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LIBERDADE RELIGIOSA: UMA QUESTÃO DE TOLERÂNCIA OU RESPEITO?* RELIGIOUS LIBERTY: A MATTER OF TOLERANCE OR RESPECT? Maria Costa Neves Machado* Resumo: Neste artigo são examinadas duas possíveis abordagens filosóficas que ordenamentos jurídicos de democracias liberais podem adotar quando se trata de solucionar problemas jurídicos envolvendo questões religiosas: a tolerância ou o respeito. Assim, na primeira parte é realizada uma análise crítica sobre a diferença entre o princípio da tolerância e o do respeito no que se refere ao tratamento legal de questões de consciência. A seguir, a regulamentação da liberdade religiosa no ordenamento jurídico brasileiro é examinada com a finalidade de verificar qual desses dois princípios é adotado. Finalmente, conclui-se que o ordenamento jurídico brasileiro adota o princípio do respeito pela faculdade dos indivíduos de buscarem a finalidade última da vida, sendo o Estado obrigado a fornecer condições adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade autonomamente, de modo que todos os indivíduos entrem no espaço público em condições iguais. Palavras-Chave: Liberdade religiosa. Liberdade de culto. Tolerância. Respeito. Acomodação. Abstract: This paper analyzes two different philosophical approaches that legal systems of liberal democracies can adopt in order to address problems related to religious matters: tolerance and respect. Thus, in thefirstpart of this paper, the conceptual difference between the tolerance principie and the respect principie conceming legal issues involving conscience matters is examined. Then, the mies conceming religious liberty in the Brazilian legal system are analyzed for the purpose of verifying which of these two principies is adopted. Finally, this article concludes that the Brazilian legal system adopts the principie of respect for the faculty to search for the ultimate end of life and that the State has the duty to provide adequate conditions for individuais to autonomously exercise such faculty, so that ali citizens can participate in the public sphere on equal conditions. Keywords: Religious liberty. Freedom of worship. Toleration; Respect. Accommodation. Este artigo, com pequenas modificações, foi apresentado em junho de 2009 para conclusão de The law andphilosophy workshop: toleration and religious liberty (set./2008-mai./2009), coordenado por Martha Nussbaum e Brian Leiter, na University of Chicago Law School. Advogada, mestra em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (2008) e mestra em Direito (LL.M.) pela University of Chicago Law School (2009). Email: [email protected]. R. Fac. Dir. Univ. SP v. 105 p. 743 - 765 jan./dez. 2010

LIBERDADE RELIGIOSA: UMA QUESTÃO DE TOLERÂNCIA OU …

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LIBERDADE RELIGIOSA UMA QUESTAtildeO DE TOLERAcircNCIA OU

RESPEITO

RELIGIOUS LIBERTY A M A T T E R OF T O L E R A N C E O R RESPECT

Maria Costa Neves Machado

Resumo Neste artigo satildeo examinadas duas possiacuteveis abordagens filosoacuteficas que ordenamentos juriacutedicos de democracias liberais podem adotar quando se trata de solucionar problemas juriacutedicos envolvendo questotildees religiosas a toleracircncia ou o respeito Assim na primeira parte eacute realizada u m a anaacutelise criacutetica sobre a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia e o do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de consciecircncia A seguir a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico brasileiro eacute examinada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscarem a finalidade uacuteltima da vida sendo o Estado obrigado a fornecer condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade autonomamente de modo que todos os indiviacuteduos entrem no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Palavras-Chave Liberdade religiosa Liberdade de culto Toleracircncia Respeito Acomodaccedilatildeo

Abstract This paper analyzes two different philosophical approaches that legal systems of liberal democracies can adopt in order to address problems related to religious matters tolerance and respect Thus in the first part of this paper the conceptual difference between the tolerance principie and the respect principie conceming legal issues involving conscience matters is examined Then the mies conceming religious liberty in the Brazilian legal system are analyzed for the purpose of verifying which of these two principies is adopted Finally this article concludes that the Brazilian legal system adopts the principie of respect for the faculty to search for the ultimate end of life and that the State has the duty to provide adequate conditions for individuais to autonomously exercise such faculty so that ali citizens can participate in the public sphere on equal conditions

Keywords Religious liberty Freedom of worship Toleration Respect Accommodation

Este artigo com pequenas modificaccedilotildees foi apresentado em junho de 2009 para conclusatildeo de The law andphilosophy workshop toleration and religious liberty (set2008-mai2009) coordenado por Martha Nussbaum e Brian Leiter na University of Chicago Law School Advogada mestra em Direitos Humanos pela Universidade de Satildeo Paulo (2008) e mestra em Direito (LLM) pela University of Chicago Law School (2009) Email mariacnmachadouspbr

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744 Maria Costa Neves Machado

1 Introduccedilatildeo

Haacute duas possiacuteveis abordagens que sistemas juriacutedicos de democracias liberais

podem adotar quando se trata de solucionar problemas juriacutedicos envolvendo questotildees

religiosas a toleracircncia ou o respeito Enquanto alguns autores argumentam que para lidar

c o m questotildees religiosas se deve aplicar o princiacutepio da toleracircncia1 outros sustentam que

este natildeo eacute suficiente para garantir a dignidade humana e que se faz necessaacuterio respeitar as

crenccedilas e praacuteticas religiosas dos indiviacuteduos2

Inicialmente para examinar essa questatildeo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o do respeito eacute criticamente analisada (item 2) Posteriormente o ordenamento

juriacutedico brasileiro eacute estudado com a finalidade de verificar se as leis brasileiras estatildeo de

acordo com o princiacutepio do respeito ou da toleracircncia quando se trata de questotildees envolvendo

liberdade religiosa (item 3) Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro

adota o princiacutepio do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscarem a finalidade

uacuteltima da vida (item 4)

2 Toleracircncia ou respeito

Para comparar os dois princiacutepios que podem orientar a soluccedilatildeo de conflitos

juriacutedicos envolvendo questotildees religiosas e m democracias liberais eacute importante definir de

u m lado o conceito de toleracircncia e de outro o de respeito

D e acordo com Brian Leiter eacute possiacutevel falar e m u m genuiacuteno princiacutepio de

toleracircncia

quando u m grupo (denominado grupo dominante) desaprova ativamente o que outro grupo (denominado grupo desfavorecido) acredita ou pratica quando o grupo dominante possui agrave sua disposiccedilatildeo os meios para de forma eficaz e confiante alterar ou acabar com as crenccedilas ou praacuteticas do grupo desfavorecido e ainda assim o grupo dominante reconhece que existem razotildees morais ou epistemoloacutegicos (ou seja razotildees pertencentes ao conhecimento ou agrave verdade) para permitir que o gmpo desfavorecido continue com suas crenccedilas ou praacuteticas (LEITER 2009 p 6)3

Cf por exemplo R A Z Joseph Autonomy toleration and the harm principie In GAVISON Ruth (Ed) Contemporary legalphilosophy the influence of H L A Hart com permissatildeo da Oxford University Press Brian Leiter Why tolerate religion manuscrito natildeo publicado pelo autor Simon Blackburn Religion and respect manuscrito natildeo publicado pelo autor Leslie Green On being tolerated University of Oxford Faculty of Law Legal Studies Research Paper Series Working Paper No 142008 entre outros Cf por exemplo BIELEFELDT Heiner Filosofia dos direitos humanos fundamentos de u m ethos de liberdade universal Satildeo Leopoldo Unisinos 2000 e N U S S B A U M Martha C Liberty of Conscience In D E F E N S E of Americas Tradition of Religious Equality N e w York Basic Books 2008 entre outros Traduccedilatildeo livre da autora where one group (call it the dominant group) actively disapproves of what

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 745

Neste sentido o autor apresenta trecircs argumentos para a toleracircncia de opiniotildees

e praacuteticas religiosas os quais estatildeo divididos e m duas grandes classes argumentos morais

e epistemoloacutegicos

O primeiro argumento moral examinado eacute deontoloacutegico ilustrado pelo

pensamento de John Rawls de acordo com o qual a toleracircncia eacute uma consequumlecircncia do

princiacutepio da igual liberdade de consciecircncia (cf LEITER 2009 7-8) O segundo argumento

moral analisado eacute consistente com a tradiccedilatildeo utilitarista D e acordo com este argumento

a toleracircncia eacute necessaacuteria para maximizar o bem estar humano que resultaria da garantia

de u m espaccedilo privado onde os indiviacuteduos poderiam livremente decidir o que acreditar e

como viver (LEITER 2009 9)

Adicionalmente aos argumentos morais Leiter apresenta baseado nas

ideacuteias de John Stuart Mill argumentos epistemoloacutegicos para a toleracircncia E m termos

gerais estes argumentos focam na importacircncia da toleracircncia para o conhecimento e para

a descoberta da verdade As principais suposiccedilotildees desses argumentos satildeo que a verdade

contribui agrave valiosa finalidade moral da utilidade e que a toleracircncia de crenccedilas e praacuteticas

divergentes contribui para o conhecimento da verdade (LEITER 2009 IO)4

Leiter conclui - apoacutes examinar se a religiatildeo eacute especial do ponto de vista do

princiacutepio da toleracircncia (cf Leiter 2009 14-26) - que os argumentos mencionados acima

para a toleracircncia justificam a proteccedilatildeo legal da liberdade de consciecircncia que abrange a

toleracircncia de crenccedilas religiosas Entretanto o autor entende que natildeo haacute nenhuma razatildeo

moral para destacar questotildees religiotildees das demais questotildees de consciecircncia a fim de lhe dar

proteccedilatildeo legal especial (cf LEITER 2009 32)

D e acordo com Joseph Raz haacute u m argumento para a toleracircncia que decorre

da suposiccedilatildeo - que ele natildeo aceita - que para os governos respeitarem a autonomia

individual esses natildeo devem adotar nenhuma concepccedilatildeo sobre a vida boa Neste sentido

o respeito pela autonomia dos indiviacuteduos requereria u m princiacutepio de toleracircncia que exige

a exclusatildeo de ideais da poliacutetica E m outras palavras a toleracircncia e m estados liberais

requereria o anti-perfectionismo (cf R A Z 1987 155-156) Entretanto o autor entende

que o princiacutepio da toleracircncia baseado na autonomia individual fornece a fundaccedilatildeo moral

another group (call it the disfavored group) believes or does where that dominant group has the means at its disposal to effectively and reliably change or end the disfavored groups believes or practices and yet still the dominant group acknowledges that there are moral or epistemic reasons (that is reasons pertaining to knowledge or truth) to permit the disfavored group to keep on believing and doing what it does A esse respeito Celso Lafer com base no pensamento de Norberto Bobb io entende que a toleracircncia pode ser sustentanda tanto pelo criteacuterio eacutetico do respeito pela singularidade do Outro quanto pela avaliaccedilatildeo epistemoloacutegica de qual a verdade natildeo eacute una mas tem muacuteltiplas faces (LAFER 2007) Para entender a visatildeo de Bobbio sobre a toleracircncia vide B O B B I O Norberto Toleracircncia e verdade Elogio da serenidade e outros escritos morais Traduccedilatildeo de Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo UNESP 2002 p 149-155

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para o princiacutepio do dano - que eacute considerado a uacutenica base para o uso de poder coercitivo

pela lei - natildeo para o anti-perfectionismo

Raz argumenta que u m compromisso c o m a autonomia envolve o

compromisso com o pluralismo moral ( R A Z 1987 157)5 que de acordo com o autor

deve ser compreendido como a visatildeo de que haacute vaacuterias formas e vaacuterios estilos de vida

que exemplificam virtudes diferentes e que satildeo incompatiacuteveis ( R A Z 1987 159)6 Ele

sustenta que

o pluralismo moral competitivo do tipo que eacute necessaacuterio para o respeito pela autonomia gera conflitos entre pessoas que buscam valiosas mas incompatiacuteveis formas de vida Dada a necessidade de tomar disponiacuteveis tais formas de vida a fim de garantir a autonomia faz-se necessaacuterio restringir as accedilotildees e as atitudes das pessoas em tais conflitos por meio do princiacutepio da toleracircncia O dever de tolerar eacute u m aspecto do dever de respeito pela autonomia (RAZ 1987 165)7

Assim de acordo com Raz a fim de respeitar a autonomia individual eacute

necessaacuterio adotar u m princiacutepio de toleracircncia que consista na

restriccedilatildeo de uma atividade provavelmente indesejaacutevel ao seu receptor ou de uma inclinaccedilatildeo de assim agir que eacute em si mesma moralmente valiosa e que eacute baseada em um desagrado ou em u m antagonismo dessa pessoa ou de uma caracteriacutestica de sua vida refletindo u m julgamento de que esses representam limitaccedilotildees ou deficiecircncias no outro com a finalidade de deixar que o outro tenha sua maneira ou para que ele ganhe ou mantenha alguma vantagem (Como indicado a mim por P M S O Hacker a compaixatildeo eacute agraves vezes u m exemplo especial de toleracircncia U m indiviacuteduo pode tolerar a partir da compaixatildeo) (RAZ 1987 163)89

Traduccedilatildeo livre da autora a commitment to autonomy entails commitment to moral pluralism Traduccedilatildeo livre da autora there are various forms and styles of life which exemplify different virtues and which are incompatible Traduccedilatildeo livre da autora competitive moral pluralism ofthe kind which is required by respect for autonomy generates conflicts between people pursuing valuable but incompatible forms of life Given the necessity to make those forms of life available in order to secure autonomy there is a need to curb peoples actions and their attitudes in those conflicts by principies of toleration The duty of toleration is an aspect ofthe duty of respect for autonomy Traduccedilatildeo livre da autora the curbing of an activity likely to be unwelcome to its recipient or of an inclination so to act which is in itself morally valuable and which is based on a dislike or an antagonism of that person or of a feature of his life reflecting a judgment that these represent limitations or deficiencies in him in order to let that person have his way or in order for him to gain or keep some advantage (As pointed out to m e by P M S Hacker mercy is sometimes a special case of toleration One can tolerate out of mercy) Nesse sentido Raz argumenta que a [t]oleracircncia implica na supressatildeo ou na contenccedilatildeo de uma inclinaccedilatildeo ou desejo de perseguir molestar causar dano ou reagir de uma maneira indesejada a uma pessoa (RAZ 1987 162) (traduccedilatildeo livre da autora [tjoleration implies the suppression or containment of an inclination or desire to persecute harass harm or react in an unwelcome way to a person)

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 141

Tambeacutem sustentando a abordagem da toleracircncia - em oposiccedilatildeo agrave abordagem

do respeito - Simon Blackburn argumenta que natildeo haacute nenhuma razatildeo para que algueacutem

respeite u m sistema de crenccedilas que esta pessoa natildeo compartilhe (cf B L A C K B U R N 2009

1) Ele entende que a palavra respeito pode significar a simples ausecircncia de interferecircncia

mas que tambeacutem pode significar admiraccedilatildeo reverecircncia ou deferecircncia (cf B L A C K B U R N

2009 2) De acordo com estes niacuteveis o autor afirma que as pessoas podem respeitar

outras pessoas que possuam crenccedilas falsas ou irracionais somente num sentido miacutenimo de

toleracircncia10 U m a vez que noacutes reconhecemos aquelas crenccedilas como falsas ou irracionais

natildeo eacute possiacutevel respeitaacute-las pelo menos natildeo como decorrecircncia do fato de que algueacutem

acredita nelas (cf B L A C K B U R N 2009 3 e 7) E m conformidade com Blackburn

acreditar numa crenccedila falsa natildeo concede a ningueacutem o direito ao respeito Na medida em que eu natildeo posso compartilhar de sua crenccedila eu natildeo tenho nenhuma razatildeo para respeitaacute-lo por acreditar nela - pelo contraacuterio na verdade (BLACKBURN 2009 16)

O autor argumenta que eacute inconsistente com qualquer concepccedilatildeo apropriada

de crenccedila - a qual implica que haacute u m contraste entre certo e errado - pensar que essa eacute

uma questatildeo exclusivamente pessoal e que qualquer crenccedila eacute tatildeo boa quanto qualquer

outra N a verdade ele nega que crenccedilas estejam livres de controle normativo e que a

desigualdade entre crenccedilas seja uma violaccedilatildeo de direitos de uma pessoa Para ele ningueacutem

por u m momento acredita nesta igualdade promiacutescua de crenccedilas na vida quotidiana

( B L A C K B U R N 2009 3)12

Parece que Blackburn estaacute criticando uma concepccedilatildeo de respeito para

crenccedilas religiosas que signifique a admiraccedilatildeo de todas as crenccedilas apenas porque elas

satildeo detidas por uma pessoa Entretanto o respeito requerido pela liberdade religiosa natildeo

corresponde a u m sentimento de admiraccedilatildeo pelas crenccedilas e praacuteticas religiosas especiacuteficas

as quais noacutes podemos natildeo compartilhar mas a u m respeito pela capacidade potencial de

todos os seres humanos de fazerem escolhas autonomamente conforme seraacute demonstrado

pela abordagem de Martha Nussbaum

O problema fundamental com o princiacutepio da toleracircncia eacute que este deixa

o tolerado desconfortaacutevel em pelo menos trecircs maneiras (cf G R E E N 2008 4-8) C o m o

demonstrado por Leslie Green a toleracircncia eacute limitada e m seu escopo eacute incompleta e

10 Para o autor existe tambeacutem uma graduaccedilatildeo de respeito referente a pessoas que possuem crenccedilas falsas no sentido de que respeitamos mais algumas pessoas das quais discordamos do que outras (cf B L A C K B U R N 2009 6)

11 Traduccedilatildeo livre da autora holding a false belief does not give anyone a title to respect Insofar as I cannot share your belief I have no reason to respect you for holding it - quite the reverse in fact

12 Traduccedilatildeo livre da autora nobody for a moment believes in this promiscuous equality of belief in everyday life

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parcial e pode ser considera principalmente c o m o questatildeo de descriminalizaccedilatildeo de

condutas1314 M a s natildeo somente o escopo do princiacutepio da toleracircncia pode estar errado

seus fundamentos tambeacutem podem u m princiacutepio de toleracircncia pode ser adotado por razotildees

morais suspeitas15 Aleacutem disso se u m princiacutepio de toleracircncia for sustentado da maneira

errada - aqueles que toleram deixam claro que prefeririam natildeo ser tolerantes - aqueles

que satildeo tolerados podem tambeacutem sentir-se desconfortaacuteveis ( G R E E N 2008 6-7)16

Entretanto m e s m o que u m sistema legal pudesse construir u m princiacutepio de

toleracircncia que superasse as falhas mencionadas acima aqueles que satildeo tolerados ainda se

sentiriam desconfortaacuteveis porque seria sempre melhor se natildeo tivessem que ser tolerados

e sujeitados ao poder de toleracircncia de outra pessoa ( G R E E N 2008 6-7)n Nesse sentido

Green sustenta que

Quem quer viver da graccedila e do favor dos poderosos Isto eacute especialmente verdadeiro quando tolerados natildeo tecircm nenhum poder similar sobre seus toleradores A esse respeito a toleracircncia compartilha algo com outras relaccedilotildees desejaacuteveis mas assimeacutetricas como oferecer misericoacuterdia ou sentir piedade que pode tambeacutem ser incocircmoda para seus

13 E m relaccedilatildeo agrave toleracircncia de minorias sexuais Leslie Green ressalta que exceto pela descriminalizaccedilatildeo

haacute pouca evidecircncia que a natildeo-conformidade sexual seja amplamente tolerada nos Estados Unidos onde

eleiccedilotildees ainda podem ser perdidas ou ganhas dependendo da questatildeo a respeito do que fazer sobre gays e

onde e m aacutereas como direito do trabalho e de famiacutelia minorias sexuais continuam a vivenciar tratamento

duro atualmente raro em democracias liberais (GREEN 2008 5) (traduccedilatildeo livre da autora apart from

decriminalization there is slim evidence that sexual non-conformity is widely tolerated in the United States

where elections can still be won or lost on the issue of what to do about the gays and where in aacutereas from

employment to family law sexual minorities continue to experience harsh treatment now rare in liberal

democracies) 14 Natildeo obstante o autor alerta que a descriminalizaccedilatildeo de condutas pode natildeo resultar da adoccedilatildeo de u m princiacutepio

de toleracircncia - faz-se necessaacuterio examinar as razotildees pelas quais determinada conduta foi descriminalizada

(cf G R E E N 2008 5) 15 Por exemplo o autor afirma que seria preocupante se u m governo tolerasse o ato de fumar porque seus

atuaacuterios descobriram que fumantes morrem mais cedo o suficiente para aumentar o saldo liacutequido da

previdecircncia (traduccedilatildeo livre da autora) Ademais ele menciona que se a homossexualidade eacute tolerada

somente porque e na medida e m que existem outras condutas mais seriamente erradas para reprimir gays

americanos justamente sentiriam u m mal-estar (cf G R E E N 2008 6) (traduccedilatildeo livre da autora) 16 Identificando tambeacutem os problemas decorrentes do princiacutepio da toleracircncia Miguel Reale Juacutenior (2008

176) com base nas ideacuteias de Javier Lucas afirma que a retoacuterica da toleracircncia natildeo acolhe a criaccedilatildeo de uma

cultura fruto do diaacutelogo intercultural e ignora os problemas de inclusatildeo do diferente para se estabelecer a

igualdade na diversidade Nesse sentido Reale Juacutenior defende que o conceito liberal de toleracircncia deve

ser complementado com o conceito social de solidariedade destacando que solidariedade significa natildeo

apenas aceitaccedilatildeo da diferenccedila mas como realccedila Judith Martins-Costa uma aceitaccedilatildeo qualificada de cunho

normativo pela qual se admite que o diferente pode receber maior tutela ou tutela especiacutefica que atenda agrave

sua diferenccedila concreta como membro da comunidade ( R E A L E JUacuteNIOR 2008 176-177) 17 E m 1791 Thomas Paine notou que toleracircncia natildeo eacute o oposto de intoleracircncia mas a sua imitaccedilatildeo Ambos

satildeo despotismos U m assume para si o direito de reter a liberdade de consciecircncia e o outro de concedecirc-la

(paine 1791) Madison tambeacutem chamou a atenccedilatildeo das pessoas para o fato de que a palavra toleracircncia era

muito relutante sugerindo benevolecircncia legislativa ao inveacutes de direito ( N U S S B A U M 2008 90) (traduccedilatildeo livre da autora)

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 749

receptores E quando noacutes consideramos as pessoas natildeo como mocircnadas mas como membros de grupos minoritaacuterios entatildeo o fato da toleracircncia pode ser um lembrete infeliz da distribuiccedilatildeo de poder social (GREEN 2008 IO)18

Assim o princiacutepio da toleracircncia reflete tambeacutem a diferenccedila de poder entre

tolerados e toleradores E isto causa mais u m a vez desconforto nos tolerados no sentido

de que estes precisam contar com a benevolecircncia dos poderosos quando o poder eacute exercido

e quando a conduta do tolerado eacute julgada pelos poderosos (cf G R E E N 2008 8-12)

Green entende que entre as trecircs maneiras que geralmente satildeo chamadas

para complementar o princiacutepio da toleracircncia quais sejam aceitaccedilatildeo19 reconhecimento20

e compreensatildeo21 a uacuteltima eacute a adequada O autor assinala que u m a melhor compreensatildeo

pode ampliar a toleracircncia pode fazer com que as pessoas tenham menos m aacute vontade

pode mudar a disposiccedilatildeo para a toleracircncia incentivando pessoas a revisitar julgamentos

e pode tambeacutem ser u m a boa maneira de evitar razotildees erradas para a toleracircncia Essa

complementaccedilatildeo pode deixar aqueles que satildeo tolerados mais confortaacuteveis porque eles

sabem que os toleradores estatildeo fazendo esforccedilos de boa-feacute para compreender C o m o

consequumlecircncia os tolerados sentem que satildeo considerados como parte da convivecircncia

humana (cf G R E E N 2008 21) Green conclui que

Compreender o que a conduta reprovada significa para o agente e como se encaixa em uma vida humana pode fazer-nos revisitar e agraves vezes revisar aquele julgamento Pode complementar a toleracircncia pode tomar-nos toleradores melhores especialmente quando nos daacute uma ideacuteia do que eacute estar na extremidade afiada de uma vareta Esse tipo da compreensatildeo deixa espaccedilo para discordacircncias em torno de valores e deixa espaccedilo para correccedilatildeo de erros Natildeo

18 Traduccedilatildeo livre da autora W h o wants to live by grace and favor ofthe powerful This is especially true when the tolerated have no similar power over their tolerators In this respect toleration shares something with other desirable but asymmetric relations like offering mercy or taking pity which can also be uncomfortable for their recipients And when w e consider people not as monads but as members of minority groups then the fact of toleration may be an unhappy reminder ofthe social distribution of power

19 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pela aceitaccedilatildeo aqueles que praticam atos ou possuem crenccedilas que satildeo toleradas podem (i) assumir abertamente suas praacuteticas e crenccedilas sem que lhes seja imposta nenhuma consequumlecircncia adversa ou (ii) demandar acomodaccedilatildeo para suas praacuteticas e crenccedilas (cf G R E E N 2008 12-15)

20 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo reconhecimento praacuteticas e crenccedilas seriam toleradas de bom grado ateacute por aqueles que pensam que tais praacuteticas e crenccedilas satildeo supersticiosas sexistas etc e aqueles que toleram veriam os tolerados como eles mesmos se vecircem Nesse sentido reconhecimento exige natildeo apenas que os valores do tolerado sejam compartilhados pelos toleradores mas que a identidade do tolerado seja reconhecida (cf G R E E N 2008 15-19)

21 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo entendimento toleradores deveriam tentar recriar ou capturar na medida do possiacutevel o sentido que accedilotildees e siacutembolos tecircm para seus agentes (GREEN 2008 20-25) (traduccedilatildeo livre da autora attempt to capture or recreate to the extent that w e can the meanings that acts and symbols have for their agents)

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Xrdiz a aceitaccedilatildeo ou o reconhecimento Mas o esforccedilo para compreender afirma nossa convivecircncia com os objetos de nossa toleracircncia Sem isso a toleracircncia eacute mais pobre - e mais dura - do que precisaria ser (GREEN 2008 27)22

Embora Green reconheccedila as principais falhas do princiacutepio da toleracircncia

parece que sua complementaccedilatildeo por u m a atitude compreensiva como sugerida pelo autor

ainda natildeo eacute suficiente para garantir a igualdade entre cidadatildeos e para proteger a dignidade

humana em democracias liberais

Tambeacutem criticando a abordagem da toleracircncia Heiner Bielefeldt argumenta

que a crise normativa resultante do pluralismo cultural deve ser endereccedilada pelo

reconhecimento de tal pluralismo natildeo pela sua toleracircncia C o m o afirmado por Bielefeldt

o problema da toleracircncia eacute que aqueles que tecircm o poder de tolerar tambeacutem tecircm o poder

de natildeo tolerar e aqueles que consideram que tem o poder para tolerar pretendem julgar

as questotildees de consciecircncia O autor sustenta que somente apoacutes a superaccedilatildeo dos conceitos

tradicionais de toleracircncia o pluralismo religioso e poliacutetico natildeo seraacute considerado uma perda

infeliz do centralismo religioso e da cosmovisatildeo da sociedade tradicional O pluralismo

religioso e poliacutetico seratildeo entatildeo considerados uma expressatildeo da responsabilidade autocircnoma

dos seres humanos que desejam ser respeitados e m suas convicccedilotildees e ter direitos iguais

(cf BIELEFELDT 2000 50)

D o mesmo modo Martha Nussbaum argumenta e m favor do princiacutepio

do respeito pela consciecircncia (Respect-Conscience Principie)23 de acordo com o qual

a esfera puacuteblica deve respeitar os diferentes comprometimentos religiosos de todos os

cidadatildeos e deve garantir u m espaccedilo onde os cidadatildeos possam agir consistentemente com

suas consciecircncias de forma que todos os cidadatildeos possam entrar no espaccedilo puacuteblico em

condiccedilotildees iguais ( N U S S B A U M 2008 22-23)

Nussbaum entende que tal princiacutepio natildeo requer a aprovaccedilatildeo de

reivindicaccedilotildees teoloacutegicas e eacuteticas de nenhuma religiatildeo pela esfera puacuteblica ou por cidadatildeos

individualmente (cf N U S S B A U M 2008 23) Neste sentido ela sustenta que o [r]

espeito por concidadatildeos natildeo significa dizer ou acreditar que suas visotildees religiosas estatildeo

corretas ou mesmo que todas as religiotildees satildeo caminhos vaacutelidos ao entendimento da vida

( N U S S B A U M 2008 23)24 Assim ela conclui que

Traduccedilatildeo livre da autora Understanding what the disapproved conduct means for the agent and how it fits into a human life may make us revisit and sometimes revise that judgment It may supplement torelation it may make us better tolerators especially when it gives us a grasp of what it is to be at the sharp end of a particular stick That kind of understanding leaves room for disagreement in value and room for correction of error It does not bring acceptance or recognition But the effort to understand affirms our fellowship with the objects of our toleration Without that toleration is poorer - and harder - than it need to be A autora expressamente afirma sua preferecircncia pelo termo respeito ao inveacutes do termo toleracircncia porque entende que o uacuteltimo eacute muito fraco e relutante (cf N U S S B A U M 2008 24) Traduccedilatildeo livre da autora [r]espect for fellow citizens does not mean saying or believing that their religious

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 751

O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como

seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito

de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25

Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e

que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma

boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem

valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser

respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)

D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo

ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo

ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso

- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas

em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar

independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)

Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26

de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio

do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem

ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo

contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos

a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)

Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas

e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a

igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade

poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees

e discursos

Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos

liberais Nussbaum por exemplo entende que

views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government

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752 Maria Costa Neves Machado

Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28

D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente

podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees

natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que

aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos

membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo

Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o

pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos

(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)

Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da

sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos

e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o

conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua

integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana

afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008

177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de

qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve

ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que

satildeo historicamente impostergaacuteveis

C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais

deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o

apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para

Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend

Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753

o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros

grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente

visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m

estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos

parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka

adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos

indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem

perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a

liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de

culto devem ser limitados

Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia

e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a

adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o

ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no

item subsequente

3 Liberdade religiosa no Brasil

A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com

o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia

ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam

da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos

religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de

prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o

inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino

religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora

realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que

quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais

O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de

1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece

que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se

aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida

agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais

examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se

apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente

assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes

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754 Maria Costa Neves Machado

31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo

O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel

a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos

religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias

Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967

expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa

aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com

Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da

ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro

que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras

pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade

brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais

satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho

entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos

inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf

F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada

uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da

observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros

natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os

bons costumes

U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto

e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo

previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees

Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo

apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros

autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de

todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora

possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser

considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece

estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a

Artigo 284 Exercer o curandeirismo

I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia

II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio

III - fazendo diagnoacutesticos

Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos

Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755

garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil

entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser

considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de

culto31

Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma

liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como

livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo

proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)

Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico

brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das

justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros

paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos

indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo

imperial32

A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que

natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo

oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo

seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees

indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do

Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33

Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal

Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da

Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila

preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias

o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de

sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com

STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)

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756 Maria Costa Neves Machado

base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda

a exigecircncia da licenccedila preacutevia

A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente

durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria

de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos

estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil

eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista

no art 19

Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()

Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que

podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente

neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las

Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute

mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria

a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35

Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo

19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode

ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144

C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem

implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer

a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer

u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que

resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do

ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica

ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo

Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009

Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757

no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da

Constituiccedilatildeo

32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a

pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e

pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso

VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia

religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado

brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a

prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e

B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)

Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo

penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados

incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m

sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material

agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais

assistecircncias satildeo direitos dos presos

D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto

seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos

organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa

O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos

religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou

internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa

Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo

de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades

hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas

as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos

prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que

em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais

estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os

religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m

suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo

hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do

ambiente hospitalar ou prisional

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758 Maria Costa Neves Machado

Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira

disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de

acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou

para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do

processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees

excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI

e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que

motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo

A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria

direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe

O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser

determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais

os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais

e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo

Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se

tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica

33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia

Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado

de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as

invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo

alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo

militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo

dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos

que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-

se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se

eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38

Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico

brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para

buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio

e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes

a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal

( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades

essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em

57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr

ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

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7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

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762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 765

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R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

744 Maria Costa Neves Machado

1 Introduccedilatildeo

Haacute duas possiacuteveis abordagens que sistemas juriacutedicos de democracias liberais

podem adotar quando se trata de solucionar problemas juriacutedicos envolvendo questotildees

religiosas a toleracircncia ou o respeito Enquanto alguns autores argumentam que para lidar

c o m questotildees religiosas se deve aplicar o princiacutepio da toleracircncia1 outros sustentam que

este natildeo eacute suficiente para garantir a dignidade humana e que se faz necessaacuterio respeitar as

crenccedilas e praacuteticas religiosas dos indiviacuteduos2

Inicialmente para examinar essa questatildeo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o do respeito eacute criticamente analisada (item 2) Posteriormente o ordenamento

juriacutedico brasileiro eacute estudado com a finalidade de verificar se as leis brasileiras estatildeo de

acordo com o princiacutepio do respeito ou da toleracircncia quando se trata de questotildees envolvendo

liberdade religiosa (item 3) Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro

adota o princiacutepio do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscarem a finalidade

uacuteltima da vida (item 4)

2 Toleracircncia ou respeito

Para comparar os dois princiacutepios que podem orientar a soluccedilatildeo de conflitos

juriacutedicos envolvendo questotildees religiosas e m democracias liberais eacute importante definir de

u m lado o conceito de toleracircncia e de outro o de respeito

D e acordo com Brian Leiter eacute possiacutevel falar e m u m genuiacuteno princiacutepio de

toleracircncia

quando u m grupo (denominado grupo dominante) desaprova ativamente o que outro grupo (denominado grupo desfavorecido) acredita ou pratica quando o grupo dominante possui agrave sua disposiccedilatildeo os meios para de forma eficaz e confiante alterar ou acabar com as crenccedilas ou praacuteticas do grupo desfavorecido e ainda assim o grupo dominante reconhece que existem razotildees morais ou epistemoloacutegicos (ou seja razotildees pertencentes ao conhecimento ou agrave verdade) para permitir que o gmpo desfavorecido continue com suas crenccedilas ou praacuteticas (LEITER 2009 p 6)3

Cf por exemplo R A Z Joseph Autonomy toleration and the harm principie In GAVISON Ruth (Ed) Contemporary legalphilosophy the influence of H L A Hart com permissatildeo da Oxford University Press Brian Leiter Why tolerate religion manuscrito natildeo publicado pelo autor Simon Blackburn Religion and respect manuscrito natildeo publicado pelo autor Leslie Green On being tolerated University of Oxford Faculty of Law Legal Studies Research Paper Series Working Paper No 142008 entre outros Cf por exemplo BIELEFELDT Heiner Filosofia dos direitos humanos fundamentos de u m ethos de liberdade universal Satildeo Leopoldo Unisinos 2000 e N U S S B A U M Martha C Liberty of Conscience In D E F E N S E of Americas Tradition of Religious Equality N e w York Basic Books 2008 entre outros Traduccedilatildeo livre da autora where one group (call it the dominant group) actively disapproves of what

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 745

Neste sentido o autor apresenta trecircs argumentos para a toleracircncia de opiniotildees

e praacuteticas religiosas os quais estatildeo divididos e m duas grandes classes argumentos morais

e epistemoloacutegicos

O primeiro argumento moral examinado eacute deontoloacutegico ilustrado pelo

pensamento de John Rawls de acordo com o qual a toleracircncia eacute uma consequumlecircncia do

princiacutepio da igual liberdade de consciecircncia (cf LEITER 2009 7-8) O segundo argumento

moral analisado eacute consistente com a tradiccedilatildeo utilitarista D e acordo com este argumento

a toleracircncia eacute necessaacuteria para maximizar o bem estar humano que resultaria da garantia

de u m espaccedilo privado onde os indiviacuteduos poderiam livremente decidir o que acreditar e

como viver (LEITER 2009 9)

Adicionalmente aos argumentos morais Leiter apresenta baseado nas

ideacuteias de John Stuart Mill argumentos epistemoloacutegicos para a toleracircncia E m termos

gerais estes argumentos focam na importacircncia da toleracircncia para o conhecimento e para

a descoberta da verdade As principais suposiccedilotildees desses argumentos satildeo que a verdade

contribui agrave valiosa finalidade moral da utilidade e que a toleracircncia de crenccedilas e praacuteticas

divergentes contribui para o conhecimento da verdade (LEITER 2009 IO)4

Leiter conclui - apoacutes examinar se a religiatildeo eacute especial do ponto de vista do

princiacutepio da toleracircncia (cf Leiter 2009 14-26) - que os argumentos mencionados acima

para a toleracircncia justificam a proteccedilatildeo legal da liberdade de consciecircncia que abrange a

toleracircncia de crenccedilas religiosas Entretanto o autor entende que natildeo haacute nenhuma razatildeo

moral para destacar questotildees religiotildees das demais questotildees de consciecircncia a fim de lhe dar

proteccedilatildeo legal especial (cf LEITER 2009 32)

D e acordo com Joseph Raz haacute u m argumento para a toleracircncia que decorre

da suposiccedilatildeo - que ele natildeo aceita - que para os governos respeitarem a autonomia

individual esses natildeo devem adotar nenhuma concepccedilatildeo sobre a vida boa Neste sentido

o respeito pela autonomia dos indiviacuteduos requereria u m princiacutepio de toleracircncia que exige

a exclusatildeo de ideais da poliacutetica E m outras palavras a toleracircncia e m estados liberais

requereria o anti-perfectionismo (cf R A Z 1987 155-156) Entretanto o autor entende

que o princiacutepio da toleracircncia baseado na autonomia individual fornece a fundaccedilatildeo moral

another group (call it the disfavored group) believes or does where that dominant group has the means at its disposal to effectively and reliably change or end the disfavored groups believes or practices and yet still the dominant group acknowledges that there are moral or epistemic reasons (that is reasons pertaining to knowledge or truth) to permit the disfavored group to keep on believing and doing what it does A esse respeito Celso Lafer com base no pensamento de Norberto Bobb io entende que a toleracircncia pode ser sustentanda tanto pelo criteacuterio eacutetico do respeito pela singularidade do Outro quanto pela avaliaccedilatildeo epistemoloacutegica de qual a verdade natildeo eacute una mas tem muacuteltiplas faces (LAFER 2007) Para entender a visatildeo de Bobbio sobre a toleracircncia vide B O B B I O Norberto Toleracircncia e verdade Elogio da serenidade e outros escritos morais Traduccedilatildeo de Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo UNESP 2002 p 149-155

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746 Maria Costa Neves Machado

para o princiacutepio do dano - que eacute considerado a uacutenica base para o uso de poder coercitivo

pela lei - natildeo para o anti-perfectionismo

Raz argumenta que u m compromisso c o m a autonomia envolve o

compromisso com o pluralismo moral ( R A Z 1987 157)5 que de acordo com o autor

deve ser compreendido como a visatildeo de que haacute vaacuterias formas e vaacuterios estilos de vida

que exemplificam virtudes diferentes e que satildeo incompatiacuteveis ( R A Z 1987 159)6 Ele

sustenta que

o pluralismo moral competitivo do tipo que eacute necessaacuterio para o respeito pela autonomia gera conflitos entre pessoas que buscam valiosas mas incompatiacuteveis formas de vida Dada a necessidade de tomar disponiacuteveis tais formas de vida a fim de garantir a autonomia faz-se necessaacuterio restringir as accedilotildees e as atitudes das pessoas em tais conflitos por meio do princiacutepio da toleracircncia O dever de tolerar eacute u m aspecto do dever de respeito pela autonomia (RAZ 1987 165)7

Assim de acordo com Raz a fim de respeitar a autonomia individual eacute

necessaacuterio adotar u m princiacutepio de toleracircncia que consista na

restriccedilatildeo de uma atividade provavelmente indesejaacutevel ao seu receptor ou de uma inclinaccedilatildeo de assim agir que eacute em si mesma moralmente valiosa e que eacute baseada em um desagrado ou em u m antagonismo dessa pessoa ou de uma caracteriacutestica de sua vida refletindo u m julgamento de que esses representam limitaccedilotildees ou deficiecircncias no outro com a finalidade de deixar que o outro tenha sua maneira ou para que ele ganhe ou mantenha alguma vantagem (Como indicado a mim por P M S O Hacker a compaixatildeo eacute agraves vezes u m exemplo especial de toleracircncia U m indiviacuteduo pode tolerar a partir da compaixatildeo) (RAZ 1987 163)89

Traduccedilatildeo livre da autora a commitment to autonomy entails commitment to moral pluralism Traduccedilatildeo livre da autora there are various forms and styles of life which exemplify different virtues and which are incompatible Traduccedilatildeo livre da autora competitive moral pluralism ofthe kind which is required by respect for autonomy generates conflicts between people pursuing valuable but incompatible forms of life Given the necessity to make those forms of life available in order to secure autonomy there is a need to curb peoples actions and their attitudes in those conflicts by principies of toleration The duty of toleration is an aspect ofthe duty of respect for autonomy Traduccedilatildeo livre da autora the curbing of an activity likely to be unwelcome to its recipient or of an inclination so to act which is in itself morally valuable and which is based on a dislike or an antagonism of that person or of a feature of his life reflecting a judgment that these represent limitations or deficiencies in him in order to let that person have his way or in order for him to gain or keep some advantage (As pointed out to m e by P M S Hacker mercy is sometimes a special case of toleration One can tolerate out of mercy) Nesse sentido Raz argumenta que a [t]oleracircncia implica na supressatildeo ou na contenccedilatildeo de uma inclinaccedilatildeo ou desejo de perseguir molestar causar dano ou reagir de uma maneira indesejada a uma pessoa (RAZ 1987 162) (traduccedilatildeo livre da autora [tjoleration implies the suppression or containment of an inclination or desire to persecute harass harm or react in an unwelcome way to a person)

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 141

Tambeacutem sustentando a abordagem da toleracircncia - em oposiccedilatildeo agrave abordagem

do respeito - Simon Blackburn argumenta que natildeo haacute nenhuma razatildeo para que algueacutem

respeite u m sistema de crenccedilas que esta pessoa natildeo compartilhe (cf B L A C K B U R N 2009

1) Ele entende que a palavra respeito pode significar a simples ausecircncia de interferecircncia

mas que tambeacutem pode significar admiraccedilatildeo reverecircncia ou deferecircncia (cf B L A C K B U R N

2009 2) De acordo com estes niacuteveis o autor afirma que as pessoas podem respeitar

outras pessoas que possuam crenccedilas falsas ou irracionais somente num sentido miacutenimo de

toleracircncia10 U m a vez que noacutes reconhecemos aquelas crenccedilas como falsas ou irracionais

natildeo eacute possiacutevel respeitaacute-las pelo menos natildeo como decorrecircncia do fato de que algueacutem

acredita nelas (cf B L A C K B U R N 2009 3 e 7) E m conformidade com Blackburn

acreditar numa crenccedila falsa natildeo concede a ningueacutem o direito ao respeito Na medida em que eu natildeo posso compartilhar de sua crenccedila eu natildeo tenho nenhuma razatildeo para respeitaacute-lo por acreditar nela - pelo contraacuterio na verdade (BLACKBURN 2009 16)

O autor argumenta que eacute inconsistente com qualquer concepccedilatildeo apropriada

de crenccedila - a qual implica que haacute u m contraste entre certo e errado - pensar que essa eacute

uma questatildeo exclusivamente pessoal e que qualquer crenccedila eacute tatildeo boa quanto qualquer

outra N a verdade ele nega que crenccedilas estejam livres de controle normativo e que a

desigualdade entre crenccedilas seja uma violaccedilatildeo de direitos de uma pessoa Para ele ningueacutem

por u m momento acredita nesta igualdade promiacutescua de crenccedilas na vida quotidiana

( B L A C K B U R N 2009 3)12

Parece que Blackburn estaacute criticando uma concepccedilatildeo de respeito para

crenccedilas religiosas que signifique a admiraccedilatildeo de todas as crenccedilas apenas porque elas

satildeo detidas por uma pessoa Entretanto o respeito requerido pela liberdade religiosa natildeo

corresponde a u m sentimento de admiraccedilatildeo pelas crenccedilas e praacuteticas religiosas especiacuteficas

as quais noacutes podemos natildeo compartilhar mas a u m respeito pela capacidade potencial de

todos os seres humanos de fazerem escolhas autonomamente conforme seraacute demonstrado

pela abordagem de Martha Nussbaum

O problema fundamental com o princiacutepio da toleracircncia eacute que este deixa

o tolerado desconfortaacutevel em pelo menos trecircs maneiras (cf G R E E N 2008 4-8) C o m o

demonstrado por Leslie Green a toleracircncia eacute limitada e m seu escopo eacute incompleta e

10 Para o autor existe tambeacutem uma graduaccedilatildeo de respeito referente a pessoas que possuem crenccedilas falsas no sentido de que respeitamos mais algumas pessoas das quais discordamos do que outras (cf B L A C K B U R N 2009 6)

11 Traduccedilatildeo livre da autora holding a false belief does not give anyone a title to respect Insofar as I cannot share your belief I have no reason to respect you for holding it - quite the reverse in fact

12 Traduccedilatildeo livre da autora nobody for a moment believes in this promiscuous equality of belief in everyday life

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748 Maria Costa Neves Machado

parcial e pode ser considera principalmente c o m o questatildeo de descriminalizaccedilatildeo de

condutas1314 M a s natildeo somente o escopo do princiacutepio da toleracircncia pode estar errado

seus fundamentos tambeacutem podem u m princiacutepio de toleracircncia pode ser adotado por razotildees

morais suspeitas15 Aleacutem disso se u m princiacutepio de toleracircncia for sustentado da maneira

errada - aqueles que toleram deixam claro que prefeririam natildeo ser tolerantes - aqueles

que satildeo tolerados podem tambeacutem sentir-se desconfortaacuteveis ( G R E E N 2008 6-7)16

Entretanto m e s m o que u m sistema legal pudesse construir u m princiacutepio de

toleracircncia que superasse as falhas mencionadas acima aqueles que satildeo tolerados ainda se

sentiriam desconfortaacuteveis porque seria sempre melhor se natildeo tivessem que ser tolerados

e sujeitados ao poder de toleracircncia de outra pessoa ( G R E E N 2008 6-7)n Nesse sentido

Green sustenta que

Quem quer viver da graccedila e do favor dos poderosos Isto eacute especialmente verdadeiro quando tolerados natildeo tecircm nenhum poder similar sobre seus toleradores A esse respeito a toleracircncia compartilha algo com outras relaccedilotildees desejaacuteveis mas assimeacutetricas como oferecer misericoacuterdia ou sentir piedade que pode tambeacutem ser incocircmoda para seus

13 E m relaccedilatildeo agrave toleracircncia de minorias sexuais Leslie Green ressalta que exceto pela descriminalizaccedilatildeo

haacute pouca evidecircncia que a natildeo-conformidade sexual seja amplamente tolerada nos Estados Unidos onde

eleiccedilotildees ainda podem ser perdidas ou ganhas dependendo da questatildeo a respeito do que fazer sobre gays e

onde e m aacutereas como direito do trabalho e de famiacutelia minorias sexuais continuam a vivenciar tratamento

duro atualmente raro em democracias liberais (GREEN 2008 5) (traduccedilatildeo livre da autora apart from

decriminalization there is slim evidence that sexual non-conformity is widely tolerated in the United States

where elections can still be won or lost on the issue of what to do about the gays and where in aacutereas from

employment to family law sexual minorities continue to experience harsh treatment now rare in liberal

democracies) 14 Natildeo obstante o autor alerta que a descriminalizaccedilatildeo de condutas pode natildeo resultar da adoccedilatildeo de u m princiacutepio

de toleracircncia - faz-se necessaacuterio examinar as razotildees pelas quais determinada conduta foi descriminalizada

(cf G R E E N 2008 5) 15 Por exemplo o autor afirma que seria preocupante se u m governo tolerasse o ato de fumar porque seus

atuaacuterios descobriram que fumantes morrem mais cedo o suficiente para aumentar o saldo liacutequido da

previdecircncia (traduccedilatildeo livre da autora) Ademais ele menciona que se a homossexualidade eacute tolerada

somente porque e na medida e m que existem outras condutas mais seriamente erradas para reprimir gays

americanos justamente sentiriam u m mal-estar (cf G R E E N 2008 6) (traduccedilatildeo livre da autora) 16 Identificando tambeacutem os problemas decorrentes do princiacutepio da toleracircncia Miguel Reale Juacutenior (2008

176) com base nas ideacuteias de Javier Lucas afirma que a retoacuterica da toleracircncia natildeo acolhe a criaccedilatildeo de uma

cultura fruto do diaacutelogo intercultural e ignora os problemas de inclusatildeo do diferente para se estabelecer a

igualdade na diversidade Nesse sentido Reale Juacutenior defende que o conceito liberal de toleracircncia deve

ser complementado com o conceito social de solidariedade destacando que solidariedade significa natildeo

apenas aceitaccedilatildeo da diferenccedila mas como realccedila Judith Martins-Costa uma aceitaccedilatildeo qualificada de cunho

normativo pela qual se admite que o diferente pode receber maior tutela ou tutela especiacutefica que atenda agrave

sua diferenccedila concreta como membro da comunidade ( R E A L E JUacuteNIOR 2008 176-177) 17 E m 1791 Thomas Paine notou que toleracircncia natildeo eacute o oposto de intoleracircncia mas a sua imitaccedilatildeo Ambos

satildeo despotismos U m assume para si o direito de reter a liberdade de consciecircncia e o outro de concedecirc-la

(paine 1791) Madison tambeacutem chamou a atenccedilatildeo das pessoas para o fato de que a palavra toleracircncia era

muito relutante sugerindo benevolecircncia legislativa ao inveacutes de direito ( N U S S B A U M 2008 90) (traduccedilatildeo livre da autora)

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 749

receptores E quando noacutes consideramos as pessoas natildeo como mocircnadas mas como membros de grupos minoritaacuterios entatildeo o fato da toleracircncia pode ser um lembrete infeliz da distribuiccedilatildeo de poder social (GREEN 2008 IO)18

Assim o princiacutepio da toleracircncia reflete tambeacutem a diferenccedila de poder entre

tolerados e toleradores E isto causa mais u m a vez desconforto nos tolerados no sentido

de que estes precisam contar com a benevolecircncia dos poderosos quando o poder eacute exercido

e quando a conduta do tolerado eacute julgada pelos poderosos (cf G R E E N 2008 8-12)

Green entende que entre as trecircs maneiras que geralmente satildeo chamadas

para complementar o princiacutepio da toleracircncia quais sejam aceitaccedilatildeo19 reconhecimento20

e compreensatildeo21 a uacuteltima eacute a adequada O autor assinala que u m a melhor compreensatildeo

pode ampliar a toleracircncia pode fazer com que as pessoas tenham menos m aacute vontade

pode mudar a disposiccedilatildeo para a toleracircncia incentivando pessoas a revisitar julgamentos

e pode tambeacutem ser u m a boa maneira de evitar razotildees erradas para a toleracircncia Essa

complementaccedilatildeo pode deixar aqueles que satildeo tolerados mais confortaacuteveis porque eles

sabem que os toleradores estatildeo fazendo esforccedilos de boa-feacute para compreender C o m o

consequumlecircncia os tolerados sentem que satildeo considerados como parte da convivecircncia

humana (cf G R E E N 2008 21) Green conclui que

Compreender o que a conduta reprovada significa para o agente e como se encaixa em uma vida humana pode fazer-nos revisitar e agraves vezes revisar aquele julgamento Pode complementar a toleracircncia pode tomar-nos toleradores melhores especialmente quando nos daacute uma ideacuteia do que eacute estar na extremidade afiada de uma vareta Esse tipo da compreensatildeo deixa espaccedilo para discordacircncias em torno de valores e deixa espaccedilo para correccedilatildeo de erros Natildeo

18 Traduccedilatildeo livre da autora W h o wants to live by grace and favor ofthe powerful This is especially true when the tolerated have no similar power over their tolerators In this respect toleration shares something with other desirable but asymmetric relations like offering mercy or taking pity which can also be uncomfortable for their recipients And when w e consider people not as monads but as members of minority groups then the fact of toleration may be an unhappy reminder ofthe social distribution of power

19 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pela aceitaccedilatildeo aqueles que praticam atos ou possuem crenccedilas que satildeo toleradas podem (i) assumir abertamente suas praacuteticas e crenccedilas sem que lhes seja imposta nenhuma consequumlecircncia adversa ou (ii) demandar acomodaccedilatildeo para suas praacuteticas e crenccedilas (cf G R E E N 2008 12-15)

20 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo reconhecimento praacuteticas e crenccedilas seriam toleradas de bom grado ateacute por aqueles que pensam que tais praacuteticas e crenccedilas satildeo supersticiosas sexistas etc e aqueles que toleram veriam os tolerados como eles mesmos se vecircem Nesse sentido reconhecimento exige natildeo apenas que os valores do tolerado sejam compartilhados pelos toleradores mas que a identidade do tolerado seja reconhecida (cf G R E E N 2008 15-19)

21 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo entendimento toleradores deveriam tentar recriar ou capturar na medida do possiacutevel o sentido que accedilotildees e siacutembolos tecircm para seus agentes (GREEN 2008 20-25) (traduccedilatildeo livre da autora attempt to capture or recreate to the extent that w e can the meanings that acts and symbols have for their agents)

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750 Maria Costa Neves Machado

Xrdiz a aceitaccedilatildeo ou o reconhecimento Mas o esforccedilo para compreender afirma nossa convivecircncia com os objetos de nossa toleracircncia Sem isso a toleracircncia eacute mais pobre - e mais dura - do que precisaria ser (GREEN 2008 27)22

Embora Green reconheccedila as principais falhas do princiacutepio da toleracircncia

parece que sua complementaccedilatildeo por u m a atitude compreensiva como sugerida pelo autor

ainda natildeo eacute suficiente para garantir a igualdade entre cidadatildeos e para proteger a dignidade

humana em democracias liberais

Tambeacutem criticando a abordagem da toleracircncia Heiner Bielefeldt argumenta

que a crise normativa resultante do pluralismo cultural deve ser endereccedilada pelo

reconhecimento de tal pluralismo natildeo pela sua toleracircncia C o m o afirmado por Bielefeldt

o problema da toleracircncia eacute que aqueles que tecircm o poder de tolerar tambeacutem tecircm o poder

de natildeo tolerar e aqueles que consideram que tem o poder para tolerar pretendem julgar

as questotildees de consciecircncia O autor sustenta que somente apoacutes a superaccedilatildeo dos conceitos

tradicionais de toleracircncia o pluralismo religioso e poliacutetico natildeo seraacute considerado uma perda

infeliz do centralismo religioso e da cosmovisatildeo da sociedade tradicional O pluralismo

religioso e poliacutetico seratildeo entatildeo considerados uma expressatildeo da responsabilidade autocircnoma

dos seres humanos que desejam ser respeitados e m suas convicccedilotildees e ter direitos iguais

(cf BIELEFELDT 2000 50)

D o mesmo modo Martha Nussbaum argumenta e m favor do princiacutepio

do respeito pela consciecircncia (Respect-Conscience Principie)23 de acordo com o qual

a esfera puacuteblica deve respeitar os diferentes comprometimentos religiosos de todos os

cidadatildeos e deve garantir u m espaccedilo onde os cidadatildeos possam agir consistentemente com

suas consciecircncias de forma que todos os cidadatildeos possam entrar no espaccedilo puacuteblico em

condiccedilotildees iguais ( N U S S B A U M 2008 22-23)

Nussbaum entende que tal princiacutepio natildeo requer a aprovaccedilatildeo de

reivindicaccedilotildees teoloacutegicas e eacuteticas de nenhuma religiatildeo pela esfera puacuteblica ou por cidadatildeos

individualmente (cf N U S S B A U M 2008 23) Neste sentido ela sustenta que o [r]

espeito por concidadatildeos natildeo significa dizer ou acreditar que suas visotildees religiosas estatildeo

corretas ou mesmo que todas as religiotildees satildeo caminhos vaacutelidos ao entendimento da vida

( N U S S B A U M 2008 23)24 Assim ela conclui que

Traduccedilatildeo livre da autora Understanding what the disapproved conduct means for the agent and how it fits into a human life may make us revisit and sometimes revise that judgment It may supplement torelation it may make us better tolerators especially when it gives us a grasp of what it is to be at the sharp end of a particular stick That kind of understanding leaves room for disagreement in value and room for correction of error It does not bring acceptance or recognition But the effort to understand affirms our fellowship with the objects of our toleration Without that toleration is poorer - and harder - than it need to be A autora expressamente afirma sua preferecircncia pelo termo respeito ao inveacutes do termo toleracircncia porque entende que o uacuteltimo eacute muito fraco e relutante (cf N U S S B A U M 2008 24) Traduccedilatildeo livre da autora [r]espect for fellow citizens does not mean saying or believing that their religious

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 751

O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como

seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito

de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25

Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e

que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma

boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem

valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser

respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)

D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo

ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo

ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso

- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas

em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar

independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)

Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26

de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio

do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem

ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo

contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos

a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)

Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas

e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a

igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade

poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees

e discursos

Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos

liberais Nussbaum por exemplo entende que

views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government

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752 Maria Costa Neves Machado

Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28

D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente

podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees

natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que

aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos

membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo

Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o

pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos

(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)

Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da

sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos

e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o

conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua

integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana

afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008

177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de

qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve

ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que

satildeo historicamente impostergaacuteveis

C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais

deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o

apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para

Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend

Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753

o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros

grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente

visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m

estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos

parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka

adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos

indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem

perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a

liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de

culto devem ser limitados

Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia

e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a

adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o

ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no

item subsequente

3 Liberdade religiosa no Brasil

A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com

o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia

ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam

da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos

religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de

prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o

inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino

religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora

realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que

quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais

O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de

1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece

que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se

aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida

agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais

examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se

apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente

assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes

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754 Maria Costa Neves Machado

31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo

O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel

a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos

religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias

Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967

expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa

aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com

Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da

ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro

que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras

pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade

brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais

satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho

entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos

inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf

F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada

uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da

observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros

natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os

bons costumes

U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto

e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo

previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees

Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo

apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros

autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de

todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora

possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser

considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece

estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a

Artigo 284 Exercer o curandeirismo

I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia

II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio

III - fazendo diagnoacutesticos

Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos

Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755

garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil

entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser

considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de

culto31

Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma

liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como

livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo

proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)

Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico

brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das

justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros

paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos

indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo

imperial32

A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que

natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo

oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo

seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees

indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do

Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33

Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal

Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da

Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila

preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias

o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de

sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com

STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)

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756 Maria Costa Neves Machado

base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda

a exigecircncia da licenccedila preacutevia

A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente

durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria

de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos

estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil

eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista

no art 19

Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()

Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que

podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente

neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las

Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute

mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria

a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35

Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo

19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode

ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144

C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem

implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer

a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer

u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que

resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do

ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica

ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo

Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009

Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757

no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da

Constituiccedilatildeo

32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a

pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e

pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso

VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia

religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado

brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a

prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e

B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)

Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo

penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados

incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m

sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material

agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais

assistecircncias satildeo direitos dos presos

D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto

seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos

organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa

O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos

religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou

internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa

Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo

de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades

hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas

as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos

prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que

em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais

estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os

religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m

suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo

hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do

ambiente hospitalar ou prisional

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758 Maria Costa Neves Machado

Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira

disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de

acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou

para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do

processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees

excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI

e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que

motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo

A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria

direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe

O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser

determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais

os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais

e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo

Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se

tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica

33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia

Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado

de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as

invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo

alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo

militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo

dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos

que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-

se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se

eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38

Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico

brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para

buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio

e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes

a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal

( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades

essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em

57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr

ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

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7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

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762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 745

Neste sentido o autor apresenta trecircs argumentos para a toleracircncia de opiniotildees

e praacuteticas religiosas os quais estatildeo divididos e m duas grandes classes argumentos morais

e epistemoloacutegicos

O primeiro argumento moral examinado eacute deontoloacutegico ilustrado pelo

pensamento de John Rawls de acordo com o qual a toleracircncia eacute uma consequumlecircncia do

princiacutepio da igual liberdade de consciecircncia (cf LEITER 2009 7-8) O segundo argumento

moral analisado eacute consistente com a tradiccedilatildeo utilitarista D e acordo com este argumento

a toleracircncia eacute necessaacuteria para maximizar o bem estar humano que resultaria da garantia

de u m espaccedilo privado onde os indiviacuteduos poderiam livremente decidir o que acreditar e

como viver (LEITER 2009 9)

Adicionalmente aos argumentos morais Leiter apresenta baseado nas

ideacuteias de John Stuart Mill argumentos epistemoloacutegicos para a toleracircncia E m termos

gerais estes argumentos focam na importacircncia da toleracircncia para o conhecimento e para

a descoberta da verdade As principais suposiccedilotildees desses argumentos satildeo que a verdade

contribui agrave valiosa finalidade moral da utilidade e que a toleracircncia de crenccedilas e praacuteticas

divergentes contribui para o conhecimento da verdade (LEITER 2009 IO)4

Leiter conclui - apoacutes examinar se a religiatildeo eacute especial do ponto de vista do

princiacutepio da toleracircncia (cf Leiter 2009 14-26) - que os argumentos mencionados acima

para a toleracircncia justificam a proteccedilatildeo legal da liberdade de consciecircncia que abrange a

toleracircncia de crenccedilas religiosas Entretanto o autor entende que natildeo haacute nenhuma razatildeo

moral para destacar questotildees religiotildees das demais questotildees de consciecircncia a fim de lhe dar

proteccedilatildeo legal especial (cf LEITER 2009 32)

D e acordo com Joseph Raz haacute u m argumento para a toleracircncia que decorre

da suposiccedilatildeo - que ele natildeo aceita - que para os governos respeitarem a autonomia

individual esses natildeo devem adotar nenhuma concepccedilatildeo sobre a vida boa Neste sentido

o respeito pela autonomia dos indiviacuteduos requereria u m princiacutepio de toleracircncia que exige

a exclusatildeo de ideais da poliacutetica E m outras palavras a toleracircncia e m estados liberais

requereria o anti-perfectionismo (cf R A Z 1987 155-156) Entretanto o autor entende

que o princiacutepio da toleracircncia baseado na autonomia individual fornece a fundaccedilatildeo moral

another group (call it the disfavored group) believes or does where that dominant group has the means at its disposal to effectively and reliably change or end the disfavored groups believes or practices and yet still the dominant group acknowledges that there are moral or epistemic reasons (that is reasons pertaining to knowledge or truth) to permit the disfavored group to keep on believing and doing what it does A esse respeito Celso Lafer com base no pensamento de Norberto Bobb io entende que a toleracircncia pode ser sustentanda tanto pelo criteacuterio eacutetico do respeito pela singularidade do Outro quanto pela avaliaccedilatildeo epistemoloacutegica de qual a verdade natildeo eacute una mas tem muacuteltiplas faces (LAFER 2007) Para entender a visatildeo de Bobbio sobre a toleracircncia vide B O B B I O Norberto Toleracircncia e verdade Elogio da serenidade e outros escritos morais Traduccedilatildeo de Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo UNESP 2002 p 149-155

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

746 Maria Costa Neves Machado

para o princiacutepio do dano - que eacute considerado a uacutenica base para o uso de poder coercitivo

pela lei - natildeo para o anti-perfectionismo

Raz argumenta que u m compromisso c o m a autonomia envolve o

compromisso com o pluralismo moral ( R A Z 1987 157)5 que de acordo com o autor

deve ser compreendido como a visatildeo de que haacute vaacuterias formas e vaacuterios estilos de vida

que exemplificam virtudes diferentes e que satildeo incompatiacuteveis ( R A Z 1987 159)6 Ele

sustenta que

o pluralismo moral competitivo do tipo que eacute necessaacuterio para o respeito pela autonomia gera conflitos entre pessoas que buscam valiosas mas incompatiacuteveis formas de vida Dada a necessidade de tomar disponiacuteveis tais formas de vida a fim de garantir a autonomia faz-se necessaacuterio restringir as accedilotildees e as atitudes das pessoas em tais conflitos por meio do princiacutepio da toleracircncia O dever de tolerar eacute u m aspecto do dever de respeito pela autonomia (RAZ 1987 165)7

Assim de acordo com Raz a fim de respeitar a autonomia individual eacute

necessaacuterio adotar u m princiacutepio de toleracircncia que consista na

restriccedilatildeo de uma atividade provavelmente indesejaacutevel ao seu receptor ou de uma inclinaccedilatildeo de assim agir que eacute em si mesma moralmente valiosa e que eacute baseada em um desagrado ou em u m antagonismo dessa pessoa ou de uma caracteriacutestica de sua vida refletindo u m julgamento de que esses representam limitaccedilotildees ou deficiecircncias no outro com a finalidade de deixar que o outro tenha sua maneira ou para que ele ganhe ou mantenha alguma vantagem (Como indicado a mim por P M S O Hacker a compaixatildeo eacute agraves vezes u m exemplo especial de toleracircncia U m indiviacuteduo pode tolerar a partir da compaixatildeo) (RAZ 1987 163)89

Traduccedilatildeo livre da autora a commitment to autonomy entails commitment to moral pluralism Traduccedilatildeo livre da autora there are various forms and styles of life which exemplify different virtues and which are incompatible Traduccedilatildeo livre da autora competitive moral pluralism ofthe kind which is required by respect for autonomy generates conflicts between people pursuing valuable but incompatible forms of life Given the necessity to make those forms of life available in order to secure autonomy there is a need to curb peoples actions and their attitudes in those conflicts by principies of toleration The duty of toleration is an aspect ofthe duty of respect for autonomy Traduccedilatildeo livre da autora the curbing of an activity likely to be unwelcome to its recipient or of an inclination so to act which is in itself morally valuable and which is based on a dislike or an antagonism of that person or of a feature of his life reflecting a judgment that these represent limitations or deficiencies in him in order to let that person have his way or in order for him to gain or keep some advantage (As pointed out to m e by P M S Hacker mercy is sometimes a special case of toleration One can tolerate out of mercy) Nesse sentido Raz argumenta que a [t]oleracircncia implica na supressatildeo ou na contenccedilatildeo de uma inclinaccedilatildeo ou desejo de perseguir molestar causar dano ou reagir de uma maneira indesejada a uma pessoa (RAZ 1987 162) (traduccedilatildeo livre da autora [tjoleration implies the suppression or containment of an inclination or desire to persecute harass harm or react in an unwelcome way to a person)

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 141

Tambeacutem sustentando a abordagem da toleracircncia - em oposiccedilatildeo agrave abordagem

do respeito - Simon Blackburn argumenta que natildeo haacute nenhuma razatildeo para que algueacutem

respeite u m sistema de crenccedilas que esta pessoa natildeo compartilhe (cf B L A C K B U R N 2009

1) Ele entende que a palavra respeito pode significar a simples ausecircncia de interferecircncia

mas que tambeacutem pode significar admiraccedilatildeo reverecircncia ou deferecircncia (cf B L A C K B U R N

2009 2) De acordo com estes niacuteveis o autor afirma que as pessoas podem respeitar

outras pessoas que possuam crenccedilas falsas ou irracionais somente num sentido miacutenimo de

toleracircncia10 U m a vez que noacutes reconhecemos aquelas crenccedilas como falsas ou irracionais

natildeo eacute possiacutevel respeitaacute-las pelo menos natildeo como decorrecircncia do fato de que algueacutem

acredita nelas (cf B L A C K B U R N 2009 3 e 7) E m conformidade com Blackburn

acreditar numa crenccedila falsa natildeo concede a ningueacutem o direito ao respeito Na medida em que eu natildeo posso compartilhar de sua crenccedila eu natildeo tenho nenhuma razatildeo para respeitaacute-lo por acreditar nela - pelo contraacuterio na verdade (BLACKBURN 2009 16)

O autor argumenta que eacute inconsistente com qualquer concepccedilatildeo apropriada

de crenccedila - a qual implica que haacute u m contraste entre certo e errado - pensar que essa eacute

uma questatildeo exclusivamente pessoal e que qualquer crenccedila eacute tatildeo boa quanto qualquer

outra N a verdade ele nega que crenccedilas estejam livres de controle normativo e que a

desigualdade entre crenccedilas seja uma violaccedilatildeo de direitos de uma pessoa Para ele ningueacutem

por u m momento acredita nesta igualdade promiacutescua de crenccedilas na vida quotidiana

( B L A C K B U R N 2009 3)12

Parece que Blackburn estaacute criticando uma concepccedilatildeo de respeito para

crenccedilas religiosas que signifique a admiraccedilatildeo de todas as crenccedilas apenas porque elas

satildeo detidas por uma pessoa Entretanto o respeito requerido pela liberdade religiosa natildeo

corresponde a u m sentimento de admiraccedilatildeo pelas crenccedilas e praacuteticas religiosas especiacuteficas

as quais noacutes podemos natildeo compartilhar mas a u m respeito pela capacidade potencial de

todos os seres humanos de fazerem escolhas autonomamente conforme seraacute demonstrado

pela abordagem de Martha Nussbaum

O problema fundamental com o princiacutepio da toleracircncia eacute que este deixa

o tolerado desconfortaacutevel em pelo menos trecircs maneiras (cf G R E E N 2008 4-8) C o m o

demonstrado por Leslie Green a toleracircncia eacute limitada e m seu escopo eacute incompleta e

10 Para o autor existe tambeacutem uma graduaccedilatildeo de respeito referente a pessoas que possuem crenccedilas falsas no sentido de que respeitamos mais algumas pessoas das quais discordamos do que outras (cf B L A C K B U R N 2009 6)

11 Traduccedilatildeo livre da autora holding a false belief does not give anyone a title to respect Insofar as I cannot share your belief I have no reason to respect you for holding it - quite the reverse in fact

12 Traduccedilatildeo livre da autora nobody for a moment believes in this promiscuous equality of belief in everyday life

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

748 Maria Costa Neves Machado

parcial e pode ser considera principalmente c o m o questatildeo de descriminalizaccedilatildeo de

condutas1314 M a s natildeo somente o escopo do princiacutepio da toleracircncia pode estar errado

seus fundamentos tambeacutem podem u m princiacutepio de toleracircncia pode ser adotado por razotildees

morais suspeitas15 Aleacutem disso se u m princiacutepio de toleracircncia for sustentado da maneira

errada - aqueles que toleram deixam claro que prefeririam natildeo ser tolerantes - aqueles

que satildeo tolerados podem tambeacutem sentir-se desconfortaacuteveis ( G R E E N 2008 6-7)16

Entretanto m e s m o que u m sistema legal pudesse construir u m princiacutepio de

toleracircncia que superasse as falhas mencionadas acima aqueles que satildeo tolerados ainda se

sentiriam desconfortaacuteveis porque seria sempre melhor se natildeo tivessem que ser tolerados

e sujeitados ao poder de toleracircncia de outra pessoa ( G R E E N 2008 6-7)n Nesse sentido

Green sustenta que

Quem quer viver da graccedila e do favor dos poderosos Isto eacute especialmente verdadeiro quando tolerados natildeo tecircm nenhum poder similar sobre seus toleradores A esse respeito a toleracircncia compartilha algo com outras relaccedilotildees desejaacuteveis mas assimeacutetricas como oferecer misericoacuterdia ou sentir piedade que pode tambeacutem ser incocircmoda para seus

13 E m relaccedilatildeo agrave toleracircncia de minorias sexuais Leslie Green ressalta que exceto pela descriminalizaccedilatildeo

haacute pouca evidecircncia que a natildeo-conformidade sexual seja amplamente tolerada nos Estados Unidos onde

eleiccedilotildees ainda podem ser perdidas ou ganhas dependendo da questatildeo a respeito do que fazer sobre gays e

onde e m aacutereas como direito do trabalho e de famiacutelia minorias sexuais continuam a vivenciar tratamento

duro atualmente raro em democracias liberais (GREEN 2008 5) (traduccedilatildeo livre da autora apart from

decriminalization there is slim evidence that sexual non-conformity is widely tolerated in the United States

where elections can still be won or lost on the issue of what to do about the gays and where in aacutereas from

employment to family law sexual minorities continue to experience harsh treatment now rare in liberal

democracies) 14 Natildeo obstante o autor alerta que a descriminalizaccedilatildeo de condutas pode natildeo resultar da adoccedilatildeo de u m princiacutepio

de toleracircncia - faz-se necessaacuterio examinar as razotildees pelas quais determinada conduta foi descriminalizada

(cf G R E E N 2008 5) 15 Por exemplo o autor afirma que seria preocupante se u m governo tolerasse o ato de fumar porque seus

atuaacuterios descobriram que fumantes morrem mais cedo o suficiente para aumentar o saldo liacutequido da

previdecircncia (traduccedilatildeo livre da autora) Ademais ele menciona que se a homossexualidade eacute tolerada

somente porque e na medida e m que existem outras condutas mais seriamente erradas para reprimir gays

americanos justamente sentiriam u m mal-estar (cf G R E E N 2008 6) (traduccedilatildeo livre da autora) 16 Identificando tambeacutem os problemas decorrentes do princiacutepio da toleracircncia Miguel Reale Juacutenior (2008

176) com base nas ideacuteias de Javier Lucas afirma que a retoacuterica da toleracircncia natildeo acolhe a criaccedilatildeo de uma

cultura fruto do diaacutelogo intercultural e ignora os problemas de inclusatildeo do diferente para se estabelecer a

igualdade na diversidade Nesse sentido Reale Juacutenior defende que o conceito liberal de toleracircncia deve

ser complementado com o conceito social de solidariedade destacando que solidariedade significa natildeo

apenas aceitaccedilatildeo da diferenccedila mas como realccedila Judith Martins-Costa uma aceitaccedilatildeo qualificada de cunho

normativo pela qual se admite que o diferente pode receber maior tutela ou tutela especiacutefica que atenda agrave

sua diferenccedila concreta como membro da comunidade ( R E A L E JUacuteNIOR 2008 176-177) 17 E m 1791 Thomas Paine notou que toleracircncia natildeo eacute o oposto de intoleracircncia mas a sua imitaccedilatildeo Ambos

satildeo despotismos U m assume para si o direito de reter a liberdade de consciecircncia e o outro de concedecirc-la

(paine 1791) Madison tambeacutem chamou a atenccedilatildeo das pessoas para o fato de que a palavra toleracircncia era

muito relutante sugerindo benevolecircncia legislativa ao inveacutes de direito ( N U S S B A U M 2008 90) (traduccedilatildeo livre da autora)

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 749

receptores E quando noacutes consideramos as pessoas natildeo como mocircnadas mas como membros de grupos minoritaacuterios entatildeo o fato da toleracircncia pode ser um lembrete infeliz da distribuiccedilatildeo de poder social (GREEN 2008 IO)18

Assim o princiacutepio da toleracircncia reflete tambeacutem a diferenccedila de poder entre

tolerados e toleradores E isto causa mais u m a vez desconforto nos tolerados no sentido

de que estes precisam contar com a benevolecircncia dos poderosos quando o poder eacute exercido

e quando a conduta do tolerado eacute julgada pelos poderosos (cf G R E E N 2008 8-12)

Green entende que entre as trecircs maneiras que geralmente satildeo chamadas

para complementar o princiacutepio da toleracircncia quais sejam aceitaccedilatildeo19 reconhecimento20

e compreensatildeo21 a uacuteltima eacute a adequada O autor assinala que u m a melhor compreensatildeo

pode ampliar a toleracircncia pode fazer com que as pessoas tenham menos m aacute vontade

pode mudar a disposiccedilatildeo para a toleracircncia incentivando pessoas a revisitar julgamentos

e pode tambeacutem ser u m a boa maneira de evitar razotildees erradas para a toleracircncia Essa

complementaccedilatildeo pode deixar aqueles que satildeo tolerados mais confortaacuteveis porque eles

sabem que os toleradores estatildeo fazendo esforccedilos de boa-feacute para compreender C o m o

consequumlecircncia os tolerados sentem que satildeo considerados como parte da convivecircncia

humana (cf G R E E N 2008 21) Green conclui que

Compreender o que a conduta reprovada significa para o agente e como se encaixa em uma vida humana pode fazer-nos revisitar e agraves vezes revisar aquele julgamento Pode complementar a toleracircncia pode tomar-nos toleradores melhores especialmente quando nos daacute uma ideacuteia do que eacute estar na extremidade afiada de uma vareta Esse tipo da compreensatildeo deixa espaccedilo para discordacircncias em torno de valores e deixa espaccedilo para correccedilatildeo de erros Natildeo

18 Traduccedilatildeo livre da autora W h o wants to live by grace and favor ofthe powerful This is especially true when the tolerated have no similar power over their tolerators In this respect toleration shares something with other desirable but asymmetric relations like offering mercy or taking pity which can also be uncomfortable for their recipients And when w e consider people not as monads but as members of minority groups then the fact of toleration may be an unhappy reminder ofthe social distribution of power

19 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pela aceitaccedilatildeo aqueles que praticam atos ou possuem crenccedilas que satildeo toleradas podem (i) assumir abertamente suas praacuteticas e crenccedilas sem que lhes seja imposta nenhuma consequumlecircncia adversa ou (ii) demandar acomodaccedilatildeo para suas praacuteticas e crenccedilas (cf G R E E N 2008 12-15)

20 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo reconhecimento praacuteticas e crenccedilas seriam toleradas de bom grado ateacute por aqueles que pensam que tais praacuteticas e crenccedilas satildeo supersticiosas sexistas etc e aqueles que toleram veriam os tolerados como eles mesmos se vecircem Nesse sentido reconhecimento exige natildeo apenas que os valores do tolerado sejam compartilhados pelos toleradores mas que a identidade do tolerado seja reconhecida (cf G R E E N 2008 15-19)

21 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo entendimento toleradores deveriam tentar recriar ou capturar na medida do possiacutevel o sentido que accedilotildees e siacutembolos tecircm para seus agentes (GREEN 2008 20-25) (traduccedilatildeo livre da autora attempt to capture or recreate to the extent that w e can the meanings that acts and symbols have for their agents)

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

750 Maria Costa Neves Machado

Xrdiz a aceitaccedilatildeo ou o reconhecimento Mas o esforccedilo para compreender afirma nossa convivecircncia com os objetos de nossa toleracircncia Sem isso a toleracircncia eacute mais pobre - e mais dura - do que precisaria ser (GREEN 2008 27)22

Embora Green reconheccedila as principais falhas do princiacutepio da toleracircncia

parece que sua complementaccedilatildeo por u m a atitude compreensiva como sugerida pelo autor

ainda natildeo eacute suficiente para garantir a igualdade entre cidadatildeos e para proteger a dignidade

humana em democracias liberais

Tambeacutem criticando a abordagem da toleracircncia Heiner Bielefeldt argumenta

que a crise normativa resultante do pluralismo cultural deve ser endereccedilada pelo

reconhecimento de tal pluralismo natildeo pela sua toleracircncia C o m o afirmado por Bielefeldt

o problema da toleracircncia eacute que aqueles que tecircm o poder de tolerar tambeacutem tecircm o poder

de natildeo tolerar e aqueles que consideram que tem o poder para tolerar pretendem julgar

as questotildees de consciecircncia O autor sustenta que somente apoacutes a superaccedilatildeo dos conceitos

tradicionais de toleracircncia o pluralismo religioso e poliacutetico natildeo seraacute considerado uma perda

infeliz do centralismo religioso e da cosmovisatildeo da sociedade tradicional O pluralismo

religioso e poliacutetico seratildeo entatildeo considerados uma expressatildeo da responsabilidade autocircnoma

dos seres humanos que desejam ser respeitados e m suas convicccedilotildees e ter direitos iguais

(cf BIELEFELDT 2000 50)

D o mesmo modo Martha Nussbaum argumenta e m favor do princiacutepio

do respeito pela consciecircncia (Respect-Conscience Principie)23 de acordo com o qual

a esfera puacuteblica deve respeitar os diferentes comprometimentos religiosos de todos os

cidadatildeos e deve garantir u m espaccedilo onde os cidadatildeos possam agir consistentemente com

suas consciecircncias de forma que todos os cidadatildeos possam entrar no espaccedilo puacuteblico em

condiccedilotildees iguais ( N U S S B A U M 2008 22-23)

Nussbaum entende que tal princiacutepio natildeo requer a aprovaccedilatildeo de

reivindicaccedilotildees teoloacutegicas e eacuteticas de nenhuma religiatildeo pela esfera puacuteblica ou por cidadatildeos

individualmente (cf N U S S B A U M 2008 23) Neste sentido ela sustenta que o [r]

espeito por concidadatildeos natildeo significa dizer ou acreditar que suas visotildees religiosas estatildeo

corretas ou mesmo que todas as religiotildees satildeo caminhos vaacutelidos ao entendimento da vida

( N U S S B A U M 2008 23)24 Assim ela conclui que

Traduccedilatildeo livre da autora Understanding what the disapproved conduct means for the agent and how it fits into a human life may make us revisit and sometimes revise that judgment It may supplement torelation it may make us better tolerators especially when it gives us a grasp of what it is to be at the sharp end of a particular stick That kind of understanding leaves room for disagreement in value and room for correction of error It does not bring acceptance or recognition But the effort to understand affirms our fellowship with the objects of our toleration Without that toleration is poorer - and harder - than it need to be A autora expressamente afirma sua preferecircncia pelo termo respeito ao inveacutes do termo toleracircncia porque entende que o uacuteltimo eacute muito fraco e relutante (cf N U S S B A U M 2008 24) Traduccedilatildeo livre da autora [r]espect for fellow citizens does not mean saying or believing that their religious

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 751

O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como

seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito

de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25

Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e

que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma

boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem

valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser

respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)

D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo

ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo

ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso

- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas

em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar

independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)

Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26

de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio

do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem

ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo

contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos

a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)

Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas

e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a

igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade

poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees

e discursos

Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos

liberais Nussbaum por exemplo entende que

views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government

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752 Maria Costa Neves Machado

Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28

D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente

podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees

natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que

aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos

membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo

Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o

pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos

(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)

Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da

sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos

e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o

conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua

integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana

afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008

177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de

qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve

ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que

satildeo historicamente impostergaacuteveis

C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais

deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o

apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para

Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend

Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753

o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros

grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente

visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m

estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos

parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka

adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos

indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem

perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a

liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de

culto devem ser limitados

Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia

e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a

adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o

ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no

item subsequente

3 Liberdade religiosa no Brasil

A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com

o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia

ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam

da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos

religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de

prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o

inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino

religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora

realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que

quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais

O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de

1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece

que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se

aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida

agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais

examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se

apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente

assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes

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754 Maria Costa Neves Machado

31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo

O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel

a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos

religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias

Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967

expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa

aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com

Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da

ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro

que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras

pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade

brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais

satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho

entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos

inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf

F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada

uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da

observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros

natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os

bons costumes

U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto

e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo

previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees

Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo

apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros

autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de

todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora

possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser

considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece

estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a

Artigo 284 Exercer o curandeirismo

I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia

II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio

III - fazendo diagnoacutesticos

Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos

Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755

garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil

entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser

considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de

culto31

Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma

liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como

livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo

proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)

Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico

brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das

justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros

paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos

indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo

imperial32

A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que

natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo

oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo

seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees

indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do

Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33

Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal

Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da

Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila

preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias

o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de

sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com

STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)

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756 Maria Costa Neves Machado

base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda

a exigecircncia da licenccedila preacutevia

A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente

durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria

de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos

estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil

eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista

no art 19

Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()

Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que

podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente

neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las

Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute

mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria

a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35

Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo

19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode

ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144

C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem

implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer

a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer

u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que

resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do

ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica

ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo

Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009

Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757

no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da

Constituiccedilatildeo

32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a

pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e

pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso

VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia

religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado

brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a

prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e

B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)

Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo

penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados

incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m

sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material

agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais

assistecircncias satildeo direitos dos presos

D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto

seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos

organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa

O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos

religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou

internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa

Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo

de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades

hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas

as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos

prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que

em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais

estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os

religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m

suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo

hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do

ambiente hospitalar ou prisional

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758 Maria Costa Neves Machado

Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira

disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de

acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou

para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do

processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees

excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI

e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que

motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo

A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria

direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe

O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser

determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais

os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais

e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo

Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se

tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica

33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia

Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado

de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as

invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo

alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo

militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo

dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos

que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-

se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se

eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38

Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico

brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para

buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio

e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes

a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal

( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades

essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em

57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr

ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

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7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

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762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

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746 Maria Costa Neves Machado

para o princiacutepio do dano - que eacute considerado a uacutenica base para o uso de poder coercitivo

pela lei - natildeo para o anti-perfectionismo

Raz argumenta que u m compromisso c o m a autonomia envolve o

compromisso com o pluralismo moral ( R A Z 1987 157)5 que de acordo com o autor

deve ser compreendido como a visatildeo de que haacute vaacuterias formas e vaacuterios estilos de vida

que exemplificam virtudes diferentes e que satildeo incompatiacuteveis ( R A Z 1987 159)6 Ele

sustenta que

o pluralismo moral competitivo do tipo que eacute necessaacuterio para o respeito pela autonomia gera conflitos entre pessoas que buscam valiosas mas incompatiacuteveis formas de vida Dada a necessidade de tomar disponiacuteveis tais formas de vida a fim de garantir a autonomia faz-se necessaacuterio restringir as accedilotildees e as atitudes das pessoas em tais conflitos por meio do princiacutepio da toleracircncia O dever de tolerar eacute u m aspecto do dever de respeito pela autonomia (RAZ 1987 165)7

Assim de acordo com Raz a fim de respeitar a autonomia individual eacute

necessaacuterio adotar u m princiacutepio de toleracircncia que consista na

restriccedilatildeo de uma atividade provavelmente indesejaacutevel ao seu receptor ou de uma inclinaccedilatildeo de assim agir que eacute em si mesma moralmente valiosa e que eacute baseada em um desagrado ou em u m antagonismo dessa pessoa ou de uma caracteriacutestica de sua vida refletindo u m julgamento de que esses representam limitaccedilotildees ou deficiecircncias no outro com a finalidade de deixar que o outro tenha sua maneira ou para que ele ganhe ou mantenha alguma vantagem (Como indicado a mim por P M S O Hacker a compaixatildeo eacute agraves vezes u m exemplo especial de toleracircncia U m indiviacuteduo pode tolerar a partir da compaixatildeo) (RAZ 1987 163)89

Traduccedilatildeo livre da autora a commitment to autonomy entails commitment to moral pluralism Traduccedilatildeo livre da autora there are various forms and styles of life which exemplify different virtues and which are incompatible Traduccedilatildeo livre da autora competitive moral pluralism ofthe kind which is required by respect for autonomy generates conflicts between people pursuing valuable but incompatible forms of life Given the necessity to make those forms of life available in order to secure autonomy there is a need to curb peoples actions and their attitudes in those conflicts by principies of toleration The duty of toleration is an aspect ofthe duty of respect for autonomy Traduccedilatildeo livre da autora the curbing of an activity likely to be unwelcome to its recipient or of an inclination so to act which is in itself morally valuable and which is based on a dislike or an antagonism of that person or of a feature of his life reflecting a judgment that these represent limitations or deficiencies in him in order to let that person have his way or in order for him to gain or keep some advantage (As pointed out to m e by P M S Hacker mercy is sometimes a special case of toleration One can tolerate out of mercy) Nesse sentido Raz argumenta que a [t]oleracircncia implica na supressatildeo ou na contenccedilatildeo de uma inclinaccedilatildeo ou desejo de perseguir molestar causar dano ou reagir de uma maneira indesejada a uma pessoa (RAZ 1987 162) (traduccedilatildeo livre da autora [tjoleration implies the suppression or containment of an inclination or desire to persecute harass harm or react in an unwelcome way to a person)

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 141

Tambeacutem sustentando a abordagem da toleracircncia - em oposiccedilatildeo agrave abordagem

do respeito - Simon Blackburn argumenta que natildeo haacute nenhuma razatildeo para que algueacutem

respeite u m sistema de crenccedilas que esta pessoa natildeo compartilhe (cf B L A C K B U R N 2009

1) Ele entende que a palavra respeito pode significar a simples ausecircncia de interferecircncia

mas que tambeacutem pode significar admiraccedilatildeo reverecircncia ou deferecircncia (cf B L A C K B U R N

2009 2) De acordo com estes niacuteveis o autor afirma que as pessoas podem respeitar

outras pessoas que possuam crenccedilas falsas ou irracionais somente num sentido miacutenimo de

toleracircncia10 U m a vez que noacutes reconhecemos aquelas crenccedilas como falsas ou irracionais

natildeo eacute possiacutevel respeitaacute-las pelo menos natildeo como decorrecircncia do fato de que algueacutem

acredita nelas (cf B L A C K B U R N 2009 3 e 7) E m conformidade com Blackburn

acreditar numa crenccedila falsa natildeo concede a ningueacutem o direito ao respeito Na medida em que eu natildeo posso compartilhar de sua crenccedila eu natildeo tenho nenhuma razatildeo para respeitaacute-lo por acreditar nela - pelo contraacuterio na verdade (BLACKBURN 2009 16)

O autor argumenta que eacute inconsistente com qualquer concepccedilatildeo apropriada

de crenccedila - a qual implica que haacute u m contraste entre certo e errado - pensar que essa eacute

uma questatildeo exclusivamente pessoal e que qualquer crenccedila eacute tatildeo boa quanto qualquer

outra N a verdade ele nega que crenccedilas estejam livres de controle normativo e que a

desigualdade entre crenccedilas seja uma violaccedilatildeo de direitos de uma pessoa Para ele ningueacutem

por u m momento acredita nesta igualdade promiacutescua de crenccedilas na vida quotidiana

( B L A C K B U R N 2009 3)12

Parece que Blackburn estaacute criticando uma concepccedilatildeo de respeito para

crenccedilas religiosas que signifique a admiraccedilatildeo de todas as crenccedilas apenas porque elas

satildeo detidas por uma pessoa Entretanto o respeito requerido pela liberdade religiosa natildeo

corresponde a u m sentimento de admiraccedilatildeo pelas crenccedilas e praacuteticas religiosas especiacuteficas

as quais noacutes podemos natildeo compartilhar mas a u m respeito pela capacidade potencial de

todos os seres humanos de fazerem escolhas autonomamente conforme seraacute demonstrado

pela abordagem de Martha Nussbaum

O problema fundamental com o princiacutepio da toleracircncia eacute que este deixa

o tolerado desconfortaacutevel em pelo menos trecircs maneiras (cf G R E E N 2008 4-8) C o m o

demonstrado por Leslie Green a toleracircncia eacute limitada e m seu escopo eacute incompleta e

10 Para o autor existe tambeacutem uma graduaccedilatildeo de respeito referente a pessoas que possuem crenccedilas falsas no sentido de que respeitamos mais algumas pessoas das quais discordamos do que outras (cf B L A C K B U R N 2009 6)

11 Traduccedilatildeo livre da autora holding a false belief does not give anyone a title to respect Insofar as I cannot share your belief I have no reason to respect you for holding it - quite the reverse in fact

12 Traduccedilatildeo livre da autora nobody for a moment believes in this promiscuous equality of belief in everyday life

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748 Maria Costa Neves Machado

parcial e pode ser considera principalmente c o m o questatildeo de descriminalizaccedilatildeo de

condutas1314 M a s natildeo somente o escopo do princiacutepio da toleracircncia pode estar errado

seus fundamentos tambeacutem podem u m princiacutepio de toleracircncia pode ser adotado por razotildees

morais suspeitas15 Aleacutem disso se u m princiacutepio de toleracircncia for sustentado da maneira

errada - aqueles que toleram deixam claro que prefeririam natildeo ser tolerantes - aqueles

que satildeo tolerados podem tambeacutem sentir-se desconfortaacuteveis ( G R E E N 2008 6-7)16

Entretanto m e s m o que u m sistema legal pudesse construir u m princiacutepio de

toleracircncia que superasse as falhas mencionadas acima aqueles que satildeo tolerados ainda se

sentiriam desconfortaacuteveis porque seria sempre melhor se natildeo tivessem que ser tolerados

e sujeitados ao poder de toleracircncia de outra pessoa ( G R E E N 2008 6-7)n Nesse sentido

Green sustenta que

Quem quer viver da graccedila e do favor dos poderosos Isto eacute especialmente verdadeiro quando tolerados natildeo tecircm nenhum poder similar sobre seus toleradores A esse respeito a toleracircncia compartilha algo com outras relaccedilotildees desejaacuteveis mas assimeacutetricas como oferecer misericoacuterdia ou sentir piedade que pode tambeacutem ser incocircmoda para seus

13 E m relaccedilatildeo agrave toleracircncia de minorias sexuais Leslie Green ressalta que exceto pela descriminalizaccedilatildeo

haacute pouca evidecircncia que a natildeo-conformidade sexual seja amplamente tolerada nos Estados Unidos onde

eleiccedilotildees ainda podem ser perdidas ou ganhas dependendo da questatildeo a respeito do que fazer sobre gays e

onde e m aacutereas como direito do trabalho e de famiacutelia minorias sexuais continuam a vivenciar tratamento

duro atualmente raro em democracias liberais (GREEN 2008 5) (traduccedilatildeo livre da autora apart from

decriminalization there is slim evidence that sexual non-conformity is widely tolerated in the United States

where elections can still be won or lost on the issue of what to do about the gays and where in aacutereas from

employment to family law sexual minorities continue to experience harsh treatment now rare in liberal

democracies) 14 Natildeo obstante o autor alerta que a descriminalizaccedilatildeo de condutas pode natildeo resultar da adoccedilatildeo de u m princiacutepio

de toleracircncia - faz-se necessaacuterio examinar as razotildees pelas quais determinada conduta foi descriminalizada

(cf G R E E N 2008 5) 15 Por exemplo o autor afirma que seria preocupante se u m governo tolerasse o ato de fumar porque seus

atuaacuterios descobriram que fumantes morrem mais cedo o suficiente para aumentar o saldo liacutequido da

previdecircncia (traduccedilatildeo livre da autora) Ademais ele menciona que se a homossexualidade eacute tolerada

somente porque e na medida e m que existem outras condutas mais seriamente erradas para reprimir gays

americanos justamente sentiriam u m mal-estar (cf G R E E N 2008 6) (traduccedilatildeo livre da autora) 16 Identificando tambeacutem os problemas decorrentes do princiacutepio da toleracircncia Miguel Reale Juacutenior (2008

176) com base nas ideacuteias de Javier Lucas afirma que a retoacuterica da toleracircncia natildeo acolhe a criaccedilatildeo de uma

cultura fruto do diaacutelogo intercultural e ignora os problemas de inclusatildeo do diferente para se estabelecer a

igualdade na diversidade Nesse sentido Reale Juacutenior defende que o conceito liberal de toleracircncia deve

ser complementado com o conceito social de solidariedade destacando que solidariedade significa natildeo

apenas aceitaccedilatildeo da diferenccedila mas como realccedila Judith Martins-Costa uma aceitaccedilatildeo qualificada de cunho

normativo pela qual se admite que o diferente pode receber maior tutela ou tutela especiacutefica que atenda agrave

sua diferenccedila concreta como membro da comunidade ( R E A L E JUacuteNIOR 2008 176-177) 17 E m 1791 Thomas Paine notou que toleracircncia natildeo eacute o oposto de intoleracircncia mas a sua imitaccedilatildeo Ambos

satildeo despotismos U m assume para si o direito de reter a liberdade de consciecircncia e o outro de concedecirc-la

(paine 1791) Madison tambeacutem chamou a atenccedilatildeo das pessoas para o fato de que a palavra toleracircncia era

muito relutante sugerindo benevolecircncia legislativa ao inveacutes de direito ( N U S S B A U M 2008 90) (traduccedilatildeo livre da autora)

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 749

receptores E quando noacutes consideramos as pessoas natildeo como mocircnadas mas como membros de grupos minoritaacuterios entatildeo o fato da toleracircncia pode ser um lembrete infeliz da distribuiccedilatildeo de poder social (GREEN 2008 IO)18

Assim o princiacutepio da toleracircncia reflete tambeacutem a diferenccedila de poder entre

tolerados e toleradores E isto causa mais u m a vez desconforto nos tolerados no sentido

de que estes precisam contar com a benevolecircncia dos poderosos quando o poder eacute exercido

e quando a conduta do tolerado eacute julgada pelos poderosos (cf G R E E N 2008 8-12)

Green entende que entre as trecircs maneiras que geralmente satildeo chamadas

para complementar o princiacutepio da toleracircncia quais sejam aceitaccedilatildeo19 reconhecimento20

e compreensatildeo21 a uacuteltima eacute a adequada O autor assinala que u m a melhor compreensatildeo

pode ampliar a toleracircncia pode fazer com que as pessoas tenham menos m aacute vontade

pode mudar a disposiccedilatildeo para a toleracircncia incentivando pessoas a revisitar julgamentos

e pode tambeacutem ser u m a boa maneira de evitar razotildees erradas para a toleracircncia Essa

complementaccedilatildeo pode deixar aqueles que satildeo tolerados mais confortaacuteveis porque eles

sabem que os toleradores estatildeo fazendo esforccedilos de boa-feacute para compreender C o m o

consequumlecircncia os tolerados sentem que satildeo considerados como parte da convivecircncia

humana (cf G R E E N 2008 21) Green conclui que

Compreender o que a conduta reprovada significa para o agente e como se encaixa em uma vida humana pode fazer-nos revisitar e agraves vezes revisar aquele julgamento Pode complementar a toleracircncia pode tomar-nos toleradores melhores especialmente quando nos daacute uma ideacuteia do que eacute estar na extremidade afiada de uma vareta Esse tipo da compreensatildeo deixa espaccedilo para discordacircncias em torno de valores e deixa espaccedilo para correccedilatildeo de erros Natildeo

18 Traduccedilatildeo livre da autora W h o wants to live by grace and favor ofthe powerful This is especially true when the tolerated have no similar power over their tolerators In this respect toleration shares something with other desirable but asymmetric relations like offering mercy or taking pity which can also be uncomfortable for their recipients And when w e consider people not as monads but as members of minority groups then the fact of toleration may be an unhappy reminder ofthe social distribution of power

19 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pela aceitaccedilatildeo aqueles que praticam atos ou possuem crenccedilas que satildeo toleradas podem (i) assumir abertamente suas praacuteticas e crenccedilas sem que lhes seja imposta nenhuma consequumlecircncia adversa ou (ii) demandar acomodaccedilatildeo para suas praacuteticas e crenccedilas (cf G R E E N 2008 12-15)

20 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo reconhecimento praacuteticas e crenccedilas seriam toleradas de bom grado ateacute por aqueles que pensam que tais praacuteticas e crenccedilas satildeo supersticiosas sexistas etc e aqueles que toleram veriam os tolerados como eles mesmos se vecircem Nesse sentido reconhecimento exige natildeo apenas que os valores do tolerado sejam compartilhados pelos toleradores mas que a identidade do tolerado seja reconhecida (cf G R E E N 2008 15-19)

21 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo entendimento toleradores deveriam tentar recriar ou capturar na medida do possiacutevel o sentido que accedilotildees e siacutembolos tecircm para seus agentes (GREEN 2008 20-25) (traduccedilatildeo livre da autora attempt to capture or recreate to the extent that w e can the meanings that acts and symbols have for their agents)

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750 Maria Costa Neves Machado

Xrdiz a aceitaccedilatildeo ou o reconhecimento Mas o esforccedilo para compreender afirma nossa convivecircncia com os objetos de nossa toleracircncia Sem isso a toleracircncia eacute mais pobre - e mais dura - do que precisaria ser (GREEN 2008 27)22

Embora Green reconheccedila as principais falhas do princiacutepio da toleracircncia

parece que sua complementaccedilatildeo por u m a atitude compreensiva como sugerida pelo autor

ainda natildeo eacute suficiente para garantir a igualdade entre cidadatildeos e para proteger a dignidade

humana em democracias liberais

Tambeacutem criticando a abordagem da toleracircncia Heiner Bielefeldt argumenta

que a crise normativa resultante do pluralismo cultural deve ser endereccedilada pelo

reconhecimento de tal pluralismo natildeo pela sua toleracircncia C o m o afirmado por Bielefeldt

o problema da toleracircncia eacute que aqueles que tecircm o poder de tolerar tambeacutem tecircm o poder

de natildeo tolerar e aqueles que consideram que tem o poder para tolerar pretendem julgar

as questotildees de consciecircncia O autor sustenta que somente apoacutes a superaccedilatildeo dos conceitos

tradicionais de toleracircncia o pluralismo religioso e poliacutetico natildeo seraacute considerado uma perda

infeliz do centralismo religioso e da cosmovisatildeo da sociedade tradicional O pluralismo

religioso e poliacutetico seratildeo entatildeo considerados uma expressatildeo da responsabilidade autocircnoma

dos seres humanos que desejam ser respeitados e m suas convicccedilotildees e ter direitos iguais

(cf BIELEFELDT 2000 50)

D o mesmo modo Martha Nussbaum argumenta e m favor do princiacutepio

do respeito pela consciecircncia (Respect-Conscience Principie)23 de acordo com o qual

a esfera puacuteblica deve respeitar os diferentes comprometimentos religiosos de todos os

cidadatildeos e deve garantir u m espaccedilo onde os cidadatildeos possam agir consistentemente com

suas consciecircncias de forma que todos os cidadatildeos possam entrar no espaccedilo puacuteblico em

condiccedilotildees iguais ( N U S S B A U M 2008 22-23)

Nussbaum entende que tal princiacutepio natildeo requer a aprovaccedilatildeo de

reivindicaccedilotildees teoloacutegicas e eacuteticas de nenhuma religiatildeo pela esfera puacuteblica ou por cidadatildeos

individualmente (cf N U S S B A U M 2008 23) Neste sentido ela sustenta que o [r]

espeito por concidadatildeos natildeo significa dizer ou acreditar que suas visotildees religiosas estatildeo

corretas ou mesmo que todas as religiotildees satildeo caminhos vaacutelidos ao entendimento da vida

( N U S S B A U M 2008 23)24 Assim ela conclui que

Traduccedilatildeo livre da autora Understanding what the disapproved conduct means for the agent and how it fits into a human life may make us revisit and sometimes revise that judgment It may supplement torelation it may make us better tolerators especially when it gives us a grasp of what it is to be at the sharp end of a particular stick That kind of understanding leaves room for disagreement in value and room for correction of error It does not bring acceptance or recognition But the effort to understand affirms our fellowship with the objects of our toleration Without that toleration is poorer - and harder - than it need to be A autora expressamente afirma sua preferecircncia pelo termo respeito ao inveacutes do termo toleracircncia porque entende que o uacuteltimo eacute muito fraco e relutante (cf N U S S B A U M 2008 24) Traduccedilatildeo livre da autora [r]espect for fellow citizens does not mean saying or believing that their religious

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 751

O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como

seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito

de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25

Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e

que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma

boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem

valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser

respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)

D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo

ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo

ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso

- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas

em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar

independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)

Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26

de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio

do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem

ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo

contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos

a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)

Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas

e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a

igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade

poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees

e discursos

Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos

liberais Nussbaum por exemplo entende que

views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government

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752 Maria Costa Neves Machado

Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28

D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente

podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees

natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que

aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos

membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo

Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o

pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos

(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)

Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da

sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos

e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o

conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua

integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana

afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008

177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de

qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve

ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que

satildeo historicamente impostergaacuteveis

C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais

deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o

apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para

Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend

Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753

o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros

grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente

visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m

estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos

parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka

adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos

indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem

perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a

liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de

culto devem ser limitados

Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia

e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a

adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o

ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no

item subsequente

3 Liberdade religiosa no Brasil

A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com

o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia

ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam

da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos

religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de

prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o

inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino

religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora

realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que

quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais

O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de

1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece

que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se

aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida

agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais

examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se

apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente

assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes

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754 Maria Costa Neves Machado

31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo

O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel

a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos

religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias

Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967

expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa

aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com

Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da

ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro

que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras

pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade

brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais

satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho

entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos

inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf

F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada

uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da

observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros

natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os

bons costumes

U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto

e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo

previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees

Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo

apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros

autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de

todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora

possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser

considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece

estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a

Artigo 284 Exercer o curandeirismo

I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia

II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio

III - fazendo diagnoacutesticos

Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos

Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755

garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil

entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser

considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de

culto31

Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma

liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como

livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo

proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)

Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico

brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das

justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros

paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos

indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo

imperial32

A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que

natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo

oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo

seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees

indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do

Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33

Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal

Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da

Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila

preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias

o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de

sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com

STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)

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756 Maria Costa Neves Machado

base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda

a exigecircncia da licenccedila preacutevia

A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente

durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria

de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos

estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil

eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista

no art 19

Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()

Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que

podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente

neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las

Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute

mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria

a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35

Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo

19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode

ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144

C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem

implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer

a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer

u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que

resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do

ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica

ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo

Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009

Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757

no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da

Constituiccedilatildeo

32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a

pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e

pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso

VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia

religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado

brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a

prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e

B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)

Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo

penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados

incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m

sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material

agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais

assistecircncias satildeo direitos dos presos

D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto

seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos

organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa

O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos

religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou

internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa

Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo

de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades

hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas

as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos

prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que

em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais

estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os

religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m

suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo

hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do

ambiente hospitalar ou prisional

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758 Maria Costa Neves Machado

Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira

disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de

acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou

para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do

processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees

excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI

e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que

motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo

A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria

direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe

O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser

determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais

os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais

e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo

Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se

tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica

33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia

Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado

de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as

invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo

alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo

militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo

dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos

que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-

se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se

eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38

Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico

brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para

buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio

e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes

a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal

( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades

essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em

57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr

ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

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7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

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762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 141

Tambeacutem sustentando a abordagem da toleracircncia - em oposiccedilatildeo agrave abordagem

do respeito - Simon Blackburn argumenta que natildeo haacute nenhuma razatildeo para que algueacutem

respeite u m sistema de crenccedilas que esta pessoa natildeo compartilhe (cf B L A C K B U R N 2009

1) Ele entende que a palavra respeito pode significar a simples ausecircncia de interferecircncia

mas que tambeacutem pode significar admiraccedilatildeo reverecircncia ou deferecircncia (cf B L A C K B U R N

2009 2) De acordo com estes niacuteveis o autor afirma que as pessoas podem respeitar

outras pessoas que possuam crenccedilas falsas ou irracionais somente num sentido miacutenimo de

toleracircncia10 U m a vez que noacutes reconhecemos aquelas crenccedilas como falsas ou irracionais

natildeo eacute possiacutevel respeitaacute-las pelo menos natildeo como decorrecircncia do fato de que algueacutem

acredita nelas (cf B L A C K B U R N 2009 3 e 7) E m conformidade com Blackburn

acreditar numa crenccedila falsa natildeo concede a ningueacutem o direito ao respeito Na medida em que eu natildeo posso compartilhar de sua crenccedila eu natildeo tenho nenhuma razatildeo para respeitaacute-lo por acreditar nela - pelo contraacuterio na verdade (BLACKBURN 2009 16)

O autor argumenta que eacute inconsistente com qualquer concepccedilatildeo apropriada

de crenccedila - a qual implica que haacute u m contraste entre certo e errado - pensar que essa eacute

uma questatildeo exclusivamente pessoal e que qualquer crenccedila eacute tatildeo boa quanto qualquer

outra N a verdade ele nega que crenccedilas estejam livres de controle normativo e que a

desigualdade entre crenccedilas seja uma violaccedilatildeo de direitos de uma pessoa Para ele ningueacutem

por u m momento acredita nesta igualdade promiacutescua de crenccedilas na vida quotidiana

( B L A C K B U R N 2009 3)12

Parece que Blackburn estaacute criticando uma concepccedilatildeo de respeito para

crenccedilas religiosas que signifique a admiraccedilatildeo de todas as crenccedilas apenas porque elas

satildeo detidas por uma pessoa Entretanto o respeito requerido pela liberdade religiosa natildeo

corresponde a u m sentimento de admiraccedilatildeo pelas crenccedilas e praacuteticas religiosas especiacuteficas

as quais noacutes podemos natildeo compartilhar mas a u m respeito pela capacidade potencial de

todos os seres humanos de fazerem escolhas autonomamente conforme seraacute demonstrado

pela abordagem de Martha Nussbaum

O problema fundamental com o princiacutepio da toleracircncia eacute que este deixa

o tolerado desconfortaacutevel em pelo menos trecircs maneiras (cf G R E E N 2008 4-8) C o m o

demonstrado por Leslie Green a toleracircncia eacute limitada e m seu escopo eacute incompleta e

10 Para o autor existe tambeacutem uma graduaccedilatildeo de respeito referente a pessoas que possuem crenccedilas falsas no sentido de que respeitamos mais algumas pessoas das quais discordamos do que outras (cf B L A C K B U R N 2009 6)

11 Traduccedilatildeo livre da autora holding a false belief does not give anyone a title to respect Insofar as I cannot share your belief I have no reason to respect you for holding it - quite the reverse in fact

12 Traduccedilatildeo livre da autora nobody for a moment believes in this promiscuous equality of belief in everyday life

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748 Maria Costa Neves Machado

parcial e pode ser considera principalmente c o m o questatildeo de descriminalizaccedilatildeo de

condutas1314 M a s natildeo somente o escopo do princiacutepio da toleracircncia pode estar errado

seus fundamentos tambeacutem podem u m princiacutepio de toleracircncia pode ser adotado por razotildees

morais suspeitas15 Aleacutem disso se u m princiacutepio de toleracircncia for sustentado da maneira

errada - aqueles que toleram deixam claro que prefeririam natildeo ser tolerantes - aqueles

que satildeo tolerados podem tambeacutem sentir-se desconfortaacuteveis ( G R E E N 2008 6-7)16

Entretanto m e s m o que u m sistema legal pudesse construir u m princiacutepio de

toleracircncia que superasse as falhas mencionadas acima aqueles que satildeo tolerados ainda se

sentiriam desconfortaacuteveis porque seria sempre melhor se natildeo tivessem que ser tolerados

e sujeitados ao poder de toleracircncia de outra pessoa ( G R E E N 2008 6-7)n Nesse sentido

Green sustenta que

Quem quer viver da graccedila e do favor dos poderosos Isto eacute especialmente verdadeiro quando tolerados natildeo tecircm nenhum poder similar sobre seus toleradores A esse respeito a toleracircncia compartilha algo com outras relaccedilotildees desejaacuteveis mas assimeacutetricas como oferecer misericoacuterdia ou sentir piedade que pode tambeacutem ser incocircmoda para seus

13 E m relaccedilatildeo agrave toleracircncia de minorias sexuais Leslie Green ressalta que exceto pela descriminalizaccedilatildeo

haacute pouca evidecircncia que a natildeo-conformidade sexual seja amplamente tolerada nos Estados Unidos onde

eleiccedilotildees ainda podem ser perdidas ou ganhas dependendo da questatildeo a respeito do que fazer sobre gays e

onde e m aacutereas como direito do trabalho e de famiacutelia minorias sexuais continuam a vivenciar tratamento

duro atualmente raro em democracias liberais (GREEN 2008 5) (traduccedilatildeo livre da autora apart from

decriminalization there is slim evidence that sexual non-conformity is widely tolerated in the United States

where elections can still be won or lost on the issue of what to do about the gays and where in aacutereas from

employment to family law sexual minorities continue to experience harsh treatment now rare in liberal

democracies) 14 Natildeo obstante o autor alerta que a descriminalizaccedilatildeo de condutas pode natildeo resultar da adoccedilatildeo de u m princiacutepio

de toleracircncia - faz-se necessaacuterio examinar as razotildees pelas quais determinada conduta foi descriminalizada

(cf G R E E N 2008 5) 15 Por exemplo o autor afirma que seria preocupante se u m governo tolerasse o ato de fumar porque seus

atuaacuterios descobriram que fumantes morrem mais cedo o suficiente para aumentar o saldo liacutequido da

previdecircncia (traduccedilatildeo livre da autora) Ademais ele menciona que se a homossexualidade eacute tolerada

somente porque e na medida e m que existem outras condutas mais seriamente erradas para reprimir gays

americanos justamente sentiriam u m mal-estar (cf G R E E N 2008 6) (traduccedilatildeo livre da autora) 16 Identificando tambeacutem os problemas decorrentes do princiacutepio da toleracircncia Miguel Reale Juacutenior (2008

176) com base nas ideacuteias de Javier Lucas afirma que a retoacuterica da toleracircncia natildeo acolhe a criaccedilatildeo de uma

cultura fruto do diaacutelogo intercultural e ignora os problemas de inclusatildeo do diferente para se estabelecer a

igualdade na diversidade Nesse sentido Reale Juacutenior defende que o conceito liberal de toleracircncia deve

ser complementado com o conceito social de solidariedade destacando que solidariedade significa natildeo

apenas aceitaccedilatildeo da diferenccedila mas como realccedila Judith Martins-Costa uma aceitaccedilatildeo qualificada de cunho

normativo pela qual se admite que o diferente pode receber maior tutela ou tutela especiacutefica que atenda agrave

sua diferenccedila concreta como membro da comunidade ( R E A L E JUacuteNIOR 2008 176-177) 17 E m 1791 Thomas Paine notou que toleracircncia natildeo eacute o oposto de intoleracircncia mas a sua imitaccedilatildeo Ambos

satildeo despotismos U m assume para si o direito de reter a liberdade de consciecircncia e o outro de concedecirc-la

(paine 1791) Madison tambeacutem chamou a atenccedilatildeo das pessoas para o fato de que a palavra toleracircncia era

muito relutante sugerindo benevolecircncia legislativa ao inveacutes de direito ( N U S S B A U M 2008 90) (traduccedilatildeo livre da autora)

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 749

receptores E quando noacutes consideramos as pessoas natildeo como mocircnadas mas como membros de grupos minoritaacuterios entatildeo o fato da toleracircncia pode ser um lembrete infeliz da distribuiccedilatildeo de poder social (GREEN 2008 IO)18

Assim o princiacutepio da toleracircncia reflete tambeacutem a diferenccedila de poder entre

tolerados e toleradores E isto causa mais u m a vez desconforto nos tolerados no sentido

de que estes precisam contar com a benevolecircncia dos poderosos quando o poder eacute exercido

e quando a conduta do tolerado eacute julgada pelos poderosos (cf G R E E N 2008 8-12)

Green entende que entre as trecircs maneiras que geralmente satildeo chamadas

para complementar o princiacutepio da toleracircncia quais sejam aceitaccedilatildeo19 reconhecimento20

e compreensatildeo21 a uacuteltima eacute a adequada O autor assinala que u m a melhor compreensatildeo

pode ampliar a toleracircncia pode fazer com que as pessoas tenham menos m aacute vontade

pode mudar a disposiccedilatildeo para a toleracircncia incentivando pessoas a revisitar julgamentos

e pode tambeacutem ser u m a boa maneira de evitar razotildees erradas para a toleracircncia Essa

complementaccedilatildeo pode deixar aqueles que satildeo tolerados mais confortaacuteveis porque eles

sabem que os toleradores estatildeo fazendo esforccedilos de boa-feacute para compreender C o m o

consequumlecircncia os tolerados sentem que satildeo considerados como parte da convivecircncia

humana (cf G R E E N 2008 21) Green conclui que

Compreender o que a conduta reprovada significa para o agente e como se encaixa em uma vida humana pode fazer-nos revisitar e agraves vezes revisar aquele julgamento Pode complementar a toleracircncia pode tomar-nos toleradores melhores especialmente quando nos daacute uma ideacuteia do que eacute estar na extremidade afiada de uma vareta Esse tipo da compreensatildeo deixa espaccedilo para discordacircncias em torno de valores e deixa espaccedilo para correccedilatildeo de erros Natildeo

18 Traduccedilatildeo livre da autora W h o wants to live by grace and favor ofthe powerful This is especially true when the tolerated have no similar power over their tolerators In this respect toleration shares something with other desirable but asymmetric relations like offering mercy or taking pity which can also be uncomfortable for their recipients And when w e consider people not as monads but as members of minority groups then the fact of toleration may be an unhappy reminder ofthe social distribution of power

19 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pela aceitaccedilatildeo aqueles que praticam atos ou possuem crenccedilas que satildeo toleradas podem (i) assumir abertamente suas praacuteticas e crenccedilas sem que lhes seja imposta nenhuma consequumlecircncia adversa ou (ii) demandar acomodaccedilatildeo para suas praacuteticas e crenccedilas (cf G R E E N 2008 12-15)

20 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo reconhecimento praacuteticas e crenccedilas seriam toleradas de bom grado ateacute por aqueles que pensam que tais praacuteticas e crenccedilas satildeo supersticiosas sexistas etc e aqueles que toleram veriam os tolerados como eles mesmos se vecircem Nesse sentido reconhecimento exige natildeo apenas que os valores do tolerado sejam compartilhados pelos toleradores mas que a identidade do tolerado seja reconhecida (cf G R E E N 2008 15-19)

21 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo entendimento toleradores deveriam tentar recriar ou capturar na medida do possiacutevel o sentido que accedilotildees e siacutembolos tecircm para seus agentes (GREEN 2008 20-25) (traduccedilatildeo livre da autora attempt to capture or recreate to the extent that w e can the meanings that acts and symbols have for their agents)

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750 Maria Costa Neves Machado

Xrdiz a aceitaccedilatildeo ou o reconhecimento Mas o esforccedilo para compreender afirma nossa convivecircncia com os objetos de nossa toleracircncia Sem isso a toleracircncia eacute mais pobre - e mais dura - do que precisaria ser (GREEN 2008 27)22

Embora Green reconheccedila as principais falhas do princiacutepio da toleracircncia

parece que sua complementaccedilatildeo por u m a atitude compreensiva como sugerida pelo autor

ainda natildeo eacute suficiente para garantir a igualdade entre cidadatildeos e para proteger a dignidade

humana em democracias liberais

Tambeacutem criticando a abordagem da toleracircncia Heiner Bielefeldt argumenta

que a crise normativa resultante do pluralismo cultural deve ser endereccedilada pelo

reconhecimento de tal pluralismo natildeo pela sua toleracircncia C o m o afirmado por Bielefeldt

o problema da toleracircncia eacute que aqueles que tecircm o poder de tolerar tambeacutem tecircm o poder

de natildeo tolerar e aqueles que consideram que tem o poder para tolerar pretendem julgar

as questotildees de consciecircncia O autor sustenta que somente apoacutes a superaccedilatildeo dos conceitos

tradicionais de toleracircncia o pluralismo religioso e poliacutetico natildeo seraacute considerado uma perda

infeliz do centralismo religioso e da cosmovisatildeo da sociedade tradicional O pluralismo

religioso e poliacutetico seratildeo entatildeo considerados uma expressatildeo da responsabilidade autocircnoma

dos seres humanos que desejam ser respeitados e m suas convicccedilotildees e ter direitos iguais

(cf BIELEFELDT 2000 50)

D o mesmo modo Martha Nussbaum argumenta e m favor do princiacutepio

do respeito pela consciecircncia (Respect-Conscience Principie)23 de acordo com o qual

a esfera puacuteblica deve respeitar os diferentes comprometimentos religiosos de todos os

cidadatildeos e deve garantir u m espaccedilo onde os cidadatildeos possam agir consistentemente com

suas consciecircncias de forma que todos os cidadatildeos possam entrar no espaccedilo puacuteblico em

condiccedilotildees iguais ( N U S S B A U M 2008 22-23)

Nussbaum entende que tal princiacutepio natildeo requer a aprovaccedilatildeo de

reivindicaccedilotildees teoloacutegicas e eacuteticas de nenhuma religiatildeo pela esfera puacuteblica ou por cidadatildeos

individualmente (cf N U S S B A U M 2008 23) Neste sentido ela sustenta que o [r]

espeito por concidadatildeos natildeo significa dizer ou acreditar que suas visotildees religiosas estatildeo

corretas ou mesmo que todas as religiotildees satildeo caminhos vaacutelidos ao entendimento da vida

( N U S S B A U M 2008 23)24 Assim ela conclui que

Traduccedilatildeo livre da autora Understanding what the disapproved conduct means for the agent and how it fits into a human life may make us revisit and sometimes revise that judgment It may supplement torelation it may make us better tolerators especially when it gives us a grasp of what it is to be at the sharp end of a particular stick That kind of understanding leaves room for disagreement in value and room for correction of error It does not bring acceptance or recognition But the effort to understand affirms our fellowship with the objects of our toleration Without that toleration is poorer - and harder - than it need to be A autora expressamente afirma sua preferecircncia pelo termo respeito ao inveacutes do termo toleracircncia porque entende que o uacuteltimo eacute muito fraco e relutante (cf N U S S B A U M 2008 24) Traduccedilatildeo livre da autora [r]espect for fellow citizens does not mean saying or believing that their religious

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 751

O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como

seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito

de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25

Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e

que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma

boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem

valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser

respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)

D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo

ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo

ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso

- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas

em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar

independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)

Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26

de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio

do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem

ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo

contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos

a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)

Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas

e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a

igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade

poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees

e discursos

Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos

liberais Nussbaum por exemplo entende que

views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government

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752 Maria Costa Neves Machado

Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28

D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente

podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees

natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que

aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos

membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo

Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o

pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos

(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)

Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da

sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos

e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o

conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua

integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana

afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008

177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de

qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve

ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que

satildeo historicamente impostergaacuteveis

C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais

deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o

apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para

Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend

Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753

o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros

grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente

visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m

estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos

parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka

adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos

indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem

perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a

liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de

culto devem ser limitados

Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia

e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a

adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o

ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no

item subsequente

3 Liberdade religiosa no Brasil

A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com

o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia

ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam

da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos

religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de

prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o

inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino

religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora

realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que

quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais

O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de

1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece

que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se

aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida

agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais

examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se

apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente

assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes

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31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo

O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel

a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos

religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias

Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967

expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa

aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com

Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da

ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro

que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras

pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade

brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais

satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho

entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos

inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf

F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada

uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da

observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros

natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os

bons costumes

U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto

e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo

previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees

Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo

apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros

autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de

todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora

possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser

considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece

estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a

Artigo 284 Exercer o curandeirismo

I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia

II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio

III - fazendo diagnoacutesticos

Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos

Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755

garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil

entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser

considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de

culto31

Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma

liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como

livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo

proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)

Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico

brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das

justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros

paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos

indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo

imperial32

A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que

natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo

oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo

seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees

indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do

Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33

Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal

Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da

Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila

preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias

o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de

sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com

STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)

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base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda

a exigecircncia da licenccedila preacutevia

A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente

durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria

de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos

estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil

eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista

no art 19

Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()

Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que

podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente

neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las

Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute

mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria

a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35

Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo

19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode

ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144

C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem

implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer

a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer

u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que

resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do

ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica

ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo

Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009

Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757

no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da

Constituiccedilatildeo

32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a

pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e

pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso

VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia

religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado

brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a

prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e

B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)

Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo

penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados

incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m

sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material

agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais

assistecircncias satildeo direitos dos presos

D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto

seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos

organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa

O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos

religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou

internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa

Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo

de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades

hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas

as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos

prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que

em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais

estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os

religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m

suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo

hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do

ambiente hospitalar ou prisional

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Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira

disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de

acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou

para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do

processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees

excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI

e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que

motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo

A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria

direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe

O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser

determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais

os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais

e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo

Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se

tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica

33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia

Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado

de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as

invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo

alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo

militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo

dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos

que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-

se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se

eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38

Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico

brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para

buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio

e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes

a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal

( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades

essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em

57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr

ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

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7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

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762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

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748 Maria Costa Neves Machado

parcial e pode ser considera principalmente c o m o questatildeo de descriminalizaccedilatildeo de

condutas1314 M a s natildeo somente o escopo do princiacutepio da toleracircncia pode estar errado

seus fundamentos tambeacutem podem u m princiacutepio de toleracircncia pode ser adotado por razotildees

morais suspeitas15 Aleacutem disso se u m princiacutepio de toleracircncia for sustentado da maneira

errada - aqueles que toleram deixam claro que prefeririam natildeo ser tolerantes - aqueles

que satildeo tolerados podem tambeacutem sentir-se desconfortaacuteveis ( G R E E N 2008 6-7)16

Entretanto m e s m o que u m sistema legal pudesse construir u m princiacutepio de

toleracircncia que superasse as falhas mencionadas acima aqueles que satildeo tolerados ainda se

sentiriam desconfortaacuteveis porque seria sempre melhor se natildeo tivessem que ser tolerados

e sujeitados ao poder de toleracircncia de outra pessoa ( G R E E N 2008 6-7)n Nesse sentido

Green sustenta que

Quem quer viver da graccedila e do favor dos poderosos Isto eacute especialmente verdadeiro quando tolerados natildeo tecircm nenhum poder similar sobre seus toleradores A esse respeito a toleracircncia compartilha algo com outras relaccedilotildees desejaacuteveis mas assimeacutetricas como oferecer misericoacuterdia ou sentir piedade que pode tambeacutem ser incocircmoda para seus

13 E m relaccedilatildeo agrave toleracircncia de minorias sexuais Leslie Green ressalta que exceto pela descriminalizaccedilatildeo

haacute pouca evidecircncia que a natildeo-conformidade sexual seja amplamente tolerada nos Estados Unidos onde

eleiccedilotildees ainda podem ser perdidas ou ganhas dependendo da questatildeo a respeito do que fazer sobre gays e

onde e m aacutereas como direito do trabalho e de famiacutelia minorias sexuais continuam a vivenciar tratamento

duro atualmente raro em democracias liberais (GREEN 2008 5) (traduccedilatildeo livre da autora apart from

decriminalization there is slim evidence that sexual non-conformity is widely tolerated in the United States

where elections can still be won or lost on the issue of what to do about the gays and where in aacutereas from

employment to family law sexual minorities continue to experience harsh treatment now rare in liberal

democracies) 14 Natildeo obstante o autor alerta que a descriminalizaccedilatildeo de condutas pode natildeo resultar da adoccedilatildeo de u m princiacutepio

de toleracircncia - faz-se necessaacuterio examinar as razotildees pelas quais determinada conduta foi descriminalizada

(cf G R E E N 2008 5) 15 Por exemplo o autor afirma que seria preocupante se u m governo tolerasse o ato de fumar porque seus

atuaacuterios descobriram que fumantes morrem mais cedo o suficiente para aumentar o saldo liacutequido da

previdecircncia (traduccedilatildeo livre da autora) Ademais ele menciona que se a homossexualidade eacute tolerada

somente porque e na medida e m que existem outras condutas mais seriamente erradas para reprimir gays

americanos justamente sentiriam u m mal-estar (cf G R E E N 2008 6) (traduccedilatildeo livre da autora) 16 Identificando tambeacutem os problemas decorrentes do princiacutepio da toleracircncia Miguel Reale Juacutenior (2008

176) com base nas ideacuteias de Javier Lucas afirma que a retoacuterica da toleracircncia natildeo acolhe a criaccedilatildeo de uma

cultura fruto do diaacutelogo intercultural e ignora os problemas de inclusatildeo do diferente para se estabelecer a

igualdade na diversidade Nesse sentido Reale Juacutenior defende que o conceito liberal de toleracircncia deve

ser complementado com o conceito social de solidariedade destacando que solidariedade significa natildeo

apenas aceitaccedilatildeo da diferenccedila mas como realccedila Judith Martins-Costa uma aceitaccedilatildeo qualificada de cunho

normativo pela qual se admite que o diferente pode receber maior tutela ou tutela especiacutefica que atenda agrave

sua diferenccedila concreta como membro da comunidade ( R E A L E JUacuteNIOR 2008 176-177) 17 E m 1791 Thomas Paine notou que toleracircncia natildeo eacute o oposto de intoleracircncia mas a sua imitaccedilatildeo Ambos

satildeo despotismos U m assume para si o direito de reter a liberdade de consciecircncia e o outro de concedecirc-la

(paine 1791) Madison tambeacutem chamou a atenccedilatildeo das pessoas para o fato de que a palavra toleracircncia era

muito relutante sugerindo benevolecircncia legislativa ao inveacutes de direito ( N U S S B A U M 2008 90) (traduccedilatildeo livre da autora)

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 749

receptores E quando noacutes consideramos as pessoas natildeo como mocircnadas mas como membros de grupos minoritaacuterios entatildeo o fato da toleracircncia pode ser um lembrete infeliz da distribuiccedilatildeo de poder social (GREEN 2008 IO)18

Assim o princiacutepio da toleracircncia reflete tambeacutem a diferenccedila de poder entre

tolerados e toleradores E isto causa mais u m a vez desconforto nos tolerados no sentido

de que estes precisam contar com a benevolecircncia dos poderosos quando o poder eacute exercido

e quando a conduta do tolerado eacute julgada pelos poderosos (cf G R E E N 2008 8-12)

Green entende que entre as trecircs maneiras que geralmente satildeo chamadas

para complementar o princiacutepio da toleracircncia quais sejam aceitaccedilatildeo19 reconhecimento20

e compreensatildeo21 a uacuteltima eacute a adequada O autor assinala que u m a melhor compreensatildeo

pode ampliar a toleracircncia pode fazer com que as pessoas tenham menos m aacute vontade

pode mudar a disposiccedilatildeo para a toleracircncia incentivando pessoas a revisitar julgamentos

e pode tambeacutem ser u m a boa maneira de evitar razotildees erradas para a toleracircncia Essa

complementaccedilatildeo pode deixar aqueles que satildeo tolerados mais confortaacuteveis porque eles

sabem que os toleradores estatildeo fazendo esforccedilos de boa-feacute para compreender C o m o

consequumlecircncia os tolerados sentem que satildeo considerados como parte da convivecircncia

humana (cf G R E E N 2008 21) Green conclui que

Compreender o que a conduta reprovada significa para o agente e como se encaixa em uma vida humana pode fazer-nos revisitar e agraves vezes revisar aquele julgamento Pode complementar a toleracircncia pode tomar-nos toleradores melhores especialmente quando nos daacute uma ideacuteia do que eacute estar na extremidade afiada de uma vareta Esse tipo da compreensatildeo deixa espaccedilo para discordacircncias em torno de valores e deixa espaccedilo para correccedilatildeo de erros Natildeo

18 Traduccedilatildeo livre da autora W h o wants to live by grace and favor ofthe powerful This is especially true when the tolerated have no similar power over their tolerators In this respect toleration shares something with other desirable but asymmetric relations like offering mercy or taking pity which can also be uncomfortable for their recipients And when w e consider people not as monads but as members of minority groups then the fact of toleration may be an unhappy reminder ofthe social distribution of power

19 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pela aceitaccedilatildeo aqueles que praticam atos ou possuem crenccedilas que satildeo toleradas podem (i) assumir abertamente suas praacuteticas e crenccedilas sem que lhes seja imposta nenhuma consequumlecircncia adversa ou (ii) demandar acomodaccedilatildeo para suas praacuteticas e crenccedilas (cf G R E E N 2008 12-15)

20 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo reconhecimento praacuteticas e crenccedilas seriam toleradas de bom grado ateacute por aqueles que pensam que tais praacuteticas e crenccedilas satildeo supersticiosas sexistas etc e aqueles que toleram veriam os tolerados como eles mesmos se vecircem Nesse sentido reconhecimento exige natildeo apenas que os valores do tolerado sejam compartilhados pelos toleradores mas que a identidade do tolerado seja reconhecida (cf G R E E N 2008 15-19)

21 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo entendimento toleradores deveriam tentar recriar ou capturar na medida do possiacutevel o sentido que accedilotildees e siacutembolos tecircm para seus agentes (GREEN 2008 20-25) (traduccedilatildeo livre da autora attempt to capture or recreate to the extent that w e can the meanings that acts and symbols have for their agents)

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750 Maria Costa Neves Machado

Xrdiz a aceitaccedilatildeo ou o reconhecimento Mas o esforccedilo para compreender afirma nossa convivecircncia com os objetos de nossa toleracircncia Sem isso a toleracircncia eacute mais pobre - e mais dura - do que precisaria ser (GREEN 2008 27)22

Embora Green reconheccedila as principais falhas do princiacutepio da toleracircncia

parece que sua complementaccedilatildeo por u m a atitude compreensiva como sugerida pelo autor

ainda natildeo eacute suficiente para garantir a igualdade entre cidadatildeos e para proteger a dignidade

humana em democracias liberais

Tambeacutem criticando a abordagem da toleracircncia Heiner Bielefeldt argumenta

que a crise normativa resultante do pluralismo cultural deve ser endereccedilada pelo

reconhecimento de tal pluralismo natildeo pela sua toleracircncia C o m o afirmado por Bielefeldt

o problema da toleracircncia eacute que aqueles que tecircm o poder de tolerar tambeacutem tecircm o poder

de natildeo tolerar e aqueles que consideram que tem o poder para tolerar pretendem julgar

as questotildees de consciecircncia O autor sustenta que somente apoacutes a superaccedilatildeo dos conceitos

tradicionais de toleracircncia o pluralismo religioso e poliacutetico natildeo seraacute considerado uma perda

infeliz do centralismo religioso e da cosmovisatildeo da sociedade tradicional O pluralismo

religioso e poliacutetico seratildeo entatildeo considerados uma expressatildeo da responsabilidade autocircnoma

dos seres humanos que desejam ser respeitados e m suas convicccedilotildees e ter direitos iguais

(cf BIELEFELDT 2000 50)

D o mesmo modo Martha Nussbaum argumenta e m favor do princiacutepio

do respeito pela consciecircncia (Respect-Conscience Principie)23 de acordo com o qual

a esfera puacuteblica deve respeitar os diferentes comprometimentos religiosos de todos os

cidadatildeos e deve garantir u m espaccedilo onde os cidadatildeos possam agir consistentemente com

suas consciecircncias de forma que todos os cidadatildeos possam entrar no espaccedilo puacuteblico em

condiccedilotildees iguais ( N U S S B A U M 2008 22-23)

Nussbaum entende que tal princiacutepio natildeo requer a aprovaccedilatildeo de

reivindicaccedilotildees teoloacutegicas e eacuteticas de nenhuma religiatildeo pela esfera puacuteblica ou por cidadatildeos

individualmente (cf N U S S B A U M 2008 23) Neste sentido ela sustenta que o [r]

espeito por concidadatildeos natildeo significa dizer ou acreditar que suas visotildees religiosas estatildeo

corretas ou mesmo que todas as religiotildees satildeo caminhos vaacutelidos ao entendimento da vida

( N U S S B A U M 2008 23)24 Assim ela conclui que

Traduccedilatildeo livre da autora Understanding what the disapproved conduct means for the agent and how it fits into a human life may make us revisit and sometimes revise that judgment It may supplement torelation it may make us better tolerators especially when it gives us a grasp of what it is to be at the sharp end of a particular stick That kind of understanding leaves room for disagreement in value and room for correction of error It does not bring acceptance or recognition But the effort to understand affirms our fellowship with the objects of our toleration Without that toleration is poorer - and harder - than it need to be A autora expressamente afirma sua preferecircncia pelo termo respeito ao inveacutes do termo toleracircncia porque entende que o uacuteltimo eacute muito fraco e relutante (cf N U S S B A U M 2008 24) Traduccedilatildeo livre da autora [r]espect for fellow citizens does not mean saying or believing that their religious

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 751

O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como

seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito

de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25

Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e

que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma

boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem

valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser

respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)

D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo

ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo

ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso

- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas

em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar

independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)

Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26

de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio

do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem

ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo

contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos

a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)

Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas

e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a

igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade

poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees

e discursos

Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos

liberais Nussbaum por exemplo entende que

views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government

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752 Maria Costa Neves Machado

Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28

D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente

podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees

natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que

aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos

membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo

Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o

pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos

(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)

Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da

sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos

e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o

conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua

integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana

afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008

177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de

qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve

ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que

satildeo historicamente impostergaacuteveis

C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais

deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o

apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para

Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend

Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753

o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros

grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente

visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m

estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos

parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka

adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos

indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem

perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a

liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de

culto devem ser limitados

Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia

e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a

adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o

ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no

item subsequente

3 Liberdade religiosa no Brasil

A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com

o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia

ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam

da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos

religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de

prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o

inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino

religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora

realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que

quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais

O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de

1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece

que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se

aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida

agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais

examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se

apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente

assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes

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754 Maria Costa Neves Machado

31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo

O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel

a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos

religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias

Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967

expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa

aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com

Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da

ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro

que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras

pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade

brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais

satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho

entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos

inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf

F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada

uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da

observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros

natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os

bons costumes

U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto

e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo

previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees

Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo

apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros

autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de

todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora

possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser

considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece

estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a

Artigo 284 Exercer o curandeirismo

I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia

II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio

III - fazendo diagnoacutesticos

Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos

Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755

garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil

entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser

considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de

culto31

Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma

liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como

livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo

proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)

Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico

brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das

justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros

paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos

indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo

imperial32

A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que

natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo

oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo

seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees

indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do

Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33

Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal

Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da

Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila

preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias

o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de

sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com

STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)

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756 Maria Costa Neves Machado

base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda

a exigecircncia da licenccedila preacutevia

A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente

durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria

de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos

estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil

eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista

no art 19

Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()

Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que

podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente

neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las

Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute

mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria

a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35

Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo

19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode

ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144

C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem

implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer

a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer

u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que

resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do

ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica

ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo

Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009

Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757

no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da

Constituiccedilatildeo

32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a

pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e

pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso

VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia

religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado

brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a

prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e

B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)

Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo

penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados

incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m

sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material

agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais

assistecircncias satildeo direitos dos presos

D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto

seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos

organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa

O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos

religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou

internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa

Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo

de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades

hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas

as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos

prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que

em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais

estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os

religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m

suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo

hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do

ambiente hospitalar ou prisional

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758 Maria Costa Neves Machado

Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira

disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de

acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou

para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do

processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees

excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI

e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que

motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo

A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria

direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe

O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser

determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais

os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais

e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo

Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se

tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica

33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia

Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado

de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as

invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo

alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo

militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo

dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos

que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-

se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se

eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38

Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico

brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para

buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio

e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes

a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal

( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades

essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em

57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr

ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

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7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

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762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 749

receptores E quando noacutes consideramos as pessoas natildeo como mocircnadas mas como membros de grupos minoritaacuterios entatildeo o fato da toleracircncia pode ser um lembrete infeliz da distribuiccedilatildeo de poder social (GREEN 2008 IO)18

Assim o princiacutepio da toleracircncia reflete tambeacutem a diferenccedila de poder entre

tolerados e toleradores E isto causa mais u m a vez desconforto nos tolerados no sentido

de que estes precisam contar com a benevolecircncia dos poderosos quando o poder eacute exercido

e quando a conduta do tolerado eacute julgada pelos poderosos (cf G R E E N 2008 8-12)

Green entende que entre as trecircs maneiras que geralmente satildeo chamadas

para complementar o princiacutepio da toleracircncia quais sejam aceitaccedilatildeo19 reconhecimento20

e compreensatildeo21 a uacuteltima eacute a adequada O autor assinala que u m a melhor compreensatildeo

pode ampliar a toleracircncia pode fazer com que as pessoas tenham menos m aacute vontade

pode mudar a disposiccedilatildeo para a toleracircncia incentivando pessoas a revisitar julgamentos

e pode tambeacutem ser u m a boa maneira de evitar razotildees erradas para a toleracircncia Essa

complementaccedilatildeo pode deixar aqueles que satildeo tolerados mais confortaacuteveis porque eles

sabem que os toleradores estatildeo fazendo esforccedilos de boa-feacute para compreender C o m o

consequumlecircncia os tolerados sentem que satildeo considerados como parte da convivecircncia

humana (cf G R E E N 2008 21) Green conclui que

Compreender o que a conduta reprovada significa para o agente e como se encaixa em uma vida humana pode fazer-nos revisitar e agraves vezes revisar aquele julgamento Pode complementar a toleracircncia pode tomar-nos toleradores melhores especialmente quando nos daacute uma ideacuteia do que eacute estar na extremidade afiada de uma vareta Esse tipo da compreensatildeo deixa espaccedilo para discordacircncias em torno de valores e deixa espaccedilo para correccedilatildeo de erros Natildeo

18 Traduccedilatildeo livre da autora W h o wants to live by grace and favor ofthe powerful This is especially true when the tolerated have no similar power over their tolerators In this respect toleration shares something with other desirable but asymmetric relations like offering mercy or taking pity which can also be uncomfortable for their recipients And when w e consider people not as monads but as members of minority groups then the fact of toleration may be an unhappy reminder ofthe social distribution of power

19 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pela aceitaccedilatildeo aqueles que praticam atos ou possuem crenccedilas que satildeo toleradas podem (i) assumir abertamente suas praacuteticas e crenccedilas sem que lhes seja imposta nenhuma consequumlecircncia adversa ou (ii) demandar acomodaccedilatildeo para suas praacuteticas e crenccedilas (cf G R E E N 2008 12-15)

20 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo reconhecimento praacuteticas e crenccedilas seriam toleradas de bom grado ateacute por aqueles que pensam que tais praacuteticas e crenccedilas satildeo supersticiosas sexistas etc e aqueles que toleram veriam os tolerados como eles mesmos se vecircem Nesse sentido reconhecimento exige natildeo apenas que os valores do tolerado sejam compartilhados pelos toleradores mas que a identidade do tolerado seja reconhecida (cf G R E E N 2008 15-19)

21 Se o princiacutepio da toleracircncia fosse complementado pelo entendimento toleradores deveriam tentar recriar ou capturar na medida do possiacutevel o sentido que accedilotildees e siacutembolos tecircm para seus agentes (GREEN 2008 20-25) (traduccedilatildeo livre da autora attempt to capture or recreate to the extent that w e can the meanings that acts and symbols have for their agents)

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750 Maria Costa Neves Machado

Xrdiz a aceitaccedilatildeo ou o reconhecimento Mas o esforccedilo para compreender afirma nossa convivecircncia com os objetos de nossa toleracircncia Sem isso a toleracircncia eacute mais pobre - e mais dura - do que precisaria ser (GREEN 2008 27)22

Embora Green reconheccedila as principais falhas do princiacutepio da toleracircncia

parece que sua complementaccedilatildeo por u m a atitude compreensiva como sugerida pelo autor

ainda natildeo eacute suficiente para garantir a igualdade entre cidadatildeos e para proteger a dignidade

humana em democracias liberais

Tambeacutem criticando a abordagem da toleracircncia Heiner Bielefeldt argumenta

que a crise normativa resultante do pluralismo cultural deve ser endereccedilada pelo

reconhecimento de tal pluralismo natildeo pela sua toleracircncia C o m o afirmado por Bielefeldt

o problema da toleracircncia eacute que aqueles que tecircm o poder de tolerar tambeacutem tecircm o poder

de natildeo tolerar e aqueles que consideram que tem o poder para tolerar pretendem julgar

as questotildees de consciecircncia O autor sustenta que somente apoacutes a superaccedilatildeo dos conceitos

tradicionais de toleracircncia o pluralismo religioso e poliacutetico natildeo seraacute considerado uma perda

infeliz do centralismo religioso e da cosmovisatildeo da sociedade tradicional O pluralismo

religioso e poliacutetico seratildeo entatildeo considerados uma expressatildeo da responsabilidade autocircnoma

dos seres humanos que desejam ser respeitados e m suas convicccedilotildees e ter direitos iguais

(cf BIELEFELDT 2000 50)

D o mesmo modo Martha Nussbaum argumenta e m favor do princiacutepio

do respeito pela consciecircncia (Respect-Conscience Principie)23 de acordo com o qual

a esfera puacuteblica deve respeitar os diferentes comprometimentos religiosos de todos os

cidadatildeos e deve garantir u m espaccedilo onde os cidadatildeos possam agir consistentemente com

suas consciecircncias de forma que todos os cidadatildeos possam entrar no espaccedilo puacuteblico em

condiccedilotildees iguais ( N U S S B A U M 2008 22-23)

Nussbaum entende que tal princiacutepio natildeo requer a aprovaccedilatildeo de

reivindicaccedilotildees teoloacutegicas e eacuteticas de nenhuma religiatildeo pela esfera puacuteblica ou por cidadatildeos

individualmente (cf N U S S B A U M 2008 23) Neste sentido ela sustenta que o [r]

espeito por concidadatildeos natildeo significa dizer ou acreditar que suas visotildees religiosas estatildeo

corretas ou mesmo que todas as religiotildees satildeo caminhos vaacutelidos ao entendimento da vida

( N U S S B A U M 2008 23)24 Assim ela conclui que

Traduccedilatildeo livre da autora Understanding what the disapproved conduct means for the agent and how it fits into a human life may make us revisit and sometimes revise that judgment It may supplement torelation it may make us better tolerators especially when it gives us a grasp of what it is to be at the sharp end of a particular stick That kind of understanding leaves room for disagreement in value and room for correction of error It does not bring acceptance or recognition But the effort to understand affirms our fellowship with the objects of our toleration Without that toleration is poorer - and harder - than it need to be A autora expressamente afirma sua preferecircncia pelo termo respeito ao inveacutes do termo toleracircncia porque entende que o uacuteltimo eacute muito fraco e relutante (cf N U S S B A U M 2008 24) Traduccedilatildeo livre da autora [r]espect for fellow citizens does not mean saying or believing that their religious

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 751

O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como

seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito

de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25

Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e

que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma

boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem

valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser

respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)

D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo

ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo

ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso

- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas

em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar

independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)

Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26

de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio

do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem

ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo

contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos

a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)

Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas

e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a

igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade

poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees

e discursos

Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos

liberais Nussbaum por exemplo entende que

views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government

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752 Maria Costa Neves Machado

Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28

D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente

podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees

natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que

aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos

membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo

Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o

pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos

(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)

Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da

sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos

e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o

conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua

integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana

afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008

177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de

qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve

ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que

satildeo historicamente impostergaacuteveis

C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais

deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o

apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para

Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend

Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753

o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros

grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente

visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m

estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos

parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka

adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos

indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem

perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a

liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de

culto devem ser limitados

Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia

e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a

adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o

ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no

item subsequente

3 Liberdade religiosa no Brasil

A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com

o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia

ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam

da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos

religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de

prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o

inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino

religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora

realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que

quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais

O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de

1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece

que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se

aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida

agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais

examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se

apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente

assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes

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754 Maria Costa Neves Machado

31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo

O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel

a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos

religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias

Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967

expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa

aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com

Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da

ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro

que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras

pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade

brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais

satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho

entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos

inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf

F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada

uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da

observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros

natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os

bons costumes

U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto

e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo

previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees

Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo

apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros

autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de

todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora

possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser

considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece

estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a

Artigo 284 Exercer o curandeirismo

I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia

II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio

III - fazendo diagnoacutesticos

Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos

Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755

garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil

entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser

considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de

culto31

Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma

liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como

livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo

proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)

Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico

brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das

justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros

paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos

indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo

imperial32

A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que

natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo

oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo

seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees

indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do

Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33

Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal

Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da

Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila

preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias

o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de

sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com

STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)

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756 Maria Costa Neves Machado

base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda

a exigecircncia da licenccedila preacutevia

A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente

durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria

de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos

estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil

eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista

no art 19

Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()

Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que

podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente

neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las

Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute

mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria

a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35

Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo

19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode

ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144

C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem

implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer

a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer

u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que

resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do

ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica

ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo

Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009

Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757

no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da

Constituiccedilatildeo

32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a

pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e

pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso

VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia

religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado

brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a

prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e

B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)

Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo

penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados

incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m

sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material

agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais

assistecircncias satildeo direitos dos presos

D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto

seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos

organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa

O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos

religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou

internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa

Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo

de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades

hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas

as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos

prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que

em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais

estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os

religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m

suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo

hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do

ambiente hospitalar ou prisional

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758 Maria Costa Neves Machado

Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira

disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de

acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou

para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do

processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees

excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI

e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que

motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo

A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria

direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe

O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser

determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais

os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais

e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo

Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se

tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica

33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia

Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado

de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as

invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo

alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo

militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo

dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos

que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-

se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se

eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38

Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico

brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para

buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio

e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes

a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal

( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades

essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em

57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr

ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

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7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

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750 Maria Costa Neves Machado

Xrdiz a aceitaccedilatildeo ou o reconhecimento Mas o esforccedilo para compreender afirma nossa convivecircncia com os objetos de nossa toleracircncia Sem isso a toleracircncia eacute mais pobre - e mais dura - do que precisaria ser (GREEN 2008 27)22

Embora Green reconheccedila as principais falhas do princiacutepio da toleracircncia

parece que sua complementaccedilatildeo por u m a atitude compreensiva como sugerida pelo autor

ainda natildeo eacute suficiente para garantir a igualdade entre cidadatildeos e para proteger a dignidade

humana em democracias liberais

Tambeacutem criticando a abordagem da toleracircncia Heiner Bielefeldt argumenta

que a crise normativa resultante do pluralismo cultural deve ser endereccedilada pelo

reconhecimento de tal pluralismo natildeo pela sua toleracircncia C o m o afirmado por Bielefeldt

o problema da toleracircncia eacute que aqueles que tecircm o poder de tolerar tambeacutem tecircm o poder

de natildeo tolerar e aqueles que consideram que tem o poder para tolerar pretendem julgar

as questotildees de consciecircncia O autor sustenta que somente apoacutes a superaccedilatildeo dos conceitos

tradicionais de toleracircncia o pluralismo religioso e poliacutetico natildeo seraacute considerado uma perda

infeliz do centralismo religioso e da cosmovisatildeo da sociedade tradicional O pluralismo

religioso e poliacutetico seratildeo entatildeo considerados uma expressatildeo da responsabilidade autocircnoma

dos seres humanos que desejam ser respeitados e m suas convicccedilotildees e ter direitos iguais

(cf BIELEFELDT 2000 50)

D o mesmo modo Martha Nussbaum argumenta e m favor do princiacutepio

do respeito pela consciecircncia (Respect-Conscience Principie)23 de acordo com o qual

a esfera puacuteblica deve respeitar os diferentes comprometimentos religiosos de todos os

cidadatildeos e deve garantir u m espaccedilo onde os cidadatildeos possam agir consistentemente com

suas consciecircncias de forma que todos os cidadatildeos possam entrar no espaccedilo puacuteblico em

condiccedilotildees iguais ( N U S S B A U M 2008 22-23)

Nussbaum entende que tal princiacutepio natildeo requer a aprovaccedilatildeo de

reivindicaccedilotildees teoloacutegicas e eacuteticas de nenhuma religiatildeo pela esfera puacuteblica ou por cidadatildeos

individualmente (cf N U S S B A U M 2008 23) Neste sentido ela sustenta que o [r]

espeito por concidadatildeos natildeo significa dizer ou acreditar que suas visotildees religiosas estatildeo

corretas ou mesmo que todas as religiotildees satildeo caminhos vaacutelidos ao entendimento da vida

( N U S S B A U M 2008 23)24 Assim ela conclui que

Traduccedilatildeo livre da autora Understanding what the disapproved conduct means for the agent and how it fits into a human life may make us revisit and sometimes revise that judgment It may supplement torelation it may make us better tolerators especially when it gives us a grasp of what it is to be at the sharp end of a particular stick That kind of understanding leaves room for disagreement in value and room for correction of error It does not bring acceptance or recognition But the effort to understand affirms our fellowship with the objects of our toleration Without that toleration is poorer - and harder - than it need to be A autora expressamente afirma sua preferecircncia pelo termo respeito ao inveacutes do termo toleracircncia porque entende que o uacuteltimo eacute muito fraco e relutante (cf N U S S B A U M 2008 24) Traduccedilatildeo livre da autora [r]espect for fellow citizens does not mean saying or believing that their religious

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 751

O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como

seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito

de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25

Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e

que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma

boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem

valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser

respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)

D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo

ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo

ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso

- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas

em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar

independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)

Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26

de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio

do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem

ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo

contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos

a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)

Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas

e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a

igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade

poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees

e discursos

Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos

liberais Nussbaum por exemplo entende que

views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government

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752 Maria Costa Neves Machado

Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28

D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente

podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees

natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que

aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos

membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo

Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o

pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos

(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)

Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da

sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos

e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o

conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua

integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana

afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008

177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de

qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve

ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que

satildeo historicamente impostergaacuteveis

C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais

deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o

apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para

Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend

Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753

o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros

grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente

visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m

estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos

parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka

adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos

indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem

perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a

liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de

culto devem ser limitados

Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia

e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a

adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o

ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no

item subsequente

3 Liberdade religiosa no Brasil

A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com

o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia

ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam

da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos

religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de

prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o

inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino

religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora

realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que

quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais

O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de

1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece

que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se

aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida

agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais

examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se

apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente

assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes

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754 Maria Costa Neves Machado

31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo

O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel

a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos

religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias

Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967

expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa

aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com

Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da

ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro

que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras

pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade

brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais

satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho

entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos

inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf

F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada

uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da

observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros

natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os

bons costumes

U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto

e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo

previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees

Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo

apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros

autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de

todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora

possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser

considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece

estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a

Artigo 284 Exercer o curandeirismo

I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia

II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio

III - fazendo diagnoacutesticos

Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos

Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755

garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil

entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser

considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de

culto31

Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma

liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como

livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo

proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)

Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico

brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das

justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros

paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos

indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo

imperial32

A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que

natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo

oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo

seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees

indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do

Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33

Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal

Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da

Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila

preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias

o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de

sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com

STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)

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base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda

a exigecircncia da licenccedila preacutevia

A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente

durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria

de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos

estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil

eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista

no art 19

Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()

Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que

podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente

neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las

Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute

mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria

a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35

Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo

19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode

ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144

C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem

implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer

a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer

u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que

resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do

ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica

ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo

Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009

Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757

no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da

Constituiccedilatildeo

32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a

pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e

pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso

VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia

religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado

brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a

prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e

B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)

Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo

penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados

incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m

sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material

agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais

assistecircncias satildeo direitos dos presos

D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto

seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos

organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa

O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos

religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou

internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa

Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo

de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades

hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas

as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos

prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que

em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais

estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os

religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m

suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo

hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do

ambiente hospitalar ou prisional

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758 Maria Costa Neves Machado

Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira

disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de

acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou

para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do

processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees

excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI

e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que

motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo

A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria

direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe

O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser

determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais

os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais

e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo

Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se

tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica

33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia

Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado

de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as

invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo

alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo

militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo

dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos

que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-

se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se

eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38

Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico

brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para

buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio

e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes

a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal

( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades

essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em

57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr

ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

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7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 751

O princiacutepio do respeito pela consciecircncia significa apenas respeitaacute-los como

seres humanos com suas proacuteprias escolhas para fazer em mateacuterias religiosas e u m direito

de fazer livremente essas escolhas ( N U S S B A U M 2008 23)25

Assim eacute a faculdade de buscar a finalidade uacuteltima da vida que tem valor e

que deve ser respeitada independentemente de os indiviacuteduos a estarem usando de forma

boa ou ruim Esta abordagem natildeo implica que encontrar a finalidade uacuteltima da vida tem

valor intriacutenseco como resultado as visotildees ceacuteticas e anti-metafiacutesicas tambeacutem merecem ser

respeitadas ( N U S S B A U M 2008 168-169)

D e acordo com Nussbaum o Estado natildeo deve endossar nenhuma religiatildeo

ou a natildeo religiatildeo sobre a religiatildeo E m consequumlecircncia nenhuma indicaccedilatildeo puacuteblica de acordo

ou desacordo devem ser feitos As instituiccedilotildees puacuteblicas natildeo devem ter conteuacutedo religioso

- embora a autora assuma que teratildeo conteuacutedo eacutetico - porque elas devem ser fundadas

em princiacutepios tais como o igual respeito que todos os cidadatildeos podem compartilhar

independentemente de sua religiatildeo ( N U S S B A U M 2008 23)

Cumpre notar que essa abordagem natildeo implica uma visatildeo poacutes-modernista26

de completa relatividade de valores Nesse sentido Nussbaum esclarece que o princiacutepio

do respeito pela consciecircncia natildeo implica que todas as religiotildees e visotildees da vida devem

ser (igualmente) respeitadas pelo governo ( N U S S B A U M 2008 24)27 Se uma visatildeo

contradiz ou ameaccedila as fundaccedilotildees da ordem constitucional e a igualdade dos cidadatildeos

a comunidade pode razoavelmente se opor e desfavorecer tal visatildeo (cf N U S S B A U M 2008 24)

Assim na linha exposta por Nussbaum embora como regra geral crenccedilas

e praacuteticas religiosas devam ser respeitadas algumas accedilotildees e discursos natildeo faratildeo jus a

igual respeito e tratamento se ameaccedilarem os mais importantes valores da comunidade

poliacutetica sendo certo que Estados democraacuteticos liberais devem regular e limitar tais accedilotildees

e discursos

Alguns autores sugeriram limites a serem impostos por Estados democraacuteticos

liberais Nussbaum por exemplo entende que

views are correct or even that ali religions are valid routes to understanding life Traduccedilatildeo livre da autora The Respect-Conscience Principie just means respecting them as human beings with their own choices to make in religious matters and a right to make those choices freely Embora natildeo haja consenso sobre seu conteuacutedo o termo poacutes-modernismo foi definido a partir de seu uso por Jean Baudrillard Jean-Franccedilois Lyotard Fredric Jameson entre outros e eacute utilizado aqui para designer o contexto histoacuterico e socioloacutegico particular caracterizado pelo paradigma da transiccedilatildeo da modernidade que comeccedilou no final do seacuteculo X X As principais caracteriacutesticas do paradigma poacutes-moderno satildeo a ausecircncia de consenso o fim das metanarrativas e de qualquer pretensatildeo de teorias universais (cf BITTAR 2005 96) Para uma visatildeo socioloacutegica mais detalhada do poacutes-modernismo confira Gisela B Taschner A poacutes-modernidade e a sociologia in Revista USP Satildeo Paulo Coordenadoria de Comunicaccedilatildeo Social (CCS) da Universidade de Satildeo Paulo n 42 junago 1999 p 6-19 Traduccedilatildeo livre da autora does not imply that ali religions and views of life must be (equally) respected by the government

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752 Maria Costa Neves Machado

Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28

D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente

podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees

natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que

aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos

membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo

Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o

pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos

(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)

Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da

sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos

e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o

conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua

integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana

afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008

177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de

qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve

ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que

satildeo historicamente impostergaacuteveis

C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais

deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o

apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para

Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend

Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753

o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros

grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente

visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m

estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos

parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka

adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos

indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem

perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a

liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de

culto devem ser limitados

Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia

e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a

adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o

ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no

item subsequente

3 Liberdade religiosa no Brasil

A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com

o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia

ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam

da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos

religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de

prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o

inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino

religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora

realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que

quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais

O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de

1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece

que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se

aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida

agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais

examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se

apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente

assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

754 Maria Costa Neves Machado

31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo

O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel

a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos

religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias

Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967

expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa

aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com

Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da

ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro

que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras

pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade

brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais

satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho

entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos

inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf

F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada

uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da

observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros

natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os

bons costumes

U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto

e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo

previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees

Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo

apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros

autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de

todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora

possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser

considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece

estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a

Artigo 284 Exercer o curandeirismo

I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia

II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio

III - fazendo diagnoacutesticos

Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos

Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755

garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil

entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser

considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de

culto31

Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma

liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como

livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo

proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)

Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico

brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das

justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros

paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos

indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo

imperial32

A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que

natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo

oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo

seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees

indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do

Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33

Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal

Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da

Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila

preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias

o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de

sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com

STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)

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756 Maria Costa Neves Machado

base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda

a exigecircncia da licenccedila preacutevia

A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente

durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria

de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos

estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil

eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista

no art 19

Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()

Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que

podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente

neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las

Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute

mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria

a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35

Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo

19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode

ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144

C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem

implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer

a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer

u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que

resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do

ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica

ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo

Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009

Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757

no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da

Constituiccedilatildeo

32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a

pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e

pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso

VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia

religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado

brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a

prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e

B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)

Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo

penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados

incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m

sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material

agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais

assistecircncias satildeo direitos dos presos

D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto

seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos

organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa

O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos

religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou

internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa

Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo

de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades

hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas

as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos

prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que

em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais

estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os

religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m

suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo

hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do

ambiente hospitalar ou prisional

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758 Maria Costa Neves Machado

Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira

disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de

acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou

para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do

processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees

excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI

e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que

motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo

A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria

direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe

O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser

determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais

os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais

e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo

Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se

tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica

33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia

Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado

de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as

invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo

alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo

militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo

dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos

que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-

se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se

eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38

Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico

brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para

buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio

e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes

a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal

( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades

essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em

57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr

ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

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7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

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762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

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752 Maria Costa Neves Machado

Se as pessoas buscam torturar crianccedilas ou escravizar minorias citando sua religiatildeo como sua razatildeo deve-se resistir a suas reivindicaccedilotildees mesmo que elas possam ser sinceras Se eles simplesmente falam em favor da escravidatildeo ou da tortura sua liberdade de expressatildeo deve ser protegida ateacute o ponto em que o discurso se transforme em uma ameaccedila Eles natildeo poderatildeo entretanto apresentar suas ideacuteias na esfera poliacutetica em bases iguais com outras ideacuteias uma vez que a Constituiccedilatildeo (no caso da escravidatildeo) e a lei criminal (no caso da tortura) proiacutebem as praacuteticas que eles recomendam (NUSSBAUM 2008 24)28

D e acordo com Juumlrgen Habermas as sociedades multiculturais somente

podem tolerar tradiccedilotildees que aceitem a discordacircncia razoaacutevel que ele chama de tradiccedilotildees

natildeo-fundamentalistas Habermas entende que somente as formas de vida tolerantes que

aceitam a discordacircncia razoaacutevel satildeo capazes de coexistir com o reconhecimento dos

membros de culturas diferentes ( H A B E R M A S 1994 151)29 D e m o d o similar Marcelo

Neves argumenta que a intoleracircncia eacutetnica e o fuacutendamentalismo religioso satildeo contra o

pluralismo requerido pela esfera puacuteblica e devem ser juriacutedica e politicamente restringidos

(NEVES 2006 136 222 223 e Neves 2000 41)

Para Miguel Reale Juacutenior o reconhecimento de setores diferentes da

sociedade (tais como minorias eacutetnicas ou classes especiais de pessoas) de seus direitos

e de suas especificidades - a partir do avanccedilo do conceito liberal de toleracircncia para o

conceito social de solidariedade - bem como a assunccedilatildeo da responsabilidade por sua

integraccedilatildeo social natildeo importa e m abrir m atilde o de valores essenciais da pessoa humana

afirmados e conquistados ao longo do processo histoacuterico ( R E A L E JUacuteNIOR 2008

177) Sustentando que pluralismo natildeo significa arbitrismo no sentido de aceitaccedilatildeo de

qualquer organizaccedilatildeo social Reale Juacutenior idem ibidem) destaca que o pluralismo deve

ser limitado pelas conquistas essenciais acerca da dignidade humana conquistas essas que

satildeo historicamente impostergaacuteveis

C o m u m a abordagem diferente Will Kymlicka sustenta que os liberais

deveriam tentar acomodar grupos natildeo liberais desde que estes natildeo estejam buscando o

apoio da sociedade como u m todo e natildeo queiram impor seus valores a outros grupos Para

Traduccedilatildeo livre da autora [i]f people seek to torture children or to enslave minorities citing their religion as their reason their claims must be resisted even though they m a y be sincere If they simply talk in favor of slavery or torture their freedom to speak must be protected up to the point at which speech becomes a threat They will not however be able to present their ideas in the political sphere on an equal basis with other ideas since the Constitution (in the case of slavery) and the criminal law (in the case of torture) forbid the practices they recommend

Para u m a visatildeo completa sobre o entendimento de Habermas a respeito de toleracircncia religiosa vide Juumlrgen Habermas Entre naturalismo e religiatildeo estudos filosoacuteficos traduccedilatildeo de Flaacutevio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2007 especialmente Item IV - Toleracircncia p 279-392

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753

o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros

grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente

visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m

estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos

parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka

adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos

indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem

perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a

liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de

culto devem ser limitados

Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia

e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a

adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o

ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no

item subsequente

3 Liberdade religiosa no Brasil

A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com

o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia

ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam

da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos

religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de

prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o

inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino

religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora

realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que

quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais

O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de

1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece

que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se

aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida

agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais

examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se

apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente

assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes

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754 Maria Costa Neves Machado

31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo

O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel

a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos

religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias

Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967

expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa

aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com

Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da

ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro

que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras

pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade

brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais

satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho

entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos

inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf

F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada

uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da

observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros

natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os

bons costumes

U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto

e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo

previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees

Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo

apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros

autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de

todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora

possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser

considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece

estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a

Artigo 284 Exercer o curandeirismo

I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia

II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio

III - fazendo diagnoacutesticos

Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos

Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755

garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil

entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser

considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de

culto31

Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma

liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como

livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo

proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)

Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico

brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das

justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros

paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos

indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo

imperial32

A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que

natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo

oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo

seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees

indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do

Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33

Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal

Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da

Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila

preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias

o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de

sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com

STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)

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756 Maria Costa Neves Machado

base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda

a exigecircncia da licenccedila preacutevia

A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente

durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria

de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos

estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil

eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista

no art 19

Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()

Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que

podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente

neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las

Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute

mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria

a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35

Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo

19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode

ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144

C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem

implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer

a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer

u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que

resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do

ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica

ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo

Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009

Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757

no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da

Constituiccedilatildeo

32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a

pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e

pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso

VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia

religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado

brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a

prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e

B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)

Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo

penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados

incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m

sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material

agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais

assistecircncias satildeo direitos dos presos

D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto

seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos

organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa

O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos

religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou

internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa

Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo

de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades

hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas

as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos

prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que

em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais

estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os

religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m

suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo

hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do

ambiente hospitalar ou prisional

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 -765 jandez 2010

758 Maria Costa Neves Machado

Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira

disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de

acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou

para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do

processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees

excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI

e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que

motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo

A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria

direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe

O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser

determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais

os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais

e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo

Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se

tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica

33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia

Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado

de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as

invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo

alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo

militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo

dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos

que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-

se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se

eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38

Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico

brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para

buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio

e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes

a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal

( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades

essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em

57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr

ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

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7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 753

o autor a maioria das pessoas entende que se u m a minoria nacional estaacute oprimindo outros

grupos u m a intervenccedilatildeo contra a agressatildeo eacute justificaacutevel Entretanto se a minoria somente

visa guiar sua comunidade de acordo com princiacutepios natildeo liberais e natildeo estaacute interessada e m

estabelecer regras para outros grupos ou e m privar esses outros grupos de seus recursos

parece errado impor valores liberais (cf K Y M L I C K A 1997 154-155) Assim Kymlicka

adota u m a visatildeo de acordo com a qual a toleracircncia liberal deve proteger os direitos dos

indiviacuteduos de discordar de seus grupos assim como o direito dos grupos de natildeo serem

perseguidos pelo Estado enquanto que o poder de grupos natildeo liberais de restringir a

liberdade de seus membros e o poder de Estados natildeo liberais de restringir a liberdade de

culto devem ser limitados

Neste item foram examinados (i) a diferenccedila entre o princiacutepio da toleracircncia

e o princiacutepio do respeito no que se refere agrave liberdade religiosa e (ii) os limites para a

adoccedilatildeo do princiacutepio do respeito por democracias liberais A partir dessa anaacutelise o

ordenamento juriacutedico brasileiro e a regulaccedilatildeo da liberdade religiosa seratildeo estudados no

item subsequente

3 Liberdade religiosa no Brasil

A regulaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil eacute examinada neste item com

o intuito de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia

ou do respeito Satildeo analisados os dispositivos da Constituiccedilatildeo Federal que tratam

da liberdade religiosa quais sejam aqueles relacionados ao livre exerciacutecio de cultos

religiosos agrave proteccedilatildeo aos locais de culto e suas liturgias (art 5o inc VI) agrave garantia de

prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

(art 5o inc VII) agrave acomodaccedilatildeo juriacutedica e m razatildeo de imperativo de consciecircncia (art 5o

inc VIII) agrave vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo pelo Estado (art 19) e ao ensino

religioso facultativo (art 210) bem como a legislaccedilatildeo federal relacionada O estudo ora

realizado natildeo pretende analisar de forma exaustiva as leis estaduais anaacutelise esta que

quando realizada serve apenas para ilustrar a aplicaccedilatildeo das normas constitucionais

O dispositivo central da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de

1988 que serve de base para a proteccedilatildeo da liberdade religiosa eacute seu art 5o o qual estabelece

que [t]odos satildeo iguais perante a lei sem distinccedilatildeo de qualquer natureza garantindo-se

aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paiacutes a inviolabilidade do direito agrave vida

agrave liberdade agrave igualdade agrave seguranccedila e agrave propriedade Os dispositivos constitucionais

examinados a seguir visam a garantir a observacircncia da liberdade religiosa que se

apresenta como u m dos aspectos da liberdade e m sentido lato a qual eacute constitucionalmente

assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Paiacutes

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

754 Maria Costa Neves Machado

31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo

O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel

a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos

religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias

Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967

expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa

aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com

Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da

ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro

que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras

pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade

brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais

satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho

entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos

inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf

F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada

uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da

observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros

natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os

bons costumes

U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto

e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo

previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees

Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo

apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros

autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de

todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora

possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser

considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece

estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a

Artigo 284 Exercer o curandeirismo

I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia

II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio

III - fazendo diagnoacutesticos

Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos

Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755

garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil

entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser

considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de

culto31

Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma

liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como

livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo

proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)

Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico

brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das

justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros

paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos

indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo

imperial32

A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que

natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo

oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo

seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees

indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do

Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33

Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal

Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da

Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila

preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias

o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de

sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com

STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)

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756 Maria Costa Neves Machado

base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda

a exigecircncia da licenccedila preacutevia

A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente

durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria

de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos

estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil

eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista

no art 19

Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()

Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que

podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente

neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las

Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute

mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria

a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35

Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo

19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode

ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144

C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem

implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer

a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer

u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que

resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do

ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica

ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo

Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009

Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757

no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da

Constituiccedilatildeo

32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a

pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e

pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso

VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia

religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado

brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a

prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e

B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)

Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo

penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados

incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m

sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material

agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais

assistecircncias satildeo direitos dos presos

D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto

seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos

organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa

O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos

religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou

internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa

Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo

de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades

hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas

as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos

prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que

em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais

estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os

religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m

suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo

hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do

ambiente hospitalar ou prisional

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758 Maria Costa Neves Machado

Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira

disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de

acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou

para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do

processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees

excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI

e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que

motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo

A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria

direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe

O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser

determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais

os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais

e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo

Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se

tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica

33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia

Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado

de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as

invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo

alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo

militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo

dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos

que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-

se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se

eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38

Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico

brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para

buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio

e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes

a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal

( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades

essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em

57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr

ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

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7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

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762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

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754 Maria Costa Neves Machado

31 Livre exerciacutecio de cultos religiosos e vedaccedilatildeo ao estabelecimento de religiatildeo

O inciso VI do art 5o da Constituiccedilatildeo Federal determina que eacute inviolaacutevel

a liberdade de consciecircncia e de crenccedila sendo assegurado o livre exerciacutecio dos cultos

religiosos e garantida na forma da lei a proteccedilatildeo aos locais de culto e a suas liturgias

Diferentemente do texto atual a Constituiccedilatildeo brasileira de 1967

expressamente limitava e m seu art 150 paraacutegrafo 5 o exerciacutecio da liberdade religiosa

aos cultos que natildeo contrariassem a ordem puacuteblica e os bons costumes D e acordo com

Celso Ribeiro Bastos embora a atual Constituiccedilatildeo omita o requisito de observacircncia da

ordem puacuteblica e dos bons costumes estaacute impliacutecito no ordenamento juriacutedico brasileiro

que os direitos devem ser exercidos de modo que natildeo prejudiquem os direitos de outras

pessoas e em consonacircncia com os valores eacuteticos e morais e m que se funda a sociedade

brasileira independentemente de quatildeo difiacutecil possa ser para os tribunais definirem quais

satildeo esses valores que estatildeo evoluindo constantemente (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

52) E m sentido diverso do entendimento de Bastos Manuel Gonccedilalves Ferreira Filho

entende que em razatildeo da omissatildeo da Constituiccedilatildeo os cultos religiosos satildeo garantidos

inclusive contra eventuais limitaccedilotildees baseadas na ordem puacuteblica e nos bons costumes (cf

F E R R E I R A FILHO 1990 33) A interpretaccedilatildeo de Ferreira Filho parece mais adequada

uma vez que os legisladores constitucionais omitiram intencionalmente a exigecircncia da

observacircncia da ordem puacuteblica e dos bons costumes Dessa forma os tribunais brasileiros

natildeo podem limitar o exerciacutecio da liberdade religiosa invocando a ordem puacuteblica ou os

bons costumes

U m a questatildeo muito polecircmica sobre o exerciacutecio da liberdade de culto

e sua limitaccedilatildeo no Brasil eacute relacionada agrave caracterizaccedilatildeo do crime de curandeirismo

previsto no art 284 do Coacutedigo Penal30 Enquanto alguns autores por exemplo Magalhatildees

Noronha sustentam que uma praacutetica religiosa que pretenda curar sem tiacutetulo ou habilitaccedilatildeo

apropriada seja enquadrada como curandeirismo ( N O R O N H A 1968 107) outros

autores como Francisco de Assis Toledo argumentam que os rituais espiacuteritas e os rituais de

todas as outras religiotildees tais como o Catolicismo o Protestantismo ou Budismo embora

possam visar agrave cura ou agrave diminuiccedilatildeo do sofrimento de pessoas doentes nunca poderatildeo ser

considerados u m crime (cf T O L E D O 1986 100-101) Francisco de Assis Toledo parece

estar certo e m sua interpretaccedilatildeo do crime curandeirismo uma vez que ele leva a seacuterio a

Artigo 284 Exercer o curandeirismo

I - prescrevendo ministrando ou aplicando habitualmente qualquer substacircncia

II - usando gestos palavras ou qualquer outro meio

III - fazendo diagnoacutesticos

Pena - detenccedilatildeo de seis meses a dois anos

Paraacutegrafo uacutenico - Se o crime eacute praticado mediante remuneraccedilatildeo o agente fica tambeacutem sujeito agrave multa

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755

garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil

entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser

considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de

culto31

Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma

liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como

livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo

proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)

Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico

brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das

justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros

paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos

indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo

imperial32

A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que

natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo

oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo

seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees

indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do

Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33

Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal

Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da

Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila

preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias

o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de

sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com

STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

756 Maria Costa Neves Machado

base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda

a exigecircncia da licenccedila preacutevia

A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente

durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria

de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos

estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil

eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista

no art 19

Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()

Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que

podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente

neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las

Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute

mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria

a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35

Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo

19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode

ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144

C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem

implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer

a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer

u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que

resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do

ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica

ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo

Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009

Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757

no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da

Constituiccedilatildeo

32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a

pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e

pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso

VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia

religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado

brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a

prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e

B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)

Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo

penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados

incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m

sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material

agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais

assistecircncias satildeo direitos dos presos

D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto

seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos

organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa

O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos

religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou

internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa

Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo

de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades

hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas

as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos

prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que

em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais

estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os

religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m

suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo

hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do

ambiente hospitalar ou prisional

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 -765 jandez 2010

758 Maria Costa Neves Machado

Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira

disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de

acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou

para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do

processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees

excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI

e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que

motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo

A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria

direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe

O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser

determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais

os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais

e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo

Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se

tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica

33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia

Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado

de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as

invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo

alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo

militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo

dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos

que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-

se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se

eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38

Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico

brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para

buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio

e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes

a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal

( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades

essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em

57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr

ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

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7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

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762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 755

garantia constitucional da liberdade de religiatildeo Atualmente o poder judiciaacuterio no Brasil

entende que os rituais espiacuteritas relacionados agrave cura de pessoas doentes natildeo podem ser

considerados curandeirismo sendo constitucionalmente protegidos como u m tipo de

culto31

Cumpre notar que durante o periacuteodo do Impeacuterio no Brasil havia uma

liberdade religiosa sem liberdade de culto somente o culto catoacutelico era reconhecido como

livre Outras religiotildees somente podiam celebrar seus cultos na esfera domeacutestica sendo

proibido todo o templo fora do lar para outras religiotildees (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989

50 e C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 252)

Essa abordagem inicial da liberdade religiosa no ordenamento juriacutedico

brasileiro pode ser explicada como consequumlecircncia de nosso passado colonial U m a das

justificaccedilotildees ideoloacutegicas subjacentes agrave colonizaccedilatildeo do Brasil por Portugal - e de outros

paiacuteses da Ameacuterica Latina pela Espanha - era relacionada agrave catequizaccedilatildeo dos povos

indiacutegenas C o m o resultado o catolicismo foi a religiatildeo oficial ateacute o fim do periacuteodo

imperial32

A esse respeito vale notar com Faacutebio Konder Comparato (2001 312) que

natildeo haacute autecircntica liberdade de crenccedila e de opiniatildeo num Estado que adota u m a religiatildeo

oficial As pressotildees de toda a sorte - poliacuteticas econocircmicas e profissionais - contra os natildeo

seguidores da religiatildeo de Estado tornam essa liberdade ilusoacuteria C o m efeito as religiotildees

indiacutegenas e africanas e seus valores foram negados durante grande parte da histoacuteria do

Brasil e ainda hoje haacute na sociedade brasileira preconceito contra tais religiotildees33

Exemplificativamente destaque-se que e m 1985 o Supremo Tribunal

Federal arquivou a Representaccedilatildeo n 959-PB que questionava u m a lei do Estado da

Paraiacuteba de 1966 de acordo com a qual os cultos africanos deveriam obter u m a licenccedila

preacutevia para iniciar suas atividades Tal licenccedila seria concedida se entre outras exigecircncias

o responsaacutevel pelos cultos pudesse provar sua idoneidade moral e perfeitas condiccedilotildees de

sauacutede mental conforme documentado e m relatoacuterio psiquiaacutetrico A accedilatildeo arquivada com

STF R H C 62240SP rei Min Francisco Rezek 2a Turma 13121984 DJ 02081985 p 12046 e STJ H C 1498RJ rei Min Luiz Vicente Cernicchiaro 6a Turma j 18121992 DJ 1 de 16081993 p 15994 Cf tambeacutem FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave constituiccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989 p 71 C o m efeito Celso Lafer nos lembra que incumbia ao imperador antes de ser proclamado jurar manter a religiatildeo catoacutelica cabendo-lhe em contrapartida entre as suas atribuiccedilotildees nomear bispos e prover os benefiacutecios eclesiaacutesticos bem como conceder ou negar beneplaacutecitos a atos da Santa Feacute (cf Constituiccedilatildeo de 1824 art 5o 102 paraacutegrafos 2o e 14 103) (LAFER 2007) Note-se que a negaccedilatildeo dos valores africanos e de uma identidade africana no Brasil abrangendo a esfera religiosa tem suas origens na chegada dos escravos africanos desde o seacuteculo XVI A relaccedilatildeo entre os povos africanos e a sociedade colonial foi caracterizada pela conversatildeo compulsoacuteria dos escravos agrave religiatildeo de seus donos e pela perseguiccedilatildeo daqueles que insistissem na manutenccedilatildeo das praacuteticas ancestrais (DADESKY 2005 51-52)

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

756 Maria Costa Neves Machado

base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda

a exigecircncia da licenccedila preacutevia

A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente

durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria

de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos

estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil

eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista

no art 19

Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()

Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que

podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente

neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las

Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute

mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria

a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35

Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo

19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode

ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144

C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem

implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer

a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer

u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que

resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do

ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica

ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo

Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009

Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757

no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da

Constituiccedilatildeo

32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a

pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e

pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso

VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia

religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado

brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a

prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e

B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)

Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo

penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados

incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m

sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material

agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais

assistecircncias satildeo direitos dos presos

D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto

seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos

organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa

O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos

religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou

internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa

Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo

de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades

hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas

as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos

prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que

em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais

estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os

religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m

suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo

hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do

ambiente hospitalar ou prisional

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758 Maria Costa Neves Machado

Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira

disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de

acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou

para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do

processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees

excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI

e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que

motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo

A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria

direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe

O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser

determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais

os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais

e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo

Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se

tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica

33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia

Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado

de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as

invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo

alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo

militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo

dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos

que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-

se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se

eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38

Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico

brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para

buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio

e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes

a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal

( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades

essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em

57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr

ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

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7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

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762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

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756 Maria Costa Neves Machado

base no fato de que a lei e m questatildeo havia sido modificada e m 1977 tendo sido excluiacuteda

a exigecircncia da licenccedila preacutevia

A separaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja foi estabelecida no Brasil somente

durante a Repuacuteblica pelo Decreto n 119-A datado de 7 de janeiro de 1890 de autoria

de Rui Barbosa (cf L A F E R 2007) que proibiu a intervenccedilatildeo do governo federal e dos

estados e m questotildees religiosas e estabeleceu a liberdade de culto34 Desde entatildeo o Brasil

eacute u m estado laico A separaccedilatildeo entre Estado e Igreja na Constituiccedilatildeo de 1988 estaacute prevista

no art 19

Eacute vedado agrave Uniatildeo aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios (i) estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionaacute-los embaraccedilar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaccedilotildees de dependecircncia ou alianccedila ressalvada na forma da lei a colaboraccedilatildeo de interesse puacuteblico ()

Consequentemente o Estado brasileiro eacute indiferente agraves vaacuterias igrejas que

podem ser livremente formadas como entidades legais O Estado deve ser absolutamente

neutro sendo proibida a discriminaccedilatildeo entre igrejas para beneficiaacute-las ou prejudicaacute-las

Tambeacutem natildeo pode impor nenhum ocircnus indevido agrave formaccedilatildeo de igrejas N a realidade haacute

mesmo u m incentivo constitucional para sua formaccedilatildeo que resulta da imunidade tributaacuteria

a que fazem jus ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 50-51)35

Observe-se que a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico mencionada no Artigo

19 para natildeo infringir a proibiccedilatildeo de estabelecimento de religiatildeo pelo Estado natildeo pode

ocorrer em u m campo fundamentalmente religioso (cf F E R R E I R A FILHO 1990 144

C R E T E L L A JUacuteNIOR 1992 1179 e L A F E R 2007) N atildeo obstante essa disposiccedilatildeo tem

implicaccedilotildees muito complexas quando se trata de sua execuccedilatildeo como eacute possiacutevel estabelecer

a colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico entre o Estado e u m a determinada igreja sem favorecer

u m a religiatildeo sobre a outra36 Ademais essa disposiccedilatildeo levanta u m problema similar ao que

resulta da assistecircncia religiosa a pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva e do

ensino religioso facultativo e m escolas conforme detalhado abaixo eacute possiacutevel na praacutetica

ensinar religiatildeo prestar assistecircncia religiosa e estabelecer esquemas de colaboraccedilatildeo

Esse decreto nunca foi expressamente revogado Cf lthttpslegislacaoplanaltogovbrLEGISLA LegislacaonsffraWebOpenFrameSetampFrame=frmWeb2ampSrc=2FLEGISLA2FLegislacaonsf2Fvi wTodos2Fbea39c8e0e484811032569fa005afab43FOpenDocument26Highlight3Dl2C26Auto Framedgt Acesso em 3 abr 2009

Cumpre notar que a Lei n 8245 datada de 18 de outubro de 1991 conforme alterada estabelece que o contrato de locaccedilatildeo de imoacuteveis utilizados por entidades religiosas devidamente registradas bem como por hospitais unidades sanitaacuterias oficiais asilos estabelecimentos de sauacutede e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Puacuteblico somente poderaacute ser rescindido em determinadas situaccedilotildees Para uma criacutetica sobre a exceccedilatildeo relacionada agrave colaboraccedilatildeo no interesse puacuteblico vide C R E T E L L A JUacuteNIOR 19921180

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757

no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da

Constituiccedilatildeo

32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a

pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e

pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso

VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia

religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado

brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a

prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e

B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)

Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo

penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados

incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m

sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material

agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais

assistecircncias satildeo direitos dos presos

D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto

seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos

organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa

O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos

religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou

internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa

Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo

de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades

hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas

as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos

prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que

em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais

estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os

religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m

suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo

hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do

ambiente hospitalar ou prisional

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758 Maria Costa Neves Machado

Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira

disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de

acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou

para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do

processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees

excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI

e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que

motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo

A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria

direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe

O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser

determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais

os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais

e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo

Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se

tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica

33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia

Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado

de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as

invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo

alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo

militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo

dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos

que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-

se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se

eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38

Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico

brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para

buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio

e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes

a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal

( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades

essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em

57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr

ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

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7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

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762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 757

no interesse puacuteblico sem favorecer u m a determinada religiatildeo e sem violar o art 19 da

Constituiccedilatildeo

32 Garantia de assistecircncia religiosa em estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva

A Constituiccedilatildeo brasileira garante a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa a

pessoas e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva abrangendo presos militares e

pacientes hospitalizados (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 54) D e acordo com o inciso

VII do art 5o da Constituiccedilatildeo eacute assegurada nos termos da lei a prestaccedilatildeo de assistecircncia

religiosa nas entidades civis e militares de internaccedilatildeo coletiva O caraacuteter laico do Estado

brasileiro natildeo eacute afetado por esta disposiccedilatildeo u m a vez que o Estado natildeo eacute obrigado a

prestar assistecircncia religiosa e as entidades religiosas eacute que iratildeo prestaacute-la (cf M A R T I N S e

B A S T O S 1989 51 e 54 e F E R R E I R A FILHO 1990 34)

Neste sentido a Lei n 7210 de 11 de julho de 1984 que trata da execuccedilatildeo

penal estabelece e m seu art 10 que o Estado deve prestar assistecircncia aos presos e internados

incluindo os egressos objetivando prevenir o crime e orientar o retorno agrave convivecircncia e m

sociedade Tal assistecircncia consistiraacute de acordo com o art 11 e m assistecircncia material

agrave sauacutede juriacutedica educacional social e religiosa D e fato o art 41 estabelece que tais

assistecircncias satildeo direitos dos presos

D e acordo com o art 24 a assistecircncia religiosa com liberdade de culto

seraacute prestada aos presos e aos internados permitindo-se-lhes a participaccedilatildeo nos serviccedilos

organizados no estabelecimento penal bem como a posse de livros de instruccedilatildeo religiosa

O primeiro paraacutegrafo deste artigo estabelece que haveraacute local apropriado para os cultos

religiosos no estabelecimento penal o segundo paraacutegrafo dispotildee que nenhum preso ou

internado poderaacute ser obrigado a participar de atividade religiosa

Adicionalmente a Lei n 9982 de 14 de julho de 2000 que trata da prestaccedilatildeo

de assistecircncia religiosa e m estabelecimentos prisionais civis e militares e e m entidades

hospitalares puacuteblicas e privadas garante e m seu art Io o acesso aos religiosos de todas

as confissotildees aos hospitais da rede puacuteblica ou privada bem como aos estabelecimentos

prisionais civis ou militares para dar atendimento religioso aos internados desde que

em c o m u m acordo com estes ou com seus familiares no caso de doentes que jaacute natildeo mais

estejam no gozo de suas faculdades mentais Vale notar que nos termos do art 2o os

religiosos chamados a prestar assistecircncia nas entidades definidas no art Io deveratildeo e m

suas atividades acatar as determinaccedilotildees legais e normas internas de cada instituiccedilatildeo

hospitalar ou penal a fim de natildeo pocircr e m risco as condiccedilotildees do paciente ou a seguranccedila do

ambiente hospitalar ou prisional

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758 Maria Costa Neves Machado

Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira

disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de

acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou

para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do

processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees

excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI

e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que

motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo

A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria

direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe

O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser

determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais

os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais

e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo

Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se

tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica

33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia

Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado

de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as

invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo

alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo

militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo

dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos

que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-

se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se

eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38

Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico

brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para

buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio

e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes

a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal

( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades

essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em

57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr

ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

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7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

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758 Maria Costa Neves Machado

Duas disposiccedilotildees dessa lei foram vetadas pelo Presidente37 A primeira

disposiccedilatildeo estabelecia que a prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa natildeo seria permitida se de

acordo com o hospital ou a prisatildeo houvesse risco de vida ou sauacutede para o internado ou

para o religioso O Presidente justificou esse veto argumentando que a transferecircncia do

processo decisoacuterio relativo agrave prestaccedilatildeo de assistecircncia religiosa aos hospitais ou prisotildees

excluindo-se o paciente ou preso bem como suas famiacutelias era contraacuterio aos incisos VI

e VII do art 5o da Constituiccedilatildeo Ademais o Presidente sustentou que a precauccedilatildeo que

motivou o dispositivo vetado jaacute estaacute assegurada pelo art 2 o da lei e m questatildeo

A segunda disposiccedilatildeo vetada pelo Presidente determinava que o interno teria

direito a pelo menos u m a visita semanal de religiosos da confissatildeo religiosa que professe

O Presidente justificou esse veto argumentando que a periodicidade das visitas deveria ser

determinada pela autoridade local levando e m consideraccedilatildeo as particularidades regionais

os usos e costumes Aleacutem disso o Presidente sustentou que era inadequado tratar hospitais

e prisotildees da mesma forma tendo e m vista as circunstacircncias especiacuteficas de cada instituiccedilatildeo

Havia tambeacutem a preocupaccedilatildeo de que o nuacutemero miacutenimo de visitas estabelecido por lei se

tornasse o nuacutemero maacuteximo permitido na praacutetica

33 Acomodaccedilatildeo em razatildeo de imperativo de consciecircncia

Nos termos do inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo ningueacutem seraacute privado

de direitos por motivo de crenccedila religiosa ou de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica salvo se as

invocar para eximir-se de obrigaccedilatildeo legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaccedilatildeo

alternativa fixada e m lei Esse inciso entre outras coisas estaacute relacionado ao serviccedilo

militar obrigatoacuterio estabelecido pelo art 143 da Constituiccedilatildeo O paraacutegrafo Io deste artigo

dispotildee que agraves Forccedilas Armadas compete na forma da lei atribuir serviccedilo alternativo aos

que e m tempo de paz apoacutes alistados alegarem imperativo de consciecircncia entendendo-

se como tal o decorrente de crenccedila religiosa e de convicccedilatildeo filosoacutefica ou poliacutetica para se

eximirem de atividades de caraacuteter essencialmente militar 38

Esse eacute u m dos casos de acomodaccedilatildeo existentes no ordenamento juriacutedico

brasileiro relacionado agrave crenccedila religiosa ou agraves convicccedilotildees filosoacuteficas ou poliacuteticas Para

buscar proteccedilatildeo constitucional de mo d o a natildeo participar do serviccedilo militar compulsoacuterio

e m tempos de paz faz-se necessaacuterio provar comprometimento com ideacuteias natildeo beligerantes

a ser demonstrado por atitudes passadas que estejam e m consonacircncia com tal ideal

( M A R T I N S e B A S T O S 1989 56) Note-se que eacute possiacutevel ser excluiacutedo de atividades

essencialmente militares mas poderatildeo ser impostos serviccedilos alternativos que consistam em

57 Cf Mensagem de Veto n 960 de 14 de julho de 2000 Disponiacutevel em lthttpswwwplanaltogovbr

ccivil_03leisMensagem_Veto2000Mv0960-00htmgt Acesso em 13 fev 2009 i8 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

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Aberto

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D A D E S K Y Jacques Pluralismo eacutetnico e multiculturalismo racismos e anti-racismos no Brasil

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FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989

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K Y M L I C K A Will Multicultural citizenship a liberal theory of minority rights Oxford Clarendon

Press 1997

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 765

LEITER Brian Why tolerate religion Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor durante o

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periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009

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R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 759

atividades administrativas de assistecircncia filantroacutepicas ou produtivas39 jaacute que a obrigaccedilatildeo

de servir ao Paiacutes natildeo eacute excluiacuteda ( M A R T I N S e B A S T O S 1989 211) Cumpre notar que da

reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia natildeo pode resultar a privaccedilatildeo de direitos exceto

se a pessoa tambeacutem se recusar a prestar serviccedilo alternativo natildeo essencialmente militar

Nessas circunstacircncias a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo aplicaacutevel natildeo satildeo inteiramente claras

sobre as consequumlecircncias legais da recusa Alguns autores entendem que nesse caso a pessoa

que se recusou a prestar serviccedilos alternativos poderia ser privada de direitos (FERREIRA

FILHO 1994 34 e 81 e M A R T I N S e B A S T O S 1989 212)40

Constata-se aqui o que parece ser u m a grande incoerecircncia no ordenamento

juriacutedico brasileiro Enquanto e m tempos de paz as pessoas podem reivindicar imperativo

de consciecircncia para evitar serviccedilos essencialmente militares quando o Estado declara

guerra nenhum cidadatildeo poderaacute invocar crenccedilas religiosas ou convicccedilotildees filosoacuteficas ou

poliacuteticas com a finalidade de natildeo participar do serviccedilo militar41 C o m o resultado durante

o periacuteodo mais adequado e apropriado para expressar desacordo com guerras e ideais

beligerantes as pessoas natildeo tem direito de reivindicar imperativo de consciecircncia para natildeo

participar do serviccedilo militar na hipoacutetese de a Constituiccedilatildeo ser interpretada literalmente

Outro caso de acomodaccedilatildeo relacionado a crenccedilas religiosas que vale ser

mencionado eacute o uso terapecircutico do chaacute Ayahuasca em rituais religiosos A partir de

1985 o governo brasileiro comeccedilou a estudar os aspectos sociais e culturais referentes

ao uso de tal chaacute E m 23 de novembro de 2006 o Grupo Multidisciplinar de Trabalho do

Comitecirc Nacional Antidrogas do Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas42

emitiu seu relatoacuterio final reconhecendo que o uso do chaacute Ayahuasca deveria ser limitado

a rituais religiosos e m locais autorizados pela direccedilatildeo das entidades que fazem uso de

tal chaacute sendo proibido seu uso em conjunto com substacircncia ilegais Atualmente o uso

do chaacute Ayahuasca e m conformidade com as normas aplicaacuteveis eacute assegurado com base

na garantia constitucional da liberdade de consciecircncia e de crenccedila e do livre exerciacutecio de

cultos religiosos Ademais a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca foi ratificada

como rica e ancestral manifestaccedilatildeo cultural que exatamente pela relevacircncia de seu valor

Os serviccedilos alternativos podem ser prestados e m organizaccedilotildees militares da ativa e e m oacutergatildeos de formaccedilatildeo de reservas das Forccedilas Armadas ou em oacutergatildeos subordinados aos Ministeacuterios Civis mediante convecircnios entre estes e os Ministeacuterios Militares Cf sectsect 2o e 3o do art 3o da Lei n 8239 de 4 de outubro de 1991 N o entanto parece-nos que o serviccedilo militar obrigatoacuterio natildeo estaacute de acordo com os princiacutepios que norteiam a Constituiccedilatildeo no sentido de que serviccedilos alternativos natildeo deveriam ser impostos Contudo a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo Ives Granda Martins sustenta que e m tempos de guerra todos os cidadatildeos tecircm iguais deveres perante o Paiacutes (cf M A R T I N S e B A S T O S 1989 212) Discordamos totalmente deste posicionamento porque uma das formas mais eficazes de expressar desacordo com guerras e ideais beligerantes eacute durante o periacuteodo de guerra quando as pessoas que natildeo concordam poderiam recusar-se a prestar serviccedilos militares Contudo conforme mencionado acima a discussatildeo sobre o serviccedilo militar obrigatoacuterio no Brasil ultrapassa o escopo deste artigo O Sistema Nacional de Poliacuteticas Puacuteblicas sobre Drogas - S I S N A D foi instituiacutedo pela Lei n 11343 de 23 de agosto de 2006

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

Referecircncias

BLACKBURN Simon Religion and respect Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor

durante o Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law

School no periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009

BIELEFELDT Heiner Filosofia dos direitos humanos fundamentos de u m ethos de liberdade

universal Satildeo Leopoldo Unisinos 2000

BITTAR Eduardo Carlos Bianca O direito na poacutes-modernidade Rio de Janeiro Forense

Universitaacuteria 2005

BOBBIO Norberto Toleracircncia e verdade In E L O G I O da serenidade e outros escritos morais

Traduccedilatildeo de Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo UNESP 2002 p 149-155

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NUSSBAUM Martha C Liberty of Conscience In DEFENSE of Americas Tradition of Religious

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(Promulgada em 5 de outubro de 1988) Satildeo Paulo Saraiva 1989 v 2

Moraes Alexandre de Constituiccedilatildeo do Brasil Interpretada e Legislaccedilatildeo Constitucional Satildeo Paulo

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NEVES Marcelo Entre Tecircmis e Leviatatilde uma relaccedilatildeo difiacutecil (o Estado Democraacutetico de Direito a

partir e aleacutem de Luhmann e Habermas) Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

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Pernambuco v 1 n 1 2000

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R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de

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305 janabr 2008

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R E A L E JUacuteNIOR Miguel Toleracircncia e solidariedade In MARCIacuteLIO Maria Luiza A declaraccedilatildeo

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p 6-19 1999

T O L E D O Francisco de Assis Princiacutepios baacutesicos de direito penal Satildeo Paulo Saraiva 1986

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

7(gt(l Maria Costa Neves Machado

histoacuterico antropoloacutegico e social eacute credora da proteccedilatildeo do Estado nos termos do art

2o caput da Lei n 1134306 e do art 215 sect1deg da C F 43 que dispotildee que [o] Estado

protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de

outros grupos participantes do processo civilizatoacuterio nacional44

Eacute de se notar tambeacutem o recente caso no Estado de Satildeo Paulo de acomodaccedilatildeo

religiosa previsto na Lei Estadual n 13541 de 7 de maio de 2009 Tal lei proiacutebe o consumo

de cigarros cigarrilhas charutos cachimbos ou de qualquer outro produto fumiacutegeno

derivado ou natildeo do tabaco e m ambientes de uso coletivo puacuteblicos ou privados Contudo

nos termos do art 6o da referida lei essa natildeo se aplica aos locais de culto religioso em que

o uso de produto fumiacutegeno faccedila parte do ritual O u seja trata-se de mais u m caso em que

uma lei geral eacute excetuada para acomodar praacuteticas relacionadas agrave liberdade de religiatildeo e

de culto

Diferentemente das situaccedilotildees envolvendo serviccedilo militar obrigatoacuterio

o chaacute Ayahuasca e rituais religiosos que envolvem o uso de produtos fumiacutegenos foi

negada acomodaccedilatildeo quando da reivindicaccedilatildeo de imperativo de consciecircncia no contexto

de frequumlecircncia escolar no Estado de Satildeo Paulo E m opiniatildeo escrita por Ada Pellegrini

Grinover publicada e m 25 de outubro de 2002 o Conselho Estadual de Educaccedilatildeo do

Estado de Satildeo Paulo entendeu que estudantes que fossem membros da Igreja Adventista

do Seacutetimo Dia estariam obrigados a frequumlentar as aulas durante o periacuteodo compreendido

entre 1800 horas de sexta-feira e 1800 de saacutebados de acordo com a Lei n 9394 de 20

de dezembro de 1996 conforme alterada embora tal frequumlecircncia seja contraacuteria agraves suas

praacuteticas religiosas u m a vez que natildeo haacute prestaccedilatildeo alternativa estabelecida em lei para tal

escusa de consciecircncia conforme fixado pelo inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo45

Adicionalmente aos casos de acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia o inciso VIII do art 5o da Constituiccedilatildeo tambeacutem jaacute foi invocado para proteger

os direitos dos professores do Estado de Rio de Janeiro contra lei estadual que estabeleceu

que somente os professores credenciados pela autoridade religiosa competente estaratildeo

autorizados a ministrar as aulas de ensino religioso e m escolas puacuteblicas estaduais Para

compreender a Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade - A D I N n 326804 que ainda natildeo

foi decidida pela Suprema Corte faz-se necessaacuterio analisar as disposiccedilotildees legais aplicaacuteveis

relacionadas ao ensino religioso no Brasil

Cf Relatoacuterio Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho disponiacutevel entre outros siacutetios em lthttp wwwsantodaimeorgcomunidadenoticiasrelfinal_conadhtmgt Acesso em 4 mar 2009 e lthttpwww ayahuascabrasilorgindexphpop=legisl01gt Acesso em 4 mar 2009 A acomodaccedilatildeo relacionada ao uso do chaacute Ayahuasca para fins religiosos nos Estados Unidos foi decidida pela Suprema Courte em Gonzales v O Centro Espirita Beneficente Uniatildeo do Vegetal 546 US 418 (2006) Cf Parecer C E E No 4422002 - C E S - Aprovado em 23102002 Disponiacutevel em lthttpwwwceesp spgovbrParecerespa_442_02htmgt Acesso em 4 mar 2009

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

Referecircncias

BLACKBURN Simon Religion and respect Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor

durante o Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law

School no periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009

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FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989

FERREIRA FILHO Manuel Gonccedilalves Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo brasileira de 1988 Satildeo Paulo

Saraiva 1990

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Piaget 1994

JAMIL CURY Carlos Roberto Ensino religioso na escola puacuteblica o retomo de uma polecircmica

recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004

K Y M L I C K A Will Multicultural citizenship a liberal theory of minority rights Oxford Clarendon

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 765

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Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007

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(Promulgada em 5 de outubro de 1988) Satildeo Paulo Saraiva 1989 v 2

Moraes Alexandre de Constituiccedilatildeo do Brasil Interpretada e Legislaccedilatildeo Constitucional Satildeo Paulo

Atlas 2003

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partir e aleacutem de Luhmann e Habermas) Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

Justiccedila e diferenccedila numa sociedade global complexa Recife Instituto dos Advogados de

Pernambuco v 1 n 1 2000

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lthttppress-pubsuchicagoedufoundersdocumentsamendI_religions57htmlgt

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Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 761

34 Ensino religioso facultativo

Nos termos do art 210 da Constituiccedilatildeo [sjeratildeo fixados conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental de maneira a assegurar formaccedilatildeo baacutesica c o m u m e respeito aos

valores culturais e artiacutesticos nacionais e regionais O paraacutegrafo Io desse Artigo dispotildee

que [o] ensino religioso de matriacutecula facultativa constituiraacute disciplina dos horaacuterios

normais das escolas puacuteblicas de ensino fundamental

Nesse sentido o art 33 da Lei n 9394 de 22 de julho de 1997 conforme

alterada determina que o respeito agrave diversidade cultural religiosa do Brasil eacute assegurado

no ensino religioso sendo proibida qualquer forma de proselitismo O primeiro paraacutegrafo

desse Artigo dispotildee que [o]s sistemas de ensino regulamentaratildeo os procedimentos para a

definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso e estabeleceratildeo as normas para a habilitaccedilatildeo

e admissatildeo dos professores Ademais de acordo com o segundo paraacutegrafo do referido

Artigo [o]s sistemas de ensino ouviratildeo entidade civil constituiacuteda pelas diferentes

denominaccedilotildees religiosas para a definiccedilatildeo dos conteuacutedos do ensino religioso46

D e modo a observar a proibiccedilatildeo constitucional de estabelecimento de

religiatildeo o ensino religioso e m escolas natildeo pode consistir no ensino de u m a religiatildeo

determinada Nesse sentido a previsatildeo constitucional tem por finalidade dar oportunidade

a estudantes que estatildeo e m idade de formaccedilatildeo de personalidade de ter acesso a informaccedilotildees

de modo que no futuro eles possam livremente escolher adotar ou natildeo adotar u m a religiatildeo

(cf S C H E R K E R K E W I T Z 2002 60)47

Levando e m consideraccedilatildeo esses dispositivos a A D I N n 326804 foi

ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo com o intuito de

declarar que a Lei n 3459 aprovada pela Assembleacuteia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro e m 14 de setembro de 2000 eacute inconstitucional u m a vez que estabeleceu que (i)

religiatildeo seria ensinada na forma confessional (ii) o conteuacutedo do ensino religioso seria

atribuiccedilatildeo de diversas autoridades religiosas e (iii) apenas professores credenciados pela

autoridade religiosa competente poderiam ensinar religiatildeo e m escolas oficiais

A Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores e m Educaccedilatildeo argumenta que o

ensino religioso na forma confessional viola o art 210 da Constituiccedilatildeo que estabelece que

os valores culturais seratildeo respeitados quando do estabelecimento dos conteuacutedos miacutenimos

para o ensino fundamental e o art 33 da Lei Federal n 939497 que determina que o

ensino religioso respeitaraacute a diversidade cultural do Brasil

Cumpre notar que nos termos do art 21 do Decreto-Lei n 4244 de 9 de abril de 1942 o programa e o regime didaacutetico do ensino religioso deveria ser determinado pela autoridade religiosa De acordo com Alexandre de Moraes para que a regulamentaccedilatildeo e a execuccedilatildeo desta disposiccedilatildeo natildeo sejam inconstitucionais faz-se necessaacuterio que toda e qualquer religiatildeo possa ser ensinada nas escolas puacuteblicas O autor entende que na praacutetica isso eacute absolutamente impossiacutevel (cf M O R A E S 2003 1984-1985)

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

Referecircncias

BLACKBURN Simon Religion and respect Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor

durante o Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law

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Traduccedilatildeo de Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo UNESP 2002 p 149-155

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C R E T E L L A JUacuteNIOR Joseacute Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira de 1988 Rio de Janeiro

Forense Universitaacuteria 1992 v 1

D A D E S K Y Jacques Pluralismo eacutetnico e multiculturalismo racismos e anti-racismos no Brasil

Rio de Janeiro Pallas 2005

FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989

FERREIRA FILHO Manuel Gonccedilalves Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo brasileira de 1988 Satildeo Paulo

Saraiva 1990

GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates

do NER (UFRGS) v 14 p 50-68 2009

G R E E N Leslie On being tolerated University of Oxford Faculty of Law Legal Studies Research

Paper Series Working Paper No 142008

H A B E R M A S Juumlrgen Lutas pelo reconhecimento no Estado Democraacutetico Constitucional In

TAYLOR Charles (Org) Multiculturalismo examinando a poliacutetica do reconhecimento Lisboa

Piaget 1994

JAMIL CURY Carlos Roberto Ensino religioso na escola puacuteblica o retomo de uma polecircmica

recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004

K Y M L I C K A Will Multicultural citizenship a liberal theory of minority rights Oxford Clarendon

Press 1997

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 765

LEITER Brian Why tolerate religion Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor durante o

Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law School no

periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009

LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de

Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007

NORONHA Magalhatildees Direito Penal Satildeo Paulo Saraiva 1968 v 4

NUSSBAUM Martha C Liberty of Conscience In DEFENSE of Americas Tradition of Religious

Equality N e w York Basic Books 2008

MARTINS Ives Granda BASTOS Celso Ribeiro Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo do Brasil

(Promulgada em 5 de outubro de 1988) Satildeo Paulo Saraiva 1989 v 2

Moraes Alexandre de Constituiccedilatildeo do Brasil Interpretada e Legislaccedilatildeo Constitucional Satildeo Paulo

Atlas 2003

NEVES Marcelo Entre Tecircmis e Leviatatilde uma relaccedilatildeo difiacutecil (o Estado Democraacutetico de Direito a

partir e aleacutem de Luhmann e Habermas) Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

Justiccedila e diferenccedila numa sociedade global complexa Recife Instituto dos Advogados de

Pernambuco v 1 n 1 2000

PAINE Thomas The Founders Constitution v 5 I Emenda (Religiatildeo) Doe 57 Disponiacutevel em

lthttppress-pubsuchicagoedufoundersdocumentsamendI_religions57htmlgt

R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de

ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo e Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-

305 janabr 2008

RAZ Joseph Autonomy toleration and the harm principie In GAVISON Ruth (Ed)

Contemporary legalphilosophy the influence of H L A Hart Oxford University Press

R E A L E JUacuteNIOR Miguel Toleracircncia e solidariedade In MARCIacuteLIO Maria Luiza A declaraccedilatildeo

Universal dos Direitos Humanos sessenta anos sonhos e realidades Satildeo Paulo EDUSP 2008 p

167-178

S C H E R K E R K E W I T Z Iso Chaitz O direito de religiatildeo no Brasil Revista Nacional de

Jurisprudecircncia ano 3 n 34 out 2002

TASCHNER Gisela B A poacutes-modemidade e a sociologia Revista USP Satildeo Paulo n 42 junago

p 6-19 1999

T O L E D O Francisco de Assis Princiacutepios baacutesicos de direito penal Satildeo Paulo Saraiva 1986

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

762 Maria Costa Neves Machado

Adicionalmente a confederaccedilatildeo sustenta que a disposiccedilatildeo de acordo

com a qual o conteuacutedo do ensino religioso eacute u m a atribuiccedilatildeo das diversas autoridades

religiosas contraria o art 33 da Lei Federal n 939497 que estabelece diferentes padrotildees

para a definiccedilatildeo do conteuacutedo do ensino religioso E m conformidade com tal lei federal

os sistemas de ensino devem ouvir entidades civis de diversas religiotildees para definir

o conteuacutedo do ensino religioso A violaccedilatildeo eacute demonstrada com base no fato de que o

conceito de autoridade religiosa - que implica u m a estrutura administrativa e hieraacuterquica

como aquelas presentes nas Igrejas Catoacutelicas Presbiterianas e Judaicas - natildeo eacute parte da

tradiccedilatildeo de algumas religiotildees que tem origem Evangeacutelica ou afro-brasileira

A A D I N ainda natildeo foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal De qualquer

forma os argumentos apresentados pela Confederaccedilatildeo Nacional dos Trabalhadores em

Educaccedilatildeo - e pelos vaacuterios amicus curiae admitidos no processo - parecem ser coerentes

com a Constituiccedilatildeo Federal e aptos a derrubar a Lei Estadual n 3459

N o Estado de Satildeo Paulo o ensino religioso previsto no art 33 da Lei n

939497 foi regulamentado na Deliberaccedilatildeo do Conselho Estadual de Educaccedilatildeo - CEE

n 162001 com fundamento na Indicaccedilatildeo C E E n 07 aprovada e m 25 de julho de 2001

de acordo com a qual o ensino religioso deve ser enfocado na perspectiva constitucional

de promoccedilatildeo da cidadania e da dignidade especialmente na funccedilatildeo social da educaccedilatildeo

e m geral de modo que deve ser enfatizada a reflexatildeo sobre a cidadania e as praacuteticas a ela

pertinentes Assumindo que natildeo haacute conhecimento futuro e vida sem a competecircncia de

conviver com as diferenccedilas a Indicaccedilatildeo C E E n 072001 reconhece que satildeo bem-vindos

todos os projetos educacionais (aiacute se podendo incluir o ensino religioso) que visam direta

ou indiretamente o trabalho comunitaacuterio a conscientizaccedilatildeo da responsabilidade pessoal

e social e que estimulem e restaurem os valores humanos de compromisso moral e eacutetico

auxiliando a compreensatildeo do h o m e m e o autoconhecimento Nesse sentido de acordo com

referida indicaccedilatildeo o ensino religioso nas escolas deve antes de tudo fundamentar-se nos

princiacutepios da cidadania e do entendimento do outro Assim o C E E recomendou que o

ensino religioso fosse tratado como tema transversal por meio da implementaccedilatildeo de uma

proposta de abordagem filosoacutefica que permitisse a reflexatildeo sobre valores e princiacutepios eacuteticos e

o conhecimento da histoacuteria das religiotildees Tambeacutem no Estado de Satildeo Paulo a implementaccedilatildeo

do ensino religioso foi arduamente debatida e criticada especialmente em razatildeo da

problemaacutetica questatildeo do estabelecimento de religiatildeo vedado pela Constituiccedilatildeo de 198848

Vide entre outros GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates do N E R (UFRGS) v 14 p 50-68 2009 CURY Carlos Roberto Jamil Ensino religioso na escola puacuteblica o retorno de uma polecircmica recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004 LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007 R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-305 janabr 2008

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

Referecircncias

BLACKBURN Simon Religion and respect Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor

durante o Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law

School no periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009

BIELEFELDT Heiner Filosofia dos direitos humanos fundamentos de u m ethos de liberdade

universal Satildeo Leopoldo Unisinos 2000

BITTAR Eduardo Carlos Bianca O direito na poacutes-modernidade Rio de Janeiro Forense

Universitaacuteria 2005

BOBBIO Norberto Toleracircncia e verdade In E L O G I O da serenidade e outros escritos morais

Traduccedilatildeo de Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo UNESP 2002 p 149-155

LAFER Celso O Estado laico O Estado de S Paulo Satildeo Paulo 20 maio 2007 Caderno A2 Espaccedilo

Aberto

C O M P A R A T O Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos 2 ed Satildeo Paulo

Saraiva 2001

C R E T E L L A JUacuteNIOR Joseacute Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira de 1988 Rio de Janeiro

Forense Universitaacuteria 1992 v 1

D A D E S K Y Jacques Pluralismo eacutetnico e multiculturalismo racismos e anti-racismos no Brasil

Rio de Janeiro Pallas 2005

FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989

FERREIRA FILHO Manuel Gonccedilalves Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo brasileira de 1988 Satildeo Paulo

Saraiva 1990

GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates

do NER (UFRGS) v 14 p 50-68 2009

G R E E N Leslie On being tolerated University of Oxford Faculty of Law Legal Studies Research

Paper Series Working Paper No 142008

H A B E R M A S Juumlrgen Lutas pelo reconhecimento no Estado Democraacutetico Constitucional In

TAYLOR Charles (Org) Multiculturalismo examinando a poliacutetica do reconhecimento Lisboa

Piaget 1994

JAMIL CURY Carlos Roberto Ensino religioso na escola puacuteblica o retomo de uma polecircmica

recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004

K Y M L I C K A Will Multicultural citizenship a liberal theory of minority rights Oxford Clarendon

Press 1997

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 765

LEITER Brian Why tolerate religion Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor durante o

Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law School no

periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009

LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de

Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007

NORONHA Magalhatildees Direito Penal Satildeo Paulo Saraiva 1968 v 4

NUSSBAUM Martha C Liberty of Conscience In DEFENSE of Americas Tradition of Religious

Equality N e w York Basic Books 2008

MARTINS Ives Granda BASTOS Celso Ribeiro Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo do Brasil

(Promulgada em 5 de outubro de 1988) Satildeo Paulo Saraiva 1989 v 2

Moraes Alexandre de Constituiccedilatildeo do Brasil Interpretada e Legislaccedilatildeo Constitucional Satildeo Paulo

Atlas 2003

NEVES Marcelo Entre Tecircmis e Leviatatilde uma relaccedilatildeo difiacutecil (o Estado Democraacutetico de Direito a

partir e aleacutem de Luhmann e Habermas) Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

Justiccedila e diferenccedila numa sociedade global complexa Recife Instituto dos Advogados de

Pernambuco v 1 n 1 2000

PAINE Thomas The Founders Constitution v 5 I Emenda (Religiatildeo) Doe 57 Disponiacutevel em

lthttppress-pubsuchicagoedufoundersdocumentsamendI_religions57htmlgt

R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de

ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo e Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-

305 janabr 2008

RAZ Joseph Autonomy toleration and the harm principie In GAVISON Ruth (Ed)

Contemporary legalphilosophy the influence of H L A Hart Oxford University Press

R E A L E JUacuteNIOR Miguel Toleracircncia e solidariedade In MARCIacuteLIO Maria Luiza A declaraccedilatildeo

Universal dos Direitos Humanos sessenta anos sonhos e realidades Satildeo Paulo EDUSP 2008 p

167-178

S C H E R K E R K E W I T Z Iso Chaitz O direito de religiatildeo no Brasil Revista Nacional de

Jurisprudecircncia ano 3 n 34 out 2002

TASCHNER Gisela B A poacutes-modemidade e a sociologia Revista USP Satildeo Paulo n 42 junago

p 6-19 1999

T O L E D O Francisco de Assis Princiacutepios baacutesicos de direito penal Satildeo Paulo Saraiva 1986

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 763

Neste item a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no Brasil foi examinada

com a finalidade de verificar se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota u m princiacutepio de

toleracircncia ou de respeito As normas relacionadas agrave garantia da liberdade de consciecircncia

e de crenccedila bem como ao livre exerciacutecio de cultos religiosos agrave proteccedilatildeo dos locais de

adoraccedilatildeo agrave proibiccedilatildeo do estabelecimento de religiatildeo agrave garantia de assistecircncia religiosa

e m estabelecimentos de internaccedilatildeo coletiva agrave acomodaccedilatildeo e m razatildeo de imperativo de

consciecircncia e ao ensino religioso facultativo todas foram analisadas de modo que fosse

possiacutevel concluir se o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio da toleracircncia ou

do respeito

D e acordo com tal anaacutelise o ordenamento juriacutedico brasileiro parece tratar a

religiatildeo e m conformidade com o princiacutepio do respeito Isso porque pessoas religiosas e natildeo

religiosas podem entrar no espaccedilo puacutebico e m iguais condiccedilotildees sendo que a faculdade de

buscar a finalidade uacuteltima da vida eacute respeitada pelo Estado Nesse sentido o ordenamento

juriacutedico brasileiro garante a liberdade de consciecircncia e de crenccedila o livre exerciacutecio de

cultos religiosos e a proteccedilatildeo dos locais de adoraccedilatildeo Adicionalmente enquanto de u m

lado nenhuma religiatildeo pode ser estabelecida pelo Estado pessoas religiosas podem

reivindicar imperativo de consciecircncia bem como receber assistecircncia religiosa e ensino

religioso se essa for a sua escolha

Isso demonstra que todos os indiviacuteduos de acordo com o ordenamento

juriacutedico brasileiro devem entrar no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais e que o Estado eacute

obrigado a fornecer condiccedilotildees para que pessoas religiosas e natildeo religiosas possam buscar

a finalidade uacuteltima da vida se essa for sua escolha respeitando e m todos os indiviacuteduos a

faculdade de realizar tal busca

4 Conclusatildeo

Inicialmente foi examinada neste artigo a diferenccedila entre o princiacutepio da

toleracircncia e o princiacutepio do respeito no que se refere ao tratamento legal de questotildees de

consciecircncia Posteriormente a regulamentaccedilatildeo da liberdade religiosa no ordenamento

juriacutedico brasileiro foi analisada com a finalidade de verificar qual desses dois princiacutepios eacute

adotado Finalmente conclui-se que o ordenamento juriacutedico brasileiro adota o princiacutepio

do respeito pela faculdade dos indiviacuteduos de buscar pela finalidade uacuteltima da vida sendo o

Estado obrigado a garantir condiccedilotildees adequadas para as pessoas exercerem tal faculdade

de acordo com suas escolhas autocircnomas de modo que todos os indiviacuteduos possam entrar

no espaccedilo puacuteblico e m condiccedilotildees iguais

Satildeo Paulo dezembro de 2010

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

Referecircncias

BLACKBURN Simon Religion and respect Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor

durante o Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law

School no periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009

BIELEFELDT Heiner Filosofia dos direitos humanos fundamentos de u m ethos de liberdade

universal Satildeo Leopoldo Unisinos 2000

BITTAR Eduardo Carlos Bianca O direito na poacutes-modernidade Rio de Janeiro Forense

Universitaacuteria 2005

BOBBIO Norberto Toleracircncia e verdade In E L O G I O da serenidade e outros escritos morais

Traduccedilatildeo de Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo UNESP 2002 p 149-155

LAFER Celso O Estado laico O Estado de S Paulo Satildeo Paulo 20 maio 2007 Caderno A2 Espaccedilo

Aberto

C O M P A R A T O Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos 2 ed Satildeo Paulo

Saraiva 2001

C R E T E L L A JUacuteNIOR Joseacute Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira de 1988 Rio de Janeiro

Forense Universitaacuteria 1992 v 1

D A D E S K Y Jacques Pluralismo eacutetnico e multiculturalismo racismos e anti-racismos no Brasil

Rio de Janeiro Pallas 2005

FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989

FERREIRA FILHO Manuel Gonccedilalves Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo brasileira de 1988 Satildeo Paulo

Saraiva 1990

GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates

do NER (UFRGS) v 14 p 50-68 2009

G R E E N Leslie On being tolerated University of Oxford Faculty of Law Legal Studies Research

Paper Series Working Paper No 142008

H A B E R M A S Juumlrgen Lutas pelo reconhecimento no Estado Democraacutetico Constitucional In

TAYLOR Charles (Org) Multiculturalismo examinando a poliacutetica do reconhecimento Lisboa

Piaget 1994

JAMIL CURY Carlos Roberto Ensino religioso na escola puacuteblica o retomo de uma polecircmica

recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004

K Y M L I C K A Will Multicultural citizenship a liberal theory of minority rights Oxford Clarendon

Press 1997

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 765

LEITER Brian Why tolerate religion Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor durante o

Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law School no

periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009

LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de

Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007

NORONHA Magalhatildees Direito Penal Satildeo Paulo Saraiva 1968 v 4

NUSSBAUM Martha C Liberty of Conscience In DEFENSE of Americas Tradition of Religious

Equality N e w York Basic Books 2008

MARTINS Ives Granda BASTOS Celso Ribeiro Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo do Brasil

(Promulgada em 5 de outubro de 1988) Satildeo Paulo Saraiva 1989 v 2

Moraes Alexandre de Constituiccedilatildeo do Brasil Interpretada e Legislaccedilatildeo Constitucional Satildeo Paulo

Atlas 2003

NEVES Marcelo Entre Tecircmis e Leviatatilde uma relaccedilatildeo difiacutecil (o Estado Democraacutetico de Direito a

partir e aleacutem de Luhmann e Habermas) Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

Justiccedila e diferenccedila numa sociedade global complexa Recife Instituto dos Advogados de

Pernambuco v 1 n 1 2000

PAINE Thomas The Founders Constitution v 5 I Emenda (Religiatildeo) Doe 57 Disponiacutevel em

lthttppress-pubsuchicagoedufoundersdocumentsamendI_religions57htmlgt

R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de

ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo e Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-

305 janabr 2008

RAZ Joseph Autonomy toleration and the harm principie In GAVISON Ruth (Ed)

Contemporary legalphilosophy the influence of H L A Hart Oxford University Press

R E A L E JUacuteNIOR Miguel Toleracircncia e solidariedade In MARCIacuteLIO Maria Luiza A declaraccedilatildeo

Universal dos Direitos Humanos sessenta anos sonhos e realidades Satildeo Paulo EDUSP 2008 p

167-178

S C H E R K E R K E W I T Z Iso Chaitz O direito de religiatildeo no Brasil Revista Nacional de

Jurisprudecircncia ano 3 n 34 out 2002

TASCHNER Gisela B A poacutes-modemidade e a sociologia Revista USP Satildeo Paulo n 42 junago

p 6-19 1999

T O L E D O Francisco de Assis Princiacutepios baacutesicos de direito penal Satildeo Paulo Saraiva 1986

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743 - 765 jandez 2010

IM Maria Costa Neves Machado

Referecircncias

BLACKBURN Simon Religion and respect Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor

durante o Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law

School no periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009

BIELEFELDT Heiner Filosofia dos direitos humanos fundamentos de u m ethos de liberdade

universal Satildeo Leopoldo Unisinos 2000

BITTAR Eduardo Carlos Bianca O direito na poacutes-modernidade Rio de Janeiro Forense

Universitaacuteria 2005

BOBBIO Norberto Toleracircncia e verdade In E L O G I O da serenidade e outros escritos morais

Traduccedilatildeo de Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo UNESP 2002 p 149-155

LAFER Celso O Estado laico O Estado de S Paulo Satildeo Paulo 20 maio 2007 Caderno A2 Espaccedilo

Aberto

C O M P A R A T O Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos 2 ed Satildeo Paulo

Saraiva 2001

C R E T E L L A JUacuteNIOR Joseacute Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira de 1988 Rio de Janeiro

Forense Universitaacuteria 1992 v 1

D A D E S K Y Jacques Pluralismo eacutetnico e multiculturalismo racismos e anti-racismos no Brasil

Rio de Janeiro Pallas 2005

FERREIRA Pinto Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo Brasileira Satildeo Paulo Saraiva 1989

FERREIRA FILHO Manuel Gonccedilalves Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo brasileira de 1988 Satildeo Paulo

Saraiva 1990

GIUMBELLI Emerson Ensino religioso em escolas puacuteblicas no Brasil notas de pesquisa Debates

do NER (UFRGS) v 14 p 50-68 2009

G R E E N Leslie On being tolerated University of Oxford Faculty of Law Legal Studies Research

Paper Series Working Paper No 142008

H A B E R M A S Juumlrgen Lutas pelo reconhecimento no Estado Democraacutetico Constitucional In

TAYLOR Charles (Org) Multiculturalismo examinando a poliacutetica do reconhecimento Lisboa

Piaget 1994

JAMIL CURY Carlos Roberto Ensino religioso na escola puacuteblica o retomo de uma polecircmica

recorrente Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 27 p 183-213 setdez 2004

K Y M L I C K A Will Multicultural citizenship a liberal theory of minority rights Oxford Clarendon

Press 1997

R Fac Dir Univ SP v 105 p 743-765 jandez 2010

Liberdade religiosa uma questatildeo de toleracircncia ou respeito 765

LEITER Brian Why tolerate religion Manuscrito natildeo publicado fornecido pelo autor durante o

Workshop Direito e Filosofia coordenado por Brian Leiter na University of Chicago Law School no

periacuteodo compreendido entre setembro de 2008 e maio de 2009

LUI Janayna de Alencar Entre crentes e pagatildeos ensino religioso em Satildeo Paulo Cadernos de

Pesquisa v 37 n 131 p 333-349 maioago 2007

NORONHA Magalhatildees Direito Penal Satildeo Paulo Saraiva 1968 v 4

NUSSBAUM Martha C Liberty of Conscience In DEFENSE of Americas Tradition of Religious

Equality N e w York Basic Books 2008

MARTINS Ives Granda BASTOS Celso Ribeiro Comentaacuterios agrave Constituiccedilatildeo do Brasil

(Promulgada em 5 de outubro de 1988) Satildeo Paulo Saraiva 1989 v 2

Moraes Alexandre de Constituiccedilatildeo do Brasil Interpretada e Legislaccedilatildeo Constitucional Satildeo Paulo

Atlas 2003

NEVES Marcelo Entre Tecircmis e Leviatatilde uma relaccedilatildeo difiacutecil (o Estado Democraacutetico de Direito a

partir e aleacutem de Luhmann e Habermas) Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

Justiccedila e diferenccedila numa sociedade global complexa Recife Instituto dos Advogados de

Pernambuco v 1 n 1 2000

PAINE Thomas The Founders Constitution v 5 I Emenda (Religiatildeo) Doe 57 Disponiacutevel em

lthttppress-pubsuchicagoedufoundersdocumentsamendI_religions57htmlgt

R A N Q U E T A T JUacuteNIOR Ceacutesar Do confessional ao plural uma anaacutelise sobre o novo modelo de

ensino religioso nas escolas brasileiras Revista Diaacutelogo e Educaccedilatildeo Curitiba v 8 n 23 p 289-

305 janabr 2008

RAZ Joseph Autonomy toleration and the harm principie In GAVISON Ruth (Ed)

Contemporary legalphilosophy the influence of H L A Hart Oxford University Press

R E A L E JUacuteNIOR Miguel Toleracircncia e solidariedade In MARCIacuteLIO Maria Luiza A declaraccedilatildeo

Universal dos Direitos Humanos sessenta anos sonhos e realidades Satildeo Paulo EDUSP 2008 p

167-178

S C H E R K E R K E W I T Z Iso Chaitz O direito de religiatildeo no Brasil Revista Nacional de

Jurisprudecircncia ano 3 n 34 out 2002

TASCHNER Gisela B A poacutes-modemidade e a sociologia Revista USP Satildeo Paulo n 42 junago

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