Linguagemedireito

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LINGUAGEM & DIREITOVIRGNIA COLARESorganizao

Editora Universitria

UFPE

patrocnio

edio

diagramao Fluxo Studio www.uxostudio.com pintura da capa Norberto Conti O Gato de Schrodinger II www.norbertoconti.com edio e impresso Editora Universtria UFPE http://www.ufpe.br/edufpe/

Catalogao na fonte: Bibliotecria Joselly de Barros Gonalves, CRB4-1748 L755 Linguagem e direito / organizao Virgnia Colares. Recife : Ed. Universitria da UFPE, 2010. 338 p. Vrios autores. ISBN 978-85-7315-779-6 (broch.)

1. DireitoLinguagem. 2. Discurso jurdico. 3. Atividade jurisdicional. 4. Hermenutica. I. Colares, Virgnia (Org.). 34 340 CDU (2.ed.) CDD (22.ed.) UFPE BC2010-119

Editora Universitria

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AGRADECIMENTOS Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6 Regio (ESMATRA VI) produtora e patrocinadora deste livro. Agradecemos aos autores pela colaborao com a linha de pesquisa Linguagem e Direito, que maneira da Anlise Crtica do Discurso (ACD), se anuncia como uma agenda de trabalho de pessoas com suas distintas abordagens se aproximando deste objeto de estudo complexo que a linguagem em uso no contexto jurdico. Um agradecimento especial ao artista plstico Norberto Conti que contribuiu cedendo a obra: O Gato de Schrodinger II para nossa capa. O quadro dialoga com o livro intertextualmente na medida em que remete ao experimento do fsico austraco Erwin Schrdinger quando, em 1935, prope o exerccio mental de interpretao da estranha natureza das superposies qunticas (um paradoxo), sendo aplicado interpretao dos objetos do dia-a-dia.

SUMRIOPrefcioJayme Benvenuto pgina 7

Apresentao: por que a Linguagem interessa ao Direito?Virgnia Colares

pgina 9

I. FILOSOFIA DO DIREITOA Tpica e sua relao com a Ordem Jurdicapgina 23 Jos Antonio de Albuquerque Filho

II. TERMINOLOGIA E A LEXICOLOGIAAspectos da terminologia jurdicaGraciele da Mata Massaretti Dias Manoel Messias Alves da Silva pgina 49

III. LETRAMENTO E ACESSO JUSTIALetramento e Discurso JurdicoLeda Verdiani Tfouni Dionia Motta Monte-Serratn pgina 73

O Papel dos Esteretipos Jurdicos na divulgao do Direito e da Cidadania: uma abordagem crtica pgina 95Leonardo Mozdzenski

IV. ANLISE DO DISCURSO ESCOLA FRANCESACristina Cattaneo da Silveira

Interpretao do/ no Discurso Jurdico Processo Penal: a fala do ru e a voz do outro em Discurso Jurdico de Defensoria Pblica BrasileiraLucas do Nascimento

pgina 129

pgina 149

V. DIREITO PENAL

Cmo narran los jueces. Reexiones desde la Lingstica Cognitiva para comprender de qu modo las acciones de los ciudadanos se convierten en hechos penalesMariana Cucatto pgina 181 pgina 213

Persuaso e paixo em um processo judicialMaria Helena Cruz Pistori

VI. ANLISE CRTICA DO DISCURSO LEGAL/ JURDICO: entre a lei e doutrinaA anlise crtica do art. 5, lXVII, da Constituio Federal de 1988 sob o prisma do depositrio judicial de bens penhoradosJos Adelmy da Silva Acioli pgina 235

Anlise crtica do discurso e o julgamento do Supremo Tribunal Federal no recurso extraordinrio n 569.056-3-PAAna Maria Aparecida de Freitas pgina 261

VII. HERMENUTICA

Porte ilegal de fala: o crime de discurso crtico contra-hegemnicoVinicius de Negreiros Calado

pgina 281

Direito, produo de sentido e o regime de liberdade condicionalVirgnia Colares

pgina 299

PREFCIOJayme Benvenuto1 [email protected]

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livro Linguagem e Direito traz um vasto painel de estudos que caminham por espaos transdisciplinares, vinculando o Direito e a Linguagem. Os estudos que articulam duas ou mais reas do conhecimento tm o objetivo de superar as limitaes das teorias dominantes, baseadas em vises ortodoxas construdas a partir da crena na pureza conceitual, da idia de autonomia de campos do conhecimento, como se costumava dizer na introduo de aulas e livros e Filosoa, Sociologia, Direito e tantas outras disciplinas. Entre os ensinamentos do sculo XX, est o de que nenhuma rea do conhecimento pode ter a pretenso de autonomia. As possibilidades de construo do conhecimento, contextualizadas no tempo e no espao, esto condicionadas interao e ao reconhecimento com base no dilogo entre diversas reas do saber humano, que se fazem reas muito mais pelas limitaes epistemolgicas do atual momento que propriamente por um sentido mais compreensvel. Anal, todo conhecimento pode se entrelaar com outros conhecimentos, vindo a resultar em conhecimentos e interpretaes diversos, localizados e recontextualizados. Se por meio da linguagem que o Direito se estabelece gerando vnculos jurdicos entre pessoas e grupos sociais, fazendo surgir e desaparecer entidades, concedendo e usurpando a liberdade, absolvendo e condenando rus, gerando e extinguindo institutos, poderes, princpios e procedimentos legais no parece adequado persistir excluindo a linguagem do conhecimento jurdico.

1. Diretor do Centro de Cincias Jurdicas da Universidade Catlica de Pernambuco. Professor Doutor de Direito Internacional Pblico (Graduao em Direito) e Poltica Internacional e Direitos Humanos (Programa de Mestrado em Direito). Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq.

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nesse sentido que Virgnia Colares arma, na introduo do presente livro, do qual organizadora, que a linguagem no o instrumento precrio e imperfeito do qual o pensamento se serve para realizar as operaes de representao mental da realidade, a linguagem consiste na atividade de sujeitos sociais autnticos na dimenso da prxis, da porque, digo eu, o Direito tem que se impuricar de outros contedos e mtodos, se quiser continuar acreditando na idia de melhorar a vida das pessoas, no se resumindo a mero instrumento de fora. Este livro existe graas atuao acadmica obstinada da professora Virgnia Colares que, tanto na graduao quanto na ps-graduao em Direito da Universidade Catlica de Pernambuco, tem ensinado e pesquisado, envolvendo professores e alunos, em discusses que visam construo do discurso jurdico no mbito da doutrina, da jurisprudncia e nas diferentes situaes de interao na justia. Para tanto, parte do pressuposto de que o domnio da relao entre a linguagem e a atividade jurisdicional se inscreve numa prtica necessariamente transdisciplinar. O livro est organizado em sete eixos temticos (I) losoa do direito; (II) terminologia e a lexicologia; (III) letramento e acesso justia; (IV) anlise do discurso escola francesa, (V) direito penal, (VI) anlise crtica do discurso legal/ jurdico: entre a lei e doutrina; e (VII) hermenutica, nos quais se distribuem trabalhos de linguistas e de juristas. Trata-se de um belo exemplo por meio do qual a pesquisa no campo do Direito e da Linguagem, desenvolvida na Universidade Catlica de Pernambuco, em vinculao com a produo cientca de docentes de outras instituies de ensino superior como a pesquisa adquire importncia -, revela-se carregada de signicado na tarefa auto-proclamada de construir novos sentidos para as duas reas do conhecimento e de buscar alternativas mais apropriadas para as necessidades dos seres humanos dos nossos dias.

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APRESENTAO: POR QUE A LINGUAGEM INTERESSA AO DIREITO?Virgnia Colares1 [email protected]

solo epistemolgico para a reexo da interface entre linguagem e direito frtil. Argumenta David Mellinko que /.../a Justia uma prosso de palavras e as palavras da lei so, de fato, a prpria lei/.../2. O autor enumera uma taxionomia das palavras usadas pela Justia, numa perspectiva lexicogrca, assim como se dedica a construir e atualizar um dicionrio da linguagem jurdica americana, colocando em cada verbete o uso jurdico e o do senso comum3. Na Gr-Bretanha, Malcom Coulthard atua como conselheiro da corte britnica na cidade de Birmingham, onde reside e leciona. O professor membro-fundador da Associao Internacional de Lingstica Forense (International Association of Forensic Linguistics), e tem trabalhado ocialmente como perito legal em vrios casos de percia lingstica e plgio em tribunais na Inglaterra. Atualmente leciona na Aston University onde tive a honra de ser sua aluna num curso de aperfeioamento4.1. Professora da graduao e ps-graduao em Direito da Universidade Catlica de Pernambuco (UNICAP) - Currculo na Plataforma Lattes do CNPq /MEC, acesso: http://lattes.cnpq.br/7462069887119361 2. MELLINKOFF, David. The language of the law. Boston: Little Brown, 1963. 3. MELLINKOFF, David. Mellinkoff s Dictionary of American Legal Usage 4. COULTHARD, Malcolm. An Introduction to Discourse Analysis. London: Longrnan, 1977. COULTHARD, Malcolm; JOHNSON, Alison. An introduction to forensic linguistics: language in evidence. New York: Routledge, 2007.

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No Direito, a linguagem estabelece relaes entre pessoas e grupos sociais, faz emergir e desaparecer entidades, concede e usurpa a liberdade, absolve e condena rus. Um compromisso, antes inexistente, pelo uso da linguagem, origina-se no Direito; um novo rgo estatal surge pela utilizao da palavra certa, pela pessoa certa; um procedimento legal institudo no novo cdigo processual em gestao, poderes so conferidos etc. Enm, algo diferente acontece no panorama delineado pelo Direito, porque foi realizado um ato jurdico atravs de um ato de fala, isto , realiza-se um ato performativo de fala, uma ao que determina mudanas no mundo legalmente estruturado. A Sociolingstica variacionista estuda o juridiqus e as conseqncias de seu uso no que tange ao acesso justia. Asseguram Mauro Cappelletti e Bryant Garth que o acesso ao conhecimento do Direito constitui uma das modalidades de acesso Justia5. Miguel Reale, em antiga e prudente preocupao com a introduo dos iniciantes na linguagem do Direito, estabelece recomendaes propeduticas ao estudo do Direito, pois, s vezes, expresses correntes, de uso comum do povo, adquirem, no mundo jurdico, um sentido tcnico especial.6 No mundo de lngua anglo-saxnica, a preocupao com a teorizao acerca da Linguagem & Direito tomou flego com o plain language moviment dos anos 1970. Nos Estados Unidos, Inglaterra, Sucia, Alemanha e Israel, vrios estudos comeavam a questionar o uso da linguagem em contextos institucionais e o abuso no uso da linguagem pelos detentores do poder, no exerccio de suas atividades prossionais. O movimento agregava prossionais de diversas reas e as abordagens na perspectiva sociolingstica que enfatizavam a questo da assimetria na interao. Defendia-se o direito do cidado comum de entender e ser entendido, em contextos institucionais. Provavelmente, a emergncia da anlise do discurso, a partir do texto fundador de Zellig5. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso Justia . Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris, 1988. 6. REALE, Miguel. Lies Preliminares de Direito. 12. ed. So Paulo: Saraiva, 1985. p.36.

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Harris7 e sua traduo para o francs por Francoise Dubois-Chalier8, propondo estudos lingsticos que ultrapassassem o limite da frase os denominados estudos transfrsticos -, serviam como pano de fundo para os defensores do movimento de planicao lingstica. Estudiosos como Danet; Kermish, Parkinson, OBarr entre outros, trataram a linguagem jurdica como uma espcie de diglossia, estabelecendo distines entre modo (escrito, falado com preparao, fala espontnea) e estilo (cristalizado, formal, informal, casual etc.), tomando como base terica a sociolingstica variacionista.9 A realidade do Direito subsiste unicamente atravs da sua expresso verbal, como arma Brenda Danet, reiterando Mellinko, a lei no existiria sem a sua linguagem.10 Roger Shuy11, utilizando, como unidade de anlise o tpico discursivo, separou e mostrou ao jri quem disse o que a quem sobre que tpicos. Em caso por ele estudado, o FBI havia construdo provas, a partir de gravaes de interaes entre seus agentes e um acusado. Tais provas, extradas das gravaes, recorriam a estratgias discursivas que distorciam enunciados utilizando-se de7. HARRIS, Zellig S. Discourse Analysis Reprints. Haia: Mouton, 1963. 8. DUBOIS-CHALIER, Francoise. Elments de linquistique anglaise: syntaxe. Paris: Larousse, 1969. 9. DANET, Brenda. KERMISH, N. Courtroom Questioning: perspective. In: MASSERY, L. (ed.) Psycology and persuation in advocacy. Washington, D.C.: Ass. of trial lawyers of America, 1978. p. 412-441. PARKINSON, M. Language behaviour and courtroom success. (Paper presented at the international conference on language and social psycology) University of Bristol, London, (mimeo), jul. 1979. OBARR,W. M. Linguistic evidence: language, power and strategy in the courtroom. New York: Academic Press, 1982. DANET, Brenda. Language in the legal process. Law & Society Review, v.14, n.3, p. 445-564, 1980. 10. DANET, Brenda. Legal Discourse. In: DIJK, T. A .Van (ed.) Handbook of Discourse Analysis v.1. London: Academic Press, 1985. p. 273 11. SHUY, R.W.Topic as the unit of analysis in a criminal law case. In:TANNEN, D. (ed.) Analysing Discourse: Text and Talk. Georgetown University Round Table on Languages and Linguistics, 1981. p. 113-126. ______ Entrapment and the linguistic analysis of tapes. In: Third Annual Institute on Defence of Criminal Cases. Georgetown University. (mimeo). 1982.

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supergerieralizaes de sentido e omisso do contexto comunicativo para incriminar o acusado. A anlise de Shuy convenceu ao jri de que o acusado apenas respondia aos tpicos introduzidos pelo agente do FBI. O lingista mostrou que no havia intencionalidade nas asseres atribudas ao indivduo e, em alguns casos, ele no dissera o que armavam haver dito. O testemunho de SHUY, sob juramento, foi decisivo na absolvio do acusado. Nos EUA, a participao de lingistas como peritos nas cortes muito usual. Gumperz compareceu corte para provar a inocncia de um mdico lipino envolvido num caso de erro mdico de grande repercusso e divulgao da imprensa. O pesquisador levou corte uma anlise contrastiva entre o tagalog, lngua materna do mdico, e o ingls americano. A partir da gravao integral do depoimento do lipino, Gumperz assinala as marcas lingsticas nas quais h inuncia da estrutura da lngua nativa do acusado, no estabelecimento da referncia, e assinala que h estratgias de persuaso na interao entre o mdico e o agente do FBI12. John Gibbons dedica a terceira parte do livro Language and the law Lingstica Forense. O autor enumera dois modelos de classicao das evidncias lingsticas um que considera o canal no qual a prova est constituda: lngua falada (fala, escuta); lngua escrita (redao, leitura) e o outro que contempla os nveis da linguagem: grafo-fnicos; lexical; gramatical; discursivo13. A virada lingstica do sculo passado tem como pressuposto comum aos vrios domnios do saber humanos e sociais o fato de que a linguagem (em seus aspectos sintticos, formais, lgicos, estruturais, semnticos, discursivos) permite operaes como pensar, conhecer, deduzir; ou seja, as operaes supostamente mentais ou cognoscitivas oriundas da ciso entre pensamento e linguagem no passam12. GUMPERZ, J.J. Fact and inference in courtroom testemony. In: Language and social identity. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. p. 163-195. 13. GIBBONS, John. (ed.) Language and the law. London, New York: Longman, 1994.

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de mais um construto dicotomizante do positivismo. Assim, a linguagem no o instrumento precrio e imperfeito do qual o pensamento se serve para realizar as operaes de representao mental da realidade, a linguagem consiste na atividade de sujeitos sociais autnticos na dimenso da praxis. Donde, a importncia de proceder ao estudo da linguagem jurdica in vivo no evento comunicativo e no in vitro nas pginas de livros a priori construdas pelos doutrinadores. A linguagem jurdica no homognea nem unvoca, consiste em vrias realizaes dessa linguagem em diferentes tipos de textos produzidos por mltiplos autores e dirigidos a uma grande variedade de destinatrios. Na doutrina, por exemplo, o jurista que fala sobre o Direito, usando uma metalinguagem para emitir comentrios sobre conceitos e desenvolver teorias sobre a aplicao de princpios jurdicos. J na no processo decisrio, o juiz, em pleno uso de suas atribuies, declara atos vlidos, sentencia indivduos culpados ou inocentes. Na legislao, o legislador constri entidades jurdicas, distribuindo poderes, ordenando, permitindo ou proibindo comportamentos. O grupo de pesquisa Linguagem e Direito busca discutir a construo do discurso jurdico no mbito da doutrina, da jurisprudncia e nas diferentes situaes de interao na justia. Partindo do pressuposto de que o domnio da relao entre a linguagem e a atividade jurisdicional se inscreve numa prtica necessariamente transdisciplinar, estuda-se a linguagem como atividade sociocultural e seu funcionamento no Direito. Consideram-se tanto os estudos hermenuticos de interpretao dogmtica quanto as abordagens lingstico-discursivas nas quais, se destacam o papel das relaes interpessoais, o papel do sujeito produtor do discurso jurdico, as estruturas de participao e os contextos sociais imediatos que interferem nos diversos processos de produo e circulao de sentido das aes lingsticas desenvolvidas no mbito do funcionamento jurdico. Temos como meta promover uma ao acadmica transdisciplinar, medida que se discutem as situaes autnticas dos atos processuais na perspectiva da Filosoa 13

do Direito, da Sociologia do Direito e da Anlise do Discurso Jurdico, da Hermenutica Jurdica. Buscamos construir coletivamente procedimentos terico-metodolgicos para anlise dos textos produzidos pela e na justia, reconhecendo alguns impasses epistemolgicos e metodolgicos que inquietam a cultura jurdica contempornea. Em 2005, com edio de Maria Cristina Name e Paulo Cortes Gago (pesquisador do Grupo Linguagem e Direito), a revista da Universidade Federal de juiz de Fora: Veredas - Revista de Estudos Lingsticos publica um dos primeiros exemplares, em territrio nacional, acerca de pesquisa de lingistas que se dedicam ao estudo da linguagem em contextos jurdicos, contribuindo para que o ramo da lingstica forense, j sedimentado em outros pases, se consolide no Brasil. O nmero especial contou com artigos de: Malcom Coulthard; Virgnia Colares; Paulo Cortes Gago e Snia Bittencourt Silveira; Edson Carlos Romualdo; Leonardo Pinheiro Mozdzenski; Isa Mara da Rosa Alves, Rove Luiza de Oliveira Chishman e Paulo Miguel Torres Duarte Quaresma; Celina Frade; Maria Helena Cruz Pistori14. Este livro, que ora organizamos, rene trabalhos que operam diretamente com a interface Linguagem/ Direito, pois incorpora trabalhos de lingistas e de juristas, ou como j se diz aqui e acol jurislingista. A ao acadmica transdisciplinar se consolida por se constituir numa busca da compreenso da realidade jurdica articulando elementos que passam entre, alm e atravs das disciplinas, numa busca de dar conta da complexidade nessa interface Direito/ Linguagem/ Direito/ Linguagem... Os captulos esto distribudos em eixos temticos denidos a partir do o condutor ora terico, ora pelo tratamento metodolgico dado ao corpus ou at mesmo pela natureza do objeto de estudo. Assim distribumos as contribuies dos autores nos seguintes blocos: (I) losoa do direito; (II) terminologia e a lexicologia; (III) letramento e acesso justia; (IV) anlise do discurso escola francesa, (V) direito penal,14. Veredas - Revista de Estudos Lingsticos Universidade Federal de Juiz de Fora v. 9, n.1 e n.2, jan./dez. 2005. Juiz de Fora: Editora UFJF

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(VI) anlise crtica do discurso legal/ jurdico: entre a lei e doutrina; e (VII) hermenutica. No primeiro bloco - losoa do direito-, Albuquerque Filho (UNICAP) discute a tpica, desenvolvida por Theodor Viehweg (um precursor das teorias da argumentao jurdica e do discurso no Direito), como um estilo particular de pensar a racionalidade mediante argumentos, sem que ela esteja inserida num processo de sistematizao, nem seja identicada como um mtodo tpico. Esse captulo trata do uso da tpica em um processo dinmico e interacional com a ordem jurdica, considerando como uma das nalidades da tpica a funo complementadora na obteno do direito. O bloco seguinte - terminologia e a lexicologia - traz a contribuio de Massaretti Dias; Alves da Silva (UEM, Maring/PR) que tratam a terminologia jurdica no Brasil, a partir da anlise do verbete denncia, termo jurdico, em trs diferentes dicionrios luz dos princpios fundamentais que orientam a prtica terminolgica. Os autores constatam a falta de conhecimento terminolgico especializado nos dicionrios consultados, sugerindo a colaborao entre especialistas em Direito e termingrafos na elaborao de tais obras de referncia. Em (III) - letramento e acesso justia contamos com dois captulos. Tfouni; Monte-Serratn (FFCLRP-USP) denunciam que o discurso jurdico pretende igualar todos perante a Lei e impe noes de obrigao na origem do dizer. Dentro da idia de transparncia da linguagem, o discurso jurdico homogeneza os sentidos e ignora a desigualdade nas formaes sociais. Para as autoras, sujeitos com baixo grau de letramento so marginalizados e muitas vezes excludos desse discurso tcnico e altamente letrado. Os raciocnios lgico-verbais do discurso tcnico se opem ao discurso narrativo (embebido na subjetividade) do cidado comum. J o captulo enviado por Mozdzenski (UFPE/ ECPBG) realiza um estudo do modo como valores jurdicos so divulgados ao pblico leigo. O autor estuda o gnero discursivo cartilha jurdica, observando de que forma algumas estratgias textuais so usadas 15

pelos produtores das cartilhas para a construo social da realidade a partir dos chamados esteretipos jurdicos evocados pelos grupos dominantes, visando a legitimar as relaes hegemnicas, a ordem institucionalizada e a manuteno do poder em suas mos. O bloco (IV) - anlise do discurso escola francesa- tambm com dois captulos, conta com a colaborao de Silveira (UFRGS) e Nascimento (UNIFRA), ambos do Rio Grande do Sul. A primeira trata a incompletude da interpretao pela sua natureza, no no sentido de falta, mas no sentido de no abarcar o todo. A anlise de decises judiciais evidencia critrios interpretativos que deixam transparecer o sujeito inserido em determinada formao discursiva e constitudo pelo ideolgico que lhe inerente. Nascimento (UNIFRA) examina a posio-sujeito no discurso do defensor-pblico na defesa dos rus em um processo penal. O trabalho estuda recortes, medida que se vai incidindo num primeiro trabalho de anlise, retomando conceitos e noes em um procedimento de ir-e-vir constantemente na teoria, mediante ao processo penal. O objetivo do trabalho compreender a posio-sujeito no processo de (des) construo do discurso do sujeito defensor-pblico, em processo penal concluso com absolvio de um dos rus. No mbito do direito penal, bloco (V), Cucatto (Universidad Nacional de La Plata, Argentina) estuda os procedimentos mediante os quais se conguram lingisticamente os fatos nas sentenas penais de primeira instncia na Argentina (TSP). A autora procura demonstrar que sua puesta en escena e sua contextualizao a partir do ponto de vista do locutor informam acerca de diversas estratgias utilizadas pelos juzes para narrar, isto , para transformar qualitativamente experincias referidas a condutas dos cidados sobre as quais devero emitir, a posteriori, uma deciso judicial. Pistori (USP) investiga a argumentao-passional e sua correspondente eccia persuasiva num processo judicial. A autora busca, pois, o reconhecimento desses aspectos passionais no processo, por meio de recursos que aliam categorias da retrica e da semitica greimasiana. Na anlise, ressalta-se, ainda, a 16

importncia das paixes, como base para o reconhecimento dos objetos de valor em jogo no processo penal analisado. Nos captulos do bloco (VI) - anlise crtica do discurso legal/ jurdico: entre a lei e doutrina - Acioli (UNICAP) realiza a anlise crtica do Art. 5, LXVII, da Constituio Federal de 1988 sob o prisma da gura do depositrio judicial de bens penhorados, demonstrando que a interpretao dessa gura como espcie do gnero depositrio el, promove uma grave incoerncia na interpretao daquele preceito constitucional e inrma sua existncia no sistema jurdico, merc da raticao pelo Brasil da Conveno Americana de Direitos Humanos. Freitas (UNICAP) estuda os autos do processo n RE 569.056-3-Par Supremo Tribunal Federal que compreende no ser a Justia do Trabalho competente para executar a contribuio previdenciria incidente sobre o vnculo de emprego reconhecido judicialmente, permanecendo pendente a edio de smula vinculante, nesse sentido. O vis da anlise que a autora pretende dar justamente isolar, no julgamento desse recurso extraordinrio, aspectos no jurdicos que permeiam a deciso da mais alta Corte Judicial deste pas, inclusive no que pertine competncia, ou seja, parcela de poder do Judicirio Trabalhista que estaria sendo politicamente alado, malgrado desejo diverso do legislador constitucional e infraconstitucional. No espao (VII), destinado hermenutica, Calado (UNIVERSO/ UNICAP) explora a idia de um crime de porte ilegal de fala elaborada por Lenio Streck no estudo hermenutico da construo do Direito a partir dos estudos de Foucault e Bourdieu, de modo a vericar se a linguagem, de fato, considerada como algo margem do direito ao ponto de ser criminalizado. Ou seja, vericar se a dominao simblica que constri a realidade jurdica conforma os operadores jurdicos a tal ponto que a conduta desviante marginalizada. Nesse espao destinado hermenutica, por sugesto de vrios colegas, reproduzimos o artigo, de nossa autoria, Direito, produo de sentido e o regime de liberdade condicional, publicado em 2002, na Revista da 17

Ps-Graduao em Direito. Trata-se de um ensaio no qual discutimos a concepo de lngua e linguagem na rea jurdica a partir da remisso aos brocardos clara non sunt interpretanda e interpretatio cessat in claris. Identico nos manuais de hermenutica jurdica alguns princpios semnticos das teorias intencionalistas, do domnio dos estudos da linguagem, segundo as quais o autor axa um sentido unvoco ao seu texto como numa etiquetagem, comparando-os com abordagens que sugerem a noo de semntica ingnua e da noo metafrica regime de liberdade condicional ao processo de atribuio de sentidos. Finalmente, proponho a ampliao da discusso interdisciplinar entre analistas crticos do discurso, semiticos do Direito e hermeneutas, proporcionando novos olhares luz de alguns pressupostos epistemolgicos na perspectiva da pragmtica lingstica que minimizam as conseqncias jurdicas da noo de texto, considerado como um produto (escrito) pronto e acabado com signicado imanente, independente do contexto e funcionamento discursivo no qual teve origem15. Este livro resulta da ao conjunta do Mestrado em Direito da Universidade Catlica de Pernambuco (UNICAP), Grupo de Pesquisa Linguagem e Direito (Plataforma Lattes do CNPq) e Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6 Regio (ESMATRA-VI).

15. COLARES,Virgnia. Direito, produo de sentido e o regime de liberdade condicional. Revista da Ps-Graduao em Direito da UNICAP. , v.1, p.207 - 249, 2002.Tambm disponvel em: http://www.jfce.gov.br/internet/esmafe/materialDidatico/documentos/ discursoJuridicoDecisao/09-direitoProducaoSentidos-VirginiaColares.pdf. Acesso em 28 de ago. de 1010. Alm de constar do Portal da Associao de Analistas do Discurso (ALED): http://www.portalaled.com/node/176. Acesso em 28 de ago. de 2010.

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REFERNCIASCAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso Justia . Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris, 1988. COLARES, Virgnia. Direito, produo de sentido e o regime de liberdade condicional. Revista da Ps-Graduao em Direito da UNICAP. , v.1, p.207 - 249, 2002. ______. Direito, produo de sentido e o regime de liberdade condicional. disponvel em: http://www.jfce.gov.br/internet/esmafe/materialDidatico/documentos/discursoJuridicoDecisao/09-direitoProducaoSentidos-VirginiaColares.pdf . Acesso em 28 de ago. de 1010. ______. Direito, produo de sentido e o regime de liberdade condicional. Portal da Associao de Analistas do Discurso (ALED): http:// www.portalaled.com/node/176. Acesso em 28 de ago. de 2010. COULTHARD, Malcolm. An Introduction to Discourse Analysis. London: Longrnan, 1977. ______. JOHNSON, Alison. An introduction to forensic linguistics: language in evidence. New York: Routledge, 2007. DANET, Brenda. Language in the legal process. Law & Society Review, v.14, n.3, p. 445-564, 1980. ______. Legal Discourse. In: DK, T. A . Van (ed.) Handbook of Discourse Analysis v.1. London: Academic Press, 1985. ______ . KERMISH, N. Courtroom Questioning: perspective. In: MASSERY, L. (ed.) Psycology and persuation in advocacy. Washington, D.C.: Ass. of trial lawyers of America, 1978. p. 412-441. DUBOIS-CHALIER, Francoise. Elments de linquistique anglaise: syntaxe. Paris: Larousse, 1969. GIBBONS, John. (ed.) Language and the law. London, New York: Longman, 1994. 19

GUMPERZ, J.J. Fact and inference in courtroom testemony. In: Language and social identity. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. p. 163-195. HARRIS, Zellig S. Discourse Analysis Reprints. Haia: Mouton, 1963. MELLINKOFF, David. The language of the law. Boston: Little Brown, 1963. ______. Mellinkos Dictionary of American Legal Usage. 2010. OBARR, W. M. Linguistic evidence: language, power and strategy in the courtroom. New York: Academic Press, 1982. PARKINSON, M. Language behaviour and courtroom success. (Paper presented at the international conference on language and social psycology) University of Bristol, London, (mimeo), jul. 1979. REALE, Miguel. Lies Preliminares de Direito. 12. ed. So Paulo: Saraiva, 1985. SHUY, R. W. Topic as the unit of analysis in a criminal law case. In: TANNEN, D. (ed.) Analysing Discourse: Text and Talk. Georgetown University Round Table on Languages and Linguistics, 1981. p. 113-126. ______ Entrapment and the linguistic analysis of tapes. In: Third Annual Institute on Defence of Criminal Cases. Georgetown University. (mimeo). 1982. Veredas - Revista de Estudos Lingsticos Universidade Federal de Juiz de Fora v. 9, n.1 e n.2, jan./dez. 2005. Juiz de Fora: Editora UFJF

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I FILOSOFIA DO DIREITOA TPICA E SUA RELAO COM A ORDEM JURDICAJos Antonio de Albuquerque Filho

A TPICA E SUA RELAO COM ORDEM JURDICAJos Antonio de Albuquerque Filho1 [email protected]

INTRODUOAs teorias da argumentao jurdica surgiram aps a segunda metade do sculo XX, tendo como contexto histrico o Ps-guerra. A idia de racionalidade adotada nessa poca era a instrumental, e o mtodo pr-ordenado direcionava toda a construo do conhecimento cientco. O surgimento das teorias argumentativas do direito teve como nalidade a no-aceitao dos postulados formais adotados pelo mtodo. O caminho a ser trilhado no era mais a sistematizao do conhecimento, da deduo lgica ou do pensamento cartesiano. O marco para o surgimento das teorias da argumentao jurdica foi o trmino da Segunda Guerra Mundial, tendo como precursor Theodor Viehweg, com sua obra Tpica e Jurisprudncia, publicada em 1953. Theodor Viehweg ao analisar a tpica a deniu como uma tcnica de pensamento problemtico.2 A idia de tcnica est mais ligada a um estilo utilizado pelo autor do que a adoo de um determinado mtodo. Viehweg, quando ide1. Mestrando em Direito pela Universidade Catlica de Pernambuco (UNICAP). Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Maurcio de Nassau. Ocial de Justia do Tribunal de Justia do Estado de Pernambuco. 2. VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Trad. Trcio Sampaio Ferraz Jnior. Braslia: Departamento de Imprensa Nacional, [1953], 1979, p. 33

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alizou a tpica, no associou a mesma a um modelo especco, no vinculando sua tcnica a qualquer pensamento lgico-dedutivo.3 Nesse sentido, o presente artigo visa a abordar a tpica, desenvolvida por Theodor Viehweg, como um estilo de pensar a racionalidade mediante argumentos, sem que a mesma esteja inserida em um processo de sistematizao ou ser identicada como um mtodo tpico. Buscaremos entender a tpica em um contexto jurdico amplo, constatando que ela pode ter funo complementadora na obteno do direito, utilizando-se o magistrado de uma interpretao teleolgica. Para tanto, abordaremos a tpica no interior do Ordenamento Jurdico, especicamente inserida no sistema externo ou aberto, ao lado dos valores no escritos.

TPICA: EM BUSCA DE UMA RACIONALIDADE ARGUMENTATIVANa Antiguidade Clssica, pensava-se que o conhecimento era fornecido de maneira a priori,4 ou seja, um conhecimento prvio a qualquer ato de conhecimento. O conhecimento era confundido com a idia de verdade, uma verdade pronta e acabada, vinculada a idia de perfeio. O homem seria sujeito verdade imposta e quem criava esta verdade era um ser perfeito: Deus, [...] que funcionava como

3. No prefcio da edio brasileira da obra Tpica e Jurisprudncia, de Theodor Viehweg, Trcio Sampaio Ferraz Jr. propugnava que a tpica no propriamente um mtodo, mas um estilo. Idem, ibidem, p. 3. 4. [...] o a priori um dado, ou seja, algo que se pretende verdadeiro independentemente da existncia de um ato de conhecimento que o conrme e/ou o valide. MAIA, Alexandre da. Da epistemologia como argumento ao argumento como racionalidade jurdica por uma dogmtica jurdica da multiplicidade. 2001. 215 f. Tese (Doutorado em Direito) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001, p. 32.

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uma instncia superior que daria a verdade ao homem.5 O papel do ser humano era de resignar-se verdade. Todas as leis humanas se alimentam de um divino. A base de todo o conhecimento dessa poca era ontolgico.6 Ento, at a Idade Mdia, poderamos constatar que na losoa a ontologia era teolgica, ou seja, o conhecimento, como vimos, era originado de Deus. No plano poltico, o monarca alia-se religio para adquirir poder. No plano jurdico, o jusnaturalismo teolgico buscava fundamentar o direito a partir de que o nico fundamento era Deus. A maneira do conhecimento do homem era atravs da Igreja. Se tudo vem de Deus como que o homem pode contrariar essa verdade. A Igreja funcionava como um ltro entre o homem e Deus. A partir do sculo XVII, devido ao processo de secularizao7 da vida, que levou o jusnaturalismo a afastar suas razes teolgicas, buscando os seus fundamentos de validade na identidade da razo humana, o homem comea a se sentir parte, sujeito de sua prpria histria e questionava: como pensar que no existe o elemento humano na produo do conhecimento? O conhecimento vem de Deus ou existe um critrio de razo humana? O homem comea a pensar que existe um grau de racionalidade, chegando ao ponto de conhecer e falar diretamente com Deus e este com ele se for um homem puro de corao.85. Idem, ibidem, p. 32. 6. Segundo Alexandre da Maia, num contexto bastante simplicado, ontolgico seria aquele conhecimento que transmite a verdade atravs de conceituaes precisas e claras, que no admitem refutao. O autor no descarta outras formas possveis de se pensar a ontologia, embora utilizaremos neste artigo esta concepo. Idem, ibidem, p. 33. 7. Este termo secularizao foi retirado do livro do Professor Doutor Nelson Saldanha: Da Teologia Metodologia. Secularizao e Crise no Pensamento Jurdico (Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 1993). 8. MAIA, Alexandre da. Da epistemologia como argumento ao argumento como racionalidade jurdica por uma dogmtica jurdica da multiplicidade. 2001. 215 f. Tese (Doutorado em Direito) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001, p. 45.

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O conhecimento como verdade tem como base idia da razo. Surge no aspecto jurdico o racionalismo, que armava que a razo humana o limite aos postulados adotados pela Igreja. No plano poltico, o monarca no necessita mais de um respaldo da Igreja para dizer que ele pode mandar. Ele tem autolegitimao do poder atravs da razo. O conhecimento no mais ontolgico, a verdade agora pressupe o ato de conhecer. Houve uma ruptura entre o passado teolgico e a razo. Essa mudana paradigmtica ocorreu e, atravs dela, a crena deixou de ser em Deus, tendo a Igreja como instrumento, e passou a ser na racionalidade. O racionalismo se rmou e se consagrou atravs de postulados. A idia de racionalidade estava ligada na capacidade do homem e no seu conhecimento. O indivduo raciocinava atravs do seu intelecto, ou seja, produzindo e formulando enunciados lgicos, garantindo a segurana atravs de um mtodo de abordagem que seja objetivo. Nessa poca, no ano de 1637, Ren Descartes escreve sua obra Discurso do Mtodo. Enfatizava Descartes, em sua obra, que atravs do mtodo o conhecimento se expande, inserindo-se como ser no contexto de suas prprias idias.9[...] o trabalho de Descartes um marco na determinao de uma epistemologia que, apesar de inserir o homem como ator na construo da gnoseologia, formaliza o discurso a partir da demonstrabilidade e obscurece o debate da pluralidade e da axiologia no conhecimento10 9. DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. Trad. Elza Moreira Marcelina. Braslia: Editora Universidade de Braslia, [1637], 1985, p. 31-32. 10. MAIA, Alexandre da. Da epistemologia como argumento ao argumento como racionalidade jurdica por uma dogmtica jurdica da multiplicidade. 2001. 215 f. Tese (Doutorado em Direito) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001, p. 20.

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Podemos acrescentar tambm que adotar as idias da racionalidade seguir os padres elencados pelo mtodo. acreditar numa verdade baseada na demonstrao e na constante repetio. O homem pode buscar a verdade atravs do seu conhecimento, atravs da noo de racionalidade, que a repetio, a demonstrao e o mtodo, que foi chamado de cientco11. Os postulados da racionalidade instrumental foram utilizados durante o sculo XIX e serviram como base para a formalizao do direito. Toda essa estrutura epistemolgica consolidou o mtodo positivista de aferio do direito. Kelsen adotando toda essa estruturao formal constri a Teoria Pura do Direito. Na segunda metade do sculo XX, esse modelo de racionalidade (racionalidade instrumental) comea a sumir. O contexto histrico o Ps-guerra. Esse perodo marcou o incio do surgimento de novas teorias colocando em questo os fundamentos instrumentais da racionalidade. Iniciou-se em meados do sculo XX um deslocamento radical do eixo da discusso metodolgica, at ento xado sobre o formalismo sistemtico de ndole lgico-dedutivo em que repousava o positivismo jurdico.12 Nesse sentido, o mtodo, at ento consagrado, no resolvia mais as pretenses da sociedade, que ansiava por mudanas. Segundo Margarida Camargo, o mtodo sistemtico no correspondia mais as perplexidades e inseguranas causadas por um mundo de novos e variados valores [...].13 A mudana ocorrida a partir da dcada de 50 trouxe bastante repercusso na produo do conhecimento no direito, e o mtodo cartesiano11. Sobre a relevncia da obra de Descartes alm da consolidao da Filosoa moderna, Alexandre da Maia acrescenta o papel do homem como ator do conhecimento. Idem, ibidem, p. 87. 12. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenutica e argumentao: uma contribuio ao estudo do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 139. 13. Camargo argumenta ainda que a lgica formal, de feio cartesiana, no dava mais resposta satisfatria complexidade das questes jurdicas. Idem, ibidem, p. 139-140.

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ou sistemtico no respondia mais ao modelo posto e aos anseios da sociedade. Aps a Segunda Guerra Mundial, percebe-se a necessidade de uma reestruturao nas bases do poder e do direito, modicando o paradigma da racionalidade.14 A idia de modicao do paradigma da racionalidade, defendida por Alexandre da Maia, questionada quando no houve de fato, nessa poca, uma ruptura capaz de ser constatada como uma quebra de paradigma. Podemos armar que ocorreu apenas uma mudana no modo de se pensar a racionalidade. A crena continuou na razo, seja ela instrumental ou argumentativa. Os lsofos comearam a questionar a busca da verdade atravs do mtodo pr-ordenado. preciso repensar a racionalidade. No existe verdade, sobretudo no direito, ou seja, quando se xa a verdade excluem-se outras formas de resolver o problema. Nenhum modelo nico pode determinar o que verdade. No h mais uma s racionalidade. H formas plurais de racionalidade, de possibilidades. No existe mais o caminho verdadeiro, mas o possvel.15 O novo caminho a ser perseguido enaltecer o argumento, fruto da pluralidade, ou seja, argumentos diferentes sendo caminhos possveis. Nesse sentido, podemos armar o surgimento das idias de Theodor Viehweg, por meio das quais ele, com seus estudos e pesquisas, resgata os referenciais da plausibilidade e da prudncia. A prudncia foi perdida em prol das formas de certeza e de verdade, em prol dos padres epistemolgicos do sculo XVII. Em busca de novos caminhos tericos, diante do contexto histrico do Ps-guerra, Viehweg faz uma releitura de Aristteles e comea a pensar um modelo atravs de um novo referencial, fazendo um resgate da prudncia14. MAIA, Alexandre da. Da epistemologia como argumento ao argumento como racionalidade jurdica por uma dogmtica jurdica da multiplicidade. 2001. 215 f. Tese (Doutorado em Direito) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001, p. 186. 15. Para Alexandre da Maia, a racionalidade argumentativa traz dentre os seus fundamentos a idia de que no existe verdade. Ou, se existe, ela no uma noo unvoca e acabada. Idem, ibidem, p. 128.

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perdida (dos gregos) e traz para 1953, a m de se pensar uma nova forma de racionalidade. As idias de mudana, aps a Segunda Guerra Mundial, buscavam reconhecer no direito as naturezas dialticas e argumentativas, base para uma construo da atividade discursiva e de todas as teorias surgidas aps 1953. Viehweg resgata a tpica, pea modular da retrica antiga,16 a partir de Aristteles com referncia ao pensamento apodtico e pensamento dialtico.Para Aristteles possvel elaborar duas espcies de raciocnio: o primeiro apodtico, partindo de uma demonstrao analtica (constante nos Primeiros Analticos) e o segundo consistindo em uma argumentao dialtica (constante nos Tpicos)17

O pensamento apodtico pressupe verdadeiro. Caracteriza-se esse pensamento quando obtemos uma concluso partindo de proposies analticas, cientcas, universais e verdadeiras. J o pensamento dialtico contrape o pensamento apodtico pressupondo uma pluralidade de formas de pensar. Indica o pensamento dialtico que no existe uma nica forma possvel de verdade. Logo, segundo Trcio Sampaio Ferraz Jnior,

as demonstraes da cincia seriam apodticas, em oposio s argumentaes retricas, que so dialticas. Dialticos so os argumentos que se concluem a partir de premissas, aceitas pela comunidade como parecendo verda16. ROESLER, Claudia Rosane. Theodor Viehweg e a cincia do direito: tpica, discurso, racionalidade. Florianpolis: Momento Atual, 2004, p. 14. 17. TEIXEIRA, Joo Paulo Allain. Racionalidade das decises judiciais. So Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 11.

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deiras. A dialtica seria, ento, uma espcie de arte de trabalhar com opinies opostas, que instaura entre elas um dilogo, confrontando-as, no sentido de um procedimento crtico. Enquanto a analtica estaria na base da cincia, a dialtica estaria na base da prudncia.18

A idia de discutibilidade e o pensar atravs de problemas constituram a base dos estudos desenvolvidos por Viehweg. As suas referncias ao pensamento problemtico como instrumento ou ponto de partida para uma discusso exigiram a adoo de um estilo ou tcnica especial que foi denominada de tpica. Viehweg, como foi visto na introduo deste artigo, considera a tpica como uma techn do pensamento que se orienta para o problema.19 A tpica pode ser considerada como uma tcnica ou estilo de pensar atravs de problemas. um modo de pensar, problemtico, que nos permite abordar problemas, deles partir e neles culminar.20 A tpica como estilo serve para construir raciocnios sobre os problemas, assinalar as sugestes, apontar as opinies aceitas ou possveis sobre os argumentos, com a nalidade de desvendar caminhos.2118. FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 4. ed. So Paulo: Atlas, 2003. p. 327. Neste sentido, preceitua Teixeira: o processo demonstrativo consiste em um processo de inferncia a partir de premissas verdadeiras, enquanto que a argumentao dialtica parte de premissas verossmeis. TEIXEIRA, Joo Paulo Allain. Racionalidade das decises judiciais. So Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 11. 19. VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Trad. Trcio Sampaio Ferraz Jnior. Braslia: Departamento de Imprensa Nacional, ]1953], 1979, p. 33. 20. FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 4. ed. So Paulo: Atlas, 2003, p. 328. 21. Para Claudia Roesler, a tpica como estilo de pensar vinculada ao pensamento dialtico. ROESLER, Claudia Rosane. Theodor Viehweg e a cincia do direito: tpica, discurso, racionalidade. Florianpolis: Momento Atual, 2004, p. 115.

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Viehweg resgata a idia de prudncia e desenvolve a tpica a partir da peculiaridade do problema. O modelo de verdade no mais utilizar frmulas prontas ou mtodos, mas pensar em diversas formas possveis de verdade, visando soluo do conito.[...] Caso utilizaremos a acepo de verdade, devemos acrescentar a multiplicidade de sentidos da verdade e a mutao que pode existir em relao s acepes hoje consideradas verdadeiras.22

Logo, se existe uma verdade, a mesma est ligada a predominncia dos problemas. Pensar o problema pensar caminhos possveis, segundo o qual a deciso no fruto de uma aplicao silogstica ao caso concreto (silogismo normativo). A idia de que o direito interpretado e aplicado silogisticamente insuciente. A construo do direito no mais se completa numa aplicao silogstica. Os apontamentos para tais fragilidades so debatidos e assinalados pelos doutrinadores e operadores do direito, os quais armam que a norma jurdica no representa o direito em sua plenitude e no abrange toda a complexidade das relaes sociais, bem como, segundo Srgio Nojiri, os motivos da deciso (as premissas) virem, na mente do juiz, posteriormente ao prprio decisum (a concluso) [...].23 Nesse sentido, os magistrados no ato de julgar orientam-se pelos seus registros de vida, suas crenas e valores. Podemos armar que o juiz primeiro extrai de suas crenas e de seus sentimentos a deciso do conito, e somente aps a formao da soluo da lide em seu convencimento, busca a fundamentao jurdica de sua deciso.22. MAIA, Alexandre da. Da epistemologia como argumento ao argumento como racionalidade jurdica por uma dogmtica jurdica da multiplicidade. 2001. 215 f. Tese (Doutorado em Direito) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001, p. 128. 23. NOJIRI, Srgio. O dever de fundamentar as decises judiciais. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 85.

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Claudia Roesler no descarta a possibilidade de utilizao do silogismo normativo ao armar que o fundamental que se encontre a melhor soluo possvel para o problema e por isso a deduo s poder ser utilizada enquanto servir a esse propsito.24 Na prtica forense o que ocorre diferente da deduo silogstica, pois, ao julgar, o juiz constri a deciso de modo inverso, intuindo primeiro a concluso a que deva chegar para depois buscar regressivamente as premissas.25 A busca da melhor alternativa ou melhor soluo possvel para a resoluo de problemas est ligada idia de topoi. Existem innitos topoi que orientam na discusso dos problemas. Entende-se por topoi, na obra de Viehweg, pontos de vista utilizveis e aceitveis em toda parte, que se empregam a favor ou contra o que conforme a opinio aceita e que podem conduzir verdade.26 Acrescenta o autor que a funo dos topoi, tanto gerais como especiais, consiste em servir a uma discusso de problemas.27 Partindo do problema e tendo a conscincia de que o mesmo pode ser resolvido atravs de vrias respostas, de vrias possibilidades, busca-se solucion-lo da maneira mais adequada. Diante do problema existente, a tpica surge como um instrumento ou uma tcnica de orientao para a nalidade pretendida, ou seja, encontrar o caminho, o norte, solucionando o problema.

24. ROESLER, Claudia Rosane. Theodor Viehweg e a cincia do direito: tpica, discurso, racionalidade. Florianpolis: Momento Atual, 2004, p. 154. 25. SYTIA, Celestina Vitria Moraes. O direito e suas instncias lingsticas. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 54. 26. Esta a denio de topoi, segundo Viehweg, de Aristteles. VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Trad. Trcio Sampaio Ferraz Jnior. Braslia: Departamento de Imprensa Nacional, [1953], 1979, p. 26-27. 27. Idem, ibidem, p. 38.

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Para Roesler, a nalidade dos topoi, utilizados como pontos de partida28, como lugares comuns29, , pois, a de orientarem o pensamento na busca de solues para problemas.30 Os topoi - a viga mestra do pensamento de Viehweg, representando os instrumentos que auxiliam o raciocnio dialtico que se estabelece em busca da soluo.31 Para a tpica no existem caminhos fechados, todos so possveis. Nesse contexto, o problema que vai direcionar o argumento a ser utilizado para a sua soluo, instrumentalizando-se atravs dos topoi. Nesse contexto, os aspectos constitutivos da tpica so: a) o objeto e fator desencadeante do processo: o problema, a aporia; b) o instrumento com que se opera: os topoi; c) o tipo de atividade em que tal proceder se manifesta: a discusso de problemas, a busca e exame de premissas por meio do discurso, da argumentao.32 Ao prefaciar a obra Tpica e Jurisprudncia, de Viehweg, Ferraz Jnior especicou de forma objetiva o sentido no Direito dos topoi como28. ROESLER, Claudia Rosane. Theodor Viehweg e a cincia do direito: tpica, discurso, racionalidade. Florianpolis: Momento Atual, 2004, p. 118. 29. Idem, ibidem, p. 155. 30. Idem, ibidem, p. 153. 31. AGUIAR, Roger Silva. O positivismo e o Ps-Positivismo na Criao e Aplicao do Direito Civil Brasileiro. In: MELLO, Cleyson M. (Coord.). Novos direitos: os paradigmas da ps-modernidade. Niteri: Impetus, 2004, p. 158. 32. GARCIA AMADO, apud DUARTE, cio Oto Ramos. Teoria do discurso e correo normativa do direito: aproximao metodologia discursiva do direito. 2. ed. So Paulo: Landy Editora, 2004, p. 87. Para Viehweg, o termo aporia designa precisamente uma questo que estimulante e iniludvel, designa a falta de um caminho a situao problemtica que no possvel eliminar.VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Trad. Trcio Sampaio Ferraz Jnior. Braslia: Departamento de Imprensa Nacional, [1953], 1979, p. 33.

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interesse, interesse pblico, boa-f, autonomia da vontade, soberania, direitos individuais, legalidade, legitimidade.33 Mesmo adotando a tpica como um estilo de se pensar atravs de problemas e no tendo a pretenso de sistematizar sua teoria, Viehweg recebeu crticas, das quais citamos duas: a) a primeira delas arma que a tpica possui indenies quanto a sua forma de aplicao, sendo ela uma noo vaga do que signica o pensamento problemtico e da forma de instrumentalizar os problemas em busca das solues. O problema dessa crtica que palavras como: forma, modelo, mtodo, traduzem tudo o que a tpica no , ou seja, no faz parte de sua natureza a noo de moldura, de fechamento ou de sistema. b) a segunda crtica refere-se utilizao dos variados catlogos de topoi empregados como argumentos, sem pretenso de hierarquia ou preferncia entre eles. Mais uma vez, essa crtica tpica retoma de certa maneira a idia de sistematizao. Nesse sentido, o que se entende por problema segundo Viehweg rebate a idia de sistema, quando ele arma que a predominncia do problema atua no sentido de os conceitos e as posies que se vo desenvolvendo no poderem ser submetidos a uma sistematizao.3433. Prefcio da edio brasileira da obra Tpica e Jurisprudncia, de Theodor Viehweg. VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Trad. Trcio Sampaio Ferraz Jnior. Braslia: Departamento de Imprensa Nacional, [1953], 1979, p. 04. 34. Idem, ibidem, p. 50. Neste sentido, Cludia Roesler arma que parece-nos importante e interessante partimos da obra de Viehweg para realizarmos nossa anlise do saber jurdico porque esse autor, ao investig-lo, sustentou a tese de que sua estrutura afeioava-se mais tpica pea modular da retrica do que sistematizao dedutiva que estava na base do modelo moderno de cincia. ROESLER, Claudia Rosane. Theodor Viehweg e a cincia do direito: tpica, discurso, racionalidade. Florianpolis: Momento Atual, 2004, p. 02. Claudia Roesler refora este entendimento quando acrescenta que Viehweg [...] no pretendeu e nem se colocou como tarefa apresentar um sistema que respondesse de modo cabal aos problemas por ele levantados. Idem, ibidem, p. 05.

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Para quem defende a idia de sistema, hierarquia, respeito aos precedentes, pensamento sistemtico, a crtica aos argumentos utilizados por Viehweg esperada, embora o prprio autor no desejasse construir um sistema ao desenvolver seus argumentos. A tpica para Viehweg est mais para um estilo, cuja base terica no teve a pretenso de ser sistematizada. Nesse sentido, Cludia Roesler entende que a postura de Viehweg foi terica denida, sem se preocupar em construir um sistema que servisse de resposta aos problemas por ele levantados.35 Logo, poderemos armar que, quando o assunto a ser esboado for tpica, constataremos de plano que a mesma assistemtica, e esse aspecto se apresenta na obra de Viehweg como uma maneira de se diferenciar de todas as outras teorias sistemticas, bem como, as teorias da argumentao jurdica que surgiram aps a dcada de 50.36 No entendimento de Trcio Ferraz, qualquer tentativa de sistematizao da tpica, no que se refere aos topoi, impossvel, pois descaracteriza a sua essncia, a sua prpria natureza.37 Se zermos uma leitura da tpica por Claus-Wilhelm Canaris, observaremos que o mesmo critica a idia da tpica desenvolvida por Viehweg em defesa do sistema, do pensamento sistemtico. Canaris35. ROESLER, Claudia Rosane. Theodor Viehweg e a cincia do direito: tpica, discurso, racionalidade. Florianpolis: Momento Atual, 2004, p. 05. 36. Cludia Roesler estudou com profundidade a obra e os escritos de Theodor Viehweg e constatou que as caractersticas, portanto, da obra de Theodor Viehweg, zeram com que esta se diferenciasse desde o incio da de outros autores cuja preocupao tenha sido ordenar sistematicamente suas concluses. Ao invs de um tratamento linear e explicativo dos temas, inclusive pelo fato de muitos deles terem sido tratados como ensaios, encontramos um conjunto de referncias e um desenvolvimento parcial, cuja tarefa e muito mais a de apresentar um problema do que a de fornecer uma resposta exaustiva. Idem, ibidem, p. 06. 37. Como tcnica de pensamento, a tpica (material e formal) leva a argumentao judicial a um jogo eminentemente assistemtico, em que se tem observado de rigor lgico, impossibilidade de reduo das decises a silogismos etc. FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 4. ed. So Paulo: Atlas, 2003, p. 331.

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reconhece que o Direito em sua essncia surgiu sistemtico e a tpica funciona como meio auxiliar perante a falta de valores legais bastantes, em especial nos casos de lacunas.38 Discutiremos adiante as opinies defendidas por alguns autores que defendem os argumentos da tpica associados idia de um sistema.

UMA LEITURA DA TPICA E A SUA RELAO COM O SISTEMA TELEOLGICO NA OBTENO DO DIREITO.No pretendemos neste artigo modicar o entendimento originrio que Viehweg adotou ao trabalhar com a tpica, caracterizando-a como um mtodo tpico ou tentando de fato construir uma teoria da argumentao jurdica, baseada numa estrutura sistemtica. Trabalhamos em paralelo a tpica e a idia de sistema aberto (sistema externo), com a nalidade de observar como a tpica pode colaborar na aplicao do direito, inserida num contexto jurdico amplo, que chamaremos de Ordenamento Jurdico, composto do sistema interno e do sistema externo. Somos adeptos do pensamento sistemtico, medida que o sistema interno ou normativo se utiliza das interpretaes gramatical, lgica, histrica e sistemtica para resolver os diversos problemas de forma adequada e justa. Adotamos tambm a idia de sistema como realizao de valores, partindo de uma interpretao teleolgica, cuja ordem jurdica a amplitude (no consideramos nesse aspecto apenas o sistema normativo). Logo, o sistema teleolgico, e preferimos chamar dessa forma, o que prevalecer para fazer a devida associao com a tpica.38. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemtico e conceito de sistema na cincia do direito. Trad. A. Menezes Cordeiro. 3. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2002. p, 271.

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Vimos que Viehweg no teve nenhuma pretenso terica em sistematizar a tpica, e esse o ponto fundamental de sua obra. Armava ele que a tpica um procedimento de busca de premissas39, mostra como se acham as premissas; a lgica recebe-as e as elabora.40 Viehweg tambm no descarta uma possvel relao da tpica com o sistema, no qual a mesma tem acesso a esse tecido jurdico41 atravs da interpretao, da aplicao do direito, do uso da linguagem natural e da xao dos fatos sub judice.42 Nesse contexto, para alguns autores, como Maria Helena Diniz, a tpica est associada idia de sistema aberto, relacionando-se com o sistema normativo de forma fragmentria, elstica na soluo adequada do problema.43 O sistema aberto ou sistema externo, j delimitando que o sistema interno seria o normativo (lgico-axiomtico), em nossa opinio, est inserido no sistema teleolgico.39. Viehweg resgatou esta idia de procedimento em busca de premissas de Ccero. VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Trad. Trcio Sampaio Ferraz Jnior. Braslia: Departamento de Imprensa Nacional, [1953], 1979, p. 39. 40. Idem, ibidem, p. 40. 41. Entende-se por tecido jurdico a ordem jurdica desvinculada de qualquer idia de sistema no sentido lgico. antes uma indenida pluralidade de sistemas, cujo alcance muito diverso [...]. Idem, ibidem, p. 80. 42. Idem, ibidem, p. 80-83. Utilizando uma interpretao particular do que escreveu Viehweg, Roesler arma que nessa correlao entre problema e sistema, a nfase pode recair num ou noutro. Se a nfase dada ao sistema, opera-se uma seleo de problemas, descartando-se aqueles insolveis dentro dos quadros do sistema como problemas aparentes. Se a nfase dada ao problema, busca-se um sistema que permita encontrar-lhe uma soluo, operando-se uma seleo de sistemas. ROESLER, Claudia Rosane. Theodor Viehweg e a cincia do direito: tpica, discurso, racionalidade. Florianpolis: Momento Atual, 2004. p, 145. 43. A tpica pressupe sempre a considerao dinmica do direito e a adoo da idia de sistema aberto, exigindo a sua elasticidade para poder oferecer solues satisfatrias que integram sistemtica jurdica. DINIZ, Maria Helena, Compndio de introduo cincia do direito. 10. ed. So Paulo: Saraiva, 1998, p. 480.

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Diante do problema jurdico, o sistema teleolgico (sistema interno + sistema externo) surge para solucion-lo. neste sentido, de problema jurdico em sentido amplo, que a tpica se relaciona com o sistema (teleolgico). Viehweg, como j vimos, ao desenvolver a tpica no estava preocupado em nalizar uma teoria, atribuir cnones ou regras s suas idias. Ele deniu a tpica como assistemtica. Destarte, a tpica originariamente no pertence ao sistema, mas ocorre, quando utilizada pelo magistrado, dentro do prprio sistema. Em outras palavras, a tpica no est inserida dentro do sistema interno. Este com suas prprias normas jurdicas, utilizando das interpretaes gramatical, histrica, lgica e sistemtica, tem como objetivo buscar a soluo do problema apresentado. Acontece que, mesmo se utilizando dos diversos tipos de interpretaes, algumas vezes, o prprio magistrado no encontra sadas para a resoluo do conito. Diante desse fato, o juiz de direito busca no sistema externo, atravs de uma interpretao teleolgica, os caminhos possveis para a estabilizao da demanda (soluo do problema). nesse campo de atuao, no nosso entendimento, que o magistrado pode se utilizar da tpica. Segundo Canaris,enquanto a interpretao a partir do sistema externo apenas traduz, em certa medida, o prolongamento da interpretao gramatical, a argumentao baseada no sistema interno, exprime o prolongamento da interpretao teleolgica44

O campo das valoraes no escritas se situa no sistema externo, compondo o Ordenamento Jurdico. A tpica um dos instrumentos44. Segundo Canaris, teleolgica no sentido mais amplo. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemtico e conceito de sistema na cincia do direito. Trad. A. Menezes Cordeiro. 3. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2002, p. 159.

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que tambm compe este universo aberto que, para Canaris, tem por nalidade auxiliar nos casos de lacunas da lei45, na qual o direito positivado no contenha valoraes para a integrao.46 Na mesma linha de raciocnio, Lcio Grassi faz sua crtica tpica armando que ela peca por subestimar o valor da lei, da dogmtica jurdica e dos precedentes, no apresentando nada alm da discusso em si como instncia de controle.47 e defende que os pensamentos sistemtico e tpico no so totalmente opostos, mas se complementam dentro do Ordenamento Jurdico48. Desse modo, quando o sistema normativo (sistema interno) for insuciente para resolver o conito, no caso de lacunas da lei ou buscando o magistrado outras sadas que no seja a norma jurdica para a soluo do problema, poder utilizar-se do sistema externo (os valores e a tpica), onde encontrar os argumentos necessrios para a realizao do direito. As possveis sadas, acima referidas, exigem do magistrado uma interpretao criativa na aplicao e realizao do direito, observando sempre o caso concreto.

45. Canaris arma que uma das possibilidades remanescentes da tpica, que tambm sua funo signicativa, a sua utilizao como meio auxiliar perante a falta de valores legais. Idem, ibidem, p, 269-270. 46. Idem, ibidem, p. 273. 47. GOUVEIA, Lcio Grassi. Interpretao criativa e realizao do direito. Recife: Bagao, 2000, p. 72-73. 48. Para Lcio Grassi, os pensamentos sistemtico e tpico no so opostos exclusivistas, nem esto isolados um em frente ao outro, mas se complementam e se interpenetram. Idem, ibidem, p. 175. Nestes termos Canaris arma que os pensamentos tpico e sistemtico no so opostos exclusivistas, mas antes se complementam mutuamente. Assim, eles no esto, como talvez possa ter resultado das consideraes feitas at aqui, isolados um frente ao outro, antes se interpenetram mutuamente. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemtico e conceito de sistema na cincia do direito. Trad. A. Menezes Cordeiro. 3. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2002, p. 273.

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Os valores ou princpios no escritos, juntamente com a tpica, podem ser utilizados pelo juiz de direito como forma ativa de interpretar o direito, expandindo o seu alcance. Essa atitude do aplicador do direito pode ser descrita como ativismo judicial. Podemos armar que como a tpica, o ativismo judicial um estilo utilizado pelo magistrado em busca da soluo do conito de interesses. No se pode duvidar da importncia da tpica, sendo ela assistemtica ou associada idia de um sistema teleolgico, apresentandose como funo integradora do direito ou de tcnica argumentativa utilizada pelo magistrado. Para Manuel Atienza, a obra de Viehweg possui sua importncia:a necessidade de raciocinar tambm onde no cabem fundamentaes conclusivas, e a necessidade de explorar, no raciocnio jurdico, os aspectos que permanecem ocultos se examinados de uma perspectiva exclusivamente lgica.49

O que vericamos que cada crtico tem o seu posicionamento sobre a tpica, de acordo com as prprias convices. Mas importante observar o momento histrico de cada posicionamento. A tpica foi criada num perodo crtico, no qual os anseios e o desejo por mudana eram almejados. Dentro do contexto histrico do Ps-guerra, havia a necessidade de trilhar por caminhos diferentes, levantar discusses sobre a tica, buscar uma nova racionalidade (argumentativa). Esse desejo por mudana era buscado intensamente por Viehweg, com a tpica, por Perelman, com a retrica, por Toulmin, com a dialtica, por Alexy, com o discurso moral etc.49. ATIENZA, Manuel. As razes do direito: teorias da argumentao jurdica. 3. ed. Trad. Maria Cristina Guimares Cupertino. So Paulo: Landy Editora, 2003, p. 57.

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Sobre a idia da criao de uma nova racionalidade argumentativa, alguns autores questionam quantos modelos de racionalidade existem ou se na verdade no h mesmo uma saturao no sentido de racionalidade, e sempre defendem a criao de uma nova racionalidade, fundamentada numa nova teoria, que acaba adotando os mesmos postulados, mtodos da racionalidade instrumental, como ocorreu, por exemplo, com as teorias da argumentao jurdica. Logo, cada nova teoria desenvolvida trazia consigo as idias de uma nova racionalidade do direito fundamentada nos argumentos. O objetivo dessa nova racionalidade era estabelecer um novo paradigma, modelo este que criticava a adoo de mtodos ou instrumentos para justicar o direito. Seja pelo resgate da prudncia, da retrica, da plausibilidade, da possibilidade, da pluralidade ou dos conceitos ticos, as teorias da argumentao, segundo Alexandre da Maia, incorrem quase sempre na identicao e caem no mesmo abismo epistemolgico que tanto criticaram.50 Para corroborar a sua armao, Alexandre da Maia aponta como exemplo a teoria desenvolvida por Alexy, onde o mesmo se utiliza de frmulas, argumentos e regras de justicaes internas e externas, com o intuito de elaborar uma teoria da argumentao jurdica capaz de oferecer critrios (discurso moral) para avaliar se um determinado juzo de valor racionalmente justicvel51.

50. Alexandre da Maia acrescenta que todas as teorias da argumentao apesar de buscarem uma determinao do direito por uma nova racionalidade, esbarram, em muitos momentos, em postulados da episteme cartesiana que tanto criticaram, direta ou indiretamente. MAIA, Alexandre da. Da epistemologia como argumento ao argumento como racionalidade jurdica por uma dogmtica jurdica da multiplicidade. 2001. 215 f. Tese (Doutorado em Direito) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001, p. 12-19. 51. A racionalidade para Alexandre da Maia plural, no havendo receitas que dem a ela uma certeza cartesiana, totalmente incompatvel com a pluralidade e a controvrsia. Idem, ibidem, p. 191. Com este entendimento o autor defende a multiplicidade da dogmtica situada na transio da episteme fronesis no direito. Idem, ibidem, p. 196.

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Defendemos que a crtica feita por Alexandre da Maia discutvel com relao Viehweg, em especial, em virtude do contexto histrico vivido por ele e o modo como rompeu com o modelo de racionalidade (instrumental) foi diferente, pois o mesmo quando desenvolveu a tpica no teve a pretenso de construir uma teoria da argumentao jurdica como um modelo pronto e acabado. Desse modo, afastamos a crtica daqueles que armam que a tpica no deixa de ser uma tentativa metodolgica, desconhecendo, assim, da obra de Viehweg, que na sua origem concebeu a tpica desvinculada totalmente de pensamento lgico-dedutivo, de modelos, de molduras ou qualquer mtodo at ento utilizado pela Cincia do Direito. Viehweg rompeu com toda a estrutura lgico-dedutiva, com o mtodo cartesiano, ao utilizar a tpica como uma tcnica ou recurso dialtico na estrutura instrumental do direito. Em suma, Viehweg no teve a pretenso de desenvolver a tpica como uma frmula perfeita e acabada, afastando, desde logo, qualquer crtica com relao a sua possvel utilizao como nica forma de realizao do direito. tambm por isso que reconhecemos a grandeza da obra de Viehweg na imensa colaborao para a Cincia do Direito, bem como como precursor das teorias da argumentao jurdica.

CONSIDERAES FINAISO presente artigo teve como objetivo trabalhar a idia do pensamento viehwegiano, que utilizou a tpica como uma tcnica de pensamento problemtico. Viehweg considerado pelos estudiosos, entre eles, Ferraz Jnior e Claudia Roesler, como o precursor das teorias da argumentao jurdica, sendo esse entendimento adotado por ns, uma vez que a sua obra Tpica e Jurisprudncia, de 1953, rompeu com os postulados da racionalidade instrumental. 42

O contexto histrico do Ps-guerra serviu como base de toda construo terica da tpica. Os ideais de mudana na sociedade tinham com fundamento a tica e a prudncia, questionando as bases do poder e do direito at ento existentes. A crena continuou na racionalidade, embora tenha deixado de ser instrumental para ser argumentativa. Com isso houve grande repercusso na produo do conhecimento do direito, atravs do surgimento das teorias da argumentao jurdica. Ficou evidente que Viehweg resgatou a tpica (referncias da plausibilidade e da prudncia) a partir de Aristteles com referncia ao pensamento apodtico e dialtico, e partindo do problema, buscou-se a melhor alternativa e a mais adequada para a sua soluo. Para a tpica no h caminhos fechados, todos so possveis. Fizemos uma leitura da tpica relacionando-a com a idia de sistema externo na obteno do direito. Esse entendimento foi adotado por ns, no comprometendo de forma alguma a idia assistemtica da tpica. Viehweg no teve nenhuma pretenso de sistematizar a tpica, uma vez que sua teoria argumentativa no teve nalizao, apesar disso, no descartou a sua relao com diversos sistemas. Vericamos que a ordem jurdica composta por um sistema normativo (sistema interno) e por um sistema teleolgico (sistema externo), em que se situam os valores e princpios no escritos e a tpica. Nesse contexto, vericamos que os pensamentos sistemtico (sistema teleolgico) e tpico se complementam dentro do Ordenamento Jurdico. Por m, armamos que, nos dias atuais, a tpica funciona como uma ferramenta ou como estilo (Viehweg) que o magistrado pode utilizar na aplicao do direito, afastando da anlise do raciocnio jurdico uma perspectiva extremamente formalista e exclusivamente lgica.

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REFERNCIASAGUIAR, Roger Silva. O positivismo e o Ps-Positivismo na Criao e Aplicao do Direito Civil Brasileiro. In: MELLO, Cleyson M. (Coord.). Novos direitos: os paradigmas da ps-modernidade. Niteri: Impetus, 2004, p. 144-188. ATIENZA, Manuel. As razes do direito: teorias da argumentao jurdica. 3. ed. Trad. Maria Cristina Guimares Cupertino. So Paulo: Landy, 2003. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenutica e argumentao: uma contribuio ao estudo do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemtico e conceito de sistema na cincia do direito. Trad. A. Menezes Cordeiro. 3. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2002. DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. Trad. Elza Moreira Marcelina. Braslia: Universidade de Braslia, [1637], 1985. DINIZ, Maria Helena, Compndio de introduo cincia do direito. 10. ed. So Paulo: Saraiva, 1998. DUARTE, cio Oto Ramos. Teoria do discurso e correo normativa do direito: aproximao metodologia discursiva do direito. 2. ed. So Paulo: Landy, 2004. FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 4. ed. So Paulo: Atlas, 2003. GOUVEIA, Lcio Grassi. Interpretao criativa e realizao do direito. Recife: Bagao, 2000. MAIA, Alexandre da. Da epistemologia como argumento ao argumento como racionalidade jurdica por uma dogmtica jurdica da multiplicidade. 2001. 215 f. Tese (Doutorado em Direito) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001. 44

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II TERMINOLOGIA E A LEXICOLOGIAASPECTOS DA TERMINOLOGIA JURDICAGraciele da Mata Massaretti Dias Manoel Messias Alves da Silva

ASPECTOS DA TERMINOLOGIA JURDICA

Graciele da Mata Massaretti Dias1 [email protected] Manoel Messias Alves da Silva2 [email protected]

TERMINOLOGIA E LEXICOLOGIA: INTRODUOInicialmente, importante ressaltar que entre a Lexicologia e a Terminologia h interseces e diferenas, uma vez que ambas constituem cincias do lxico, bem como apresentam uma parte terica e uma parte prtica, assim a terminologia pode ser encarada como uma especicidade da lexicologia (Andrade, 2001, p. 193), pois a Terminologia no abriga todas as palavras, mas somente aquelas que constituem a linguagem especializada. A primeira diferena que se destaca que a Terminologia denominada de cincia das designaes, ao passo que a Lexicologia chamada de cincias das denies, portanto so distintas em relao especicidade de seus objetos (Krieger e Finatto, 2004, p.198). A Terminologia se ocupa em nomear um subconjunto do lxico de uma lngua, por isso se torna normativa, a Lexicologia, a seu turno, se preocupa em denir, tornando-se descritiva. Assim, a Terminologia centra-se no sistema conceptual de um campo de especialidade e1. Universidade Estadual de Maring (UEM), Maring/PR, Especialista em Direito Internacional e Econmico (UEL). 2. Universidade Estadual de Maring (UEM), Maring/PR, Doutor em Filologia e Lngua Portuguesa (USP), Professor Credenciado do Programa de Ps-Graduao em Letras da UEM.

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a diferena entre um campo de lngua geral e um campo da linguagem especializada est no uso dos termos especcos de determinada rea, utilizados de acordo com a especicidade, em distintos nveis de especializao, conforme o tipo de matria e seu grau de abstrao. (Andrade, 2001, p. 192) Consoante com isto, descreve Cabr (1993, p. 52): A Terminologia , antes de tudo, um estudo do conceito e dos sistemas conceptuais que descrevem cada matria especializada. Dessa forma, nota-se que o objeto desta cincia um objeto especco: recopilao, descrio e ordenao dos termos cientcos e tecnolgicos das linguagens especializadas, tendo como aspecto prtico a terminograa. A Lexicologia, por sua vez, trata da palavra e seu contedo conceptual, na lngua comum, geral, assim seu objeto especco so os vocbulos e vocabulrios das diferentes normas lingsticas, tendo como aspecto prtico a lexicograa. Em relao aos conceitos operacionais e processos, na Terminologia parte-se de uma lista de conceitos e procura-se a denominao para cada um, assim o processo denominado onomasiolgico, uma vez que parte do conceito ou reconhecimento e compreenso da forma sgnica para a denominao. Assim, a Terminologia trata da denominao de noes, sob variados aspectos e em diferentes planos (Andrade, 2001, p. 193). Na Lexicologia, parte-se de uma lista de palavras, que constitui o inventrio de uma obra lexicogrca, e passa a descrev-las semanticamente, por meio das denies, utilizando-se do processo semasiolgico, pois se inicia na forma para chegar ao contedo. Quanto ao mtodo de trabalho, a Terminologia no explica qualquer comportamento e apenas busca denominaes para feixes de lexias previamente estabelecidos (Silva, 1995, p. 8), j a Lexicologia trabalha a partir de hipteses tericas, que refuta ou valida mediante anlises de amostras de produes dos falantes. (Silva, 1995, p. 8) Em suma, a Terminologia desempenha a funo de codicar, pois tem por objetivo nomear um fato, uma noo ou conceito ao passo que 50

a Lexicologia dene um vocabulrio, caracterizando-o funcional e semanticamente, pois tem por funo a decodicao.

1. RELEVNCIA DA TERMINOLOGIAA normalizao para suplantar a diculdade causada pela variedade de termos e conceitos dada pela Terminologia, tendo em vista o estabelecimento da padronizao terminolgica, que determina a forma mais apropriada. As atitudes nessa direo esto relacionadas concepo de que a comunicao especializada requer um elevado grau de preciso, aspecto para o qual o emprego das terminologias contribui largamente. (Krieger e Finatto, 2004, p. 200). Ademais, a cincia e a tecnologia encontram-se nsita no cotidiano, de forma direta. Assim, nas palavras de Silva (2003, p. 109), a lngua deve estar apta a nomear novos referentes e novos conceitos, a ponto de ser ecaz comunicativamente. O uso dessa linguagem especca contribui para a comunicao entre os especialistas, tornando-a menos subjetiva, mais precisa e com menos interferncias. Dessa forma, a comunicao se torna mais eciente, porquanto favorece uma compreenso comum sobre os conceitos, objetos e processos expressos pelo componente terminolgico. (Krieger, 2006, p. 221) Neste sentido, vlida a armao de que Para os especialistas, a terminologia o reexo formal da organizao conceitual de uma especialidade, e um meio inevitvel de expresso e comunicao prossional. (Cabr, 1993, p.37) Em relao a esse reexo formal da especialidade, Lerat explica o termo lngua especializada:Une langue spcialise ne se rduit pas la terminologie: elle utilise des dnominations spcialises (les termes), y

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compris des symboles non linguistes, dans des noncs mobilisant les resources ordinaires dune langue donne. On peut donc la dnir comme lusage dune langue naturelle pour rendre compte techniquement de connaissances spcialises. La langue spcialise est dabord une langue en situation demploi professionnel (une langue en spcialit, comme dit lcole de Prague). Cest la langue elllemme (comme systme autonome) mais au service dune fonction majeure: la transmission de connaissances3.

Em outras palavras, como analisa Maciel (2001, p. 90), trata-se da lngua natural utilizada, enquanto vetor de conhecimentos de uma rea, isto , a prpria lngua na situao de uso especializado. Os textos especializados consistem em produo da lngua comum, posto que se utilizam do mesmo repertrio fonolgico, morfolgico e sinttico, elegendo o termo mais adequado s circunstncias. Esse texto especializado utiliza a lngua geral, com os mesmos padres e parmetros, apenas realando alguns dados de modo especial. Assim, a terminologia o uso especializado da lngua, o uso peculiar e no uma lngua diferente dos sistemas lingsticos naturais, mas sim de um uso peculiar da lngua. Por isso, ela no est adstrita comunicao formal entre especialistas; empregada por interlocutores de diferentes hierarquias e graus de especializao em diferentes nveis de formalidade. (Maciel, 2001, p. 89) Por isso, o carter de especicidade da linguagem conferido pela maneira como tratado na comunicao. Consoante pontua Cabr3. Uma lngua de especialidade no se limita terminologia: ela utiliza denominaes especializadas (os termos), nas quais se incluem smbolos no lingsticos, em enunciados que mobilizam recursos comuns de uma lngua dada. Pode-se, ento, deni-la como o uso de uma lngua natural para dar conta tecnicamente de conhecimentos especializados... A lngua de especialidade , em primeiro lugar, uma lngua em situao de uso prossional (uma lngua na especialidade como diz a escola de Praga). a prpria lngua como sistema autnomo, mas ao servio de uma funo maior: a transmisso de conhecimentos. (Lerat, 1995, p.221)

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(1999, p. 54)4, um contedo tradicionalmente cientco, apresentado de maneira banal, sem relao com uma estrutura sistemtica preestabelecida de signicao, no se constitui em matria de comunicao especializada. De maneira inversa, quando descrito de maneira precisa, com referncia a um esquema cientco ou a uma estrutura normativa, qualquer contedo torna-se objeto de conhecimento especializado e, portanto, de comunicao em linguagem de especialidade. Portanto, inexiste comunicao especializada sem termos e seu uso apropriado essencial para a difuso precisa e objetiva da cincia, uma vez que quando se trata de necessidade de utilizao da linguagem especializada, a objetividade imprescindvel. Terminologias como a de Agronomia, Biologia, Direito, Estatstica, Economia, Farmcia so exemplos de que a Terminologia se tornou indispensvel tendo em vista as diversas especialidades existentes, bem como a necessidade de termos precisos para que ocorra a funcionalidade nas comunicaes prossionais. Por isso, h necessidade de maior preciso no trabalho terminolgico, uma vez que as diferentes terminologias, segundo Aubert apud Silva (2003, p. 187), constituem a base: i. do ordenamento do conhecimento; ii. da transferncia de conhecimentos; iii. da formulao e disseminao de informaes especializadas; iv. da transferncia de textos cientcos para outros idiomas; v. da armazenagem e recuperao de informao especializada. Destarte, o mesmo termo apresenta diferentes signicados conforme a rea em que est inserido, representando e transmitindo o conhecimento especializado. Assim, o uso da terminologia adequada torna possvel a compreenso de um texto especializado, principalmente o tcnico-cientco, mesmo por quem no domine completamente o idioma que foi empregado. (Andrade, 2001, p.199)4. CABR, M.T. (ed.); LORENTE, Merc. (dir.) (1998) Llenguatges despecialitat: Selecci de textos: Lothar Hoffmann. Barcelona: Universitat Pompeu Fabra. Institut Universitari de Lingstica Aplicada. 284p.

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Dessa forma, pode-se armar que a padronizao regulada pela terminologia controla o uso dos vocabulrios, determinando a preciso necessria para a especicidade conceitual ao lxico utilizado por prossionais. Vale destacar, aqui, as palavras de Mator apud Andrade (2001, p. 193): Cada termo de uma lngua possui diversos registros que, segundo o caso, se isolam ou se interpenetram e ocupam seu lugar diferente no interior dos sistemas hierrquicos, autnomos ou complementares. A relevncia da Terminologia se evidencia pela necessria normalizao dos conceitos, pela comunicao especializada, como canal de transferncia de tecnologias e tambm como auxlio na traduo de textos especializados. A objetividade e univocidade imprescindvel a qualquer discurso especializado so obtidas somente por meio da Terminologia. H outro aspecto importante que se refere conservao das variaes da linguagem especializadas. Krieger (2001, p. 60) assim a descreve:Importa lembrar ainda que os produtos terminogrcos, dicionrios tcnicos-cientcos, glossrios e bancos de dados terminolgicos, entre outros instrumentos de referncia, reetem as relaes teoria e prtica no atendimento de necessidades especiais. Desse modo, sua elaborao efetuada luz de princpios socioterminolgicos consiste numa forma de evitar o apagamento das variaes que os lxicos terminolgicos tambm comportam na diversidade de seus contextos de ocorrncia.

Dessa forma, a elaborao de obras de referncia pode auxiliar na construo da linguagem especializada, posto que h no mundo moderno crescente necessidade de emprego de terminologia nas relaes 54

e nas comunicaes especializadas, sendo base para a estruturao da informao, pela sistematizao dos conceitos.

2. O TERMO COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO ESPECIALIZADOO objeto da Terminologia o termo, a unidade lexical, componente bsico das comunicaes especializadas, pois, como j se mencionou, uma das funes da Terminologia a de compilar e armazenar as unidades lexicais especializadas, em fontes de referncia. O termo considerado como uma unidade lexical, com todas as caractersticas morfossintticas, semnticas e pragmticas de qualquer elemento lingstico. Assim, sua especicidade instaurada pelos condicionamentos socioculturais do contexto da comunicao (Loguercio, 2004, p. 25). Os estudiosos da jurislingstica consideram que a palavra da lngua geral adquire a feio jurdica atravs do uso feito pelos operadores do Direito, e embora essa linguagem seja demarcada por textos ociais, a elaborao de textos jurdicos revela as escolhas subjetivas do autor inuenciadas pelo contexto em que foi produzido. Assim, Os termos que no eram tcnicos no momento da redao de uma lei tornaram-se pouco a pouco, uma vez que na vida jurdica, submetidos ao esforo de interpretao, denidos, consagrados, penetrados de alguma forma nos estudos e nos tribunais. (Cornu, 1990, p. 136) Por isso, os termos compartilham semelhanas com as palavras lexicais de uma lngua e diferenas; sua especicidade est, porm, em seu aspecto pragmtico e em seu modo de signicao. (Loguercio, 2004, p. 25) A denio corresponde a uma realidade bem delimitada, para dar com preciso o sentido do termo. 55

Silva (2003, p. 183) utiliza a nomenclatura Unidade de Conhecimento Especializado (UCE) e no termo, porque, segundo ele, de todas as denies dadas para termo, o estatuto terminolgico de uma unidade de conhecimento especializado dene-se por sua dimenso conceitual, sendo, portanto, esta a sua qualicao primeira. Tal escolha se justica, pois o que torna o signo lingstico uma UCE o seu contedo especco, propriedade que o integra a uma rea de especialidade. Com essa nomenclatura, no se restringe a insero de um verbete no dicionrio, mas se amplia outras unidades lingsticas que possam exercer a funo de unidades verbais, adjetivais, adverbiais e polilxicas, conforme Silva (2003, p. 183).

3. TERMINOLOGIA JURDICAA importncia da funo denominativa est alm da comunicao entre especialistas, consiste, igualmente, no estabelecimento do conhecimento cientco:A constituio de uma terminologia prpria marca, em toda cincia, o advento ou o desenvolvimento de uma conceitualizao nova, assinalando, assim, um momento decisivo de sua histria. Poder-se-ia mesmo dizer que a histria particular de uma cincia se resume na de seus termos especcos. Uma cincia s comea a existir ou consegue se impor na medida em que faz existir e em que impe seus conceitos, atravs de sua denominao. Ela no tem outro meio de estabelecer sua legitimidade seno por especicar seu objeto denominando-o, podendo este constituir uma ordem de fenmenos, um domnio novo ou um modo novo de relao entre certos dados. O

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aparelhamento mental consiste, em primeiro lugar, de um inventrio de termos que arrolam, conguram ou analisam a realidade. Denominar, isto , criar um conceito, , ao mesmo tempo, a primeira e ltima operao de uma cincia. (Benveniste, 1989, p. 358)

As especicidades das comunicaes especializadas determinam a valorao do termo, assim necessrio o conhecimento do texto em toda a sua complexidade constitutiva. Krieger e Finatto (2004, p. 57) explicam que o Direito, mais do que cincia jurdica articulado por nalidades pragmticas, tendo em vista o ordenamento jurdico-social que estabelece. Por isso, muitos itens da lngua geral assumem carter terminolgico no contexto jurdico. O discurso jurdico detm peculiaridades, o texto da lei contm disposies legais provenientes do Poder Legislativo e para ter eccia deve ser publicado no Dirio Ocial. Cornu (1999) foi quem analisou bem essa questo, dessa forma analisou que as marcas dessa linguagem caracterizam um discurso normativo e um discurso a distncia, este por ser a lei um monlogo e aquele por exercer a imperatividade e a generalidade da lei. A redao forense, no Brasil, apesar do crescente interesse na rea da anlise do discurso forense, tem sido pouco analisada por terminlogos, os compndios gramaticais e manuais de auxlio tcnico redao de textos legais so produzidos sob o ponto de vista do jurista, ou raramente, sob a tica do professor de portugus. Dessa forma, predomina a anlise terminolgica embasada na Teoria do Direito ou na correo gramatical. No Canad, conforme relata Maciel (2001, p. 49), o centro terminolgico nacional, por exigncias da situao de organismo ligado ao governo central e administrao federal, mantm contato com os centros de pesquisa de jurislingstica. A jurislingstica estuda a linguagem do Direito sob seus diversos aspectos e diferentes manifestaes, 57

ela se aproxima da sociolingstica e da socioterminologia e tem se desenvolvido mais nos pases em que o enfrentamento de lnguas e sistemas jurdicos ocasiona diculdades na compreenso e interpretao em lnguas dspares, razo pela qual tal cincia teve avanos no Canad. Assim, a jurislingstica procura analisar os meios e denir as tcnicas mais adequadas para a traduo, redao, terminologia, lexicograa jurdica. Questes de ordem semntica, sinttica e discursiva so investigadas e aplicadas s mais diversas nalidades, tais como o ensino, a traduo, a elaborao de dicionrio e glossrios jurdicos, manuais de auxlio redao forense e manuais de tcnica legislativa, conforme Maciel (2001, p. 49). Apesar desses esforos e embora o Direito seja uma prosso de palavras, sua linguagem mereceu pouca ateno no campo da literatura jurdica, como leciona Mellinko5: The law is a profession of words. Yet in a vast legal literature the portion devoted to the language of the law is a single grain of sand at the bottom of a great sea. (Mellinko, 1994, p.ix) Conforme se verica, o instrumento primordial do Direito a lngua, oral ou escrita. Os usos e costumes transmitidos oralmente pelos antepassados, os cdigos escritos, o registro das leis, as sentenas dos juzes, enm, os princpios ditados pela autoridade sempre expressaram verbalmente, atravs dos tempos, as normas jurdicas que regem a vida social de uma nao (Maciel, 2001, p. 58). Atravs da lngua, tanto da lngua quotidiana, como da terminologia jurdica, o Direito se constri, se evidencia e se transmite (Gibbons, 1994, p. 3). As peculiaridades decorrentes de cada tipo de comunicao compem a especicidade de cada contexto de uso, consoante o destina5. A rigor, o Direito se manifesta atravs da lngua, pois so as palavras que emprega e os enunciados que produz que lhe conferem a existncia. Nas sociedades mais primitivas, sabe-se que a palavra do chefe lei respeitada por todos. Enquanto no mundo moderno, qualquer que seja o regime poltico escolhido, as palavras do poder constitudo manifestam o Direito.

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dor ou destinatrio, a adequao dos propsitos da comunicao e os aspectos circunstanciais do evento comunicativo. Por isso, alm do signicado lxico, importante tambm a perspectiva adotada pelo especialista. Dessa maneira, no Direito, rea em que a sociedade contemplada com m de equilibrar, organizar e regulamentar as relaes huma