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1 Lista de Depoentes Ana Maria Medici Cavalheri Cleide Breda Haydée Figueiredo Hilda Breda Assumpção Ivone Vezzá Caieli Laura Figueiredo Lídia Zózima Sampaio Lúcia Vezzá Luiz Alberto de Abreu Marcia Vezzá de Queiroz Maria do Carlo de Luguesi Fávero Gôndora Milton Andrade Noretta Vezzá Rosa Koshiba

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Lista de Depoentes Ana Maria Medici Cavalheri

Cleide Breda

Haydée Figueiredo

Hilda Breda Assumpção

Ivone Vezzá Caieli

Laura Figueiredo

Lídia Zózima Sampaio

Lúcia Vezzá

Luiz Alberto de Abreu

Marcia Vezzá de Queiroz

Maria do Carlo de Luguesi Fávero Gôndora

Milton Andrade

Noretta Vezzá

Rosa Koshiba

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Lista de Figuras1

Fig. 01 – Foto do Espetáculo: “O Homem do Princípio ao Fim” de Millor Fernandes

no IV – Festival de Teatro Amador do SESC Anchieta em 1972. (da esq. para dir.) –

José Antonio Guazzelli, Antonino Assumpção, Viva Ramos, Inês Vanzella, Leode

Montibeller, Hilda Breda, Hélio Roberto de Lima, Alcides Médici, Ana Maria Médici.

(Acervo Ana Maria Médici Cavalheri / Memórias do ABC)

Fig. 02 – Hilda Breda no espetáculo “O Homem do Princípio ao Fim”, de Millôr

Fernandes, no IV Festival de Teatro Amador do SESC Anchieta, em 1971. (Acervo

Hilda Breda Assumpção / Memórias do ABC)

Fig. 03 – Alcides Médici e Hilda Breda no espetáculo “O Homem do Princípio ao

Fim”, de Millôr Fernandes, no IV Festival de Teatro Amador do SESC Anchieta em,

1971. (Acervo Hilda Breda Assumpção / Memórias do ABC)

Fig. 04 – Apresentação do espetáculo “Liberdade, Liberdade”, de Millôr Fernandes e

Flávio Rangel, em 1969. (da esq. para dir.) – José Antonio Guazelli, Maria Tereza

Guazelli e Hilda Breda. (Acervo Hilda Breda Assumpção / Memórias do ABC)

Fig. 05 – Ana Maria Médici Cavalheri no espetáculo “O Homem do Princípio ao Fim”,

de Millôr Fernandes, no IV – Festival de Teatro Amador do SESC Anchieta, em

1972. (Acervo Ana Maria Médici Cavalheri / Memórias do ABC)

Fig. 06 – Entrega do Prêmio Governador do Estado para o melhor ator, Alcides

Médici, e atriz coadjuvante, Ana Maria Médici, pelo espetáculo “O Auto da

Compadecida”, de Ariano Suassuna. (da esq. para dir.) Viva Ramos, Alcides Médici

e Ana Maria Médici Cavalheri. (Acervo Ana Maria Médici Cavalheri / Memórias do

ABC)

1 Todas as fotos desta monografia pertencem ao acervo pessoal dos depoentes, cedidas ao Núcleo de Pesquisadores do Memórias do ABC - IMES.

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Fig. 07 – Apresentação do espetáculo “Zumbi”, de Gianfranchesco Guarnieri e

Augusto Boal. Local: Salão Paroquial da Igreja Matriz de São Bernardo do Campo

em 1970. (da esq. para dir.) – Alcides Médici, Viva Ramos, Calixto de Inhamuns,

Vanda Machado, Leodelina Montibeller, Clotilde Azevedo Marques, Maria Tereza

Guazzelli, Ana Maria Médici Cavalheri, Hilda Breda, José Antonio Guazzelli e Hélio

Roberto de Lima, (Acervo Hilda Breda Assumpção / Memórias do ABC)

Fig. 08 – Folheto da III Mostra de Teatro Amador do Grande ABC em 1977. (Acervo

Hilda Breda Assumpção / Memórias do ABC)

Fig. 09 – Folheto do I Festival de Teatro Amador de Santo André em 1981. (Acervo

Hilda Breda Assumpção / Memórias do ABC)

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Resumo

Este trabalho se propõe avaliar a importância cultural das mulheres atrizes na região

do ABC Paulista, num período de efervescência cultural, em que as mulheres

começaram a libertar-se da educação cerceadora, assumindo trabalho em fábricas

ou em outros setores, início de suas conquistas, com base na história oral, história

de vida, em que a memória é concebida tanto no seu sentido individual ou coletivo,

relacionando-a às lembranças dessas mulheres. O recorte foi pelas mulheres atrizes

do teatro, no período de 1965 a 1985. Quando se fala de uma sociedade significativa

como a do ABC Paulista, marcada pelo pólo industrial automobilístico e de grande

expansão na década de 50 e 60, não se pode deixar de lado questões como política,

economia, infra-estrutura, organização, trabalho e arte. A inserção da mulher no

mundo do trabalho entre 1965 e 1985 no ABC destacará um quadro de

discriminação e submissão de que ela era vítima. Nas artes, em que mais se

manifesta o preconceito da sociedade, a mulher abre espaço na região, participando

de atividades culturais, grupos e escolas de arte. Com um ideal forte e revolucionário

de fazer teatro para expressar um sentimento libertador, as mulheres atrizes ignoram

os costumes familiares, ultrapassando as tradições, permitindo que seus sonhos as

levem nesta caminhada em busca do reconhecimento e de novas oportunidades.

Retratar a trajetória de vida dessas atrizes é importante para que se conheça um

trabalho artístico expressivo que elevou a mulher, dando-lhe a importância da sua

dimensão social, tanto com o trabalho realizado em casa, quanto na indústria ou em

escolas. Analisar os preconceitos sociais pelos quais essas mulheres passaram, e a

importância da escolha de ser atriz no Grande ABC, numa postura de rompimento

com os valores da sociedade época, direciona esta pesquisa.

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Introdução

O presente trabalho tem como temática principal mulheres atrizes no ABC

Paulista, durante o período de 1965 a 1985.

Insere-se no Memórias do ABC, núcleo de pesquisas da Universidade

Municipal de São Caetano do Sul, estabelecido desde 2003, que estuda a memória

da região do ABC, com a finalidade de destacar aqueles que não formaram vozes

oficiais da história, mas que foram tão ou mais significativas do que os dados

históricos oficiais.

A Pesquisa percorre os caminhos da formação dos grupos de teatro

amadores e profissionais que atuaram nas cidades, bem como as principais

montagens de espetáculos produzidas pelas companhias artísticas. Aborda ainda a

problemática com a censura militar nos espetáculos, textos, figurinos, etc, visto que

estamos falando de um período de forte repressão militar, em que a expressividade

da arte foi freada. A análise do preconceito social do “fazer teatro”, o rompimento

com os costumes tradicionais e valores da época e as diversas atividades

desenvolvidas pelas mulheres também são objetos de estudo. Este estudo avalia

ainda a educação das mulheres no período, traçando seu perfil socioeconômico e a

documentação trabalhista da profissão atriz no ABC.

O teatro amador nas cidades do ABC ganha expressão no cenário artístico.

Os grupos vinham de todas as regiões de Santo André, São Bernardo e São

Caetano, de diferentes junções, uns das igrejas locais, outros de brincadeiras no

quintal de casa, outros mais ambiciosos formados por pessoas que já imaginavam a

ilimitada possibilidade de criação artística na cidade.

O objetivo deste estudo é, portanto, documentar a importância do trabalho

feminino da mulher atriz nas companhias de teatro e sua relevância para o cenário

cultural da região, abrangendo as cidades de Santo André, São Bernardo do Campo

e São Caetano do Sul, caracterizando seu perfil socioeconômico, sua formação

educacional, a relação família e profissão de atriz.

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A atenção está focada na memória não oficial, na história narrada pelas

pessoas que vivenciaram um período, e que exprimem sua versão sobre o assunto,

neste estudo sobre teatro.2

Para analisar o passado, utilizamo-nos dos conceitos de memória, não como

um fenômeno individual, mas sim como uma construção social, sendo modelada

pelos próprios grupos sociais (HALBWACHS, 1990), neste trabalho, o grupo de

atrizes que viveram no período assinalado.

Os depoentes contam suas histórias de vida e esse ato de rememoração

requer um comportamento narrativo, pois trata-se da “comunicação a outrem de uma

informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo”

(LE GOFF, 2003, p. 421).

Utilizamos a História oral como metodologia, que

implica uma percepção do passado como algo que tem

continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado. A

presença do passado no presente imediato das pessoas é razão

de ser da história oral. Nesta medida, a história oral não só

oferece uma mudança para o conceito de história, mais do que

isto, garante sentido social à vida de depoentes e leitores que

passam a entender a seqüência histórica e a sentirem-se parte

do contexto em que vivem (MEIHY,1996, p.10).

Ou ainda, podemos entender História Oral, “como alternativa à História

Oficial(...) ela serve para complementar um determinado documento ou grupo

desses documentos, a fim de expressar aquilo que se pretende” (ODAIR, 2003, p.3),

não discutindo o conceito de verdade, mas, sim, o da experiência do fato vivido e

posteriormente narrado.

Os depoimentos de histórias de vida das atrizes, diretores, funcionários e

alunas das escolas de teatro foram gravados no estúdio da Universidade IMES, em

São Caetano do Sul, nos anos de 2003 a 2005, totalizando 33 depoimentos sobre a

temática de teatro, em meio magnético e digital, transcritos para análise.

2 Depoimentos gravados no MEMÓRIAS DO ABC entre 2003 e 2005.

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Justifica-se esta pesquisa pela necessidade de dar expressividade às

mulheres atrizes da região no cenário nacional, retratando sua trajetória de vida para

conhecer o trabalho realizado em décadas, os preconceitos sociais pelos quais

passaram e analisar o porquê da escolha de ser atriz no Grande ABC.

Portanto, esta pesquisa orienta-se por um questionamento básico: Qual a

expressividade do trabalho da mulher atriz no ABC Paulista, no período de 1965 a

1985? Para responder a esta pergunta, organizamos o trabalho conforme segue:

No primeiro capítulo, estudamos o perfil da mulher no ABC. No segundo,

analisamos a imigração das mulheres de outros estados ou do interior de São Paulo

para o ABC, sua busca de trabalho, suas primeiras atividades nas cidades e sua

formação social. Analisamos também a submissão da mulher nas relações sociais

com o homem, o início da sua relação com a arte e a censura nos espetáculos. No

terceiro capítulo, discutimos a inserção da mulher nas escolas e grupos teatrais e a

expressividade de seu papel de atriz, bem como os preconceitos que enfrentou. O

capítulo quatro trata dos trabalhos desenvolvidos no teatro pela mulher-atriz,

mostrando, assim, sua representatividade nos palcos e sua marca feminina. Por fim,

apresentamos os resultados da pesquisa.

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Capítulo I – O panorama político-social do país e o perfil da mulher no ABC

Início da década de 60. O país vive um crescimento vertiginoso e um

sentimento de euforia toma o peito dos cidadãos de maneira jamais vista antes. É o

período Jânio Quadros, eleito com 5 milhões de votos. O novo presidente é atraído

pelo desejo de progresso do país, já iniciado pelo seu antecessor, Juscelino

Kubitschec. Cria uma imagem de político do povo, com oratória afiada e, por vezes,

extravagante, cativando inimigos e atraindo os amigos. A década é marcada pela

revolução tecnológica: televisores, lambretas, automóveis. A massa urbana formata

o quadro desse novo período.

Nas grandes cidades, o movimento operário que crescia desde os

anos iniciais da década de 50 levava adiante um vigoroso processo

de lutas, expelindo velhos pelegos do Estado Novo e fortalecendo

seus mecanismo de reivindicação econômica e pressão política.

Articulando-se em pactos sindicais, os trabalhadores urbanos

pareciam dispostos a unificar suas forças (HOLLANDA e

GONÇALVES, 1999, p.191).

A mulher do período é uma mistura de cintas e vestidos, tradição e

modernidade a quem o valor moral impunha as regras. Dois tipos de mulheres estão

em cena: a esposa que, em geral, casava virgem, cuidava da educação dos filhos e

das roupas do marido e a operária, que trabalhava nas fábricas das cidades e

acumulava as atividades domésticas.

No panorama político, em 25 de agosto de 1961, pressionado por

empresários nacionais e estrangeiros – a quem já ameaçara controlar os lucros

mandados para fora –, bem como pela classe média – historicamente conservadora

– Jânio Quadros renunciou ao poder. Deveria assumir o Governo da República

Federativa o vice-presidente João Goulart, que estava na China, em missão oficial.

Assumiu, então, interinamente, o presidente da Câmara dos Deputados, Pascoal

Ranieri Mazzilli. Segundo alguns estudiosos, a renúncia de Jânio fazia parte de um

plano maior pelo qual ele esperava retornar ao posto com o apoio do Exército e do

povo para ampliar seus poderes, mas não houve mobilização popular ou militar por

sua permanência, e o Congresso aceitou imediatamente a renúncia. Jango retorna,

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assume e tenta reestruturar o país, fato que provoca descontentamento entre os

militares que, estimulados pelos EUA, assumem o poder em abril de 1964.

O regime militar instaura-se com Castelo Branco, iniciando um período do

qual o país não sairá ileso, tantos são os desrespeitos aos direitos civis.

Na década de 70, o Brasil vive ainda sob a égide da ditadura, sendo o

General Emílio Garrastazu Médici o novo presidente a comandar a nação no período

de 30 de outubro de 1969 a 15 de março de 1974. Apesar de amordaçada pela

censura, a sociedade brasileira encontrou meios para resistir à onda de violência

que dominava o país. A música agora soava com novas notas, uma forma velada de

dizer o que não se podia. O futebol brasileiro concretizava, nos campos mexicanos,

as expectativas de 90 milhões de alegres torcedores: conquista a taça Jules Rimet.

Esse mecanismo é conhecido pelos governantes, desde a Roma Antiga, para

catalizar as emoções das multidões e desviá-las dos problemas sociais. Vivia-se

então um certo nacionalismo de corações verdes e amarelos. Em decorrência disso,

havia uma recusa da arte estrangeira.

A movimentação operária no país do final da década de 70 e início da 80

serviu como termômetro para o processo de abertura política.

Em 1980, o Brasil pagava a conta do “Milagre Brasileiro” de maneira árdua. A

dívida externa era mais alta do que a metade dos lucros obtidos em um ano. O PIB

(Produto Interno Bruto) brasileiro apresentou uma variação negativa e os índices de

desemprego eram alarmantes. Em 1984, milhões de brasileiros saíram às ruas,

exigindo o fim da ditadura militar na maior mobilização popular de nossa história, a

favor de Lula e Brizola. A multidão lembrava que a luta política tinha de aprofundar

as mudanças sociais no país. Tancredo Neves vence no Colégio Eleitoral, em 15 de

maio de 1985, porém, não assume a presidência, morrendo em 21 de abril do

mesmo ano. O vice, José Sarney, subiu a rampa do Palácio do Planalto e recebeu a

faixa presidencial.

Esse é o quadro político e econômico do país. Nos sete municípios do ABC, a

população crescia, e as empresas automobilísticas traziam lucros e ofertas de

trabalho às cidades, caracterizando-as como novo centro de trabalho do Estado.

Em relação aos movimentos culturais do período na região, principalmente

em relação ao teatro, pode-se afirmar que concentraram-se, quase todos, no

“amadorismo”, poucos grupos se arriscavam à profissionalização, porque teriam

como opositores a Ditadura, sofrendo com o DOPS (Delegacia de Ordem Política e

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Social) e a repressão da época. Os poucos grupos profissionais, cujas temáticas

inclinavam-se à critica social e política do país, sofreram os reflexos dessa política.

No campo social, os grupos de teatro sofriam preconceito e discriminação,

porque, em alguns pontos da cidade de São Paulo, criou-se o estigma de que atores

eram baderneiros ou vagabundos, ou seja, pouco inclinados ao trabalho.

A questão do preconceito no Brasil é ampla e histórica. Usando a história oral

como técnica de pesquisa, buscamos retratar os excluídos, os coadjuvantes na

macro história e sua interpretação dos fatos, portanto, tentativa de apontar as

discriminações e refletir sobre elas. Os atores teatrais, a discriminação social que

vivenciaram devido à profissão, serão sujeitos cujas memórias serão recuperadas e

valorizadas.

É nesse contexto que esta pesquisa se insere. Para tanto, partimos da

memória individual de depoentes que, somadas, constroem uma memória coletiva.

O entrevistado conta sua trajetória de vida, não importando as divergências entre

seu discurso e o os fatos “oficiais” de determinado período, ou em relação ao

discurso de outro depoente.

Quanto a reviver a memória de um determinado núcleo, Legoff (2003) afirma

que a memória é onde cresce a história que, por sua vez, a alimenta, procurando

salvar o passado para servir o presente e o futuro. E conclui:

A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar

identidade: individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades

fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e

na angústia. Nunca foi tão necessária a busca por uma identidade

para se conseguir definir uma região. Vivendo-se uma tendência em

busca da memória da cidade e de tudo o que ela representa

(LEGOFF, p.78).

Uma região tão significativa quanto a do ABC Paulista, pela intensa

industrialização, não pode deixar de lado questões relacionadas ao mundo do

trabalho, mas também não pode relegar a arte a um plano inexpressivo, pois foi

palco de inúmeras manifestações artísticas que dinamizaram as cidades,

propiciando o surgimento de grupos e escolas de teatro.

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Entre 1960 – 70, nas artes, em que mais se manifesta o preconceito da

sociedade, a mulher abre espaço na região, participando de atividades culturais e

escolas de arte, sem abandonar a casa, o trabalho e os estudos.

Em 1968, o GTC (Grupo de Teatro da Cidade), em Santo André, é o primeiro

grupo de Teatro Profissional do ABC. Eleny Guariba é o nome responsável pelo

grupo, juntamente com Antonio Petrim e Sônia Guedes, atores que, depois, foram

revelados pela televisão, mas iniciaram sua formação artística no ABC antes da

década de 60. Também é marcante o Teatro de Alumínio (1960), conduzido por

Paschoalino Assumpção, anterior ao GTC, que fazia um teatro alternativo na época,

usando espaços cênicos com propostas de figurinos diferenciadas.

Já no final da década de 80 e inicio de 90, a ELT – Escola Livre de Teatro de

Santo André é mais um centro de formação de cultura e arte. Tiche Viana consegue

que o termo Escola Livre seja realmente o de uma escola sem qualquer vínculo com

o teatro–espetáculo existente no ABC Paulista. A idéia desta escola é formar atores-

criadores, pelo processo colaborativo de montagem e estudos teatrais na região.

Em 1961, em São Bernardo, Antonino Assumpção dirige um grupo de atores

e espetáculos com os mais variados temas, o Grupo Cênico Regina Pacis,

considerado um dos melhores grupos do ABC Paulista pelo crítico de teatro Luiz

Alberto de Abreu e pelo historiador José Armando Pereira da Silva. O grupo teve

representatividade em vários festivais do Estado e em outras regiões do país desde

a sua formação.

Na cidade de São Caetano do Sul, a Fundação das Artes abre suas portas

em 1968 sob direção e idealização do projeto de Milton Andrade, que fora convidado

pelo então prefeito Walter Braido para este projeto pioneiro de arte no país. A

escola, inicialmente, ocupa um prédio no centro da cidade. Depois recebe um

espaço próprio na avenida Visconde de Inhaúma e torna-se centro de pesquisa,

sendo apontada como a segunda melhor do Estado, perdendo apenas para a EAD

(Escola de Arte Dramática de São Paulo). Formadora de alunos nas áreas de

música, pintura, artes cênicas e balé, é nessa ordem que são criados os cursos na

Fundação das Artes de São Caetano do Sul. Esses pólos culturais eram

intensamente influenciados pela arte paulista da EAD.

Neste contexto e com um ideal forte e revolucionário de fazer teatro para

expressar um sentimento libertador da época, as mulheres atrizes ignoraram as

tradições e valores familiares, ultrapassando-os e deixando que os sonhos as

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levassem nessa caminhada em busca do reconhecimento e de novas

oportunidades.

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Capítulo II – Mulheres interioranas na cidade industrial

O ABC Paulista, como pólo industrial, construiu-se por operários vindos de

vários estados, que trabalhavam nos pátios das montadoras automobilísticas e das

fábricas que aqui se estabeleceram. Famílias inteiras vieram também do interior do

Estado em busca de trabalho, conquistas e sonhos. Como conta Haydée Figueiredo:

Nasci em Guará, no dia 18 de janeiro de 1950. Guará é uma cidade

pequena, interior de São Paulo. Eu gostava de teatro sem nunca ter

ido ao teatro. Eu ia atrás dos circos, aqueles teatros que passavam

no circo, como O Ébrio, com Vicente Celestino e Gilda de Abreu, que

escrevia aqueles esquetes para o circo. Eu andava atrás do circo

como uma louca, mas não gostava do trapezista, dos bichos. Eu

gostava daquela parte que tinha os dramas em que tinha aquela

caixinha no meio do palco, porque era feito com ponto, porque cada

dia era uma peça. Eu nasci numa cidade, mais ou menos, dentro

desse clima. Eu meio que caí aqui pela vontade de estudar e fazer

teatro. Eu era tão caipira, e naquele tempo não era moda, porque

caipira era discriminado, era um horror e eu chegava falando

arrastado. O choque dos dois mundos, da cidade onde nasci e fui

criada, com São Paulo. Mas enfim, todo esse choque de ingenuidade

com a metrópole, acho que todos os migrantes passam por isso. Com

certeza quem veio do norte deve passar por isso (depoimento em

04/07/2005).

As mulheres, ainda muito tímidas no espaço social que ocupavam, eram

submetidas às vontades dos maridos e dos pais, porém, a necessidade de continuar

a viver na metrópole obriga-as a buscar trabalho. Inicialmente, poucas famílias

permitiam que suas filhas trabalhassem em indústrias, comércio, escritórios de

advocacia ou em serviços como babá de crianças. Gradualmente, a cultura social da

época foi se adaptando à realidade e, aos poucos, a mulher já era vista nas ruas,

pela manhã, andando quilômetros para chegar ao trabalho.

Recorremos à memória da mulheres atrizes entrevistadas para compor o

quadro social, político e, principalmente, artístico dos quais participaram, cuja

memória individual integra-se à memória coletiva, forma como Halbawachs concebe

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a memória, no seu sentido tanto individual quanto coletivo, relacionado às

lembranças dos indivíduos, já que a memória não é um fenômeno individual, mas

sim uma construção social, sendo modelada pelos próprios grupos sociais. Como o

ato de rememoração requer um comportamento narrativo, pois trata-se da

“comunicação a outrem de uma informação, na ausência do acontecimento ou do

objeto que constitui o seu motivo” (LE GOFF, 2003, p. 421), ouvimos as narrativas

de vida dessas atrizes para formar novos dados da época.

Márcia Vezzá de Queiroz 48 anos, em seu relato oral, revela as estruturas

das escolas andreenses, a importância do estudo em colégios públicos da cidade,

primordial para as famílias.

O Américo Brasiliense era um colégio de nível muito bom, as

melhores famílias colocavam seus filhos lá. Meus professores

entravam de jaleco, usavam aquele avental, o professor entrava na

sala de aula, você levantava, cumprimentava o professor. Não faz

tanto tempo assim, mas, por ser hoje professora do Estado, também

dei aula no Estado, é assim, a água e o vinho, a qualidade. Os

professores eram as pessoas mais importantes dentro de uma

cidade. Era o médico, era o advogado, era o juíz e os professores,

era uma profissão em que as pessoas eram valorizadas porque eram

professores e eu tive acesso talvez a uma das melhores educações,

eu não precisei sair de Santo André para estuda (depoimento em

29/07/2003).

A preocupação com o futuro da família em relação ao trabalho levava à

necessidade de investir nos filhos para que pudessem, a longo prazo, conquistar seu

próprio espaço e buscar oportunidades. Isso servia também para a mulher, que

estudava, trabalhava e ainda cuidava dos afazes domésticos, normalmente

ajudando a mãe, que não tivera oportunidade de trabalho na cidade, tampouco de

estudar, pois ainda era vista como mantenedora do lar, e a ela só cabia esta

atividade. Ao pai, cabia a função de dar o sustento para a família. Não havia riqueza

ou luxo para muitos nessa época. Esses dados referem-se à uma família oriunda do

interior do Estado, que encontra uma cidade industrializada em busca de mão de

obra barata.

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As empresas da região moldam seus funcionários de acordo com as

necessidades no trabalho. Havia, na década de 60, intensa procura por

empregados. As mulheres trabalhadoras nas indústrias do ABC ajudavam em casa

com o pouco que recebiam. Seu trabalho era sempre subordinado às funções dos

homens, encarregados do trabalho pesado nas fábricas, que recebiam salário maior.

Então, era inviável uma mulher ganhar mais do que o homem. A relação servil ainda

não havia sido eliminada, mas, aos poucos, a mulher começou a tornar-se

independente e atuar nas recepções de escritórios e como professora, além de

manter seus papéis de donas de casa, mães e esposas. Mais tarde, acumularam

também o papel de atriz, como narra Hilda Breda (53 anos).

Continuava trabalhando na distribuidora de jornais e revistas,

estudava de noite, ajudava minha mãe em casa e os ensaios eram

aos sábados e domingos. Durante as férias era toda noite ensaiando

(depoimento em 05/07/2005).

Já nesse período, as famílias permitiam que as filhas saíssem à rua em busca

de atividades de lazer. Poucas foram as situações em que as mulheres não podiam

sair, com exceção das famílias mais tradicionais, que não permitiam que as filhas

fossem aos bailes nas cidades ou a cinemas, a não ser acompanhadas de irmãos ou

parentes mais velhos.

Cinema nós íamos todo domingo na matinê, todo domingo, fosse

filme próprio ou impróprio, a gente ia. Nós íamos no domingo na

matinê, eu ia com as minhas irmãs, as minhas irmãs mais velhas, já

iam de noite. A gente comprava uma caixinha de chocolate que tinha

licor dentro do chocolate. O pai de um amigo, Roberto, que era dono

dos docinhos, ele vendia as balinhas ali no Cine Tangará. Era um

negócio chiquérrimo, era muito chique, a gente fazia roupa para ir na

matinê. A gente ia dançar, a gente ia brincar, a gente fazia uma

porção de coisas, mas um programa que despendesse dinheiro... , a

gente ia dançar, entrava no clube de graça, eu morava lá no centro

de Santo André e nós íamos no baile no clube da Rhodia, que era

para lá do trilho do trem. Então sempre alguém dava uma carona

para ir, porque a gente ia de vestido de baile, vestido comprido,

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sapato de salto. Eu era bem jovem, mas meus irmãos eram mais

velhos. Podia ir com eles, a coisa era bem liberada nesse ponto, não

tinha juizado de menor, nada dessas coisas. Então, eu podia ir com

meus irmãos, minha mãe deixava eu ir sem problema nenhum, meus

irmãos cuidavam da gente, não dedavam (Ivone Vezzá Caieli, 62

anos, depoimento em 11/07/2003).

É importante destacar também que, além dos cinemas nas cidades, o circo

era constante nas vilas e bairros, sendo atração para toda a família. Os grupos

“mambembes” dos circos utilizavam-se da magia para encantar o público, com uma

estrutura simples, uma lona, um palco e arquibancada de madeira. Quanto à

temporada, era simples: enquanto houvesse público, havia espetáculo.

O rádio também se fazia presente em casa. Era um meio de comunicação

mais acessível, já que a televisão, pelo preço elevado, ainda não se popularizara. O

rádio era, então, o meio de comunicação da massa assalariada, trabalhadora e

simples que estava atenta às movimentações políticas que acendiam as cidades, os

levantes de greves nas fábricas, os programas de música e os boletins diários sobre

temas variados. A programação da rádio era vasta, como relata Luiz Alberto de

Abreu (53 anos).

À noite eu ouvia A Hora do Brasil, que meu pai, de vez em quando,

ouvia e o programa PRK30, um programa humorístico do Rio de

Janeiro. Eu soube que tinha sido inaugurada a Rádio Independência

e algumas vezes eu ia a um programa de auditório que eles faziam

aos domingos, inclusive onde é a Câmara Antonino Assumpção, em

São Bernardo. Ali se fazia o programa de auditório, ou no salão

paroquial, mas primeiro foi ali. Eu não ouvia os programas, mas ia lá

(depoimento em 08/07/2005).

Entender como se estruturava o “pulsar cultural” das cidade é importante para

conhecermos os trabalhos realizados no teatro, pois o palco servia como reflexo das

ações cotidianas, trazendo consigo o incômodo das vidas das pessoas nas cidades:

“a arte imita a vida”.

Com a dinâmica da cidade, o teatro ganha expressão. Alguns grupos montam

apresentações na igreja matriz das cidades, outras apresentações aconteciam em

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datas festivas ou comemorações. Ainda tímido, o movimento artístico estava restrito

ao centro das cidades do Grande ABC. A periferia pouco produzia ou se arriscava.

Movimentos artísticos em São Paulo já sofriam com a repressão da ditadura militar,

o que deixava a população do ABC um pouco assustada com a possibilidade de

represálias que poderiam ocorrer.

Aos poucos, no entanto, a arte começa a destacar-se na região e ganha

espaço nas inúmeras atividades da família. Assim, encontramos um teatro familiar,

com liberdade criativa, em que a mulher encontra uma forma de expandir suas

emoções.

Em 21 de abril de 1962, o Grupo Cênico Regina Pacis surge em São

Bernardo do Campo, fundado por Antonino Assumpção, que possuía uma

distribuidora de jornais e revistas no centro da cidade. Ele, além da leitura, promovia

reuniões com um grupo de amigos ligados à igreja matriz de São Bernardo. Lá fez

várias apresentações e tornou-se sede de encontros, ensaios e debates.

Fig. 01 – Foto do Espetáculo: “O Homem do Princípio ao Fim” de Millor Fernandes no IV – Festival de Teatro Amador do SESC Anchieta em 1972. (da esq. para dir.) – José Antonio Guazzelli, Antonino Assumpção, Viva Ramos, Inês Vanzella, Leode Montibeller, Hilda Breda, Hélio Roberto de Lima, Alcides Médici, Ana Maria Médici. (Acervo Ana Maria Médici Cavalheri / Memórias do ABC)

18

Ele é uma referência, foi o fundador da atividade teatral, pelo menos

até onde a gente alcança, no ABC. Ele foi muito importante. Discutiu-

se muito, o pessoal mais novo brigava como o Assumpção, mas ele

era uma referência. Não só o Assumpção, mas o Regina Pacis, as

peças do Regina Pacis iam de um espectro até outro. Elas vão desde

um teatro religioso, porque começou com a Paixão de Cristo, como

era a tradição dos grupos da época, do circo fazer essa encenação,

até Liberdade, Liberdade, que foi censurada. Eles iam de um

espectro a outro, o grupo Regina Pacis. Falavam na época que era

um grupo conservador, esse negócio todo, mas era um pouco

daquilo, que o que não fosse Zé Celso na época, graças ao Senhor,

era conservador. O Assumpção foi uma figura muito importante (Luiz

Alberto de Abreu, 53 anos, depoimento em 08/07/2005).

As peças eram, no início, ligadas à religião, contos natalinos, pascais para

apresentações em eventos da igreja. Ensaiavam no salão Paroquial ou até mesmo

na Torre da igreja matriz. Em depoimento ao Memórias do ABC, Cleide Breda (48

anos), uma das atrizes do grupo, conta como eram os ensaios e sua participação no

grupo:

Era bastante gente. Tinha umas 25 a 30 pessoas, não sei

exatamente. Era o Grupo Cênico Regina Pacis. Na época, nós

começamos a primeira peça que fiz, eu não falava nada, só

cantávamos e dançávamos um pouco. Eu adorava fazer, porque era

divertido. Era super gostoso. Antes de você entrar em cena, o

pessoal se reunia, contávamos piadas. Depois do espetáculo, a gente

sempre saía para comer alguma coisinha. Era muito gostoso. Bem

light. A gente se encontrava lá e passávamos umas horinhas boas.

Os ensaios eram gostosos. Geralmente era de sábado e domingo,

porque o pessoal trabalhava e estudava de noite e a gente ensaiava

de sábado e domingo. Quando tinha estréia da peça, nós

ensaiávamos à tarde também, para poder dar conta (depoimento em

05/07/2005).

Sobre a construção dos personagens relata que:

19

Nós decorávamos. Se a gente não conseguisse pegar o personagem,

o diretor fazia uma oficina com a gente para a gente conseguir chegar

lá. Se tivesse de gritar muito, dependendo do texto, ele ia fazer

exercícios com você para que você chegasse a gritar como era

necessário. Ele ia usar outras formas para você conseguir fazer como

ele queria (depoimento em 05/07/2005).

Nesta época, todos os participantes do grupo também trabalhavam em

atividades fora do teatro, já que não recebiam auxílio para atuar. As atividades

culturais durante a década de 1960 e 1970 não recebiam apoio das empresas

públicas ou privadas. Antonino Assumpção contava com uma pequena ajuda da

prefeitura do município para a produção dos espetáculos. Ele se revezava entre

atuar, dirigir, produzir, vestir e organizar o grupo. Já em 1968, vinda de uma família

tradicional de São Bernardo do Campo, Hilda Breda Assumpção, que trabalhava

com Antonino em sua distribuidora de jornais e revistas, foi convidada a atuar no

grupo como atriz. A partir do momento em que Hilda começou a fazer um curso

sobre História do Teatro em São Paulo, na Faculdade de Direito, no centro da

cidade, Antonino admirou esta iniciativa. A jovem, desdobrava-se entre a faculdade

de Comunicação na Metodista de São Bernardo do Campo, o trabalho na

distribuidora e a atuação no Regina Pacis.

Eu entrei em 1967. O grupo tinha uma estrutura e cada um sabia o

que fazer e entrei menina, bem baixinha. Morria de vergonha, mas

como eu gostava, eu insisti. Eles insistiram comigo também, mas a

minha estréia não foi lá essas coisas porque eu tinha muita vergonha,

mas minha vontade de fazer teatro era mais forte e não desisti. Tinha

15 anos. O primeiro espetáculo que fiz foi Ponto de Partida, com a

direção do Assumpção e do Sérgio Rossetti. O grupo começou se

apresentando no Colégio São José, que tem um auditório até hoje.

Peguei uma apresentação lá, mas iniciei no salão paroquial da Igreja

Matriz de São Bernardo, que existe até hoje. Depois, mais tarde, foi

no Teatro Cacilda Becker. A gente ensaiava lá, porque não tinha

nenhum grupo na cidade, nenhuma produção na cidade, então o

teatro era nosso. A gente ensaiava e se apresentava lá (Hilda Breda,

53 anos, depoimento em 05/07/2005).

20

Fig. 02 – Hilda Breda no espetáculo “O Homem do Princípio ao Fim”, de Millôr Fernandes, no IV Festival de Teatro Amador do SESC Anchieta em 1971.

Fig. 03 – Alcides Médici e Hilda Breda no espetáculo “O Homem do Princípio ao Fim”, de Millôr Fernandes, no IV Festival de Teatro Amador do SESC Anchieta em 1971.

21

O apoio dos pais à jovem foi muito importante, o que impulsionou a vontade

de continuar, mesmo com todos os obstáculos dos ensaios e da falta de preparo

como atriz, já que nunca havia cursado uma escola de teatro. Simpatizantes das

apresentações do grupo, Cleide e Vilma contagiam-se com a empolgação da irmã

mais velha e resolvem entrar no grupo também. Neste aspecto a irmã mais velha foi

pioneira na desconstrução do preconceito familiar em relação aos valores pelos

quais as jovens eram educadas. Além de cursarem Jornalismo, na Metodista, Cleide

e Vilma trabalhavam em uma Agência Bancária, no centro da cidade de São

Bernardo do Campo, como operadoras de caixa. Cleide Breda conta como entrou

para o teatro e de quem sofreu influência.

A minha irmã já fazia. Em uma ocasião a gente falou que quería

fazer. O Sr. Assunção falou para a gente ir ao grupo dele. Nós fomos.

Eu comecei a fazer e achei que foi ótimo para mim, porque me soltei

um pouco mais. Eu era bem tímida e me soltei um pouco mais e

achei que deu para, pelo menos, conversar um pouco sem ficar tão

vermelha. Eu sou o tipo de pessoa que, com qualquer coisa, fica

vermelha, dependendo da situação (depoimento em 05/07/2005).

Quanto à profissão das suas irmãs, destaca:

Acho que é alguma coisa que a gente tem, um gene, alguma coisa

que não sei te explicar (depoimento em 05/07/2005).

O perfil dos grupos de teatro do ABC, nesta época, é como o do Grupo

Cênico Regina Pacis: muito familiar. Algumas mulheres descobrem na arte uma

maneira de burlar as atividades do dia-a-dia, saindo da rotina, e encontram um

espaço aberto para despejarem sua arte, expandirem suas emoções e assumir

novos papéis

O Regina Pacis continua suas apresentações, optando por textos com críticas

diretas à crise do país, devido ao regime político e à desordem das cidades. Em um

dos momentos fortes da repressão, o grupo que se apresentava em São Bernardo

do Campo teve seu espetáculo vetado pela ditadura militar.

22

Podemos dizer que a década de 70 foi o período mais forte da ditadura militar

em todo o país. Inquietar-se era perigoso, mostrar-se avesso às idéias políticas era

enfrentar um exército.

Alguns espetáculos tornaram-se referência do trabalho que era feito neste

período de censura e militarismo. Faziam-se peças fortes, com textos revolucionários,

carregados de um sentimento desbravador. As mulheres no palco não se intimidavam

com a situação, pelo contrário, brilhavam como nunca.

Em Santo André, pode destacar-se o espetáculo Jorge Dandin, do GTC –

Grupo Teatro da Cidade. O trabalho de Heleny Guariba à frente da produção é

destaque e referência de direção e criatividade com texto de Molière. Em São

Bernardo do Campo, o Grupo Cênico Regina Pacis teve problemas com a censura no

texto Liberdade, Liberdade, de Flávio Rangel. Destaca-se ainda o trabalho das irmãs

Cleide, Vilma e Hilda Breda e também a participação de Ana Maria Medici Cavalheri,

que atuaram na peça censurada. Em São Caetano do Sul, a atriz Haydée Figueiredo

atua em A Noite dos Assassinos, de José Triana, declamando palavras de fervor

direcionadas à política e à situação do país.

No ABC Paulista, a censura pouco influenciou espetáculos artístico das

cidades, visto que a atenção estava nas grandes metrópoles. Não imaginavam que,

no interior do estado de São Paulo, o movimento artístico já estava organizado. Hilda

Breda, atriz do Regina Pacis, relata passo-a-passo, como era o contato com a

censura da época.

Com a censura, não tivemos grandes problemas, mas tivemos

alguns. Todos os espetáculos tinham de passar pela censura federal.

A gente tinha de ter um certificado. Primeiro de tudo a gente tinha de

mandar três ou quatro textos direto para a censura em Brasília,

mandar via correio e esperar um tempo. Quando voltava o texto, às

vezes voltava na íntegra e a gente podia montar, às vezes tinha

cortes de cenas, de folhas e aquilo tinha de ser suprimido. Depois

disso a gente tinha de apresentar o espetáculo para uma banca de

examinadores. Eles iam na platéia e assistiam ao espetáculo. Eram

dois ou três que assistiam e falavam, de repente podiam cismar com

uma cena que não poderia ser feita. Algumas palavras, mesmo as

que passaram na fase anterior, eles ouvindo, podiam achar que teve

outra conotação, então eles cortavam (depoimento em 05/07/2005).

23

Fig. 04 – Apresentação do espetáculo “Liberdade, Liberdade”, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, em 1969. (da esq. para dir.) – José Antonio Guazelli, Maria Tereza Guazelli e Hilda Breda. (Acervo Hilda Breda Assumpção / Memórias do ABC)

A atriz destaca que até mesmo os figurinos, adereços e objetos de

cena eram alvos do censor.

Esse texto que a gente apresentava para eles era quando já estava

pronto o espetáculo, porque você tinha de mostrar com figurino,

cenário e tudo, porque, se o figurino não era aquele, eles podiam

achar que ia ter uma conotação na roupa que teria alguma alusão a

alguma coisa que eles não aprovariam. Então, nós tínhamos de

apresentar (depoimento em 05/07/2005).

O processo para trazer os censores para assistir aos espetáculos no ABC

era complexo, conforme narra:

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Tínhamos de ir a São Paulo buscar os censores na Xavier de Toledo,

onde era a sede da Polícia Federal, tipo duas horas da tarde, nove

horas da manhã, no horário que eles trabalhavam. Se nós

trabalhássemos era problema nosso. A gente pedia para fazer à

noite, mas não tinha. A gente tinha de se virar, dar um jeito no

trabalho para estar lá. Era bem complicado, mas eles não queriam

nem saber. (depoimento em 05/07/2005)

Finalmente, pós autorização oficial do governo, o grupo podia

apresentar-se.

Então, depois de todos esses percalços a gente recebia um

certificado, tenho eles guardados até hoje, com a barrinha verde-

amarela, de que tinha sido autorizado para 18 anos, 14 anos, livre.

Geralmente, eles davam para 5 anos essa censura. (depoimento em

05/07/2005)

Hilda Breda destaca o impasse do grupo ao tomar ciência, pelos

jornais, da ação da censura na peça Liberdade, Liberdade :

Nós montamos o espetáculo Liberdade, Liberdade, do Flávio Rangel,

e teve um problema. Estávamos apresentando maravilhosamente,

fazendo uma temporada no salão paroquial, e como todo sábado de

manhã, o Sérgio ia lá conversar com o Assumpção na banca de jornal

e revistas, eu continuava trabalhando lá, os dois batendo papo e

lendo jornal, saiu no Estado de São Paulo uma nota: Liberdade,

Liberdade, proibida em todo o território nacional. Os dois começaram

a discutir porque os dois tinham dirigido o espetáculo, se eles iam

apresentar ou não, porque, para nós, não tinha aparecido nada. E

ficou aquela coisa de não apresentar para não ficar complicado. À

noite, nós fomos ao salão paroquial para avisar ao público que não

poderíamos apresentar a peça, levamos o recorte do jornal para

mostrar que tinha sido proibida, apesar de oficialmente nós não

termos recebido aviso. Por sorte eles leram o jornal (depoimento em

05/07/2005).

25

Este mesmo grupo ganha prêmios nos festivais de teatro do Estado de São

Paulo, que ocorreram no SESC. Os prêmios eram honorificos nas fases municipais,

regionais ou estaduais. Para o grupo com maior quantidade de troféus nas

categorias iluminação, cenografia, figurino e melhor espetáculo, o prêmio era uma

bolsa de estudos na EAD (Escola de Artes Dramáticas) de São Paulo. Caberia ao

grupo selecionar quais dos atores seriam contemplados. Ana Maria Medici

Cavalheri, que começou no grupo aos 18 anos, impulsionada pelo pai, Alcides

Medici, que já atuava como ator e, ao lado de Antonino Assumpção na direção do

Grupo Cênico, participou de inúmeras apresentações.

Fig. 05 – Ana Maria Médici Cavalheri no espetáculo “O Homem do Princípio ao Fim”, de Millôr Fernandes, no IV – Festival de Teatro Amador do SESC Anchieta, em 1972. (Acervo Ana Maria Médici Cavalheri / Memórias do ABC)

Eu comecei a fazer teatro através do meu pai. O meu pai foi ator

também. Ia ter ensaio, eu estava lá assistindo ao ensaio,

apresentação, aí eu ia com a minha mãe e ficava assistindo. Então,

eu ficava encantada de ver meu pai atuando. Eu já gostava e fui

pegando. Acho que toda essa veia artística, meu pai começou em

1964 e em 1968, com 14 eu já estava começando a fazer, já estava

26

subindo no palco. Antes eu estava como espectadora, depois passei

a atuar. No início achando que não ia conseguir, mas aí foi. Comecei

como figuração, depois vi como funcionava o bastidor, como se

chegava lá, como era o camarim e todo o processo. Aí não parei

mais. Isso que falo. Eu não tenho uma formação, uma escola de

teatro enquanto instituição escola. O meu aprendizado foi nos palcos.

Aprendi atuando no dia-a-dia, com diretores excelentes, com atores,

a dinâmica do teatro. Eu não fui só atriz. É que a minha praia maior,

eu acho que me dou bem realmente no trabalho de interpretação,

mas eu já fiz a parte técnica, fui sonoplasta, já fui iluminadora. É

muito interessante, porque você acaba vivenciando o teatro no

contexto que é, porque ele é um todo na verdade (depoimento em

05/07/2005).

Fig. 06 – Entrega do Prêmio Governador do Estado para o melhor ator, Alcides Médici, e atriz coadjuvante, Ana Maria Médici, pelo espetáculo “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna. (da esq. para dir.) Viva Ramos, Alcides Médici e Ana Maria Médici Cavalheri. (Acervo Ana Maria Médici Cavalheri / Memórias do ABC)

27

Em 1971, ganha o prêmio de Melhor Atriz do Estado de São Paulo e, em

1979, o de Melhor Atriz Coadjuvante. Era universitária da Metodista, no curso de

Relações Públicas e tinha o teatro como paixão. Ana Maria Medice afirma que “O

teatro me deu a dimensão do que o ser humano é capaz”. Vinda de uma família de

classe trabalhadora, nunca deixou de atuar como atriz. A mãe era admiradora e

colaboradora dos trabalhos, incentivava, além da filha, o marido. Ana Maria Medici

diz não ter sofrido com a repressão política, mesmo porque os censores estavam

preocupados com as produções do Teatro de São Paulo.

Fiz mais de 40 espetáculos entre temáticas adultas e infantis. Fiz

muitos espetáculos infantis, aprendi muito com a criançada. A minha

trajetória é essa. Os prêmios que recebi foram decorrentes. A gente

não faz nada para ganhar prêmio. Acho que o prêmio é o

reconhecimento de um trabalho, de um esforço, mas não é a meta

principal. A gente sempre fez com o intuito de levar alguma coisa

para a população. Além de entretenimento, mexer um pouco com as

pessoas, com a auto-estima, com esse lado imaginário das pessoas.

Essa sempre foi uma meta da gente, a minha e do meu pai também

(depoimento em 05/07/2005).

A situação era propícia para o surgimento de uma escola, um centro de

formação de arte. É isso que analisamos no próximo capítulo: a participação da

mulher nas escolas de teatro da cidade.

28

Capítulo III – A inserção da mulher nos grupos e escolas do ABC

Este capítulo pretende discutir a relevância da escola de artes e dos grupos

de teatro, na formação teatral da época e a participação feminina neste círculo

teatral que se forma no Grande ABC.

O teatro brasileiro centrava-se no Rio de Janeiro e em São Paulo. Fora deste

eixo, pouca coisa existia.

Os grupos de teatro do ABC originam-se da necessidade de dialogar com o

espaço e trazer para a sociedade algumas questões do cotidiano. Viram nos palcos

a oportunidade de manifestar-se artisticamente. Vem das mulheres o anseio por

libertar-se do julgo masculino e conquistar seu espaço na construção da cidade,

como cidadã, capaz de transformar o mundo onde está de transformar o espaço

público em prol do coletivo. Coletivo que se forma, homogeneiza-se e forma

“grupos”. Estamos no final da década de 1960 e falar em coletividade já não é tão

estranho, visto os inúmeros movimentos sindicais do ABC e a noção de que, juntos,

é possível lutar a favor de interesses coletivos. Com isso, podemos afirmar que a

batalha da sociedade trabalhadora por melhores condições de vida refletiu-se no

ânimo da classe artística por melhores condições de trabalho e expressividade no

ABC. Muitas mulheres ora eram donas de casa, ora operárias e ora atrizes. Não se

limitava na grandeza das suas conquistas. Nesta época, não sofreram com

repressão política ou críticas dos parentes e amigos. Ao contrário, a família era

incentivadora da arte, como afirma Lídia Zózima (48 anos).

Meus pais, adoravam me acompanhar. Eles sempre me induziram

que eu tinha de sempre aprender alguma coisa com as artes, a

sensibilidade, a beleza, a questão dos cuidados da mulher, dos

refinamentos. Meu pai gostava muito do refinamento que a arte traz

e queria que eu tivesse isso. Eu era simples demais e ele queria que

eu tivesse melhores condições, pudesse ter um outro tipo de vida e

pudesse dar condições às minhas filhas. Ele estava com a razão e

de alguma forma ele me ajudou bastante, me trouxe bastante

consciência e criatividade (depoimento em 06/07/2005).

29

As mulheres demonstravam interesse pelas artes e o trabalho em casa já não

era mais sua única rotina. Além de outras atividades, ir ao teatro fazia parte dos

passeios aos finais de semana, fato que colaborou com esse interesse. Grupos se

formam e a sociedade vê a participação feminina nos palcos da cidade. As mostras

e apresentações ocorriam em vários pontos da cidade e o preconceito social pelo

exercício da profissão de atriz não foi percebido pelas mulheres que atuaram,

conforme segue.

Até hoje eu sinto que nesse ponto fui respeitada como pessoa, como

ser humano e ninguém nunca ousou falar que eu era isso ou aquilo.

Também eu não dava margem a nada disso (Lídia Zózima, 48 anos,

depoimento em 06/07/2005).

Não sei se eu era tão puritana, tão fechada, mas não senti esse

preconceito. Eu não sei se não senti porque não tinha consciência,

porque eu tinha o maior orgulho de falar que era atriz, que fazia

teatro, se o orgulho era meu e as pessoas olhavam e eu não sacava,

porque o meu orgulho era muito grande em fazer o que eu gostava,

ou se realmente não tinha, porque não senti essa discriminação.

Sentia um pouco o negócio de drogas, que as pessoas falavam

muito, que ator era maconheiro, mas comigo diretamente não. Até

hoje ator tem isso, que tem não sei quantos maridos, que dá para

todo mundo, que usa drogas. Esse estigma tem até hoje e tinha lá

também (Haydée Figueiredo, 55 anos, depoimento em 04/07/2005).

Porém, contradizendo estes depoimentos, Laura Figueiredo, 53 anos, irmã de

Haydée Figueiredo, afirma.

O preconceito de que para você fazer teatro você tinha de romper

com a família. Não romper, mas romper aquela opressão, porque

mulher que fazia teatro nessa época não era bem-vista, tanto que se

a gente chegasse em Guará e falasse que estávamos fazendo

teatro, em 1976, era mal falada. Não podia falar. Tinha de falar que

só trabalhava na época a gente era discriminada. Tanto que não te

falei que tive de fazer escolha entre o casamento e o teatro? Meu

marido não ia deixar ser artista. E ele era músico. Ainda é. Mas por

30

que ele fez isso? Não foi nem por culpa dele, mas pela família dele.

Tanto que, quando meu filho nasceu, o Fábio, em 1979, a Hayde foi

madrinha, a minha sogra não deixava o Fábio ir lá porque era

pessoa do teatro, que rolava droga, isso e aquilo. Eu podia fazer

teatro? Não podia (depoimento em 05/07/2005).

No depoimento de Laura Figueiredo, percebemos que a questão do

preconceito foi sentida de maneira direta ao atuar como atriz no ABC, manifestando-

se diferentemente em relação ao que a irmã, Haydée Figueiredo, afirmara dizendo

não ter sentido pressão da sociedade por sua escolha artística. Essa

divergência demonstra que as impressões pessoais relatadas pelos sujeitos nas

entrevistas de história oral não transformam um fato, episódio ou situação como

único e indiscutível. A maioria das atrizes entrevistadas não demonstra ter sofrido

preconceito por serem mulheres de teatro. Contudo, a declaração enfática de Laura

Figueiredo leva-nos a concluir que preconceito existia sim, mas que não atingia a

maior parte das mulheres envolvidas, ou pelo menos, essas mulheres entrevistadas

que tinham em comum a participação de outros membros da família no grupo, visto

que o teatro era composto por vários integrantes da mesma família.

É importante destacar que o trabalho artístico em Santo André assim, como

em outras cidades, era bastante organizado. Uma Federação foi criada em 1967

para administrar e apoiar grupos de teatro que se suplantavam, ou talvez,

disputavam espaços públicos e platéias, a FEANTA – Federação Andreense de

Teatro Amador. Deste nascimento, origina-se a CET – Comissão Estadual de

Teatro, que subvencionava cursos e festivais.

A mulher atriz exerceu influência nas decisões artísticas da cidade. Prova

disso foi a eleição da atriz Lúcia Vezzá (70 anos), participante do grupo de Teatro

Panelinha, que concorreu à presidência da FEANTA e foi eleita. Isso mostra a

importância da mulher atriz no mundo masculino. Foi a primeira mulher a presidir

uma federação artística das cidades.

Na verdade eu não sei por que eu fui eleita, porque a gente

começou a fazer o espetáculo, a começar a fazer teatro e de repente

eu era eleita presidente da Federação. Era assim uma coisa muito

importante, porque em Santo André, recentemente, o teatro da

31

cidade estava se articulando e tinha um teatro maravilhoso, que era

o teatro do Paço Municipal de Santo André, era o teatro com

maiores recursos até do que todos os teatros de São Paulo. A gente

tinha que fazer bonito, então a gente arregaçou as mangas e saiu

para organizar o espetáculo. Conseguimos. Na época, o Secretário

da Educação ou Diretor era Müller de Paiva, que, em conversa, nos

prometeu a reforma do Conchita de Morais, onde deveriam se

realizar os espetáculos, nos prometeu que o teatro estaria pronto,

porque o Teatro Municipal era um teatro já para espetáculos não-

amadores, mas os grupos estavam assim encantados e todos se

esforçando, porque um dos prêmios ao vencedor do festival seria

apresentação no Teatro Municipal. Isso era a glória para qualquer

amador, se apresentar onde a Bibi Ferreira pisou era uma coisa de

outro mundo, então era um empenho muito grande (Lúcia Vezzá,

aos 70 anos, depoimento em 29/07/2003).

No Teatro de Alumínio, em Santo André (1962), o GTC – Grupo de Teatro da

Cidade – faz seu primeiro espetáculo em maio de 1968, com o texto Jorge Dandin.

Na direção do trabalho, uma mulher: Heleny Guariba. Jovem diretora e professora

da ECA que havia encontrado no ABC Paulista a possibilidade de colocar na prática

os conhecimentos adquiridos no período que estudou na França, mais precisamente

em Lyon, em um estágio com o diretor Roger Planchon, cujas técnicas eram

voltadas para o teatro com os operários da periferia da cidade.

Guariba acredita no potencial dos atores do ABC e forma, juntamente com

Sonia Guedes, Sylvia Borges e Antônio Petrin o GTC. Os objetivos do grupo são

claros: descentralizar a cultura da capital de São Paulo, formar um público cativo no

ABC, apresentar um panorama de teatro mundial para que o público se familiarize

com novos textos. O grupo também trabalhava com textos próprios e de criação

coletiva. Porém, um fato põe fim a tudo. Heleny Guariba junta-se às forças

revolucionárias que brigavam por seus direitos e desaparece do cenário. Capturada

pela polícia secreta do Estado, na década de 70, é morta meses depois. Este

acontecimento é marcante na memória das depoentes do Memórias do ABC,

portanto, não poderíamos deixar de relatar a importância do trabalho de Guariba

para a cidade e para a construção da cultura teatral no ABC.

32

Em São Caetano do Sul a Fundação das Artes, criada em 1968 criada

inicialmente como escola de música, abrigará expoentes femininos. Foi pioneira no

ensino de artes para crianças e adultos e tinha, no curso de ator, um dos mais

disputados da escola. Como afirma o criador do projeto da Fundação, Milton

Andrade.

A Fundação das Artes se propunha à formação de profissionais no

campo da arte, através de quatro escolas: música, teatro, artes

visuais e dança. Botamos em funcionamento, no primeiro semestre,

a escola de música. Seis meses depois nós demos início à escola de

teatro. Foi a segunda escola de teatro do Estado de São Paulo,

porque nos anos 40 o Alfredo Mesquita tinha fundado a Escola de

Arte Dramática de São Paulo, cujo grande objetivo era fornecer

atores e atrizes para o TBC. Ora, o TBC, todo mundo sabe,

historicamente, que era um teatro refinado, de elite, sustentado pela

emergente classe industrial de São Paulo, os Matarazzo, os

Sampaio, e que tinha um tipo de apresentação dos grandes

clássicos. Tivemos, na Fundação, a oportunidade de trazer o

Eugênio Kusnet, que ainda hoje é considerado o papa da

interpretação no Brasil. Lamentavelmente o Eugênio morreu durante

o curso na Fundação e a turma dele não chegou a se formar. A

Fundação das Artes de São Caetano do Sul, foi referência na

construção artística e estética do Brasil e do mundo. Tão

interessante que chamou a atenção do governo francês e eu fui

convidado a passar uma temporada em Paris, expondo para as

escolas de arte de lá, no Centro de Estudos Pedagógicos de Cerres,

o método educacional da Fundação das Artes. A Fundação das

Artes foi tão importante naquele momento, que ela destruiu o

sistema dos conservatórios. E de todo este processo as mulheres

fizeram parte, ora como alunas, outras como funcionárias (Milton

Andrade, 68 anos, depoimento em 07/07/2005).

O curso era considerado um dos melhores do estado, estando somente atrás

da EAD – Escola de Artes Dramáticas de São Paulo. Uma das primeiras mulheres a

entrar para o núcleo de formação do ator foi Haydée Figueiredo que fala sobre a

Fundação das Artes de São Caetano do Sul.

33

O ABC era um centro de operariado, sindicalista. A Fundação das

Artes era uma novidade naquela época em termos de escola de arte.

Dizia-se naquela época que a Fundação era a única escola de artes

estruturada naquele molde em toda América do Sul... ...isso aqui

atraía, era uma coisa de boa qualidade, de exemplo de tudo, de ter

uma escola num lugar como esse, e o pessoal vinha. E também aqui

já tinha uma tradição porque já tinha o GTC, que já tinha nome, que

foi um dos grupos mais importantes descentralizado de São Paulo,

não ouvi falar de outro, então isso já foi puxando... ... o que me

passa na cabeça é que esse pessoal era rotativo. Não chegava a

caducar. Aquilo vinha e depois vinha outra teoria mais moderna,

depois o Milton chamava outro que vinha com um rótulo de coisa

boa, depois vinha outro e ia rodando (Haydée Figueiredo, 55 anos,

depoimento em 04/07/2005).

Haydée Figueiredo relembra como eram as aulas do curso.

A gente sempre montava um espetáculo. No final do ano sempre

tinha um espetáculo, que era para a matéria interpretação. Na minha

época tinha história da arte, e quem dava essa matéria era o Lineu

Dias, que era pai da Júlia Lemmerts, que foi marido da Lilian

Lemmerts, um cara muito bonito e que morreu faz pouco tempo. Ele

era uma sumidade, tinha estudado no Actor’s Studios. O pessoal

que dava aula na Fundação era de primeira. Tinha o Zé Armando,

que dava história do teatro. Tinha Jura Otero, que dava expressão

corporal e que foi mulher do Décio Otero, mulher do Pereio, uma

bailarina que fez Roda Viva. Hoje ela é psicóloga, porque faz um

negócio de corpo ligado à mente, era amiga do Gaiarsa. O Petrin

dava aula de interpretação, depois foi o Jonas (depoimento em

04/07/2005).

O trabalho da Fundação das Artes foi singular neste período, formando vários

artistas nas mais diferentes áreas. Era um centro, um pólo a que todos podiam ter

acesso à formação que desejasse. Profissionais de respeito e com alto nível de

34

comprometimento com o trabalho artístico voltado para a região do ABC, como

Jonas Block, Eugenio Kusnet, Jura Otero, José Armando Pereira da Silva, Antonio

Petrin, dentre outros, montaram espetáculos valiosos para a cidade, com textos

inéditos de obras de qualidade internacional.

A Fundação das Artes, nessa época, tinha um trabalho que era

muito forte, de referência mesmo, de altíssimo conceito. Era forte

como escola de formação, o Timochenco era daqui, o Jéferson Del

Rio, e vários outros professores que vinham de São Paulo para a

Fundação. Santo André tinha também o GTC, que era esse grupo

muito forte e profissional que foi idéia da Heleny Guariba, de montar

um grupo na cidade, tinha também o Tear, Teatro de Arte, tinha o

nosso grupo, tinha o Regina Pacis (Luiz Alberto de Abreu, 53 anos,

depoimento em 08/07/2005).

A escola trazia para as atrizes a consciência do trabalho profissional que

necessitava de uma técnica para ser desenvolvido. O inovador era ver as mulheres

em cena, ao lado dos homens e, por vezes, assumindo grandes papéis.

Compreender as teorias do teatro trouxe para a mulher-atriz maior repertório e

capacidade de se relacionar com a arte, desenvolvimento do corpo, dança e voz.

Novos desafios foram conquistados e os trabalhos realizados pelas atrizes

ganharam notoriedade.

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Capítulo IV – A representatividade da mulher-atriz nos palcos

O trabalho artístico no ABC, durante a década de 70 foi forte. Grupos de

teatro como o GTC – Grupo de Teatro da Cidade –, formava um público cativo na

região e uma movimentação inovadora para a época. O centro não era mais São

Paulo, o que também era inovador.

Pessoas de todos os lugares do Estado dirigiam-se para acompanhar as

mostras artísticas ou participar de palestras, cursos ou seminários culturais que

aconteciam em Santo André e em São Caetano do Sul. Destacavam-se nas cidades,

inúmeros eventos de arte como o I Salão de Artes Plásticas e o I Salão de Arte

Fotográfica e algumas mostras que representavam o Estado, como o VI Festival

Estadual de Teatro do Estado.

Em São Bernardo do Campo, o teatro, tímido ainda, era defendido fortemente

pelo Grupo Cênico Regina Pacis, único a não sucumbir com o tempo e com a falta

de verba para suas produções. A prefeitura da cidade auxiliava os grupos e

custeava as montagens dos espetáculos.

Fig. 07 – Apresentação do espetáculo “Zumbi”, de Gianfranchesco Guarnieri e Augusto Boal. Local: Salão Paroquial da Igreja Matriz de São Bernardo do Campo em 1970. (da esq. para dir.) – Alcides Médici, Viva Ramos, Calixto de Inhamuns, Vanda Machado, Leodelina Montibeller, Clotilde Azevedo Marques, Maria Tereza Guazzelli, Ana Maria Médici Cavalheri, Hilda Breda, José Antonio Guazzelli e Hélio Roberto de Lima, (Acervo Hilda Breda Assumpção / Memórias do ABC)

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No início a Prefeitura ajudava a construir os cenários. A gente fazia

cenários, principalmente os que exigiam uma sala, um quarto, eles

faziam toda a estrutura, inclusive com piso, janela, porta,

emprestavam os carpinteiros. Davam um bom apoio. E quando a

gente ia se apresentar fora da cidade, eles davam caminhão para

transportar. A Câmara tinha uma verba que ela podia dar para as

entidades culturais ou beneficentes. O Vereador dava tanto quanto

queria para cada uma. A gente gastava em figurinos e cenários,

porque nós, atores, nunca recebemos nada. Ninguém ganhou

dinheiro nenhum (Hilda Breda, 53 anos, depoimento em

05/07/2005).

Para as mulheres-atrizes, era necessário muito esforço e trabalho para

acompanhar uma rotina que se iniciava cedo e passava pelos mais diversos

trabalhos, findando com ensaios à noite. A mulher sentia o peso da sua inquietação.

Isso a levava a adquirir maior representatividade junto aos grupos de teatro.

Na Fundação das Artes de São Caetano do Sul, o desempenho da mulher era

visível, mudando o quadro de alunos matriculados, já que as mulheres eram minoria.

Passam a dividir o espaço com os homens, representando uma parcela significativa

de alunos. Milton Andrade, ex-diretor da Fundação das Artes, aponta sua idéia sobre

a representatividade da mulher atriz nos espetáculos do ABC e sobre a participação

feminina nos festivais de teatro que aconteciam nas cidades:

Para falar das mulheres do teatro do ABC, a gente não pode

esquecer daquela história que contei, que no princípio as mulheres

não apareciam por aqui. Quando vinham, eram mercenárias, que

ganhavam para fazer espetáculo. Os homens não ganhavam e as

mulheres ganhavam. A partir de que a mulher começou a assumir

uma posição maior na sociedade, no teatro também elas começaram

a encontrar o seu lugar (Milton Andrade, 68 anos, depoimento em

07/07/2005).

Sobre a participação das mulheres na Fundação das Artes de São Caetano

do Sul, destaca.

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No início os homens eram a grande maioria e depois aos poucos as

mulheres foram dominando. No final da minha gestão já existiam

mais mulheres interessadas em teatro do que homens. A mulher

mais famosa que saiu da Fundação foi a Cássia Kiss. Naquele

tempo, quem dava interpretação era o Silnei Siqueira, depois da

primeira noite de aula, ele desceu e disse: Nós temos uma grande

atriz aqui. Depois da primeira aula. Eu perguntei quem era e ele

falou: Cássia Kiss. Kiss é beijo e guardei. Depois fui ver quem era e

conheci a Cássia Kiss que hoje é atriz de televisão (depoimento em

07/07/2005).

Elementos básicos para o teatro acontecer estavam presentes: pessoas

ativas pelas manifestações próprias ou coletivas, um espaço, público, iniciativa e

divulgação. Esta foi a fórmula para que o teatro no ABC ganhasse destaque. A

mulher era composição desta química que se expandia para as regiões fora do

núcleo da capital São Paulo. Santo André, São Bernardo e São Caetano dominavam

as produções de teatro do Grande ABC.

Fig. 08 – Folheto da III Mostra de Teatro Amador do Grande ABC, em 1977.

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Fig. 09 – Folheto do I Festival de Teatro Amador de Santo André, em 1981.

...os outros municípios, não sei o que poderia existir naquela época.

Eu acho que foi só a partir da criação de teatro, prédios é que o

movimento teatral começou a se desenvolver mais (Milton Andrade,

68 anos, depoimento em 07/07/2005).

Lídia Zózima, 48 anos, ativa participante do Grupo Experimental de Teatro do

IMES, relata sua experiência no grupo, formado de 10 estudantes, sendo 6 rapazes

e 4 moças do curso de Administração de Empresas, cuja finalidade era fazer um

trabalho de conscientização dos problemas sociais enfrentados fora dos portões da

faculdade.

Nós simplesmente sentávamos e discutíamos os assuntos que nós

achávamos que eram importantes que nós trouxéssemos para a

faculdade. As questões sociais, como os catadores de papel, a

gente falava muito disso. A gente buscava justamente que universo

era esse. De repente nós, como administradores, víamos essa

organização nas ruas. Para nós era importante para a gente

descobrir como fazer isso, como conscientizar as pessoas para essa

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questão social, o que a gente pode fazer por isso, vamos questionar

como a gente pode interferir nisso, vamos pensar juntos

(depoimento em 06/07/2005).

Na década de 70, Lídia tinha 18 anos, era casada e tinha uma filha de 2 anos.

Terminou Administração e, logo após, cursou também Economia. A busca pelo

teatro havia funcionado como forma de estar mais próxima, no período da tarde, de

seu marido, que desenvolvia trabalhos no DACO – Diretório Acadêmico XIV de

Outubro. Portanto, observa-se que seu contato com teatro foi bastante involuntário,

ela simplesmente buscava uma atividade.

Seu trabalho no teatro estendeu-se até se aprimorar na arte da dança, que já

praticava desde os 7 anos de idade. Profissionalizou-se e, à convite de Sueli

Azevedo, da Fundação das Artes de São Caetano, tornou-se professora de

Expressão Corporal do Curso de teatro da escola. Zózima conta como foi sua

passagem da dança para o teatro:

Eu estava no caminho da dança, mas quando fui chamada para o

teatro, era uma das coisas que eu achava que completava mais,

porque você não era apenas dançar, um sentimento, uma

expressão, leveza, uma idéia, mas você podia falar. Isso era uma

das coisas que me fascinava. O que faz um ser ter aquele

sentimento, aquela emoção, e como ele vai falar isso, como ele vai

chegar num espectador e, é muita arrogância da minha parte falar

que vai transformar o outro, mas se você consegue emocionar, fazer

com que o outro ria ou chore, é quase que um milagre. É muito bom

para você. E outra coisa que eu acho que nesse sentimento humano

eu queria ser para todas as pessoas, a minha ambição era muito

grande, porque apesar de ser quieta, eu queria ser todas as pessoas

do mundo, ou seja, ter a oportunidade de ser todos os seres

(depoimento em 06/07/2005).

Destaca ainda:

Então, você ter a oportunidade de ser um homem, uma mulher, uma

prostituta, uma rainha, uma princesa, ser uma bruxa, me fascinava,

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porque você podia pesquisar e mudar (Lídia Zózima, 48 anos,

depoimento em 06/07/2005).

O Grupo Experimental de Teatro do IMES teve uma vida curta de

apresentações. Segundo Zózima, eram poucos os espetáculos produzidos pelo

grupo, havia várias apresentações do mesmo texto, sempre contando com

substituições dos atores. Algumas mulheres participavam, mas o núcleo não

aumentava. O público, na sua maioria, era de universitários da própria instituição e

alguns amigos e familiares dos atores que vinham para prestigiar o trabalho.

O interesse dos encenadores e encenadoras, atores e atrizes, artistas em

geral era de se comunicar e promover o bem social, alertando para inquietações

próprias do homem da cidade.

Com todos esses grupos em que a mulher, em maior ou menor grau se

manifesta, podemos afirmar que ela conquistou seu espaço no cenário cultural das

cidades do ABC.

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Capítulo V – Apresentação de Resultados

A partir dos dados apresentados por esta pesquisa, pode-se concluir que a

mulher atriz no ABC paulista, nas décadas de 1965 a 1985, teve importante

significado no cenário cultural e artístico das cidades. Ultrapassou costumes e

tradições de uma época, com seus ideais, buscando seus sonhos e entendendo que

na arte está a possibilidade de expandir suas vivências.

O que comprova estes dados são a intensa participação feminina nos palcos

do ABC, a iniciativa de entrar nos grupos de teatro, ora por vontade, desejos e

sonhos, ora por incentivo da própria família. A mulher vê-se guiada a seguir os

passos do pai, da irmã e de outros, nos grupos de teatro familiares, o que lhe deu a

confiança necessária para que pudesse apresentar-se. A timidez não constituiu

obstáculo, porque via a família no palco e na platéia sentia-se estimulada a

interpretar.

Os personagens representados pelas atrizes eram, na maioria, de destaque,

já que os textos escolhidos na época tinham um forte apelo à força feminina nos

palcos. Como exemplo, podemos citar “A visita da velha senhora”, de Friedrich

Durrenmatt ou “Quatro num Quarto”, de Valentim Kataief. Por serem poucas as

mulheres, que faziam parte dos grupos, elas sempre ocupavam lugar de relevância

nos trabalhos.

A mulher aperfeiçoa seus estudos, quando entra para uma escola de

formação artística, percebendo a importância do seu trabalho e une a técnica,

aprendida nas escolas, com a espontaneidade advinda dos grupos pelos quais

passa.

O reconhecimento do trabalho desenvolvido com o teatro garante à mulher-

atriz inúmeros prêmios nos festivais das cidades, sua representatividade chega a ser

reconhecida fora do Grande ABC e inúmeros convites são feitos para que seu

talento seja apresentado em São Paulo, mas a obrigação do trabalho em empresas

e escritórios não permitia que elas se “aventurassem” e seguissem apenas com sua

carreira artística. O trabalho com registro de carteira assinada dividia o espaço com

os ensaios e apresentações nas cidades.

Uma linha teria de ser seguida: o trabalho assalariado, ou a sua carreira como

atriz. Muitas escolheram continuar com os grupos de teatro e assim desenvolver seu

lado artístico; outras, decidiram que era hora de encerrar sua carreira como atriz e

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se dedicar ao trabalho, universidade, marido e filhos. Posteriormente, conseguiram

espaço para se apresentarem com os grupos, a convite de escolas, grêmios ou

associações. Nesse caso o trabalho como atriz, antes fervoroso, passa a ser

esporádico.

O importante é o registro que deixaram nestas cidades do ABC, com seus

trabalhos como atriz, diretora, iluminadora, etc. Artistas que sonharam com seu

espaço no teatro e conseguiram grandes conquistas para uma época em que a

mulher ocupava-se, quase que exclusivamente, dos afazeres domésticos.

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Referencias Bibliográficas

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HOLLANDA, Heloisa Buarque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. Cultura e

Participação nos anos 60, 1999. São Paulo: Brasiliense (Coleção tudo é história)

LEGOFF, Jacques. Memória. IN: História e Memória. 5ed. Campinas - SP: Ed.

UNICAMP, 2003.

MEIHY, José Carlos Sebe. Manual da História Oral. São Paulo: Edições Loyola,

1996.

ODAIR, José. Mito Memória e História Oral. São Paulo: Chamas, 2003.