu, em sua sociologia,

procura evidenciar os elementos sociais, políticos e culturais que permeiam todas

as relações econômicas, método que também vem sendo desenvolvido por

diferentes grupos que têm transitado entre a economia, a sociologia, a psicologia, a

antropologia e a ciência política.

No segundo capítulo desta dissertação foi discutida essa problemática no

interior das relações de produção das empresas de autogestão. Aqui, aquela

discussão sobre a eficiência econômica ganha mais sentido, pois é possível melhor

compreender como a busca de uma maior eficiência no mercado é, na realidade, a

busca pela posição dominante em determinado campo econômico. Portanto, ser

Page 173: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

173

eficiente no mercado significa também conquistar as condições sociais e políticas

que permitem que essa eficiência se realize.

Tal argumento é fundamental para se evitar as recorrentes comparações

descontextualizadas entre as empresas de trabalhadores autogeridas e as

empresas capitalistas tradicionais. Na medida em que as empresas autogeridas

surgem num contexto em que as regras do jogo foram instituídas por empresas que

funcionam sob uma forma de propriedade e gestão centralizada e não democrática,

faz sentido pensar que as primeiras terão mais obstáculos a serem vencidos. Além

delas surgirem em condições desfavoráveis, já que muitas se originaram de

empresas em crises, elas estão num ambiente em que as forças econômicas não

funcionam a seu favor, mas, sim, a favor das empresas ditas “vencedoras” ou, para

usar a terminologia de Bourdieu, aquelas que conseguiram ocupar as posições

dominantes no campo econômico e que impõem aos demais agentes econômicos

as condições de participação nesse campo.

Portanto, neste capítulo, pretende-se analisar a relação das empresas de

autogestão com outras dimensões que as circunscrevem e que evidenciam os

componentes sociais do campo econômico. Inicialmente será discutida a relação do

sindicalismo com os projetos de autogestão e cooperativismo. Em seguida, os

problemas e desafios que estão postos pelas leis que regulam as empresas

autogeridas e, finalmente, a relação face aos agentes de financiamento externo e

os dilemas que podem daí emergir.

Page 174: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

174

Apêndice Teórico: algumas tendências da sociologia econômica

Existem diferentes abordagens que procuram dar conta da “construção

social das relações econômicas”, todas questionando a aparente autonomia do

mundo econômico e seu correspondente privilégio epistemológico, que generaliza

para o conjunto do sistema social o postulado “inquestionável” do homos

œconomicus, dominado pela sólida e unidimensional racionalidade utilitária.

Entretanto, entrar em tal discussão significaria um longo desvio de rota. Este anexo

pretende apenas apresentar alguns autores influentes nessa temática.

O trabalho de Polanyi (1968) está na raiz de muitas das “escolas” que têm

enveredado pela recente sociologia econômica. A forma como ele reconstrói a

história do capitalismo industrial procura demonstrar a interconexão entre o sistema

econômico e o sistema social, questionando, portanto, as interpretações

economicistas que dotam o sistema econômico de um caráter dominante e quase

autônomo face à sociedade. Sua teoria foi revisitada e críticas significativas levaram

alguns de seus argumentos ainda mais adiante. Na década de 80, Granovetter

(1985) retoma o conceito de “embeddedment” (“embebido”, imerso, envolvido) num

texto clássico que recusa a idéia corrente de que os mercados são instituições

autoreguladoras capazes de organizar autonomamente e de forma eficiente a

produção, a distribuição e o consumo.

O texto de Granovetter, assim como o trabalho de Polanyi, inspiraram

muitos outros autores interessados na construção social do mercado capitalista. O

livro La Nouvelle Sociologie Économique procura sistematizar algumas dessas

diferentes tendências contemporâneas que têm se debruçado sobre as

interconexões entre o mundo econômico e o mundo social (Lévesque, Bourque &

Forgues, 2001). Na França existem alguns centros de pesquisa que, apesar das

posições teóricas distintas, partilham do projeto de construção de uma “nova

epistemologia” para o estudo dos fenômenos socioeconômicos.

O Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales (M.A.U.S.S.)

propõe a retomada do “Paradigma do Dom”, nos termos elaborados por Marcel

Mauss (que foi aluno de Karl Polanyi), como resposta à generalização dos modelos

Page 175: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

175

científicos que se baseiam única e exclusivamente na razão utilitária como fator

explicativo de toda ação humana e do sistema social94.

Ainda na França, mas também com forte presença em Québec, a discussão

sobre Economia Solidária e Social cria um outro pólo de análise que irá se

concentrar sobre a co-existência de racionalidades socioeconômicas distintas e não

necessariamente conflitantes no interior do mercado, falando-se, portanto, de uma

“economia plural”95.

No universo anglófono, o trabalho de Granovetter funda a New Economic

Sociology que irá discutir como a dimensão social é ela própria constitutiva de toda

ação econômica. Outro autor importante no mundo de língua inglesa é Etzioni

(1988), que com a obra The Moral Dimension: towards a New Economics funda

uma rede de pesquisadores denominada Society for the Advancement of Socio-

Economics (SASE)96. Ainda, desenvolvendo os argumentos de Polanyi, poder-se-ia

citar o interessante trabalho do italiano Mingione (2000), que assim como Bourdieu

(2000) irá problematizar a economia enquanto uma construção social.

Tais teses são fundamentais para se escapar do tecnicismo que domina

muitas interpretações científicas que acabam por despolitizar e neutralizar as

relações econômicas ao apresentar um caminho único e estreito para o

desenvolvimento socioeconômico. São importantes também para se evitar as

armadilhas do “inexorável” aprimoramento tecnológico que se apresenta como

axiologicamente neutro, bem como para se questionar a atual superioridade da

94 O M.A.U.S.S. edita uma revista denominada La revue du M.A.U.S.S, publicada pela Éditions La Découverte, Paris. Um outro autor fundamental que poderia ser identificado a esse grupo é Jacques Godbout. Seu trabalho propõem um método de análise antropológica através da paradigma do dom, mas privilegia também elementos psicológicos que estão ausentes em outros autores (Gobdout, 2000). Em contraposição ao individualismo e ao holismo metodológico (paradigma individualista versus social) ele irá propor o paradigma do Dom, que se baseia no homos donator como princípio organizativo da vida social. 95 Na França talvez as principais referências sobre o tema sejam: Laville, 1994; Perret & Roustang, 1993; Roustang et al., 1996. Na cidade de Montreal, em Québec o coletivo C.R.I.S.E.S. (http://www.unites,uqam.ca/crises) pode ser considerado um importante centro de divulgação e estudo da economia social e solidária na América do Norte. Também nessa cidade, o Instituto Karl Polanyi reúne importantes obras e pesquisadores sobre o tema (http://www.impatiences.democratiques.com). 96 Para conhecer alguns outros cientistas, bem como as principais obras que compõem essas diferentes escolas ver: Lévesque et al., 2001.

Page 176: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

176

racionalidade da utilidade individual no meio científico e fazer oposição à

generalização acrítica das diferentes formas de monetarização das relações sociais

e da natureza.

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177

1. Sindicalismo e Cooperativismo: entre a criação e a destituição

Enquanto nos anos 70 e até a metade da década de 80, as reivindicações

econômicas dos sindicatos concentravam-se em torno dos reajustes salariais e da

rotatividade da mão-de-obra, nos anos 90, o vocabulário nas associações de

trabalhadores mudou. A palavra desemprego e o problema que ela descreve de

uma forma muito limitada, passaram da margem para o centro da agenda sindical.

Se no primeiro período as placas penduradas nas portas das fábricas do ABC

paulista diziam “TEM VAGAS”, hoje, mesmo as placas que diziam “NÀO HÁ

VAGAS” foram abolidas pela ordem político-econômica atual, pois já não é mais

preciso falar.

Como discutido no primeiro capítulo desta dissertação (ver item 1.1),

observou-se na última década, o enfraquecimento da relação de emprego formal e

de toda uma rede de instituições reguladoras dessa forma de trabalho, gerando a

explosão das diferentes modalidades de trabalho informal97, o aumento do

desemprego, e o enfraquecimento político das organizações representantes dos

empregados assalariados98.

Diante da gravidade dos problemas sociais, muitos trabalhadores excluídos

do mercado de trabalho (e outros que nem sequer entraram nesse mercado),

juntamente com comunidades carentes e pequenos coletivos de ex-empregados,

tentaram criar mecanismos de geração de renda e de pertencimento social. É neste

cenário, que em muito lembra as primeiras décadas do século XIX, que se

presenciou o ressurgimento de diferentes iniciativas de ajuda-mútua e de

empreendimentos econômicos coletivos de pessoas que se auto-organizaram.

97 O trabalho sem registro em carteira, o trabalho eventual (o chamado bico), ou o trabalho precário são diferentes expressões da informalização das relações de trabalho. 98 Enquanto que na década de 80 teve início um processo de terceirização das relações de trabalho no Brasil, nos anos 90 esse processo veio acompanhado da precarização ou da informalização do trabalho. Para conhecer as transformações no mercado de trabalho brasileiro das duas últimas décadas ver Singer (1998).

Page 178: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

178

Assim como no começo do século XIX, neste final de milênio os sindicatos e as

cooperativas de trabalhadores se aproximam enquanto estratégias de luta, de

organização, e de sobrevivência da classe trabalhadora (Craig, 1993; Cole, 1944).

As primeiras cooperativas daquele século surgiram juntamente com as

mobilizações e greves sindicais; como reação, portanto, à crescente exploração e

mercantilização de suas vidas pelas relações capitalistas, mas também como fruto

de projetos de sociedades exemplares que deveriam multiplicar as sementes de um

movimento socialista (Singer, 1998a).

Entretanto, no decorrer do século, o movimento operário se tornou mais

complexo, mais diversificado, e as matrizes ideológicas que o acompanhavam

também se ramificaram. As opções políticas e os projetos de transformação da

sociedade se multiplicaram e as cooperativas e os sindicatos tomaram, em alguns

países, direções diferentes (Hobsbawn, 1983; Bourdet & Guilherm, 1976; Cole,

1944).

No Brasil, as organizações econômicas de trabalhadores apareceram num

contexto bastante conturbado, uma vez que emergiram no meio de grave crise

social e dentro das grandes modificações que atingiram as relações de trabalho nos

anos 90. Nos capítulos anteriores observou-se como as empresas de trabalhadores

possuem uma inserção paradoxal nesse processo de intensa mudança, situando-se

sobre um “fio de navalha” formado pela reprodução de formas precarizadas de

trabalho (quando realizam um trabalho sem os benefícios do registro de empregado

formal ou sem os benefícios da autogestão) ou pela criação de formas mais

autônomas e seguras de trabalho (quando os trabalhadores são capazes de instituir

relações sociais que contribuem para a qualidade individual e coletiva do trabalho).

As empresas de trabalhadores são, portanto, um campo minado onde se

trava uma nova luta política sobre os rumos e sentidos que serão produzidos por

essa forma de organização, uma vez que ela ajuda a redefinir o caráter assumido

pelas relações entre o Estado, a sociedade e a economia. Na medida em que essas

organizações de trabalhadores se inserem num padrão de regulação social

diferente daquele definido pela relação de emprego, as empresas de trabalhadores

poderiam representar a possibilidade de uma outra forma de contratualização e,

portanto, poderiam indicar a emergência de um outro “pacto social”. É no meio

Page 179: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

179

deste turbilhão que alguns sindicatos passam a discutir o tema das organizações

econômicas de trabalhadores99.

A diversidade de formas em que o cooperativismo hoje se manifesta gera

reações distintas por parte do movimento sindical. São muito conhecidos os casos

das chamadas “coopergatos” que passaram a atuar no campo e nas cidades. A

péssima experiência com essas “falsas” cooperativas, levou muitos sindicatos a

desenvolverem uma posição antagônica com relação às cooperativas de maneira

geral. Porém, enquanto em muitos estados e principalmente nas regiões rurais os

sindicatos são contrários às cooperativas porque elas são uma ameaça ao regime

formal de contratação, em outros locais alguns sindicatos possuem uma

experiência de suporte e fiscalização ao desenvolvimento de cooperativas enquanto

alternativas de geração de renda e de mobilização social e política dos

trabalhadores (ver alguns exemplos no primeiro capítulo).

O mesmo tem sido verificado no ABC paulista, onde inúmeras fábricas que

estavam prestes a terem suas portas lacradas sofreram a intervenção de grupos de

trabalhadores organizados, ou mesmo do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC,

propondo a criação de cooperativas de trabalhadores autogeridas para assumirem

a gestão e a propriedade dessas empresas.

Dessa maneira, se por um lado as cooperativas estão sendo utilizadas como

uma forma de terceirizar a produção e de precarizar as relações de trabalho, por

outro lado, existem iniciativas de trabalhadores que procuram efetivamente

construir alternativas ao desemprego baseadas em formas democráticas de

trabalho. Frente a essa diversidade, e dentro desse cenário de crise econômica e

social, o sindicalismo, em especial o cutista, passou a construir uma nova relação

99 Como relatou Luís Inácio Lula da Silva na abertura do 3° Congresso do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, conforme descrito na Introdução desta dissertação: “é uma coisa tão nova pra muitas pessoas que estão aqui! É tão nova como era discutir o fim da escravidão no começo do século passado [...] Discutir cooperativismo na década de 80 [...] seria praticamente uma heresia. E por que seria uma heresia? Porque na década de 60, 70... a palavra desemprego não era utilizada por nós no sindicato, nós utilizávamos “rotatividade de mão-de-obra” [...] Se nós fôssemos discutir cooperativas num congresso dos metalúrgicos em 1980, certamente os trabalhadores nos apedrejavam. Primeiro porque era um tema que a gente só sabia de cooperativismo no campo. Segundo porque tinha pleno emprego”.

Page 180: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

180

com as cooperativas de trabalhadores. É dessa recente interação que este capítulo

irá tratar.

As transformações que abalaram as estruturas da sociedade industrial

fordista trazem novos problemas e desafios para o movimento sindical em todo o

mundo. As mudanças no mercado de trabalho brasileiro, nos anos 90, foram

marcadas por dois grandes processos: o desassalariamento e a desindustrialização

(Mendonça, 1999). Ambos são reflexos dos processos de reestruturação produtiva

e da transferência de postos de trabalho para o setor de serviços, que se traduzem

numa crescente informalização do mercado de trabalho, recriando formas precárias

de contratação (Mendonça, 1999; Singer, 1998b). Ao mesmo tempo, as taxas de

desemprego se elevaram em decorrência de uma somatória de fatores tais como:

transformações tecnológicas e organizacionais no espaço da produção; políticas

macro-econômicas que privilegiam o capital financeiro em detrimento do capital

produtivo; modificação da relação Estado-economia, que passa de uma vertente, no

caso brasileiro, estatal-desenvolvimentista onde grande parte dos recursos estatais

(fundos públicos) estava voltada para um modelo de substituição de importações e

de construção de uma infra-estrutura produtiva, para uma linha de ação em que o

dinamismo da economia produtiva passa a ser conduzido prioritariamente por

empresas privadas e pelas estatais privatizadas (Haddad, 1998a; Oliveira & Paoli,

1999).

Todas essas modificações acabaram forçando o movimento sindical a

repensar as suas estratégias e a sua própria constituição, uma vez que todas as

instituições reguladoras do mercado de trabalho, entre elas os sindicatos,

edificaram-se sobre um modelo de relação de trabalho que estava em rápida

transformação.

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181

Conforme textos da própria Central Única dos Trabalhadores, a busca por

ações no âmbito da chamada Economia Solidária100 foi motivada por essas duas

crises: crise do trabalho e crise do sindicalismo (CUT, 1999, 1996). Além disso, a

constatação de que o número de empregados assalariados - que constituem a base

da maioria dos sindicatos cutistas - estava em queda, levou os sindicatos a

pensarem para além da sua estrutura inicial, tentando contemplar os

desempregados da sua categoria mas, também, outros excluídos das

oportunidades, cada vez mais raras, de trabalho com registro101.

Portanto, o desemprego e as transformações na estrutura do mercado de

trabalho funcionaram como catalisadores de um processo de mudança no

sindicalismo. Como bem descreve Sérgio Mendonça, coordenador técnico do

Departamento Intersindical de Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE), em

documento da CUT, foi na década de 90 que os sindicatos passaram a discutir as

chamadas Políticas Públicas de Emprego, mostrando uma maior participação nas

discussões políticas da ordem macro-econômica que afetam toda a sociedade.

Dessa experiência surgiram os programas de investimento público como

PROEMPREGO e do Fundo de Garantia, e também a criação de uma Central de

Trabalho e Renda (iniciativa da CUT no ABC), e os Centros de Solidariedade da

Força Sindical (Mendonça, 1999). Essas transformações foram, portanto,

manifestações reativas diante da percepção da complexidade do problema (crise do

emprego e do sindicalismo) e também de um re-direcionamento do foco de ação

dos sindicatos.

Simultaneamente a esta crise do trabalho e à crise do sindicalismo,

começaram a emergir fora do meio sindical, diversas iniciativas de trabalhadores

que buscam alternativas para o desemprego. As cooperativas apareceram para os

100 A noção de Economia Solidária refere-se a um conjunto de empreendimentos econômicos que sejam orientados por uma racionalidade socioeconômica que procura conjugar, ainda que de forma conflituosa e incompleta, uma racionalidade democrática (orientada por princípios de igualdade e solidariedade) com a racionalidade econômica. São exemplos dessas iniciativas: cooperativas autogestionárias, empresas de trabalhadores, bancos do povo e de micro-crédito, associações autogestionárias, redes econômicas solidárias, as cooperativas agroindustriais do MST, entre outras. 101 Sobre as recentes transformações no sindicalismo brasileiro ver Rodrigues (1999).

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182

sindicatos, num primeiro momento, apenas como ameaça ao emprego, mas, no

instante seguinte, a inovação de algumas dessas iniciativas, como as empresas de

trabalhadores na Região Metropolitana de São Paulo, acabaram por revelar um

cenário ainda mais complexo e que passou a ser investigado por alguns

sindicatos102. Assim, as cooperativas apareceram no meio sindical sob duas

perspectivas distintas: por um lado, o cooperativismo que estaria associado aos

processos de precarização do trabalho e que deveria ser combatido, e por outro, o

cooperativismo “autêntico” que o sindicato deveria fomentar, ou seja, as

cooperativas que são autogestionárias e que têm por objetivo realizar os interesses

dos trabalhadores segundo os princípios da gestão democrática103.

Em 1997, Vicente Paulo da Silva, Presidente da CUT, confirmou esse

problema quando falou das falsas cooperativas: “é quase uma mão-de-obra

escrava. Se der certo, poucos ganham. Se der errado, todo mundo perde104”. Ou

ainda, quando comentou sobre a inclusão de um parágrafo único no Artigo 442 da

CLT que acabou facilitando a criação de cooperativas para precarizar a relação de

trabalho105: “a CUT quer discutir o cooperativismo como alternativa para o

102 Como bem mostra o depoimento de Lula, já descrito na Introdução, o movimento sindical procura se adequar às modificações do mundo do trabalho e também ao próprio processo inventivo dos trabalhadores: ”se o sindicato não se mete a discutir cooperativa, os trabalhadores vão discutir, e vão tentar encontrar solução para os seus problemas. E aí, [ao] invés de ter essa cooperativa de trabalhadores como aliado [nosso] vai ter como inimigo. Então é saber se vamos ter coragem de dar esse passo. [Para] o sindicato ser um instrumento, junto com a prefeitura, junto com o governo do estado, junto com outras entidades, o sindicato [deve] ser um instrumento que possa facilitar a organização dessa gente. Porque se a gente não consegue mais a garantia do emprego formal, a gente vai ter que garantir o direito ao trabalho de milhões de brasileiros que são marginalizados. E isso não implica que o sindicato tenha que abrir mão de sua luta política. [...] Uma coisa é nossa briga com o governo, nossa briga com o patrão que vai ter que continuar cada vez mais. E a outra é organizar aqueles que já foram marginalizados. [...] Ora, se o povo tá fazendo, e a gente não tem como dizer se é contra, porque não tem nada pra oferecer pro cara, vamos aprender o que é isso e vamos tentar introduzir no nosso meio um mecanismo a mais pra ajudar nossa gente que tá desesperada”. 103 Existe uma disputa semântica-política em torno do que seria uma cooperativa “autêntica”. Para marcar a diferença com os outros tipos de cooperativas a CUT tem destacado a importância da “gestão democrática” para caracterizar a “verdadeira” cooperativa, ainda que isso não esteja propriamente conceituado. 104 Conforme reportagem do jornal Folha de S. Paulo de 28 de setembro de 1997, cad. 2, p.15. 105 Para conhecer melhor a polêmica em torno do artigo 442 da CLT ver: Paixão (1999).

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183

desemprego, mas não apóia o parágrafo. Do jeito que foi aprovado ele retirou

garantias dos trabalhadores”.

Cabe ressaltar que esse parágrafo acrescentado ao artigo 442 da CLT foi

elaborado por um Deputado Federal do Partido dos Trabalhadores tendo como um

dos objetivos principais solucionar problemas legais que as cooperativas de

trabalho do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) estavam

enfrentado na Justiça do Trabalho. Porém, essa regulamentação acabou gerando

efeitos perversos (e não previstos). A partir dessa regulamentação houve uma

explosão no número de “coopergatos”, principalmente na área rural, que se

utilizaram desse dispositivo para precarizar a relação empregatícia. Esse exemplo

reforça a situação limiar (entre precarização e novas relações de trabalho) que está

sendo problematizada por esta dissertação, pois mostra como as organizações

econômicas de trabalhadores, dependendo do seu conteúdo, servem para

diferentes finalidades.

1.1 A experiência da CUT

Tem-se observado, na experiência recente da CUT, o esforço de trazer para

o seu interior o debate sobre as cooperativas de trabalhadores enquanto uma

alternativa de trabalho e de organização, não só dos trabalhadores da categoria,

mas também, dos demais trabalhadores excluídos das relações de trabalho formal.

Entretanto, dada a diversidade da própria CUT, as posturas e os entendimentos

sobre esse tema são bastantes diversos, o que é compreensível se for levado em

conta algumas experiências trágicas que o sindicalismo, principalmente o rural, teve

com as cooperativas.

Em um documento do Seminário Nacional da CUT de 1996, onde um dos

temas discutidos foi “Autogestão e Cooperativismo”, podem ser encontradas

algumas discussões que já mostravam um certo interesse da Central na elaboração

de propostas de ação no âmbito da Economia Solidária. Seria difícil precisar

exatamente em que momento esse debate teve início no interior da CUT, mas, de

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184

qualquer maneira, a ocorrência desse seminário sobre autogestão é uma das

primeiras expressões concretas de um processo já em andamento.

Ações como desse seminário acabaram somando-se a outras experiências

que já estavam sendo desenvolvidas dentro de alguns sindicatos filiados à CUT, e a

outras iniciativas mais recentes. Entre elas, destaca-se o sistema de crédito Cresol

para a agricultura familiar, desenvolvido pela CUT-Rural nos três estados da Região

Sul; o projeto Integrar da Confederação Nacional dos Metalúrgicos, que a partir de

1999 passa a formar lideranças para o desenvolvimento de cooperativas nas

regiões atingidas pelo projeto; e a experiência do Sindicato dos Metalúrgicos do

ABC, que nos últimos anos vem apoiando trabalhadores no processo de

constituição de cooperativas industriais autogestionárias.

Todas essas iniciativas, agregadas pelo Grupo de Trabalho Economia

Solidária da CUT, formado em função dos próprios debates internos, acabaram

convergindo para a criação da Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS) em

1999. De acordo com uma publicação da Central, especialmente dedicada ao tema,

a Agência de Desenvolvimento Solidário terá como princípios orientadores: “a

gestão democrática e solidária do trabalho e da produção; a distribuição de renda; o

desenvolvimento social e sustentável; a educação permanente dos trabalhadores e

o respeito à diversidade étnica, cultural, regional, ambiental e de gênero” (CUT,

1999, p.61).

Essa Agência contava (no momento da publicação acima citada) com

parcerias internacionais responsáveis por um suporte técnico e financeiro para o

desenvolvimento dos seus projetos. Entre elas estavam: Organização

Intereclesiástica para a Cooperação ao Desenvolvimento (ICCO) e a Agriterra

(ambas organizações não-governamentais holandesas); Instituto de Estudos

Sociais (ISS - Holanda); Banco Cooperativo da Holanda (Rabobank); além é claro

dos tradicionais parceiros nacionais, como o DIEESE e a UNITRABALHO.

Em linhas gerais, conforme descreve o documento, a estratégia da CUT

para a Economia Solidária poderia ser formulada em quatro frentes de ações

articuladas:

- a organização da Agência de Desenvolvimento Solidário com políticas de crédito, formação, pesquisa e incubação;

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185

- a formulação de propostas e a mobilização dos trabalhadores por uma nova legislação que regule e fiscalize as relações de trabalho nas cooperativas;

- a formulação e a mobilização por políticas públicas para a Economia Solidária, como as políticas de crédito, tecnologia, política fiscal, políticas regionais e setoriais e abertura comercial;

- política de organização sindical para a incorporação dos trabalhadores cooperados na base sindical (CUT, 1999, p.22).

É interessante observar como um tema que era tão marginal nas décadas

de 70 e 80 no meio sindical deslocou-se para o centro da agenda da CUT. Algumas

das proposições apresentadas pelo documento sugerem que esse assunto não

será tratado de maneira circunstancial, mas que passa a ser uma das novas

estratégias de ação dessa Central. No entanto, o próprio documento afirma, em

outros parágrafos, que a Economia Solidária é mais uma das possibilidades de

organização dos trabalhadores, não substituindo as demais lutas da CUT, das quais

a mais importante continuará a ser a luta pelo emprego (idem, p.18).

De maneira geral, a publicação cutista Sindicalismo e Economia Solidária

apresenta a Economia Solidária de maneira bastante positiva. Nesse documento, o

“Novo Cooperativismo” (já que ele deveria se contrapor ao cooperativismo

predominante na sociedade brasileira, do qual o principal representante é a

Organização das Cooperativas Brasileiras) é tomado como uma alternativa ao

modelo de desenvolvimento capitalista, pois

as experiências locais têm sido analisadas não só pelo seu impacto econômico local, mas como portadoras de novos conceitos e até de profundos questionamentos aos sistemas tradicionais de produção, de crédito, de organização social, de mercado, de políticas públicas, etc.. Em especial, o caráter participativo destas experiências potencializam um alcance muito mais efetivo de políticas econômicas e sociais, que normalmente passam muito longe das populações mais carentes, além de garantir uma maior adequação a realidades locais distintas (idem, p.19).

Os autores do texto destacam ainda os aspectos positivos dessas iniciativas

não só no plano econômico, como forma de garantir trabalho e renda e de gerar o

desenvolvimento econômico, mas também como importante instrumento de luta

política, pois as cooperativas autogestionárias produziriam um efeito de educação

política através da vivência democrática tanto na gestão quanto na propriedade do

empreendimento. Assim, além de ser um importante caminho para a

Page 186: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

186

democratização da propriedade e da renda, a Economia Solidária é descrita como

fator de formação, organização e mobilização política.

Ao mesmo tempo, o material pesquisado mostra que a CUT percebe na

Economia Solidária um projeto que trás em si muitas contradições. Alguns dos

dilemas presentes no documento são de ordem teórica-ideológica: qual o potencial

transformador da Economia Solidária? Ou ainda, a Economia Solidária pode ser

uma alternativa ao modelo de produção capitalista? Mas há outros

questionamentos de caráter mais estratégico, por exemplo, como adotar a

utilização de cooperativas sem que elas se confundem ou se transformem em

cooperativas que precarizam o trabalho, ou, será que a luta pela Economia

Solidária pode fortalecer ou enfraquecer as demais lutas dos trabalhadores?

Existem ainda reflexões referentes às formas de ação política: o papel

propositivo da sociedade e a sua participação direta na execução de políticas de

desenvolvimento não estariam reduzindo a pressão política para que o Estado

assuma o papel defendido pela CUT? (CUT, 1999)

Esses dilemas, entretanto, representam uma reflexão daqueles setores da

CUT que estão mais engajados no projeto da Economia Solidária, o que não pode

ser facilmente generalizado para toda a Central, uma vez que existem grupos que

são totalmente contrários à adoção da Economia Solidária como mais uma frente

de atuação dessa Central.

1.2 O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC

Aquele cenário de transformação no mercado de trabalho descrito no

primeiro capítulo deste texto, encontra no ABC paulista o seu estereótipo. Um dos

principais centros de desenvolvimento industrial do Brasil e berço de importantes

movimentos sindicais, o ABC, foi gravemente atingido pela crise industrial dos anos

90. Por outro lado, é uma região que se caracteriza pela busca de soluções

inovadoras para os seus problemas, procurando desenvolver estratégias estruturais

que articulem diversos setores da sociedade. De acordo com Arbix (2000), o ABC

tem se caracterizado, nos últimos 20 anos, por gerar uma série de experiências de

Page 187: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

187

cooperação entre o setor público e o setor privado que levaram à criação de novas

institucionalidades. O autor mostra como os estilos de ação sindical dos anos 70

acabaram influenciando a criação das Câmaras Setoriais da Indústria no início da

década de 90; como os diferentes municípios se organizaram em torno de vários

organismos para desenvolver estratégias conjuntas para toda a região, valendo

destacar a criação do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC (reunindo 7

municípios) em 1990; o Fórum de Desenvolvimento Econômico em 1991; o Fórum

da Cidadania do Grande ABC em 1994 e que reunia mais de 100 entidades da

sociedade civil; a Câmara Regional do Grande ABC em 1997, envolvendo 7

governos locais e mais o governo do Estado de São Paulo; e, finalmente, a criação

em 1998 da Agência de Desenvolvimento Econômico, voltada para o planejamento

estratégico regional (Arbix, 2000).

Esse ambiente dinâmico está também presente no Sindicato dos

Metalúrgicos do ABC, ator importante dentro de todas essas instituições. Diante da

situação de transformação das relações de trabalho, esse Sindicato, assim como a

própria CUT a que ele está filiado, passou por um processo de mudança e

questionamento de suas formas de ação. Como bem descreveu Oda (2000), o

Sindicato dos Metalúrgicos tem procurado unir um “sindicalismo de resistência e de

luta, que coloca barreiras contra as agressões aos empregos e à retirada de

conquistas de direitos dos trabalhadores, a um sindicalismo propositivo, que

formula propostas de intervenção nas políticas públicas, nas políticas industriais e

setoriais e nas mudanças conduzidas no nível das fábricas” (p.94).

Por volta de 1996, o Sindicato começou a discutir o tema das cooperativas

de trabalhadores no seu 2° Congresso simultaneamente ao processo de crise que

atingiu a CONFORJA em Diadema, uma das maiores forjarias da América Latina e

que passaria por um curto período de co-gestão (com pouco sucesso em 1996)

para em 1998 ser assumida totalmente pelos trabalhadores.

Assim como outros sindicatos filiados à CUT, o problema do desemprego e

as transformações no mercado de trabalho ativaram esse processo de mudança no

Sindicato dos Metalúrgicos. Mas o debate sobre as cooperativas não é a única

expressão desse questionamento, pois, na realidade, ele surgiu paralelamente a

uma discussão sobre a forma de atuação do sindicato no interior das fábricas.

Page 188: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

188

No período posterior ao 2° Congresso, o Sindicato dos Metalúrgicos deu

início a uma forte campanha por um sindicalismo presente dentro das fábricas,

criando os Comitês Sindicais de Empresas que atuavam simultaneamente na base

(dentro da empresa) e na diretoria do movimento. Talvez, essas transformações na

forma de ação sindical poderiam ser interpretadas não somente como reflexo das

crises do emprego e do sindicalismo mas, também, como um processo de mudança

teórica e prática, onde o espaço da produção torna-se um importante espaço da

luta política (Castoriadis, 1985, 1983; Burawoy, 1990, 1982; Gorz, 1982, 1980).

O depoimento de José Lopez Feijó, Secretário Geral do Sindicato, no jornal

Tribuna Metalúrgica do ABC (5/11/99), traduz esse processo de mudança:

No Congresso passado [2° Congresso] moldamos o que seria o sindicato do ano 2000, com uma nova forma de organização, de financiamento e com maior intervenção no dia a dia do trabalhador, entre outros pontos. Este congresso que encerramos agora [3° Congresso] é a reafirmação de tudo isso, e um salto de qualidade em propostas para o emprego, formação profissional e também para nossas lutas políticas e sindicais [p.2].

No final de 1999 realizou-se o 3° Congresso do Sindicato que teve como

subtítulo “Alternativas à Geração de Trabalho e Renda e Desenvolvimento Social”

(cabe destacar que não é mais utilizada a palavra “emprego”, e sim “trabalho e

renda”). Esse seminário é de grande importância no meio sindical porque é o

definidor das políticas e estratégias de ação de um dos mais importantes sindicatos

do Brasil, funcionando como um indicador dos debates internos da própria CUT.

Esse Congresso teve boa parte de sua programação dedicada ao Cooperativismo,

realizando, inclusive, um seminário internacional sobre o tema, onde compareceram

representantes de entidades sindicais e cooperativistas da Itália e da Espanha, com

as quais o Sindicato estava desenvolvendo projetos de cooperação internacional.

A presença de determinadas personalidades na mesa de abertura do 3°

Congresso ajuda a compreender a magnitude do evento para o movimento sindical

e para os partidos de esquerda: Luiz Marinho (Presidente do Sindicato dos

Metalúrgicos do ABC); Celso Daniel (Prefeito de Santo André pelo Partido dos

Page 189: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

189

Trabalhadores106); Sérgio Mendonça (Diretor do DIEESE); Vicente Paulo da Silva

(Presidente da CUT); Luiz Inácio Lula da Silva (Presidente de Honra do PT) e

Eduardo Suplicy (Senador de São Paulo pelo PT). A seguinte fala de Lula descreve

com precisão o significado desse evento:

O nosso sindicato discutir essas coisas no Congresso é uma coisa, meu caro Marinho, que eu não tenho idéia se você tem a exata noção do tamanho do gesto de provocar, nos que concordam e nos que discordam, esse debate. [...] O sindicato dá um salto de qualidade quando passa a querer não representar apenas aqueles que estão dentro do local de trabalho, mas aqueles que estão fora porque perderam o emprego e aqueles que querem entrar e que não têm oportunidade de entrar. [...] Então como [é] que o sindicato vai entrar nessa nova etapa que na minha opinião será tão revolucionária quanto foi a primeira para o sindicato? É ter coragem de ousar e nunca se omitir107.

Nesse sentido, essa cerimônia poderia ser interpretada como expressão de

um esforço, por parte desse Sindicato e dos grupos que estão politicamente

próximos a ele, para colocar o tema da Economia Solidária numa nova perspectiva

dentro do meio sindical. Reforça também, por outro lado, um sentimento presente

nas declarações da CUT de que a Economia Solidária aparece agora como mais

uma estratégia de ação política e de desenvolvimento econômico e social que se

expressa, no caso dessa central, pela constituição da Agência de Desenvolvimento

Solidário e, no caso do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC com a criação da

UNISOL Cooperativas.

De acordo com Oda (2000), a UNISOL Cooperativas (União e Solidariedade

das Cooperativas do Estado de São Paulo) é o resultado de um processo de

pesquisa e envolvimento do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC com algumas

cooperativas da região e também o fruto de um intercâmbio internacional,

principalmente com entidades cooperativistas e sindicais italianas nos últimos três

106 Celso Daniel, então prefeito de Santo André pelo Partido dos Trabalhadores, foi brutalmente assassinado no mês de janeiro de 2002 durante um seqüestro. A sua morte, juntamente com o assassinato do prefeito “Toninho” de Campinas, também do PT, chocaram a sociedade brasileira. A situação e a motivação de ambos os crimes ainda não foram totalmente esclarecidas. 107 Transcrição da exposição de Lula durante a abertura do 3° Congresso dos Metalúrgicos do ABC, realizado em Santo André no dia 4 de novembro de 1999.

Page 190: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

190

anos108. Segundo o autor, o Sindicato já apoiou a constituição de 11 cooperativas,

atingindo aproximadamente 600 trabalhadores que estão mantendo suas rendas. A

UNISOL Cooperativas, lançada durante o 3° Congresso dos Metalúrgicos, é uma

associação formada por cooperativas de trabalhadores e por representantes do

movimento sindical, tendo como metas básicas possibilitar a melhor organização e

execução dos objetivos das cooperativas, bem como criar condições para o

desenvolvimento econômico e social dos seus membros.

Como parte dessa nova estratégia, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC

modificou seu estatuto para que os trabalhadores em cooperativas pudessem se

filiar à entidade. Certamente isso trará novos desafios para o Sindicato, pois ele

terá que se modificar para atender trabalhadores que estão imersos em realidades

distintas e que nem sempre possuem os mesmos interesses. Por exemplo, qual

deverá ser a posição do sindicato no caso em que uma cooperativa filiada a ele

contratar trabalhadores para a execução de serviços? Ou ainda, como lidar com a

proteção aos direitos do trabalhador e ao mesmo tempo impedir que haja

superexploração entre os trabalhadores das cooperativas?

Essas são algumas das questões que também aparecem no debate interno

da CUT. Cabe ressaltar que, tanto a CUT, quanto o Sindicato dos Metalúrgicos do

ABC, através da UNISOL, estão pensando em medidas imediatas para tentar lidar

com alguns desses problemas. A seguir algumas das propostas do Sindicato dos

Metalúrgicos sobre o cooperativismo:

?? Alteração na lei geral de cooperativismo (n° 5764/71);

?? Alteração na atual lei de falências;

?? Definição sobre as atribuições do sócio-trabalhador: direitos e

obrigações;

?? Regulamentação para a contratação de empregados pelas cooperativas;

?? Adequação na legislação previdenciária;

108 Para conhecer mais detalhadamente a UNISOL Cooperativas e as propostas do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC sobre as cooperativas, ver Oda (2000).

Page 191: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

191

?? Criação de uma modalidade de seguro para os trabalhadores em

cooperativas;

?? Criação de linhas de crédito junto ao BNDES e também de sistemas de

fiança, onde uma rede de atores públicos e privados dê garantias aos

empréstimos tomados pelas cooperativas (Oda, 2000).

Essas propostas ratificam, novamente, a interpretação de que a Economia

Solidária para o sindicalismo cutista está se constituindo numa importante frente de

ação e organização dos trabalhadores e como mais um instrumento de luta para o

desenvolvimento econômico e social das classes excluídas do mercado de trabalho

formal. Ao mesmo tempo, mantêm a tradição de reivindicação e de publicização

das suas demandas frente aos órgãos estatais, reafirmando, portanto, a disposição

pela construção de novas institucionalidades que possam ser universalizadas para

o conjunto da classe trabalhadora. Esse novo projeto, conforme as declarações dos

seus propositores dentro do meio sindical, não deve excluir as demais bandeiras

dos sindicatos cutistas, onde a principal delas continua sendo a luta pelo emprego

e, em última instância, pelo Socialismo.

Ao mesmo tempo, é interessante analisar a convivência de abordagens

díspares com relação à Economia Solidária. Por exemplo, pode-se perguntar quais

são as contradições entre um projeto de luta pela manutenção e ampliação do

emprego e um projeto de construção de cooperativas autogestionárias, onde os

trabalhadores devem ser os principais agentes autônomos do processo produtivo.

Ou seja, ao mesmo tempo em que o sindicalismo luta pela preservação do status

de empregado para seus filiados, nas cooperativas ele luta por um tipo de trabalho

contrário ao emprego. Uma das maiores dificuldades para os trabalhadores que

constituem uma empresa autogerida é justamente a ruptura com anos de prática de

trabalho fragmentado e subordinado, para fazer com que os cooperados participem

do processo gestionário sem que reproduzam as antigas relações hierárquicas com

todas as suas dimensões de controle e dominação.

Talvez isso seja o reflexo simultâneo de um período de mudança política

estratégica, onde nem todas as conseqüências e riscos das decisões são

conhecidos, mas também da diversidade ideológica que compõe o pensamento e a

prática do movimento operário.

Page 192: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

192

1.3 Reconhecendo as diferenças

Entre os vários sindicatos que compõem a CUT, pode-se encontrar

diferentes posturas face às cooperativas de trabalhadores. Existem aqueles que,

como o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, resolveram assumir a Economia

Solidária como mais um possível caminho de luta e organização dos trabalhadores,

mas existem outros que são contrários ou resistentes à idéia das cooperativas. São

vários os motivos que levam a essa oposição.

Em visitas realizadas a alguns sindicados, houve a possibilidade de discutir

com seus diretores o tema em questão. As manifestações contrárias às

cooperativas por motivos ideológicos costumavam questionar o potencial

transformador da Economia Solidária. Essas lideranças argumentavam que as

cooperativas eram uma forma de adequação à Economia Capitalista e que assim

estariam totalmente submetidas às regras do mercado dominante. Uma tese

também presente era a de que os trabalhadores não estão preparados para gerir e

que preferem o regime de assalariamento. Outro argumento recorrente colocava o

projeto de Economia Solidária como sendo contrário à luta política, pois, na

acepção desses sindicalistas, ela enfraqueceria não só os sindicatos mas levaria,

também, a uma fragmentação da classe trabalhadora109.

Essas questões revelam diferentes entendimentos sobre o tema, marcados

inclusive por posicionamentos teóricos, políticos e partidários. Porém, o que é

comum a todos os argumentos, é uma determinada visão do que é o “trabalhador”,

de como a “luta de classes” deve se processar e de qual é o “espaço da política”. É

certo que, para além das discussões sobre a implementação de novos projetos

109 Tais argumentos foram registrados em seminários e reuniões organizadas em diferentes sindicatos, como, por exemplo, no Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, no Sindicato dos Químicos de São Bernardo, no Sindicato dos Vidreiros do Estado de São Paulo e na própria sede da CUT. Entretanto, tais opiniões não significam que esses sindicatos sejam contrários à Economia Solidária e nem que essa seja uma posição homogênea no seu interior.

Page 193: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

193

dentro de qualquer tipo de organização, há sempre uma disputa interna entre os

vários subgrupos que a compõem. Assim, um novo projeto é sempre identificado ao

grupo que o está propondo e, no caso dele ser implementado com sucesso, esse

grupo ganha força dentro da organização. Esse tipo de conflito tende a se polarizar

de maneira particular nas organizações em que os diversos subgrupos que a

constituem são fragmentados, não apenas por disputas internas de poder, mas

também pela identificação a diferentes matrizes ideológicas de pensamento.

Mas existem divergências de uma natureza mais prática. Como descrito no

início da dissertação, a forma como algumas cooperativas industriais são utilizadas

em alguns Estados do Nordeste brasileiro tem levado os sindicatos dessa região a

uma postura muitas vezes contrária às cooperativas. Nesse caso, o governo

estadual estaria constituindo cooperativas em cidades do interior do Ceará, por

exemplo, para subsidiar o custo da mão-de-obra nas empresas que desejam se

instalar nesses locais, as quais contariam ainda com uma série de benefícios que

jogam lenha na fogueira da atual guerra fiscal entre os estados brasileiros. Mas as

“coopergatos” não são prerrogativa do Nordeste. O trabalho rural no noroeste do

Estado de São Paulo e o setor de serviços em muitas grandes cidades brasileiras

têm encontrado na forma jurídica das cooperativas uma possibilidade de baratear

custos e precarizar a relação de trabalho (Araújo & Lima, 1998; Folha de S. Paulo,

18/01/98; O Estado de S. Paulo, 6/07/97).

Nesses exemplos, devido à má experiência concreta com as cooperativas,

os sindicatos das categorias mais atingidas pelas “coopergatos” posicionam-se

negativamente com relação à criação de cooperativas. Esses sindicatos

argumentam que teriam dificuldade em garantir que cooperativas criadas ou

apoiadas por eles não se transformassem em “coopergatos”.

As múltiplas formas em que as cooperativas têm aparecido no cenário

brasileiro desperta a reflexão sobre as características internas dessas organizações

e também sobre o contexto histórico em que elas surgem. É interessante observar

que elas aparecem num momento de acentuada crise econômica e social, onde

uma enorme massa de pessoas é excluída do mercado formal de trabalho. Muitas

cooperativas surgem da auto-organização e da ajuda mútua entre pessoas, grupos

ou comunidades, com o objetivo não só de garantir uma renda para os seus

Page 194: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

194

membros, mas também de criar formas de solidariedade e de pertencimento para

os indivíduos em processo de total exclusão social (Relatório UNISINOS/Cáritas

1999; Gaiger, 1999). Ou ainda, cooperativas que surgem quando trabalhadores

assumem empresas em processo falimentar para salvarem seus postos de

trabalho, reabilitando, em alguns casos, o empreendimento através da autogestão

(Singer, 1998b; Folha de S. Paulo 17/08/98, 8/9/1999 e 20/11/1999).

Mas as cooperativas se inserem também no contexto da reestruturação

produtiva. Aqui, elas se encaixam nos processos de terceirização e de flexibilização

das relações de trabalho, na medida em que podem realizar a prestação de

serviços que antes era realizada por empregados da fábrica. Porém, seria um

exagero afirmar que as cooperativas são as causadoras desse processo de

flexibilização das relações de trabalho. Aparentemente, mas vale a pena investigar

mais detalhadamente esta hipótese, a terceirização através de cooperativas só

começou a ocorrer de forma mais intensa na segunda metade da década de 90,

enquanto os processos de terceirização já vinham acontecendo desde o meio dos

anos 80.

Diante desse processo de transformação social, surgem, de forma

simplificada, três tipos de ação entre os sindicatos: uma ação defensiva ou

restitutiva que procura lutar pela manutenção das conquistas históricas das classes

trabalhadoras, tentando proteger dessas mudanças a relação de emprego e suas

instituições; uma ação propositiva ou criativa que, frente a essa situação adversa,

tenta utilizar mecanismos que emergem dentro do próprio processo de mudança,

mas para conferir novos sentidos e significados que possam favorecer os seus

sujeitos; e, ainda, um tipo de ação onde o próprio sindicato cria cooperativas de

trabalho para substituir trabalhadores contratados formalmente como empregados

(como é o caso dos sindicatos que criam “coopergatos”).

Como exemplo do primeiro tipo de ação poderia ser citada a relação entre a

Cooperativa dos Artesões em Vidro (Coop-Arte) e o Sindicato dos Vidreiros de sua

Page 195: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

195

região110, filiado à CUT. A Coop-Arte surgiu a partir de uma crise administrativa que

atingiu a empresa Sílica Ltda. detentora da marca Cristal. No final de 1998 é

iniciado um projeto de transformação do setor produtivo da Sílica numa cooperativa

de produção, onde os trabalhadores assumiriam, em 1999, todos os meios de

produção em troca de seus créditos trabalhistas. Todas as demais dívidas da antiga

empresa, com fornecedores e com o fisco, permaneceram com a Sílica que alugou

a marca Cristal para a Coop-Arte e Pupila111.

No momento de discussão da montagem da cooperativa, o sindicato se

manifestou contrário a essa proposta. Os trabalhadores chegaram a convidar o

sindicato para fazer parte do conselho administrativo da cooperativa, entretanto,

não houve acordo. Foi então chamada uma assembléia na antiga Sílica pelo

Sindicato dos Vidreiros para decidir com os trabalhadores quais seriam as

alternativas. O Sindicato defendia que a empresa fosse fechada e que com o

dinheiro da sua liquidação fossem pagos todos os créditos trabalhistas. A outra

proposta, que já circulava entre os trabalhadores, era a constituição da cooperativa.

Esta última venceu por quase unanimidade. Os poucos que votaram contra, em

torno de 15 empregados, não permaneceram na cooperativa e entraram na justiça

para o recebimento dos seus créditos trabalhistas. O Sindicato, por sua vez, entrou

com uma ação no Ministério Público do Trabalho alegando que a constituição da

cooperativa foi uma fraude na tentativa de burlar os direitos trabalhistas e livrar a

Sílica de suas responsabilidades legais.

110 Os nomes verdadeiros da cooperativa, da empresa e do sindicato envolvido, foram alterados porque nem todos os entrevistados estavam de acordo com a publicação de suas referências. 111 A Pupila é uma sociedade anônima que foi constituída tendo como sócios os trabalhadores da parte administrativa da antiga Sílica. Hoje a Coop-Arte e a Pupila tem um contrato de facção, onde a primeira é responsável pela produção das mercadorias e a segunda é responsável pela compra dos insumos, distribuição e comercialização dos produtos. O lucro do “Negócio Cristal” é dividido entre a Coop-Arte e a Pupila.

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196

Os argumentos apresentados pelos diretores do sindicato foram vários112.

Eles acreditavam que a cooperativa representasse uma perda dos direitos e que

não havia uma legislação adequada que garantisse direitos para os trabalhadores

nas cooperativas. Outro problema é que, na sua percepção, o Estado brasileiro

arrecadaria menos imposto com as cooperativas e, portanto, teria ainda mais

dificuldades para realizar suas outras responsabilidades como, por exemplo,

promover a saúde e a educação. Por outro lado, eles reconheciam que o problema

da cooperativa não poderia ser tratado em separado do contexto mais amplo de

crise do emprego, pois de qualquer maneira ela estaria garantindo 220 postos de

trabalho em uma empresa que estaria fechada, dentro de uma categoria que

passou de 20.000 associados para 14.000 nos últimos seis anos.

Mas existiam ainda outras contestações. O sindicato temia que o surgimento

dessa cooperativa pudesse gerar uma difusão desse tipo de iniciativa para todo o

setor, levando ao enfraquecimento do Sindicato. Segundo a diretoria existiam

outras empresas que contratavam trabalhadores pelo regime da CLT que estavam

pressionando o Sindicato por uma flexibilização nas contratações e nos acordos

coletivos, porque a Coop-Arte estaria obtendo vantagens competitivas no mercado

de vidros e cristais devido à inexistência de vínculos empregatícios (permitindo a

redução dos gastos com os trabalhadores), o que estaria permitindo, na opinião do

Sindicato, uma produção a custos menores.

Além de todos esses motivos, registrou-se ainda argumentos que revelam

entendimentos diferentes entre os trabalhadores da cooperativa e os diretores do

sindicato sobre o tema em questão. Durante uma sessão de negociação no

Ministério Público do Trabalho, a promotora do caso questionou os representantes

do sindicato sobre o que os trabalhadores achavam do projeto de montagem da

cooperativa. Um dos diretores respondeu: “Se fosse pela vontade dos

trabalhadores nós não estaríamos nem aqui. Mas a direção do sindicato não

112 As informações a seguir foram obtidas através de uma entrevista com um dos diretores do sindicato e no acompanhamento das sessões de negociação entre a Coop-Arte, o Sindicato e a Sílica, promovidas no Ministério Público do Trabalho, onde o processo de constituição da cooperativa estava sendo fiscalizado.

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197

entende que esta é uma boa saída. Pelos trabalhadores nós deveríamos ter

montado uma cooperativa com eles!”

Uma das reivindicações do Sindicato era que a Sílica pagasse

imediatamente as dívidas para com os trabalhadores, mas os representantes da

Sílica e da Coop-Arte afirmavam que não podiam pagar os valores apresentados

pelo Sindicato, pois isso os levaria à falência. Numa outra sessão foi travado o

seguinte diálogo:

-Cooperado: “Nós não queremos receber do jeito que o sindicato está propondo, senão a firma volta a ser do homem [antigo proprietário]. A gente não quer isso. A gente quer ser dono da empresa!”

-Diretor do Sindicato: “Queremos que os trabalhadores recebam primeiro o dinheiro e aí possam fazer a escolha de comprar as máquinas”[...] “Você Rodrigo (cooperado), está de um lado e eu estou do outro”.

-Advogado da Cooperativa: “Não! Estamos todos do mesmo lado!”

Na opinião dos sindicalistas, os trabalhadores não tiveram opção no

momento de constituição da cooperativa, pois como o desemprego estava muito

elevado na categoria e o recebimento dos créditos trabalhistas demoraria alguns

anos, só restava para os ex-empregados montar a cooperativa. Assim, na

perspectiva do sindicato, a cooperativa não teria sido fruto da livre associação.

Outro problema que aparece nas entrelinhas é o conflito entre os

sindicalistas e os cooperados que acabaram sendo identificados como “patrões”.

Em vários momentos os cooperados que estavam presentes na negociação no

Ministério Público do Trabalho tiveram que afirmar que continuavam trabalhando na

produção, pois tanto os sindicalistas quanto a promotora tinham dificuldade em

compreender que aqueles homens eram simultaneamente os trabalhadores e os

administradores da empresa.

Numa perspectiva distinta, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC parece

tentar misturar as duas estratégias (ações defensivas com ações propositivas). Ao

mesmo tempo em que ele afirma a necessidade de se lutar pela manutenção dos

direitos conquistados pelos trabalhadores e de combater as cooperativas que

estariam fraudando esses direitos, por outro lado, esse sindicato resolveu enfrentar

o tema das cooperativas com uma ação criativa. Pode-se concluir, a partir de

Page 198: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

198

alguns depoimentos e documentos descritos acima, que este sindicato interpreta a

emergência das cooperativas como um fenômeno ambíguo, pois ao mesmo tempo

em que ele é uma ameaça para os trabalhadores (em termos de precarização do

trabalho) ele também traz elementos positivos para os trabalhadores (em termos

econômicos e sócio-políticos).

Porém, como o objetivo e o sentido das cooperativas nunca está dado a

priori, esse sindicato defende que é necessário entrar nesse debate justamente

para que elas se convertam em mais um mecanismo de luta do lado dos

trabalhadores, pois se o sindicato se omitir desse assunto, argumenta Lula, ao

“invés de ter essa cooperativa de trabalhadores como aliado [nosso] vai ter como

inimigo”113.

O apoio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC foi decisivo na constituição

da UNIWIDIA em Mauá. A empresa Cervin vinha passando por sérias dificuldades

econômicas decorrentes da má administração. Em outubro 1998 este Sindicato

assessorou os trabalhadores na formação de uma cooperativa que acabou

implementando um sistema de co-gestão (de acordo com alguns trabalhadores foi

um período de “congestão”) junto com os proprietários, mas segundo um

cooperado:

esse período é difícil demais, porque você tem as idéias, você tem o que você acha que é uma solução, você tenta implementar [...] vamos faturar, pelo menos isso vai reverter para a gente, certo? Não, errado. Daí o cara [proprietário] arrumava um destino. Daí você vinha aqui “puta, vocês falaram que era isso, que ia melhorar para a gente!” (Pedro - UNIWIDIA).

Os problemas foram se acirrando até que no final de 1999, com o suporte

do Sindicato, os trabalhadores expulsaram os antigos proprietários e conseguiram o

aluguel da Cervin114. A produção foi retomada, entretanto, em janeiro de 2000 uma

113 Transcrição da exposição de Lula durante a abertura do 3° Congresso dos Metalúrgicos do ABC, realizado em Santo André no dia 4 de novembro de 1999. 114 A história da conquista da autogestão da Cervin é bastante complicada. Os ex-proprietários chegaram a tentar vender a empresa para um grupo de advogados que ficou responsável pela administração por um curto período. Entretanto, segundo os trabalhadores isso foi uma tentativa de golpe porque os advogados eram verdadeiros estelionatários. Quando perceberam a tentativa de golpe os trabalhadores tomaram o prédio da administração e literalmente expulsaram os administradores.

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199

juíza de Mauá decretou a falência da Cervin, o que acarretou o imediato lacre do

prédio. Teve início então uma disputa legal e política pelo direito dos trabalhadores

continuarem arrendando a massa falida e para conseguirem a formalização da

cooperativa (ver o resumo da história inicial da UNIWIDIA na introdução da

dissertação).

Durante as manifestações dos trabalhadores em Mauá, alguns

acontecimentos mostraram a forma como essa questão foi tratada pelo poder

judiciário local. De acordo com o Jornal Tribuna Metalúrgica:

“Numa atitude antidemocrática, o diretor do Fórum, Hélio Marques de Faria, ordenou a repressão policial ao movimento, tentando apreender o caminhão de som do sindicato. A resposta foi imediata: os companheiros se juntaram ao redor do caminhão, onde os policiais não puderam chegar (Jornal Tribuna Metalúrgica, dia 1 de fevereiro, 2000, p.3).

As inscrições presentes nas faixas carregadas pelos trabalhadores durante

a manifestação ajudam a compreender o tom das reivindicações:

Cadê a garantia do emprego?

Cadê a garantia do pão? Cadê o direito do trabalhador?

Problemas sociais do ano 2000 não podem ser julgadas por leis do ano 45 (referência á lei de falências)

Onde não há trabalho não há justiça

A Constituição rege: trabalho é direito do cidadão115

É interessante observar a diversidade dos argumentos, pois eles revelam

diferentes entendimentos sobre o problema. Ao mesmo tempo que os trabalhadores

estão reivindicando “emprego” eles estão lutando pela reabertura da empresa para

que a cooperativa possa funcionar. Entretanto, aqueles trabalhadores não serão

empregados, mas sócios trabalhadores da UNIWIDIA. Essas diferenças podem

expressar um novo campo de conflitos pela definição de novas identidades sócio-

políticas em formação, afinal, eles são empregados, empresários, autônomos ou

cooperados?

115 Análise dos registros fotográficos disponibilizados pelo Jornal Tribuna Metalúrgica.

Page 200: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

200

O “direito ao trabalho” aparece misturado ao “direito do trabalhador”.

Enquanto o primeiro amplia a noção de trabalho e reivindica o seu estatuto de

direito universalizável a todos os cidadãos, o segundo se refere apenas aos direitos

dos empregados, uma das possíveis formas de relação de trabalho. Pode-se

identificar nessas manifestações um problema que começa a ser assumido também

pelo sindicalismo cutista na medida em que ele avança no terreno da “Economia

Solidária”. Trata-se do dilema entre a defesa dos direitos adquiridos do trabalhador

empregado e a defesa de um novo tipo de relação de trabalho. Equacionar essas

duas lutas é uma tarefa bastante complicada.

Como indica Sérgio Mendonça no documento da CUT, esse é um risco que

o movimento sindical vai ter que correr, porque não há outras alternativas imediatas

diante dele (CUT, 1999). Tanto o Sindicato dos Metalúrgicos quanto a CUT

parecem estar atentos a alguns dos problemas que podem surgir da sua atuação

com as empresas autogeridas e, mais genericamente, com as cooperativas. Isso

pode ser afirmado em função das propostas de ação que ambas entidades

apresentaram (como descrito acima). Ali, pode-se encontrar uma preocupação com

a criação de novas regulamentações para o trabalho associado; a elaboração de

formas de cooperação entre o movimento sindical e as cooperativas, inclusive

visando a sindicalização dos cooperados; a defesa de estratégias mais amplas com

vistas ao poder público, objetivando criar políticas de financiamento e de apoio

técnico; e, finalmente, a definição de uma nova identidade jurídica para o sujeito

cooperativo.

Essas propostas são extremamente complexas porque envolvem diversas

dimensões da ação social. A relação dos sindicatos com as cooperativas leva, por

exemplo, a um questionamento sobre quem é que o sindicato representa. Ou ainda,

a partir do momento em que a CUT, através da Economia Solidária, pretende

intervir mais diretamente na criação de projetos voltados para a geração de trabalho

e renda, isso pode indicar uma modificação na maneira como essa Central concebe

o papel do Estado e da sociedade na definição e na execução das políticas

públicas.

Page 201: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

201

Para as organizações econômicas de trabalhadores, por sua vez, surgem

novas questões. Quem é o sujeito de direitos: ele é trabalhador, empregado ou

empresário? Como fica, portanto, a sua situação frente à previdência social e ao

fisco? Em que medida interessa para as organizações econômicas de

trabalhadores as modificações que estão sendo propostas pelos sindicatos, em

termos de regulamentações mais rigorosas para o trabalho associativo?

Este novo campo de debates faz-se, então, dinâmico na medida em que

diferentes atores (organizações econômicas de trabalhadores, sindicatos,

empresariado e Estado) estarão lutando entre si pela definição do sentido das

novas relações de trabalho. Nesse conflito, abre-se a possibilidade para o

estabelecimento de novas institucionalidades, pois essas transformações podem

dar lugar à emergência de novos sujeitos de direitos. A maneira como os sindicatos

estão discutindo as cooperativas de trabalhadores, conforme as propostas

apresentadas, pode indicar a busca por novos direitos do trabalho para além da

relação de emprego. De acordo com a fala de um dirigente da CUT durante um

seminário do 3° Congresso do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC: “Não são mais

os direitos de empregados, mas direitos de trabalhadores que precisam ser

garantidos”. O conteúdo desses direitos pode significar a tentativa de criação de um

novo contrato social e que, portanto, caminharia em sentido contrário às propostas

hegemônicas neoliberais de dissolução do contrato social de trabalho116.

Entretanto, isso tudo só existe enquanto possibilidade.

Talvez, o resultado dessas contradições indica também uma outra maneira

de se fazer política: na medida em que o movimento sindical e outras organizações

da sociedade passam a valorizar mais a ação direta na organização econômica e

social, isso poderia significar uma politização do espaço da produção (França,

1995). Nesse sentido, seria um redescobrimento da vida cotidiana enquanto locus

simultâneo da reprodução e da produção social (Lefebvre, “A Práxis”, 1968), ao

contrário das interpretações dominantes de esquerda que tendem a considerar

como caminho de transformação social apenas a ação política institucional

realizada por grupos e movimentos representantes de um projeto político

previamente determinado.

116 Sobre esse tema ver Santos (1999). Esse trabalho de Santos, discute como as ações neoliberais se caracterizam pela dissolução das conquistas das classes trabalhadoras, que objetivavam criar mecanismos de luta coletivos (como o contrato social de trabalho), onde reconhecia-se a desigualdade de força entre o trabalho e o capital.

Page 202: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

202

2. Contexto institucional: legislação, polícia e política

A descrição de alguns problemas vivenciados pelas empresas de

trabalhadores ajuda a melhor compreender as imbricações entre a esfera

econômica e a esfera sócio-política. As histórias da criação e as experiências

diárias de inúmeros empreendimentos autogeridos surpreendem pela diversidade

dos obstáculos institucionais encontrados.

Em Guarulhos, no Estado de São Paulo, a Iderol, empresa metalúrgica que

fabricava carrocerias para caminhões, teve a falência decretada em 1999. Os

antigos empregados organizaram uma cooperativa, denominada CIDEROL, para

que pudessem continuar trabalhando nas instalações da antiga fábrica. Entretanto,

como a empresa fora lacrada, foi necessário obter judicialmente o “arrendamento

das máquinas e das instalações da massa falida” (Jornal Autogestão, n°4, 2000,

p.7). Conforme documento da ANTEAG, o fato desse procedimento não estar ainda

previsto na Lei de Falências fica a cargo exclusivo do juiz do processo a decisão

sobre o arrendamento para os trabalhadores. No caso em questão, ainda que a

CIDEROL fosse o único grupo que manifestou interesse em alugar a massa falida,

o juiz responsável pelo processo decidiu realizar um processo licitatório para

escolher a “melhor” proposta de arrendamento. O resultado é que o processo

judicial ainda não foi concluído.

No Estado de Minas Gerais, os trabalhadores da antiga Calçados Kátia

estão sofrendo um problema semelhante ao descrito acima. Enquanto o patrimônio

da empresa está sendo liquidado pelo síndico da massa falida para saldar dívidas

“prioritárias” com fornecedores e bancos, os trabalhadores que organizaram uma

manifestação na frente da empresa para reivindicar o direito ao trabalho foram

processados por “crime contra a Justiça” pela juíza responsável pelo processo

falimentar, “sob a alegação de haver atentado contra o patrimônio administrado por

ela” (Jornal Autogestão, n.4., 2000, p.7). Ainda que a legislação determine que os

ex-empregados devam ser os primeiros a receber os créditos, tal processo pode

levar até 10 anos da decretação da falência.

Page 203: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

203

Outras empresas, como a Coopertex de São Paulo, iniciaram suas

atividades já com um passivo muito grande, o que muitas vezes inviabiliza o

negócio. Quando as empresas entram em crise e os trabalhadores negociam com

os antigos donos o controle e a propriedade da empresa, é preciso observar alguns

elementos fundamentais. Primeiro, qual a razão que levou a empresa à crise e se

esta pode ser superada para que o empreendimento se torne viável

economicamente. Segundo, em que condições os trabalhadores irão assumi-la,

pois, em alguns casos, os antigos proprietários passam uma “batata-quente” para

os trabalhadores. É bem conhecida a chamada “indústria da falência” e não faltam

especialistas no mercado que ajudam os antigos proprietários a se livrarem de suas

dívidas e responsabilidades. Uma das saídas mais correntes para os empresários é

fazer com que a dívida suceda para os próprios trabalhadores que assumiram a

empresa.

Além da Coopertex (cooperativa no setor têxtil em São Paulo capital) que

assumiu dívidas tributárias da ordem de R$2 milhões, poder-se-ia citar a

Friburguense (indústria eletromecânica do Estado do Rio de Janeiro), que assumiu

uma dívida de aproximadamente R$150.000,00 com os antigos proprietários, ou

ainda a Sakai (fábrica de móveis populares do município de Ferraz de Vasconcelos)

que deixou todas as suas dívidas para os seus “novos donos” (ANTEAG, 2000).

O exemplo da Sakai serviu de escola para todos os atores envolvidos no

processo: sindicatos, trabalhadores e a própria ANTEAG. Neste caso a Sakai já

tinha alguns pedidos de falência decretados antes mesmo de passar para a mão da

cooperativa criada pelos ex-empregados. Entretanto, somente quando os

trabalhadores assumiram a propriedade e o controle da empresa é que a “bomba”

estourou. Como nos relatou informalmente o ex-presidente da cooperativa, o

processo falimentar fora fraudulento e bastante tumultuado. Posteriormente os

trabalhadores descobriram que havia uma forte ligação pessoal entre o síndico da

massa falida e os antigos proprietários. Conforme o relato do ex-presidente, o

síndico teria entrado com um processo judicial contra os trabalhadores da

cooperativa, alegando que eles estariam prejudicando os interesses dos credores

da massa falida, pois estariam lutando contra a dissolução do patrimônio. Em

outras palavras, os trabalhadores estavam sendo acusados de proteger o

Page 204: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

204

patrimônio da empresa. Os equipamentos e a infraestrutura restam, muitas vezes,

como uma garantia concreta para os trabalhadores de que eles receberão algo

pelos créditos trabalhistas, ou mesmo como uma possibilidade de trabalho sob

regime de autogestão nesse período de transição. Em muitas falências, os antigos

proprietários conseguem, de forma ilegal, transferir o maquinário para outro lugar,

deixando apenas o que não lhes interessa para a justiça liquidar.

O ex-presidente dessa cooperativa recém formada foi preso, e durante os

dois dias em que esteve detido refletiu profundamente sobre as razões que levaram

à sua prisão: “ainda hoje estou tentando superar tudo, mas é uma barra…Você

pode imaginar como ficou o meu filho no dia em que fui preso. Ele perguntava: o

que meu pai fez? Meu pai é bandido?” (ANTEAG, 2000, p.75). Em uma outra

situação, durante uma conversa informal, ele questionava o porquê daquela

situação, afinal, quem levou a empresa à falência foi, na verdade, as mesmas

pessoas que o estavam processando pelo trabalho da cooperativa. Com um

sentimento de injustiça ele disse: “Será que vale a pena isso que fazemos?[…] Por

que sou eu que estou preso?”

Existem ainda outros casos tão ou mais traumáticos. Em Campinas, na

maior indústria de correntes industriais da América Latina, após uma falência

considerada fraudulenta, os ex-empregados decidiram ocupar a fábrica como forma

de garantir a permanência das máquinas no local, para possibilitar a realização do

trabalho através da cooperativa que estava sendo criada ou simplesmente para

garantir que o maquinário não fosse levado para outro lugar pelo síndico da massa

falida ou pelos próprios oficiais da justiça. Diante dessa realidade os ex-

empregados preferem, muitas vezes, tomar de imediato o controle da empresa

falida. Neste caso, em Campinas, a polícia foi chamada e, conforme o relato de um

técnico da ANTEAG que estava presente no dia, os policiais - “que se

apresentavam sem as identificações pessoais nos uniformes e utilizavam armas de

fogo não registradas” - agiram violentamente contra as pessoas, chegando a

ameaçar de arma em punho alguns trabalhadores que estavam no interior de um

carro.

Este não foi o único exemplo de enfrentamento com a polícia. Um dos casos

mais emblemáticos e que ainda deveria ser profundamente descrito e analisado é o

Page 205: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

205

da Cooperminas de Criciúma, que já completou 14 anos de autogestão. Os

trabalhadores da antiga Companhia Brasileira Carbonífera de Araranguá (CBCA),

empresa carbonífera (extração de carvão em minas), decretaram em 1987 uma

longa e intensa greve que acabou marcando a história de toda a região. Após

inúmeras tentativas frustradas por parte dos trabalhadores para que o Governo

(foram feitas reivindicações no nível Estadual e Federal) interviesse na direção da

empresa que já não pagava os salários há três meses, os trabalhadores decidiram

realizar uma greve (ANTEAG, 2000).

Conforme a descreve esse livro, os mineiros conseguiram retirar os trilhos

de trem, paralisando todo o transporte de carvão da região. Em seguida, um grupo

de 50 trabalhadores, com mulheres e crianças, acamparam sobre as próprias linhas

de trem. Imediatamente, iniciaram as pressões policiais para que eles evacuassem

a área. Neste momento, o Governador enviou a Política Militar (PM) para realizar a

desocupação. Como resposta mais de mil mineiros reuniram-se ali, no Bairro

Pinheirinho. Após uma negociação com as forças policiais, ficou decidido que não

haveria nenhuma intervenção policial até a próxima assembléia. Entretanto, traindo

a acordado, durante a madrugada aproximadamente 600 homens da PM obrigam

violentamente as famílias que estavam acampadas a se retirarem do local.

Mulheres e crianças em pânico fogem das barracas incendiadas enquanto os

homens tentavam proteger as famílias. No dia seguinte, cerca de dois mil mineiros

de outras empresas da região convergiram para o local a fim de prestar

solidariedade. Tem início, em seguida, uma longa batalha campal na cidade

(ANTEAG, 2000, p.33-34).

Diante dos conflitos, o então Governador Pedro Ivo Campos, junto com

outros políticos e lideranças dos trabalhadores e comunidades da região,

estabeleceram um acordo. Foram organizadas algumas reuniões com Ministros do

Governo Federal até que o Presidente da República, José Sarney, assinou um

documento garantindo a reativação da empresa agora sobre o controle dos

trabalhadores. Neste momento, o Sindicato dos Mineiros de Criciúma foi indicado

como o síndico da massa falida, permitindo que os trabalhadores assumissem a

produção e a gestão e conseguissem recuperar com sucesso a atividade

econômica da empresa (idem, p.35-36).

Page 206: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

206

Entretanto, em 1993 foi publicado um novo edital de arrendamento da

Companhia Brasileira Carbonífera de Araranguá (CBCA). Entre os requisitos para a

participação da concorrência do edital estava a “capacidade financeira” e a

possibilidade de “manutenção dos empregos”. Porém, a Justiça, entendendo que

cooperativa não cria empregos, uma vez que todos são cooperados, impediu que

os trabalhadores, através da sua cooperativa, participassem do edital (idem, ibidem,

p.35-36). Ora, tem-se aqui um entendimento bastante restritivo do que significa

“trabalho”, limitando-o à relação de emprego.

A Justiça determinou, em seguida, a empresa de Mineração Pérola como

arrendatária da CBCA. Os trabalhadores, ainda protestaram, afirmando que essa

empresa não era eficiente e idônea. Revoltados com a injustiça eles envolveram

seus corpos com dinamite e ameaçaram explodir toda a fábrica. Mas, diante da

complexidade do caso e após uma outra avaliação da situação, os trabalhadores

decidiram por um recuo estratégico e passaram a se organizar juridicamente para

entrar novamente com um processo de arrendamento da massa falida. Neste

percurso, porém, a Mineração Pérola revelou-se incapaz de administrar

eficientemente a CBCA, aumentando as chances da cooperativa. Finalmente, após

inúmeros encontros, a Cooperminas, através de negociações com o antigo

proprietário e com a Justiça, conseguiu a compra das ações da CBCA com um

pagamento financiado em 10 anos (idem, p.36).

Hoje a Cooperminas é uma empresa autogerida de relativo sucesso. A

produção é crescente; os trabalhadores têm uma jornada de trabalho mais curta do

que em outras mineradoras; eles recebem em recursos financeiros o valor

equivalente ao que teriam direito pela CLT; possuem uma retirada mensal um

pouco mais elevada do que a média regional; vêm cumprindo com todos os

compromissos acordados com a Justiça e além disso já criaram algumas atividades

de apoio direto à comunidade em que estão inseridos.

Pode-se ainda citar outro tipo de obstáculo institucional encontrado

frequentemente pelas cooperativas e empresas de autogestão. Em alguns setores

da economia os produtores (ou prestadores de serviço) organizam-se entre si de

forma a criar uma estratégia de cooperação mútua, minimizando assim os efeitos

nocivos da competição permanente e criando condições para abater outros

Page 207: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

207

competidores considerados indesejados. Essa é uma ação tão corrente que

desmonta o mito do mercado livre ideal, no qual tanto compradores como

produtores existiriam enquanto mônadas que agiriam independentemente dos

outros sujeitos, procurando apenas maximizar o interesse individual. A experiência

mostra que tanto os proprietários de capital, como os consumidores e os

trabalhadores, todos se organizam de forma a obter proteção e ganhos no jogo

econômico, de forma que a pura maximização individual não existe tal qual

concebida pelos modelos econômicos neoclássicos.

Como parte dessas estratégias, os grupos ou empresas que ocupam as

posições dominantes no campo econômico procuram institucionalizar mecanismos

que facilitem o acúmulo de vantagens para os “vencedores”. Como parte dessa

lógica mercantil, cria-se um sistema no qual acumulam-se vantagens de um lado e

acumulam-se desvantagens no outro extremo, de forma que as condições de

competição entre os agentes econômicos nunca são iguais.

Observe, no seguinte exemplo, a forma como as próprias regras do jogo

podem ser arbitrariamente determinadas: o edital (processo n° 44000.001381/2001-

17) do pregão eletrônico (n° 43/2001), realizado pelo Ministério da Previdência e

Assistência Social, tem por objetivo a “contratação de empresa especializada para

a prestação de serviços de teleatendimento e supervisão, a serem prestados na

Central de Atendimento da Previdência Social” (cf. Objeto do Edital).

Conforme descrito pelo edital, o tipo de licitação adotado é o do “menor

preço”. Alguns cientistas ficariam satisfeitos em verificar como o sistema de preços

é um instrumento neutro e eficiente na alocação dos recursos. Entretanto, um olhar

mais atento sobre esse documento perceberia que o sistema de preços é

determinado por um conjunto complexo de interações sociais, como por exemplo, a

organização dos “vendedores” de produtos e serviços, dos compradores ou a

organização sindical dos trabalhadores, ao invés de ser o simples resultado da

equação oferta-demanda de produtos. No item sobre a Participação (descrição de

quem pode participar do processo de seleção) dessa licitação que exclui as

cooperativas do processo, tem-se que:

Page 208: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

208

a) o Art. 37, XXI, da Constituição Federal, assegura a igualdade entre os concorrentes em procedimento licitatório. Assim, tendo em vista as isenções fiscais conferidas pela legislação pátria às cooperativas, estas sempre estarão em posição privilegiada em relação às demais licitantes, pois podem cotar preços bem abaixo daquelas praticados no mercado por empresas comerciais.

b) a sociedade cooperativa tem o objetivo principal de prestar serviços e promover o interesse comum dos seus associados, podendo oferecer bens e serviços a terceiros apenas quando, nos termos do Art.86, da Lei n°5764/71, estes atenderem aos objetivos sociais. Nesse sentido haveria incompatibilidade entre os objetivos da cooperativa e o objetivo do próprio contrato administrativo, qual seja a consecução do interesse público.

Ora, não é preciso ser diplomado em direito para se constatar o absurdo de

tal proposição. Na Carta Magna de 1988 a noção de “igualdade” no processo

licitatório não diz respeito à condição prévia dos competidores, mas simplesmente

afirma que o mecanismo de escolha não pode oferecer vantagens diretas a um

competidor em detrimento do outro. Esse parágrafo citado é bem interessante

porque ele mesmo revela uma contradição no interior do processo licitatório pelo

critério de preços. Por um lado pode-se argumentar que a licitação pelo “menor

preço” é um instrumento neutro de seleção, pois estabelece condições iguais para

os competidores. Porém, numa outra perspectiva, pode-se perceber que ele é, ao

mesmo tempo, politicamente e socialmente constituído, uma vez que a própria

determinação do preço de uma mercadoria por um empreendimento está sujeito às

condições sociais de produção (internas e externas). Ou ainda, constata-se que a

pressão realizada pelas empresas competidoras para excluir as cooperativas do

processo licitatório terá também influência sobre o valor do contrato, pois ao

elimina-las já estão a determinar um preço mínimo entre elas.

Fazendo-se um pequeno exercício lógico e interpretando a noção de

“igualdade” na direção em que ela está proposta na qualificação dos participantes

do processo licitatório descrito acima, poder-se-ia estabelecer uma interessante

reflexão sobre seus fundamentos jurídicos numa orientação que colocaria o relator

de tal proposta em clara contradição. Sua afirmação de que as especificidades das

cooperativas a colocam numa situação de desigualdade positiva num processo

licitatório poderia ser contestada a partir da simples comparação da desigualdade

de possibilidades existentes entre as empresas tradicionais e as cooperativas

Page 209: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

209

autogeridas. Assim, ao invés de se falar em “igualdade de condições” na

competição entre as empresas, poder-se-ia falar em “igualdade de possibilidades”.

Tal perspectiva reforça o entendimento de que o princípio de “igualdade” no Direito

deve significar que os desiguais devem ser tratados desigualmente objetivando a

superação das desigualdades que inferiorizam ou penalizam certos indivíduos ou

grupos (Dallari, 1995).

Com relação às empresa de autogestão, se analisadas a partir do princípio

de “igualdade de possibilidades” e comparadas às empresas capitalistas

tradicionais, pode-se constatar que as primeiras não gozam do mesmo aparato

institucional que cria muitas diferenças de condições entre elas já na origem do

empreendimento.

O problema com o segundo parágrafo citado é ainda mais evidente. É bem

verdade que a sociedade cooperativa tem por objetivo promover o interesse comum

dos seus associados, ainda que esse objetivo não se caracterize pela obtenção e

acumulação do lucro (conforme determina a Lei n°5764/71). A empresa capitalista

tradicional, por sua vez, também procura realizar o interesse comum dos seus

associados, sendo que, neste caso, a manutenção dos negócios através do lucro é

o objetivo intrínseco e necessário para a própria existência do empreendimento.

Ora, se esse parágrafo fosse interpretado tal qual a proposta do relator daquele

processo licitatório, toda e qualquer empresa econômica (e as cooperativas são

também uma empresa econômica) estariam excluídas das licitações públicas, uma

vez que seus objetivos sociais sempre iriam colidir com o interesse geral da

sociedade.

Seguindo-se o mesmo exercício lógico a partir da interpretação apresentada

naquele parágrafo, poder-se-ia dizer que toda e qualquer privatização ou

terceirização de um serviço público poderia, nessa perspectiva, ser lida como uma

inconstitucionalidade, uma vez que ele coloca em cheque o interesse público face

ao interesse privado da empresa contratada para a execução do serviço. Numa

perspectiva distinta, poder-se-ia argumentar que o processo licitatório existe para

contratar um serviço que o interesse público deseja terceirizar.

Diante dessas dificuldades encontradas, as empresas de autogestão e suas

entidades de representação começam a se organizar para a superação de alguns

Page 210: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

210

desses problemas. Na realidade, o que tais exemplos evidenciam, tanto com

relação aos processos falimentares como nos critérios que determinam as

condições de competição num processo licitatório, é que existem inúmeros fatores

que influenciam as condições de existência e permanência de todos os

empreendimentos econômicos no mercado. Se por um lado, as dificuldades iniciais

dos trabalhadores durante o processo falimentar da empresa revelam os

mecanismos legais e ilegais que protegem os antigos proprietários, ao mesmo

tempo, verificou-se como as condições de competição numa licitação podem ser

determinadas por critérios de uma ordem extra-econômica.

2.1 Instituir a política como condição de existência

As leis que tipificam e regulamentam os empreendimentos econômicos

coletivos poderiam ser analisadas como a expressão concreta da configuração de

forças sociais no interior de um campo econômico de um determinado momento

histórico. O reconhecimento público-estatal na forma de lei, resulta de um longo

processo de luta social e política pela criação de uma institucionalidade para o

sujeito de direito emergente. Tanto para as empresas tradicionais como para as

cooperativas, a legislação determina não apenas a forma da propriedade, mas

também a função social, as responsabilidades do empreendimento e os

responsáveis pelas ações, além de regulamentar as possíveis formas de atuação

no mercado.

As empresas de autogestão, como descrito no primeiro capítulo desta

dissertação, assumem geralmente duas formas jurídicas: como “associação” de

trabalhadores que é proprietária ou que aluga os meios de produção; ou como

“cooperativa” de trabalhadores que realiza o trabalho (produção ou serviço) de

forma associada (como proprietária ou não dos meios de produção).

A legislação do Cooperativismo data de 1971 e foi originalmente elaborada

tendo-se em mente a formação, sobretudo, de cooperativas rurais. Além disso, no

contexto de um Estado autoritário desenvolvimentista, as cooperativas foram

tomadas como importantes fatores de desenvolvimento socioeconômico regional,

Page 211: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

211

estando quase sempre sob forte intervenção e controle estatal. Assim como a

legislação sindical, a legislação sobre o cooperativismo também previa a necessária

filiação das cooperativas a um sistema de representação único e obrigatório, nesse

caso denominada Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB). Com a

Constituição de 1988 tal vínculo instituicional deixou de ser obrigatório.

Entretanto, com as profundas transformações do mundo do trabalho nas

últimas 3 décadas e com o surgimento de diferentes formas de cooperativas e

associações de trabalhadores, intensifica-se o desencontro entre as características

atuais desses empreendimentos e a legislação existente. A falta de uma tipificação

específica que dê conta das especificidades, dos objetivos e das necessidades das

empresas autogeridas é expressa por diferentes atores.

Quase todos os entrevistados (os trabalhadores associados) reclamaram

das dificuldades de adequação de sua realidade produtiva aos critérios da lei. Além

deles, algumas associações que representam os trabalhadores de empresas

autogeridas, em especial a ANTEAG e a UNISOL, têm continuamente organizado

seminários públicos para abordar os problemas legais enfrentados por esses

empreendimentos, bem como vêm demandando junto aos poderes públicos um

novo estatuto jurídico para essas organizações. Recentemente (setembro de 2001)

a ANTEAG elaborou uma proposta de legislação para as empresas de

trabalhadores autogeridas que seria enviada ao Congresso. Os problemas

causados pela ausência de uma institucionalidade adequada para as empresas de

autogestão também foram detectados pelos técnicos do BNDES, conforme

observado em alguns documentos desse banco (tais exemplos serão analisados no

item seguinte).

Um número do Jornal Autogestão (n°4, 2000), produzido pela ANTEAG,

abordou especialmente o problema acima descrito. Com o seguinte título na capa,

“Os desiguais precisam de um tratamento desigual”, essa entidade reivindicava

uma nova legislação que permitisse o avanço dos projetos de autogestão.

Conforme descrito nesse documento a elaboração de uma legislação específica

teria por objetivo resolver os seguintes problemas:

Page 212: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

212

-Falta de linhas especiais de financiamento, principalmente para a modernização, capital de giro e para arrematação dos bens de massa falida em leilão. Isto porque as atuais linhas de financiamento não estão disponíveis para as empresas de autogestão, pois elas não preenchem os requisitos para sua concessão.

-Falta de garantia de não interrupção do trabalho, quando os trabalhadores se organizam para continuidade do negócio, utilizando-se das máquinas e instalações da antiga empresa. Este problema poderia ser minimizado se fosse assegurado o arrendamento compulsório, nos casos em que o ativo da empresa é menor ou igual ao passivo trabalhista, o que ocorre na maioria dos casos de quebra de pequenas e médias empresas.

-Insegurança causada pelo artigo 3° da CLT, pois permite à fiscalização do Ministério do Trabalho, do INSS e do Ministério Público do Trabalho caracterizar a relação de emprego em qualquer atividade industrial. Isto porque, para a organização do trabalho numa empresa não há como se evitar a formação de uma estrutura de cargos, a estipulação de jornada de trabalho e de formas de remuneração atreladas ao cargo, às horas trabalhadas ou às peças produzidas, entre outros. Existe entendimento do próprio Poder Judiciário do Trabalho - TST, enunciado 331, no qual não é permitida qualquer outra forma de trabalho que não seja sob o regime da CLT na atividade fim de uma empresa (Jornal Autogestão, n°4, 2000, p.10).

A iniciativa dessas entidades reconhece que o ambiente institucional, e em

especial o Estado, é constitutivo e organizador das relações econômicas. Pode-se

dizer que o Estado atua em algumas dimensões estruturais: na definição dos

direitos de propriedade (separando o que é público do que é privado) e na

correspondente garantia desses direitos; na criação e manutenção de um mercado

(que exige uma dimensão espacial-social de interações reguladas e não violentas);

na criação de garantias à capacidade de empreender e de entrar no mercado para

vender seus produtos ou o próprio trabalho e, finalmente, para garantir o lucro.

A idéia de que os “desiguais” merecem um tratamento “desigual” , como

reivindicado pela ANTEAG, poderia ser interpretada da seguinte forma. Na medida

em que as empresas de trabalhadores são experiências com características

próprias, para que elas possam existir enquanto tais, elas necessitam de um

reconhecimento distinto por parte do Estado para que possam competir com as

empresas tradicionais. Mas o que significa dizer que para poder competir com estas

últimas as empresas autogeridas devem estar em condições iguais?

Tanto no texto transcrito acima quanto em outros eventos (seminários

públicos, encontros nacionais, etc.) organizados pela ANTEAG, alguns argumentos

Page 213: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

213

interessantes são encontrados para justificar a criação de um novo estatuto jurídico

para as empresas de autogestão. Um problema recorrente é a falta de estratégias

de financiamento específicas para essas organizações econômicas (esse assunto

será tratado no item seguinte). Outro desafio muito presente diz respeito ao

processo falimentar da empresa e a passagem dos meios de produção para os

trabalhadores. Os grandes credores (bancos e fornecedores), como discutido nos

exemplos acima, são freqüentemente beneficiados nos processos falimentares em

detrimento dos trabalhadores, ainda que a Justiça determine como prioridade os

interesses dos ex-empregados. Nesses casos, temos a manifestação clara da

função organizadora e disciplinadora do Estado para a garantia da propriedade e do

lucro. Se, por um lado a forma jurídica deveria fazer valer os interesses dos

trabalhadores, na prática o aparelho de Estado, tanto jurídico como policial,

manifesta-se a favor dos detentores do capital.

A falta de um reconhecimento específico das relações sociais no interior

dessas empresas evidencia as formas de trabalho instituídas e consideradas

legítimas no interior do sistema legal que regulamenta as relações trabalhistas. De

acordo com a reivindicação presente no terceiro parágrafo do fragmento citado, o

trabalhador industrial é freqüentemente identificado à relação de emprego. Se por

um lado essa medida cumpre a função de coibir as diversas formas de precarização

das relações de trabalho, por outro lado a Justiça do Trabalho revela-se incapaz de

identificar “quem são” os trabalhadores nas empresas autogeridas117. Afirma-se que

eles são os proprietários da fábrica e trabalham de forma associada. Mesmo a

figura do “trabalhador autônomo” (identidade jurídica assumida pelo trabalhador

associado) parece pouco adequada para esses trabalhadores, uma vez que o

trabalho realizado por uma pessoa no processo produtivo interfere diretamente no

ritmo e na intensidade do trabalho do outro companheiro. Mas se não são

exatamente “trabalhadores autônomos”, nem “empregados” e nem “empresários”,

117 Para tratar de tal problema estão se constituindo, em diversos segmentos jurídicos (Ordem dos Advogados do Brasil, Procuradorias do Ministério Público do Trabalho, Procuradorias Municipais, entre outros), grupos de estudo para discutir e elaborar novas orientações sobre essa temática.

Page 214: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

214

eles são o quê? Estar-se-ia diante de um novo campo de conflitos pela instituição

de um novo sujeito de direitos? Tal problema jurídico, como foi discutido no item

sobre a relação com os sindicatos, fará emergir questões profundas sobre o

contrato social de trabalho.

De qualquer maneira, a figura jurídica do “trabalhador autônomo” parece

não dar conta da especificidade dessa relação de trabalho. Tal problema pode ser

constatado nos inúmeros processos jurídicos que tramitam na Justiça do Trabalho,

discutindo o conteúdo e a forma do trabalho no interior de uma cooperativa. Porém,

se por outro lado a existência desses processos judiciais relaciona-se ao combate à

disseminação das chamadas “coopergatos”, por outro, muitos deles têm origem na

dificuldade de se diferenciar e caracterizar as relações de trabalho que são

observadas nas empresas autogeridas, pois muitas delas continuam a reproduzir

uma forma de organização do processo produtivo que pode ser confundido ao

vínculo empregatício (por exemplo, uma rígida divisão sócio-técnica do trabalho).

Assim, se as empresas de trabalhadores e suas respectivas entidades de

representação, estão exigindo mudanças na lei com base nessas razões de ordem

prática, que criam pequenos obstáculos para o seu desenvolvimento econômico,

existem outros argumentos recorrentes que começam a ganhar força e que também

reivindicam um novo estatuto legal. Tanto a ANTEAG quanto a UNISOL defendem

publicamente que essas experiências poderiam representar um fator de

desenvolvimento socioeconômico “alternativo” que contribuiria no combate à

pobreza, na geração e manutenção de postos de trabalho, na distribuição de renda

e na educação democrática. O movimento sindical, em especial a CUT e o

Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, também encamparam estes argumentos para

fundamentar os seus recentes projetos na área da Economia Solidária.

Ainda, numa perspectiva complementar, existem argumentos que

reivindicam do Estado o mesmo tratamento entre as empresas de autogestão e as

empresas capitalistas tradicionais. Como afirma Jorge Luís Martins, Secretário de

Política Sindical da CUT Nacional, essas empresas são capazes de produzir se “o

Estado - no campo do investimento em novas tecnologias, financiamento

subsidiados e no mercado de exportação - abrir para as empresas autogestionárias

as mesmas possibilidades que abre para o capital” (ANTEAG, 2000, p.57).

Page 215: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

215

A partir dessa fala, pode-se tirar outras conclusões. Essa reivindicação

evidencia que o campo econômico atualmente existente possui uma série de

elementos já historicamente instituídos que contribuem para as atividades

econômicas das empresas capitalistas tradicionais. Nesse caso, o Estado tem

papel fundamental enquanto organizador e criador de uma série de instituições

sociais (políticas de financiamento, políticas de desenvolvimento que favorecem um

setor da economia em detrimento de outro, políticas fiscais e de formação

profissional, etc.) que permitem que as relações de produção, que se instituíram

enquanto dominantes, sejam também as mais eficientes economicamente, visto

que as condições do campo econômico agirão em favor delas.

Surgirão, é verdade, argumentos contrários a essa interpretação dizendo

que essas empresas se tornaram dominantes porque eram mais eficientes

economicamente. O argumento aqui apresentado (fugindo do falso dilema “ovo ou a

galinha”), afirma que as condições de eficiência de uma empresa são inseparáveis

da conquista simultânea das condições sociais e políticas em que essa eficiência se

realiza.

Se, por um lado, a narrativa dessa liderança sindical poderia reforçar a tese

de que as condições de eficiência são também socialmente determinadas,

contrariamente ela também poderia criar uma armadilha teórica. Ora, ao afirmar

que sob as mesmas condições institucionais as empresas de trabalhadores

autogeridas são capazes de produzir com igual ou maior eficiência que as

empresas capitalistas tradicionais corre-se o risco, novamente, de descontextualizar

o conceito de eficiência.

Poder-se-ia, sob uma situação de similar condição institucional, comparar a

eficiência produtiva de duas empresas distintas somente se os fins de ambos os

processos analisados fossem os mesmos. Afinal, os termos do que é “ser eficiente”

nunca está dado a priori dentro de um sistema complexo. É fundamental destacar

que o que “entra” na contabilidade enquanto input e output do cálculo de eficiência

será sempre o resultado de um permanente conflito político. Por exemplo, o valor

de uma hora trabalhada é sempre determinado pelo contexto social do trabalho e

pelas lutas intrínsecas dos trabalhadores para obter benefícios (Castoriadis, 1985),

Page 216: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

216

ou ainda, o valor dos insumos, bem como os custos ambientais variam em função

do que é ou não considerado uma externalidade econômica.

Dessa forma, só se pode medir e comparar a eficiência de um determinado

processo quando a escolha dos diferentes meios não influencia na definição do fim

almejado, portanto, sem alterá-lo no decorrer do processo. Assim, estando de

acordo sobre a escolha do objetivo final, pode-se então avaliar a eficiência em

termos da melhor utilização dos meios. Entretanto, ao mergulhar na complexidade

do processo produtivo moderno, verifica-se que raramente a escolha dos meios não

influencia nos fins, ou ainda que é difícil haver consenso sobre os fins que devem

ser alcançados, visto que eles normalmente trazem resultados diferentes para cada

grupo social. Nessa perspectiva, tanto os fins como os meios do processo produtivo

serão continuamente um campo de conflitos.

Para concluir, pode-se dizer que os argumentos que reivindicam um novo

estatuto jurídico para as empresas de autogestão poderiam ser agrupados em dois

grupos diferentes, apesar de ambos compartilharem de alguns pressupostos.

Os primeiros argumentos - aqueles que querem superar os entraves

relativos ao processo falimentar, ao reconhecimento legal da empresa autogerida e

as condições de produção inferiores às das empresas capitalistas tradicionais - têm

sua origem imediata no campo econômico. Entretanto, eles conquistam logo em

seguida o campo político no instante em que evidenciam e discutem a existência de

uma distribuição desigual das possibilidades de produção e de atuação no

mercado. Por outro lado, a segunda ordem de argumentos - em que as

organizações econômicas de trabalhadores surgem como portadoras de um outro

modelo de desenvolvimento socioeconômico - indica o surgimento de uma luta que

transforma o campo econômico num campo político por excelência, pois instala o

debate sobre a relação entre as formas de trabalho e propriedade existentes (e

aquelas representadas pelas empresas autogeridas) e a própria instituição da

ordem social (a distribuição da renda, do trabalho e a participação democrática).

Em ambos os casos, pode-se verificar como a empresa de autogestão é

identificada a um projeto não apenas de natureza econômica, mas sobretudo, de

transformação social e política. Se por um lado, as características internas da

cooperativa contribuiriam para uma melhor distribuição de renda, para a

Page 217: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

217

manutenção dos postos de trabalho e para a educação democrática, por outro lado,

ela contribuiria no conjunto do sistema econômico para o combate aos mecanismos

de exclusão social.

Porém, é muito difícil estabelecer uma relação direta entre as características

específicas às empresas de autogestão, em oposição às empresas ditas

tradicionais, e a forma como as primeiras impactam (no curto, médio e longo prazo)

sobre o conjunto do sistema econômico. Além disso, também não existem certezas

sobre como a participação dos trabalhadores na propriedade e na gestão irá se

desenvolver no interior desses empreendimentos. Entretanto, essas dúvidas não

invalidam e nem enfraquecem o valor e os significados que essas experiências

possuem no presente e que podem despertar no futuro. Aqui, interessa,

exatamente, descrever e interpretar essas construções sociais, os seus dilemas e

suas potencialidades.

Nesse caso, é importante destacar que o fato das empresas de autogestão

serem identificadas pelos próprios trabalhadores a um modelo de produção que

pode gerar benefícios (materiais e simbólicos) para os próprios participantes,

motiva-os à lutar por novas institucionalidades que permitam a melhor realização

dos seus objetivos. O fato dessas entidades apresentarem propostas concretas de

modelos alternativos de produção instala também um campo de conflito sobre a

natureza mesma das empresas ditas tradicionais, ao desnaturalizar e politizar as

condições de produção. Para essas organizações, as empresas autogeridas

significam, não apenas uma forma de geração de renda, ainda que esse fator seja o

predominante no momento de criação do empreendimento, mas sobretudo uma

forma de trabalho considerada mais justa por eles, uma vez que, as empresas

tradicionais concentrariam renda na mão dos seus proprietários, decidiriam sem a

participação dos trabalhadores e aproveitariam da flexibilidade e disponibilidade da

mão-de-obra como lhes conviessem.

Nesse sentido, pode-se dizer que tais propostas evidenciam como as

relações econômicas de produção são portadoras de um determinado conteúdo

social e político. Afinal, quando esses grupos reivindicam o reconhecimento de suas

diferenças para que possam existir enquanto tais, eles desencadeiam perguntas

fundamentais: como produzir? Produzir para quem? A quem pertence os frutos e o

controle do trabalho?

Page 218: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

218

3. Crédito e Financiamento: os limites dos critérios de avaliação

As condições de origem da maior parte das empresas de autogestão

condena, muitas vezes, o desenvolvimento futuro do empreendimento. Quase todas

as experiências aqui estudadas nasceram de outras empresas que passavam por

várias dificuldades: problemas financeiros, de gestão, obsolescência tecnológica,

perda de mercado, ameaça de importações, etc.. Esses problemas que marcaram a

empresa “original” acabam muitas vezes estigmatizando a empresa que agora se

encontra sob controle dos trabalhadores.

Em alguns casos, a empresa de autogestão herdou as dívidas (fiscais,

trabalhistas ou com fornecedores) da empresa original. O fato de apresentar

passivos de um montante significativo pode inviabilizar os pedidos de

financiamento, pois os bancos privados e mesmo as instituições estatais possuem

critérios limitantes nesse sentido. Como as empresas autogeridas já apresentam

uma situação econômica desfavorável, fica ainda mais difícil conseguir apoio

externo (tanto para o financiamento como de fornecedores de matéria-prima) para

superar os problemas iniciais.

Existem também empresas autogeridas que no momento de constituição

não possuíam dívidas anteriores. Entretanto, como cooperativas ou associações de

trabalhadores encontram dificuldades jurídicas para oferecer um patrimônio como

garantia para os empréstimos, já que na maior parte das vezes a empresa de

autogestão inicia-se com um pequeno capital fixo.

Além desses casos, ainda se pode encontrar uma situação onde a empresa

possui as condições objetivas necessárias para a obtenção de empréstimos,

entretanto, os bancos recusam-se a fazê-lo sob a alegação de não confiarem numa

empresa administrada por trabalhadores.

Page 219: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

219

Conforme dois estudos publicados pelo BNDES118, esses problemas vividos

pelas empresas de autogestão acabam gerando novas dificuldades que podem

levá-las à completa falência. A restrição ao crédito faz com que as empresas

autogeridas sejam forçadas a buscar formas de financiamento a custos muito

elevados (descontar títulos a taxas extremamente desfavoráveis), ou ainda,

impossibilitando a compra de maiores quantidades de matéria-prima junto a

fornecedores que criam condições muito negativas. Ainda, segundo a análise

destes autores, as dificuldades são semelhantes àquelas encontradas pelas

pequenas e médias empresas tradicionais, entretanto, estas últimas já gozam de

um sistema próprio de apoio criado pelo Estado Brasileiro (por exemplo, o

SEBRAE), contando com incentivos fiscais e financiamento em condições especiais

(Faveret Filho, 1996). Alguns exemplos ajudam a ilustrar essas dificuldades.

A Coopetex, de Pernambuco, graças às dívidas herdadas pelo não

recolhimento do ICMS pela empresa anterior, não consegue participar dos

programas de incentivo fiscal que permitiriam a utilização de parte dos impostos

recolhidos para investimento na própria empresa (Jornal Autogestão, n.4, 2000,

p.7). Neste caso, a solução proposta pela ANTEAG seria a adoção de um modelo

de legislação fiscal já existente em algumas cidades do Brasil (como Foz do Iguaçu)

que “permite às empresas de autogestão renegociar as antigas dívidas fiscais em

condições extremamente favoráveis e, em alguns casos, a anistia dos débitos”

(idem, p.7-8).

A Coopervest, de Sergipe, enfrenta ainda dificuldades para conseguir

empréstimos para financiar a ampliação do capital de giro e os investimentos na

infraestrutura: “tentamos o BNB, Banese e Banco do Brasil. Mas, apesar de não

termos vínculos legais com a Vila Romana [antiga empresa], o fato de usarmos seu

antigo espaço físico foi a desculpa para nos negarem linhas de financiamento -

conforme relatou José Paixão de Aquino, ex-presidente da Coopervest” (ANTEAG,

2000, p.82).

118 Cf. Faveret Filho (1996) e também, no mimeo “Autogestão empresarial: propostas para discussão”, elaborado por Luiz Antônio Souto, Marcio Cameron e Ana Maria Castro, março 1997.

Page 220: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

220

Num outro caso, vivido pela FACIT (que pertencia ao grupo Sharp), após

inúmeras negociações com diferentes bancos ela conseguiu uma linha de crédito

com o BNDES. Ainda que o passivo da empresa não fosse grande “a linha de

crédito que a Sharp tinha em alguns bancos foi imediatamente fechada por falta de

confiança do setor financeiro na competência dos trabalhadores” (ANTEAG, 2000,

p.103).

Mas os problemas não se limitam às questões de financiamento. A antiga

Fábrica de Cobertores Parahyba, agora denominada Coopertêxtil, após um longo

processo de estruturação interna, onde diferentes acordos foram firmados entre os

ex-empregados e os ex-proprietários para viabilizar o negócio, conseguiu retomar

com sucesso suas atividades em meio a forte turbulência no mercado. Tanto a

disposição dos trabalhadores em utilizar parte do seu FGTS para financiar os

primeiros momentos da empresa, como a cooperação da Rhodia em adiantar a

principal matéria-prima em condições favoráveis, e ainda o apoio do BNDES com

um empréstimo de US$ 6,5 milhões, foram fundamentais para viabilizar a empresa

(ANTEAG, 2000; Rioli, 1996). Entretanto, mudanças na política macro-econômica

brasileira criaram novas dificuldades para os trabalhadores. Ainda que a

produtividade tenha crescido entre 94 e 95 e a empresa estivesse melhorando sua

situação econômica, a entrada de cobertores mexicanos no mercado brasileiro a

preços muito baixos, favorecidos pela redução nas taxas de importação e pela

sobrevalorização do Real, causou enormes prejuízos a empresa. Tal situação só

melhorou “a partir de 1995, quando o governo aumentou a alíquota de importação

de cobertores de 20% para 70%” (ANTEAG, 2000, p.68).

Em duas outras pesquisas realizadas com empresas de autogestão, pôde-

se verificar que os limites financeiros aparecem como um dos problemas mais

importantes a serem solucionados. Conforme uma consulta realizada pela ANTEAG

a 20 empresas autogeridas, o problema que aparece em primeiro lugar (para 13,2%

dos entrevistados) é a falta de recurso financeiro e capital de giro (Jornal

Autogestão, n.4, 2000, p.5). Outro estudo realizado por uma equipe do IBASE119 no

119 Esta pesquisa utilizou uma amostragem de 13 empresas autogeridas para um universo de 100 empresas do Rio Grande do Sul (Lopes, 2001).

Page 221: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

221

final de 2001, questionou os trabalhadores sobre quais eram os elementos

necessários para o crescimento da sua empresa: 20,57% disseram que faltava

apoio financeiro e crédito; 15,44% afirmaram que era preciso investir nas

instalações; 1,09% falaram da falta de capital de giro.

A ANTEAG, desde o seu surgimento em 1994, parecia estar consciente dos

limites financeiros impostos às empresas autogeridas. No mesmo ano de sua

criação ela levou ao Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador

(Codefat) a solicitação de que o BNDES incluísse em suas Políticas Operacionais o

financiamento de empresas autogestionárias. Naquele momento, o argumento

central para tal proposta era a possibilidade de preservação de postos de trabalho

através do desenvolvimento de empresas autogeridas (Souto, Cameron & Castro,

1997).

Iniciou-se então um diálogo entre a ANTEAG e alguns técnicos do BNDES,

que eram mais simpáticos aos projetos dessa entidade. Algumas empresas foram

visitadas e estudos preliminares foram realizados para se compreender um pouco

sobre as características das empresas autogeridas, já que o assunto era bastante

desconhecido. O resultado foi que até o final de 1996 cinco empresas de

trabalhadores (sendo que uma era de co-gestão) receberam financiamento do

BNDES sob condições especiais.

Seria interessante analisar os argumentos elaborados em ambos os

documentos produzidos pelos técnicos do BNDES para justificar o apoio às

empresas autogeridas. O aumento da estabilidade do nível de emprego (o

documento utiliza o termo “emprego” ainda que os trabalhadores não sejam

empregados) é apresentado como a principal razão para a criação de uma

estratégia de suporte a essas empresas: “comparada à opção de fechamento, a

transferência da propriedade (ou do negócio) para os trabalhadores, efetivamente,

constitui uma forma de impedir a eliminação dos postos de trabalho, ao menos no

curto prazo” (Faveret Filho, 1996, p.220); ou ainda, o “modelo autogestionário

resulta, em grande parte, da tentativa dos trabalhadores de garantir, pela ajuda

mútua, a manutenção de seus empregos e rendas […] A autogestão é reconhecida

como uma fórmula democrática para a solução de problemas socioeconômicos e

Page 222: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

222

um instrumento de preservação e melhoria do padrão de vida da classe

trabalhadora” (Souto, Cameron & Castro, 1997, p.5).

Outras razões descritas pelos técnicos do BNDES são as possibilidades de

melhoria na distribuição de renda que a empresa autogerida poderia criar: “ao

eliminar a diferença entre proprietários do capital e trabalhadores, a autogestão faz

com que salários e lucros sejam apropriados pelos trabalhadores. Além disso, a

abertura do leque salarial é, em princípio, menor nas empresas autogeridas do que

nas heterogeridas” (Faveret Filho, 1996, p.220).

Faveret ainda sugere que a autogestão poderia melhorar a produtividade,

devido aos efeitos positivos oriundos do processo participativo: “ao aumentar as

possibilidades de ganhos materiais e ao promover um maior envolvimento pela

democratização das decisões, a autogestão tende a induzir os trabalhadores a

buscar sempre o melhor desempenho possível. Isto vale tanto para a maximização

da produção e da qualidade quanto para a redução de custos” (Faveret Filho, 1996,

p.221-222).

Entretanto, a reflexão realizada nos capítulos anteriores desta dissertação

procurou mostrar que a situação é muito mais complexa do que o sugerido acima. A

obtenção pelas empresas de autogestão de uma melhoria nas condições de

manutenção dos postos de trabalho, na renda dos trabalhadores e na produtividade

da empresa dependerá de vários outros elementos que são interdependentes

(internos e externos à empresa) e não simplesmente intrínsecos à autogestão.

Os autores dos estudos do BNDES reconhecem essa complexidade quando

percebem que o financiamento para as empresas de autogestão não pode estar

isolado de outros mecanismos de suporte. Ao mesmo tempo, “a recente experiência

com projetos autogestionários no BNDES, no entanto, tem mostrado a necessidade

de adaptação dos critérios adotados de forma a atender às peculiaridades do

segmento” (Souto, Cameron & Castro, 1997, p.16). Essas especificidades seriam

oriundas da necessidade de se respeitar as características intrínsecas às empresas

de trabalhadores, como a propriedade coletiva dos meios de produção e a gestão

democrática dos empreendimentos. Além desses fatores, os técnicos do BNDES

identificam como problemas “peculiares ao segmento”: as dívidas anteriores da

Page 223: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

223

empresa (com o fisco); a falta de capacitação técnica-administrativa e a educação

para a autogestão.

Se por um lado os técnicos acreditam que as empresas de trabalhadores

possuem um potencial econômico (podem ser rentáveis) e social (manutenção e

criação de postos de trabalho e distribuição de renda), razões essas que

justificariam o apoio do Banco, por outro lado, as condições de suporte e

financiamento devem ser adequadas ao desenvolvimento dessas especificidades,

caso contrário, o investimento não se justifica.

Dessa forma, encontra-se nos documentos sugestões para a elaboração de

uma “política global” que integre diferentes instituições do setor público e de

entidades de classe para buscar soluções alternativas: “as instituições envolvidas

podem exercer sua responsabilidade social através de mecanismos diversos, como

dispensa fiscal por prazo limitado ou em troca de participação acionária

progressiva, doação ou comodato de terrenos e instalações, conscientização e

formação de mão-de-obra, educação básica para adultos, etc.” (Souto, Cameron &

Castro, 1997, p.15)

Nesse sentido, os autores propõem alguns critérios para a seleção dos

projetos que deveriam ser financiados pelo BNDES, bem como a forma de

avaliação do desempenho do empreendimento. A análise crítica desses critérios

propostos é um dos objetivos deste capítulo. Resumidamente, os pontos

apresentados por aqueles autores são:

1) As empresas escolhidas deveriam estar, preferencialmente, em setores

do mercado que não estejam submetidos a forte concorrência; o nível de

endividamento deveria ser próximo àquele encontrado nas empresas do setor; a

distribuição dos excedentes econômicos entre os trabalhadores não deveria

comprometer a capacidade financeira da empresa; a empresa deveria criar um

fundo específico para o pagamento da dívida e para os reinvestimentos; um

sistema de indicadores de desempenho econômico-financeiro deveria ser

estabelecido, e, finalmente, as condições de participação dos trabalhadores na

gestão deveriam estar asseguradas.

2) Com relação às estratégias de fomento, os técnicos sugerem ainda que o

BNDES deve priorizar aquelas empresas de trabalhadores que são oriundas de

Page 224: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

224

processos de terceirização ou de desverticalização, pois nesses casos a

experiência prévia dos trabalhadores e toda infraestrutura instalada poderiam ser

aproveitadas mais facilmente num nicho de mercado mais seguro (Souto, Cameron

& Castro, 1997; Faveret, 1996).

3.1 Estado e Autogestão: campos de conflitos

O fato de que a partir da metade da década de 90 vêm crescendo as

reivindicações de apoio aos projetos de autogestão no interior de espaços públicos-

estatais pode indicar o surgimento de um novo campo político entre diferentes

atores que estão envolvidos com o desenvolvimento de empresas autogeridas e/ou

cooperativas. Além do exemplo citado, sobre a ANTEAG no interior do Conselho

Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador, o movimento de criação e

fomento às diversas formas de organizações econômicas de trabalhore pode ser

encontrado em várias esferas: governamental, sociedade civil, movimentos sociais,

sindicalismo e mesmo no setor privado. O sindicalismo cutista, por exemplo, que

durante muito tempo foi contrário às empresas de autogestão, incorporou vários

programas voltados especificamente ao fomento da autogestão, passando a

reivindicar um maior apoio estatal para tais propostas.

Simultaneamente, tanto o Governo Federal, como Governos Estaduais e

Municipais, têm implementado programas voltados à geração de renda e trabalho

que se baseiam, por exemplo, na constituição de cooperativas. Porém, a

diversidade desses programas é muito grande, indo desde o fomento ao chamado

“empreendedorismo” individual e coletivo, passando pela criação de cooperativas

de trabalho, bancos do povo e até o de empresas autogeridas. Muitos desses

projetos procuram estar identificados à emergente Economia Solidária, como é o

caso das políticas públicas implementadas por algumas gestões do Partido dos

Trabalhadores. Porém, dada a heterogeneidade dos programas de geração de

trabalho e renda, que variam conforme a orientação política dos governos

Page 225: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

225

municipais, estaduais e mesmo federal, as cooperativas de trabalhadores têm

servido para diferentes fins120.

Tais iniciativas mereceriam um estudo mais detalhado, pois a natureza de

tais projetos poderia indicar objetivos políticos completamente distintos.

Experiências, por exemplo, com forte ênfase no empreendedorismo individual

podem refletir uma determinada visão da relação entre o Estado, a sociedade e o

mercado. Por outro lado, a criação de estratégias público-estatais de capacitação,

organização coletiva e crédito para a constituição de empreendimentos populares

autogeridos, indicam uma outra concepção do papel do Estado.

Em certos casos, como observado em algumas diretrizes de ação descritas

nos documentos do BNDES, os governos deveriam privilegiar empresas de

trabalhadores que tenham nascido de processos de privatização de atividades

antes estatais, de processos de terceirização ou de desverticalização de empresas

privadas. Tais iniciativas poderiam, na realidade, estar contribuindo para o

surgimento de empresas não necessariamente autônomas, onde o anterior vínculo

empregatício tenha sido estrategicamente substituído pela relação cooperativa

apenas para minimizar os custos de mão-de-obra e para desresponsabilizar o

Estado sobre a relação Capital -Trabalho.

Este problema evidencia o fio da navalha sobre o qual as empresas de

autogestão estão equilibradas. Se por um lado elas podem representar um

processo de conquista de novas formas de trabalho mais justas e solidárias, por

outro lado, elas podem estar sendo utilizadas para favorecer o processo de

precarização dos direitos sociais atualmente existentes.

Numa perspectiva mais ampla, talvez a entrada em cena das empresas de

trabalhadores autogeridas e das entidades de representação de classe na disputa

dos fundos públicos possa reforçar a constituição de um campo político ao instalar

120 A criação de políticas públicas que se orientam pela Economia Solidária vem sendo adotada por inúmeras gestões petistas. Tanto em Porto Alegre como em Recife, São Paulo, Belém, Santo André, entre outros municípios, pode-se encontrar estratégias de desenvolvimento socioeconômico que têm encontrado na Economia Solidária uma fonte de inspiração. Um interessante estudo da relação entre Economia Solidária e Políticas Públicas foi realizado por Cunha (2002).

Page 226: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

226

um debate sobre a destinação desses recursos: quais são os setores sociais e

econômicos que devem receber maior ou menor financiamento público? Ou ainda,

um debate sobre os modelos de desenvolvimento socioeconômico possíveis, pois,

como defendem esses atores, as empresas de autogestão representariam uma

forma de desenvolvimento mais democrática, igualitária e equânime que as formas

de trabalho assalariado.

Este debate, portanto, pode extrapolar o âmbito das reivindicações

particulares ou setoriais, pois o questionamento sobre as formas de utilização dos

recursos públicos enuncia problemas que afetam a sociedade como um todo. Isso

se dá ao mesmo tempo em que os próprios rumos e sentidos que as cooperativas e

empresas de autogestão podem assumir tornam-se alvo de disputa entre diferentes

grupos, como por exemplo, as associações de representação dos trabalhadores de

empresas autogeridas (como a ANTEAG e a UNISOL), os sindicatos e suas

centrais, algumas organizações e federações de cooperativas (OCB,

FETRABALHOs), movimentos sociais (MST) e o próprio poder público (vide os

vários programas de governo, no âmbito estadual e municipal, que tratam da

Economia Solidária).

Outro elemento que chama a atenção nos documentos do BNDES, nas

reivindicações das entidades ligadas às empresas de autogestão e também do

sindicalismo cutista é a importância estratégica dada ao Estado Brasileiro como

força motriz e organizadora do desenvolvimento socioeconômico. Na fala de todos

esses atores o Estado surge como o responsável pela organização, entre os

diferentes atores econômicos, de vários fatores que influenciam nas condições de

produção (títulos de propriedade, apoio à ciência e tecnologia, política de juros,

política fiscal e de investimentos, formação educacional e decisões macro-

econômicas que influenciam de forma diferenciada vários grupos sociais). O

reconhecimento do Estado enquanto um campo permanente de conflitos pela

determinação das regras que organizam o campo econômico, reforça a tese de que

tanto as relações econômicas como as condições de eficiência produtiva são

também um campo socialmente e politicamente constituído, descontruindo,

portanto, a aparente neutralidade técnica da administração econômica-financeira

atualmente dominante.

Page 227: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

227

Paradoxalmente, pode-se interrogar sobre o sentido mais amplo do termo

“autogestão”. Se a existência de tais empresas passa pelo necessário apoio

financeiro externo para se viabilizarem enquanto tais, em que medida elas podem

ser completamente autogeridas? Porém, “autogestão” deve ser aqui entendida

como a capacidade de agir face as determinações que estão impostas e ao mesmo

tempo lutar pela constante ampliação da sua capacidade de autodeterminação.

Assim como não existe a “liberdade” pura, livre de qualquer necessidade ou

constrangimento externo, a autogestão e a autonomia são conceitos que devem ser

entendidos na sua dimensão relacional. No caso dessas empresas, a autogestão é

sempre uma autogestão relativa à algo. Tal afirmação procura questionar as

proposições que afirmam como possível a existência completamente autônoma de

um empreendimento econômico, como se ele não estivesse sujeito a fatores sociais

externos e internos que lhe determinam.

Essa distinção também é importante para se confrontar a tese segundo a

qual o Estado não deveria responsabilizar-se pelo desenvolvimento

socioeconômico, pois este se daria mais adequadamente sob os auspícios do

mercado. Esse é um argumento que fundamenta algumas das ações estatais de

fomento ao “empreendedorismo” individual e coletivo, deixando pessoas e grupos

sujeitos à própria sorte e responsáveis individualmente pela sobrevivência. Nessa

perspectiva, quanto mais a sociedade estiver submetida às forças autônomas do

mercado, melhor os recursos serão distribuídos para o conjunto da sociedade. Aqui

também, paradoxalmente, a noção de “autogestão” pode ser apropriada pela idéia

de “livre” mercado e desresponsabilização pública-estatal. Tal aproximação pode

ser observada em certos momentos: quando o BNDES impõe critérios de avaliação

da performance econômica sem levar em conta as condicionantes sociais em que

as empresas de autogestão estão mergulhadas, ou quando os governos, sindicatos

e mesmo alguns movimentos populares utilizam-se das empresas autogeridas

apenas na perspectiva de “soluções” eternamente provisórias para a dissolução de

conflitos com aqueles que foram expulsos definitivamente do mercado de trabalho

formal.

Entretanto, a proposta de análise que esta dissertação coloca, percebe as

relações no mercado como uma construção social e política, de forma que a

Page 228: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

228

aparente “autonomia” do mercado face às forças sociais e políticas é, na realidade,

uma possível interpretação do mundo econômico que objetiva instituir-se como “A

Realidade” 121. Nos exemplos descritos e analisados, observou-se como o Estado

apareceu, simultaneamente, como a arena em que se deu a disputa política pela

distribuição dos recursos públicos e como o organizador-executor dos interesses

que se instituíram como dominantes.

3.2 Os limites dos critérios de avaliação do desempenho econômico

Outro ponto para a reflexão diz respeito às condições de avaliação para a

concessão de financiamento às empresas autogeridas, bem como os critérios de

avaliação dos resultados. Os técnicos do BNDES reconhecem que esses

empreendimentos possuem características próprias, entretanto, não fica claro quais

seriam os indicadores de desempenho utilizados para investigar as empresas de

trabalhadores. Tudo indica que as empresas de autogestão estariam sujeitas aos

mesmos critérios de avaliação de desempenho aplicados às empresas capitalistas

tradicionais. Na conclusão de um dos documentos do BNDES tem-se que: “a

sobrevivência das empresas de autogestão requer a sua integração às regras

impostas pelo sistema capitalista, o que traz consigo o desafio de conciliar a

atividade econômica empresarial com a concretização de formas institucionais

participativas e controladoras por parte dos trabalhadores” (Souto, Cameron &

Castro, 1997, p.16).

A presente dissertação tratou de problematizar as contradições que

decorrem, para as empresas autogeridas, nas suas várias dimensões – nas

relações de trabalho e na capacidade produtiva, na vida dos trabalhadores e na

interação desses empreendimentos com o meio institucional – da tentativa de

121 Essa interpretação inspira-se nas discussões de Castoriadis (1995) a propósito da instituição imaginária da sociedade.

Page 229: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

229

realizar exatamente o que esses autores estão propondo: a integração/adequação

dessas empresas ao sistema capitalista.

Ora, da forma como o problema está sendo analisado conclui-se que as

empresas de autogestão surgem no e pelo sistema capitalista de produção. Sua

integração a este sistema socioeconômico ocorre, porém, de forma complexa e

contraditória pois, diferentemente dos empreendimentos produtivos

tradicionalmente considerados como capitalistas, elas contêm alguns elementos

que funcionam segundo uma lógica distinta da criação e acumulação de capital

(como a gestão democrática, por exemplo).

Entretanto, nos empreendimentos capitalistas também existem relações

sociais operando (conflitos internos de poder, por exemplo) que possuem uma

racionalidade distinta da lógica do capital. Essa co-existência de racionalidades

conflitantes no interior do sistema capitalista dá margem ao questionamento da

existência de uma racionalidade capitalista monolítica que possa ser encontrada

dominando um empreendimento econômico como um todo. Numa fábrica

capitalista, assim como numa empresa de autogestão, existem diferentes

racionalidades socioeconômicas agindo ao mesmo tempo e elas são, por vezes,

conflitantes. Por exemplo, os objetivos e as necessidades do setor produtivo nem

sempre coincidem com os objetivos do setor comercial ou financeiro, o que pode

engendrar uma disputa interna pela imposição de certas condições de produção122.

Além disso, as condições de produção, as relações entre os trabalhadores, as

características internas da própria fábrica e a composição orgânica do capital estão

em relação de co-determinação com o campo econômico em que estão inseridas,

de maneira que existe uma multiplicidade de formas organizacionais

economicamente eficientes possíveis.

Portanto, talvez o único elemento estruturante, no caso de todos esses

empreendimentos produtivos (empresas capitalistas ou autogestionárias), é a

necessária criação e acumulação de um ganho econômico para que possam dar

início a uma nova etapa do processo produtivo. Entretanto, a forma como esse

122 Essa problemática foi analisada no capítulo dois desta dissertação.

Page 230: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

230

excedente se realiza varia conforme o tipo de empresa e o campo econômico em

que ela estiver inserida. Enquanto para algumas empresas é o setor produtivo que

gera, percentualmente, a maior parte do excedente, em outras a rentabilidade do

capital está concentrada no setor comercial ou financeiro. Portanto, é no mercado

atualmente existente que os diferentes agentes econômicos competem pela

obtenção de melhores condições de produção e acumulação de capital. Isso faz

com que as empresas tenham que responder às necessidades e transformações

desse mercado, fazendo com que as empresas de autogestão estejam sujeitas às

mesmas condicionantes.

Se este raciocínio for aplicado às condições de crédito impostas às

empresas de autogestão, surgirá a seguinte questão: o que pode acontecer quando

a empresa autogerida seguir todos os critérios de avaliação de desempenho

econômico propostos pela “ciência” gestionária e contábil que informa os agentes

de financiamento externo?

Primeiro, é preciso dizer que a configuração interna da empresa autogerida

(tanto do ponto de vista das relações sociais quanto da composição orgânica do

capital), bem como a configuração do campo econômico em que ela se situa, tem

efeitos determinantes e diferentes sobre o desenvolvimento das atividades de cada

empresa. Portanto, cada empreendimento reagirá de uma forma bastante diversa

face à imposição dos critérios de desempenho econômico.

Resumidamente, pode-se dizer que a avaliação de desempenho das

empresas autogeridas a partir dos critérios de gestão e contabilidade instituídos

baseia-se na interpretação que eles fazem da situação interna da empresa (relação

entre ativos e passivos, capacidade de autofinanciamento, capacitação profissional

dos trabalhadores, infraestrutura, etc..) e da sua inserção no mercado.

Entretanto, em que medida os critérios de avaliação que se originaram a

partir da técnica gestionária e contábil aplicada às empresas capitalistas

tradicionais pode se aplicar às empresas autogeridas?

É bem verdade que, numa certa medida, alguns desses instrumentos são

utilizados pelas próprias empresas autogeridas. Condição esta que se faz

necessária pela própria inserção das empresas num campo econômico mais amplo

que institui as regras de avaliação e performance econômica. Aqui, verifica-se

Page 231: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

231

também, uma nova contradição entre a natureza interna das empresas autogeridas

e a própria “ciência” gestionária e contábil.

A adequação pura e simples dos instrumentos gestionários disponíveis

impõe, na realidade, um certo tipo de organização do trabalho às empresas

autogeridas. Simultaneamente, a forma de aplicação dos excedentes obtidos pela

empresa, segundo critérios determinados pelas agências financiadoras (que

avaliam a rentabilidade do capital das empresas), também poderá colidir com os

interesses coletivos dos trabalhadores123.

Como nos explica Louchart (1995), mesmo nas empresas capitalistas existe

uma contradição entre os ganhos de produtividade aparente do trabalho124 e a

própria produtividade do capital125. Os critérios de gestão capitalista que se

tornaram dominantes surgiram conjuntamente à “ciência gestionária” fabril. Eles se

orientam pela busca cada vez maior da produtividade aparente do trabalho que, no

interior de uma empresa capitalista, se traduz pela dominação do trabalho morto

(máquina) sobre o trabalho humano, sem levar em conta as outras dimensões da

organização econômica (como os próprios trabalhadores, por exemplo) e que

também influenciam na performance global do empreendimento.

Tal decisão de metodologia “científica” representa a composição das forças

sociais de um determinado período histórico, onde a gerência técnica dispunha de

toda a força necessária para dispor livremente do fator trabalho126. Como parte

constitutiva dessa relação social de dominação (do capitalista sobre o trabalhador),

a análise de eficiência acaba sendo reduzida apenas à produtividade aparente do

123 Esse conflito ocorrerá mais fortemente nas empresas que atuam em áreas onde o aprimoramento tecnológico permanente é bastante decisivo na sobrevivência da empresa no mercado, pois nestes casos a cultura tecnológica e a composição orgânica do capital das empresas acabam tendo um peso maior nos constrangimentos que atuam sobre cada empresa individual. 124 Produtividade aparente do trabalho é a relação entre as diferenças de volume de valor agregado pelo trabalho vivo diretamente dispendido no processo de produção. 125 A produtividade do capital é aqui entendida como taxa de lucro. A produtividade aparente do capital seria a expressão da relação produção/capital, ou seja, do volume de capital agregado ao capital inicial. 126 Autores como Braverman (1974), Gorz (1982), Marglin (1980), Castoriadis (1985, 1983), entre outros, dedicaram importantes textos ao estudo da “ciência” gestionária ou a gestão técnica capitalista.

Page 232: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

232

trabalho. Consequentemente, a solução instituída para se buscar ganhos de

produtividade acabou sendo aquela que prioriza o aumento dos investimentos em

infraestrutura em detrimento do trabalho humano, pois isso torna cada trabalhador

mais produtivo, podendo assim ser economizado (ou dispensado) no momento

seguinte.

Portanto, faz sentido que a aplicação dos instrumentos tradicionais de

gestão – que surgem a partir das próprias empresas capitalistas com o objetivo de

obter ganhos de produtividade de uma forma específica – entrem em choque com

os princípios de autogestão, pois aqui o trabalho vivo (o trabalhador cooperado) não

é um fator que pode ser simplesmente “reduzido” para se obter ganhos de

produtividade, como ocorre geralmente nas empresas capitalistas.

As empresas autogeridas, ao contrário, devem se tornar eficientes

utilizando-se de outras estratégias. Elas devem desenvolver mecanismos próprios

para inovar as possibilidades de ganhos de produtividade e de rentabilidade sobre o

capital emprestado, caso contrário elas correm sérios riscos de se tornarem cativas

da racionalidade financeira. Este é um problema que irá atingir mesmo as empresas

capitalistas. Conforme analisou Louchart, a busca por ganhos de produtividade e de

rentabilidade sobre o capital investido apenas sob a lógica da redução do trabalho

humano levará as empresas capitalistas a uma crise de rentabilidade.

O crescente investimento em equipamentos que buscam apenas aumentar

a produtividade aparente do trabalho (o valor diretamente agregado por cada

trabalhador na produção) faz com que a composição orgânica do capital torne-se

cada vez mais “pesada”, pois diminui percentualmente a quantidade de capital

humano face ao capital físico investido. O capital investido se eleva e, como a mais-

valia não cresce na mesma velocidade, a taxa de lucro cai, pois ainda que o lucro

aumente em termos absolutos ele abaixa em termos relativos (em proporção ao

capital investido). Isso cria dificuldades para o próprio capital que não será mais

capaz de encontrar a rentabilidade necessária para os novos ciclos de reprodução

ampliada na esfera produtiva. Diante disso, surgem dois caminhos que são

normalmente combinados.

Buscam-se novas tecnologias que sejam mais econômicas para se

modificar a composição orgânica do capital e também para economizar o capital

Page 233: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

233

material (energia, equipamentos, etc.), objetivando recuperar a taxa de lucro. Em

uma outra possibilidade, o capital escapa da esfera da produção e transfere-se para

a esfera financeira para recuperar a sua rentabilidade (Idem, p.41). Para Louchart,

essa é uma das razões que cria um desemprego em massa mais duradouro e que

também impulsiona a acumulação crescente do capital financeiro (Idem, p.47).

O argumento central de Louchart e do grupo a que ele pertence127 é que o

próprio sistema de reprodução-acumulação de capital acaba por conduzir o sistema

produtivo a uma ineficiência produtiva crescente, pois a dominação dos critérios de

rentabilidade financeira se traduz no enfraquecimento da produtividade global do

trabalho. Nesse sentido, todos os empreendimentos produtivos, incluindo as

empresas autogeridas, sofrem de uma contradição interna que só poderia ser

superada através da criação de novos instrumentos de avaliação e obtenção de

eficiência produtiva, pois os atuais métodos acabam levando, inexoravelmente, à

submissão do setor produtivo pelo setor financeiro e a instrumentalização do

trabalho humano pela máquina.

O problema é que importantes atores do sistema econômico que definem os

financiamentos, como o Estado e as instituições financeiras, utilizam-se desses

critérios para avaliar os empreendimentos produtivos, impondo, portanto, uma

racionalidade econômica (rentabilidade financeira) que, na acepção desses autores,

é contrária à racionalidade produtiva.

Portanto, pode-se dizer que o crédito pode realizar funções contrárias no

interior do sistema econômico. Numa perspectiva ele aparece como fundamental

para o desenvolvimento industrial, pois sem ele as empresas teriam dificuldades

para introduzir novos ciclos tecnológicos, por exemplo. Para isso, as empresas

podem tanto buscar financiamento externo quanto dispor de parte do seu

patrimônio (através da venda de ações, por exemplo) para se capitalizar.

Paralelamente, as empresas sofrem com a tendência de queda da taxa de lucro (o

setor produtivo produz cada vez menos rentabilidade para o capital) e são

127 Outros autores que fazem parte desse grupo de pesquisa sobre novos critérios de gestão e de eficiência econômica e social são: Paul Boccara, Claude Quin, Marcel Lepetit, Alain Dubourg e Jean Lojkine.

Page 234: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

234

empurradas a buscar crédito continuamente com o setor financeiro, que passa a

impor os critérios de rentabilidade.

Ainda que esse problema esteja presente tanto nas empresas capitalistas

tradicionais como nas empresas autogeridas, é nestas últimas que se pode

visualizar mais claramente essa contradição, pois nelas o elemento humano não é

um recurso ou um fator de produção disponível e flexível para o uso do capital,

impondo, portanto, limites à sua capacidade de se valorizar. Isso cria uma tensão

ainda maior entre os critérios de avaliação impostos pelas agências financeiras e as

necessidades internas das empresas autogeridas.

Por essa razão, talvez essas experiências sejam impulsionadas a buscar

novas tecnologias (outras formas de pensar-fazer e de organizar o trabalho) que

possam ajudá-las a melhor lidar com o permanente conflito, racionalidade

econômica versus racionalidade democrática. Ao mesmo tempo, constata-se que

mesmo os instrumentos de avaliação produtiva e as técnicas de gestão

desenvolveram-se a partir de um certo contexto histórico, refletindo, portanto, as

relações sociais (de dominação, subordinação e consentimento) que as instituíram.

Nesse sentido, as empresas de trabalhadores autogeridas são, para usar uma

expressão de Claude Levi-Strauss, “boas para se pensar”, pois elas evidenciam a

complexidade de um problema real e a necessária transdisciplinariedade para a sua

superação.

3.3 Crédito: sistema simbólico e o espaço instituinte da política

A partir dos exemplos citados, observou-se que a disponibilidade ou não de

crédito para as empresas autogeridas depende também, ao lado de todos os

fatores que se referem à estrutura (organizacional e capital) da empresa, da

existência favorável de credores dispostos a financiá-las. Nos documentos

analisados e nos relatos registrados, verificou-se que algumas empresas não

conseguiam acesso a empréstimos em bancos, ainda que as condições financeiras

do empreendimento fossem positivas, por falta de crença na capacidade de êxito de

uma empresa de trabalhadores.

Page 235: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

235

Ora, ter crédito significa, acima de tudo, ter confiança em alguém ou em

alguma instituição. Para se obter crédito é necessário convencer os potenciais

credores de que se será capaz de honrar com as condições impostas pelo acordo.

De uma certa forma, a própria disponibilidade de crédito para alguns

empreendimentos em detrimento de outros reflete um sistema de convenções e

crenças socialmente instituídas que se orientam por um conhecimento comum que

se organiza e se constrói conjuntamente no interior deste sistema simbólico. Ou

seja, os agentes responsáveis pelas deliberações no setor bancário compartilham

de um conhecimento que lhes informa quais empreendimentos são dignos de

confiança, ou que podem retornar o investimento feito pelo banco.

Simultaneamente, a constituição de um conhecimento que interpreta a

realidade (dizendo como e a quem o financiamento deve ser destinado) reflete as

relações sociais de poder entre os agentes que configuram e instituem esse campo

comunicacional (o conjunto de convenções sociais e o conhecimento compartilhado

sobre uma realidade).

Isso permite dizer que a obtenção de crédito pelas empresas autogeridas é

fruto de uma disputa política que instala o debate, interroga e organiza não apenas

a forma de se pensar a realidade (a forma como se dá o processo econômico, por

exemplo) mas também a forma como os recursos (no caso financeiros) serão

distribuídos e acumulados pelas diferentes partes (agentes econômicos) que

compõem essa realidade social. Volta-se, novamente, ao problema central desta

dissertação: a política.

É por isso que, a existência de novas formas de produção, como as

empresas de trabalhadores autogeridas, passa necessariamente pelo campo

político que permeia diferentes “níveis de realidade”. Seja na esfera científica (no

caso da ciência econômica, da administração e do desenvolvimento tecnológico),

na financeira (disponibilidade de crédito e taxa de juros), na dimensão cultural e

psíquica (cultura de autogestão e cultura de assalariamento), na esfera legislativa

(direitos do trabalhador e da empresa autogerida), na organização sócio-técnica do

trabalho (a relação entre os homens e as máquinas), todos esses elementos são

interrogados através e pela instituição do “espaço político”. Pois, para retomar os

termos de Rancière (1996), é aí que se originam e se debatem os fundamentos que

organizam a forma de pertencimento de cada ser e de cada grupo no interior de

uma comunidade; onde se luta pelos critérios de partilha da riqueza socialmente

gerada e pelo julgamento dos fins últimos das ações sociais.

Page 236: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

236

CAPÍTULO 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

DO MOMENTO

Page 237: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

237

A complexidade real de qualquer “objeto-sujeito” da análise sociológica

poderia tornar a investigação inesgotável. Para escapar das conceituações que

protegem o pesquisador da realidade desconhecida (porque nova), a pesquisa se

processou no permanente diálogo descrição-interpretação, quase à maneira do

etnógrafo. Entretanto, os grupos aqui observados estão tão inseridos na sociedade

contemporânea quanto o pesquisador, o que torna a relação de distanciamento

uma tarefa de reflexão sobre um mundo compartilhado.

Mais do que responder a uma ou várias perguntas, procurou-se

problematizar a constituição e a emergência de empreendimentos econômicos

autogeridos no interior de um processo de transformações nas relações de

trabalho. Nesse sentido, a dissertação abordou três níveis de análise: as relações

de produção, os trabalhadores e o contexto socioeconômico em que as empresas

autogeridas estão inseridas. A decisão em ampliar de tal forma o campo de análise

deve-se ao fato de que a riqueza do “objeto-sujeito” investigado estava mais na

interconexão entre essas várias dimensões, e menos num problema particular que

pudesse ser separado dessas outras esferas.

No nível das relações de produção, discutiu-se os desafios e as

contradições que surgem nas empresas autogeridas a partir da necessária

combinação entre a busca da eficiência produtiva no mercado e as relações

solidárias e participativas no interior do empreendimento. Essa reflexão caminhou

para uma discussão dos próprios conceitos de eficiência, divisão social e divisão

técnica do trabalho, retomando, inclusive, um antigo debate com Max Weber, Karl

Marx e Rosa Luxemburg.

Em seguida, o foco deslocou-se para os trabalhadores, procurando

evidenciar as transformações e permanências sociais e culturais na passagem do

trabalho assalariado para o trabalho associativo. Temas relativos à autonomia,

subordinação, hierarquia e cultura democrática foram discutidos, privilegiando-se o

momento de choque entre a experiência prévia dos trabalhadores e a nova vivência

que estava em processo de formação. Tal encontro de práticas diferenciadas

revelou o próprio sistema de ordenamento das relações sociais anteriores,

questionando ou valorizando a legitimidade das relações sociais previamente

instituídas.

Page 238: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

238

O terceiro nível de análise discutiu a inserção das empresas autogeridas

nas relações socioeconômicas e institucionais mais amplas. Primeiramente,

problematizou-se as novas questões que surgem sobre o contrato social de

trabalho a partir da aproximação do movimento sindical das experiências de

autogestão. Em seguida, a relação dessas empresas com a legislação e o sistema

de crédito foram investigados, procurando-se evidenciar como as forças sociais e

econômicas instituem um sistema de produção e reprodução do capital, mas

também de relações sociais, que se orienta pela dissolução das possibilidades de

instituição de um espaço político democrático.

De uma forma direta ou indireta, a análise prática e teórica das contradições

vivenciadas pelas empresas autogeridas procurou abordar transversalmente os

seguintes temas.

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239

1. Economia Solidária: ação ou reação face ao desemprego?

O contexto de surgimento e expansão das empresas de autogestão é, sem

dúvida, o de uma grave crise no nível de emprego. O final da década de 90 e

começo deste novo milênio foram marcados por elevadíssimos índices de

desemprego. Segundo dados do DIEESE, apenas na cidade de São Paulo, em

maio de 2002, o número de pessoas desempregadas chegou a aproximadamente

1.8 milhões, beirando portanto 20% da população total da cidade.

Entretanto, o fato dos trabalhadores buscarem alternativas coletivas ao

desemprego indica outros fenômenos mais amplos em curso. Primeiramente,

discute-se o surgimento de uma “nova pobreza”128. Como foi descrito no primeiro

capítulo, o perfil das pessoas que estão desempregadas ampliou-se. O

desemprego não é apenas privilégio dos setores sociais historicamente mais

excluídos. Hoje ele atinge importantes setores da classe média com nível

educacional médio, e o tempo para se encontrar uma nova ocupação aumentou

significativamente. Além disso, o vínculo empregatício formal, com a crescente

generalização de relações de trabalho precárias, tornou-se para poucos. Diante

dessa situação constata-se que o leque de opções para aqueles que perdem o seu

emprego não é muito animador.

Ainda assim, seria reducionista dizer que as empresas de autogestão são

uma mera reação ao desemprego, principalmente, porque a decisão de criar um

empreendimento coletivo envolve uma vontade positiva que exige muita disposição.

Os trabalhadores, no instante em que optam conscientemente pela montagem de

uma empresa autogerida tornam-se sujeitos ativos do seu destino ao assumirem a

tarefa de gerir a produção da própria vida. Diante da “contingência” da perda do

trabalho (que nesse caso é fruto de um processo estrutural) resta-lhes agir.

Page 240: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

240

No capítulo três, discutiu-se como a opção por uma alternativa associativa

permite o início de um processo de reconstrução de identidades coletivas. Num

momento em que toda a sociedade estigmatiza o desempregado como “incapaz” ou

desnecessário, num contexto de crescente culpabilização desse trabalhador, de

forma a individualizar a sua situação de desempregado, a busca pela construção de

novas formas de pertencimento coletivo têm o valor fundamental de permitir a

esses indivíduos contextualizar e compreender a situação em que estão e de criar

laços sociais que forneçam o mínimo de suporte moral e econômico. A vivência de

uma experiência coletiva neste momento de desintegração social, pode permitir que

esses sujeitos reorganizem e resignifiquem suas vidas, podendo inclusive fomentar

a emergência de uma percepção mais crítica sobre tal processo. Quando isso

acontece, a vivência pode se transformar em experiência e o ser vitimizado pode

sair da passividade individualizante em que foi colocado e passar para a condição

de ser ativo, mesmo com todas as limitações da sua condição pessoal e do meio

social em que ele está inserido.

O fato da empresa autogerida ser fruto de uma necessidade material

imediata não significa que ela não seja portadora de outras potencialidades. Numa

certa perspectiva, a virtude desses empreendimentos solidários está na sua

capacidade de gerar renda para os seus sócios e de permitir uma vivência mais

democrática. Desse ponto de vista, as empresas autogeridas são ainda uma

resposta (talvez provisória) à situação de exclusão econômica, e não

representariam um “projeto” político de caráter contra-hegemônico.

Numa posição complementar, esta dissertação procurou evidenciar os

vários instantes em que a ordem natural da dominação é questionada pela criação

de reivindicações que instalam a política no seio mesmo das relações de produção

(capítulo dois), ou ainda, na relação entre as empresas autogeridas com outras

instituições (capítulo quatro). Portanto, se elas têm virtudes e/ou vícios econômicos,

128 Sobre a “nova pobreza” ver Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura Municipal de São Paulo. Nova e Velha Pobreza em São Paulo. Disponível em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/secretarias/trabalho/. Acesso em 27/08/2002.

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241

talvez seu maior mérito, neste momento, seja justamente a capacidade de criar e

organizar culturas de resistência contra o desmoronamento de um mundo comum.

Aqui, na medida em que essas experiências estão inseridas de forma

paradoxal no “sistema produtor de mercadorias” (cf. Kurz, 1993), a referência

“hegemônico ou contra-hegemônico”, bem como a distinção “reforma e revolução”,

tornam-se simplistas demais para dar conta da multiplicidade dos “possíveis” que

emergem a partir da ação concreta desses sujeitos. Mesmo que eles sejam

movidos pelo interesse material imediato, a sustentação de suas ações trazem

consequências não previstas que escapam aos objetivos originais do seus sujeitos.

Por exemplo, a opção de criar um empreendimento coletivo que gerasse renda

acabou passando, para muitos desses trabalhadores, por uma mediação cultural

que reordenou a vida desses indivíduos; ou ainda, o impacto que a proliferação de

empresas autogeridas gerou no meio sindical produziu novas questões que não

estavam previstas.

Se por um lado existe uma perda, um mundo que se desintegra para as

pessoas que estão desempregadas, por outro lado existe uma busca ativa que

reorganiza a subjetividade desses sujeitos, restabelecendo a sua pertença a um

coletivo. É somente através desse coletivo, através da discussão, do conflito e da

reivindicação de uma igualdade (de pertença e de partilha) que os sujeitos tornam-

se capazes de estabelecer uma alteridade no espaço público. Tal ação cria um

outro espaço sensível, em que a reivindicação do reconhecimento da existência

desses sujeitos já é, por sí só, um ato político, pois ele restaura a existência

daquela igualdade fundante. A reação face ao desemprego não cria política. Porém,

a ação de criação e produção de um novo coletivo pode (mas não

necessariamente) restabelecer o espaço da política no interior da vida cotidiana.

É neste sentido que se pode dizer que a Economia Solidária, enquanto um

conjunto de atividades econômicas orientadas por princípios de participação

democrática na gestão e na propriedade, pode restabelecer a economia na sua

dimensão social e política. Se as empresas autogeridas, cooperativas populares ou

os empreendimentos econômicos solidários ficarem limitados a práticas isoladas,

eles não serão capazes de transpor os espaços “intersticiais” (para usar uma

expressão de Paul Singer) do capitalismo contemporâneo. Nessa situação limítrofe,

Page 242: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

242

ainda que produtora de novas sociabilidades, de novos espaços políticos e de

culturas de resistência, a Economia Solidária resta fragilizada.

Falar em Economia Solidária significa restabeler o sentido político que a

palavra “solidariedade” transporta, diferente, portanto, do sentido encontrado em

muitos programas que a utilizam na roupagem de uma nova filantropia (Yazbek,

1995), ampliando a desresponsabilização pública-estatal (Paoli & Telles, 1998)

sobre os direitos sociais e as condições de exclusão socioeconômica.

Portanto, a discussão de Economia Solidária remete à noção de “processo”

e de “projeto”. A percepção da complexidade do problema e o caráter

indeterminado de toda ação social, impede qualquer diagnóstico precoce sobre os

possíveis resultados dos empreendimentos que estão se constituindo. Pode-se,

entretanto, reconhecer alguns passos fundamentais no sentido de melhorar as

condições de êxito dessas experiências. Tais condições se realizam

necessariamente no campo político, ao se questionar e lutar pela modificação das

condições de competição intercapitalista; ao se estabelecerem redes de

cooperação na produção, distribuição e consumo; pela redefinição das condições

de eficiência; pelo estabelecimento de estratégias de apoio institucional (crédito,

fiscal, ciência e tecnologia); pela definição de nova legislação e de novas

representações coletivas.

Tais estratégias econômicas só podem se realizar na e pela política. Fala-se

de “livre mercado” e de “competição em condições de igualdade” entre os

empreendimentos econômicos, mas o que significa “igualdade”? Uma vez que os

“vencedores” na disputa econômica acumulam vantagens e modificam as

condições de competição em seu favor, fazendo com que os “perdedores” tenham

cada vez menos chances de entrar no jogo, será que as regras no mercado

orientam-se apenas pelo princípio de eficiência e de livre concorrência? Foi

discutido, no capítulo dois e quatro, respectivamente, como a própria definição de

“eficiência” e a constituição do chamado “livre mercado” são também frutos de um

longo processo histórico socialmente construído.

Portanto, a disputa em torno das condições e dos sentidos dessa

“igualdade” é a própria instituição da política: “o que constitui o caráter político de

uma ação não é seu objeto ou o lugar onde é exercida, mas unicamente sua forma,

a que inscreve a averiguação da igualdade na instituição de um litígio, de uma

comunidade que existe apenas pela divisão” (Rancière, 1996, p.44).

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243

2. Autogestão no fio da navalha:

desregulamentação e a instituição da política

As empresas de trabalhadores autogeridas equilibram-se dinamicamente

numa situação limítrofe. O primeiro capítulo revelou algumas das formas correntes

de surgimento e de utilização desses empreendimentos econômicos coletivos.

Apresentou-se um amplo espectro que ia desde as chamadas “coopergatos” (falsas

cooperativas criadas para fraudar os direitos trabalhistas) até as empresas

autogeridas democráticas e de propriedade coletiva dos trabalhadores.

Analisou-se também como a forma legal “cooperativa” pode abrigar

diferentes conteúdos (como as “coopergatos”, por exemplo), e como o próprio

conceito do que seja uma cooperativa é um movediço campo de batalha, onde

diferentes grupos sociais, governos e entidades representativas de classe disputam

o seu significado.

O capítulo sobre Sindicalismo e Cooperativismo privilegiou parte dessa

discussão. O surgimento e a expansão no número de empreendimentos

econômicos autogeridos trouxe novas questões para um movimento sindical que já

vinha num processo de reestruturação face às grandes transformações que

abalaram o mundo do trabalho na última década. Para essas instituições, as

empresas autogeridas enunciaram problemas fundamentais: quem é que o

Sindicato representa? Deve-se lutar por emprego ou por trabalho? Quais as

melhores estratégias de inclusão socioeconômica e de manutenção e ampliação

dos direitos trabalhistas? Cabe ao sindicato apoiar e desenvolver empreendimentos

que geram ocupação e renda?

Verificou-se como cada uma dessas proposições carrega consigo um

universo de indeterminações, os quais constituem o fio de navalha em que esses

empreendimentos estão assentados. Se por um lado eles podem representar a

ampliação da luta organizada dos trabalhadores por novos direitos que iriam para

além do vínculo empregatício, por outro lado, discutiu-se como alguns

Page 244: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

244

empreendimentos podem corroborar para o processo de precarização desses

mesmos direitos.

Na perspectiva do trabalhador individual a situação não é menos complexa.

Principalmente porque os direitos sociais anteriormente existentes (para aqueles

que eram empregados formalmente registrados) nem sempre se realizaram

plenamente ou não eram percebidos e apropriados por esses trabalhadores na

forma de um Direito, enquanto manifestação e apreensão de um pacto social de

responsabilização pública-estatal (Telles, 1992). O segundo e terceiro capítulos,

analisaram essa temática ao descrever como nas empresas autogerias os direitos

da CLT são resignificados e como a anterior hierarquia e os seus mecanismos de

legitimação são questionados ou reafirmados em novos moldes.

Este fio da navalha manifesta-se ainda do ponto de vista das identidades

sociais desses trabalhadores e do reconhecimento formal das empresas

autogeridas. Quem são os trabalhadores das empresas autogerias: são autônomos,

são empresários, são operários, são trabalhadores associados? As reivindicações

por nova legislação, organizadas pelos grupos que representam as empresas

autogeridas, ilustram essas questões.

A situação limiar (precarização ou novos direitos) ressurge quando se

vislumbra um processo de fortalecimento do direito individual ao trabalho, sem a

correspondente responsabilidade compartilhada universalmente sobre as condições

de trabalho e de inserção socioeconômica desse trabalhador (como é o caso de um

direito social onde toda a sociedade se responsabiliza por esse trabalhador). Mas,

numa outra direção, as reivindicações desses setores emergentes, principalmente

aquelas discutidas no capítulo sobre o sindicalismo, podem indicar um campo de

conquista de novos direitos sociais para o trabalhador, que não se limitariam a

relação de emprego, tal qual constituída em muitas sociedades industriais

modernas.

Do ponto de vista das empresas autogeridas as reivindicações assumem

outra tonalidade. A percepção das dificuldades vividas face a justiça, mas também

no mercado competitivo, leva muitas dessas empresas a demandar uma legislação

que atenda as suas especificidades. Tanto na perspectiva do crédito, financiamento

e tributos, como nas questões relativas à participação em processos licitatórios ou

Page 245: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

245

na disputa concorrencial no mercado, discute-se o necessário reconhecimento de

que todas essas dimensões foram constituídas historicamente numa relação de co-

determinação com as empresas capitalistas tradicionais, as quais concentraram

vantagens através da instituição das próprias condições de competição no mercado

segundo critérios que favorecem certos tipos de empresas em detrimento de outras.

Conclui-se que, as empresas autogeridas não gozam de condições de

competição iguais às empresas capitalistas tradicionais, sendo essa desigualdade

fruto de um longo processo de lutas históricas. Dessa forma, a modificação dessas

condições coloca-se como tarefa para que as empresas autogeridas possam ter

uma inserção e colocação no mercado menos subordinada, do contrário, como

ocorre muitas vezes, elas deverão se inserir nas cadeias produtivas de grandes

empresas (através de contratos de terceirização, facção, etc.), onde as condições

de efetivação das relações democráticas no seu interior sofrem muitos

constrangimentos, pois as determinações fundamentais sobre a produção serão

sempre decididas em algum centro de controle longe do alcance dos trabalhadores.

Mesmo que as empresas autogeridas sejam de propriedade coletiva e

orientadas para a construção de relações participativas no seu interior, a forma

como ela se insere no mercado pode ser um fator de grande limitação à realização

da autogestão no seu interior. Portanto, aqui também verifica-se a necessária

articulação mais ampla para se instituir novas formas de regulamentação e apoio a

essas empresas, caso contrário, são maiores as chances de que elas sejam

apropriadas simplesmente para se flexibilizar e precarizar as relações contratuais,

para minimizar custos com a mão-de-obra e, finalmente, para desresponsabilizar o

conjunto da sociedade sobre a relação social de trabalho.

Page 246: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

246

3. As condições socias e econômicas da participação

Talvez o elemento mais interessante na discussão sobre autogestão

econômica e Economia Solidária, seja o debate sobre a aparente inevitabilidade e

univocidade da racionalidade econômica dominante. No momento em que o modelo

de competição intercapitalista e o pensamento utilitarista são tomados como

paradigmas da eficiência humana, sendo generalizados para o conjunto da vida

social, e mesmo para o nível das relações interpessoais, observa-se a construção

prática e discursiva do tipo ideal homos economicus. Felizmente, o seres humanos

são muito mais complexos, possuindo outras características que impõem claros

limites à completa objetivação e calculabilidade da vida, questionando, portanto, os

fundamento epistemológicos utilitaristas mais ortodoxos (Godbout, 2000).

Numa outra perspectiva, a forma como a propriedade coletiva e os

imperativos de participação democrática nas empresas autogeridas impactam sobre

o conjunto das relações sociais entre os trabalhadores, fomenta a reflexão sobre as

próprias condições de efetivação das relações democráticas. A partir da experiência

das empresas autogeridas, verificou-se como a distribuição da propriedade entre os

diferentes membros desse coletivo influi nas condições de participação dessas

pessoas nas discussões e deliberações sobre a gestão da própria vida. Mesmo que

a formalidade garanta a participação direta de todos os trabalhadores nos espaços

“democráticos” da empresa, pode-se concluir que a forma como a propriedade é

distribuída entre todos os trabalhadores traz resultados diferentes sobre essa

participação. Por isso é desejoso impor limites à acumulação de cotas-partes da

cooperativa por alguns poucos trabalhadores.

Simultaneamente, discutiu-se como a posição dos sujeitos dentro do

sistema de ordenamento social da empresa, faz com que certas expectativas,

responsabilidades ou mesmo o poder decisório, sejam atribuídos a uma ou outra

pessoa em função da sua localização nesse campo de forças. Isso também traz

impactos sobre as condições de participação.

Page 247: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

247

Ora, tanto a distribuição da propriedade e do excedente econômico, como o

sistema de diferenciação social entre os trabalhadores da empresa autogerida,

trazem conseqüências diversas sobre a efetivação das relações democráticas no

interior desse empreendimento. Isso permite dizer que as condições sociais e

econômicas dos partícipes de uma dada comunidade são elementos fundamentais

para a realização democrática.

Em uma direção complementar, os problemas vivenciados pelas empresas

autogeridas (os limites do seu desenvolvimento, as contradições vivenciadas pelos

trabalhadores e pelo processo produtivo, etc.) despertam questões sobre os

próprios objetivos das relações econômicas. Ao mesmo tempo em que a

autogestão instala “campos políticos” no interior das relações de produção, ela

pode questionar os objetivos finais da produção (produzir o que e para quem?),

recolocando, portanto, as relações econômicas como parte integrante da vida

social.

A história do capitalismo poderia ser narrada através da crescente

mercantilização da vida, expressa nas diferentes formas de objetivação e

valorização humana e da natureza. Porém, esse processo de mercantilização é

também expressão de determinadas relações sociais. O próprio valor do capital e a

sua crescente valorização, nascem a partir de relações sociais, entretanto, a

aparente autonomização da esfera econômica acaba obscurecendo essa origem

que lhe sustenta. A ciência econômica, e muitas vezes a própria sociologia, constrói

uma realidade interpretativa do mundo (descrevendo como os fenômenos humanos

ocorrem e se organizam) que pode se instituir como a “realidade”. Nesse processo,

perde-se de vista a capacidade de reflexão crítica sobre o processo de construção

social de um universo elaborado pela própria ciência129. Isso ocorre, em parte,

porque um determinado modelo interpretativo do mundo consegue instituir-se como

dominante, destruindo e silenciando as vozes que “enxergavam” outras realidades

129 Fourquet (1997) descreveu a mesma problemática citando uma pergunta radical de Alain Caillé: “les sciences sociales ne découpent-elles pas la réalité sociale en tranches pour des raisons méthodologiques qui, em se faisant oublier comme telles et em s´hypostasiant,

Page 248: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

248

possíveis. Tornar-se dominante significa dizer, neste caso, que conquista-se e

institui-se uma realidade tal qual concebida. Teoria, prática e relações de poder,

formam-se e instituem-se continuamente.

Portanto, o ponto de vista aqui proposto toma a economia como um

conjunto de relações socialmente instituídas, e será, finalmente, a ação política, que

permite que essa condição social da economia seja atualizada.

Enquanto a racionalidade econômica, expressa através dos mecanismos de

gestão ou da técnica administrativa, for capaz de negar os componentes sociais

que a sustentam, ela será capaz de destruir as possibilidades de construção

democrática. Os momentos de criação democrática são exatamente os instantes

onde os objetivos que orientam essa racionalidade econômica são questionados

em nome da reivindicação da existência de grupos sociais que não são “contados”

(como se não existissem) como parte da comunidade em que produzem e estão

inseridos.

tendent à faire passer les distinctions opérées par l´esprit pour des distinctions présentes dans la réalité même? “ (p.85).

Page 249: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

249

4. Gestão e Política: o encontro de duas lógicas conflitantes

A empresa de autogestão se revelou um objeto empírico de pesquisa

privilegiado para se observar de forma clara o conflito de duas lógicas de ação

social que funcionam segundo princípios distintos. O princípio democrático que

orienta e caracteriza o empreendimento autogerido é um elemento do mundo

político, da esfera da liberdade, que introduz uma descontinuidade na ordem

gestionária, que faz parte da esfera da necessidade. A gestão, neste caso, refere-

se à racionalidade econômica que orientará a organização de todo o processo

produtivo. Dado um fim (gerar um excedente econômico da forma mais eficiente

possível) busca-se os melhores meios para atingi-lo. O princípio democrático, por

sua vez, diz respeito não apenas à escolha dos fins, mas também ao julgamento

dos procedimento adotados para se chegar aos objetivos.

Do ponto de vista econômico capitalista, a introdução de tais critérios no

interior das relações de produção, pode representar um desordenamento dos

instrumentos de controle e calculabilidade exigidos pelo imperativo da maximização

do lucro. Este último, é um fim que não se questiona, e para obtê-lo a gestão

técnica será responsável por identificar a melhor estratégia. Acontece que, nas

empresas autogeridas existe um clara limitação aos imperativos do capital. Tanto

as relações democráticas como os limites colocados à livre disposição da mão-de-

obra (os trabalhadores não podem ser simplesmente demitidos) impõem restrições

às possibilidades de valorização do capital. Aqui, é preciso se buscar outras formas

de gerar o excedente econômico e de respeitar as exigências de participação

democrática, do contrário elas deixam de ser empresas autogeridas.

Boa parte da presente dissertação procurou analisar os dilemas e as

contradições que emergem na tentativa de conciliar essas duas lógicas conflitantes:

racionalidade democrática e a racionalidade econômica. A partir dessa dicotomia

fundante, analisou-se diferentes perspectivas que formam essa complexa aporia.

Page 250: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

250

Primeiramente, o princípio de autogestão introduzido no interior das

relações de produção questiona e desnaturaliza os sistemas de legitimação das

relações de dominação e subordinação anteriormente instituídos pela relação

assalariada. O que antes era simplesmente divisão técnica do trabalho tornou-se

divisão sócio-técnica, porque ficou evidente os inúmeros componente sociais que

permeavam a própria divisão de tarefas. O que era simples técnica e, portanto,

neutra do ponto de vista do julgamento dos fins, revelou-se portadora de uma

intencionalidade que reflete as relações de poder entre os grupos que a instituíram.

Poder-se-ia falar em “neutralidade técnica” apenas se os meios e os fins de uma

determinada ação pudessem ser completamente dissociados (Murphy, 1993).

Entretanto, a escolha de se produzir determinada mercadoria eficientemente

(minimizando custos e maximizando ganhos) com uma máquina que divide o

processo de produção em várias etapas que serão realizadas por homens e

mulheres, e a maneira como cada um deles será alocado conforme as tarefas a

serem realizadas, terá influência no resultado de quem será o beneficiário dos

ganhos obtidos conforme a disposição dessa mão-de-obra. Neste exemplo, a

escolha dos meios tem um efeito direto sobre a própria finalidade da produção

(obtenção de ganhos econômicos).

A percepção de que apenas em raros momentos, meios e fins podem ser

separados e analisados de forma independente, tem profundas conseqüências do

ponto de vista reflexivo. Aquela dicotomia descrita acima (racionalidade econômica

e racionalidade democrática) torna-se ainda mais complexa. Na realidade, elas

deixam de ser um simples par de oposição para se integrarem em relação de co-

determinação no interior da própria reprodução da vida.

A observação desses conflitos no interior das empresas de autogestão,

evidencia que os momentos da Gestão não podem ser dissociados dos momentos

“Políticos”. Negar tal relação de co-determinação seria obscurecer os componentes

sociais e políticos que permeiam todas as relações de produção. Se para alguns

autores a combinação de tais elementos gera ineficiências, isso ocorre apenas do

ponto de vista do modelo ideal de maximização da racionalidade econômica

capitalista (ver a discussão dedicada a Max Weber, capítulo 2). A partir de outra

Page 251: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

251

definição do que se entende por “eficiência”, tal combinação poderia ser criadora de

novas capacidades econômicas.

Nas empresas capitalistas tradicionais esse conflito de racionalidades

também se manifesta. Entretanto, a propriedade privada do capital e a gestão

centralizada são suficientemente fortes para silenciar as possibilidades de

constituição de um campo político no interior das relações de produção. Ainda que

nelas a divisão técnica do trabalho seja também o reflexo de relações de poder

mais amplas, nas empresas capitalistas tradicionais as condições de

questionamento e crítica face às relações de dominação não estão postas da

mesma forma.

As empresas autogeridas, por sua vez, instituem uma igualdade

fundamental (da propriedade, da participação e da fala) que pode criar, em alguns

momentos, um campo político no seu interior. O espaço público instituído vem

questionar e renovar as relações de poder no interior dessa comunidade, que se

torna, nesse momento, “comunidade política”. Reconhece-se, portanto, a existência

de condicionantes sociais nas relações de produção (tal qual encontradas nas

empresas capitalistas tradicionais) e discute-se a sua legitimidade. É a lógica

democrática que se manifesta e interroga a lógica gestionária.

As ineficiências que podem daí emergir são, na realidade, fruto do conflito

entre essas novas relações de produção e a racionalidade econômica dominante,

que impõem um padrão de eficiência. Afinal, o que entra na calculabilidade do

capital, os elementos que são passíveis de serem contados como custos ou

ganhos, aquilo que é objetivado e medido já é, por si só, fruto de uma luta histórica.

Tanto o valor da hora trabalhada, como a interiorização dos custos ambientais são

exemplos dessa indeterminação.

A lógica gestionária se realiza através da destruição da lógica democrática.

Ela precisa eliminar as possibilidades de constituição desta, pois a democracia

atualiza o debate sobre as finalidades da própria lógica gestionária. É por isso que,

parte da sociologia do trabalho e da sociologia industrial, tendem a separar o

âmbito do trabalho do reino da liberdade. O trabalho remete a esfera da

necessidade, estando portanto em oposição ao mundo da liberdade. Nessa

perspectiva, o ser humano se aliena no trabalho mas pode encontrar a sua

Page 252: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

252

redenção (a liberdade) no não-trabalho. Aqui, não é possível pensar na constituição

de espaços públicos e nem conceber a ação política no interior das relações de

produção, pois elas são território da lógica gestionária (mesmo as noções de

tempo-espaço de cada uma dessas racionalidades aparecem, nesses estudos, de

forma bastante rígida).

Na contramão dessas teorias, a presente dissertação procurou analisar,

através de vários exemplos encontrados nas empresas autogeridas, que a lógica

gestionária nunca está dissociada dos elementos sociais e políticos que a

instituíram. Se por um lado, esses empreendimentos reconhecem esse conflito, por

outro, eles tentam combinar, ainda que de forma contraditória, os dois termos dessa

equação. É dessa combinação impossível que nasce a ação política. A

autogestão se realiza no momento em que ela permite que uma igualdade

fundamental se atualize (a igualdade de participação e deliberação), questionando,

no caso dessas empresas, tanto a finalidade da produção como as formas de

partillha e de pertencimento no interior desse coletivo.

Aqui se encontra, justamente, uma das importâncias fundamentais de tais

experiências sociais: problematizar a rígida separação entre meios e fins, liberdade

e necessidade, racionalidade econômica e racionalidade democrática. Entretanto, a

incapacidade de apaziguar os conflitos entre os extremos reside menos nas

diferenças entre as lógicas internas de cada uma dessas esferas e mais na força

que essa separação histórica conseguiu instituir de forma dominante em toda a

sociedade. É desse desencontro que nascem muitos dos problemas descritos

através das empresas autogeridas. Ao invés do trabalho como necessidade para a

libertação futura, a autogestão propõe desde já a luta pela constituição de ações

políticas, e portanto de espaços de liberdade, no interior das relações de produção

necessárias.

Page 253: Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas

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