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Lisa e o Antiintelectualismo Americano

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Lisa e o anti-intelectualismo norte-americano retrata a crítica ao anti ou contra intelectualismo presente na sociedade norte-americana, através de uma abordagem caricata e humorística, retratando no cartoom ou desenho de forma perspicaz e inteligente.

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Lisa e o antiintelectualismo americano

Aeon J. Skoble1

A sociedade americana costuma ter um relacionamento de amor e ódio com a noção do intelectual. Por outro lado, há um senso de respeito pelo professor ou cientista; mas, ao mesmo tempo, existe também um grande ressentimento pela “torre de marfim” ou pelo “rato de biblioteca”, uma espécie de defensiva contra os inteligentes ou mais instruídos. Os ideais republicanos dos Fundadores pressupõem cidadãos esclarecidos, mas, mesmo hoje em dia, a introdução de análises ainda que remotamente sofisticadas de tópicos políticos é taxada de “elitismo”. Todos respeitam um historiador; no entanto, a opinião dele pode ser desconsiderada com o argumento de que “não é mais válida” do que aquela do “operário”. Os comentaristas populistas e políticos freqüentemente exploram esse ressentimento dos conhecimentos especializados, embora apelem para eles quando lhes convêm; por exemplo, quando um candidato ataca seu adversário por ser um “elitista”, quando, na verdade, ele é um produto semelhante (ou conta com conselheiros semelhantes) da mesma origem educacional.

Do mesmo modo, um hospital pode consultar

1 SKOBLE, CONARD, IRWIN. Os Simpsons e a filosofia. São Paulo: Madras, 2004.

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um especialista em bioética, ou rejeitar seus conselhos, alegando ser abstratos demais ou sem ligação com as realidades da medicina. Na verdade, parece que a maioria das pessoas gosta de defender suas posições citando especialistas, mas invoca um sentimento populista quando estes não defendem suas visões. Por exemplo, posso fortalecer meu argumento citando um especialista que concorde co-migo, mas, se o especialista discordar de mim, eu direi: “Ora, o que ele sabe?” ou “Eu tenho direito à minha opinião também.” Por estranho que pareça, vemos o antiintelectualismo mesmo entre os intelectuais. Por exemplo, em muitas universidades hoje em dia, tanto entre os alunos quanto no corpo docente, a importância dos clássicos e das ciências humanas tem sido incrivelmente diminuída. A tendência é desenvolver programas pré-profissionais e enfatizar a “relevância”; enquanto as aulas de ciências humanas são consideradas um luxo ou apenas um programa adicional, mas não necessariamente características de uma educação universitária. Na melhor das hipóteses, são vistas como veículos para desenvolver “habilidades transferíveis”, tais como composição ou pensamento crítico.

Parece que há modismos periódicos, como o oscilar de um pêndulo: nos anos 1950 e início dos anos 1960, havia um tremendo respeito pelos cientistas, enquanto os Estados Unidos competiam com os soviéticos em áreas como a exploração espacial. Hoje, parece que o pêndulo reverteu seu balanço, à medida que o atual zeitgeist considera todas as opiniões igualmente válidas. Mas, ao mesmo tempo, as pessoas ainda parecem interessadas no

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que os supostos especialistas têm a dizer. Uma breve análise dos talk shows na televisão ou das cartas ao editor, nos jornais, revela essa ambivalência. O talk show convida um especialista porque presumivel-mente as pessoas se interessarão pelas análises ou opiniões de tal indivíduo. Mas os participantes do painel e membros da platéia que discordarem do especialista poderão dizer que suas opiniões e perspectivas são igualmente dignas de notas. Um jornal pode manter uma coluna com opiniões de um especialista, cuja análise de uma situação pode ser mais completa do que a de uma pessoa comum, mas as cartas dos leitores que discordam geralmente se baseiam na subjacente (quando não declarada) premissa de que “Ninguém sabe realmente coisa alguma” ou “Tudo é questão de opinião, e a minha também conta”. Essa última noção é particularmente insidiosa: na verdade, se fosse verdade que tudo depende de opinião, a minha seria tão importante quanto a de um especialista; não existiria o conhecimento especializado.

Assim, é justo dizer que a sociedade americana vive em conflito quanto aos intelectuais. O respeito por ele parece andar de mãos dadas com o ressentimento. Esse é um problema intrigante, e também de grande importância, pois parece que estamos à beira de uma nova “idade das trevas”, em que não só a noção da especialidade, mas de todos os padrões de racionalidade estão sendo desafiados. As conseqüências sociais são claramente significativas. Como um veículo de exploração desse tema, pode ser surpreendente escolher um programa de televisão que, à primeira vista, parece dedicado à idéia de quanto mais idiota melhor; mas, na verdade,

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dentre as muitas coisas que Os Simpsons habilmente ilustra sobre a sociedade, a ambivalência americana quanto ao conhecimento especializado e a racionalidade é, sem dúvida, uma delas.2

Em Os Simpsons, Homer é o clássico exemplo de um bobão antiintelectual, assim como a maioria de seus conhecidos e seu filho. Mas sua filha, Lisa, não só é pró-intelectual, mas tem uma inteligência superior para sua idade. Ela é extremamente inteligente, sofisticada e, frequentemente, mais esperta que todos à sua volta. Claro que as outras crianças caçoam dela na escola e os adultos geralmente a ignoram. Por outro lado, seu programa de tevê favorito é o mesmo do irmão: um desenho animado violento e inconsequente. A preferência dela pelo programa retrata o relacionamento de amor e ódio da sociedade americana com os intelectuais.3

Antes de estudarmos os modos como isso acontece, examinemos o problema mais de perto.

2 Seria antiintelectual para uma pessoa com Ph.D. escrever um ensaio sobre um programa de tevê? Como discutimos na introdução, não necessariamente: depende se o programa pode iluminar algum problema filosófico, ou servir como um exemplo acessível para explicar uma questão. Se quiséssemos adotar uma abordagem antiintelectual, poderíamos argumentar que tudo o que precisamos saber pode ser aprendido na televisão, mas, certamente, não é isso que estamos dizendo: de fato, estamos tentando usar o interesse das pessoas pelo programa como um meio de fazê-las ler mais filosofia.3 Intelectuais e especialistas não são a mesma coisa, claro: muitos intelectuais não se especializam em coisa alguma. Mas eu desconfio que a antipatia para com ambos tem raízes semelhantes, e a distinção se perde entre aqueles que tendem a rejeitar ou desprezar os dois.

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Autoridade falaciosa e especialidade real

Um tema essencial dos cursos introdutórios de lógica é que é um engano ou uma falácia “apelar para a autoridade”; entretanto, as pessoas costumam fazer isso com mais freqüência do que seria apropriado. Estritamente em termos de lógica, é sempre um erro argumentar que uma proposição é verdadeira porque fulano assim afirma; mas os apelos à autoridade costumam ser usados para demonstrar que temos bons motivos para acreditar na proposição, embora não constituam prova de sua veracidade. Como todas as falácias envolvendo a tal relevância, o problema com esses argumentos de autoridade é que eles a evocam de uma maneira irrelevante. Por exemplo, em questões que são realmente subjetivas, como qual pizza ou refrigerante eu devo experimentar, invocar a autoridade de outra pessoa é irrelevante, pois eu posso não ter os mesmos gostos.4 Em outros casos, o erro está em se supor que, porque uma pessoa é autoridade em determinada área, seu nível de conhecimento especializado se estende a todas as outras. Por exemplo, Troy McClure endossando a cerveja Duff não constituiria um apelo válido à autoridade, pois ser ator não garante a especialidade em cerveja. (E experiência não é o mesmo que especialidade: Barney também não é especialista em cerveja.) Em outros casos, o apelo é enganoso, ou falacioso, uma vez que certos assuntos não podem ser resolvidos recorrendo-se a especialistas, não por 4 Não estou dizendo se há ou não critérios objetivos para julgar a comida, mas simplesmente mostrando que o fato de Smith preferir chocolate a baunilha é bem diferente do fato de Jones preferir assassinato ao aconselhamento.

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serem subjetivos, mas porque são incognoscíveis, como por exemplo o futuro do progresso científico. O exemplo clássico aqui é a afirmação de Einstein, em 1932, de que “não existe a menor indicação de que a energia [nuclear] pode ser obtida.”5

Mas após expormos todo esse ceticismo em relação aos apelos à autoridade, vale lembrar que algumas pessoas realmente sabem mais sobre certas coisas do que outras. Em muitos casos, o fato de uma autoridade em determinado assunto nos dizer alguma coisa realmente é um bom motivo para acreditarmos nela. Por exemplo, como não tenho um conhecimento em primeira mão da Batalha de Maratona, devo acreditar no que outras pessoas me dizem sobre o tema, e um historiador clássico é exatamente o tipo de pessoa a quem devo recorrer, enquanto um médico já não seria.6

Geralmente as pessoas se ressentem da aplicação da sabedoria, principalmente em ideais morais ou sociais. Elas podem argumentar que, de fato, existe a possibilidade de alguém se especializar no estudo das guerras entre gregos e persas, mas isso não significa que tal indivíduo possa nos esclarecer a respeito da política mundial na atualidade.7 Você pode ser um perito na teoria moral de Aristóteles, mas isso não significa que você tem condições de me dizer como devo levar minha vida.

5 Citado por Christopher Cerf e Victor Navasky, The Experts Speak (Nova York: Pantheon Books, 1984), p. 215.6 Claro que há exceções, caso o médico, por exemplo, também for especialista na Batalha de Maratona, se estudá-la como hobby; mas me refiro aqui à profissão médica.7 Caso você esteja em dúvida, veja The Greco-Persian Wars, de Peter Green (Berkeley: University of California Press, 1996).

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Essa espécie de resistência ao conhecimento especializado vem, em parte, da natureza de um regime democrático, e o problema não é novo, mas já tinha sido identificado por filósofos como Platão, por exemplo. Já que em uma democracia todas as vozes são ouvidas, isso pode levar as pessoas a concluir que todas as vozes têm igual valor. As democracias costumam se justificar pelo contraste com as aristocracias ou oligarquias que pretendem substituir ou resistir. Nessas sociedades elitistas, alguns presumem saber mais ou até ser pessoas melhores; enquanto nós, democratas, sabemos que isso não é verdade. Todas as pessoas são iguais. É claro, porém, que a igualdade política não implica que ninguém possua conhecimento que os outros não têm; na verdade, poucas pessoas levam isso em conta na maioria das habilidades específicas, como encanador ou mecânico de automóveis. Ninguém, entretanto (dizem), pode saber mais do que os outros sobre como viver, como ser justo. Daí se desenvolve uma espécie de relativismo: da rejeição das elites governantes, que podem não saber mais a respeito de justiça do que qualquer um de nós, a uma rejeição da noção de padrões objetivos de certo e errado. O certo é aquilo que eu sinto ser certo, o que é certo para mim. Hoje em dia, há uma tendência até nas academias de se questionar as noções de objetividade e especialidade. Não são consideradas como história verdadeira, mas apenas diferentes interpretações da história.8 Não há interpretações corretas de obras 8 Veja por exemplo o livro de Mary Lefkowitz, Not Out of Africa (Nova York: Basic Books, 1996), no qual ela narra suas experiências como uma classicista tentando manter padrões de inquirição na inflamada área da Arqueologia com base em

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literárias, somente interpretações diferentes.9 Até a ciência física, às vezes, é considerada repleta de valores e não objetiva.10

Assim, temos todos esses fatores contribuindo para um clima no qual a noção da especialidade se dilui e, ao mesmo tempo, vemos tendências contraditórias. Se não existe o conhecimento especializado, e todas as opiniões são igualmente válidas, por que os talk shows e as listas dos livros

raças. 9 Para uma rara explicação objetiva da interpretação artística, ver William Irwin, Intentionalist Interpretation: A Philosophical Explanation and Defense (Westport, CT: Greenwood Press, 1999). Ironicamente, ao mesmo tempo em que noção de verdade e especialidade está sendo desafiada dentro do meio acadêmico – não existem especialistas em moralidade – os talk shows e as listas dos livros mais vendidos estão repletos de especialistas em itens como relacionamento, horóscopo e anjos. Mas esses especialistas, eu creio, só são procurados porque confirmam as predisposições de uma pessoa, e rejeitados quando não o fazem. De fato, a rejeição das afirmações de conhecimento no campo de valores é diferente da rejeição das afirmações de conhecimento nas áreas físicas; mas o interessante é vermos ambas, e ao mesmo tempo também deparamos com afirmações falsas de especialidade em inúmeras questões inapropriadas. 10 Ver, por exemplo, Alan Sokal e Jean Bricmont, Fashionable Nonsense Postmodern Intellectuals' Abuse of Science (Nova York: Picador, 1998). A base desse livro foi a fraude, hoje famosa, de Sokal, na qual ele enviou um ensaio fajuto baseado nesse tema, que foi prontamente aceito por editores de periódicos científicos como uma ótima obra. O título do ensaio era: “Transgredindo as fronteiras: Na direção de uma hermenêutica transformativa da gravidade quântica”, originalmente publicada pela Social Text 46-47, (1996), p. 217 -252.

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mais vendidos trazem tantos especialistas em amor e anjos? Aliás, para que assistir a esses programas ou ler esses livros? Para que mandar as crianças à escola? É óbvio que as pessoas ainda dão certa importância à noção da especialidade e, em muitos casos, buscam sua orientação. As pessoas parecem ter a tendência a desejar que lhes digam o que fazer. Alguns críticos de religião atribuem sua influência a essa necessidade psicológica, mas não precisamos procurar fora do reino político para ver evidências disso. Espera-se “liderança” das figuras políticas: temos o problema do desemprego – ninguém sabe que providências tomar? Esse fulano seria um melhor presidente do que aquele outro, porque ele sabe como reduzir os crimes, acabar com a pobreza, melhorar as vidas de nossas crianças e assim por diante. Mas a ambivalência se mostra distintamente nesses contextos. Se o candidato Smith se gabar de sua especialidade e capacidade de “fazer as coisas bem feitas”, o candidato Jones provavelmente o acusará de ser um elitista de “nariz empinado”. Também vemos a situação paradoxal em que as declarações das celebridades a respeito de questões políticas são levadas a sério, como se um músico ou ator pudesse acrescer alguma coisa à visão política de qualquer pessoa, e ao mesmo tempo se deseja a noção de especialidade em governos. Com quais visões a maioria dos americanos está mais familiarizada: de Alec Baldwin e Charlton Heston ou de John Rawls e Robert Nozick?

Além da especialidade política, as pessoas também anseiam (embora pareçam ambivalentes) pela especialidade tecnológica. A maioria não hesita em reconhecer que é incompetente para serviços de

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encanador e mecânica e para realizar cirurgias, e de bom grado passam essas tarefas para as mãos dos especialistas. No caso do cirurgião, vemos outra manifestação da ambivalência. Penso nos casos em que as pessoas defendem a medicina alternativa ou as curas espirituais – o que sabem os médicos, afinal? Essa é uma tendência moderna nos meios acadêmicos de se achar que a ciência é repleta de valores e deficiente em objetividade. Mas não encontramos defensores dos “encanadores alternativos” ou “mecânica de automóveis espiritual”, por isso a especialidade desses profissionais é mais facilmente aceita; e os serviços do tipo faça-você-mesmo não são exemplos contrários, pois se trata aqui de alguém se considerar hábil nesse ofício, não necessariamente negar aos outros essa aptidão. Além disso, como os encanadores e mecânicos não costumam se posicionar como especialistas em campos além dos seus (já os cirurgiões podem se posicionar como peritos em ética), são menos susceptíveis ao ceticismo alheio.11

Admiramos Lisa ou rimos dela?

O antiintelectualismo americano, portanto, é penetrante, mas não abrange tudo e todos. Assim como muitos outros aspectos da sociedade moderna, Os Simpsons usa freqüentemente esse tema como alimento para a sua sátira. Na família Simpson, só Lisa poderia ser descrita como intelectual. Mas essa descrição não é totalmente lisonjeira. Em contraste 11 Isso também indica por que as atitudes populares em relação a “autoridade” e aos “intelectuais” não são exatamente as mesmas.

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ao seu pai, absurdamente ignorante, ela sempre tem a resposta certa para um problema ou uma análise mais perceptiva de uma situação; por exemplo, quando expõe a corrupção política12 ou quando desiste do sonho de ter um pônei para que Homer não precise trabalhar em três empregos.13 Quando Lisa descobre a verdade por trás do mito de Jebediah Springfield, muitas pessoas não se convencem, mas Homer diz: “Você sempre está certa nessas coisas.”14

Em “Homer's Triple Bypass”, Lisa chega a conversar com o Dr. Nick durante uma cirurgia do coração e salva a vida de seu pai. Mas, outras vezes, seu intelectualismo é usado como motivo de piadas, como se ela fosse esperta “demais”, ou estivesse apenas dando sermões. Por exemplo, seu vegetarianismo por princípios é revelado como dogmático e instável,15 e ela usa Bart num experimento científico sem o conhecimento dele,16 evocando exemplos do pior tipo de arrogância, como o infame estudo Tuskegee.17 Ela faz um agito para entrar no time de futebol, mas está mais interessada em provar uma idéia do que em jogar.18 Assim, embora sua sabedoria seja, às vezes, apresentada como valiosa, em outras ocasiões ela demonstra o caso de ser santimonial ou condescendente.

Uma crítica populista comum do intelectual é o

12 “Mr. Lisa Goes to Washington.”13 “Lisa's Pony.”14 “Lisa the Iconoclast.”15 “Lisa the Vegetarian.”16 “Duffless.”17 “Bart Star.” 18 “Lisa vs. Malibu Stacy.”

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chavão típico: “Você não é melhor do que nós.” A idéia dessa acusação parece ser que, se eu consigo demonstrar que o suposto sábio é “na verdade” uma pessoa comum, então talvez eu não precise ficar tão impressionado com a opinião dele. Daí a expressão, “ele veste a calça uma perna de cada vez, como todo mundo.” A implicação desse vulgarismo é claramente “ele é uma pessoa comum como você e eu; então, por que devemos ficar assombrados com sua alegada especialidade?” No caso de Lisa, vemos que ela tem muitas das mesmas manias das outras crianças: ao lado do irmão, ela assiste ao violento desenho animado Comichão e Coçadinha, venera o ídolo adolescente Corey, brinca com a boneca que seria a Barbie de Springfield, Malibu Stacy. Temos, portanto, ampla oportunidade de ver Lisa como alguém que “não é melhor” que os outros em muitos sentidos, o que nos permite não levar muito a sério sua esperteza. É verdade, claro, que isso é apenas um comportamento típico de uma garota muito jovem, mas como em tantos outros casos ela é apresentada não simplesmente como um prodígio, mas sim sobrenaturalmente sábia, sua predileção pelo violento desenho e por Corey parece ganhar destaque, assumindo uma importância maior. Lisa é retratada como o avatar da lógica e da sabedoria; no entanto, ela venera Corey, por isso não é “melhor que os outros”. Em “Lisa the Skeptic”, ela é a única voz da razão quando a cidade está convencida de que foi encontrado o “esqueleto de um anjo” (trata-se de uma fraude), mas quando o esqueleto parece falar, ela fica com medo, assim como todas as outras pessoas.

O relacionamento de Lisa com a boneca Malibu

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Stacy, é na verdade, o tema central de um episódio,19

e isso também demonstra uma ambivalência na sociedade quanto ao racionalismo. Aos poucos, Lisa vai percebendo que a boneca não é um modelo positivo para jovens garotas, e ela começa a insistir, na verdade até contribui para o desenvolvimento de uma boneca diferente que encoraja as meninas a crescer e a aprender. Mas os fabricantes de Malibu Stacy contra-atacam com uma nova versão de sua boneca, que triunfa no mercado de brinquedos. O fato de a boneca “menos intelectual” ser grandemente preferida à boneca de Lisa, embora todas as objeções da menina sejam sensatas, serve para ilustrar como as idéias sensatas podem ser relegadas ao segundo plano, perdendo espaço para a “diversão” e o hábito de “seguir o fluxo”. Esse debate ocorre com freqüência no mundo real, claro: Barbie é o alvo de eternas críticas do tipo das que Lisa faz contra Malibu Stacy, mas continua sendo imensamente popular, e de um modo geral, vemos críticas intelectuais sobre brinquedos considerados “fora do real” ou elitistas.20

19 Esse foi um caso em que os médicos fizeram experiências sem o consentimento e desrespeitando o bem-estar dos “participantes”, que foram infectados com sífilis. 20 GJ Joe, por exemplo, é criticado por promover o militarismo e a violência, como todos os outros brinquedos “armas”; os pais, porém, rejeitam os alertas dos intelectuais para que as crianças usem outro tipo de brinquedo.

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