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Crônicas 15 de novembro Escrevo esta no dia seguinte ao do aniversário da proclamação da República. Não fui à cidade e deixei-me ficar pelos arredores da casa em que moro, num subúrbio distante. Não ouvi nem sequer as salvas da pragmática; e, hoje, nem sequer li a notícia das festas comemorativas que se realizaram. Entretanto, li com tristeza a notícia da morte da princesa Isabel. Embora eu não a julgue com o entusiasmo de panegírico dos jornais, não posso deixar de confessar que simpatizo com essa eminente senhora. Veio, entretanto, vontade de lembrar-me o estado atual do Brasil, depois de trinta e dois anos de República. Isso me acudiu porque topei com as palavras de compaixão do Senhor Ciro de Azevedo pelo estado de miséria em que se acha o grosso da população do antigo Império Austríaco. Eu me comovi com a exposição do doutor Ciro, mas me lembrei ao mesmo tempo do aspecto da Favela, do Salgueiro e outras passagens pitorescas desta cidade. Em seguida, lembrei-me de que o eminente senhor prefeito quer cinco mil contos para reconstrução da avenida Beira-Mar, recentemente esborrachada pelo mar. Vi em tudo isso a República; e não sei por quê, mas vi. Não será, pensei de mim para mim, que a República é o regime da fachada, da ostentação, do falso brilho e luxo de parvenu, tendo como repoussoir a miséria geral? Não posso provar e não seria capaz de fazê-lo. Saí pelas ruas do meu subúrbio longínquo a ler as folhas diárias. Lia-as, conforme o gosto antigo e roceiro, numa "venda" de que minha família é freguesa. Quase todas elas estavam cheias de artigos e tópicos, tratando das candidaturas presidenciais. Afora o capítulo descomposturas, o mais importante era 1

Lima Barreto - Crônicas

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Lima Barreto - Crônicas

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Crnicas

Crnicas15 de novembro

Escrevo esta no dia seguinte ao do aniversrio da proclamao da Repblica. No fui cidade e deixei-me ficar pelos arredores da casa em que moro, num subrbio distante. No ouvi nem sequer as salvas da pragmtica; e, hoje, nem sequer li a notcia das festas comemorativas que se realizaram. Entretanto, li com tristeza a notcia da morte da princesa Isabel. Embora eu no a julgue com o entusiasmo de panegrico dos jornais, no posso deixar de confessar que simpatizo com essa eminente senhora.

Veio, entretanto, vontade de lembrar-me o estado atual do Brasil, depois de trinta e dois anos de Repblica. Isso me acudiu porque topei com as palavras de compaixo do Senhor Ciro de Azevedo pelo estado de misria em que se acha o grosso da populao do antigo Imprio Austraco. Eu me comovi com a exposio do doutor Ciro, mas me lembrei ao mesmo tempo do aspecto da Favela, do Salgueiro e outras passagens pitorescas desta cidade.

Em seguida, lembrei-me de que o eminente senhor prefeito quer cinco mil contos para reconstruo da avenida Beira-Mar, recentemente esborrachada pelo mar.

Vi em tudo isso a Repblica; e no sei por qu, mas vi.

No ser, pensei de mim para mim, que a Repblica o regime da fachada, da ostentao, do falso brilho e luxo de parvenu, tendo como repoussoir a misria geral? No posso provar e no seria capaz de faz-lo.

Sa pelas ruas do meu subrbio longnquo a ler as folhas dirias. Lia-as, conforme o gosto antigo e roceiro, numa "venda" de que minha famlia freguesa.

Quase todas elas estavam cheias de artigos e tpicos, tratando das candidaturas presidenciais. Afora o captulo descomposturas, o mais importante era o de falsidade.

No se discutia uma questo econmica ou poltica; mas um ttulo do Cdigo Penal.

Pois possvel que, para a escolha do chefe de uma nao, o mais importante objeto de discusso seja esse?

Voltei melancolicamente para almoar, em casa, pensando, c com os meus botes, como devia qualificar perfeitamente a Repblica.

Entretanto - eu o sei bem - o 15 de Novembro uma data gloriosa, nos fastos da nossa histria, marcando um grande passo na evoluo poltica do pas.

Marginlia, 26-11-1921

A carroa dos cachorros

Quando de manh cedo, saio da minha casa, triste e saudoso da minha mocidade que se foi fecunda, na rua eu vejo o espetculo mais engraado desta vida.

Amo os animais e todos eles me enchem do prazer natureza.

Sozinho, mais ou menos esbodegado, eu, pela manh deso a rua e vejo.

O espetculo mais curioso o da carroa dos cachorros. Ela me lembra a antiga calea dos ministros de Estado, tempo do imprio, quando eram seguidas por duas praas de cavalaria de polcia.

Era no tempo da minha meninice e eu me lembro disso com as maiores saudades.

- L vem a carrocinha! - dizem.

E todos os homens, mulheres e crianas se agitam e tratam de avisar os outros.

Diz Dona Marocas a Dona Eugnia:

- Vizinha! L vem a carrocinha! Prenda o Jupi!

E toda a avenida" se agita e os cachorrinhos vo presos e escondidos.

Esse espetculo to curioso e especial mostra bem de que forma profunda ns homens nos ligamos aos animais.

Nada de til, na verdade, o co nos d; entretanto, ns o amamos e ns o queremos.

Quem os ama mais, no somos ns os homens; mas so as mulheres e as mulheres pobres, depositrias por excelncia daquilo que faz a felicidade e infelicidade da humanidade - o Amor.

So elas que defendem os cachorros dos praas de polcia e dos guardas municipais; so elas que amam os ces sem dono, os tristes e desgraados ces que andam por a toa.

Todas as manhs, quando vejo semelhante espetculo, eu bendigo a humanidade em nome daquelas pobres mulheres que se apiedam pelos ces.

A lei, com a sua cavalaria e guardas municipais, est no seu direito em persegui-los; elas, porm, esto no seu dever em acoit-los.

Marginlia, 20-9-1919

A gratido do Assrio

- Meu caro Senhor Assrio, eu lhe tinha a perguntar se de fato est satisfeito com a vida.

Ns nos havamos introduzido no elegante poro do Municipal e falvamos ao restaurante chic com gua na boca. Este no tardou em responder:

- Sei, doutor. Rui Barbosa no tem igual.

- Mas por que voc no vota nele?

- No voto porque no o conheo intimamente, de perto, como j disse ao senhor. Antigamente...

- Voc no pensava assim - no ?

- verdade; mas, de uns tempos a esta parte, dei em pensar.

- Faz mal. O partido...

- No falo mal do partido. Estou sempre com ele, mas no posso por meu prprio gosto dar sobre mim tanta fora a um homem, de que eu no conheo o gnio muito bem.

- Mas, se assim, voc ter pouco que escolher a no ser, ns colegas e ns amigos de voc.

- Entre esses eu no escolho, porque no vejo nenhum que tenha as luzes suficientes; mas tenho outros conhecidos, entre os quais posso procurar a pessoa para me governar, guiar e aconselhar.

- Quem ?

- o doutor.

- Eu?

- Sim, o senhor.

- Mas, eu mesmo? Ora...

- a nica pessoa de hoje que vejo nas condies e que conheo. O senhor do partido, e votando no senhor, no vou contra ele.

- De forma que voc...

- Voto no senhor, para presidente da repblica.

- voto perdido...

- No tem nada; mas voto de acordo com o que penso. Parece que sigo o que est no manifesto assinado pelo senhor e outros. "Guiados pela nossa conscincia e obedecendo o dever de todo republicano de consult-la"...

- Chega Felcio.

- No isso?

- mas voc deve concordar que um eleitor arregimentado tem de obedecer ao chefe.

- Sei, mas isto quando se trata de um deputado ou senador, mas para presidente, que tem todos os trunfos na mo, a coisa outra. o que penso. Demais...

- Voc est com teorias estranhas, subversivas...

- Estou, meu caro senhor; estou, imagine que no h dia em que no me veja abarbado com um banquete.

- assim?

- Pois no, meu digno senhor. Um poeta publica um livro e logo encomendam-me um banquete com todos os "ff" e "rr"; os jornais publicam a lista dos convidados, ao dia seguinte, e o meu nome se espalha por este pas todo. Se acontece algum escrever uma crnica feliz, zs, banquete, retrato e nome nos jornais. Se, por acaso...

- Notamos, - interrompi eu, que nas suas festanas no h mulheres.

- J observei isto aos dilettanti de banquetes e, at, lhes ofereci organizar um quadro de convidadas.

- Que eles disseram?

- Penso que eles no querem rivalidades femininas. J as tm em bom nmero masculinas.

- E as flores?

- Com isso no me preocupo, porque, s vezes, elas me servem para meia dzia de banquetes. Os rapazes no reparam nisso.

- E as iguarias?

- Oh! Isso? Tambm no vale nada. Basta uns nomes arrevesados, para que os nossos Lculos comam gato por lebre. Mas a minha maior gratido ...

- Por quem?

- Pela Secretaria do Exterior. Um cidado promovido de segundo secretrio a primeiro, banquete; um outro passa de amanuense a segundo secretrio, banquete... Herana do Rio Branco!... Outro dia, como o Serapio passasse de servente a contnuo, logo lhe ofereceram um banquete.

- Os serventes?

- No; todos os empregados. Que gente boa, meu caro senhor.

Deixamos o Senhor Assrio cheio de -uma terna beatitude agradecida por to bela gente que se banqueteia.

Careta, 11-9-1915

A lei

Este caso da parteira merece srias reflexes que tendem a interrogar sobre a serventia da lei.

Uma senhora, separada do marido, muito naturalmente quer conservar em sua companhia a filha; e muito naturalmente tambm no quer viver isolada e cede, por isto ou aquilo, a uma inclinao amorosa.

O caso se complica com uma gravidez e para que a lei, baseada em uma moral que j se findou, no lhe tire a filha, procura uma conhecida, sua amiga, a fim de provocar um aborto de forma a no se comprometer.

V-se bem que na intromisso da curiosa" no houve nenhuma espcie de interesse subalterno, no foi questo de dinheiro. O que houve foi simplesmente camaradagem, amizade, vontade de servir a uma amiga, de livr-la de uma terrvel situao.

Aos olhos de todos, um ato digno, porque, mais do que o amor, a amizade se impe.

Acontece que a sua interveno foi desastrosa e l vem a lei, os regulamentos, a polcia, os inquritos, os peritos, a faculdade e berram: voc uma criminosa! voc quis impedir que nascesse mais um homem para aborrecer-se com a vida!

Berram e levam a pobre mulher para os autos, para a justia, para a chicana, para os depoimentos, para essa via-sacra da justia, que talvez o prprio Cristo no percorresse com resignao.

A parteira, mulher humilde, temerosa das leis, que no conhecia, amedrontada com a priso, onde nunca esperava parar, mata-se.

Reflitamos, agora; no estpida a lei que, para proteger uma vida provvel, sacrifica duas? Sim, duas porque a outra procurou a morte para que a lei no lhe tirasse a filha. De que vale a lei?

Vida urbana, 7-1-1915

A mulher brasileira

de uso que, nas sobremesas, se faam brindes em honra ao aniversariante, ao par que se casa, ao infante que recebeu as guas lustrais do batismo, conforme se tratar de um natalcio, de um casamento ou batizado. Mas, como a sobremesa a parte do jantar que predispe os comensais a discusses filosficas e morais, quase sempre, nos festins familiares, em vez de se trocarem idias sobre a imortalidade da alma ou o adultrio, como observam os Goncourts, ao primeiro brinde se segue outro em honra mulher, mulher brasileira.

Todos esto vendo um homenzinho de pince-nez, testa sungada, metido numas roupas de circunstncias; levantar-se l do fim da mesa; e, com uma mo ao clice, meio suspenso, e a outra na borda do mvel, pesado de pratos sujos, compoteiras de doce, guardanapos, talheres e o resto - dizer: Peo a palavra"; e comear logo: Minhas senhoras, meus senhores". As conversas cessam; Dona Lili deixa de contar a Dona Vivi a histria do seu ltimo namoro; todos se aprumam nas cadeiras; o homem tosse e entra em matria: A mulher, esse ente sublime..." E vai por a, escachoando imagens do Orador familiar, e fazendo citaes de outros que nunca leu, exaltando as qualidades da mulher brasileira, quer como me, quer como esposa, quer como filha, quer como irm.

A enumerao no foi completa; que o meio no lhe permitia complet-la.

uma cena que se repete em todos os festivos gapes familiares, s vezes mesmo nos de alto bordo.

Haver mesmo razo para tantos gabos? Os oradores tero razo? Vale a pena examinar.

No direi. que, como mes, as nossas mulheres no meream esses gabos; mas isso no propriedade exclusiva delas e todas as mulheres, desde as esquims at s australianas, so merecedoras dele. Fora da, o orador estar com a verdade?

Lendo h dias as Memrias, de Mine. d'pinay, tive ocasio de mais de uma vez constatar a florao de mulheres superiores naquele extraordinrio sculo XVIII francs.

No preciso ir alm dele para verificar a grande influncia que a mulher francesa tem tido na marcha das idias de sua ptria.

Basta-nos, para isso, aquele maravilhoso sculo, onde no s h aquelas que se citam a cada passo, como essa Mine. d'pinay, amiga de Grimm, de Diderot, protetora de Rousseau, a quem alojou na famosa Ermitage", para sempre clebre na histria das letras; e Mine. du Deffant, que, se no me falha a memria, custeou a impresso do Esprito das leis. No so unicamente essas. H mesmo um pululamento de mulheres superiores que influem, animam, encaminham homens superiores do seu tempo. A todo o momento, nas memrias, correspondncias e confisses, so apontadas; elas se misturam nas intrigas literrias, seguem os debates filosficos.

uma Mine. de Houdetot; uma Marechala de Luxemburgo; e at, no fundo da Sabia, na doce casa de campo de Charmettes, h uma Mine. de Warens que recebe, educa e ama um pobre rapaz maltrapilho, de quem ela faz mais tarde Jean-Jacques Rousseau.

E foi por ler Mine. d'pinay e recordar outras leituras, que me veio pensar nos calorosos elogios dos oradores de sobremesas mulher brasileira. Onde que se viram no Brasil, essa influncia, esse apoio, essa animao das mulheres aos seus homens superiores?

raro; e todos que o foram, no tiveram com suas esposas, com suas irms, com suas mes, essa comunho nas idias e nos anseios, que tanto animam, que tantas vantagens trazem ao trabalho intelectual.

Por uma questo qualquer, Diderot escreve uma carta a Rousseau que o faz sofrer; e logo este se dirige a Mme. d'pinay, dizendo: Se eu vos pudesse ver um momento e chorar, como seria aliviado!" Onde que se viu aqui esse amparo, esse domnio, esse ascendente de uma mulher; e, entretanto, ela no era nem sua esposa, nem sua me, nem sua irm, nem mesmo sua amante!

Como que adoa, como que tira as asperezas e as brutalidades, prprias ao nosso sexo, essa influncia feminina nas letras e nas artes.

Entre ns, ela no se verifica e parece que aquilo que os nossos trabalhos intelectuais tm de descompassado, de falta de progresso e harmonia, de pobreza de uma alta compreenso da vida, de revolta clara e latente, de falta de serenidade vem da.

No h num Raul Pompia influncia da mulher; e cito s esse exemplo que vale por legio. Se houvesse, quem sabe se as suas qualidades intrnsecas de pensador e de artista no nos poderia ter dado uma obra mais humana, mais ampla, menos atormentada, fluindo mais suavemente por entre as belezas da vida?

Como se sente bem a intimidade espiritual, perfeitamente espiritual, que h entre Balzac e a sua terna irm, Laura Sanille, quando aquele lhe escreve, numa hora de dvida angustiosa dos seus tenebrosos anos de aprendizagem: "Laura, Laura, meus dois nicos desejos, 'ser clebre e ser amado', sero algum dia satisfeitos?" H disso aqui?

Se nas obras dos nossos poetas e pensadores, passa uma aluso dessa ordem, sentimos que a coisa no perfeitamente exata, e antes o poeta quer criar uma iluso necessria do que exprimir uma convico bem estabelecida. Seria melhor talvez dizer que a comunho espiritual, que a penetrao de idias no se d; o poeta fora as entradas que resistem tenazmente.

com desespero que verifico isso, mas que se h de fazer? preciso ser honesto, pelo menos de pensamento...

verdade que os homens de inteligncia vivem separados do pas; mas se h uma pequena minoria que os segue e acompanha, devia haver uma de mulheres que fizesse o mesmo.

At como mes, a nossa no assim to digna dos elogios dos oradores inflamados. A sagacidade e agilidade de esprito fazem-lhes falta completamente para penetrar na alma dos filhos; as ternuras e os beijos so estranhos s almas de cada um. Sonho do filho no percebido pela me; e ambos, separados, marcham no mundo ideal. Todas elas so como aquela de que fala Michelet: "No se sabe o que tem esse menino. Minha Senhora, eu sei: ele nunca foi beijado".

Basta observar a maneira de se tratarem. Em geral, h jeitos cerimoniosos, escolhas de frases, ocultaes de pensamentos; o filho no se anima nunca a dizer francamente o que sofre ou o que deseja e a me no o provoca a dizer.

Sem sair daqui, na rua, no bonde, na barca, poderemos ver a maneira verdadeiramente familiar, ntima, sem morgue nem medo, com que as mes inglesas, francesas e portuguesas tratam os filhos e estes a elas. No h sombra de timidez e de terror; no h o "senhora" respeitvel; "tu", voc.

As vantagens disso so evidentes. A criana habitua-se quela confidente; faz-se homem e, nas crises morais e de conscincia, tem onde vazar com confiana as suas dores, diminu-las, portanto, afast-las muito, porque dor confessada j meia dor e tortura menos. A alegria de viver vem e o sorumbatismo, o mazombo, a melancolia, o pessimismo e a fuga do real vo-se.

Repito: no h teno de fazer uma mercurial desta crnica; estou a exprimir observaes que julgo exatas e constato com raro desgosto. Antes, o meu maior desejo seria dizer das minhas patrcias, aquilo que Bourget disse da misso de Mme. Taine, junto a seu grande marido, isto , que elas tm cercado e cercam o trabalho intelectual de seus maridos, filhos ou irmos de uma atmosfera na qual eles se movem to livremente como se estivessem ss, e onde no esto de fato ss.

Foi, portanto combinado a leitura de uma mulher ilustre com a recordao de um caso corriqueiro da nossa vida familiar que consegui escrever estas linhas. A associao inesperada; mas no h do que nos surpreender com as associaes de idias.

Vida urbana, 27-4-1911

A polcia suburbana

Noticiam os jornais que um delegado inspecionando, durante uma noite destas, algumas delegacias suburbanas, encontrou-as s moscas, comissrios a dormir e soldados a sonhar.

Dizem mesmo que o delegado-inspetor surripiou objetos para pr mais mostra o descaso dos seus subordinados.

Os jornais, com aquele seu louvvel bom senso de sempre, aproveitaram a oportunidade para reforar as suas reclamaes contra a falta de policiamento nos subrbios.

Leio sempre essas reclamaes e pasmo. Moro nos subrbios h muitos anos e tenho o hbito de ir para a casa alta noite.

Uma vez ou outra encontro um vigilante noturno, um policial e muito poucas vezes -me dado ler notcias de crimes nas ruas que atravesso.

A impresso que tenho de que a vida e a propriedade daquelas paragens esto entregues aos bons sentimentos dos outros e que os pequenos furtos de galinhas e coradouros no exigem um aparelho custoso de patrulhas e apitos.

Aquilo l vai muito bem, todos se entendem livremente e o Estado no precisa intervir corretivamente para fazer respeitar a propriedade alheia.

Penso mesmo que, se as coisas no se passassem assim, os vigilantes, obrigados a mostrar servio, procurariam meios e modos de efetuar detenes e os notvagos, como eu, ou os pobres-diabos que l procuram dormida, seriam incomodados, com pouco proveito para a lei e para o Estado.

Os policiais suburbanos tm toda a razo. Devem continuar a dormir. Eles, aos poucos, graas ao calejamento do ofcio, se convenceram de que a polcia intil.

Ainda bem.

Vida urbana, 28-12-1914

A universidade

Voltam os jornais a falar que teno do atual governo criar nesta cidade uma universidade. No se sabe bem por qu e a que ordem de necessidades vem atender semelhante criao. No novo o propsito e de quando em quando, ele surge nas folhas, sem que nada o justifique. e sem que venha remediar o mal profundo do nosso chamado ensino superior.

Recordao da Idade Mdia, a universidade s pode ser compreendida naquele tempo de reduzida atividade tcnica e cientfica, a ponto de, nos cursos de suas vetustas instituies de ensino, entrar no estudo de msica e creio mesmo a simples aritmtica.

No possvel, hoje, aqui no Brasil, que essa tradio universitria chegou to diluda, criar semelhante coisa que no obedece ao esprito do nosso tempo, que quer nas profisses tcnicas cada vez mais especializao.

O intuito dos propugnadores dessa criao dotar-nos com um aparelho decorativo, suntuoso, naturalmente destinado a fornecer ao grande mundo festividades brilhantes de colao de grau e sesses solenes.

Nada mais parece que seja o intuito da ereo da nossa universidade.

De todos os graus de nosso ensino, o pior o superior; e toda a reforma radical que se quisesse fazer nele, devia comear por suprimi-lo completamente.

O ensino primrio tem inmeros defeitos, o secundrio maiores, mas o superior, sendo o menos til e o mais aparatoso, tem o defeito essencial de criar ignorantes com privilgios marcados em lei, o que no acontece com os dois outros.

Esses privilgios e a diminuio da livre concorrncia que eles originam, fazem que as escolas superiores fiquem cheias de uma poro de rapazes, alguns s vezes mesmo inteligentes, que, no tendo nenhuma vocao para as profisses em que simulam estar, s tm em vista fazer exame, passar nos anos, obter diplomas, seja como for, a fim de conseguirem boas colocaes no mandarinato nacional e ficarem cercados do ingnuo respeito com que o povo tolo cerca o doutor.

Outros que s se destinam a ter titulo de engenheiro que efetivamente quer ser engenheiro e assim por diante, de forma que o sujeito se dedicasse de fato aos estudos respectivos, no se consegue com um simples rtulo de universidade ou outro qualquer.

Os estudos propriamente de medicina, de engenharia, de advocacia, etc., deviam ficar separados completamente das doutrinas gerais, cincias constitudas ou no, indispensveis para a educao espiritual de quem quer ter uma opinio e exprimi-la sobre o mundo e sobre o homem.

A esse ensino, o Estado devia subvencionar direta ou indiretamente; mas o outro, o tcnico, o de profisso especial, cada um fizesse por si, exigindo o Estado para os seus funcionrios tcnicos que eles tivessem um estgio de aprendizagem nas suas oficinas, estradas, hospitais, etc...

Sem privilgio de espcie alguma, tendo cada um de mostrar as suas aptides e preparo na livre concorrncia com os rivais, o nvel do saber e da eficincia dos nossos tcnicos (palavra da moda) havia de subir muito.

A nossa superstio doutoral admite abuses que, bem examinadas, so de fazer rir.

Por exemplo, temos todos ns como coisa muito lgica que o diretor do Lloyd deve ser engenheiro civil. Por qu? Dos Telgrafos, dos Correios - por qu tambm?

Aos poucos, na Central do Brasil, os engenheiros foram avassalando os grandes empregos da "gema".

Por qu?

Um estudo nesse sentido exigiria um trabalho minucioso de exame de textos de leis e regulamentos que est acima da minha pacincia; mas era bom que algum tentasse faz-lo, para mostrar que a doutomania no foi criada pelo povo, nem pela avalanche de estudantes que enche as nossas escolas superiores; mas pelos dirigentes, s vezes secundrios, que a fim de satisfazer preconceitos e imposies de amizade, foram pouco a pouco ampliando os direitos exclusivos do doutor.

Ainda mais. Um dos males, decorrentes dessa superstio doutoral, est na ruindade e na estagnao mental do nosso professorado superior e secundrio.

J no bastava a indstria do ensino para faz-lo mandrio e rotineiro, veio ainda por cima a poca dos negcios e das concesses.

Explico-me:

Um moo que, aos trinta anos, se faz substituto de uma nossa faculdade ou escola superior, no quer ficar adstrito s funes de seu ensino. Pra no que aprendeu, no segue o desenvolvimento da matria que professa. Trata de arranjar outros empregos, quando fica nisso, ou, se no - o que pior - mete-se no mundo estridente das especulaes monetrias e industriais da finana internacional.

Ningum quer ser professor como so os da Europa, de vida modesta, escarafunchando os seus estudos, seguindo o dos outros e com eles se comunicando ou discutindo. No; o professor brasileiro quer ser um homem de luxo e representao, para isso, isto , para ter os meios de custear isso, deixa s urtigas os seus estudos especiais e empresta o seu prestgio aos brasseur d'affaires bem ou mal-intencionados.

Para que exemplificar? Tudo isto muito sabido e basta que se fale em geral, para que a indicao de um mal geral no venha a aparecer como despeito e ataque pessoal.

A universidade, coisa sobremodo obsoleta, no vem curar o mal do nosso ensino que viu passar todo um sculo de grandes descobertas e especulaes mentais de toda a sorte, sem trazer, por qualquer dos que o versavam, um quinho por mnimo que fosse.

O caminho outro; a emulao.

Feiras e mafus, 13-3-1920

A volta

O governo resolveu fornecer passagens, terras, instrumentos aratrios, auxlio por alguns meses s pessoas e famlias que se quiserem instalar em ncleos coloniais nos Estados de Minas e Rio de Janeiro.

Os jornais j publicaram fotografias edificantes dos primeiros que foram procurar passagens na chefatura de polcia.

duro entrar naquele lugar. H um tal aspecto de sujidade moral, de indiferena pela sorte do prximo, de opresso, de desprezo por todas as leis, de ligeirezas em deter, em prender, em humilhar, que eu, que l entrei como louco, devido inpcia de um delegado idiota, como louco, isto , sagrado, diante da fotografia que estampam os jornais, enchi-me de uma imensa piedade por aqueles que l foram como pobres, como miserveis, pedir, humilhar-se diante desse Estado que os embrulhou.

Porque o Senhor Rio Branco, o primeiro brasileiro, como a dizem, cismou que havia de fazer do Brasil grande potncia, que devia torn-lo conhecido na Europa, que lhe devia dar um grande exrcito, uma grande esquadra, de elefantes paralticos, de dotar a sua capital de avenidas, de boulevards, elegncias bem idiotamente binoculares e toca a gastar dinheiro, toca a fazer emprstimos; e a pobre gente que mourejava l fora, entre a febre palustre e a seca implacvel, pensou que aqui fosse o Eldorado e l deixou as suas choupanas, o seu sap, o seu aipim, o seu porco, correndo ao Rio de Janeiro a apanhar algumas moedas da cornucpia inesgotvel.

Ningum os viu l, ningum quis melhorar a sua sorte no lugar que o sangue dos seus avs regou o eito. Fascinaram-nos para a cidade e eles agora voltam, voltam pela mo da polcia como reles vagabundos.

assim o governo: seduz, corrompe e depois... uma semicadeia.

A obsesso de Buenos Aires sempre nos perturbou o julgamento das coisas.

A grande cidade do Prata tem um milho de habitantes; a capital argentina tem longas ruas retas; a capital argentina no tem pretos; portanto, meus senhores, o Rio de Janeiro, cortado de montanhas, deve ter largas ruas retas; o Rio de Janeiro, num pas de trs ou quatro grandes cidades, precisa ter um milho; o Rio de Janeiro, capital de um pas que recebeu durante quase trs sculos milhes de pretos, no deve ter pretos.

E com semelhantes raciocnios foram perturbar a vida da pobre gente que vivia a sua medocre vida a por fora, para satisfazer obsoletas concepes sociais, tolas competies patriticas, transformando-lhes os horizontes e dando-lhes inexeqveis esperanas.

Voltam agora; voltam, um a um, aos casais, s famlias para a terra, para a roa, donde nunca deviam ter ido para atender tolas vaidades de taumaturgos polticos e encher de misrias uma cidade cercada de terras abandonadas que nenhum dos nossos consumados estadistas soube ainda torn-las produtivas e teis.

O Rio civiliza-se!

Vida urbana, 26-1-1915

Anncios... anncios...

Quando bati porta do gabinete de trabalho do meu amigo, ele estava estirado num div improvisado com tbuas, caixes e um delgado colcho, lendo um jornal. No levantou os olhos do quotidiano, e disse-me, naturalmente:

- Entra.

Entrei e sentei-me a uma cadeira de balano, espera de que ele acabasse a leitura, para darmos comeo a um dedo de palestra. Ele, porm, no tirava os olhos do jornal que lia, com a ateno de quem est estudando coisas transcendentes. Impaciente, tirei um cigarro da algibeira, acendi-o e pus-me a fum-lo sofregamente. Afinal, perdendo a pacincia, fiz abruptamente:

- Que diabo tu ls a, que no me ds nenhuma ateno?

- Anncios, meu caro; anncios...

- o recurso dos humoristas cata de assuntos, ler anncios.

- No sou humorista e, se leio os anncios, para estudar a vida e a sociedade. Os anncios so uma manifestao delas: e s vezes, to brutalmente as manifestam que a gente fica pasmo com a brutalidade deles. V tu os termos deste: "Aluga-se a gente branca, casal sem filhos, ou moo do comrcio, um bom quarto de frente por 60$ mensais, adiantados, na Rua D., etc., etc." Penso que nenhum miliardrio falaria to rudemente aos pretendentes a uma qualquer de suas inmeras casas; entretanto, o modesto proprietrio de um cmodo de sessenta mil-ris no tem circunlquios.

- Que concluis da?

- O que todos concluem. Mais vale depender dos grandes e dos poderosos do que dos pequenos que tenham, porventura, uma acidental distino pessoal. O doutor burro mais pedante que o doutor inteligente e ilustrado.

- Ests a fazer uma filosofia de anncios?

- No. Verifico nos anncios velhos conceitos e preconceitos. Queres um outro? Ouve: "Senhora distinta, residindo em casa confortvel, aceita uma menina para criar e educar com carinhos de me. Preo razovel.Cartas para este escritrio, a Mme., etc., etc."

Que te parece este anncio, meu caro Jarbas?

- No lhe enxergo nada de notvel.

- Pois possui.

- No vejo em qu.

- Nisto: essa senhora distinta quer criar e educar com carinhos de me, uma menina; mas pede paga, preo razovel - l est. como se ela cobrasse os carinhos que distribusse aos filhos e filhas. Percebeste?

- Percebo.

- Outra coisa que me surpreende, na leitura da seo de anncios dos jornais, a quantidade de cartomantes, feiticeiros, adivinhos, charlates de toda a sorte que proclamam, sem nenhuma cerimnia, sem incmodos com a polcia, as suas virtudes sobre-humanas, os seus poderes ocultos, a sua capacidade milagrosa. Neste jornal, hoje, h mais de dez neste sentido. Vou ler este, que o maior e o mais pitoresco. Escuta: "Cartomante - Dona Maria Sabida, consagrada pelo povo como a mais perita e a ltima palavra da cartomancia, e a ltima palavra em cincias ocultas; s excelentssimas famlias do interior e fora da cidade, consultas por carta, sem a presena das pessoas, nica neste gnero - mxima seriedade e rigoroso sigilo: residncia rua Visconde de xxx, perto das barcas, em Niteri, e caixa postal nmero x, Rio de Janeiro. Nota: - Maria Sabida a cartomante mais popular em todo o Brasil". No h dvida alguma que essa gente tem clientela; mas o que julgo inadmissvel que se permita que "cavadoras" e "cavadores" venham a pblico, pela imprensa, aumentar o nmero de papalvos que acreditam neles. tolerncia demais.

- Mas, Raimundo, donde te veio essa mania de ler anncios e fazer consideraes sobre eles?

- Eu te conto, com algum vagar.

- Pois conta l!

Eu me dava, h mais de um decnio, com um rapaz, cuja famlia paterna conheci. - Um belo dia, ele me apareceu casado. No julguei a coisa acertada, porque, ainda muito moo, estouvado de natureza e desregrado de temperamento, um casamento prematuro desses seria fatalmente um desastre. No me enganei. Ele era gastador e ela no lhe ficava atrs. Os vencimentos do seu pequeno emprego no davam para os caprichos de ambos, de forma que a desarmonia surgiu logo entre eles. Vieram filhos, molstias, e as condies pecunirias do mnage foram ficando atrozes e mais atrozes as relaes entre os cnjuges. O marido, muito orgulhoso, no queria aceitar os socorros dos sogros. No por estes, que eram bons e suasrios; mas pela fatuidade dos outros parentes da mulher, que no cessavam de lanar na cara desta os favores que recebia dos pais e decuplicar os defeitos do seu marido. Freqentemente brigavam, e todos ns, amigos do marido, que ramos tambm envolvidos no desprezo liliputiano dos parentes da mulher, intervnhamos e conseguamos apaziguar as coisas por algum tempo. Mas a tempestade voltava, e era um eterno recomear. Por vezes, desanimvamos; mas no nos era possvel deix-los entregues a eles mesmos, pois ambos pareciam ter pouco juzo e no saber afrontar dificuldades materiais com resignao.

Um belo dia, isto foi h bem quatro anos, depois de uma disputa infernal, a mulher deixa o lar conjugal e procura hospedagem na casa de uma pessoa amiga, nos subrbios. Todos ns, os amigos do marido, sabamos disso; mas fazamos constar que ela estava fora com os filhos. Em determinada manh, aqui mesmo, recebo uma carta com letra de mulher. No estava habituado a semelhantes visitas e abri a carta com medo. Que seria? Fiz uma poro de conjecturas; e, embora com os olhos turvos, consegui ler o bilhete. Nele, a mulher do meu amigo pedia-me que a fosse ver, rua tal, nmero tanto, estao xxx, para se aconselhar comigo. Fui de corao leve, porque a minha inteno era perfeitamente honesta. Em l chegando, ela me contou toda a sua desdita, passou dez descomposturas no marido e disse-me que no queria saber mais dele, sendo a sua teno ir para o interior trabalhar. Perguntei-lhe com o que contava. Na sua ingenuidade de menina pobre, criada com fumaas de riqueza, ela me mostrou um anncio.

- Ento, da?

- da, sim.

- Que dizia o anncio?

- Que, em Rio Claro ou So Carlos, no sei, numa localidade do interior de So Paulo, precisavam-se moas para trabalhar em costuras, pagando-se bem. Ela me perguntou se devia responder, oferecendo-se. Disse-lhe que no e expliquei-lhe a razo. To ingnua era ela, que ainda no tinha atinado com a malandragem do anunciante... Despedi-me convencido de que seguiria o meu conselho leal; mas, estava to fascinada e amargurada, que no me atendeu. Respondeu.

- Como soubeste?

- Por ela mesma. Ela me mandou chamar novamente e mostrou-me a resposta do meliante. Era uma cartinha melosa, com pretenses de amorosa, em que ele, o desconhecido correspondente, insinuava que coisa melhor do que costuras ela iria encontrar em Rio Claro ou So Carlos, junto dele. Pedia-lhe o retrato e, logo que fosse recebido, se agradasse, viria busc-la. Era rico, podia fazer.

- Que disseste?

- O que devia dizer e j tinha dito, pois j previa que o tal anncio fosse uma cilada, e cilada das mais completas. Que dizes agora do meu pendor pelas leituras de anncios?

- Tem o que se aprender.

- isto, meu caro: h anncios e... anncios...

Feiras e mafus, s.d.

As enchentes

A5 chuvaradas de vero, quase todos os anos, causam no nosso Rio de Janeiro, inundaes desastrosas.

Alm da suspenso total do trfego, com uma prejudicial interrupo das comunicaes entre os vrios pontos da cidade, essas inundaes causam desastres pessoais lamentveis, muitas perdas de haveres e destruio de imveis.

De h muito que a nossa engenharia municipal se devia ter compenetrado do dever de evitar tais acidentes urbanos.

Uma arte to ousada e quase to perfeita, como a engenharia, no deve julgar irresolvvel to simples problema.

O Rio de Janeiro, da avenida, dos squares, dos freios eltricos, no pode estar merc de chuvaradas, mais ou menos violentas, para viver a sua vida intagral.

Como est acontecendo atualmente, ele funo da chuva. Uma vergonha!

No sei nada de engenharia, mas, pelo que me dizem os entendidos, o problema no to difcil de resolver como parece fazerem constar os engenheiros municipais, procrastinando a soluo da questo.

O Prefeito Passos, que tanto se interessou pelo embelezamento da cidade, descurou completamente de solucionar esse defeito do nosso Rio.

Cidade cercada de montanhas e entre montanhas, que recebe violentamente grandes precipitaes atmosfricas, o seu principal defeito a vencer era esse acidente das inundaes.

Infelizmente, porm, nos preocupamos muito com os aspectos externos, com as fachadas, e no com o que h de essencial nos problemas da nossa vida urbana, econmica, financeira e social.

Vida urbana, 19-1-1915

Coisas de "mafu"

- Mas, onde esteve voc, Jaime?

- Onde estive?

- Sim; onde voc esteve?

- Estive no xadrez.

- Como?

- Por causa de voc.

- Por minha causa? Explique-se, v!

- Desde que voc se meteu como barraqueiro do imponente Bento, consultor tcnico do mafu" do padre A, que o azar me persegue.

- Ento eu havia de deixar de ganhar uns "cobres"?

- No sei; a verdade, porm, que essas relaes entre voc, Bento e "mafu" trouxeram-me urucubaca. No se lembra voc da questo do pau?

- Isto foi h tanto tempo!... Demais o Capito Bento nada tinha a ver com o caso. Ele s pagou para derrubar a arvore; mas voc...

- Vendi o pau, para lenha, verdade. Uma coisa toa de que voc fez um lel medonho e, por causa, quase ns brigamos.

- Mas o capito no tinha nada com o caso.

- vista de todos, no; mas foi o azar dele que envenenou a questo.

- Qual, azar! qual nada! O capito tem os seus "quandos" e no h negcios que se meta, que no lhe renda bastante.

- Isto para ele; mas, para os outros que se metem com ele, sempre a roda desanda.

- Comigo no se tem dado isso.

- Como, no?

- Sim. Tenho ganho "algum" - como posso me queixar?

- Grande coisa! O dinheiro que ele te d, no serve pra nada. Mal vem, logo vai.

- A culpa minha que o gasto; mas do que no minha culpa - fique voc sabendo - que voc tenha sido metido no xadrez.

- Pois foi. Domingo, anteontem, no fui ao "mafu" de voc?

- Meu, no! do padre ou da irmandade.

- De voc, do padre, da irmandade, do Bento ou de quem quer que seja, o certo que l fui e ca na asneira de jogar na tua barraca.

- Homessa! Voc foi at feliz!... Tirou uma galinha! No foi?

- Tirei - verdade; mas a galinha do "mafu" foi que me levou a visitar o xadrez.

- Qual o qu!

- Foi, Pena! Eu no tirei a "indrmita" ltima hora?

- Tirou; e no vi voc mais.

- Tentei pass-la ao Bento, por trs mil-ris, como era costume; mas ele no quis aceitar.

- Por fora! A galinha j tinha sido resgatada trs ou quatro vezes, no ficava bem...

- A questo, porm, no essa. Comprei A Noite, embrulhei nela a galinha e tomei o bonde para Madureira. No meio da viagem, o bicho comeou a cacarejar. Tentei acalmar o animal; ele, porm, no estava pelos autos e continuou: "cr-cr-c, cr-cr-c". Os passageiros caem na gargalhada; e o condutor me pe fora do bonde e, tenho eu que acabar a viagem a p.

- At a...

- Espere. O papel estava despedaado e, tambm, para maior comodidade, resolvi carregar a galinha pelos ps. Ia assim, quando me surge pela frente a "canoa" dos agentes. Suspeitaram da provenincia da galinha; no quiseram acreditar que eu a tivesse tirado do "mafu". E, sem mais aquela, fui levado para o distrito e metido no xadrez, como ladro de galinheiros. Iria para a "central", para a colnia, se no fosse ter aparecido o caro Bernadino que me conhecia, e afianou que eu no era vasculhador de quintais, alta hora da noite.

- Mas que tem isso com o mafu"?

- Muita coisa: vocs deviam fazer a coisa clara; dar logo o dinheiro de prmio e no galinhas, bodes, carneiros, patos e outros bicharocos que, carregados alta noite, fazem a polcia tome um qualquer por ladro... Eis a.

Marginlia, 22-1-1921

Como ?

Noticiam os jornais que a polcia prendeu dois vadios e, de acordo com as leis e o cdigo; processou-os por vadiagem

At ai a coisa no tem grande importncia. Em toda a sociedade, h de haver por fora vadios.

Uns, por doena nativa; outros, por vcio.

Tem havido at vadios bem notveis.

Dante foi um pouco vagabundo; Cames, idem; Bocage tambm; e muitos outros que figuram nos dicionrios biogrficos e tm esttua na praa pblica.

No vem, tudo isto ao caso; mas uma idia puxa outra...

O que h de curioso no caso de polcia de que vos falei, que os tais vadios logo se prontificaram a prestar fiana de quinhentos-ris, cada um, para se defenderem soltos. Como isto? Vagabundos possuidores de to importante quantia? H muito homem morigerado e trabalhador, por a, que nunca viu tal dinheiro.

Deve haver engano, por fora.

De resto, se no o h, sou de parecer que a tal lei est mal feita.

O legislador nunca devia admiti que vadios, homens que nada fazem, portanto, no ganham, pudessem dispor de dinheiro, e dinheiro grosso, para se afianarem.

Ou eles o tm e obtiveram-no por meios e, portanto, no so vadios; ou, tendo-o e no trabalhando, so coisas muito diferentes de simples vadios.

Quem cabras no tem e cabritos vende...

No sou, pois, bacharel, jurista, nem rbula e fico aqui.

Marginlia, s.d.

Conhecem?

Eu no sei que mania se meteu na nossa cabea moderna de que. todas as dificuldades da sociedade se podem obviar mediante a promulgao de um regulamento executado mais ou menos pela coao autoritria de representantes do governo.

Nesse caso de criados, o fato por demais eloqente e pernicioso.

Por que regulamentar-se o exerccio da profisso de criado? Por que obrig-los a uma inscrio dolorosa nos registros oficiais, para tornar ainda mais dolorosa a sua situao dolorosa?

Por qu?

Porque pode acontecer que sejam metidos nas casas dos ricos ladres ou ladras; porque pode acontecer que o criado, um dado dia, no queira mais fazer o servio e se v embora.

No h outras justificativas seno estas, e so bem tolas.

Os criados sempre fizeram parte da famlia: concepo e sentimento que passaram de Roma para a nobreza feudal e as suas relaes com os patres s podem ser reguladas entre eles.

A Revoluo, aniquilando a organizao da famlia feudal, trouxe tona essa questo da famulagem; mas, mesmo assim, ela no rompeu o quadro familiar de modo a impedir que os seus chefes regulem a admisso de estranhos no lar.

A obrigao do dono ou dona de casa que procura um criado, que o pe debaixo do seu teto, saber quem ele ; o resto no passa de opresso do governo sobre os humildes, para servir comodidade burguesa.

Querem fazer das nossas vidas, dos indivduos, das almas, uma gaveta de fichas. Cada um tem que ter a sua e, para obt-la, pagar emolumentos, vencer a ronha burocrtica, lidar com funcionrios arrogantes e invisveis, como em geral, so os da polcia.

Imagino-me amanh na mais dura misria, sem parentes, sem amigos. Sonho fazer-me esquivo e bato primeira porta. Seria aceito, mas preciso a ficha.

Vou buscar a ficha e a ficha custa vinte ou trinta mil-ris. Como arranj-los?

Eis a as belezas da regulamentao, desse exagero de legislar, que o caracterstico da nossa poca.

Toda a gente sabe a que doloroso resultado tem chegado semelhante mania.

Inscrito um tipo nisto ou naquilo, ele est condenado a no sair dali, a ficar na casta ou na classe, sem remisso nem agravo.

Deixemos esse negcio entre patres e criados, e no estejamos aqui a sobrecarregar a vida dos desgraados com exigncias e regulamentos que os condenaro toda a sua vida sua lamentvel desgraa.

Os senhores conhecem a regulamentao da prostituio em Paris? Os senhores conhecem o caso de Mme. Comte? Oh! meu Deus!

Vida urbana, 15-1-1915

Elogio da morte

No sei quem foi que disse que a Vida feita pela Morte. a destruio contnua e perene que faz a vida.

A esse respeito, porm, eu quero crer que a Morte merea maiores encmios.

ela que faz todas as consolaes das nossas desgraas; dela que ns esperamos a nossa redeno; ela a quem todos os infelizes pedem socorro e esquecimento.

Gosto da Morte porque ela o aniquilamento de todos ns; gosto da Morte porque ela nos sagra. Em vida, todos ns s somos conhecidos pela calnia e maledicncia, mas, depois que Ela nos leva, ns somos conhecidos (a repetio a melhor figura de retrica), pelas nossas boas qualidades.

intil estar vivendo, para ser dependente dos outros; intil estar vivendo para sofrer os vexames que no merecemos.

A vida no pode ser uma dor, uma humilhao de contnuos e burocratas idiotas; a vida deve ser uma vitria. Quando, porm, no se pode conseguir isso, a Morte que deve vir em nosso socorro.

A covardia mental e moral do Brasil no permite movimentos. de independncia; ela s quer acompanhadores de procisso, que s visam lucros ou salrios ns pareceres. No h, entre ns, campo para as grandes batalhas de esprito e inteligncia. Tudo aqui feito com o dinheiro e os ttulos. A agitao de uma idia no repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma pessoa poderosa, trata o agitador de louco.

Estou cansado de dizer que os malucos foram os reformadores do mundo.

Le Bon dizia isto a propsito de Maom, nas suas Civilisation des arabes, com toda a razo; e no h chanceler falsificado e secretria catita que o possa contestar..

So eles os heris; so eles os reformadores; so eles os iludidos; so eles que trazem as grandes idias, para melhoria das condies da existncia da nossa triste Humanidade.

Nunca foram os homens de bom senso, os honestos burgueses ali da esquina ou das secretrias chics que fizeram as grandes reformas no mundo.

Todas elas tm sido feitas por homens, e, s vezes mesmo mulheres, tidos por doidos.

A divisa deles consiste em no ser panurgianos e seguir a opinio de todos, por isso mesmo podem ver mais longe do que os outros.

Se ns tivssemos sempre a opinio da maioria, estaramos ainda no Cro-Magnon e no teramos sado das cavernas.

O que preciso, portanto, que cada qual respeite a opinio .de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para prpria felicidade da espcie humana.

Entretanto, no Brasil, no se quer isto. Procura-se abafar as opinies, para s deixar em campo os desejos dos poderosos e prepotentes.

Os rgos de publicidade por onde se podiam elas revelar, so fechados e no aceitam nada que os possa lesar.

Dessa forma, quem, como eu nasceu pobre e no quer ceder uma linha da sua independncia de esprito e inteligncia, s tem que fazer elogios Morte.

Ela a grande libertadora que no recusa os seus benefcios a quem lhe pede. Ela nos resgata e nos leva luz de Deus.

Sendo assim, eu a sagro, antes que ela me sagre na minha pobreza, na minha infelicidade, na minha desgraa e na minha honestidade.

Ao vencedor, as batatas!

Marginlia, 19-10-1918

Grve intil

Os empregados dos bancos de Berlim declararam-se em grve

Est a uma grve para muita gente bastante sem significao. Eu, por exemplo, nunca tive a mnima idia da serventia de um banco.

Para mim, tal instituio como muitas outras coisas, absolutamente coisas quimricas.

Por isso, fico sempre muito admirado que toda a gente pea bancos para o desenvolvimento do pas.

Eu no sei por qu, nem para qu.

No so s os bancos cuja existncia acho intil. H coisas, entre as quais posso citar assim de pronto: jias, as representaes no Municipal, alm dos navios transatlnticos que levam os homens felizes e os revolucionrios estrangeiros para a Europa.

Muito tem demais o mundo, para minha existncia; mas nem por isso deixo de apreciar o suprfluo nos outros.

O banco, porm, que no vejo para mim, nem nos outros das minhas relaes.

O nico que conheci, foi o dos Funcionrios Pblicos, mas esse no me deixou boas recordaes.

Agora, porm, os de Berlim, por intermdio de seus empregados, por terem aderido ao socialismo, anarquismo ou coisa que valha, esto empregando tambm a malsinada greve.

No me compete censur-los por isso, pois o uso da grve generaliza-se em todas as profisses; o que me parece, porm, que essa grve s pode interessar os capitalistas e, certamente, esses no estaro dispostos a dar o seu apoio a essa arma com que os guerreiam os seus inimigos.

Essa grve vai resultar intil, da pode ser que no e at concorra muito para a soluo da questo social.

Veremos.

Marginlia, 22-5-1920

Maio

Estamos em maio, o ms das flores, o ms sagrado pela poesia. No sem emoo que o vejo entrar. H em minha alma um renovamento; as ambies desabrocham de novo e, de novo, me chegam revoadas de sonhos. Nasci sob o seu signo, a treze, e creio que em sexta-feira; e, por isso, tambm emoo que o ms sagrado me traz, se misturam recordaes da minha meninice.

Agora mesmo estou a lembrar-me que, em 1888, dias antes da data urea, meu pai chegou em casa e disse-me: a lei da abolio vai passar no dia de teus anos. E de fato passou; e ns fomos esperar a assinatura no largo do Pao.

- Na minha lembrana desses acontecimentos, o edifcio do antigo pao, hoje repartio dos Telgrafos, fica muito alto, um sky-scraper; e l de uma das janelas eu vejo um homem que acena para o povo.

No me recordo bem se ele falou e no sou capaz de afirmar se era mesmo o grande Patrocnio.

Havia uma imensa multido ansiosa, com o olhar preso s janelas do velho casaro. Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio janela. Foi uma ovao: palmas, acenos com leno, vivas...

Fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na .minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganas e satisfao, deram-me uma viso da vida inteiramente festa e harmonia.

Houve missa campal, no Campo de So Cristvo. Eu fui tambm com meu pai; mas pouco me recordo dela, a no ser lembrar-me que, ao assisti-la, me vinha aos olhos a Primeira missa, de Vitor Meireles. Era como se o Brasil tivesse sido descoberto outra vez... Houve o barulho de bandas de msicas, de bombas e girndolas, indispensvel aos nossos regozijos; e houve tambm prstitos cvicos. Anjos despedaando grilhes, alegrias toscas passaram lentamente pelas ruas. Construram-se estrados para bailes populares; houve desfile de batalhes escolares e eu me lembro que vi a princesa imperial, na porta da atual Prefeitura, cercada de filhos, assistindo quela fieira de numerosos soldados desfiar devagar. Devia ser de tarde, ao anoitecer.

Ela me parecia loura, muito loura, maternal, com um olhar doce e apiedado. Nunca mais a vi e o imperador nunca vi, mas me lembro dos seus carros, aqueles enormes carros dourados, puxados por quatro cavalos, com cocheiros montados e um criado traseira.

Eu tinha ento sete anos e o cativeiro no me impressionava. No lhe imaginava o horror; no conhecia a sua injustia. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde j os escravos rareavam, faltava-me o conhecimento direto da vexatria instituio, para lhe sentir bem os aspectos hediondos.

Era bom-saber se a alegria que trouxe cidade a lei da abolio foi geral pelo pas. Havia de ser, porque j tinha entrado na conscincia de todos a injustia originria da escravido.

Quando fui para o colgio, um colgio pblico, rua do Resende, a alegria entre a crianada era grande. Ns no sabamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente nos tinha tomado.

A professora, Dona Teresa Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, a quem muito deve o meu esprito, creio que nos explicou a significao da coisa; mas com aquele feitio mental de criana, s uma coisa me ficou: livre! livre!

Julgava que podamos fazer tudo que quisssemos; que dali em diante no havia mais limitao aos propsitos da nossa fantasia.

Parece que essa convico era geral na meninada, porquanto um colega meu, depois de um castigo, me disse: "Vou dizer a papai que no quero voltar mais ao colgio. No somos todos livres?"

Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!

Dos jornais e folhetos distribudos por aquela ocasio, eu me lembro de um pequeno jornal, publicado pelos tipgrafos da Casa Lombaerts. Estava bem impresso, tinha umas vinhetas elzevirianas, pequenos artigos e sonetos. Desses, dois eram dedicados a Jos do Patrocnio e o outro princesa. Eu me lembro, foi a minha primeira emoo potica a leitura dele. Intitulava-se "Princesa e Me" e ainda tenho de memria um dos versos:

"Houve um tempo, senhora, h muito j passado..."

So boas essas recordaes; elas tm um perfume de saudade e fazem com que sintamos a eternidade do tempo.

Oh! O tempo! O inflexvel tempo, que como o Amor, tambm irmo da Morte, vai ceifando aspiraes, tirando presunes, trazendo desalentos, e s nos deixa na uma essa saudade do passado s vezes composta de coisas fteis, cujo relembrar, porm, traz sempre prazer.

Quanta ambio ele no mata! Primeiro so os sonhos de posio: com os dias e as horas e, a pouco e pouco, a gente vai descendo de ministro a amanuense; depois so os do Amor - oh! como se desce nesses! Os de saber, de erudio, vo caindo at ficarem reduzidos ao bondoso Larousse. Viagens... Oh! As viagens! Ficamos a faz-las nos nossos pobres quartos, com auxlio do Baedecker e outros livros complacentes.

Obras, satisfaes, glrias, tudo se esvai e se esbate. Pelos trinta anos, a gente que se julgava Shakespeare, est rente que no passa de um "Mal das Vinhas" qualquer; tenazmente, porm, ficamos a viver, -esperando, esperando... o qu? O imprevisto, o que pode acontecer amanh ou depois. Esperando os milagres do tempo e olhando o cu vazio de Deus ou Deuses, mas sempre olhando para ele, como o filsofo Guyau.

Esperando, quem sabe se a sorte grande ou um tesouro oculto no quintal?

E maio volta... H pelo ar blandcias e afagos; as coisas ligeiras tm mais poesia; os pssaros como que cantam melhor; o verde das encostas mais macio; um forte flux de vida percorre e anima tudo...

O ms augusto e sagrado pela poesia e pela arte, jungido eternamente marcha da Terra, volta; e os galhos da nossa alma que tinham sido amputados - os sonhos, enchem-se de brotos muito verdes, de um claro e macio verde de pelcia, reverdecem mais uma vez, para de novo perderem as folhas, secarem, antes mesmo de chegar o trrido dezembro.

E assim se faz a vida, com desalentos e esperanas, com recordaes e saudades, com tolices e coisas sensatas, com baixezas e grandezas, espera da morte, da doce morte, padroeira dos aflitos e desesperados...

Feiras e mafus, 4-5-1911

Mais uma vez

Este recente crime da rua da Lapa traz de novo tona essa questo do adultrio da mulher e seu assassinato pelo marido.

Na nossa hipcrita sociedade, parece estabelecido como direito, e mesmo dever do marido, o perpetr-lo.

No se d isto nesta ou naquela camada, mas de alto a baixo.

Eu me lembro ainda hoje que, numa tarde de vadiao, h muitos anos, fui parar com o meu amigo, j falecido Ari Toom, no necrotrio, no largo do Moura por aquela poca.

Uma rapariga - ns sabamos isso pelos jornais - creio que espanhola, de nome Combra, havia sido assassinada pelo amante e, suspeitava-se, ao mesmo tempo marquereau dela, numa casa da rua de Sant'Ana.

O crime teve a repercusso que os jornais lhe deram e os arredores do necrotrio estavam povoados da populao daquelas paragens e das adjacncias do beco da Msica e da rua da Misericrdia, que o Rio de Janeiro bem conhece. No interior da morgue 2, era a freqncia algo diferente sem deixar de ser um pouco semelhante do exterior, e, talvez mesmo, em substncia igual, mas muito bem vestida. Isto quanto s mulheres - bem entendido!

Ari ficou mais tempo a contemplar os cadveres. Eu sa logo. Lembro-me s do da mulher que estava vestida com um corpete e tinha s a saia de baixo. No garanto que estivesse calada com as chinelas, mas me parece hoje que estava. Pouco sangue e um furo bem circular no lado esquerdo, com bordas escuras, na altura do corao.

Escrevi - cadveres - pois o amante-cften se havia suicidado aps matar a Combra - o que me havia esquecido de dizer.

Como ia contando, vim para o lado de fora e pus-me a ouvir os comentrios daquelas pobres pierreuses de todas as cores, sobre o fato.

No havia uma que tivesse compaixo da sua colega da aristocrtica classe. Todas elas tinham objurgatrias terrveis, condenando-a, julgando o seu assassnio coisa bem feita; e, se fossem homens, diziam, fariam o mesmo - tudo isto entremeado de palavras do calo obsceno prprias para injuriar uma mulher. Admirei-me e continuei a ouvir o que diziam com mais ateno. Sabem por que eram assim to severas com a morta?

Porque a supunham casada com o matador e ser adltera.

Documentos to fortes como este no tenho sobre as outras camadas da sociedade; mas, quando fui jurado e, tive por colegas os mdicos da nossa terra, funcionrios e doutos de mais de trs contos e seiscentos mil-ris de renda anual como manda a lei sejam os juizes de fato escolhidos, verifiquei que todos pensavam da mesma forma que aquelas maltrapilhas rdeuses do largo do Moura.

Mesmo eu - j contei isto alhures - servi num conselho de sentena que tinha de julgar um uxoricida e o absolvi. Fui fraco, pois a minha opinio, se no era falhe comer alguns anos de cadeia, era manifestar que havia, e no meu caso completamente incapaz de qualquer conquista, um homem que lhe desaprovava a barbaridade do ato. Cedi a rogos e, at, alguns partidos dos meus colegas de sala secreta.

No caso atual, neste caso da rua da Lapa, v-se bem como os defensores do criminoso querem explorar essa estpida opinio de nosso povo que desculpa o uxoricdio quando h adultrio, e parece at impor ao marido ultrajado dever de matar a sua ex-cara-metade.

Que um outro qualquer advogado explorasse essa abuso brbara da nossa gente, v l; mas que o Senhor Evaristo de Morais, cuja ilustrao, cujo talento e cujo esforo na vida me causam tanta admirao, endosse, mesmo profissionalmente, semelhante doutrina que me entristece. O liberal, o socialista Evaristo, quase anarquista, est me parecendo uma dessas engraadas feministas Brasil, gnero professora Daltro, que querem a emancipao da mulher unicamente para exercer sinecuras do governo e rendosos cargos polticos; mas que, quando se trata desse absurdo costume nosso de perdoar os maridos assassinos de suas mulheres, por isso ou aquilo, nada dizem e ficam na moita.

A meu ver, no h degradao maior para a mulher do que semelhante opinio quase geral; nada a degrada mais do que isso, penso eu. Entretanto...

s vezes mesmo, o adultrio o que se v e o que no se v so outros interesses e despeitos que s uma anlise mais sutil podia revelar nesses lagos.

No crime da rua da Lapa, o criminoso, o marido, o interessado no caso, portanto, no alegou quando deps sozinho que a sua mulher fosse adltera; entretanto, a defesa, lemos nos jornais, est procurando "justificar" que ela o era.

O crime em si no me interessa, seno no que toca minha piedade por ambos; mas, se houvesse de escrever um romance, e no o caso, explicaria, ainda me louvando nos jornais, a coisa de modo talvez satisfatrio.

No quero, porm, escrever romances e estou mesmo disposto a no escrev-los mais, se algum dia escrevi um, de acordo com os cnones da nossa crtica; por isso guardo as minhas observaes e iluses para o meu gasto e para o julgamento da nossa atroz sociedade burguesa, cujo esprito, cujos imperativos da nossa ao na vida animaram, o que parece absurdo, mas de que estou absolutamente certo - O protagonista do lamentvel drama da rua da Lapa.

Afastei-me do meu objetivo, que era mostrar a grosseria, a barbaridade desse nosso costume de achar justo que o marido mate a mulher adltera ou que a cr tal.

Toda a campanha para mostrar a iniqidade de semelhante julgamento no ser perdida; e no deixo passar vaza que no diga algumas toscas palavras, condenando-o.

Se a coisa continuar assim, em breve, de lei costumeira, passar a lei escrita e retrogradamos s usanas selvagens que queimavam e enterravam vivas as adlteras.

Convm entretanto lembrar que, nas velhas legislaes, havia casos de adultrio legal. Creio que Slon e Licurgo os admitia; creio mesmo ambos. No tenho aqui o meu Plutarco. Seja, porm, como for, no digo que todos os adultrios so perdoveis. Pior do que o adultrio o assassinato; e ns queremos criar uma espcie dele baseado na lei.

Bagatelas, s.d.

No as matem

Esse rapaz que, em Deodoro, quis matar a ex-noiva e suicidou-se em seguida, um sintoma da revivescncia de um sentimento que parecia ter morrido no corao dos homens: o domnio, quand mme, sobre a mulher.

O caso no nico. No h muito tempo, em dias de carnaval, um rapaz atirou sobre a ex-noiva, l pelas bandas do Estcio, matando-se em seguida. A moa com a bala na espinha, veio morrer, dias aps, entre sofrimentos atrozes.

Um outro, tambm, pelo carnaval, ali pelas bandas do ex-futuro Hotel Monumental, que substituiu com montes de pedras o vetusto Convento da Ajuda, alvejou a sua ex-noiva e matou-a.

Todos esses senhores parece que no sabem o que a vontade dos outros.

Eles se julgam com o direito de impor o seu amor ou o seu desejo a quem no os quer. No sei se se julgam muito diferentes dos ladres mo armada; mas o certo que estes no nos arrebatam seno o dinheiro, enquanto esses tais noivos assassinos querem tudo que de mais sagrado em outro ente, de pistola na mo.

O ladro ainda nos deixa com vida, se lhe passamos o dinheiro; os tais passionais, porm, nem estabelecem a alternativa: a bolsa ou a vida. Eles, no; matam logo.

Ns j tnhamos os maridos que matavam as esposas adlteras; agora temos os noivos que matam as ex-noivas.

De resto, semelhantes cidados so idiotas. de supor que, quem quer casar, deseje que a sua futura mulher venha para o tlamo conjugal com a mxima liberdade, com a melhor boa-vontade, sem coao de espcie alguma, com ardor at, com nsia e grandes desejos; como e ento que se castigam as moas que confessam no sentir mais pelos namorados amor ou coisa equivalente?

Todas as consideraes que se possam fazer, tendentes a convencer os homens de que eles no tm sobre as mulheres domnio outro que no aquele que venha da afeio, no devem ser desprezadas.

Esse obsoleto domnio valentona, do homem sobre a mulher, coisa to horrorosa, que enche de indignao.

O esquecimento de que elas so, como todos ns, sujeitas, a influncias vrias que fazem flutuar as suas inclinaes, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores, coisa to estpida, que, s entre selvagens deve ter existido.

Todos os experimentadores e observadores dos fatos morais tm mostrado a inanidade de generalizar a eternidade do amor.

Pode existir, existe, mas, excepcionalmente; e exigi-la nas leis ou a cano de revlver, um absurdo to grande como querer impedir que o sol varie a hora do seu nascimento.

Deixem as mulheres amar vontade.

No as matem, pelo amor de Deus!

Vida urbana, 27-l-1915

No se zanguem

A cartomancia entrou decididamente na vida nacional

Os anncios dos jornais todos os dias proclamam aos quatro ventos as virtudes mirficas das pitonisas.

No tenho absolutamente nenhuma ojeriza pelas adivinhas; acho at que so bastante teis, pois mantm e sustentam no nosso esprito essa coisa que mais necessria nossa vida que o prprio po: a iluso.

Noto, porm, que no arraial dessa gente que lida com o destino, reina a discrdia, tal e qual no campo de Agramante.

A poltica, que sempre foi a inspiradora de azedas polmicas, deixou um instante de s-lo e passou a vara cartomancia.

Duas senhoras, ambas ultravidentes, extralcidas e no sei que mais, aborreceram-se e anda uma delas a dizer da outra cobras e lagartos.

Como se pode compreender que duas sacerdotisas do invisvel no se entendam e dem ao pblico esse espetculo de brigas to pouco prprio a quem recebeu dos altos poderes celestiais virtudes excepcionais?

A posse de tais virtudes devia dar-lhes uma mansuetude, uma tolerncia, um abandono dos interesses terrestres, de forma a impedir que o azedume fosse logo abafado nas suas almas extraordinrias e no rebentasse em disputas quase sangrentas.

Uma ciso, uma cisma nessa velha religio de adivinhar o futuro, fato por demais grave e pode ter conseqncias desastrosas.

Suponham que F. tenta saber da cartomante X se coisa essencial sua vida vai dar-se e a cartomante, que e dissidente da ortodoxia, por pirraa diz que no.

O pobre homem aborrece-se, vai para casa de mau humor e capaz de suicidar-se.

O melhor, para o interesse dessa nossa pobre humanidade, sempre necessitada de iluses, venham de onde vier, que as nossas cartomantes vivam em paz e se entendam para nos ditar bons horscopos.

Vida urbana, 26-12-1914

O caso do mendigo

Os jornais anunciaram, entre indignados e jocosos, que um mendigo, preso pela polcia, possua em seu poder valores que montavam respeitvel quantia de seis contos e pouco.

Ouvi mesmo comentrios cheios de raiva a tal respeito. O meu amigo X, que o homem mais esmoler desta terra, declarou-me mesmo que no dar mais esmolas. E no foi s ele a indignar-se. Em casa de famlia de minhas relaes, a dona da casa, senhora compassiva e boa, levou a tal ponto a sua indignao, que propunha se confiscasse o dinheiro ao cego que o ajuntou.

No sei bem o que fez a polcia com o cego. Creio que fez o que o Cdigo e as leis mandam; e, como sei pouco das leis e dos cdigos, no, estou certo se ela praticou o alvitre lembrado pela dona da casa de que j falei.

O negcio fez-me pensar e, por pensar, que cheguei a concluses diametralmente opostas opinio geral.

O mendigo no merece censuras, no deve ser perseguido, porque tem todas as justificativas a seu favor. No h razo para indignao, nem tampouco para perseguio legal ao pobre homem.

Tem ele, em face dos costumes, direito ou no a esmolar? Vejam bem que eu no falo de leis; falo dos costumes. No h quem no diga: sim. Embora a esmola tenha inimigos, e dos mais conspcuos, entre os quais, creio, est M. Bergeret, ela ainda continua a ser o nico meio de manifestao da nossa bondade em face da misria dos outros. Os sculos a consagraram; e, penso, dada a nossa defeituosa organizao social, ela tem grandes justificativas. Mas no bem disso que eu quero falar. A minha questo que, em face dos costumes, o homem tinha direito de esmolar. Isto est fora de dvida.

Naturalmente ele j o fazia h muito tempo, e aquela respeitvel quantia de seis contos talvez represente economias de dez ou vinte anos.

H, pois, ainda esta condio a entender: o tempo em que aquele dinheiro foi junto. Se foi assim num prazo longo, suponhamos dez anos, a coisa assim de assustar? No . Vamos adiante.

Quem seria esse cego antes de ser mendigo? Certamente um operrio, um homem humilde, vivendo de pequenos vencimentos, tendo s vezes falta de trabalho; portanto, pelos seus hbitos anteriores de vida e mesmo pelos meios de que se servia para ganh-la, estava habituado a economizar. fcil de ver por qu. Os operrios nem sempre tm servio constante. A no ser os de grandes fbricas do Estado ou de particulares, os outros contam que, mais dias, menos dias, estaro sem trabalhar, portanto sem dinheiro; da lhes vem a necessidade de economizar, para atender a essas pocas de crise.

Devia ser assim o tal cego, antes de o ser. Cegando, foi esmolar. No primeiro dia, com a falta de prtica, o rendimento no foi grande; mas foi o suficiente para pagar um caldo no primeiro frege que encontrou, e uma esteira na mais srdida das hospedarias da rua da Misericrdia. Esse primeiro dia teve outros iguais e seguidos; e o homem se habituou a comer com duzentos ris e a dormir com quatrocentos; temos, pois, o oramento do mendigo feito: seiscentos ris (casa e comida) e, talvez, cem ris de caf; so, portanto, setecentos ris por dia.

Roupa, certamente, no comprava: davam-lha. bem de crer que assim fosse, porque bem sabemos de que maneira prdiga ns nos desfazemos dos velhos ternos.

Est, portanto, o mendigo fixado na despesa de setecentos ris por dia. Nem mais, nem menos; o que ele gastava. Certamente no fumava e muito menos bebia, porque as exigncias do ofcio haviam de afast-lo da "caninha". Quem d esmola a um pobre cheirando a cachaa? Ningum.

Habituado a esse oramento, o homenzinho foi se aperfeioando no ofcio. Aprendeu a pedir mais dramaticamente, a aflautar melhor a voz; arranjou um cachorrinho, e o seu sucesso na profisso veio.

J de h muito que ganhava mais do que precisava. Os nqueis caam, e o que ele havia de fazer deles? Dar aos outros? Se ele era pobre, como podia fazer? Pr fora? No; dinheiro no se pe fora. No pedir mais? A interveio uma outra considerao.

Estando habituado previdncia e economia, o mendigo pensou l consigo: h dias que vem muito; h dias que vem pouco, sendo assim, vou pedindo sempre, porque, pelos dias de muito, tiro os dias de nada. Guardou. Mas a quantia aumentava. No comeo eram s vinte mil-ris; mas, em seguida foram quarenta, cinqenta, cem. E isso em notas, frgeis papis, capazes de se deteriorarem, de perderem o valor ao sabor de uma ordem administrativa, de que talvez no tivesse notcia, pois, era cego e no lia, portanto. Que fazer, em tal emergncia, daquelas notas? Trocar em ouro? Pesava, e o tilintar especial dos soberanos, talvez atrasse malfeitores, ladres. S havia um caminho: trancafiar o dinheiro no banco. Foi, o que ele fez. Esto a um cego de juzo e um mendigo rico.

Feito o primeiro depsito, seguiram-se a este outros; e, aos poucos, como hbito segunda natureza, ele foi encarando a mendicidade no mais como um humilhante imposto voluntrio, taxado pelos miserveis aos ricos e remediados; mas como uma profisso lucrativa, lcita e nada vergonhosa.

Continuou com o seu cozinho, com a sua voz aflautada, com o seu ar dorido a pedir pelas avenidas, pelas ruas comerciais, pelas casas de famlias, um nquel para um pobre cego. J no era mais pobre; o hbito e os preceitos da profisso no lhe permitiam que pedisse uma esmola para um cego rico.

O processo por que ele chegou a ajuntar a modesta fortuna de que falam os jornais, to natural, to simples, que, julgo eu, no h razo alguma para essa indignao das almas generosas.

Se ainda continuasse a ser operrio, ns ficaramos indignados se ele tivesse juntado o mesmo peclio? No. Por que ento ficamos agora?

porque ele mendigo, diro. Mas um engano. Ningum mais que um mendigo tem necessidade de previdncia. A esmola no certa; est na dependncia da generosidade dos homens, do seu estado moral psicolgico. H uns que s do esmolas quando esto tristes, h outros que s do quando esto alegres e assim por diante. Ora, quem tem de obter meios de renda de fonte to incerta, deve ou no ser previdente e econmico?

No julguem que fao apologia da mendicidade. No s no fao como no a detrato.

H ocasies na vida que a gente pouco tem a escolher; s vezes mesmo nada tem a escolher, pois h um nico caminho. o caso do cego. Que que ele havia de fazer? Guardar. Mendigar. E, desde que da sua mendicidade veio-lhe mais do que ele precisava, que devia o homem fazer? Positivamente, ele procedeu bem, perfeitamente de acordo com os preceitos sociais, com as regras da moralidade mais comezinha e atendeu s sentenas do Bom homem Ricardo, do falecido Benjamin Franklin.

As pessoas que se indignaram com o estado prspero da fortuna do cego, penso que no refletiram bem, mas, se o fizerem, ho de ver que o homem merecia figurar no Poder da vontade, do conhecidssimo Smiles.

De resto, ele era espanhol, estrangeiro, e tinha por dever voltar rico. Um acidente qualquer tirou-lhe a vista, mas lhe ficou a obrigao de enriquecer. Era o que estava fazendo, quando a polcia foi perturb-lo. Sinto muito; e so meus desejos que ele seja absolvido do delito que cometeu, volte sua gloriosa Espanha, compre uma casa de campo, que tenha um pomar com oliveiras e a vinha generosa; e, se algum dia, no esmaecer do dia, a saudade lhe vier deste Rio de Janeiro, deste Brasil imenso e feio, agarre em uma moeda de cobre nacional e leia o ensinamento que o governo da Repblica d... aos outros, atravs dos seus vintns: A economia a base da prosperidade".

Bagatelas, 1911

O Cedro de Terespolis

O eminente poeta Alberto de Oliveira, segundo informaes dos jornais, est empenhado em impedir que um proprietrio ganancioso derrube um cedro venervel que lhe cresce nos terrenos.

A rvore remanescente de antigas florestas que outrora existiram para aquelas bandas e viu crescer Terespolis j adulto.

No conheo essa espcie de rvore, mas deve ser bela porque Alberto de Oliveira se interessa pela sua conservao.

Homem de cidade, tendo viajado unicamente de cidade para cidade, nunca me foi dado ver essas essncias florestais que todos que as contemplam, se enchem de admirao e emoo superior diante dessas maravilhas naturais.

O gesto de Alberto de Oliveira sem dvida louvvel e no h homem de mediano gosto que no o aplauda do fundo d'alma.

Desejoso de conservar a relquia florestal o grande poeta props comprar, ao dono, as terras onde ela crescia.

Tenho para mim que, vista da quantia exigida por este, ela s poder ser subscrita por gente rica, em cuja bolsa umas poucas de centenas de mil-ris no faam falta.

A que me parece que o carro pega. No que tenha dvidas sobre a generosidade da nossa gente rica; o meu ceticismo no vem da.

A minha dvida vem do seu mau gosto, do seu desinteresse pela natureza. Excessivamente urbana, a nossa gente abastada no povoa os arredores do Rio de Janeiro de vivendas de campo com pomares, jardins, que os figurem graciosos como a linda paisagem da maioria deles est pedindo.

Os nossos arrabaldes e subrbios so uma desolao. As casas de gente abastada tm, quando muito, um jardinzito liliputiano de polegada e meia; e as da gente pobre no tm coisa alguma.

Antigamente, pelas vistas que ainda se encontram, parece que no era assim.

Os ricos gostavam de possuir vastas chcaras, povoadas de laranjeiras, de mangueiras soberbas, de jaqueiras, dessa esquisita fruta-po que no vejo mais e no sei h quantos anos no a como assada e untada de manteiga.

No eram s essas rvores que a enchiam, mas muitas outras de frutas adorno, como as palmeiras soberbas, tudo isso envolvido por bambuais sombrios e sussurrantes brisa.

Onde esto os jasmineiros das cercas? Onde esto aqueles extensos tapumes de marics que se tornam de algodo que mais neve, em pleno estio?

Os subrbios e arredores do Rio guardam dessas belas coisas roceiras, destroos como recordaes.

A rua Baro do Bom Retiro que vem do Engenho Novo Vila Isabel d a quem por ela passa uma amostra disso. So restos de bambuais, de jasmineiros que se enlaavam pelas cercas em fora; so mangueiras isoladas, tristonhas, saudosas das companheiras de alameda que morreram ou foram mortas.

No se diga que tudo isso desapareceu para dar lugar a habitaes; no, no verdade. H trechos e trechos grandes de terras abandonadas, onde os nossos olhos contemplam esses vestgios das velhas chcaras da gente importante de antanho que tinha esse amor fidalgo pela casa e que deve ser amor e religio para todos.

Que os pobres no possam exercer esse culto; que os mdios no o possam tambm, v l! e compreende-se; mas os ricos? Qual o motivo?

Eles no amam a natureza; no tm, por lhes faltar irremediavelmente o gosto por ela, a iniciativa para escolher belos stios, onde erguerem as suas custosas residncias, e eles no faltam no Rio.

Atulham-se em dois ou trs arrabaldes que j foram lindos, no pelas edificaes, e no s pelas suas disposies naturais, mas tambm, e muito, pelas grandes chcaras que neles havia.

Botafogo est neste caso. Laranjeiras, Tijuca e Gvea tambm.

Aos famosos melhoramentos que tm sido levados a cabo nestes ltimos anos, com raras excees, tem presidido o maior contra-senso.

Os areais de Copacabana, Leme, Vidigal, etc., que tm merecido os carinhos dos reformadores apressados.

No se compreende que uma cidade se v estender sobre terras combustas e estreis e ainda por cima aoitadas pelos ventos e perseguidas as suas vias pblicas pelas frias do mar alto.

A continuar assim, o Rio de Janeiro ir por Sepetiba, Angra dos Reis, Ubatuba, Santos, Paranagu, sempre procurando os areais e os lugares onde o mar se possa desencadear em ressacas mais fortes.

preciso no cessar em profligar tal erro; tanto mais que no h erro, o que h especulao, jogo de terrenos, que. so comprados a baixo preo e os seus proprietrios procuram valoriz-los num pice de tempo, encaminhando para eles os melhoramentos municipais.

Todo o Rio de Janeiro paga impostos, para que tal absurdo seja posto em prtica; e os panurgianos ricos vo docilmente satisfazendo a cupidez de matreiros sujeitos para quem a beleza, a sade dos homens, os interesses de uma populao nada valem.

por isso que disse no me fiar muito que Alberto de Oliveira alcanasse realizar o seu desideratum.

Os ricos se afastam dos encantos e perspectivas dos stios em que se possam casar o mais possvel a arte e a natureza.

Perderam a individualidade da escolha; no associam natureza as suas emoes nem. esta lhes provoca meditaes.

O estado dos arredores do Rio, abandonados, enfeitados com construes contra-indicadas, cercados de terrenos baldios onde ainda crescem teimosamente algumas grandes rvores das casas de campo de antanho, faz desconfiar que os nababos de Terespolis pouco se incomodam com o cedro que o turco quer derrubar, para fazer caixas e caixes que guardem quinquilharias e bugigangas.

Da pode ser que no;. e eu desejaria muito que tal .acontecesse, pois deve ser um soberbo espetculo contemplar a magnfica rvore, cantando e afirmando pelos tempos em fora, a vitria que obteve to-somente pela fora de sua beleza e majestade.

Bagatelas, 27-2-1920

O morcego

O carnaval a expresso da nossa alegria. O rudo, o barulho, o tant espancam a tristeza que h nas nossas almas, atordoam-nos e nos enchem de prazer.

Todos ns vivemos para o carnaval. Criadas, patroas, doutores, soldados, todos pensamos o ano inteiro na folia carnavalesca.

O zabumba que nos tira do esprito as graves preocupaes da nossa rdua vida.

O pensamento do sol inclemente s afastado pelo regougar de um qualquer Iai me deixe".

H para esse culto do carnaval sacerdotes abnegados.

O mais espontneo, o mais desinteressado, o mais ldimo certamente o Morcego".

Durante o ano todo, Morcego um grave oficial da Diretoria dos Correios, mas, ao aproximar-se o carnaval, Morcego sai de sua gravidade burocrtica, atira a mscara fora e sai para a rua.

A fantasia exuberante e vria, e manifesta-se na modinha, no vesturio, nas bengalas, nos sapatos e nos cintos.

E ento ele esquece tudo: a Ptria, a famlia, a humanidade. Delicioso esquecimento!... Esquece e vende, d, prodigaliza alegria durante dias seguidos.

Nas festas da passagem do ano, o heri foi o Morcego.

Passou dois dias dizendo pilhrias aqui; pagando ali; cantando acol, sempre indito, sempre novo, sem que as suas dependncias com o Estado se manifestassem de qualquer forma.

Ele ento no era mais a disciplina, a correo, a lei, o regulamento; era o coribante inebriado pela alegria de viver. Evo, Bacelar!

Essa nossa triste vida, em pas to triste, precisa desses videntes de satisfao e de prazer; e a irreverncia da sua alegria, a energia e atividade que pem em realiz-la, fazem vibrar as massas panurgianas dos respeitadores dos preconceitos.

Morcego uma figura e uma instituio que protesta contra o formalismo, a conveno e as atitudes graves.

Eu o bendisse, amei-o, lembrando-me das sentenas falsamente profticas do sanguinrio positivismo do Senhor Teixeira Mendes.

A vida no se acabar na caserna positivista enquanto os morcegos" tiverem alegria...

Vida urbana, 2-1-1915

Problema vital

Poucas vezes se h visto nos meios literrios do Brasil, uma estria como a do Senhor Monteiro Lobato. As guias provincianas se queixam de que o Rio de Janeiro no lhes d importncia e que os homens do Rio s se preocupam com coisas do Rio e da gente dele. um engano. O Rio de Janeiro muito fino para no dar importncia a uns sabiches de aldeia que, por terem lido alguns autores, julgam que ele no os l tambm; mas, quando um estudioso, um artista, um escritor, surja onde ele surgir no Brasil, aparece no Rio, sem esses espinhos de ourio, todo o carioca independente e autnomo de esprito est disposto a aplaudi-lo e dar-lhe o apoio da sua admirao. No se trata aqui da barulheira da imprensa, pois essa no o faz, seno para aqueles que lhe convm, tanto assim que sistematicamente esquece autores e nomes que, com os homens dela, todo o dia e hora lidam.

O Senhor Monteiro Lobato com o seu livro Urups veio demonstrar isso. No h quem no o tenha lido aqui e no h quem o no admire. No foi preciso barulho de jornais para o seu livro ser lido. H um contgio para as boas obras que se impem por simpatia.

O que de admirar em tal autor, e em tal obra, que ambos tenham surgido em So Paulo, to formalista, to regrado que parecia no admitir nem um nem a outra.

No digo que, aqui, no haja uma escola delambida de literatura, com uma retrica trapalhona de descries de luares com palavras em ll" e de tardes de trovoadas com vocbulos com rr" dobrados: mas So Paulo, com as suas elegncias ultra-europias, parecia-me ter pela literatura, seno o critrio da delambida que acabo de citar, mas um outro mais exagerado.

O sucesso de Monteiro Lobato, l, retumbante e justo, fez-me mudar de opinio.

A sua roa, as suas paisagens no so coisas de moa prendada, de menina de boa famlia, de pintura de discpulo ou discpula da Academia Julien; da grande arte dos nervosos, dos criadores, daqueles cujas emoes e pensamentos saltam logo do crebro para o papel ou para a tela. Ele comea com o pincel, pensando em todas as regras do desenho e da pintura, mas bem depressa deixa uma e outra coisa, pega a esptula, os dedos e tudo o que ele viu e sentiu sai de um s jato, repentinamente, rapidamente.

O seu livro uma maravilha nesse sentido, mas o tambm em outro, quando nos mostra o pensador dos nossos problemas sociais, quando nos revela, ao pintar a desgraa das nossas gentes roceiras, a sua grande simpatia por elas. Ele no as embeleza, ele no as falsifica; f-las tal e qual.

Eu quereria muito me alongar sobre este seu livro de contos, Urups, mas no posso agora. Dar-me-ia ele motivo para discorrer sobre o que penso dos problemas que ele agita; mas, so tantos que me emaranho no meu prprio pensamento e tenho medo de fazer uma coisa confusa, a menos que no faa com pausa e tempo. Vale a pena esperar.

Entretanto, eu no poderia deixar de referir-me ao seu estranho livro, quando me vejo obrigado a dar notcia de um opsculo seu que me enviou. Trata-se do "Problema Vital", uma coleo de artigos, publicados por ele, no Estado de S. Paulo, referentes questo do saneamento do interior do Brasil.

Trabalhos de jovens mdicos como os doutores Artur Neiva, Carlos Chagas, Belisrio Pena e outros, vieram demonstrar que a populao roceira do nosso pas era vtima desde muito de vrias molstias que a alquebravam fisicamente. Todas elas tm uns nomes rebarbativos que me custam muito a escrever; mas Monteiro Lobato os sabe de cor e salteado e, como ele, hoje muita gente. Conhecias, as molstias, pelos seus nomes vulgares; papeira, opilao, febres e o mais difcil que tinha na memria era - bcio. Isto, porm, no vem ao caso e no o importante da questo.

Os identificadores de tais endemias julgam ser necessrio um trabalho sistemtico para o saneamento dessas regies afastadas e no so s estas. Aqui, mesmo, nos arredores do Rio de Janeiro, o doutor Belisrio Pena achou duzentos e cinqenta mil habitantes atacados de maleitas, etc. Residi, durante a minha meninice e adolescncia, na Ilha do Governador, onde meu pai era administrador das Colnias de Alienados. Pelo meu testemunho, julgo que o doutor Pena tem razo. L todos sofriam de febres e logo que fomos, para l, creio que em 1890 ou 1891, no havia dia em que no houvesse, na nossa casa, um de cama, tremendo com a sezo e delirando de febre. A mim, foram precisas at injees de quinino.

Por esse lado, julgo que ele e os seus auxiliares no falsificam o estado de sade de nossas populaes campestres. Tm toda a razo. O que no concordo com eles, com o remdio que oferecem. Pelo que leio em seus trabalhos, pelo que a minha experincia pessoal pode me ensinar, me parece que h mais nisso uma questo de higiene domiciliar e de regime alimentar.

A nossa tradicional cabana de sap e paredes de taipa condenada e a alimentao dos roceiros insuficiente, alm do mau vesturio e do abandono do calado.

A cabana de sap tem origem muito profundamente no nosso tipo de propriedade agrcola - a fazenda. Nascida sob o influxo do regime do trabalho escravo, ela se vai eternizando, sem se modificar, nas suas linhas gerais. Mesmo em terras ultimamente desbravadas e servidas por estradas de ferro, como nessa zona da Noroeste, que Monteiro Lobato deve conhecer melhor do que eu, a fazenda a forma com que surge a propriedade territorial no Brasil. Ela passa de pais a filhos; vendida integralmente e quase nunca, ou nunca, se divide. O interesse de seu proprietrio t-la intacta, para no desvalorizar as suas terras. Deve ter uma parte de matas virgens, outra parte de capoeira, outra de pastagens, tantos alqueires de ps de caf, casa de moradia, de colonos, currais, etc.

Para isso, todos aqueles agregados ou coisa que valha, que so admitidos a habitar no latifndio, tm uma posse precria das terras que usufruem; e, no sei se est isto nas leis, mas nos costumes est, no podem construir casa de telha, para no adquirirem nenhum direito de locao mais estvel.

Onde est o remdio, Monteiro Lobato? Creio que procurar meios e modos de fazer desaparecer a fazenda".

Construir casas de telhas, para os seus colonos e agregados. Ser bom? Examinemos. Os proprietrios de latifndios, tendo mais despesas com os seus miserveis trabalhadores, esfolaro mais os seus clientes, tirando-lhes ainda mais dos seus mseros salrios do que tiravam antigamente. Onde tal coisa ir repercutir? Na alimentao, no vesturio. Estamos, portanto, na mesma.

Em suma, para no me alongar. O problema, conquanto no se possa desprezar a parte mdica propriamente dita, de natureza econmica e social. Precisamos combater o regime capitalista na agricultura, dividir a propriedade agrcola, dar "a propriedade da terra ao que efetivamente cava a terra e planta e no ao doutor vagabundo e parasita,, que vive na Casa Grande" ou no Rio ou em So Paulo. J tempo de fazermos isto e isto que eu chamaria o Problema Vital".

Bagatelas, 22-2-1918

Ontem e hoje

Como todo o Rio de Janeiro sabe, o seu centro social foi deslocado da rua do Ouvidor para a avenida e, nesta, ele fica exatamente no ponto dos bondes do Jardim Botnico.

L se rene tudo o que h de mais curioso na cidade. So as damas elegantes, os moos bonitos, os namoradores, os amantes, os badauds, os camelots e os sem-esperana.

Acrescem para dar animao ao local, as cervejarias que h por l, e um enorme hotel que diz comportar no sei quantos milheiros de hspedes.

Nele moram vrios parlamentares, alguns conhecidos e muitos desconhecidos. Entre aqueles est um famoso pela virulncia dos seus ataques, pela sua barba nazarena, pelo seu pince-nez e, agora, pelo luxuoso automvel, um dos mais chics da cidade.

H cerca de quatro meses, um observador que l se postasse, veria com espanto o ajuntamento que causava a entrada e a sada desse parlamentar.

De toda a parte, corria gente a falar com ele, a abra-lo, a fazer-lhe festas. Eram homens de todas as condies, de todas as roupas, de todas as raas. Vinham os encartolados, os abrilhantados, e tambm os pobres, os mal vestidos, os necessitados de emprego.

Certa vez a aglomerao de povo foi tal que o guarda civil de ronda compareceu, mas logo afastou-se dizendo:

- o nosso homem.

Bem; isto histria antiga. Vejamos agora a moderna. Atualmente, o mesmo observador que l parar, a fim de guardar fisionomias belas ou feias, alegres ou tristes e registrar gestos e atitudes, fica surpreendido com a estranha diferena que h com aspecto da chegada do mesmo deputado. Chega o seu automvel, um automvel de muitos contos de ris, iluminado eletricamente, motorista de fardeta, todo o veculo reluzente e orgulhoso. O homem salta. Pra um pouco, olha desconfiado para um lado e para outro, levanta a cabea para equilibrar o pince-nez no nariz e segue para a escusa entrada do hotel.

Ningum lhe fala, ningum lhe pede nada, ningum o abraa - por qu?

Porque no mais aquele ajuntamento, aquele fervedouro de gente de h quatro meses passados?

Se ele sai e pe-se no passeio espera do seu rico automvel, fica isolado, sem um admirador ao lado, sem um correligionrio, sem um assecla sequer. Por qu? No sabemos, mas talvez o guarda civil pudesse dizer:

- Ele no mais o nosso homem.

Vida urbana, 26-6-1915

Os enterros de Inhama

Certamente h de ser impresso particular minha no encontrar no cemitrio municipal de Inhama aquele ar de recolhimento, de resignada tristeza, de impondervel poesia do Alm, que encontro nos outros. Acho-o feio, sem compuno com um ar momo de repartio pblica; mas se o cemitrio me parece assim, e no me interessa, os enterros que l vo ter, todos eles, aguam sempre a minha ateno quando os vejo passar, pobres ou no, a p ou em coche-automvel.

A pobreza da maioria dos habitantes dos subrbios ainda mantm neles esse costume rural de levar a p, carregados a braos, os mortos queridos.

um sacrifcio que redunda num penhor de amizade em uma homenagem das mais sinceras e piedosas que um vivo pode prestar a um morto.

Vejo-os passar e calculo que os condutores daquele viajante para to longnquas paragens, j andaram alguns quilmetros e vo carregar o amigo morto, ainda durante cerca de uma lgua. Em geral assisto a passagem desses cortejos fnebres na rua Jos Bonifcio canto da Estrada Real. Pela manh gosto de ler os jornais num botequim que h por l. Vejo os rgos, quando as manhs esto lmpidas, tintos com a sua tinta especial de um profundo azul-ferrete e vejo uma velha casa de fazenda que se ergue bem prximo, no alto de uma meia laranja, passam carros de bois, tropas de mulas com sacas de carvo- nas cangalhas, carros de bananas, pequenas manadas de bois, cujo campeiro cavalga atrs sempre com o p direito embaralhado em panos.

Em certos instantes, suspendo mais demoradamente a leitura do jornal, e espreguio o olhar por sobre o macio tapete verde do capinzal intrmino que se estende na minha frente.

Sonhos de vida roceira me vm; suposies do que aquilo havia sido, ponho-me a fazer. ndios, canaviais, escravos, troncos, reis, rainhas, imperadores - tudo isso me acode vista daquelas coisas mudas que em nada falam do passado.

De repente, tilinta um eltrico, buzina um- automvel chega um caminho carregado de caixas de garrafa