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O MUNDO DA SAÚDE — São Paulo, ano 30 v. 30 n. 3 jul./set. 2006 425 ARTIGO ORIGINAL / RESEARCH REPORT / ARTÍCULO Lições de anatomia: vida, morte e dignidade Lessons of anatomy: life, death and dignity Lecciones de anatomía: vida,muerte y dignidad RESUMO: A anatomia é uma disciplina da maior importância para as ciências da vida e da saúde. Presente na história desde os mais remotos tempos, tem sido foco de atenção não só da ciência, mas também da arte, da religião e da ética. Historicamente, sempre que a disciplina passou por momentos de polêmica e difamação, existia um forte componente ético em pauta no que diz respeito ao trato com o cadáver, fonte direta de estudo da disciplina. Neste trabalho abordaremos os diferentes momentos e fatos que acompanharam o desenrolar da anatomia humana na história, e questionaremos, à luz da bioética e da filosofia o comportamento das pessoas antes, durante e depois do contato com o cadáver nas aulas de anatomia humana, buscando refletir sobre a preservação do respeito e da dignidade após a morte. DESCRITORES: Bioética; Dignidade humana; Morte ABSTRACT: Anatomy is a very important discipline for life and health sciences. Present in history since the most remote times, it has been a focus of attention not only for science, but also for art, religion and ethics. From a historical point of view, every time the discipline has passed by controversy and defamation moments, there existed an ethical component involved regarding the attitude to the corpse, the direct source of the discipline study. In this work we will approach the different moments and facts that accompany Human Anatomy through history and to question, in the light of bioethics and philosophy, the behavior of people before, during and after the contact with the corpse in Human Anatomy lessons, seeking to reflect on the preservation of respect and dignity after death. KEYWORDS: Bioethics; Human dignity; Death RESUMEN: La anatomía es una disciplina muy importante para las ciencias de la vida y de la salud. Presente en la historia desde los tiempos más alejados, ha sido un foco de la atención no solamente de la ciencia, pero también del arte, de la religión y de la ética. Desde un punto de vista histórico, la disciplina ha pasado muchas veces por momentos de controversia y de difamación, y existía un componen- te ético implicado con respecto a la actitud frente al cadáver, la fuente directa del estudio de la disciplina. En este trabajo acercaremos a los diversos momentos y hechos que acompañan la anatomía humana en la historia y nos preguntaremos, bajo la perspectiva de la bioética y de la filosofía, el comportamiento de la gente antes, durante y después del contacto con el cadáver en las lecciones de anatomía humanas, intentando una reflexión sobre la preservación del respecto y de la dignidad después de la muerte. PALABRAS-LLAVE: Bioética; Dignidad humana;muerte Cristiane Regina Ruiz* Léo Pessini** * Educadora física. Doutora em Ciências (UNIFESP-EPM). Especialista em Bioética e Pastoral da saúde. Coordenadora do curso “Especialização em Diagnóstico por imagem: Interpretação anatômica”, do Centro Universitário São Camilo. Docente das disciplinas de Anatomia humana e Bioética. E-mail: [email protected] ** Teólogo. Doutor em Teologia Moral — Bioética. Superintendente da União Social Camiliana. Vice-reitor do Centro Universitário São Camilo. E-mail: [email protected] “Considere-se o corpo desde o exterior. Esta massa de músculos e fibras, este conglomerado de ângulos e redondezas cobertas de pele, de proeminências animadas e concavidades impressionantes invariavelmente suscita no observador um intenso efeito. Que este seja positivo ou negativo, ao que parece depende completamente da recuperação do observador”. Francisco Gonzáles — Crussi (1996) 06 licoes de anatomia.p65 04/09/2006, 16:15 425

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O MUNDO DA SAÚDE — São Paulo, ano 30 v. 30 n. 3 jul./set. 2006 425

ARTIGO ORIGINAL / RESEARCH REPORT / ARTÍCULO

Lições de anatomia: vida, morte e dignidadeLessons of anatomy: life, death and dignity

Lecciones de anatomía: vida,muerte y dignidad

RESUMO: A anatomia é uma disciplina da maior importância para as ciências da vida e da saúde. Presente na história desde os maisremotos tempos, tem sido foco de atenção não só da ciência, mas também da arte, da religião e da ética. Historicamente, sempre quea disciplina passou por momentos de polêmica e difamação, existia um forte componente ético em pauta no que diz respeito ao tratocom o cadáver, fonte direta de estudo da disciplina. Neste trabalho abordaremos os diferentes momentos e fatos que acompanharamo desenrolar da anatomia humana na história, e questionaremos, à luz da bioética e da filosofia o comportamento das pessoas antes,durante e depois do contato com o cadáver nas aulas de anatomia humana, buscando refletir sobre a preservação do respeito e dadignidade após a morte.

DESCRITORES: Bioética; Dignidade humana; Morte

ABSTRACT: Anatomy is a very important discipline for life and health sciences. Present in history since the most remote times, it hasbeen a focus of attention not only for science, but also for art, religion and ethics. From a historical point of view, every time thediscipline has passed by controversy and defamation moments, there existed an ethical component involved regarding the attitude tothe corpse, the direct source of the discipline study. In this work we will approach the different moments and facts that accompanyHuman Anatomy through history and to question, in the light of bioethics and philosophy, the behavior of people before, during andafter the contact with the corpse in Human Anatomy lessons, seeking to reflect on the preservation of respect and dignity after death.

KEYWORDS: Bioethics; Human dignity; Death

RESUMEN: La anatomía es una disciplina muy importante para las ciencias de la vida y de la salud. Presente en la historia desde lostiempos más alejados, ha sido un foco de la atención no solamente de la ciencia, pero también del arte, de la religión y de la ética. Desdeun punto de vista histórico, la disciplina ha pasado muchas veces por momentos de controversia y de difamación, y existía un componen-te ético implicado con respecto a la actitud frente al cadáver, la fuente directa del estudio de la disciplina. En este trabajo acercaremosa los diversos momentos y hechos que acompañan la anatomía humana en la historia y nos preguntaremos, bajo la perspectiva de labioética y de la filosofía, el comportamiento de la gente antes, durante y después del contacto con el cadáver en las lecciones deanatomía humanas, intentando una reflexión sobre la preservación del respecto y de la dignidad después de la muerte.

PALABRAS-LLAVE: Bioética; Dignidad humana;muerte

Cristiane Regina Ruiz*Léo Pessini**

* Educadora física. Doutora em Ciências (UNIFESP-EPM). Especialista em Bioética e Pastoral da saúde. Coordenadora do curso “Especialização em Diagnóstico porimagem: Interpretação anatômica”, do Centro Universitário São Camilo. Docente das disciplinas de Anatomia humana e Bioética. E-mail: [email protected]

** Teólogo. Doutor em Teologia Moral — Bioética. Superintendente da União Social Camiliana. Vice-reitor do Centro Universitário São Camilo.E-mail: [email protected]

“Considere-se o corpo desde o exterior. Esta massa de músculos e fibras,este conglomerado de ângulos e redondezas cobertas de pele, de proeminências

animadas e concavidades impressionantes invariavelmente suscita no observadorum intenso efeito. Que este seja positivo ou negativo, ao que parece depende

completamente da recuperação do observador”.

Francisco Gonzáles — Crussi (1996)

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Introdução

Existem e sempre existirão situa-ções atreladas à aula prática de ana-tomia que nos fazem e nos farão pen-sar e repensar a ação educativa e atéque dimensão ela consegue esten-der-se. O ato de ministrar aulas deAnatomia Humana extrapola o con-junto de estruturas biológicas quecompõem o corpo humano biológi-co, pois há valores de comportamen-to humano envolvidos na observa-ção e manipulação do corpo inerteque vêm em primeiro lugar.

A primeira impressão, o como eo quando ter esse primeiro contatocom o cadáver tem se tornado umapergunta freqüente em nossas refle-xões. Diante da diversidade cultural,religiosa e biográfica dos estudantes,das diferenças comportamentaisque presenciamos, percebemos queo trabalho de conscientização que serealiza antes das primeiras aulas prá-ticas não atinge a totalidade dos alu-nos, mesmo porque é um trabalhopulverizado em que cada professorfala com os alunos de uma maneiraparticular, sendo mais ou menos en-fático sobre o respeito, a ética e adignidade do cadáver.

É óbvio que alcançamos um ní-vel de compreensão dos alunos so-bre o cuidado para não deteriorara peça anatômica e sobre como secomportar no laboratório, mas nãotemos como saber sobre os confli-tos internos e os sentimentos e me-mórias que cada um possui ligan-do-os à questão da morte.

Falar sobre uma ação (não es-trague a peça, não faça brincadei-ras com o cadáver etc.) é simples,mas falar sobre sentimentos e va-lores (não relacione seu medo damorte com o cadáver, não lembredo velório de seu pai etc.) são situa-ções diferentes.

A imagem do cadáver no labo-ratório de anatomia gera em cadaum dos novos estudantes reaçõesdiferentes, de diferentes intensi-

dades e maneiras, num misto decuriosidade, repugnância, pesar,ansiedade e medo.

O assunto não se enclausura nolaboratório, tendo repercussão emcada um mesmo após o término daaula. Como saber o que se passa nasmentes desses observadores? Queemoções despertam ou são desco-bertas a partir desse contato? Queconcepção de vida e morte são re-fletidas nesse encontro?

Abordaremos neste texto as di-ferentes faces dessa questão doponto de vista histórico, antropo-lógico e bioético, buscando, à luzdestes fundamentos, refletir sobrea ética do lidar com o corpo inerte,da relação do vivo com o cadáver,além de caminhos para a valoriza-ção e respeito ao ser humano mes-mo após sua morte.

Crônica de uma história desentidos: O corpo sem vidaque fala...

Num primeiro momento nosinspiramos em uma crônica deRubem Alves, eminente pensadorbrasileiro, que nos relata uma his-tória provocativa de sentidos emrelação ao estudo em questão.

Transcrevemos a seguir excertosde uma história:

“...Era uma aldeia de pescado-res perdida num fim de mundo,onde as coisas sempre aconteciamdo mesmo jeito, a monotonia e otédio havendo se apossado dos cor-pos dos homens e das mulheres,de sorte que dos seus olhos fugiratoa a luz, e ninguém esperava rece-ber das palavras de alguém fossebeleza, fosse sorriso, de antemão jáse sabia o que diriam, a eterna re-petição do mesmo enfado, cada umdesejando secretamente a mortedo outro, a liberdade é assassina,no mar é sempre igual, também asareias, as pedras, os barcos, os pei-xes, os vivos, os mortos...

Foi então que um menino queolhava para a eterna monotonia do

mar viu algo diferente, estava lon-ge, não sabia o que era, mas numlugar como aquele qualquer novi-dade é motivo de agitação, e elegritou, e todos vieram correndo pa-ra ver, na esperança, talvez, de algoque lhes desse sobre o que falar, elá ficaram, parados na praia, espe-rando que o mar trouxesse até elesa coisa, e ela foi vindo, sem pressa,até que, finalmente, o mar a depo-sitou na areia, um morto desco-nhecido, tendo por roupa no seucorpo desnudo apenas as algas, osliquens e as coisas verdes do mar.

Morto maldito, um silêncio amais. Pois dele nenhuma palavrase poderia falar. Desconhecido semlugar, sem passado e sem nome…

Mas tinham de fazer o que de-viam: os cadáveres têm de ser en-terrados. E era costume naquela al-deia que os mortos fossem prepa-rados pelas mulheres para o sepul-tamento, e assim o levaram parauma casa, e o colocaram eucaristi-camente sobre uma mesa, tomai ecomei, este é o meu corpo, e gran-de era o silêncio, pois sobre o mor-to sem nome não havia o que falar,as mulheres de dentro, os homensde fora, até que uma delas com voztrêmula observou: “Tivesse ele mo-rado em nossa aldeia e teria de terabaixado a cabeça sempre que en-trasse em nossas casas, pois é altodemais, no que todos assentiramcom um imperceptível gesto de ca-beça. Mas logo uma outra falou, eperguntou como teria sido a vozdaquele homem, se teria sido comoa brisa ou como o rugir das ondas,e se teria tido em sua boca as pala-vras que, uma vez ditas, fazem comque uma mulher apanhe uma flore a coloque no cabelo... e todas sor-riram, e uma até passaram os dedosno cabelo, talvez para sentir umaflor invisível que lá estava.

E grande foi o silêncio até queaquela que limpava as mãos inertesdo morto perguntou sobre o queelas teriam feito, se teriam construí-

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do casas, se teriam travado batalhas,se teriam navegado mares, e se te-riam sabido acariciar o corpo deuma mulher, e se ouviu então umdiscreto bater de asas, pássaros defogo entrando pelas janelas e pe-netrando nas carnes.

E os homens, espantados, tive-ram ciúme do morto, que era capazde fazer amor com suas mulheresde um jeito que eles mesmos nãosabiam. E pensaram que eram pe-quenos demais, tímidos demais,feios demais, e choraram os gestosque não haviam feito, os poemasque não haviam escrito, as mulhe-res que não haviam amado.

Termina a história dizendo queeles, finalmente enterraram o morto.

“…Mas a aldeia nunca mais foia mesma...” (Alves,1997)1

Esta narrativa revela que numcorpo sem vida é possível resga-tar muitos sentidos da própriavida. Um dos sentidos atribuídosao longo dos tempos é abordadona seção que segue.

Algumas notas históricassobre anatomia

A anatomia humana, desde seusurgimento, já foi estudada de di-versas maneiras, despertando dife-rentes graus de interesse por partedos estudiosos e da sociedade. Deheroína a vilã, a disciplina vem atéhoje se mantendo viva, dada a suaimportância fundamental e suacontribuição às ciências da vida eda saúde, superando conflitos,quebrando tabus e criando novosmétodos de estudo e de preserva-ção do corpo humano, sua princi-pal fonte de pesquisa e informação.

Desde a pré-história os huma-nos sempre estiveram atentos a al-gumas de suas estruturas anatômi-cas, e o ato de “descarnar” os ani-mais após a morte forneceu muitase valiosas lições de anatomia para

as populações dessa época. Esse fe-nômeno nada tinha de anormal,visto que a caça era necessária paraa sobrevivência e os conhecimen-tos obtidos eram utilizados paramelhorar a eficácia da próxima ca-çada. Não havia vínculo religiosoe nenhum conflito ético envolvidoneste ato.

No Egito e na Mesopotâmia, oestudo anatômico mesclava-secom a religiosidade, quando acrença de que a imortalidade da al-ma se conservava no corpo fez comque vários órgãos fossem estuda-dos em animais na busca do “guar-dião da alma” e dos sentimentos.A mumificação, apesar de contri-buir para a conservação dos corpos,não foi registrada, e na época nãoera bem vista pela sociedade porexigir uma certa mutilação do cor-po, sendo muitas vezes considera-da um ato demoníaco. Percebe-se,portanto, uma contradição: o atoda mumificação preserva a moradada alma pela vida eterna, porém oindivíduo que realiza o ato é perse-guido e considerado marginal porprofanar esse mesmo corpo (Doo-ley,1973; Graaf, 2004).

Foi na Grécia antiga que a ana-tomia ganhou maior aceitação co-mo ciência. Nomes importantes quese destacaram nesse período foramHipócrates e Aristóteles (Saeed etal, 2001; Puig et al, 2006). No pe-ríodo alexandrino o estudo da ana-tomia floresceu em razão da exis-tência de uma escola de medicinaem Alexandria. Os conhecimentosanatômicos eram adquiridos prin-cipalmente mediante dissecações deanimais, porém num certo momen-to foram admitidas dissecações decadáveres humanos e vivissecções(dissecação de seres vivos). Esseprocedimento brutal executado emcriminosos condenados em nadacontribuiu para a boa imagem dadisciplina, depondo contra esse tipo

de estudo por questões claramenterelacionadas com a ética e a digni-dade humana. Infelizmente, amaioria dos trabalhos escritos pre-sentes nessa época foram perdidosquando a Biblioteca de Alexandriafoi queimada em 30 a.C.

Em Roma não houve grandesavanços na medicina, e por conse-guinte a anatomia tornou-se estag-nada. Nessa época os médicos ad-quiriam seus conhecimentos ana-tômicos mediante dissecações deanimais, e as leis passaram a ser es-tabelecidas atestando a influênciada Igreja na prática médica, o quecontribuía para a não dissecação decorpos humanos. O que foi preser-vado em termos de documentaçãoanatômica do Império Romano sãoinformações obtidas dos estudiososgregos e egípcios. Destaca-se nesseperíodo a figura de Galeno, ummédico grego cujas teorias anatô-micas duraram mais de mil anos.Suas descrições anatômicas, porém,eram limitadas a animais, visto queem sua carreira ele não dissecoumais que dois ou três cadáveres hu-manos. Suas obras, portanto, con-têm muitos erros, pois sua base ana-tômica era obtida na maior partedos casos em dados de animais co-mo macacos, porcos e cachorros(Graaf, 2003;Puig, 2006).

Na Idade Média a sacralidade docorpo impediu o progresso da me-dicina. A anatomia era consideradaum crime cujo castigo era a “fo-gueira”, logo, a dissecação de cadá-veres foi totalmente proibida du-rante esse período. A primeira dis-secação foi autorizada em Mont-pellier em 1375, imediatamenteconsiderada obscena e novamenteproibida. A Universidade de Bolo-nha foi autorizada a realizar umaautópsia por ano, às vésperas doNatal, através de uma cerimônia,procissão e exorcismos durantetrês dias. Em coerência com a visão

1. Excerto da crônica Os cadáveres, citado em Sobre o tempo e a eternidade. São Paulo: Papirus,1997.p.141-143.

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medieval do corpo, os primeiros aserem submetidos a estas expe-riências anatômicas eram os crimi-nosos (Illich,1975).

No Renascimento, o estudo docorpo humano chamou a atençãode vários artistas e pensadores, e aanatomia difundiu-se rapidamen-te nas universidades, tornando asdissecações humanas parte inte-grante do currículo médico. Umfator dificultante do estudo anatô-mico, no entanto, era a rápida pu-trefação dos cadáveres, pois nãohaviam técnicas de preservaçãoadequadas, e a dissecação se tor-nava uma maratona que se pro-longava por cerca de quatro dias.Além desse, um outro fator limi-tante era a obtenção de cadáverespara a dissecação, fato que levouestudantes médicos a violarem se-pulturas para roubar corpos, atéque um decreto oficial foi emitidopermitindo o uso de corpos de cri-minosos executados para estudo(Puig, 2006).

Nos séculos XVII e XVIII, a ana-tomia atingiu uma aceitação ini-gualável. O médico inglês WilliamHarvey (1578-1657) descreveucom detalhes, em 1628, a circula-ção sanguínea, descobrimento essede grande importância no desen-volvimento da medicina juntamen-te com a invenção do microscópio.Infelizmente, houve o lado da ana-tomia que denegriu sua imagemcomo disciplina séria, praticada porindivíduos com total falta de éticae respeito, que faziam demonstra-ções públicas de dissecação huma-na em grandes anfiteatros, ven-dendo ingressos a preços exorbi-tantes com o único intuito de re-presentar um papel teatral e mos-trar um espetáculo mórbido semobjetivo acadêmico algum.

No período da Segunda GuerraMundial, momento em que as ques-tões bioéticas envolvendo as expe-riências com seres humanos toma-vam corpo com o processo de Nu-

remberg (Durand, 2003), anato-mistas alemães foram acusados deusar corpos de vítimas do holo-causto para pesquisas anatômicas,assim como foram feitas várias de-núncias da presença da suásticanazista nas páginas de alguns atlasanatômicos da época (Aumuller &Grundmann, 2002).

Nos últimos anos do século XIXiniciou-se uma nova revoluçãocientífica global que continua atéos dias de hoje. Entre os avançostecnológicos se destacam os méto-dos de exame e diagnóstico porimagens (radiografias, tomografiacomputadorizada, ultrassonogra-fia, ressonância nuclear magnética,endoscopia etc.), a microscopia ele-trônica, fazendo com que o estudoda anatomia se desenvolva cadavez mais através das especializa-ções e da pesquisa mais detalhadae mais complexa (Bouchet, 1996;Graaf, 2003). Entre esses inúmerosavanços destaca-se também a des-coberta da técnica de preservaçãode cadáveres denominada plastina-ção, processo desenvolvido peloprofessor Gunther Von Hagen em1979 na Universidade de Heidel-berg, e que torna possível preservaras estruturas do corpo humano pormeio do uso de substâncias que in-terrompem a decomposição docorpo substituindo os fluídos cor-porais por substâncias à base deplástico e resinas de poliéster a vá-cuo (Saeed et al, 2001).

Como método de preservaçãoesse procedimento tem sido revo-lucionário, colaborando muito pa-ra o avanço do estudo da anatomia,dada a dificuldade de obtenção emanutenção de cadáveres. O ladoobscuro da técnica se mostra no fa-to de que o professor Von Hagenutiliza os corpos plastinados paraexibições públicas. Mais de oito mi-lhões de pessoas já assistiram suasapresentações na Alemanha, Ja-pão, Bélgica, Áustria e Suíça. Essasexibições, nada acadêmicas, têm

suscitado sentimentos que vão derepugnância à fascinação, e geradomuita polêmica. Muitas pessoas re-latam sua indignação com a explo-ração do cadáver destituindo-os desua dignidade pós-morte, enquan-to outros que pensam como VonHagen acreditam não haver nadade mal nas exposições visto que ocorpo humano é apenas um invó-lucro que após a morte perde suaserventia (Anatomy, ethics and thelaw, 2005). O que é certo é que nomeio desse furacão de emoçõescontroversas das exibições de VonHagen, existe um negócio multimi-lionário de venda de “espécimes”plastinados para instituições detodo o mundo que choca a opiniãopública provocando uma misturade sentimentos sobre como o cor-po deve ser tratado após a morte(Body Worlds: Fascination beneath thesurface, 2005).

O corpo como morada

Há quem diga que já morremosuma vez, no momento em que nas-cemos. Morremos para uma vidasem respiração pulmonar, mergu-lhados no líquido amniótico, comum coração onde o sangue não fluíapor todas as câmaras e havia umacomunicação interatrial impres-cindível para a sobrevivência. Umamorada onde havia vasos sanguí-neos que se ligavam a um outro serpara manter nossa vida.

Morremos e nascemos para oar, colocando nossos pulmões parafuncionar e reorganizando o meiointerno para essa nova vida. Osátrios do coração deixam de se co-municar, os vasos que nos ligam àmãe são cortados e agora o coraçãotodo trabalha levando sangue paratodo o corpo e para os pulmões. Éuma ruptura, uma morte para oantigo estágio, porém, sabemos oque acontece depois. Há uma novavida que na realidade concreta éacompanhada passo a passo. Mas

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e quando morremos pela segundavez? Não sabemos concretamenteo que há por vir, se há algo por virou se é decididamente o fim. Nesseimpasse, mesmo a morte num sen-tido amplo, sendo um fenômenoque faz parte da vida, não pode narealidade apresentar-se como umdado biológico e tomar a forma deum acontecimento objetivo: tendolugar no mundo, fazendo parte dosaber de todos os seres humanos(Dastur, 2002).

Nosso corpo concreto habitadopela vida intra ou extra-uterina écuidado, zelado, acariciado, por ve-zes agredido, maltratado, porémsempre é reconhecido. A questãoestá no depois, quando este corpojá não demonstra a vida em seu in-terior. O cadáver é então algo va-zio, desprovido de sensações, senti-mentos, e portanto muitas vezesabandonado e esquecido sem rece-ber do outro o valor merecido. Suadignidade desaparece por baixo deum lençol ou no retalhamento daautópsia (Crussi,1996). O respeitoé deixado de lado e ele é “coisifi-cado” num laboratório de anato-mia, sendo manipulado como ummero objeto. Esse olhar que separacorpo e alma permite que o corpomorto antes considerado digno deuma distinção especial, sendo tra-tado como se fosse uma pessoa, setransforme em algo desprovido dedignidade, e o cadáver se transfor-me em coisa, refugo (Pessini, 1990).

Historicamente, ninguém gos-ta de falar sobre a finitude. Este éum assunto que atemoriza, porémé uma verdade inabalável. A ima-gem do cadáver pode neste con-texto representar diferentes aspec-tos de acordo com a cultura, a reli-gião e a formação dos indivíduos.Pode-se abstrair que a estruturacorporal da morte representada nocadáver demonstra a fragilidade docorpo humano, mas por outro ladoele pode representar a chance doconhecimento mais aprofundado

da vida pelo reconhecimento dasestruturas que numa rede intrin-cada de relações atuam na manu-tenção do equilíbrio do organismovivo (Crussi, 1996).

Outro ponto de partida para areflexão é que a anatomia apren-dida no cadáver nos ensina umadupla lição sobre a individualida-de e comunhão entre os seres hu-manos. Enquanto individualidade,podemos reconhecer durante o es-tudo dos órgãos e vísceras que nãohá dois corações idênticos, que aconfiguração do fígado nunca é exa-tamente a mesma e que os vasossanguíneos se ramificam semprede modo peculiar, ou seja: nossaindividualidade deixa suas pegadasno estudo da anatomia.

Por outro lado, quando verifica-mos que mesmo com todas as varia-ções da Anatomia que podemos en-contrar os sistemas sempre traba-lham da mesma maneira, desempe-nhando suas funções com harmo-nia e perfeição, verificamos a comu-nhão da espécie, o modo como sen-do únicos somos também seme-lhantes em espécie. Somos todoshumanos, e a partir desse conceito,se nem em nossa corporeidade bio-lógica somos tão diferentes não háporque crer que a inteligência, clas-se social ou tom de pele possamcriar entre dois seres humanos umadistância maior do que a que existeentre as espécies. A corporeidadecomo condição humana evidenciaas potencialidades, e ao mesmotempo os limites, em que o ser hu-mano está constituído. O tema dacorporeidade, portanto, vincula ne-cessariamente à historicidade e à re-lacionalidade (Anjos, 2005).

O corpo como fontede conhecimento

“A utilização do cadáver é uma trí-plice lição educativa: instrutiva ouinformativa, como meio de conhe-cimento da organização do corpo

humano, precedendo o estudo novivo; normativa, disciplinadora doestudo, pelo seu caráter metodoló-gico e de precisão de linguagem eestético-moral, pela natureza domaterial de estudo, o cadáver, e pelométodo primeiro de aprendizado, adissecção, que é a experiência e fugarepousante na contemplação daharmonia de construção do orga-nismo humano refletindo-se sobreuma lição de ética e de humildade.Renato Locchi (1896-1978) apudWatanabe, 2005)

É mister neste momento reco-nhecer a contribuição que o corpohumano tem dado, e não só à me-dicina desde a Pré-história. Grandeatenção foi dispensada à anatomiapor alguns personagens históricos,como Leonardo da Vinci, que co-meçou a dissecar cadáveres paraaperfeiçoar sua arte e é hoje consi-derado um dos maiores anatomis-tas de todos os tempos. Vesalius,com sua obra De humanis corporifabrica revolucionou o estudo ana-tômico e acrescentou muito à me-dicina. Rembrandt, que pintou Li-ção de anatomia do dr. Tulp, obra con-sagrada e presente em uma grandequantidade de escolas médicas e la-boratórios de anatomia. Todos es-ses grandes nomes são exemplos delições de arte, dedicação e respeitoque o século XXI tem que preservar(Mangini, 2005). O estudante deanatomia precisa conhecer um pou-co da história para alicerçar o iníciode sua jornada de aprendizagemanatômica, pois o futuro profissio-nal, ao adentrar ao laboratório deanatomia, carrega consigo anseios,temores e dúvidas que extrapolamo universo biológico.

Ao mesmo tempo em que elese vê iniciando a construção de seuconhecimento sobre o corpo hu-mano, ele também necessita ven-cer muitas vezes barreiras culturaise religiosas que envolvem o manu-seio do cadáver. É interessante areflexão de que há uma linha de-

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marcatória para todas as pessoas noque diz respeito ao estudo do labo-ratório e anatomia; o que está fora eo que está dentro? O que significaultrapassar a porta e vivenciar essemomento? (Villas Boas, 1983).Como cada um encara essa passa-gem? Não deixa de ser um ritual:a expectativa, o impacto, o sofri-mento, a iniciação, o medo e o or-gulho. Emoções diferentes parapessoas diferentes, mas com objeti-vos idênticos. O lidar com essassensações está a nosso ver intrinse-camente ligado à condução dessaatividade do responsável pela in-trodução do indivíduo neste novouniverso, o modo como foi funda-mentada a tarefa. E esses funda-mentos em hipótese alguma po-dem ser puramente biológicos. Hávalores éticos, espirituais, psicoló-gicos, culturais e religiosos envolvi-dos no processo.

O comportamento de cada pes-soa está sem dúvida atrelado aomodo como ela foi instruída antesde atravessar a porta para estaaprendizagem, sem esquecer quea própria pessoa, a partir de suasexperiências, valores e educação,entre outros elementos, tambémexerce grande influência.

Se nos ativermos à imagemsimbólica que o laboratório de ana-tomia representa, sendo muitas ve-zes “sagrado” e em outras tantasvezes “profano”, perceberemos oquanto o comportamento da pes-soa em seu interior a qualifica.

O ambiente se torna o que osfreqüentadores o fazem. Se os pro-fessores e funcionários demonstramrespeito e cuidado ao local, colocan-do-o como um endereço de extre-ma importância, claramente os dis-cípulos (estudantes) herdarão essaseriedade. Obviamente, nunca a to-talidade das pessoas será influencia-da com essa dose de respeito e resig-nação. Sempre haverá espaço paraos menos interessados e para atitu-des jocosas que mesclam o macabro

e o cômico. O difícil é contabilizar oque é suscitado em cada pessoa paraque sua reação seja de determinadamaneira. O repúdio, a brincadeira,a náusea, o riso, a curiosidade mór-bida, a reação de terror. Cada umadessas reações relaciona-se a valoresintrínsecos de cada pessoa, que paranós, sem o conhecimento de sua bi-ografia e de sua educação, torna-sedifícil avaliar.

O fato de que este local, com oauxílio do manuseio deste corpoinerte, proporciona a aquisição deum saber diferenciado (o domínioda estrutura corporal), mas tambéma construção de novas atitudes (res-peito ao cadáver), torna inquestio-nável o elemento simbólico pre-sente. É pois nessa atividade contí-nua e temporalmente bem marca-da que os estudantes vão discer-nindo, entre a sacralidade, o res-peito do valor humano contido nocadáver, a dignidade mesmo apósa morte, e o profano, pelo manu-seio, pela manipulação, pela disse-cação e pelo retalhamento destemesmo ser inerte. O que deve ficarclaro é que uma atitude não existedistinta da outra, ou seja, ambasmesclam-se direcionadas por umobjetivo comum: o aprendizado.No laboratório de anatomia, então,há necessidade de se tomar umarápida decisão quando colocadodiante da mesa de dissecação: areflexão sobre o significado da vidae a transitoriedade do corpo, a ne-cessidade de não pensar na mortepara poder pensar na vida, a curio-sidade com respeito ao corpo e adescoberta do conhecimento (Vil-las Boas, 1983).

O corpo sem vidae a identidade

Segundo Philippe Ariès (1977),o corpo morto, antes objeto familiare figura do sono, foi pelos séculosretirado dos olhares, escondidoonde não é mais visível. A ocultação

do morto, tão comum hoje, é di-cotomicamente oposta ao que se fazno laboratório de anatomia, onde seexpõe essa figura para seu estudo emanuseio. Ariès segue relatandoque a recusa de ver o corpo mortonão constitui recusa da individuali-dade física, mas recusa da morte car-nal do corpo. Talvez essa mortecarnal demonstre o fim de uma his-tória, de uma trajetória biográficaque é tomada como semelhante àsua pelo estudante, gerando o des-conforto no trato com o cadáver.

Para Edgar Morin (1970), aconsciência da morte não é algoinato, mas sim produto de umaconsciência que compreende oreal. E, portanto, porque o seu co-nhecimento da morte é externo,aprendido, não inato, o homem sesurpreende com a morte. A surpre-sa gera ansiedade e essa ansiedadese reflete muitas vezes no primeirocontato com o cadáver.

Sabendo desse sofrimento, enuma tentativa de minimizá-lo, osprofessores costumam iniciar os es-tudos anatômicos com o estudo dosossos, e progressivamente encami-nhar o aluno para o contato com ocadáver. Essa estratégia geralmen-te funciona como apaziguadora daansiedade do aluno ingressante.

É muito comum que os estu-dantes usem como subterfúgio pa-ra o estudo anatômico, desvincularo cadáver de sua identidade paraevitar o sofrimento. Os traços querelembram a identidade do cadá-ver e sua história de vida dificultama aproximação e o manuseio. Umdos exemplos mais comuns dessadificuldade é o reconhecimento da“face”. Muitos alunos cobrem orosto do cadáver com uma folhade papel durante o estudo, referin-do-se ao incômodo que o mesmocausa se mantido descoberto. Ou-tras estruturas que geram esse des-conforto são os cabelos, barba oubigode, unhas compridas e às vezesaté esmaltadas. Esses detalhes fa-

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zem insinuar a vida que já não estápresente, levando o aluno a fazerquestões tais como: quantos anosele teria? O que fazia para sobrevi-ver? Como morreu? E esses ques-tionamentos o dispersam do estu-do e trazem à tona sentimentos dehumanidade e sofrimento, dificul-tando essa relação.

Uma possível explicação paraesses questionamentos seria o fatode a morte ser justamente o reversoda vontade de vida, fundo comumde nosso ser, representada comoaniquilação, fenômeno que se opõeao amor à vida e ao esforço paraconservá-la e prolongá-la o maispossível, atitudes comuns ao ser hu-mano? (Schopenhauer, 2003). Poroutro lado, em sua grande maioriaesses corpos são indigentes, corposnão reclamados por familiares, quechegam à anatomia sem identifica-ção. Não são “pessoas”, uma vezque lhes falta identidade social. Essefato acaba descaracterizando essaidentificação e pejorativamente tor-nando o cadáver “coisa” (materialhumano) e não “pessoa”. Essa ati-tude não se reflete na totalidade dosestudantes, visto que uma boa parteconsegue demonstrar uma atitudefísica, mental e verbal de sobrieda-de, meditação e elevada compostu-ra, manuseando as peças anatômi-cas com o mais profundo sentimen-to de respeito e atenção.

O corpo sem vida e a ética

O respeito ao cadáver como se-melhante é uma das primeiras li-ções que os alunos recebem na au-la de anatomia. Esse sentimento écultuado em várias instituições pormeio da missa ao cadáver (cerimô-nia ecumênica ao longo dos tem-pos com uma aura de religiosida-de) ou a homenagem ao cadáverdesconhecido (evento sem fins re-ligiosos), e simbolizado no interiordo laboratório pelas palavras do ana-tomista Rokitanski (1876), emol-

duradas na parede e que transcre-vemos a seguir:

“Ao curvar-te com a lâmina rijade teu bisturi sobre o cadáver des-conhecido, lembra-te que este cor-po nasceu do amor de duas almas;cresceu embalado pela fé e espe-rança daquela que em seu seio oagasalhou; sorriu e sonhou osmesmos sonhos das crianças e dosjovens; por certo amou e foi amadoe sentiu saudades dos outros quepartiram.

Acalentou um amanhã feliz e ago-ra jaz na fria lousa, sem que porele se tivesse derramado uma lá-grima sequer, sem que tivesse umasó prece.

Seu nome, só Deus sabe; mas o des-tino inexorável deu-lhe o poder e a gran-deza de servir à humanidade que por elepassou indiferente.

Sabemos que o senso de éticadesenvolve-se e se torna aguçadocom as experiências de vida do in-divíduo durante seu desenvolvi-mento. Isto significa que quantomais experimentamos situações derespeito mútuo uns com os outrosna comunidade, família ou profis-são, mais subsídios teremos para a“consciência” ética almejada.

Não podemos dar o que não te-mos, portanto, se não houver res-peito de nossa parte para com osvivos, para os nossos próximos, du-rante nosso dia-a-dia, dificilmente,conseguiremos manter atitudes derespeito frente à morte.

Trata-se de uma questão de éti-ca, a partir da qual averiguamos co-mo os princípios éticos podem seraplicados a essa situação medianteo cabedal de conhecimentos e ex-periências adquiridas. É preciso le-var em conta que esta é uma situa-ção que possui valores específicos eindividuais, e que os conceitos ouposturas éticas a serem interioriza-dos têm que ser refletidos num con-texto novo, diferente do que se tra-balha no cotidiano (Cortina, 2005).

O fato de o cadáver não repre-sentar à primeira vista semelhançacom a energia da vida, mas sim coma ausência dela, dificulta a com-preensão do seu valor intrínseco, orespeito ao pós-vida, ao corpo queainda representa o humano, po-rém, numa dimensão simbólica te-mos a morte servindo ao aumentode conhecimento e, portanto decompetência na luta pela vida.

A premissa ética que buscamospara o estudo anatômico está pau-tada na dignidade e no respeito àvida mesmo após seu término.Historicamente, percebemos queos momentos em que a dignidadedo cadáver deixava de ser preser-vada, ou em que o respeito aomesmo desaparecia, faziam comque a sociedade questionasse a éti-ca dos anatomistas e dos estudio-sos. Verificou-se isso quando se re-gistravam estórias de roubo de ca-dáveres, tortura (vivissecções) eexposições de corpos.

O que fica claro é que não hánada de novo no assunto, mas simuma releitura do que já aconteceuno passado. Gunther Von Hagennão faz nada diferente do que já sefazia nos anfiteatros dos séculosXVII e XVIII, gerando os mesmo di-lemas éticos do passado. Sendo as-sim, a idéia de um processo educati-vo sobre as questões éticas do tratocom o cadáver sempre esbarrará emfatos como estes, que prejudicam oentendimento da disciplina comouma fonte de conhecimento queprevê atitudes dignas, respeitosas eprofundamente éticas por profissio-nais que sabem das implicações éti-cas, legais e sociais que pesam so-bre seus ombros no desempenho desuas atividades no laboratório e noconvívio com os estudantes.

Considerações finais

Após este relato histórico e re-flexivo sobre os diversos pensa-mentos que permeiam a relação do

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vivo com o corpo inerte retoma-mos Rokistanski (1876). “Ao cur-var-te com a lâmina rija de teu bistu-ri sobre o cadáver desconhecido, lem-bra-te que este corpo nasceu do amorde duas almas; cresceu embalado pelafé e esperança daquela que em seu seioo agasalhou; sorriu e sonhou os mes-mos sonhos das crianças e dos jovens;por certo amou e foi amado e sentiusaudades dos outros que partiram” pa-ra deixar claro que não podemospermanecer indiferentes. Esse cor-po carrega todo o simbolismo davida de alguém, suas vitórias ederrotas, sua caminhada e suapartida desta vida, marcas biográ-ficas de um sujeito de direito quedeve manter-se digno perante osoutros, mesmo que se destaquemagora somente sua vulnerabilida-de e sua fraqueza. Este corpo que

em vida não teve chances para de-senvolver todo seu potencial, derealizar muitas escolhas, hoje con-tribui para a sociedade na forma-ção de novos médicos, enfermei-ros, entre outros profissionais dasaúde, e por esse papel se tornamais digno do que talvez jamaisconseguiu ser, demonstrando en-tão seu valor e merecendo o maisalto grau de respeito.

Finalizando nossa reflexão re-tomamos Rubem Alves na sua pro-vocativa crônica “Os cadáveres”:

“Há tempos que o poder dos cadá-veres me fascina. E eu não sou o pri-meiro. César Valejo dizia do corpo deum morto que ele “estava cheio demundos”. Merleau-Ponty, pela mes-ma razão que Valejo, os considerava“entidades sagradas”. Eliot era ousa-do e perguntava:

E o cadáver que você plantou noseu jardim o ano passado. Ele já co-meçou a brotar? Será que ele dará flo-res este ano?

Que coisa mais louca, plantar ca-dáveres. Para fazer isso é preciso acre-ditar, como a Adélia, que

Nunca nada está morto.O que não parece vivo, aduba.O que parece estático, espera.

Parece que os homens sempre acre-ditaram assim — o que explicaria ocostume de enterrar os mortos com milcuidados a regar a semeadura com lá-grimas. Os animais não fazem isso.Cada sepultamento é um plantio. As-sim acreditava Jesus, que dizia da ne-cessidade de a semente morrer paraque ela pudesse dar frutos.

O que se diz ao lado de um morto é oinício da colheita...” (Alves, 1997)

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Recebido em 27 de abril de 2006Aprovado em 18 de maio de 2006

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