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Literatura Comparada - Textos Fundadores. Coutinho, Eduardo; Carvalhal, Tania Franco (Orgs.). Editora Rocco

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EDUARDO F. COUTINHO

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LITERATURA COMPARADA

TEXTOS FUNDADORES

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Rio de Janeiro - 1994

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Copyright © 1994 by Eduardo F. Coutinho eTania Franco Carvalhal

Direitos desta edição reservados àEDITORA ROCCO LTDA.

Rua Rodrigo Silva, 26 - 5? andar20011-040 - Rio de Janeiro, RJTe!': 507-2000 - Fax: 507-2244

Telex: 38462 EDRC BR

Printed in Brazil/lmpresso no Brasil

preparação de originaisEDUARDO F. COUTINHO

revisão

WALTER VERÍSSIMO/MAURÍCIO NETTOHENRIQUE TARNAPOLSKY

JOÃO H. A. MACHADO

CIP-Brasi!. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Literatura comparada: textos fundadores I organização de1.755 Eduardo F. Coutinho e Tania Franco Carvalha!. - Rio de

Janeiro: Rocco, 1994.

1. Literatura comparada. r. Coutinho, Eduardo de Faria,1946- . lI. Carvalhal, Tania Franco, 1943-

CDD - 80994-0439 CDU - 82.091

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SUMÁRIO

Introdução. Eduardo F. Coutinho e Tania Franco Carvalhal 7

O método comparativo e a literatura. Hutcheson M. Posnett.(Trad. Sonia Zyngier)............................................ 15v/

Os estudos de literatura comparada no estrangeiro e na Fran-ça. Joseph Texte. (Trad. Maria Luiza Berwanger da Silva). 26

Observações críticas a respeito da natureza, função e signi­ficado da história da literatura comparada. Louis Paul Betz.(Trad. Sonia Zyngier)............................................ 44

--tA "literatura comparada'~ Benedetto Croce. (Trad. SoniaBaleott:j .. . .. . . . . . . .. . . . . . . . . .. ... . . . . . . . . .. . . .. . . . . .. .. . . .. . . .. . . . . . 60

Literatura comparada: a palavra e a coisa. Fernand Balden­sperger. (Trad. Ignácio Antônio Neis)....................... 65

Critica literária, história literária, literatura comparada. PaulVan Tieghem. (Trad. Cleone Augusto Rodrigues) 894

O/~ieto e método da literatura comparada. Marius-François ,Guyard. (Trad. Maria Imerentina Rodrigues Ferreira)... 97 ~

._~ crise da literatura comparada. René Wellek. (Trad. Maria ~r-.- Lúcia Rocha-Coutinho) : 108

" nome e a natureza da literatura comparada. René Wellek.('I\";Id. Marta de Senna) 120

Os II/('(odos da sociologia literária. Robert Escarpit. (Trad.C\eonc Augusto Rodrigues) 149 f.....-/"

,l:':iI ('s(('(im do estudo de influências em literatura compara- /1da. Claudio (Iuillén. (Trad. Ruth Persice Nogueira) ..... 157

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Literatura comparada: definição efunção. Henry H. H. Re-/mak. (Trad. Monique Balbuena) 175

i,f.i;riseda literatura comparada? René Etiemble. (Trad. Lúcia"9 Sá Rebelo) 191

''rjobre o estudo da literatura comparada. Victor M. Zhir-" munsky. (Trad. Ruth Persice Nogueira) 199

Para uma definição de literatura comparada. Claude Pichois& André Rousseau. (Trad. Sérgio Rubens B. de Almeida) ... 215

Literatura geral e literatura comparada. Simon Jeune. (Trad.Beatriz Resende) 219

Para o estudo comparativo de literatura. Jan Brandt Cors-tius. (Trad. Marta de Senna) 241

Propósito e perspectivas da literatura comparada. A. OwenAldridge. (Trad. Sonia Torres) 255

O desafio da literatura comparada. Werner Friederich. (Trad.Neusa da Silva Matte)........................................... 260

Comparando a literatura. Harry Levin. (Trad. MoniqueBalbuena) 275

O que é literatura comparada? S. S. Prawer. (Trad. Marta deSenna) 295

~iLiteratura comparada: definição. Ulrich Weisstein. (Trad. So-nia Torres) ········ 308

Uma filosofia das letras. François Jost. (Trad. Neusa da Sil-va Matte) ····· 334

Autores 349

INTRODUÇÃO

Os textos a seguir reunidos são designados fundadores por te­rem auxiliado a constituição da Literatura Comparada como dis­ciplina. Movidos todos pela intenção de defini-Ia, discutem ques­tões que estão no centro das preocupações comparatistas desdeo início até hoje. Nesse sentido, têm, simultaneamente, interessehistórico e atualidade permanente, pois que anteciparam, no tem­po, a reflexão sobre algumas noções consideradas ainda básicaspara a atuação comparatista. Desse modo, asseguraram sua uti­lidade para aqueles que se dedicam à prática do comparatismoliterário.

Agrupá-Ios em um único volume é iniciativa que intenta mi­nimizar lacunas bibliográficas de que se ressente o estudioso dadisciplina com dificuldades de acesso a alguns textos que, tendosido traduzidos, não são fáceis de localizar, ou a outros que apa­recem agora pela primeira vez em português. Essa disponibilida­de de fontes primárias torna-se importante, sobretudo quandoa I,iteratura Comparada alcança ampla difusão no Brasil comomodalidade de estudo do literário e campo de investigaçãoespcd ficos.

Diante disso, a natureza "histórica" e, portanto, a ordemerollológica do material aqui reunido importa menos do que ose1elllelltosque, nele, vale identificar e contrapor. Assim, não seespl'l'a quc esses textos sejam lidos apenas com o intuito de co­1I11l'cilllClItOdas origens da Literatura Comparada, mas para quese saiha como, gradativamente, e não sem dificuldades, ela se foicollsIitIlillt!ocomo uma modalidade particular dos estudos lite­r:',riose caraclcrizando-se pela especificidade dos problemas comos qll;lls se oCllpa.

Se pmklllOs supor a existência de um conjunto específico

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de problemas como o objeto de estudo do comparatista, interes­sa examinar quais são eles, como foram evoluindo no tempo, co­mo alimentaram constantemente a curiosidade dos estudiosos,como se definiram e redefiniram em situações diversas e, ainda,por que permanecem no centro das preocupações comparatistas.Estamos a aludir a questões bem conhecidas como a teoria dosempréstimos mútuos, a relação entre individual, nacional e uni­versal, os conceitos de fontes e influências, presentes já nos pri­meiros estudos da disciplina. Em textos pioneiros, como os deHutcheson M. Posnett, de Joseph Textee de Louis Paul Betz, ques­tões como essas surgem a serviço de uma definição da LiteraturaComparada, e são reiteradas nos demais, sob perspectivas diver­sas, mas sempre com a mesma intenção de compreender esses con­ceitos na concepção da disciplina.

No conjunto desses textos iniciais encontramos o ensaio deBenedetto Croce, em que se respira o pensamento arejado do crí­tico italiano, antecipador da investida contra o comparatismo his­tórico de cunho meramente literário e simples testemunho de eru­dição, a que contrapõe o "verdadeiramente histórico e explica­tivo".

O estudo de Fernand Baldensperger, no primeiro número daRevue de Littérature Comparée, de 1921, procura retraçar as pri­meiras contribuições comparatistas, sintetizando as duas princi­pais direções para que elas apontavam na época: a tematologia(ou estudo de temas, da qual a Stoffgeschichte é um dos ramos)e o estudo das inter-relações visíveis entre as obras de várias lite­raturas. Esta última queria precisar os fenômenos de emprésti­mos e determinar a zona de influência exterior nos grandes es­critores. Tratava-se, como diz o autor, "não de realizar simplesinventários justapostos da literatura 'européia' ou 'mundial"', masde indicar o que G. Brandes chamava de "as grandes correntesque atravessavam os diversos grupos nacionais".

Paul Van Tieghem, dez anos depois, vai sistematizar os prin­cípios e as modalidades de atuação comparatistas, como se per­cebe no capítulo que abre seu clássico manual, aqui incluído. Aodistinguir Literatura Geral de Literatura Comparada, ele confe­re a esta última o caráter de disciplina analítica, preparatória aostrabalhos que buscariam uma visão sintética, mas global, de di­versas literaturas. Dá a ambas um estatuto de disciplinas históri­cas, traço que perdurará por muito tempo.

Não será outra a intenção de M.-E 9.J,j)[ar4,em manual pos­terior, no qual insistirá sobre algumas dessas modalidades (em

particular a que se tornou conhecida como' 'imagologia" ou es- ),tudo da imagem que os povos se fazem deles mesmos e dos ou- Itros) e entenderá a Literatura Comparada como um amplo cam­po de "relações internacionais". O prefácio de J. M. Carré aolivro de Guyard é também esclarecedor das orientações básicasseguidas pela disciplina na época e de sua configuração como"um ramo da história literária".

Instigante é o ensaio de E..s::lléWell~.k,cuja natureza polêmi­ca se inscreve desde o título, "A crise da literatura comparada".Pela crítica incisiva que tece contra o comparatismo de orienta­ção histórico-positivista, e a defesa do primado do texto nos es­tudos literários, sem deixar de lado, contudo, a relação deste úl­timo com o contexto sociocultural, este ensaio constitui um marcono desenvolvimento da disciplina. Wellek soube associar tambéma postura crítica com a inclinação às grandes sínteses descriti­vas, como a que faz em "O nome e a natureza da literatura com­parada". Ali, além de rastrear a designação da disciplina em di­ferentes países, discute amplamente o conceito de "literatura mun­dial", a JVeltliteratur, na expressão cunhada por Goethe. Seu tra­balho tem ainda o mérito de, ao tratar da Literatura Compara­da, anali8ar o surgimento das demais disciplinas que estudam oliterário, dando-nos um quadro amplo de suas constituições einterações.

À orientação historicista nos estudos comparatistas, RobertEscarpit vai contrapor a "sociologia literária" como uma espé­cie de "ciência auxiliar da história literária", capaz de revitalizá­los e de neutralizar os equívocos existentes, imprimindo um novoIônus à disciplina.

Claudio Guillén, por seu turno, quer reavaliar a noção de"influências" numa perspectiva estética, entendendo-a como um!"alorcsc1areeedor do processo criativo. Para isso, relê os primei­ros praticantes de Literatura Comparada, identificando a teoriaCSll'jica subjacente a seus trabalhos. Critica, na concepção tradi­cional de influência, a idéia de "transmissão", a necessidade decolnproval,;üoe a confusão entre influências e similaridades tex­luais. Ik inlcnçào metodológica, seu texto propõe diversas alter­nal ivas dc cstudos.

() inluilo sislclllatizador move as reflexões de Henry H. H.

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10 LITERATURA COMPARADA INTRODUÇÃO 11

Remak quando se ocupa com a definição e a função da Literatu­ra Comparada. Nesse texto, adota um conceito da disciplina, noqual amplia os campos de atuação, apontando para estudos in­terdisciplinares (ou transdisciplinares). Em seu trabalho, esclare­ce alguns aspectos essenciais do comparatismo, enriquecendo-o,ainda, com informações preciosas sobre autores, obras e perió­dicos da área de investigação.

Tal como a conferência de R. Wellek e o texto de B. Croce,o capítulo de René Etiemble manifesta de imediato uma inten­ção polêmica. Sabemos que o autor, ao assumir a cátedra na Sor­bonne, preconizou ali uma nova concepção da disciplina, ampa­rada em uma visão' 'planetária" do literário. A abertura com re­lação a literaturas não-européias identifica a posição eminente­mente' 'descentralizadora" na valorização das especificidades decada povo, cultura e literatura, sem excessosnacionalistas. Ao con­trário, Etiemble ressalta, no comparatismo, a "consciência su­pranacional" que ele quer firmar.

Victor M. Zhirmunsky introduz, no conjunto, a concepçãosistêmica de origem formalista, ao acreditar que o estudo com­parativo de tendências comuns na evolução literária conduz a umacompreensão de algumas leis gerais do desenvolvimento literárioe, simultaneamente, a uma melhor compreensão das peculiari­dades históricas e nacionais de cada literatura individual. Esta­belece a distinção entre "analogias tipológicas" (ou convergên­cias do mesmo tipo entre literaturas de povos distantes, sem con­tacto direto) e "importações culturais ou influências".

Os franceses Claude Pichois e André M. Rousseau repetemas iniciativas de Van Tieghem e de M.-E Guyard na elaboraçãode um manuaL Como todo livro do gênero, este registra a histó­ria da disciplina, descrevendo-a ao examinar as formas de atua-

, ção mais freqüentes e seus instrumentos. No capítulo retirado daversão original, há a preocupação de adotar uma definição deLiteratura Comparada bastante ampla, mas que ainda privilegiaas analogias e as idéias de parentesco e filiação.

Simon Jeune, por sua vez, vai centrar as reflexões nos con­ceitos de Literatura Geral e Literatura Comparada. Para ele, estaúltima será sobretudo o estudo de influências entre autores ouliteraJuras de nações diferentes, bem como o da propagação des­sas influências.

Já Brandt Corstius insistirá na noção de "comunidade lite-

rária internacional" constituída pelas literaturas nacionais. Toma-acomo ponto de partida de uma reflexão eminentemente didáti­ca, que se preocupa com a formação do aluno nas universidades.

As questões básicas do comparatismo que se reiteram nosdiversos textos ganham clareza também didática na exposição deA. Owen Aldridge, que se preocupa em rastrear diferentes posi­ções sobre conceitos básicos, dando-Ihes uma variedade de apre­ciações e enfatizando o cunho abrangente e interdisciplinar dosestudos.

Werner Friederich, em "O desafio da literatura comparada",ocupa-se em ilustrar as atuações do que tem sido denominado"Escola Francesa". Embora saibamos que, hoje, essa designa­ção, usada para contrastar com uma eventual "Escola America­na", já não tenha mais sentido, pois que na França e nos Esta­dos Unidos se adotam indistintamente os mesmos e variados prin­cípios e procedimentos, ela inicialmente distinguia os compara­tistas entre os que seguiam uma orientação mais ortodoxa e his­toricista, perseguindo "fontes" e "influências" e os que acom­panhavam o pensamento de R. Wellek expresso em 1958. Por is­so, W. Friederich os contrapõe aos estudiosos de universidadesamericanas, aludindo também a suas configurações institucionaise curriculares.

Harry Levin, no texto seguinte, retoma as consid~rações so­bre as diferentes tendências no comparatismo literário, procurandoentender a inicial inclinação assumida por estudiosos franceses,como E Baldensperger, através do contraste entre o contexto his­tórico e cultural da França e da América do Norte. Levando emconta a situação da disciplina, Levin acentua bastante o seu ca­rúlcr internacional e questiona a excessiva preocupação metodo­lógica tão em voga, que deve, a seu ver, ceder lugar a uma práti-ca maior do comparatismo. .

Às preocupações com a designação, princípios, objetivos e:llld:llllCllloda disciplina rdornam no estudo de S. S. Prawer, ca­pílldll illicial de seu ('olJlparative Literary Studies: an Introduc­/íO/l (11)73). Ào disculir definições de uso corrente, ressalta nelaso que l'lllllprl'l'nlk COlllOprincípios básicos da disciplina, isto é,a cscolh:1de PlllllllSde comparação em diversas línguas, a análi­se ;lklll de nllla lilnalnra, o relacionamento das literaturas entresi COIlIOindispells;'lvcl ;'1 avaliação adequada.

( ) esludo de IIIrich Wcisstein sobre "Definição" sintetiza as

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discussões iniciadas nos textos precedentes, não só sobre a desig­nação da disciplina e suas maiores correntes, mas sobre as ques­tões essenciais com que elas se defrontaram, como, por exemplo,os problemas que surgem quando se busca uma definição paraa essência da literatura nacional e a delimitação de várias litera­turas, relacionando-as umas com as outras, a noção de Weltlite­ratu!; a discussão entre Literatura Geral e Literatura Comparadae o estudo comparado da literatura oral (Folclore).

No último dos textos selecionados e ordenados segundo adata de seu aparecimento, François Jost dá um panorama da dis­ciplina nos Estados Unidos, confrontando-o com a situação deoutros países e dizendo que, ali, tendências teóricas como o NewCriticism afetaram profundamente o comparatismo,caracterizando-o como uma prática na qual repercutem várias teo­rias literárias com uma ausência quase total de preocupações na­cionalistas. Para ele, a Literatura Comparada representa "a filo­sofia das letras, um novo humanismo", pois que "a contextuali­zação internacional na crítica e na história literária se tornaramlei" e o comparatismo "é mais do que uma disciplina acadêmi­ca, é uma visão globalizante da literatura, do mundo das letras,uma ecologia humanística, uma Weltanschauung literária, umavisão do universo cultural, englobante e abrangente".

Se as palavras de F. Jost podem parecer uma espécie de con­clusão aos textos anteriores, pela forma entusiasta com que serefere à Literatura Comparada, não há aí a intenção de adotaresse caráter conclusivo. Ao contrário, os problemas da discipli­na permanecem em discussão, e é essa constante reavaliação aque a submetem os estudiosos que se torna responsável por suavitalidade e renovação. Nessa perspectiva, é interessante obser­var como há, nos vários textos, conceitos que coincidem e, ou­tros, que se contrapõem. Justamente a-não uniformidade dasidéias é que torna vivo o conjunto, permitindo que se identifi­quem as diversas tendências e que se avalie a pertinência de cadauma delas.

Foi com a intenção de deixar ao leitor a tarefa de "compa­rar" os textos aqui reunidos em suas peculiares contribuições àconstituição da Literatura Comparada que eles foram cuidado­samente selecionados. Outro volume, em que se agrupam estu­dos dos anos 70 até agora, deverá complementar este primeiro.Ao expressar as tendências contemporâneas da disciplina, irá cer-

Eduardo F. Coutinho (UFRJ) eTania Franco Carvalhal (UFRGS)

tamente expor a heterogeneidade crescente que a vem caracteri­zando.

Diante dessa mobilidade permanente importa remontar aostextos pioneiros, presentes neste volume, para que se possa teruma idéia clara do percurso da Literatura Comparada em seu pro­cesso de constituição e consolidação.

13INTRODUÇÃOLITERATURA COMPARADA12

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o MÉTODO COMPARATIVO E A LITERATURA*

Hutcheson Macaulay Posnett

o método comparativo de adquirir ou comunicar conhecimentoé, num certo sentido, tão antigo quanto o pensamento, e, em ou­tro, a glória peculiar do nosso século XIX. Toda a razão, todaa imaginação, operam subjetivamente, e passam de indivíduo paraindivíduo objetivamente, com a ajuda de comparações e diferen­ças. A proposição mais desbotada do lógico ou é a afirmaçãode uma comparação, A é B, ou é a negação de uma comparação,A não é B; qualquer estudioso do pensamento grego se lembrade como a confusão deste processo simples causada por erros so­bre a natureza da cópula ('wn) produziu uma enxurrada das as­sim chamadas "essências" (o'veJLm) que desorientaram mais asfilosofias ál1tiga e moderna do que pode ser avaliado à primeiravista. Mas não só as proposições desbotadas da lógica como tam­bém os vôos mais altos e mais brilhantes da eloqüência oratóriaou da imaginação poética são sustentados por esta estrutura ru­dimentar de comparação e diferença, este primeiro palanque, porassim dizer, do pensamento humano. Se a experiência sensata for­mula verdades científicas através das proposições afirmando ounegando comparações, a imaginação até em suas cores mais vi­vas se utiliza das mesmas formas elementares. A inteligência ate­niense e a reflexão alexandrina não perceberam esta verdade fun­damental, e esta falha é atribuída principalmente a certas carac­terísticas sociais dos gregos. Grupos, como indivíduos, precisamse projetar além do círculo de suas relações se quiserem entendersua própria natureza; mas a grande estrada que desde então tem

* POSNETT, Hutcheson Mucalllay.The Comparative Method and Literature. In: -. Com­parative Literature. Ncw York: Appleton, 1886, p. 73-86.

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16 LITERATURA COMPARADA o MÉTODO COMPARATIVO E A LITERATURA 17

levado à filosofia comparada estava fechada ao grego devido aoseu desprezo por qualquer língua que não fosse a sua. Ao mes­mo tempo, as comparações de sua própria vida social, em etapasbastante diversas, foram reduzidas parcialmente pela falta de mo­numentos do seu passado, muito mais por desprezo aos gregosmenos civilizados, como os macedônios, e principalmente pelamassa de mitos demasiado sagrada para ser tocada pela ciência,e por demais emaranhada para ser desembaraçada com proveitopelas mãos de céticos impacientes. Desta forma, privados do es­tudo histórico de seu próprio passado e circunscritos aos limitesdas comparações e distinções que sua própria língua adulta per­mitia, não é de se surpreender que os gregos fizessem pouco pro­gresso em relação ao pensamento comparativo, como um assun­to não só de ação inconsciente mas também de reflexão consciente.Esta reflexão consciente tem sido o crescimento do pensamentoeuropeu nos últimos cinco séculos, inicialmente, é certo, um tan­to frágil, mas, por razões de origem recente, agora florescendocom um vigor saudável.

Quando escreveu De vulgari eloquio, Dante marcou o iníciode nossa ciência comparativa, colocando o problema da naturezada linguagem, um problema que não deve ser tratado com levian­dade pelos povos da Europa moderna que herdaram, diferente­mente do grego ou do hebraico, uma literatura escrita numa lín­gua cuja decomposição simplesmente foi levada a constituir oselementos de sua própria fala viva. Foi o Renascimento latino,seguido pouco depois do Renascimento grego, que estabeleceu asfundações para o método comparativo no espírito da Europa. En­quanto isso, o crescimento das nacionalidades européias criavanovos pontos de apoio, novos materiais, para comparação nas ins­tituições e nos modos de pensar ou sentir modernos. A descober­ta do Novo Mundo colocou esta nova civilização européia facea face com a vida primitiva, e despertou os homens para contras­tes com suas próprias organizações, contrastes estes mais marcantesdo que os bizantinos ou sarracenos poderiam oferecer. O comér­cio, também, colocava agora as nações européias ascendentes emconflito e as Irazia ao conhecimento mútuo; mais do que isso, da­va mais liberdade pessoal aos habitantes das cidades ocidentaisdo que eles jamais haviam possuído. Junto com o crescimento dariqueza e da liberdade veio um despertar da opinião pessoal entreos homens, e mesmo um kvanle da opinião pessoal contra a auto-

ridade que ganhou o nome de Reforma, mas um levante que ­na época dos conflitos feudais, monárquicos e "populares", emque a educação era um privilégio de poucos, e até a transmissãode idéias corriqueiras era tão lenta e irregular quanto as péssi­mas estradas e o pior banditismo conseguiam torná-Ia - pode­ria ser facilmente questionado mesmo em países onde se acredi­tava que tivesse realizado grandes feitos. A indagação individual,e com ela o pensamento comparativo, questionada nos âmbitosda vida social por choques freqüentes com o dogma teológico,voltou-se para o mundo material, começou a acumular grandesreservas de conhecimento material moderno, e somente nos diasmais recentes de liberdade, começou a construir, a partir destelado físico, perspectivas seculares da origem e do destino do ho­mem, que do ponto de vista social havia sido previamente repri­mido pelo dogma. Enquanto isso, o conhecimento europeu davida social do homem nas suas múltiplas variedades atingia pro­porções que nem Bacon nem Locke haviam imaginado. Missio­nários cristãos traziam para o seu país a vida e a literatura daChina de uma forma tão vívida para os europeus que nem a artenem o ceticismo de Voltaire impediram que tomassem emprésti­mo da tradução de um drama chinês publicada em 1735 e feitapelo jesuíta Prémare. Ingleses na Índia aprendiam aquela antigalíngua qu.;;Sir William Jones, no final do século XVIII, haviaapresentado aos estudiosos europeus; e logo os pontos de seme­lhança entre esta língua e a dos gregos e italianos, teutões e cel­tas foram observados e usados como tantos outros elementos queos homens utilizaram em sua imaginação para ultrapassar o vas­to tempo que separa os antigos arianos dos seus descendentes oci­dentais modernos. Desde aquela época o método de compara­ção tem sido aplicado a vários assuntos além da linguagem; emuitas influências novas foram combinadas para tornar o pen­samento da Europa mais pronto do que nunca para comparare contrastar. A máquina a vapor, o telégrafo, a imprensa diáriaagora colocam a vida - local e central, popular e culta - decada país europeu e as ações do mundo inteiro face a face; e oshábitos de comparação surgiram e predominaram de uma ma­neira ampla e vigorosa como nunca. Porém, ao chamarmos cons­cientemente o pensamento comparativo de a grande glória de nos­so século XIX, não nos esqueçamos de que tal pensamento sedeve principalmente ao progresso mecânico e de que, muito an-

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18 LITERATURA COMPARADA o MÉTODO COMPARATIVO E A LITERATURA 19

tes de nossos filólogos comparados, juristas, economistas e ou­tros, estudiosos como Reuchlin usaram o mesmo método de umaforma menos consciente, menos precisa, porém desde o primei­ro momento prenunciando uma visão geral ao invés da perspec­tiva exclusivista da crítica grega. Eis, então, aqui um rápido es­boço do pensamento comparativo na história européia. Comoé tal pensamento, como são seus métodos, ligados ao nosso as­sunto, "Literatura"?

Observou-se que a imaginação mais do que a experiência tra­balha por meio de comparações; mas esquece-se com freqüênciaque o alcance destas comparações está longe de ser ilimitado noespaço e no tempo, na vida social e no ambiente físico. Se a ima­ginação científica, como o Professor Tyndall já explicou e ilus­trou, está muito presa às leis da hipótese, a magia do artista lite­rário que parece tão livre está igualmente presa nos limites dasidéias já estipuladas pela língua deste grupo':~:À diferença do ho­mem de ciências, o homem de literatura não pode cunhar pala­vras para novas idéias; seus versos ou prosa, ao contrário das des­cobertas do homem de ciências, devem atingir a inteligência mé­dia, não a especializada. As palavras devem passar do uso espe­cial para o geral antes de serem usadas por ele; e, na mesma pro­porção em que se desenvolvem tipos especiais de conhecimento(legal, comercial, mecânico, e outros afins), mais acentuada setorna a diferença entre a linguagem da literatura e a da ciência,a linguagem e as idéias da comunidade em contraste com aque­las pertencentes às suas partes especializadas. Se seguirmos a as­censão de qualquer comunidade civilizada a partir dos clãs e tri­bos isoladas, poderemos observar um desenvolvimento duplo queestá intimamente ligado à linguagem e às idéias da literatura ­a expansão do grupo para fora, um processo acompanhado porexpansões de pensamento e sentimento; e uma especialização dasatividades dentro do grupo, um processo do qual depende a as­censão de uma classe literária, religiosa ou secular, que desfruteo lazer. Este último é um processo conhecido pelos economistascomo divisão de trabalho; o primeiro, conhecido pelos arqueó­logos como a fusão de grupos sociais menores em grupos sociaismaiores. Enquanlo que a gama de comparações aumenta de re­lações e afinidades de clã para relações e afinidades nacionaise até mesmo mundiais, () processo de especialização separa idéias,palavras e formas de eSCI'l'verdo domínio apropriado da litera-

tura. Desta forma, na idade homérica, a fala da Ágora nada ti­nha de profissional ou especializada, e é assunto apropriado dapoesia; mas na época da oratória ateniense profissional a fala seencontra fora de compasso com o drama e tem o sabor demasia­damente forte da escola do orador. Poetas árabes da "Ignorân­cia" cantam a sua vida de clã; Spencer resplandece com senti­mentos nacionais cálidos; Goethe e Victor Rugo ultrapassam pen­samentos do destino nacional. É devido a esses dois processosde expansão e especialização que a linguagem e as idéias da lite­ratura se transformam gradualmente a partir da linguagem espe­cial e idéias especiais de certas classes em qualquer comunidadealtamente desenvolvida, e a literatura passa a diferir da ciência,não só por seu caráter imaginativo, mas também pelo fato de quesua linguagem e idéias não pertencem a nenhuma classe especial.Na verdade, sempre que a linguagem e as idéias literárias deixamde ser propriedade comum, a literatura tende para a imitação oupara a especialização, para se tornar ciência com vestes literárias- como muita da poesia metafísica inglesa tem se apresentadoultimamente. Tais fatos destacam a relação do pensamento e dométodo comparativos com a literatura. Será o círculo da fala edo pensamento comuns, o círculo do pensamento comparativodo grupo, tão estreito quanto uma aliança tribal? Ou será quevários des::;çs círculos se combinaram num grupo nacional? Se­rão os ofícios de padre e cantor ainda combinados numa espéciede ritual mágico? Ou será que as profissões e os ofícios se desen­volveram, cada qual, por assim dizer, com seus próprios dialetospor razões práticas? Então devemo-nos lembrar que estas evolu­ções externas e internas da vida social acontecem freqüentemen­te de forma inconsciente, ao formularem comparações e diferen­ças sem refletir na sua natureza ou limites; devemo-nos lembrarque cabe à comparação reflexiva, ao método comparativo, res­gatar este desenvolvimento de uma forma consciente, e procuraras causas que o produziram. Observemos agora o uso literáriode tal comparação numa forma menos abstrata e mais viva.

Quando Matthew Arnold define a função da crítica comosendo' 'um esforço imparcial para se aprender e propagar o quede melhor se sabe e se pensa no mundo", ele tem o cuidado deacrescentar que muito deste melhor conhecimento e pensamentonão tem origem inglesa e sim estrangeira. O crítico inglês nessestempos de literatura internacional deve lidar em grande parte com

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flores e frutas estrangeiras, e, por vezes, com espinhos. Ele nãopode se satisfazer com os produtos da cultura de seu próprio país,embora possam variar desde as frutas selvagens das vastas regiõessolitárias dos saxões à abundância rústica da época elizabetana,da elegância aristocrática de Pope aos gostos democráticos dehoje. Demogeot publicou recentemente um estudo interessantelsobre a influência da Itália, Espanha, Inglaterra e Alemanha naliteratura francesa; nosso crítico inglês deve fazer o mesmo paraa sua literatura. A cada etapa do progresso da literatura de seupaís, ele é de fato forçado a olhar para além de suas costas marí­timas. Será que ele acompanha Chaucer em sua peregrinação eescuta os contos dos peregrinos? Os aromas das terras do sul en­chem a atmosfera do Tabard Inn, e no caminho para Canterburyfaz flutuar seu pensamento em direção à Itália de Dante, de Pe­trarca e de Boccaccio. Será que ele observa a tripulação audacio­sa de Drake e Frobisher descarregar em porto inglês a riquezado seu butim espanhol e escuta a conversa dos grandes capitãescheia de expressões aprendidas dos súditos galantes de Felipe lI?A Espanha de Cervantes e Lope de Vegacresce perante seus olhos,e a nova riqueza física e mental da Inglaterra elizabetana o trans­porta nas asas do comércio e da fantasia aos portos barulhentosde Cádiz e aos palácios dos grandes do reino espanhol. Atravésdas ruas estreitas e sujas da Londres elizabetana, cavalheiros ele­gantes, com espadas espanholas ao lado e expressões espanholasnas bocas, caminham para lá e para cá em vestes ao gosto dosespanhóis. Os teatros rústicos ressoam com alusões espanholas.E, não fosse o conflito mortal entre o inglês e o espanhol nosmares, e o temor dos ingleses à Espanha como defensora da in­terferência papal, o hélicon da Inglaterra poderia vir a esquecero sol poente das repúblicas italianas e apreciar o resplendor daluz solar das influências espanholas. Mas agora nosso crítico seencontra na Whitehall de Carlos 11, ou reclina-se nas poltronasde cafés como o Will's, ou freqüenta os teatros cuja restauraçãorecente corta o coração de seus amigos puritanos. Em todos oslugares, a mesma coisa. As expressões e modos espanhóis foramesquecidos. Na cortc, Buckingham e os outros perfumam seu es­pírito licencioso com !Jouquet francês. No Will's, Dryden glori­fica as tragédias rimadas de Racine; os teatros, extravagantes comartifícios cênicos desconhecidos por Shakespeare, estão repletosde platéias que nos inlervalos lagarelam crítica francesa, e aplau-

dem com igual fervor tanto indecências abusivas quanto a sime­tria formal. Logo o Boileau inglês irá levar a cultura do exotis­mo francês até onde a estufa inglesa comportar, logo o ceticis­mo que a imoralidade requintada da corte, os juízes e o Parla­mento consideram de bom-tom entre os poucos que ainda orien­tam os destinos da nação inglesa passará de Bolingbroke a Vol­taire, e de Voltaire aos revolucionários. Não precisamos acom­panhar nosso crítico a Weimar, nem procurar com ele algumasfontes da influência alemã na Inglaterra na antipatia inglesa pe­la França e a sua revolução. Ele provou que a história da litera­tura em nosso país não pode ser explicada somente pelas causasinglesas, como acontece com a origem da língua inglesa e de seupovo. Ele provou que cada literatura nacional é um centro emdireção ao qual forças nacionais e internacionais gravitam. Nósagradecemos por este vislumbre de um crescimento tão amplo,tão variado, tão cheio de complexa interação; trata-se de um as­pecto da literatura estudada comparativamente, mas, apesar detoda sua aparente amplitude, é apenas um aspecto. A literaturanacional tanto se desenvolveu de dentro como foi influenciadade fora; e o estudo comparativo deste desenvolvimento internoé de muito maior interesse do que o do externo, porque aqueleé menos uma questão de imitação do que de uma evolução dire­tamente dependente de causas sociais e físicas.

Portanto, o estudioso se voltará às fontes internas, sociaisou físicas, do desenvolvimento nacional e ao efeito das diferen­tes fases deste desenvolvimento na literatura como o verdadeirocampo do estudo científico. Ele observará a expansão da vidasocial a partir dos círculos restritos dos clãs ou comunidades tri­bais, possuídos daqueles sentimentos e pensamentos que pode­riam existir dentro de tais esferas restritas, e expressando em suapoesia rústica um intenso sentimento de fraternidade, e débeisconceitos de personalidade. Ele observará o aprofundamento desentimentos pessoais na vida isolada do feudalismo que excluio comunismo do clã, a reflexão de tais sentimentos nas cançõesde heroísmo pessoal, e os novos aspectos que a vida do homem,da natureza, e dos animais - o cavalo, o cão, o falcão da poesiafeudal, por exemplo - assume quando desta mudança na orga­nização social. Então ele notará o início de um novo tipo de vi­da corporativa nas cidades, em cujas ruas os sentimentos de ex­clusividade do clã irão perecer, a extraordinária importância dapcrsonalidade feudal irá desaparecer, novas formas de caráter in-

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dividual e coletivo aparecerão, e o drama tomará o lugar do can­to comunal antigo ou a canção da mansão do chefe tribal. A se­guir, a cena mudará para as cortes da monarquia. Aqui os senti­mentos das cidades e dos senhores feudais são focalizados, a imi­tação dos modelos clássicos complementa as influências de uniãonacional crescente e a literatura, refletindo uma sociedade maisexpandida, um sentido de individualidade mais profundo do quenunca, produz suas obras-primas sob o patrocínio de uma Eliza­beth ou um Luís XlV. Ao observar tais efeitos de evolução socialna literatura o estudioso não irá de modo algum restringir suaperspectiva a este ou àquele país. Ele perceberá que se a Ingla­terra teve sua época dos clãs, a Europa em geral também a teve;que se a França teve sua poesia feudal, também a Alemanha, aEspanha e a Inglaterra a tiveram; que, apesar do crescimento dascidades ter afetado a literatura de forma diferente por toda a Eu­ropa, mesmo assim há características gerais que são comuns àssuas influências; e que o mesmo pode ser dito do centralismo nasnossas nações européias. Siga-se o curso da influência do púlpi­to cristão, das instituições judiciais, ou da assembléia popularsobre o desenvolvimento da prosa nos diferentes países europeus,e logo se perceberá o quanto a evolução social interna se refletiuigualmente na palavra e no pensamento literário, o quão essen­cial se torna para qualquer estudo preciso de literatura passar dalinguagem para as causas que permitiram que a linguagem e opensamento atingissem condições de sustentar uma literatura; eo quão profundamente este estudo deve ser feito em termos decomparação e contraste. No entanto, não devemos subestimar nos­sas dificuldades em traçar os efeitos de tal evolução interna nosversos e prosa de um povo. Ao contrário, devemos admitir logode início que tal evolução é passível de se tornar obscura ou to­talmente oculta devido à imitação de modelos estrangeiros. Mos­traremos agora um exemplo de tal imitação.

Os casos de Roma e da Rússia são suficientes para provarque influências externas, levadas além de certo ponto, podem con­verter a literatura, fruto do grupo a que pertence, em algo exóti­co, merecedor de estudo científico somente como produto artifi­cial indiretamcntc dependente da vida social. Que se forme uminstrumento da fala, que se estabeleça um centro social, que sejadada uma oportunidade para o crescimento de uma classe literá­ria capaz de depender de seu trabalho. Neste caso, somente umacorrente muito forte de idé"iasnacionalistas, ou uma ignorância

(

total de modelos estrangeiros e antigos podem evitar a produçãode trabalho imitativo cujos materiais e composição, não importao quão diferentes sejam daqueles que caracterizam o grupo, po­dem ser emprestados de climas os mais diversos, de condiçõessociais as mais opostas, e das concepções de caráter pessoal per­tencendo a épocas totalmente diferentes. Esta situação é passívelde acontecer quando a minoria erudita de um grupo comparati­vamente não-civilizado passa a conhecer modelos literários dehomens que já passaram por muitos níveis de civilização e quepodem, como parece, fazer com que seja economizado o tempoe o trabalho de repetir em âmbito nacional a mesma trabalhosaascensão. A literatura de imitação de Roma é um exemplo co­nhecido de tal empréstimo, a da Rússia parecia por algum tem­po destinada a seguir os modelos franceses da mesma forma queRoma seguiu os dos gregos. Não se pode deixar de perceber co­mo esta imitação dos modelos franceses invariavelmente iria ocul­tar o verdadeiro espírito nacional da vida russa, lançar um véude ignorância desdenhosa sobre seu passado bárbaro e substituirem sua literatura o desenvolvimento da nação pelo capricho deum grupo russo-gálico. Num país cuja vida social era, e aindaé, baseada principalmente na organização comunitária do Mir,ou comunidade da aldeia, a literatura francesa altamente indivi­dualizada ~ornou-se uma fonte tão favorita de imitação que dei­xou em segundo plano aquelas canções folclóricas que finalmentecomeçam agora a ser examinadas devido ao espírito restauradorda literatura nacional na Rússia e ao estudo social na Europa emgeral. Esta imitação russa da França pode ser ilustrada nos tra­balhos do Príncipe Kantemir (1709-1743), que foi chamado de"o primeiro escritor da Rússia", o amigo de Montesquieu, e oimitador de Boileau e Horácio nas suas epístolas e sátiras; nostrabalhos de Lomonossoff (1711-1765),"o primeiro escritor clás­sico da Rússia", aluno de Wolf, fundador da Universidade de Mos­cou, reformador da língua russa, que, através de seus Panegíri­cos acadêmicos sobre Pedro, o Grande e Elizabeth, tentou suprira carência daquela prosa verdadeiramente oratória que somenteas assembléias livres podem promover, tentou um poema épico,Petreida, em homenagem ao grande Czar, e moldou suas odessegundo os poetas líricos franceses e Píndaro;2 nos trabalhos deSoumarokoff, que adaptou ou traduziu Corneille, Racine e Vol­taire para () leal ro de São Petersburgo estabelecido por Elizabeth,

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da mesma maneira com que Plauto e Terêncio haviam introduzi­do o drama ateniense em Roma. Assim como em Roma se haviaconfigurado um conflito entre os sentimentos da antiga famíliaromana e o espírito individualista dos gregos, bem como os no­bres esclarecidos e de posição se haviam deleitado em substituiros sentimentos arcaicos da vida familiar e medidas arcaicas co­mo os versos saturninos pelo pensamento erudito e pela métricaharmoniosa da Grécia, também na Rússia configurou-se um con­flito entre o individualismo francês, muito estimado pela cortee pelos nobres, e os sentimentos sociais da com una e família. Damesma forma que as Builinas e as canções folclóricas, os monu­mentos mais antigos do pensamento russo - a Crônica do mongeNestor (1056-1116) e a Canção de Igor - certamente não iriamatrair a atenção de tais imitadores; e para um povo que nuncahavia experimentado o feudalismo ocidental com sua poesia decavalaria, que não havia conhecido a Renascença ou a Reforma,chegou uma imitação de progresso ocidental que ameaçou du­rante algum tempo ser tão fatal à literatura nacional quanto aimitação das idéias gregas havia sido para Roma. Nesta Chinaeuropéia, como a Rússia com seus sentimentos de família e de­voção filial ao Czar é chamada, as influências francesas (e pos­teriormente alemãs e inglesas) ilustram de forma clara as dificul­dades a que o trabalho de imitação em descompasso com a vidasocial expõe um cientista da literatura; mas o triunfo crescenteda vida nacional russa como a verdadeira fonte da sua literaturacaracteriza a necessidade de vitalidade verdadeira para qualquerliteratura que dependa de tais imitações estrangeiras.

Estes aspectos internos e externos do crescimento literáriosão, desta forma, objetos da investigação comparativa. As lite­raturas não são palácios de Aladim construídos por mãos invisí­veis num piscar de olhos. São resultados concretos de causas quepodem ser especificadas e descritas. A teoria de que a literaturaé uma obra separada de indivíduos que devem ser adorados co­mo imagens caídas do céu, que não são conhecidos como artífi­ces da linguagem e idéias de sua época e de seu lugar, e a teoriasemelhante de que a imaginação transcende as associações de es­paço e tempo, muito fizeram para ocultar a relação entre ciênciae literatura e prejudicar o trabalho de ambas. Porém esta "teoriados grandes homens" é na verdade suicida. Ao separar a histó­ria da literatura em biografias e impedir o reconhecimento dequaisquer linhas de desenvolvimento ordenado, esta teoria logi-

li,

camente reduz não só aquele que é considerado como "gênio ex­cepcional", mas também todos os homens e mulheres de even­tual personalidade, ao desconhecido, ao infundado. Na verdade,esta teoria resulta numa negação absoluta do conhecimento, li­mitado ou ilimitado. Por outro lado, a teoria de que a imagina­ção opera fora dos limites de espaço e tempo (Coleridge, por exem­plo, nos diz que "Shakespeare está tão desvinculado do tempoquanto Spencer do espaço") não deve ser rejeitada por qualquerafirmação igualmente dogmática de que a imaginação é limita­da pela experiência humana. A teoria deve ser rejeitada ou esta­belecida de acordo com critérios de estudos comparativos.

A questão central destes estudos é a relação do indivíduocom o grupo. Encontramos nossas principais justificativas paraconsiderar a literatura passível de explicação científica nas alte­rações ordenadas pelas quais esta relação passou, da forma co­mo nos é revelada pela comparação entre as literaturas perten­centes a estados sociais diferentes. É bem verdade que há outrasperspectivas profundamente interessantes através das quais a ar­te e a crítica da literatura também podem ser explicadas - a danatureza física, a da vida animal. Porém estas não são suficien­tes para nos revelar os segredos da feitura da obra literária. Por­tanto, com uma modificação, adotamos a expansão gradual davida sociái, do clã para a cidade, da cidade para a nação, de am­bos para a humanidade cosmopolita, como a ordem adequadade nossos estudos de literatura comparada.

NOTAS

1 Histoire des littératures étrangeres. Paris, 1880.

2 Não há dúvida de que o filho do pescador de Arcanjo fez muito para criar uma lite­ratura nacional, principalmente devido a seu rompimento do antigo eslavo da Igreja coma linguagem falada; mas seus trabalhos evidenciam a influência francesa apesar de suaspreferências nacionais.

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OS ESTUDOS DE LITERATURA COMPARADA ... 27

OS ESTUDOS DE LITERATURA COMPARADANO ESTRANGEIRO E NA FRANÇA*

Joseph Texte

Produz-se há alguns anos em torno de nós, na Alemanha, na In­glaterra, na Itália, nos estudos de história literária, um movimentovoltado para o estudo comparativo das literaturas modernas. Denacional ou local como o era geralmente até aqui, a história lite­rária possui uma tendência manifesta de se tornar européia e in­ternacional. As relações das diversas literaturas entre elas, as açõese reações que elas exercem ou sofrem, as influências morais ousimplesmente estéticas que derivam destas trocas de idéias, tudoisto constitui um campo de estudos ainda quase novo e que,acredita-se, preocupará cada vez mais os historiadores. Talvez hajanisso o gérmen de um novo método em história literária. Um es­critor inglês, Posnett, pensou e publicou, há alguns anos, já em1886, um tratado sistemático de literatura comparada, onde pos­tulava as bases da crítica nova.l Sem dúvida, a tentativa é pre­matura, mas é curioso como o próprio livro, somando-se a esteaspecto o grande número de trabalhos que a literatura compara­da suscitou recentemente no estrangeiro, nos leva a crer que estecampo de nossas pesquisas não é, com efeito, sem perspectivas.Este é também o pensamento de um erudito alemão, Wetz,z quepublicou, recentemente, no início de um livro sobre Shakespea­re, uma curiosa síntese da história e dos métodos da crítica com­parativa.

A ocasião parece-me, pois, conveniente, para tratar, diante

* TEXTE, Joseph, Les études de littérature comparée à l'étranger et en France. Revue!nternationale de l'Enseignement. [Paris], 25 (1893), 253-69. Primeira aula de um cursoproferido na Faculté des Lettres de Lyon sobre o tema: a influência das literaturas germâ­nicas sobre a literatura francesa desde o Renascimento.

N,

de vocês, a propósito da literatura francesa, de um tema destanatureza - para nos perguntarmos qual o objetivo de semelhantespesquisas, sua razão de ser, sua legitimidade, enfim suas chancesde desenvolvimento.

Io estudo comparado das obras literárias constitui uma novida­de: Posnett confessa-o com sinceridade. É um dos legados au­tênticos da crítica antiga. Comparar Homero com Virgílio, De­móstenes com Cícero, Menandro com Terêncio, investigar o quetal autor latino deve a tal autor grego, perguntar-se em que fon­te, geralmente estrangeira, Plauto buscou o tema de suas comé­dias, Horácio as regras de sua Arte Poética, Sêneca as intrigasde suas tragédias: estes lugares-comuns da história literária eramfamiliares à crítica dos antigos. Ora, todas estas questões corre­lacionam-se, ao primeiro contato, com a literatura comparada.No entanto, a comparação, ainda que praticada na época pelosantigos, nunca alcançou entre eles a postura de um método porser pouco rigorosa e isto por duas ou três razões que saltam aosolhos: o pequeno número das literaturas conhecidas pelos anti­gos (é bem verdade que os gregos da época clássica parecem terconhecido apenas a própria literatura); a ausência do ponto devista crítico e histórico no estudo destas literaturas; a estreita de­pendência da literatura romana com relação à grega da qual aprimazia permanecerá sempre bem estabelecida e a alta origina­lidade incontestável. Se, aliás, a idéia do cosmopolitismointroduziu-se nos espíritos no declínio das civilizações antigas,esta idéia permaneceu~lhes estranha na época do maior esplen­dor destas civilizações. A superioridade da cultura helênica, ine­gável aos olhos de um grego, sobre toda civilização "bárbara",constitui a morte de toda curiosidade referente aos costumes, àarte e às literaturas exóticas.

Além disso - e esta constitui uma observação engenhosade Posnett - a própria idéia que os antigos faziam da produçãoliterária valorizava pouco o que compreendemos por literaturacomparada. Para que ela tenha lugar nos estudos do gênero deque falamos, é preciso, com efeito, que uma literatura seja con­cebida como a expressão de um estado social determinado, tribo,

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clã ou nação do qual representa as tradições, o gênio e as espe~ranças. É preciso que ela possua um caráter nitidamente local,familiar ou nacional e que a totalidade das obras que a consti­tuem apresente um certo número de traços comuns que lhes as­segurem urna espécie de unidade moral ou estética. É preciso, emsíntese, que ela constitua um gênero bem determinado na grandeespécie da literatura da humanidade. Somente assim pode-se darlugar a aproximações, comparações, ao estudo das afinidades ediferenças. Ora, os antigos nunca conceberam esta relatividadede toda literatura. Esta foi, antes de tudo, aos seus olhos, a ex­pressão das idéias mais gerais, mais permanentes e, se posso di­zer, mais constantemente semelhantes a elas próprias. Corno ciên­cia, só havia para eles literatura geral; o relativo, o local ou o pas­sageiro constituíam tão-somente sombras do quadro, ou, se qui­sermos, um receptáculo destinado a tornar mais viva a grandeluz das verdades que não passam. Assim, a idéia de urna litera­tura que evolui conforme as modificações lentas de urna socie­dade, modelando-se sobre ela e reagindo à sua época, mas semjamais poder desprender-se dela, sempre lhes foi estranha.Compreendia-se a obra literária menos corno urna obra nacionaldo que corno urna pedra trazida para a construção por um mo­mento mais duradouro. Desde então, não havia lugar para esta­belecer urna comparação entre as diversas literaturas conhecidas,a não ser para mostrar que se aproximavam no deprezo do tran­sitório e no culto do imperecível. E, se é verdade, corno o demons­tra H. M. Posnett tão enfaticamente, que a idéia que um povofaz da literatura é um fator importante de seu desenvolvimentoliterário, vê-se suficientemente que conseqüências urna idéia destanatureza pôde ter para a literatura e, por conseguinte, para a crí­tica dos antigos.

Com efeito, a crítica comparativa das obras de arte só podedatar da Idade Moderna. "Foi o Renascimento latino, seguidopouco depois do Renascimento grego, que estabeleceu as funda­ções para o método comparativo no espírito da Europa." Poisé entre o primeiro e o segundo renascimento das letras que asnacionalidades se constituem na Europa corno grupos distintos,nitidamente separados pela origem étnica, pelas instituições e pelaraça. Esta transformação do estado político da Europa é de pri­meira importância para a concepção da história literária que, deuniversal que era ou que deveria ter sido, na Idade Média tornava-

ili

se ou ia tornar-se antes de tudo nacional. Esta unidade relativado pensamento, que haviam imposto na Idade Média a comuni­dade religiosa, o uso universal da língua latina, e a idéia semprerenascendo do Santo Império, rompe-se, portanto, para dar lu­gar à diversidade das raças, dos governos e dos idiomas. Vagase flutuantes até aqui, as fronteiras intelectuais, seguindo nesteaspecto o destino das fronteiras políticas, definem-se e estruturam­se. Às vezes, erguem-se corno barreiras; daí urna nova divisão da"matéria literária". Enquanto em todo o curso da Idade Médiaesta matéria, fosse, aliás, épica, filosófica ou dramática, era dedomínio comum e indivisível entre as nações, subitamente ocor­re um certo tipo de divisão. Cada urna das nações pretende de­terminar sua parte do tesouro, estabelecer sua sorte e, com baseno campo conquistado, imprimir sua marca, tornando-a sua. Tan­tos grupos étnicos, quantas literaturas e línguas distintas. Seguindoa expressão de Posnett, "quando Dante escrevia seu De vulgarieloquio, marcava o ponto de partida de nossa ciência comparati­va, colocando o problema da natureza da linguagem". Ele escre­via, com efeito, a primeira monografia consagrada a urna línguamoderna. Haverá outros nesta mesma linha de pensamento. As­sim nasceu na Europa a filologia comparada. Com o Renasci­mento, ela se aplica aos textos profanos. Com a Reforma, aostextos sagrados. Corno ela está, na ordem lógica, na base da lite­ratura comparada, encontra-se, igualmente, na ordem cronoló­gica, no seu ponto de origem.

A grande revolução política do século XV constitui, pois,a origem autêntica do método comparativo. Ela teve o objetivode diferenciar as literaturas, nacionalizá-Ias, se é lícito dizer,configurando-Ihes urna personalidade estética. Concedeu a cadaurna delas a consciência da unidade, o sentimento da tradiçãonacional, a idéia clara de urna cadeia ininterrupta de obras nopassado e no futuro, entre as quais se podia estabelecer o eixode urna inspiração comum. E, dando origem às literaturas na­cionais, tornou igualmente possível seu estudo crítico e compa­rativo.

Mas um estudo semelhante não pode preceder às própriasobras a não ser corno aspiração e corno indicação à maneira deJoachim du Bellay ou de Henri Estienne, um dizendo, por exem­plo, aos escritores de seu tempo: "Imitem os italianos e Petrar­ca", o outro: "Desconfiem desses modelos perigosos que os afas-

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tarão de suas nacionalidades". Este estudo não teve, ainda noséculo XVI, como se aplicar amplamente a um grande númerode obras francesas sedentas de coisas estrangeiras, italianas e de­pois espanholas. A parte da literatura italiana é considerável naobra crítica da Plêiade. Aliás, a própria Antigüidade foi somen­te estudada por nossos poetas e críticos através da Itália. A in­fluência da Espanha não é menos importante na segunda meta­de do século, como o demonstraram Rathery e Morel-Fatio.3

Se esta curiosidade das literaturas meridionais e sobretudoda literatura espanhola persistiu na França durante os primeirosanos do século XVII, se o próprio conhecimento das duas lín­guas do Sul permaneceu vivo, não menos verdade é o fato de queum dos traços do século XVII francês aferido da época de seumais alto brilho consiste na indiferença pelo que se refere às lín­guas e às literaturas vizinhas. Na segunda metade do século, pe­lo menos, ela se basta a si própria. A influência da Antigüidadeque une todas as admirações, fazendo-as convergir nas duas lite­raturas mais universais, dissolve quase toda a curiosidade dasobras estrangeiras modernas, e a crítica se ressente disto. Rarossão, pois, os escritores que compreendem com Fontenelle que' 'asdiferentes idéias são como plantas e flores que não vingam emqualquer espécie de clima" e que' 'talvez o território francês nãoseja mais próprio para as reflexões que fazem os egípcios do quepara as palmeiras". Fontenelle prevê, neste sentido, o princípioda crítica histórica, ou seja, comparativa, que se refere, antes detudo, ao desenvolvimento nacional da arte e às ligações com osolo, o movimento e os costumes ambientais. O gérmen desta crí­tica encontra-se na abdicação do falso orgulho que nos faz vol­tar toda nossa atenção sobre nós mesmos, erguendo uma espéciede muralha chinesa entre nossos vizinhos e nós. Ora, tal é o esta­do de espírito da maior parte dos homens do século XVII. "Apresença do país - escrevia La Bruyere em Des jugements ­acrescentada ao orgulho da nação faz-nos esquecer que a razãopertence a todos os climas e que se pensa correto em todo lugaronde há homens. Nós não gostaríamos de ser tratados deste mo­do pelos que denominamos bárbaros; e se há em nós alguma bar­bárie, ela consiste no espanto de ver outros povos refletirem co­mo nós". No entanto, nada mais comum que esta espécie de es­panto pueril diante do desconhecido ou esta perplexidade ingê­nua diante das produções estrangeiras. "Os ingleses - dizia Le

Clerc em Mélanges critiques - possuem muitas obras de quali­dade. É lamentável que os autores ingleses não escrevam senãoem sua língua". Pois, afinal, por que saber apenas inglês? E pode­se ser inglês ou persa?

Infelizmente, este ridículo foi por muito tempo de bom-tomna França. Em 1786, o napolitano Malasfina escrevia ainda: "Ofrancês, que se acredita o ser pensante por excelência, vê com umolhar de compaixão todo o resto do gênero humano e orgulha-secada vez mais das homenagens que lhe prestam os estrangeirosaos seus modos, seus encantos, à força e à opulência de sua pá­tria, e também, diga-se, à sua literatura, universalmente admira­da".4

É por isso que, apesar de algumas curiosas tentativas, masisoladas, a crítica comparativa não nasceu na França. Ela tempor pátria a Alemanha e nasceu de uma revolta contra o despo­tismo do jugo francês. Lessing, Herder, Schiller, Tieck, os doisSchlegel, tais são seus verdadeiros fundadores. A luta contra ainfluência francesa e a substituição desta influência pelos mode­los ingleses, tais foram as duas forças. Era preciso, para comba­ter o estrangeiro invasor, estudá-lo e conhecê-lo, e, para substituí-lopor modelos novos, se familiarizar com a literatura que repre­sentavam. Assim, a crítica comparativa fazia suas provas ao mes­mo tempo como método de pesquisa e de análise, de um lado,e como força viva e criadora, de outro: assistia-se ao nascimentosimultâneo da crítica moderna e de uma das maiores literaturasde nosso tempo. Não era mais esta comparação das obras nacio­nais com as obras estrangeiras um simples passatempo de erudi­(os ou de curiosos. Era a própria luta pela independência do pen­samento nacional. Nunca a crítica foi tão fecunda, tão verdadei­ramente digna de sua função. Desde o Renascimento, que ela não;lssume esta função. Herder, o verdadeiro fundador da literatural'omparada, escrevia estas linhas que parecem hoje banais, masquc marcaram época no seu tempo:

Todo homem corajoso que só aprendeu a conhecer o mun­do na praça do mercado, no café ou, no máximo, no Cor­rcspondant de Hambourg, espanta-se da recepção que se fazcm Paris com a chegada de um príncipe indiano, quandoinicia uma história eacha que o clima, a região, a naciona­lidade, mudam a maneira de pensar e o gosto. Ele acusa todas

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32 LITERATURA COMPARADA (lS I ':STUDOS DE LITERATURA COMPARADA ... 33

as nações de loucas e por quê? Porque elas pensam diferen­temente de sua respeitável mãe, de sua ama-de-leite e de seusveneráveis companheiros.5

Sensibilizado pela necessidade de seguir a história das idéias,das obras, dos gêneros literários em todos os povos, sem se es­pantar com as formas bizarras ou inesperadas de que se haviamrevestido, Herder projetava uma história da canção através dasidades, uma história geral da poesia, um paralelo da poesia in­glesa com a poesia alemã. Estabelecia, em uma palavra e, ao mes­mo tempo, esclarecia, do ponto de vista filosófico, os princípiosda literatura comparada. Constituiu-a enquanto estudo distinto,ambicioso talvez, difícil certamente, mas superior à crítica estreita,mesquinha e puramente dogmática de um Voltaire ou até mes­mo de um Diderot! Sentiremos a diferença se quisermos aproxi­mar, por exemplo, as reflexões de Voltaire estabelecendo friamenteque "o entusiasmo é admitido em todos os tipos de poesia emque entre o sentimento" e, notadamente na poesia lírica, as teo­rias de Herder, escrevendo como filósofo e como historiador so­bre este mesmo tema:

o que é a ode? A ode dos gregos, dos romanos, dos orien­tais, dos eslavos, dos modernos não é de modo algum a mes­ma. Qual é a melhor? Qual é a que é tão-somente uma for­ma degenerada? Eu poderia facilmente provar que a maiorparte dos críticos decidiu esta questão conforme suas idéiasfavoritas; cada um, tendo extraído a idéia que tem dela e asregras que lhe atribui de uma única e mesma espécie, conce­bida em um único e mesmo povo, considerou os demais co­mo formas bastardas. O crítico imparcial, ao contrário, olhatodas as espécies como igualmente dignas de suas observa­ções e procura primeiramente traçar, em síntese, uma histó­ria geral para julgar depois detalhes do todo.6

Entre estes dois tipos de críticos, há toda uma distância doponto de vista pura e exclusivamente literário do método históri­co, filosófico e, em uma palavra, comparativo.

Não podemos seguir aqui a história deste método na Ale­manha. Um de seus continuadores contemporâneos, MaxKoch,7 em uma revista, destinada especialmente aos estudos de

literatura comparada, historiou este aspecto. O que interessa ob­servar é que esta nova crítica, divulgada e consagrada na Françapor Mmede StaeI, produziu, sucessivamente e por vezes mesmoem conjunto, dois resultados exatamente opostos. Suscitoú, deum lado - e acabamos de ver um exemplo deste aspecto na Ale­manha -, um movimento de cada povo em direção às origens,um despertar da consciência coletiva, uma concentração de for­ças esparsas ou dispersas para a criação de obras verdadeiramenteautóctones. Provocou, de outro lado - por um contraste espe­rado -, uma diminuição das fronteiras, uma comunicação maislivre entre os povos vizinhos, uma inteligência mais aberta e maiscompleta das obras estrangeiras. Foi, num sentido, um agente deconcentração e, em outro, um fermento de dissolução. Ao mes­mo tempo que constituía, por reação primeiramente e por imita­ção depois, literaturas nacionais, preparava, acima do interessedestes grupos estreitos e fechados, a vinda de uma literatura in­ternacional, ou, pelo menos, européia. Um dos que emancipoua literatura alemã, A. W. Schlegel, escrevia orgulhosamente em1804: "O cosmopolitismo é o verdadeiro traço nacional da raçaalemã (Vorlesungen)". Assim foi possível ver os fundadores dapátria literária alemã atribuírem-se o direito da pátria universal.Se o nacionalismo nasceu da crítica comparativa, o cosmopoli­tismo ou o internacionalismo originou-se igualmente desta críti­ca. Primeiramente, seguindo a trilha do sonho da hegemonia queperpassa infalivelmente toda superioridade nacional e que faziaRivaral escrever quando pensava na língua francesa: "A filoso­fia, cansada de ver os homens sempre divididos por interessesdiversos da política, rejubila-se agora de vê-Ios, de uma extremi­dade da terra a outra, formar uma república sob a dominaçãode uma mesma língua". A seguir, porque estava na lógica das coi­sas que, depois de haver tanto comparado e tanto aproximadoe, digamos, tanto misturado obras de origens diversas, resultoulima espécie de ideal misto, formado por elementos aproxima­dos artificialmente com vistas à formação de uma literatura que,no futuro, não será mais especificamente inglesa, nem alemã, nemfrancesa, nem italiana, mas simplesmente européia.

O dia em que se formar esta literatura nova - da qual a ci­vilização moderna, os jornais, as revistas, as vias férreas, o telé­1'1: ilo c a rapidez das comunicações apressarão talvez o futuroII\:Ii~; do que se pensa - toda crítica literária será internacional.

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34 LITERATURA COMPARADA

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,,',1:;1111)( lS DI<: LITERATURA COMPARADA ... 35

Neste dia, com efeito, acima das fronteiras políticas, se existemainda, serão entrelaçadas as ligações invisíveis que unirão os po­vos aos povos e que formarão, como antigamente na Idade Mé­dia, uma alma coletiva para a Europa. Se ainda não estamos lá,não se deve esconder que estamos nos trilhos desta via de pes­quisa. A necessidade de exotismo e de cosmopolitismo que nosatormenta constitui a melhor prova disso. No seu curioso livrosobre os escritores afrancesados, E. Hennequin constatava-o nestestermos:

A literatura nacional nunca foi suficiente e hoje menos ain­da para expressar os sentimentos dominantes de nossa so­ciedade ... Esta se reconheceu mais intensamente nas produ­ções de certos gênios estrangeiros, do que nas dos poetas econtistas a que deu origem. Assim, haveria, entre os espíri­tos, laços eletivos mais livres e mais vivos do que nesta lon­ga comunidade do sangue, do solo, do idioma, da história,dos costumes que parecia unir e desunir os povos; estes nãose dividiriam por irredutíveis particularidades como a esco­la histórica moderna se empenhou em fazê-lo crer.8

Se isto é verdade, talvez vejamos renascer, sob uma outra for­ma, o Santo Império de nossos pais, esta pátria única que deviaencerrar num mesmo lugar todos os espíritos e todas as vonta­des. Se este fenômeno, totalmente impossível, totalmente quími­co - ao menos em matéria de arte e de gosto -, nunca se pro­duz, uma grande parte de responsabilidade será atribuída à nos­sa literatura. Pátria do socialismo político, a França seria tam­bém a pátria do que se poderia denominar socialismo intelectual.

11

Esperando a formação, do ponto de vista literário, como do pontode vista político, dos Estados Unidos da Europa, não é permiti­do ao historiador literário perder de vista a abordagem sintética,mesmo se tratando de uma só das literaturas modernas.

Duas razões, como se acaba de prever, autorizam este pontode vista: 1~)as reações exercidas umas sobre as outras há trezen-

111~; ;IIIOSpelas diversas literaturas européias; 2~) a constituiçãoplO/',1essiva,lenta e segura, por assimilação e absorção, de umIIk:d literário internacional, análogo, na espécie, ao da Idade Mé­di:!. Se estas duas razões não marcaram, há três séculos ou mais,a níl ica literária na França, isto se deve, em primeiro lugar, co­1110vimos, à influência tirânica por longo tempo do ideal antigol' ;'1 IlIoldagem de nosso espírito clássico pela Antigüidade; pos­Iniormcnte, ao medíocre conhecimento das línguas estrangeiras,~elllprepouco divulgados e que decorre talvez (ao menos paraas línguas germânicas) de alguma inaptidão orgânica; enfim, aIInla ecrta falta de curiosidade de crianças mimadas pelo sucessoqlle faz, segundo a bela expressão de Sainte-Beuve, com que "osrranceses gostem de aprender o que sabem".

Mas nenhuma destas razões deve prevalecer contra a neces­sidade absoluta, para estudar qualquer uma das literaturas mo­dernas, de recolocá-la no seu meio europeu: "É preciso - nosadverte Brunetiere9 - tratar de agora em diante da história daliteratura francesa, não mais como uma história particularbastando-se a si própria, mas como uma ramificação da litera­tma européia: quero dizer que há oito ou dez séculos se realiza,de algum modo, de uma extremidade a outra da Europa, um co­nhecimento ou uma troca de idéias, e que já seria tempo de to­marmos consciência disso e, ao fazê-lo, seria conveniente subor­dinarmos a história das literaturas particulares à história geralda literatura da Europa ... Se nos colocássemos sob este pontode vista para estudar a história da literatura francesa, ela não pa­receria nem menos original nem menos clássica e, ouso acrescentar,seria em parte renovada.

É que, com efeito, assim como um organismo animal, umaliteratura ou uma nação não crescem isoladas das nações e daslileraturas vizinhas. O estudo de um ser vivo constitui, em gran­de parte, o estudo das relações que o unem aos seres vivos: rela­\~()esmúltiplas, ações e reações diversas, influências de todo gê­lIero que nos envolvem como uma cortina invisível. Não há umaliteratura nem talvez um escritor do qual se possa dizer que a his­Iória se encerra nos limites de seu país de origem. A história daliteratura moderna não constitui ela própria um prolongamentoc, de certo modo, um capítulo da literatura grega? A metade da!',randeza ou, no mínimo, a glória de Aristóteles não provém dalorlllna póstuma, tão curiosa, tão inesperada?lOSeria fácil, sem

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36 LITERATURA COMPARADA ()~, HSIUDOS DE LITERATURA COMPARADA ... 37

dúvida, provar que Sêneca, o Trágico, nos interessa menos, emsuma, por suas próprias obras, do que pela influência conside­rável que estas exerceram através do tempo e notadamente sobreo desenvolvimento da tragédia francesa. Semelhante, neste aspecto,a muitos escritores de segunda ordem, ele interessa principalmentepelos erros e mal-entendidos, às vezes fecundos, a que deu lugar.O que é certo é que uma história do teatro francês em que nãose considerasse Sêneca estaria sujeita a grave crítica. Sobre a in­fluência de Plauto nas literaturas modernas, um crítico alemãocompôs, há alguns anos, um interessante trabalho que poderiaser aplicado a quase todos os escritores antigos.l1 Sabe-se qualfoi, na Idade Média, a fortuna das epopéias francesas na Euro­pa e que os Niebelungen não existiriam sem elas. E, no que serefere às literaturas modernas - citando-se alguns exemplos -,é incontestável que a história do petrarquismo interessa tanto àliteratura francesa ou inglesa quanto à italiana. O último capítu­lo, e não o menos importante, a ser escrito sobre Petrarca, é umcapítulo muito curioso da literatura européia. Poderia dizer-seo mesmo de Tasso e de Dante. Quem negará que a história doDecamerão não interessa no mais alto grau à literatura francesaatravés de La Fontaine e de todos os contistas, à inglesa atravésde Shakespeare, à alemã através de Hans Sachs? Os maiores es­critores, os mais europeus de todos, em cada literatura (e isto cons­titui uma das causas de sua popularidade) estão imbuídos do exo­tismo. Chaucer está repleto de França e Itália, Corneille de Es­panha, Shakespeare e Moliere de Itália, Diderot de Inglaterra.Ao longo de toda história das literaturas modernas, ocorrem so­mente empréstimos e trocas sucessivas que obrigam cada umadelas a estabelecer correlações com a vizinha, e vice-versa. Vol­taire, que não praticou sempre o método comparativo em críti­ca, postulava o princípio quando escrevia: "Quase tudo é imita­ção ... Há livros como fogo em nossos lares; busca-se o fogo novizinho, acende-se-o em casa, comunica-se-o a outros e ele per­tence a todos".

Como compreender a evolução da literatura alemã, sem daras razões da aceitação da influência francesa a que se submete­ram os escritores alemães, e posteriormente as de sua recusa emproveito da inglesa? A história da imitação de Shakespeare naEuropa seria por si so um dos capítulos essenciais a serem escri­tos sobre a literatura moderna. O romantismo constitui primei-

ramente um acontecimento internacional e que só pode ser ex­plicado pela aproximação das literaturas entre si, como o demons­Irou brilhantemente G. Brandes.12 Do mesmo modo que o ro­mantismo francês não se explica sem a intervenção de elementosestrangeiros, o romantismo alemão não teria existido muito me­nos sem Rousseau, cuja influência constitui uma das maiores emais profundas que já se viram. O próprio Rousseau deve muitoà literatura alemã, ao menos no tocante à sua educação e à suareligião germânicas. E ele não é o único neste século XVIII tãoessencialmente cosmopolita a ter tomado de empréstimo o me­lhor dele mesmo do estrangeiro. Se Voltaire deve muito à Ingla­terra, "Diderot é totalmente inglês"13 e, de modo mais geral, odesenvolvimento da literatura francesa no século passado só seexplica através da Inglaterra. Parece, em definitivo, que as litera­turas somente se desenvolvem e progridem por meio de emprés­timos mútuos. É preciso, para fazer germinar obras originais,preparar-Ihes uma espécie de húmus composto de resquícios vin­dos de fora. Como as espécies em história natural, as literaturasnão possuem limites precisos, penetram-se mutuamente etransformam-se umas em outras, em virtude de leis misteriosasou, pelo menos, mal definidas. Há como uma matéria fluida queescorre sucessivamente em formas diversas, sob modos infinita­mente variados, em cérebros inteiramente diferentes e que, pas­sando de um a outro, leva consigo cada vez um elemento novoe um princípio ativo.

Se as literaturas podem ser comparadas, em certa medida,às espécies animais pela natureza de sua evolução, é preciso, pois,estudá-Ias mediante um método análogo, bastante específico eprofundo, capaz de explicar a complexidade dos fatos aos quaisse aplica. E este método só pode ser, como todo método científi­co, o método comparativo, ponto de ligação entre ciências tãodistantes quanto a anatomia e a gramática, a zoologia e a lin­güística, a paleontologia e a ciência das religiões.

Objeta-se que a multiplicidade das línguas e o enorme nú­mero de conhecimentos necessários tornam a sua aplicação mui­to difícil às literaturas, às modernas pelo menos. Isto diz respei­to também às origens literárias dos povos modernos ou à sua li­lera/ura popular, em que a simplicidade dos fatos estudados seplesta melhor a aproximações deste tipo e em que a imitação,;1illrllll'lIcia ou a troca se inter-relacionam; sabe-se, igualmente,

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38 LITERATURACOMPARADA ()S LsrUDOsDE LITERATURACOMPARADA... 39

que as pesquisas dos folcloristas se voltam em geral para a litera­tura comparada e que o estudo das fontes de uma obra constituipara a literatura da Idade Média, ao menos, um dos capítulosessenciais do trabalho que suscita. Mas as literaturas modernascom sua complexidade infinita prestam-se a pesquisas dessa na­tureza? Não nos arriscamos a perder-nos na multiplicidade dosnomes e das obras, no infinito do detalhe, na onda das influên­cias indefiníveis e sempre duvidosas? A única resposta para istoé que a dificuldade de uma obra não destrói a necessidade; queas pesquisas de literatura comparada, indispensáveis à total com­preensão dos fatos literários, já produziram, na Alemanha e naInglaterra, trabalhos com tão bons resultados que se pode tentarfazê-Ios também na França; e, finalmente que, aqui como em to­do lugar, a divisão do trabalho suprirá a insuficiência dos ho­mens. Trata-se de saber se o método comparativo não fez incur­sões em outros campos além do de história literária. Ora, semfalar das ciências naturais, não é verdade que o método compa­rativo renovou no século XIX a filologia, a história política e acrítica da arte? Não é verdade, para nos determos neste últimoexemplo, que o estudo das obras de arte impõe a necessidade denão nos confinarmos apenas a uma escola, mas a dar-nos contada inter-relação das várias escolas, como a pintura flamenga coma italiana, a escultura grega com a arte oriental. Um crítico quelimitasse seu horizonte a um grupo único de obras e de homenscondenar-se-ia à impotência.14 A originalidade de um crítico co­mo Eugene Fromentin não reside precisamente neste conhecimentoexato, neste sentimento delicado das analogias e das diferençasque lhe fornece tantas sínteses criadoras ao mesmo tempo queprecisas e novas?15 Ora, o que é verdadeiro dos monumentos fi­gurados o é igualmente das obras literárias. De fato, o destinoda crítica comparativa liga~se ao da crítica histórica. Não se es­tuda a função de um homem sem recolocá-Io em seu meio e emseu tempo. Não se escreve a história do espírito de um grandeescritor sem tecer a história de sua educação bem como a de suasleituras. Do mesmo modo, o conjunto de obras que constitui umaliteratura só se compreende e só pode ser explicado se recoloca­do no conjunto geral de que se originou.

Num livro capital e bem pouco popular, Mmede Stael diziajustamente: "Observando as diferenças características identifi­cadas nos escritos dos italianos, dos ingleses, dos alemães e dos

franceses, pensei poder demonstrar que as instituições políticase religiosas possuíam a maior parte destas diversidades constan­tes" (De Ia littérature considerée dans ses rapports avec les insti­/utions sociales). Apliquemos, pois, ao estudo destes escritos ométodo que aplicaríamos ao das instituições e, se não ocorrer aninguém a idéia de estudar a democracia ou a monarquia repre­sentativa na França, abstraindo a história da Inglaterra, comoadmitir que a história da tragédia, do romance ou do lirismo nãose esclareça também pela comparação com esta mesma históriaentre os povos estrangeiros? Talvez sejamos vítimas ainda em his­tória literária deste culto dos grandes homens, deste hero-Worshipde que fala Carlyle e que substitui, perigosamente, as forças len­tas da natureza, a ação surpreendente de alguns homens de gê­nio. Se esta ação é inegável, se ela constitui, de algum modo, nodesenvolvimento da literatura, um elemento imprevisto e pertur­bador, não menos verdade é o fato de que se mantém excepcio­nal. A história de uma literatura não é a história de uma suces­são de golpes de estado e, se certas influências pessoais nos pare­cem tão consideráveis, é porque não sabemos depreender as ver­dadeiras origens. É a Inglaterra que penetra na França com Vol­taire ou com Diderot, é a Alemanha que nos chega através deRousseau.

Os alemães, com seu espírito filosófico e sintético, percebe­ram este aspecto; é, por isso que, há vários anos, as pesquisas deliteratura comparada florescem entre eles. Nesta ordem de pes­quisa, eles nos mostraram o caminho. Veja-se Hettner, na sua belahistória geral da literatura do século XVIII na Alemanha, na In­glaterra e na França, obra, por vezes, paradoxal e arrojada masrica em sínteses novas e aproximações interessantes. 16 Veja-se G.Brandes, o célebre crítico dinamarquês, mas do qual a reputaçãolá-se sobretudo na Alemanha com sua importante obra sobre asgrandes correntes çla literatura européia do século XIX. I? Sãoobras muito generosas e, talvez, mesmo, demasiado generosas paralIão fornecer matéria à crítica.18 Fácil é citar obras desta nature­za de caráter mais estritamente científico. Neste sentido, Th. Süp­pie legou-nos em três volumes uma história que nos faltava dainfluência da Alemanha sobre a França, desde a Idade Média,lIoladamente em literatura. J.- J. Honegger estudou, alguns anos;Illles, a influência da França na Europa na sua Kritische Ges­dl/e/ile der franzosichen Cultureinflusse.19 Mais recentemente,

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40 LITERATURA COMPARADA OS ESTUDOS DE LITERATURA COMPARADA ... 41

Schmidt consagrou um livro curioso à influência de Rousseau so­bre Byron.20Wetz começou, há alguns anos, um estudo sobre ainfluência da literatura inglesa sobre a França - Die Anfiingedes bürgerlichen Dramas in Frankreich (Worms, 1885). Uma re­vista especial, dirigida por Max Koch e por L. Geiger, dedica-seexclusivamente às pesquisas de literatura comparada desde188721e publica trabalhos que concernem tanto ao Renascimen­to, quanto à época moderna (sobretudo os séculos XVIII e XIX).Mais recentemente, A. Farinelli publicou o primeiro volume deuma história das relações da literatura espanhola com a literatu­ra alemã.22

Na Inglaterra, a literatura comparada deu origem tambéma pesquisas importantes: produziu o primeiro tratado sistemáti­co sobre a matéria, o de H. M. Posnett, Comparative Literature(Londres, 1886), imperfeito e incompleto, como mencionamos,mas repleto de idéias novas e originais. Não podemos entrar,neste estudo, na discussão das idéias pessoais de Posnett. Bastaafirmar que seu livro, que passou quase despercebido na Fran­ça, constitui uma das mais curiosas tentativas feitas há muitotempo para renovar o estudo das obras literárias, tornando-omais científico.

É preciso citar igualmente um livro importante de Herfordsobre as relações da Alemanha com a Inglaterra no século XVI,Studies in the Literary Relations of England and Germany in lhe16th Century (Cambridge, 1886).

Na França, Sayous legou-nos dois bons livros sobre a litera­tura francesa no estrangeiro. C. Dejob, a propósito de MmedeStaeI, estudou recentemente a influência francesa na Itália. Bonet­Maury dedicou uma tese de doutorado a Bürger e às origens in­glesas da balada na Alemanha.

Para a compreensão de nossa literatura nacional, é desejá­vel que estes exemplos sejam seguidos. Há anos que Eugene Gan­dar afirmou, abrindo um curso sobre Goethe:

Não é mais possível pensar em escrever a história do gêniode nossa nação, sem levar em conta os laços que nos ligama nossos vizinhos do mesmo modo que aos antigos. O estu­do das literaturas estrangeiras e da influência que elas exer­ceram sobre a nossa fornece-nos o segredo de nossos maio­res erros; às vezes também nos explica a rapidez de nossos

progressos. Ao mesmo tempo, a influência da literatura fran­cesa sobre as literaturas estrangeiras, progressivamente fe­cunda, estéril, funesta, poderia restituir às vezes o sentimentode nossa força, mostrando-nos a facilidade com que nossasidéias se projetam no mundo, às vezes a consciência de nos­sos defeitos, exagerados por uma imitação inábil. 23

Poder-se-ia acrescentar a este testemunho o de Brunetiere de­clarando, na introdução de seu livro sobre A evolução dos gêne­ros, que não há obra cuja falta se faça sentir tão vivamente quantouma história da influência das literaturas estrangeiras sobre a li­teratura francesa.

É que, com efeito, semelhantes estudos não possuem unica­mente um interesse histórico considerável. Eles são ainda um dosmelhores meios de fortificar o julgamento estético, mostrando­o. Se é verdade, conforme a palavra de Joseph de Maistre, que"cada nação é para a outra uma posteridade contemporânea",o melhor procedimento para avaliar uma obra, seja contempo­rânea, seja já antiga, no seu justo valor, será investigar o que es­ta se tornou, passando por aquela espécie de filtro que é o julga­mento dos estrangeiros. Há um interesse de primeira ordem emnão nos referirmos, a respeito dos autores franceses, somente ànossa apreciação, mas consultarmos também a avaliação, menossuspeita, da Europa como um todo. Matthew Arnold demons­trou antigamente a necessidade, para toda crítica séria, de nãose deter, como elemento de comparação, nas literaturas antigasque, tendo passado, de algum modo, na nossa carne e no nossosangue, não são mais, legitimamente, estrangeiras. "É preciso ­dizia ele - que um crítico literário digno deste nome conheçapelo menos duas literaturas modernas". Estamos convencidos deque o futuro dará razão a Matthew Arnold.

Enfim, se a história literária não possui um fim em si mes­ma, se visa, como toda investigação digna do nome de ciência,a alguns resultados que a ultrapassam, se ela pretende, finalmente,ser uma forma da psicologia das raças e dos homens, toda ambi­ção lhe será limitada neste aspecto,24pois o estudo de um úni­co tipo de homens ou de uma única espécie de literatura, se podeser um passatempo agradável, não é um estudo científico. Só éverdadeiramente filosófica a análise feita com vistas a uma sÍn­Il'se final - longínqua, talvez, mas enfim esperada. Quem diz

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ciência, diz comparação. A todas estas perguntas: O que é a lite­ratura? Qual é a lei de seu desenvolvimento? Qual a relação queestabelece com a sociedade? O que é um gênero? Quais são asleis da evolução dos gêneros? O que é o progresso em literatura?Quais são as principais classes de espírito do ponto de vista esté­tico? A estas questões e a centenas de outras que é fácil tratarcomo banalidades sem alcance, mas que constituem, no fundo,a única razão de ser de nossas investigações, parece só haver res­posta pela literatura comparada. Toda pesquisa legitima-se pormeio de uma ambição, seja ela desmesurada, e por intermédióde uma esperança, seja ela quimérica.

Não será demasiado talvez, um dia ou outro, para tratar daliteratura francesa, dotar-se de espírito universal e internacional,ainda que pouco. No momento, é preciso aplicar-se na obtenção,seguindo as palavras de Mme de Stael, do "espírito europeu".

15 Ver, por ex., em Maftres d'Autrefois, o que se diz da influência italiana em Rubens.16 HETTNER. Geschichte der franz6slichen Literatur des 18. Jahrhunderts. O volumeque trata da França apareceu em 1856.

17 BRANDES, G. Die Literatur des 19. Jahrhunderts in ihren Haupstr6mungen darges­tellt. O vol. 5 sobre o romantismo francês é de 1881.

18 Geschichte des deutschen Cultureinflusses auf Frankreich mit besonderer Berucksichn­ligung der literarischen Einwirkung. Gotha, 1886-90.

19 Kritische Geschichte der franz6sischen Cultureinf'usse. Berlim, 1875.

20 Rousseau und Byron, ein Beitrag zur vergleichenden Literaturgeschichte des Revolu­tionszeitalter. Greifswald, 1889.

21 Zeitschrijt für vergleichende Literaturgeschichte. Berlim.22 Die Beziehunqen Zwischen Spanien und Deutschland in der Literatur der beiden Laen­der. Berlim, 1892 (1 ~ parte). Outro estudioso, Reumont, já havia publicado um trabalhosemelhante sobre a Itália e a Alemanha: Relazione delle letteratura italiana e quella diGermania, 1853.

23 Sourciers d'Enseignement, p. 16.

24 Ver POSNETT, H. M. What is Literature?, livro l, capo r.

42 LITERATURA COMPARADAos ESTUDOS DE LITERATURA COMPARADA ... 43

NOTAS

I POSNETT, H. M. Comparative Literature. Londres, 1886 (The lntemational Scien­tific Series, 1).

2 WETZ, W. Shakespeare vom Standpunkt der vergleichenden Literaturgeschichte.Worms, 1890, t. 1.

3 RATHERY. Influence de I'Italie sur les lettres françaises depuis le XIIJe siecle jus­qu'au regne de Louis XlV, 1853; e MOREL-FATIO, M. Études sur I'Espagne, 1888. Vertambém a respeito da Espanha: CHASLES, Philarete. Études sur I'Espagne, 1847; e HA­NOTAUX, G. Études historiques sur le XVle et le XVIJe siecles.4 Ver o artigo de G. Pinas sobre Malasfina no Journal des Débats, de 2 set. 1891.

5 De Ia diversité du gout et de Ia maniere de penser parmi les hommes. Cito JONETem Herder, p. 351.

6 Essai d'une histoire de Ia poésie. Cito JONET, ibid., p. 350.

7 Ver Zeitschrijt für vergleichende Literatur. Berlim, 1887. t. 1.

8 Écrivains francisés, lU.9 Revue des Deux Mondes, 10 de maio 1891.

10 Ver, por ex., GlDEL, C. Nouvelles études sur Ia littérature grecque moderne, 1878.

11 REINHARDSTOTTNER, K. V. Plautus: Spiilere Bearbeitungen plautinischer Lust­spiele. Leipzig, 1886-89.

12 Les grands courants de Ia littérature européenne au XVle siecle, 1872-76.

13 BRUNETIERE. Le roman naturaliste, p. 264.

14 Ver PARKER. Nature of Fine Arts e HENNEQUlN, E. La critique scientijique.

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(1I\SHRVAÇÕES CRÍTICAS A RESPEITO DA NATUREZA ... 45

OBSERVAÇÕES CRÍTICAS A RESPEITO DANATUREZA, FUNÇÃO E SIGNIFICADO DAHISTÓRIA DA LITERATURA COMPARADA*

Louis Paul Betz

Ao tentar falar sobre esta área vasta e relativamente nova dos es­tudos literários, estou ciente de que posso parecer um turista queresolve descrever os atalhos e outras características de uma mon­tanha alta que ele meramente observou de uma planície próxima- embora detalhadamente, com muito discernimento e com ex­celentes binóculos. Em outras palavras, as observações que se se­guem são o resultado de estudo e ensino só até certo ponto; nãoestão baseadas em muitos anos de experiência. São de naturezaquase que exclusivamente teórica. Trata-se de reflexões de um ho­mem de letras que tenta, no início de sua carreira acadêmica, es­clarecer e dar conta da disciplina acadêmica pela qual ele optoue que está mais próxima de suas qualificações.

Sabe-se bem que muito tem sido escrito, principalmente nosúltimos anos, acerca da posição e da natureza da história da lite­ratura comparada, bem como sobre a história da literatura co­mo tal, em oposição à filologia e à estética. Nessa guerra pacífi­ca, tiros de calibre bem grosso têm sido disparados pelos reitoresde universidades sob a forma de discursos contra os quais os ata­ques mais corajosos dos valentes docentes (Privatdozenten) têmse mostrado, é claro, impotentes. Hoje as coisas continuam co­mo estavam no passado - e se eu preciso arriscar opiniões e pro­postas desrespeitosas, como o tópico deste ensaio naturalmenteexige, longe de mim apresentar uma nova sabedoria de modo al­tivo ou acreditar nas realizações dos mais modestos planos dereforma.

* BETZ, Louis Paul. Critical Observíltions on the Nature, Function and Meaning of Com­parative Literary History. In: SCHULZ, H.l. & RHEIN, P.H. Comparative Literature:The Early }éars. Chapel Hill, Univ. of North Carolina Press, 1973, p. 137-51.

É óbvio que é impossível tratar este assunto de uma manei­ra exaustiva ou criticar todos os detalhes desta controvérsia com­plicada. Dar-me-ei por satisfeito se puder apresentar um quadroclaro e sintético deste problema, que na verdade não é tão com­plicado se for abordado com mais bom senso e menos filosofia.

A resposta à pergunta principal - o que se entende por his­tória da literatura comparada - é a seguinte: trata-se de qualquerreflexão sobre uma literatura nacional em termos de literatura ge­ral; a história do desenvolvimento literário de um povo em com­

paraçaõ·êõ"iiié~()col1téêt~ .d~iUt.e.ià.iurasde Outras m~SQ_t:sciyi­liZiiClãs:Assirii'como O estudo da filologia é inconcebível sem acomparação, toda pesquisa literária qllese consid..~r~_~rygjtatemde ser comparativa:Jã-qUeíiêiiliuma Titerâturã"européia,à exceçãoda literatura da Grécia Antiga, desenvolveu-se em bases ex­clusivamente nacionais, o conceito de história literária (se não formuito restrito) e o de história da literatura comparada (se nãofor muito abrangente) deveriam ser idênticos. Mesmo assim, estadefinição não é um passo à frente, já que são precisamente a na­tureza e o objetivo dos estudos literários em relação à filologia eà filosofia que há décadas têm sido o objeto de controvérsias.

Se procurarmos um leitmotiv nas obras dos defensores damudança, notaremos um movimento generalizado de se partir dasuperfície para a profundidade, de se deduzir leis dos fenôme­nos da história das idéias, de se buscar princípios, e, como con­seqüência lógica e prática, detectarmos a demanda mais ou me­nos explícita de se separar a história da literatura comparada doestudo da filologia. Em outras palavras: um espírito filosófico­estético e separatista está-se disseminando pelo antigo e vasto cam­po da filologia e pode-se afirmar com segurança que nos últi­mos cinco anos não é o problema das línguas modernas que temsido alvo das controvérsias, mas sim o problema da história lite­rária. O lema é: reforma dos métodos dos estudos literários mo­dernos. Enquanto a história da literatura estiver confinada à afir­mação de fatos históricos e à exposição destes em ordem cr()!!ç­lógica sem se envolver nas explicações sobre os fenômenos e suasleis, ela não deveria ser considerada erudita.

Há pleno acordo noprinCÍpió da oposição, ou da rejeição;no entanto, há muito menos acordo quanto à definição da novadisciplina, sua natureza e métodos. Alguns atribuem ao histo­riador literário o papel fundamental; seguem-se o psicólogo c por

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46 LITERATURA COMPARADA (lBSERVAÇÕES CRÍTICAS A RESPEITO DA NATUREZA ... 47

fim o estudioso da estética, como um apêndice. Outros garan­tem: primeiro a crítica, depois a análise; somente a partir daí co­meça o trabalho do historiador. Um terceiro grupo nos asseguraque só há duas disciplinas: a filosófico-estética e a filológica; paraevitar uma abordagem unilateral, estas deveriam se complemen­tar mutuamente.

No entanto, nesta luta pela clareza e pela reforma da históriaerudita da literatura dois sintomas podem ser facilmente percebi­dos: 1)a influência de idéias inovadoras que derivam dos trabalhosde H. Taine e Émile Hennequin, e 2) o surgimento da história daliteratura comparada. A história internacional da literatura comseus métodos comparativos entra em destaque. Os assuntos maisprementes estão ligados a ela e não se pode negar sua validade eatualidade se os estudos históricos de literatura nas universidadesalemãs forem considerados objetivamente e sem preconceitos.

Assim como os trabalhos de Hermann Paul não podem serdeixados de lado quando da avaliação dos princípios da históriada linguagem, o nome de Wetz deve ser mencionado quando anatureza da história da literatura comparada for investigada, nãopor aquele ter descoberto a filosofia da linguagem e este, a his­tória da literatura comparada, mas pelo fato de tanto o autor dePrinzipien der Sprachgeschichte quanto o autor da famosa in­trodução ao seu livro Shakespeare vom Standpunkte der verglei­chenden Literaturgeschichte (Worms, 1890) serem filósofos que,com suas obras penetrantes, insuflaram vida nova em suas res­pectivas disciplinas conservadoras.

Examinemos as idéias principais de Wetz a fim de tentar­mos obter alguns resultados práticos para uma definição do quegostaríamos que fosse entendido por história da literatura com­parada a partir de uma breve crítica de algumas de suas teoriase definições. O que até agora tem sido aceito sob o título de his­tória da literatura comparada, de acordo com Wetz, não só vaialém dos limites da disciplina, mas também deixa de defini-ia deacordo com o sentido apropriado do termo. Para ele, a naturezada história da literatura comparada encontra-se somente no se­guinte: penetrar na essência dos fenômenos literários individuaisatravés da comparação de fenômenos análogos; desvendar as leisque são responsáveis pelas semelhanças bem como pelas diferen-

ças. O que ele exclui de sua concepção de história da literaturacomparada é a história das transformações das idéias e das for­mas bem como o significado universal de fenômenos particula­res e o estudo da troca e da dependência, isto é, a história uni­versal e internacional da literatura.

Para chegar às leis, Wetz começa determinando as caracte­rísticas dos fenômenos literários através da comparação, e somentea partir daí, como ele afirma, dá-se início ao assunto principal,ou seja, uma explicação sobre as causas destas características. Asdiferenças, de acordo com Wetz, são causadas pelos temperamen­tos diversos das nações. Desta forma, ele acredita, a história daliteratura comparada poderia tornar-se psicológica, isto é, nosforneceria conhecimento sobre o caráter das nações. Wetz colo­ca o problema psicológico à frente da história da literatura com­parada: desta forma ele pretende estabelecer uma nova discipli­na que ele espera venha a gerar leis de validade geral. E ele sedefende dos ataques de estar assim revivendo artificialmente ahistória estética da literatura, que felizmente havia sido supera­da. Não há dúvida de que se pode afirmar aqui: "Qui s'excuses'accuse!" Quem escreve um livro inteiro sobre Shakespeare (aoqual, diga-se de passagem, somente uma inveja pedante pode ne­gar espírito e profundidade) meramente para explorar a nature­za e as leis do trágico através da comparação, está lidando, nofinal das contas, com estética literária - mesmo que não o façacom base em normas estéticas preconcebidas. Wetz, que consi­dera a "Über naive und sentimentalische Dichtung" de Schillera realização mais brilhante na área da história da literatura com­parada, se preocupa, no final das contas, embora de maneira maisindutiva do que até agora, com aquele tipo de estética que estárelacionada à história da literatura da mesma forma que a éticaestá para a história da política. Wetz vê o ideal da história daliteratura como uma combinação da chamada história da litera­tura comparada estético-psicológica com a história da literaturapuramente tradicional e literária. No entanto, enquanto a primeiranão tiver produzido resultados fartos e convincentes, as áreas de­verão permanecer separadas.

Estas são, em linhas gerais, algumas das idéias básicas dasteorias de Wetz. Nossa crítica também será formulada de umaI"Ol'llla geral. De passagem, podemos mencionar a afirmação um

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tanto audaciosa de Wetz de que com suas teorias ele está desbra­vando território virgem. Isto pode ser em grande parte verdadeem relação à Alemanha, embora ali também tenha sido negadoa ele o papel de pioneiro de uma maneira ríspida e um tanto in­sultuosa. De qualquer forma, bastaria apenas um pouco de pes­quisa comparativa do tipo mais simples para provar que Wetz éum discípulo ávido de Taine e Hennequin.

Um trecho de sua introdução nos mostra o baixo conceitoque Wetz tem da história da literatura comparada que investigao intercâmbio literário. É com desdém que ele afirma que estahistória se satisfaz com fatos, isto é, que numa determinada épocamuitas obras estrangeiras foram lidas, traduzidas e subseqüente­mente imitadas. Percebemos que ele confunde os resultados dosestudos acima com aqueles de seu próprio método comparativo.Ele apresenta a seguinte ilustração de sua postulação de que ahistória da literatura comparada, da forma como ele a codifica,ainda tem um longo caminho a percorrer antes de se fundir coma história tradicional de acordo com o ideal da história da litera­tura comparada acima mencionado: "Vários historiadores de li­teratura conhecidos ainda acreditam que as divergências de Her­der dos romances espanhóis de Cid mostram a mentalidade ale­mã do adaptador". Gostaria de saber por que precisamos de umaabordagem estético-psicológica para descobrir que Herder usouuma versão francesa.

Este exemplo, como muitos outros, demonstram que a abor­dagem filosófica de Wetz à literatura deve sobrepor-se aos pro­blemas da história da literatura comparada geral. Esta superpo­sição de ambas as abordagens é também provada, para citar ou­tro exemplo, por obras como "(Die] Ãesthetische Naturbeseelungin antiker und moderner Poesie"l de Alfred Biese. Separá-Ias demodo radical seria prejudicial a ambas as variedades de estudosobre a história das idéias. Ten Brink, um dos estudiosos que sedestacou em ambas as áreas, está certo ao defender que um his­toriador da literatura ficaria com a casca e jogaria a polpa foracaso deixasse a riqueza das idéias nas obras de Shakespeare, Mo­liere e Goethe apenas para o filósofo da estética. Não existe umavasta lacuna entre a história da literatura comparada de Wetz ea história da literatura internacional (como K. Goedeke inicial­mente chamava a história da literatura comparada geral) mas simentre os objetivos e métodos do filólogo e os do historiador daliteratura que participa do novo espírito nos estudos literários.

A essência da história da literatura comparada foi expressapelo crítico francês Brunetiere (que nunca se preocupou muitocom isso) quando propôs: "11 serait bon de subordonner l'his­toire des littératures particulieres à l'histoire générale de Ia litté­rature". De um ponto de vista panorâmico, livre de preconceitonacional, a história da literatura comparada observa as constan­tes mudanças, o contínuo trocar de idéias e formas. Como lite­ratura mundial, ela caminha passo a passo com a história nacio­nal da literatura em direção a um objetivo comum: a investiga­ção do desenvolvimento do espírito humano.

Não estudaremos aqui se a famosa controvérsia entre "an­ciens et modernes" (isto é, a pessoa de Ch. Perrault) constituio começo da investigação comparativa com base nas diferençascaracterísticas, nem se precisamos considerar o brilhante Dide­rot como precursor de Wetz. No entanto, não pode haver dúvidade que o pai da história da literatura alemã, Daniel Georg Mor­hof, tinha em mente a essência da abordagem comparativa quan­do, em seu livro Von der teutschen Poeterey Ursprung und Fort­gang (1682), ele afirma: "Pretendemos discutir a origem e o de­senvolvimento da poesia alemã, e para esgotarmos o assunto dis­cutiremos primeiro a poesia rimada de outros povos, a fim deque possamos descobrir se eles a criaram antes de nós" (Koch,Max, Zeitschrift fur vergleichende Literaturgeschichte, série an­tiga I, 1).Após Gottsched ter realizado algumas investigaçõescom­parativas bastante úteis acerca da história do drama europeu, Les­sing, como se sabe, lançou as bases para o drama alemão comseus estudos comparativos. Sua introdução ao Beitriige zur His­tofie und Aufnahme des Theaters (1749) é considerada por MaxKoch o primeiro ensaio alemão sobre a natureza, os objetivos eo significado da história da literatura comparada. As obras ino­vadoras de Herder e Schiller deram à disciplina uma base gerale abrangente. O primeiro tornou-se o Percy alemão por fazer apoesia folclórica acessível aos estudos comparativos. No final doséculo XVIII Schiller, no ensaio citado acima, "Über naive undsentimentalische Dichtung" (1795), formula nos moldes clássi­cos os conceitos estéticos essenciais da literatura geral através dacomparação. Em geral acredita-se que Goethe sempre conside­rou as diversas literaturas de modo comparativo no contexto dodesenvolvimento geral da literatura, que esta "alma mundial" tam­ht"1II foi a primeira a conceber a natureza da "literatura mundial",

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que em idade já avançada seguiu avidamente as realizações dostradutores do Romantismo, e que lhe dava profunda satisfaçãoser capaz de testemunhar o surgimento da Alemanha como "se­de e órgão da literatura mundial" através dos irmãos Schlegele de Ludwig Tieck.

No limiar do século XIX encontramos uma mulher comointermediária brilhante da concepção internacional de literatu­ra, e com ela surge um dos problemas mais interessantes da his­tória da literatura comparada. O livro de Mme de StaeI, De 1'A1­lemagne (1810),é baseado em comparação do início ao fim. Duasdécadas mais tarde, a poesia de amor provençal chegou à Ale­manha; e o homem que a introduziu, Friedrich Dietz, criou a fi­lologia românica como irmã gêmea da recém-estabelecida histó­ria da literatura: ambas são filhas do Romantismo. Antes disso,Friedrich Schlegel havia aberto as ricas fontes do Oriente comsua obra Über die Sprache und weisheit der Indier (1808) e comela fundou a filologia comparativa. Mas somente os estudos bri­lhantes de Benfey tornaram possíveis as realizações de Landau,Reinhold K6hler, Gustav Meyer, Bédier e outros.

No início da história da literatura comparada modernaencontra-se não Taine, como Wetz e outros sustentam, mas o in­glês Henry Thomas Buckle com seu primeiro volume da Historyof Civilisation in England (1858). Como nenhum antecessor seu,ele sabia como explorar sistematicamente e com base sociológi­ca o intercâmbio espiritual entre a Inglaterra, a França e a Ale­manha, com o propósito de chegar a uma compreensão da his­tória e da literatura de sua nação. De uma maneira exemplar eleescolheu a França como assunto de uma investigação compara­tiva, e no desenrolar deste estudo possivelmente delineou a me­lhor caracterização do classicismo francês. "A origem e a exten­são do vínculo entre os intelectos francês e inglês que surgiu co­mo conseqüência é um assunto de enorme importância; mas damesma forma que outros vínculos de valor real, este tem sido com­pletamente negligenciado pelos historiadores. Neste trabalho pre­tendo suprir esta deficiência". O objetivo desta obra ambiciosa,que infelizmente permaneceu inacabada, é delinear a história devárias nações de acordo com as peculiaridades intelectuais quea história de seu próprio povo não consegue explicar. É surpreen­dente que todos os teóricos da história da literatura comparada,até onde sei, ignoram Buckle por completo.

E Taine? Seu trabalho sobre a literatura inglesa, cujo méto­do se assemelha ao de Buckleem certos aspectos, apareceu seisanos depois de History of Civilisation in England! Aqui nosdeparamos com outro problema da história da literatura com­parada. As investigações individuais dos últimos trinta anos têmlançado nova luz sobre as relações entre a Inglaterra e a França.O que Buckle tem a dizer sobre estas em relação à época ante­rior ao século XVII é insuficiente; o pouco que ele oferece sobreos períodos literários que antecedem Shakespeare não tem prati­camente valor algum. Acreditamos que chegou o momento dese tratar detalhada e abrangentemente das relações literárias en­tre a Inglaterra e a França. Tal estudo seria valioso principal­mente tendo em vista o progresso feito desde o livro de Behn­Eschenburg sobre as relações entre a literatura inglesa e a litera­tura continental antes da época de Shakespeare (1865); mencio­namos somente Jean-Jacques Rousseau et les origines du cos­mopolitisme littéraire: Étude sur les relations littéraires de IaFrance et l'Angleterre, que Joseph Texte, professor em Lyon,publicou este ano.

Até mesmo numa bibliografia resumida, os valiosos traba­lhos de Sayous, um estudioso de Genebra, não deveriam ser es­quecidos. Em sua Histoire de Ia littérature française à l'étranger(1861)2ele examina como o espírito francês se transforma no es­trangeiro, "de surprendre au passage, ces convois mystérieux quifont d'une nation à l'autre un commerce invisible d'idées et depassions, de vie intellectuelle et morale". Até certo ponto o tra­balho de Sayous serve de base para Virgile Rossel e Phillipe Go­det da Suíça Ocidental.

Com a Revue Germanique de Neffzer, que começou a apa­recer em 1858,iniciou-se o estudo sistemático das relações franco­germânicas. Dollfus introduziu o periódico, infelizmente desti­nado a uma vida breve, com um ensaio admirável e de leituraainda válida "De l'esprit français et de l'esprit allemand" em que,após uma consideração comparativa a respeito das mentalidadesalemãs e francesas, ele discute as influências mútuas de ambosos povos. Alguns anos mais tarde (1864), William Reymond nosofereceu uma valiosa contribuição ao estudo da relação do ro­mantismo francês com a literatura alemã em seu livro Corneille,Shakespeare et Goethe (Berlim, 1864). Em 1876o professor Brei­l ill/'.l'r dá uma brilhante aula inaugural sobre o "Vermittler

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des deutschen Geistes in Frankreich", e em 1881 aparece o pe­queno livro de Otto Weddigen, em cujas 150 páginas se faz umatentativa de delinear a história da influência germânicasobre to­das as nações culturalmente importantes dos tempos modernos3e o próprio autor prevê na introdução a importância básica e ino­vadora do pequeno livro. Em 1886, finalmente, Theodor Süpfle,que faleceu recentemente, começa seu relevante trabalho que, emtermos bibliográficos, é praticamente definitivo: Geschichte desdeutschen Kultureinflusses auj Frankreich mit besonderer Berück­sichtigung der literarischen Einwirkung (Gotha, 1886).

Não hesito também em mencionar aqui o abrangente e inte­ligente Die Hauptstromungen der Literatur des neunzehnten Jahr­hunderts (Berlim, 1872-76), do dinamarquês Georg Brandes. Porum lado, este livro constitui um passo importante na história dacultura da Dinamarca. Por outro, me parece que Brandes, que- inspirado por Hettner - continua no espírito do iluminismo

. do século XVIII, aplicou com sucesso a idéia de reação e de su­peração da reação à análise das correntes literárias principais doinício deste século.

Uma publicação central para as várias áreas de nossa disci­plina foi finalmente estabelecida com o Zeitschrift jür verglei­chende Literaturgeschichte de Max Koch que recentemente fundiu­se com o Vierteljahrsschrift jür Kultur und Literatur der Renais­sance de Geiger. É característico da transformação e da abran­gência crescente dos estudos literários modernos que as questõessobre estética e psicologia desempenhem um papel importanteneste periódico. Livros e trabalhos mais curtos - monografias,folhetos, etc. - que nos últimos trinta anos tentaram lidar coma história da literatura comparada chegam a um número de cer­ca de 300.

Antes de discutir brevemente algumas tarefas centrais da his­tória da literatura comparada, eu gostaria de discorrer sobre asqualidades que nossa disciplina deve exigir de todos os que a elase dedicam. "La Suisse Française, Geneve et votre chere Lausan-

"'. ne m'ont toujours paru de parfaits belvéderes pour nous bien ob-server et pour nous étudier dans nos vrais rapports avec l'Alle­magne". Esta frase de Sainte-Beuve pode ser interpretada e con~tinuada da seguinte forma: quem se dedicar à história da litera­tura comparada deve antes de mais nada estar livre de preconcei­tos nacionais e de qualquer chauvinismo. Efusões patrióticas, em-

bora belas e justificadas, devem ser evitadas. Quanto mais o es­tudioso souber sobre a localidade e o povo, mais objetiva e abran­gente será sua visão. Ele deve também ser capaz de ter empatiacom as línguas como um lingüista competente, ter participadoda vida dos povos estrangeiros por algum tempo e ter imergidonos seus costumes e linguagem. Assim como um biógrafo pene­tra na vida e na natureza de um indivíduo, ele deve, através darica vida de sua própria alma, testar e reconhecer almas estran­geiras. Ele deve ter em mente, como lema, as belas palavras comque Goethe celebra seu professor e amigo Herder:

Ein edler Mann, begierig zu ergründen.Wie überall des Menschen Sinn erspriesst.Horcht in die Welt, so Ton aIs Wort zu jinden.Das tausendquellig durch die Liinder jliesst ...Und so von Volk zu Volke hort er singen.Wasjeden in der Mutterbrust gerührt .

Ninguém pode questionar a afirmação de Goethe que a li­teratura alemã constitui o grande abrigo da literatura mundiaLNo entanto, a França pode ser considerada a origem acadêmicae o centro da história da literatura comparada moderna. A Fran­ça exerceu a influência mais antiga e significativa sobre a vidaliterária dos povos e tem sido, de um modo geral, o manancialdas idéias que marcaram a história nos últimos 250 anos. Umexame do gráfico de Flaischlen4 mostra que a Alemanha perma­neceu quase que completamente receptiva até a metade do sécu­lo XVIII. O historiador Hemi Martin estava correto quando disse:"Le génie de Ia France se résume dans un mot: La propagande".Este papel propagandístico da literatura francesa pode ser demons­trado aqui com dois exemplos característicos e peculiares. Sabe­se que foi Thomas Carlyle quem primeiro introduziu a literaturaalemã - e Goethe em particular - no seu país, e que ele foio intermediário mais notável e influente do pensamento alemãoe da literatura alemã na Inglaterra. Menos conhecido, no entan­to, é o fato de um livro francês, o De l'Allemagne de Madamede StaeI, ter cativado Car1yle, então um jovem de vinte anos, pa­ra a literatura alemã. Na época ele dedicou dez anos de estudointenso à literatura alemã. Mais característico ainda é o caso dapropaganda negativa, se eu posso me permitir a expressão. Não

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foi só através da crítica de Voltaire a Dante que os estudos italia­nos sobre Dante se reanimaram no século XVIII. Também a con­trovérsia imprudente entre Voltaire e Bettinelli estimulou a idadede ouro da pesquisa e do entusiasmo sobre Dante no nosso século.

Investigar como as nações aprenderam umas com as outras,como elas se elogiam e criticam, se aceitam e rejeitam, se imitamou distorcem, se entendem ou interpretam mal, como elas abremos corações ou se fecham umas às outras, mostrar que as indivi­dualidades, como períodos inteiros, não são mais do que elos deuma cadeia longa e multifilamentada que liga passado a presen­te, nação a nação, homem a homem - estas, em termos gerais,são as tarefas da história da literatura comparada.

Passando para as áreas individuais, devemos mencionar emprimeiro lugar o estudo das fontes. Aqui temos de determinarse estamos lidando com dependência ou com mero estímulo. Asemelhança não deve ser declarada como imitação sem a devidainvestigação. O estudioso deve ter cuidado para não superesti­mar a importância do detalhe e avaliar os méritos de um autordemasiadamente em termos de assunto. Entre as tarefas mais es­timulantes e recompensadoras está o estudo da analogia, princi­palmente quando ela fornece uma compreensão dos traços pe­culiares dos vários poetas ou de movimentos literários. Não me­nos edificantes são os estudos dos mesmos motivos, problemas,fábulas, etc. em autores de nações diferentes. Eles nos fornecemas contribuições mais interessantes para a psicologia dos povose para o nosso conhecimento das peculiaridades poéticas e na­cionais. Eis dois exemplos diferentes: como é que o capitano dacommedia dell'arte é modificado no palco francês? Ou, na his­tória comparada das idéias: uma comparação da idéia de tole­rância em Pierre Bayle e Lessing. Quão bem poderíamos mos­trar aqui, se procedermos historicamente, a evolução psicológi­ca da idéia de tolerância e ao mesmo tempo passar a ter com­preensão sobre a natureza destes dois homens do Iluminismo! Oestudo da transformação dos contos de fada, dos mitos e sagaspode ser considerado uma série contínua de paralelos. Inúmerosproblemas novos indubitavelmente surgem da tabela sincrônicadas datas de eventos importantes da literatura mundial, isto é,de meios puramente externos, como já o temos para eventos dahistória mundial. Por exemplo, sob o título "literatura france­sa", poderíamos encontrar a Art poétique de Boileau no ano de

1674; traria uma pequena descrição das regras para poesia, parao drama, para o épico, etc., incluindo (no terceiro canto) a reco­mendação do não tratamento poético da religião cristã e do ma­terial bíblico. Sob o título "literatura inglesa 1667" encontraría­mos a primeira edição do poema épico mais magistralmente reli­gioso de todos os tempos, o Paradise Lost de Milton. Ou um ou­tro exemplo bem diferente: Bayle publicou suas Nouvelles de IaRépublique des Lettres entre 1684e 1687;em 1688Christian Tho­masius começará seu Monatsgespriiche.

Não negamos o fato de que mencionamos tarefas da histó­ria da literatura comparada com as quais somente críticos muitocompetentes e com poderes de empatia podem lidar: um Wetzmelhor do que um Süpfle, sem mencionar um nome que se asse­melha muito ao primeiro. Mas há também lugar na história daliteratura comparada para talento e dedicação. Portanto, embo­ra agora eu me refira somente às investigações de ,influências lo­cais e principalmente estrangeiras, considero-as, no entanto, asfontes mais ricas, uma das áreas mais importantes de nossa dis­ciplina pela simples razão de que não há literatura nacional comlimites nacionais e porque a época das literaturas nacionais deveser considerada definitivamente ultrapassada. Não me refiro aquiaos desmembramentos mecânicos a que Shakespeare, Moliere eGoethe estão freqüentemente sujeitos, mas ao tipo de influênciaque caracteriza o autor e sua obra, que temporariamente domi­nou e orientou o espírito de um autor, um grupo, uma nação.O desenvolvimento de formas poéticas, como a métrica, só podetambém ser apresentado comparativamente. Sem a definição dasinfluências alemãs e inglesas, por exemplo, a poética da decadêncianão poderia ser explicada.

Finalmente gostaria de mencionar uma área que até o pre­sente recebeu pouca atenção e que pertence essencialmente à his­tória da literatura comparada: a história comparada da tradu­ção. Esta não só ilustra a influência de uma literatura em outra,mas também permite que tenhamos uma percepção substancialdas suas fontes históricas e internas (ver Max Koch, loc. cit.). Aquio estudioso deveria começar com a literatura daquela língua queproduziu um milhão e um quarto de traduções, entre as quaispodemos citar a obra de Gottfried von Strassburg, Martin Lu­fher, Fischart, Gottsched e Bodmer. Klopstock, Herder, Voss,Schillcr e Goethe, Tieck e Schlegel, Paul Heyse, Schack, Wilhelm

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Hertz, Bertuch e Fulda e tantos outros: "Os grandes poetas detodos os tempos e de todos os povos se agregam em torno donicho hospitaleiro da Bildung alemã". As adaptações livres cons­tituem rico material para estudos comparados. Há critério maisseguro quanto ao gosto do francês do século XVIII do que suasprimeiras adaptações de Shakespeare? O "roubo por tradução"praticado pelos ingleses em relação às produções dramáticas fran­cesas não ilustram - e muito - sua influência na literatura dra­mática moderna do país de Shakespeare e Ben Jonson? Comoo puritanismo da Inglaterra explica o fato de que Nana é maislida em inglês do que em sua língua original? A que conclusõesdevemos chegar quando, freqüentemente no mesmo dia, adapta­ções de peças francesas são encenadas· em três ou quatro teatrosde Berlim, quando um agente de teatro alemão pode ser encon­trado em toda premiere em Paris, com o contrato nas mãos? Éuma das tarefas da história da literatura comparada, como a dis­ciplina mais apropriada, investigar o significado e a relevânciada tradução. Para tanto, deveria invocar principalmente o teste­munho de Goethe - nós nos lembramos do que o mestre dissesobre a tradução de seu Fausto por Nerval, e de seu AuswiirtigeLiteratur, que contém a bela parábola poética cujas últimas li­nhas são:

So war mir's, ais ich wundersamMein Kind in jremder Sprache vernahm.

Afirmo que, a este respeito, a história da literatura compa­rada deveria mais do que nunca depender de Goethe já que emgeral se considera um sinal de Bildung estética e filológica me­nosprezar a tradução.

Se agora considerarmos que este campo complexo e vastode nossa disciplina pertence ao historiador literário que, nas uni­versidades alemãs, deve ser predominantemente um filólogo, en­tão acredito que a seguinte pergunta só pode ser respondida nosentido de Wetz: poderá um filólogo dominar duas áreas tão di­ferentes, cada qual exigindo a atenção integral da pessoa? Na ver­dade, Wetz diz que geralmente há filólogos que lidam com a his­tória literária à parte, ou historiadores da literatura que de algu­ma forma fizeram as pazes com a filologia. Para ser franco e di­reto: a expansão e a complexidade crescente dos estudos filoló-

gicos e da história da literatura, em combinação com a históriada literatura comparada (com ou sem ingredientes wetzianos), tor­nam desejável que se divida o campo que até agora pertencia so­mente ao filólogo, se por nenhuma outra razão, pelo menos pormotivos externos e práticos. O antigo Privatdozent (docente) deStrassburg merece o crédito de ter expressado seu pensamento demaneira clara e com indubitável autoridade pela primeira vez. Asituação não muda pelo fato de haver um pequeno número defilólogos que, com grande empenho e extraordinário talento, sãoadmiráveis mestres de ambos os campos; pelo contrário, ao dis­persar suas energias, o estudo se priva de um trabalho dos maisvaliosos. A propósito, um destes estudiosos afirmou o seguinte:a tradição da filologia românica tem dado tanta atenção ao francêsantigo que o estudo acadêmico do francês tornou-se essencial­mente um estudo do francês antigo e do provençal. Exceções, co­mo o autor das linhas acima, Ten Brink e outros, não mudamo fato de que devemos as realizações mais admiráveis no campoda história da literatura comparada e da história da literatura emgeral aos não-filólogos. Devo somente mencionar nomes comoos de Hettner, Taine, Wilhelm Scherer, Erich Schmidt (cujo es­tudo excelente intitulado Richardson, Rousseau und Goethe (Je­na 1875) não deveria ter sido omitido de nosso levantamento his­tórico). Meio século atrás um Lachmann podia ainda dominaro alemão e a filologia clássica completamente. Há uma geraçãoas duas áreas da filologia se separaram, e dentro dos estudos ale­mães mais uma divisão foi aceita de jacto pela cadeira que haviaoriginalmente sido destinada a Wilhelm Scherer. Portanto, é so­mente uma questão de tempo até que esta divisão se torne fun­damental e generalizada. Isto é muito verdadeiro já que a idéia- de que as histórias da língua e da literatura se complemen­tam, mas não estão necessariamente ligadas - é cada vez maisaceita. Nem as premissas nem os objetivos são os mesmos. Noentanto, as duas áreas são mutuamente dependentes em relaçãoà Idade Média e à época até o século XVI. Naturalmente, estesperíodos dizem respeito predominantemente ao filólogo. Mas se­guindo o exemplo de Gaston Paris, o filólogo deveria levar emconsideração os produtos literários da Idade Média não só co­mo documentos lingüísticos mas também como casos literários.Por outro lado, temos que afirmar com Karl Weinhold que ohistoriador literário deveria ser um filólogo treinado. O cs-

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tudo das literaturas modernas também requer um conhecimentocrítico da história das línguas. Acima de tudo, uma compreensãosobre as origens das literaturas é impossível sem um conhecimen­to da filologia. Antes do historiador da literatura começar a cons­truir o primeiro andar, ou mesmo o bel étage, ele deveria ser ca­paz de colocar as fundações e pelo menos os tijolos do subsolo.

Apesar de nosso ceticismo mais do que justificado, acredi­tamos que os estudos literários finalmente ver-se-ão livres da ne­fasta ars literatoria dos gramáticos medievais e ganharão inde­pendência nas universidades alemãs. Estamos confiantes de queTen Brink (cuja obra, como a de Gaspary, não permaneceria frag­mentária se a filologia lhe permitisse mais tempo) estava certoquando afirmou: "A separação de uma nova disciplina do tron­co do conhecimento geralmente é seguida, após certo tempo, doestabelecimento de novas cadeiras em nossas universidades".

Goethe já resumiu a grande importância da literatura com­parada mundial nestes dois termos: intermediação entre naçõese aceitação mútua. Cada nova descoberta na área das relaçõesconstantes entre os povos civilizados constitui não somente umanova realização do conhecimento mas também "uma pedra fun­damental na futura construção da paz mundial". "O conheci­mento mútuo mais profundo entre as nações pode facilitar o cres­cimento de um humanismo de longo alcance que injustamentetem sido acusado de sentimentalismo e falta de senso nacionalou até de enfraquecimento deste" (Ver OUo Weddigen, lococit.).O objetivo final da "literatura mundial" comparada - exploraras principais correntes espirituais do pensamento e da literaturamodernos -, uma vez realizado, dará acesso a aspectos comple­tamente novos das histórias literárias dos vários povos. A histó­ria da literatura comparada significa um aprofundamento espi­ritual do estudo literário e uma abordagem internacional. O queTen Brink, em sua linguagem metafórica, diz sobre o estudo lite­rário é verdadeiro, palavra por palavra, em relação à nossa disci­plina: "Ela abre caminhos para nós por entre moitas e matagaisaté atingirmos panoramas, fontes recônditas e locais de descan­so; ela constrói pontes através de abismos que nos separam doscumes; ela liga o vale, onde nossa cabana se encontra, ao mundoem volta". Através da comparação chegamos com maior clarezae segurança ao conhecimento das peculiaridades de uma dadaliteratura. No entanto, podemos assim ver o indivíduo também

em sua universalidade. Nas literaturas germânicas ele surge comas mesmas paixões, vícios e virtudes que nas literaturas români­cas: em cada página a unidade e a dependência mútua de todasas nações são reveladas: em todos os lugares a alegria e a dor,a esperança e a desilusão são igualmente compartilhadas. Apren­demos que todas as literaturas têm as mesmas pequenas e gran­des preocupações, que Dante e Goethe, Shakespeare e Molihefalam essencialmente uma só língua, e esta eles falam por todos.A história da literatura comparada corrige a unilateralidade in­dividual e nacional, o perigoso inimigo da civilização moderna.Para que perspectiva superior, livre de preconceitos, esta disci­plina pode nos levar deve ser ilustrado pelas palavras de um fi­lho de John Bull, o Buckle mencionado acima, que - contem­porâneo de Carlyle! - chamou a França de "um grande e admi­rável povo", e "um povo em muitos sentidos superior a nós; umpovo de quem ainda temos muito o que aprender", etc. Somenteuma abordagem comparada da literatura pode nos levar a umacompreensão das transformações do sentimento das nações in­dividuais, corrigir nossas visões tradicionais e revelar todos oserros. Afinal de contas, esta disciplina fornece o material maisvalioso não só para a psicologia dos povos mas também para aestética; quaisquer limitações ou gradações que impusermos, elasempre tenderá para um objetivo duplo: um conhecimento inter­no e profundo da riqueza da natureza humana e a realização daspalavras do poeta:

Lasst alle V6lker unter gleichem HimmelSich gleicher Gabe wohlgemut erjreuen!

NOTAS

I Zeitschriftfür vergleichende Literaturgeschichte I, 1 (1887), 125-45, 197-213,407-69.2 Histoire de Ia littérature française à l'étranger depuis le commencement du XVlle sie­

c/e. Publ. pela 1~ vez em Paris em 1853.1 Geschichte der Einwirkungen der deutschen Literatur auf die Literaturen der übrigen

I'1Il"OpuischenKulturv61ker der Neuzeit. Leipzig, 1886.1 I,'LA ISCHLEN, Casar. Die deutsche Literatur und der Einfluss fremder Literaturen

1111/illlrll Verlauf vom Beginn einer schriftlichen Überlieferung an bis heute. Stuttgart,IHt)()

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A "LITERATURA COMPARADA" 61

A "LITERATURA COMPARADA"*

Benedetto Croce

Recebo, de Nova York, o prospecto da nova publicação Journalof Comparative Literature, que terá a responsabilidade de G. E.Woodberry, J. B. Fletcher e J. E. Spingarn, além de vasta cola­boração de estudiosos estrangeiros, entre os quais, um grande nú­mero de italianos. Enquanto isso, aqui, em Nápoles, reestrutura-sea cátedra de Literatura Comparada, que De Sanctis, em 1861, en­tão Ministro da Educação, criou para Giorgio Herwegh (que nãoa pôde ocupar) e acabou ele próprio a ocupando de 1871 a 1875.Agora, foi designado Torraca, que, ao reinaugurá-la, fez uma belapreleção, recordando a "segunda escola de Francesco de Sanctis".

É oportuno, então, perguntar: "O-.Jlue é lit~!atura cOill.P_é!~~,.. _ .. _-----.--_.,_.,--

rada?" A resposta a tal pergunta deve começar por descartar, ime-diatámente, a q~finição que, primeira e mais facilmente:-se apre­senta: a literatllra comparada é a fOJ:made pesquisa que se servedo método comparativo. O método comparativo, sem dúvida, por­que simples método de pesquisa, não pode bastar para traçar umcampo de estudo. No que consiste este método? Delineio a pes­quisa referente a um fato (tomemos a constituição da família he­lênica primitiva) e não encontro, nos documentos à minha dis­posição, o fio condutor que lhe explique a verdadeira natureza.Busco, então, casos análogos, cujos documentos são mais abun­dantes, e construo um ou mais tipos de famílias primitivas. Atravésdeles, deduzo algumas hipóteses das quais me valho para inter­pretar os documentos que possuo sobre a família helênica, e, atra­vés do exame comparativo dos fatos e hipóteses, com a ajuda dos

* CROCE, Benedetto. La "letteratura comparata". In: -. Problemi di estetica. 4~ ed.BaTi: Gins. Laterza & Figli, 1949, p. 71-76.

quais realizo novas pesquisas, consigo fixar a conjectura mais pro­vável, que, através de uma ampla documentação, pode ser con­vertida em fato acertado. Não há dúvida de que este método éaplicável também à história literária: dele nos servimos para re­conhecer o desenvolvimento do epos ou do drama sacro de umdeterminado povo, ou para interpretar o significado de um vo­cábulo utilizado ou de um costume aludido em um poema. Ora,o uso deste método que é bastante comum (às vezes, de modoampf6,e mais freqüentemente, de forma menor), não tem .nadadeexdusivo e de característico, nem para a literatura, em geral,nem pará quaisquer pesquisas em torno da literatura. /

Há uma outra definição que pareceria a verdadeira, porquetraz em sitambém a tradição histórica, deixando claro que o nomede literatura comparada baseou-se no da lingüística comparada.Esta outra definição é: a literatura compétrada busca as idéias outemas literários e acompanha os acontecimentos, as alterações, asagregações, os desenvolvimentos e as influências recíprocas entreas diferentes literaturas. Assim, se releio a advertência exposta pe­lo Dr. Max Koch, em Zeitschrift für vergleichende Literaturges­chichte(v.l,n? 1, 1886), vejo-mediante da seguinteafirmação: "quea literatura comparada deve seguir o desenvolvimento das idéiase das formas e a sempre nova transformação de matérias idênticasou similares nas diversas literaturas da Antigüidade e dos temposmodernos e deve descobrir as influências de uma literatura sobrea outra nos seus recíprocos relacionamentos - explica-se no pró­prio nome" (e aí se acrescenta, como apoio, um trecho do filósofoCarriere). Ou melhor, Koch recorda que Goedeke, através de sub­sídios de Maximiliano II da Baviera, começou a trabalhar num Lé~xico dos temas de arte (Lexicon der Kunstoffe), jamais publicado.Ora, quem pode negar a importância de semelhantes pesquisas?Não eu, certamente, que publiquei, entre tantas, umas vinte me­mórias com a intenção de estudar a difusão ea eficácia da literatu­ra e dos costumes espanhóis na Itália. Deixem-me, também, fazeruma confissão, não exclusivamenteminha, pois a identifiquei tam­bém nas confidências de estudiosos bem mais intrépidos e especia­listas na matéria: não há estudo mais árido do que este tipo de pes­quisa; o cérebro cansa e experimenta uma sensação de vazio. Estaaridez, esta sensação de vazioprovém do fato de seremelaspesquisasde mera erudição; qlle, por sisós, não levam a explicar uffia6braliterária e não fazem penetrar no vivo da criação artística. Seu

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objeto não é a gênese estéticacla obra literária, mas ou a históriaexterior da obra já formada (acontecimentos, traduções, imita­ções, etc.) ou o fragmento do material diverso que ajudou aconstruí-Ia (tradição literária). Os livros que se detêm estritamentenesta ordem de pesquisas tomam, necessariamente, a forma decatálogo ou de bibliografia, muitas vezes, oculta das melhoresmaneiras, pela agilidade ou brilho do escritor. Falta (e não podefaltar) o estudo do momento de criação, que é o que verdadeira­mente importa à história literária e artística. Igualmente, o estu­do filológico das línguas, embora fornecendo materiais precio­sos, seja pela perspicácia das próprias línguas, seja pela históriadas idéias, das instituições e dos costumes, não traduz jamais aintuição da língua no ato da fala: seu resultado é a gramática eo vocabulário. Do mesmo modo, no estudo das artes figurati­vas, as pesquisas sobre as transformações dos costumes e dos ti­pos figurativos (por exemplo, o estudo das mudanças sofridas pelobastão que o Anjo da Anunciação levava na mão e que, de sím­bolo de mensageiro, segundo a tradição bizantina, transforma­se paulatinamente em bastão florido e, posteriormente, em sim­ples flor, uma rosa ou um lírio, na pintura toscana) têm interessecomo iconografia e como Kulturgeschichte; mas não nos dizemnada com relação à criação artística do pintor, que precisa serrevivida na sua síntese espiritual original, se se quer fazer a his­tória artística. Insisto neste ponto: que a literatura comparada,no significado acima, não traz à luz nem mesmo o material daobra literária, porque estuda somente a tradição literária, prete­rindo os elementos sociais e aqueles psicológicos individuais quetêm importância, igualou maior, na gênese. Donde aquela as-

(sombrosa tendência da crítica, através da qual os pesq~~~a_<!(.)r~~.

li _~r.u....d.i..~.,c.:>-~de fontes i.m.agi..na.m...haver explica.elo.. uma obra liter.ária"quando encontram os seus antecedentes, e como se os seus úni-cosantecedentes fossem aqueles literários.

. Mas, a história comparada da literatura tem também um ter­ceirQ significado, e dá lugar a uma terceira definição, que se'en--trelaça com a preCedente na citada introdução de Koch. De fato,Koch observa que a ~istóriacta literatura alemã nasceu compa­rada; e recorda o livro de Morhof, de 1682, no qual, tratandoda poesia alemã, traz à luz as poesias estrangeiras que a precede­ram; a obra crítica, rica de comparações, de Lessing; a do verda­deiro criador da história literária alemã, Herder; e, ainda, as ou-

tras de Schlegel e de Bouterweck. A mesma demonstração e enu­meração poderia ser feita com a historiografia da literatura ita­liana, desde De vulgari eloquentia, isto é, dó início do século XIV(pois nós, italianos, somos mais velhos que os alemães) até ostempos modernos. E se, após a introdução de Koch, leio aquelafeita pelo saudoso Texte para o ensaio bibliográfico de Betz so­bre Littérature comparée, encontro o registro de que também aAntigüidade fazia uso, através da crítica, da comparação, e deque os críticos romanos tinham em mente as obras literárias he­lênicas. Melhor ainda, afirma Koch no programa de sua revista,que a história litel."áriacomparada deve.dªf atenção especial' 'ao-_._- ....•~......• "\'íntimo vínculo entre história política e história literária"Q qual,talvez, em geral, não é posto em relevo em toda sua importância;e ao vínculo entre história da literatura e história da arte, desen­volvimento literário e desenvolvimento filosófico, u.s.w.". O undso weiter também é digno de relevo. Portanto, a história literáriacomparada, neste terceiro significado, é aquela que considera to",:dos os antecedentes da obra literária, próximos e longínquos, prá­ticos e ideais, filosóficos e literários, deixados soba forma depalavras ou de formas plásticas e figurativas: und so weiter.i As­sim, a história comparada é algo inseparável do conceito pró­prio de história literária. Portanto (acrescento eu), neste terceirosignificado, a história comparada da literatura é a história en­tendida como explicação completa da obra literária, investigadaem todas as suas relações, posta no campo da história universal(e onde mais poderia ser colocada?), vista em todas aquelas co­nexões e preparações que a esclarecem. Em outros termos, nãovejo que outra diferença exista neste terceiro significado, entre"história literária" pura e "história literária comparada": salvose com o pleonasmo "c.QJ!lpªrªclª" se queira exprimir a exigên­cia de uma história literªr:ia,qlle seja v~rctadeiramenteplena e te-:nha consciência de toda a extensão de sua função. .

Deixando de lado o primeiro significado (que realmente nãodiz respeito à questão), vemo-nos diante de doislllodos diversosde compreender a história literária comparac1a:'um meramenteliterário-erudito e o verdadeiramente histórico e explicativo, quecontém em si o momento erudito, mas tomado em sua totalida­de, e não em um ou mais fragmentos, como na outra tendência.Naturalmente, ambos os modos são justificados; mas, em um novotipo de ensino ou nas páginas de uma nova revista, seria desejá-

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vel que o segundo prevalecesse. Se repensarmos na cátedra de Ná­poles e na vaga que se deve preencher, e nas suas tradições, e emquem a ocupa (que foi, nos velhos tempos, discípulo preferidode De Sanctis) não há dúvida de que a pesquisa erudita de labo­ratório será acompanhada pela indagação integral e conclusiva.A respeito da revista americana, lembro do discurso que um dosseus fundadores, Spingarn, fez na seção de história literária com­parada do Congresso de Paris de 1900: "Sobre literatura e erudi­ção na América do ponto de vista acadêmico" (American Scho­larship) em que se anunciava uma reação contra o método exclu­sivamente filológico que era trazido da Alemanha para as uni­versidades americanas (e que, é preciso afirmar, domina em to­das as universidades da Europa), tomando como palavra de or­dem desta reação exatamente as palavras: Comparative Literatu­re. Isto faz esperar que a nova revista americana não venha acres­centar material amorfo ao enorme número que já se recolheu doseruditos europeus; mas ajudará aquela síntese histórico-estética,aguardada ainda por todas as áreas da história literária univer­sal. Os estudiosos do Novo Mundo quererão, de vez em quando,dar-nos possibilidade de sair dos gabinetes empoeirados, ondea literatura perde o seu frescor, e conduzir-nos a respirar, em suacompanhia, as doces brisas da vida.

LITERATURA COMPARADA:A PALAVRA E A COISA*

Fernand Baldensperger

No dia em que Sainte-Beuve, em seu estudo sobre J.-J. Ampere,que abria a Revue des Deux Mondes de 1? de setembro de 1868(Nouveaux Lundis, tomo XIII), empregou a expressão abrevia­da literaturacomparada, poderíamos dizer que ele prestou ao mes­mo tempo um bom e um mau serviço ao gênero de estudos deque aqui se trata? Ele lançava entre o grande público culto umafórmula cômoda, a mais cômoda, sem dúvida, que se possa uti­lizar para designar a investigação das "vivas relações" que ligamas diferentes literaturas; observava que o "ramo de estudos com­preendido pelo nome de literatura comparada data, na França,apenas do início deste século": colocava assim de maneira satis­fatória tanto a palavra quanto a coisa. Ao mesmo tempo, comosói acontecer, esta expressão condensada corria o risco de dar mar­gem a falsas interpretações: foi o que efetivamente ocorreu, e eusó vejo a "diplomática", entre as coisas que se ensinam, que te­nha fornecido matéria a contra-sensos mais caracterizados. Daía necessidade, caso se aceite, decididamente, para facilitar o dis­curso, a fórmula empregada pelo grande crítico, de nos enten­dermos bem sobre o sentido mais preciso a lhe ser dado. Umatal explicação permite, aliás, retraçar a carreira realizada em umséculo e meio de existência por uma disciplina que, na realidade,lem atrás de si precedentes de toda espécie e de épocas diversas,mas que, como variedade consciente de pesquisas, é apenas pou­co mais que centenária.

+ IIAI ,DENSPERGER, Fernand. Littérature comparée: le mot et Ia chose. Revue de Lit­1"11I111"(' Comparée. [Paris], 1, I (1921), 5-29.

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66 LITERATURA· COMPARADA I'(TERATURA COMPARADA: A PALAVRA E A COISA 67

I"Literatura comparada! Comparação literária! É muito barulho,dizem ainda algumas pessoas, para o mais fútil e o mais vão dosexercícios! Nós o conhecemos, este demasiado engenhoso diver­timento que consiste em instituir paralelos entre obras e homensvagamente análogos e em cotejar assim, graças a algumas apa­rências de similaridade, Corneille e Alfieri, MmeDesbordes-

.Valmore e Elisabeth Browning, Joubert e Coleridge, Robin Hoode Sherlock Holmes! Entende-se ressuscitar, com maior pretensão,os saltos do cavaleiro do excelente Saint-Marc Girardin, confron­tando sem piedade, em seu Cours, os Nibelungos com o Romande Ia Rose, o Paria, de Casimir Delavigne, com o Dupuis de Col­lé? Vão lembrar-nos que Racine e Shakespeare procedem de es­téticas muito diferentes, que a epopéia de Milton não é a de Tas­so, que a fábula segundo Lessing não tem praticamente nada maisque o nome em comum com a fábula segundo La Fontaine? Vãocompetir em engenhosidade para, além disso, atrair, numa con­frontação universal, os recém-chegados à literatura, os exóticosmais imprevistos do Velho e do Novo Mundo?"

É evidente que uma literatura comparada entendida assimnão mereceria constituir-se em método independente; ou pelo me­nos, isso seria atribuir uma importância absurda a um procedi­mento instintivo do espírito. Este é praticado tão logo se estejafamiliarizado com mais de um poeta, ou se leia mais de um li­vro. Já o copioso Marmontel, em seus Éléments, esperava essemovimento de comparação de qualquer crítico digno deste no­me, uma vez que somente o "crítico inferior", "desprovido demodelos e de objetos de comparação, reduz tudo a si próprio".Encontrar-se-ia, portanto, aqui um estágio prévio a qualquer ver­dadeira operação crítica, mas com os simples resultados casuaisde uma leitura mais ou menos extensa, de uma informação maisvariada, de uma percepção mais fácil de analogias. É possível quede uma tal confrontação resulte um benefício: comparar pela lem­brança Servitude, de Vigny, com o Príncipe de Homburgo, deKleist, é pôr o dedo em duas concepções, irredutíveis - e quan­to! - uma à outra, do dever militar ... Mas - e é preciso repeti-

Ili

I

10, pois há aí um litígio aberto - tais comparações, do pontode vista do conhecimento dos próprios objetos, deixam o maisatento espírito no mesmo lugar em que o encontraram. Se eu des­cobrir, por exemplo, que o livro de M. Proust, À Ia recherche dutemps perdu, lembra sob muitos aspectos a sinuosa, retrospecti­va, flutuante e florida prolixidade de um Jean-Paul Richter, comseus incisos, seus parênteses, seu abandono a qualquer metáforaque se apresente, em nada terei avançado. Pois é mais do que pro­vável que nenhum encontro real jamais criou qualquer depen­dência, portanto nenhum começo de explicação, de um escritorpara outro, e o paralelo que eu gostaria de instituir não poderiasatisfazer a ninguém (se ele não permitisse ir mais longe), comonão poderia fazê-lo uma engenhosa comparação, por algum bió­logo aventureiro do século XVIII, entre a forma e a cor de deter­minada flor e as de determinado inseto. Sabe-se que não é assima realidade. Nenhuma clareza explicativa resulta de uma compa­ração que se contentasse com esse olhar simultâneo lançado so­bre dois objetos, com essa constatação, condicionada pelo jogodas lembranças e das impressõe§, de semelhanças que podem mui­to bem não ser mais que pontos erráticos postos fugazmente emcontato por uma simples fantasia do espírito.

II

( ) I )icliof7naire de Littré remete, não sem razão, de uma certa acep­~";IOdo particípio comparé (comparado), ao adjetivo comparatij(co/l//J(fI'{llivo): "Anatomia comparada, observa ele, diz-se me­nos qlll' ;lIlafomia comparativa." O mesmo ocorre, em suma, comli I(')mo qUl' aqui nos ocupa; acrescente-se que "literatura", na("xpn"SS;IO ;lIncviada de Sainte-Beuve, deve entender-se antes co­1110 "lIíslúría, descrição, estudo de literatura", e talvez seja deI;ullcnlar que o crítico dos Lundis tenha contribuído para a boasortc de uma fórmula mais fácil, mas infinitamente menos exatado que outras, francesas ou estrangeiras.!

Vemos claramente que esta expressão "literatura compara­da" suplantou apenas em parte as expressões que aqui aparecem.'tentemos fazer, senão um fastidioso inventário, pelo menos al­gUlIlas sondagens.

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Simples "comparação" que se instala como que em casa noJournal étranger de 1760 ou no Année littéraire de 1754, e quese apresenta quase como um método no Journal des Savants desetembro de 1749: "Esta comparação proporciona sempre gran­des vantagens ..." "Estudo comparado", na pena de Garat, noMercure de France de fevereiro de 1780, com todo um programa:"Um estudo comparado dos escritores que honram as nações quepossuem uma literatura é, sem dúvida, o que há de mais apro­priado para fecundar e multiplicar os talentos ..." "Comparação"ainda em Laharpe e em Marmontel, com desdém dogmático pe­lo ponto de partida. Mmede Stael e B. Constant, pelo contrário,parecem evitar um termo tão batido para qualificar estudos querenovam muitos problemas, através da aplicação de um métodomais histórico; da mesma forma, a tradutora do Curso de Schle­gel exprime por meio de um verbo incidente um substantivo deprincípio e traduz die Vergleichung (a comparação) por Ia criti­que compare (a crítica compara), quando o próprio severo com­paratista alemão havia intitulado sua brochura de 1807:Compa­ração entre a Fedra de Racine e a de Eurz'pides.

Prossigamos nosso levantamento em uma zona vizinha, se­não idêntica. Em 1802, o abade Tressan aventurava a Mytholo­gie comparée avec l'histoire (Mitologia comparada com a histó­ria); a Érotique comparée (Erótica comparada) de Villers, em1806, representa ao mesmo tempo uma audácia e uma inépcia,enquanto para Degérando, em 1804,a Histoire comparée des syste­mes de philosophie (História comparada dos sistemas de filoso­fia) se oferece como um elemento desta história literária com­pleta e universal, com seus "princípios de ligação" que Baconbuscava com ardor. Cours de peinture et de littérature compa­rées (Curso de pintura e de literatura comparadas) de Sobry em1810 e, em 1814, "exame comparativo" do abade Scoppa ...

Após esses tateamentos, descobre-se logo uma terminologiaque se esboça e, ao mesmo tempo, um ponto de vista que se afir­ma. Noel e Laplace começam a publicar em 1816 seu Cours deLittérature Comparée (Curso de literatura comparada). O prefá­cio com que Villemain abre seu Tableau du XVIIIe siecle, cursode 1827 e 1828, fala de um "estudo de literatura comparada".J.-J. Ampere, em sua aula inaugural no Ateneu de Marselha (1830),prevê' 'a história comparativa das artes e da literatura em todosos povos", da qual deve sair a filosofia da literatura e das artes.

E, na Sorbonne, em 1832: "Nós o faremos, senhores, este estudocomparativo, sem o qual a história literária não é completa .. ." En­fim, no prólogo de Littérature et voyages, onde J.-J. Ampere reú­ne diversos estudos, ele observa que todos os seus trabalhos se re­ferem à história das literaturas comparadas (1833).É nesse momen­to que o Bulletin des sciences historiques abre um verbete correntepara a "Filologia comparativa" (Vergleichende Sprachkunde).

Dois anos mais tarde, é Ph. Chasles quem, proferindo noAteneu, em 17 de janeiro de 1836, sua aula inaugural, se escusapor haver escolhido a fórmula de Littérature étrangere compa­rée (Literatura estrangeira comparada): "Este título, o único queme pareceu conveniente, carece de precisão sob vários aspectos."Para dar conta da atividade de Chasles neste domínio, Chaudes­Aigues, em seus Écrivains modernes de Ia France, em 1841,restringir-se-á à "história das literaturas comparadas"; Villemaine Puibusque, em 1842 e 1843, à "história comparada das litera­turas". Da mesma forma Benloew oferece em Dijon, em 1849,uma "Introdução à história comparada das literaturas". No anoanterior, Ampere, em seu discurso de posse na Academia, haviafalado uma vez mais do "estudo das literaturas comparadas".A. Duquesnel, em 1846, dava à sua Histoire des Lettres o subtí­tulo de "curso de literaturas comparadas".

Todas essas diferentes expressões, mais completas e mais exa­tas, não cedem lugar à sua cômoda designação abreviada. Em­bora Delatouche publique em 1859um Cours de littérature com­IJarée(Curso de literatura comparada), Zola, em 18 de julho deIH61, escreve a seu amigo Baille: " ...Da história comparada dasliteraturas, deduzir segundo que lei se revela o grande poeta .. ."

Mesmo depois da espécie de golpe de estado lingüístico deSainle-BcLIvc,não chegaram a desaparecer as fórmulas antigas.Se Hd. Rod inlitula "Da literatura comparada" sua aula inaugu­raI de IXXCl, em Genebra, Hennequin, mencionando no prefáciode sua ( 'ritique scientijique o título do livro de Posnett, Compa­ralive Literature, cita-o tal e qual em sua forma inglesa. J. Texteintitula "Da história comparada das literaturas" o primeiro deseus Études de littérature européenee; emprega geralmente os ter­mos "crítica comparativa" e "método comparativo". Brunetie­re, igualmente, hesita entre expressões diversas, mais explícitas,e aquela que, aproximativa, mas simples, tinha sobre todas as de­mais a grande vantagem de ser breve. A Histoire des littératures

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comparées (História das literaturas comparadas) de F. Loliée éde 1903, e de 1904 minha reedição da Littérature comparée (Li­teratura comparada) de L.P. Betz. Finalmente, as menções ofi­ciais do ensino comparativo das literaturas adotam, lado a lado:Literaturas modernas comparadas e Literatura comparada.

lU

Qual havia sido, então, sob tal variedade de etiquetas, a fortunade uma tão persistente curiosidade? Não se cessa, incansavelmente,de "comparar" - sem evitar sempre o fútil paralelo; o que é quese compara, e como se compara, ao longo de cento e cinqüentaanos? Que figura soubera fazer, ao lado dos métodos costumei­ros - crítica estética, dogmática, ou psicológica, ou histórica,ou cronológica - esta irmã caçula, por vezes julgada ambiciosae indiscreta, por vezes reduzida ao silêncio, mas que suas irmãsmais velhas jamais haviam conseguido forçar ao papel de Cin­derela? Sob este aspecto, houve, no próprio quadro da históriadas doutrinas ou das práticas literárias a partir do fim do séculoXVIII, uma evolução curiosa e instrutiva.

Inicialmente encontra-se, na maioria dos casos, o velho an­tagonismo entre doutrinas, hábitos e gostos, complicado por umacirramento de susceptibilidade patriótica. Italianos, franceses,alemães, ingleses, com o despertar das literaturas nacionais, ha­viam todos jogado com um procedimento feito principalmente,em última análise, para estimular a produção autóctone. Agoraque esta produziu frutos numerosos e diversos, confrontam-seacerbamente valores freqüentemente incomensuráveis - paraprovar o quê? Que Shakespeare é superior ou inferior a Corneil­le; que os clássicos modernos são ou não são verdadeiros clássicos;que os franceses não conseguem entender nada de Dante. Laharpeou Lessing, Johnson ou Baretti, com méritos diversos, buscamna "comparação" armas ofensivas ou defensivas. Ou então umFréron, um Linguet, dando-se conta daquilo que de estrangeiropassara para uma obra conhecida, entregam-se ao brinquedo daspesquisas de fontes, não para destacar originalidades, mas paradiminuir iniciativas e para denunciar "pilhagens ...".

Impasses, tudo isso, uma vez atingido o objetivo. Algumas

noções, no entanto, aventurosas e contestáveis em certos pontos,perigosas quando sistematizadas, permitiam aqui e ali confron­tações infinitamente mais fecundas. Herder e Vico, precisandoidéias que, desde a Renascença, jamais haviam sido perdidas devista, englobando num todo a língua, a literatura e a mentalida­de dos povos, e condicionando assim, organicamente, a vida doespírito por conjuntos de circunstâncias determinantes, arranca­vam a comparação do estéril dogmatismo das predileções que seafirmavam como razões e argumentos. Podia-se, a partir daí, coma crítica histórica, aproximar ou opor manifestações literárias cu­jos desacordos se explicavam por outra coisa que não bizarriasou barbáries; podia-se escapar ao vão exercício do raciocínio, ven­do nos diferentes gostos indícios sociais, e talvez étnicos; com is­so, sentia-se a inanidade dos simples paralelos infundados: "Semdúvida, é vantajoso para a arte, escreve em 1808 Sismondi a Mmed'Albany, que pessoas hábeis comparem os teatros das diferen­tes línguas; mas é impossível proferir um julgamento baseado nes­sas comparações. Cada nação tem uma poética essencialmentediferente para seu teatro; ela se propôs um outro objetivo,submeteu-se a uma legislação distinta ..." A relatividade da arte(com todas as aplicações, todos os estímulos que dela pode tirar,por sua vez, o impulso criador) deve, portanto, seu triunfo de1830 a um novo esforço comparativo: é este que se afirma emMme de StaeI e em B. Constant, em Stendhal e no Globe, emGoethe e em Manzoni, enquanto, pouco a pouco, atraída por umcrescente determinismo, a teoria dos "meios" impõe à históriada arte sistematizações indiscretas.

Por outro lado, a simpatia do século XVIII pelo primitivoe pelo espontâneo, aguçada por argumentos e antipatias de todaespécie, resulta por volta de 1800 nas teorias que se conhecemsobre a poética popular, sua eminente dignidade e sua imanên­cia por trás de qualquer literatura digna deste nome. Através deF. Schlegel, dos Grimm e de seus discípulos românticos, atravésde Fauriel e de sua inestimável descendência, toda uma investi­gação nova solicitava o esforço dos cientistas. A comunidade deorigens, o parentesco inicial e sempre latente dos grupos arianos,o sabor de mito que deve transmitir qualquer dado verdadeira­mente primordial ativado pela consciência popular, todos essespostulados do romantismo conduziram a uma ordem interessantede Irabalhos: aquele folclore ou aquela Stoffgeschichte (históriados lemas), em torno dos quais veio gravitar toda uma variedade

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72 LITERATURA COMPARADA LITERATURA COMPARADA: A PALAVRA E A COISA 73

de literatura comparada, constitui uma ordem de investigaçõesque parece mais curiosa pela matéria do que pela arte e para aqual as sobrevivências secretas são mais interessantes do que ainiciativa do artesão; é menos viva a preocupação com o carac­terístico do que com o desorganizado: assim sendo, e quando setrata de obras literárias autênticas, um Judeu Errante, um EnochArden, até um Fausto ou um Don Juan correriam o risco de se­rem estudados para fins mais ou menos inversos daqueles da ati­vidade artística.

Relacionar a literatura com conjuntos sociais ou físicos; de­sintrincar os fios entrecruzados do tecido poético: ver-se-á quepouco a pouco essas duas tendências, instaladas quase de comumacordo, no início do século XIX, na crítica comparatista, con­duzem a métodos muito distantes entre si os espíritos desejososde compreender as coisas em certas regiões da criação poética.

A primeira dessas atividades, sobretudo na França, não po­dia deixar de ser a mais manifesta. Firmadas num direito análo­go ao da existência, as diferentes literaturas nacionais, doravanteobjetos da história literária, podiam figurar lado a lado, sem des­favorecer demais alguma dentre elas nos quadros elaborados aquie ali sobre os progressos do espírito humano. Como vimos, re­sultavam estímulos imediatos do próprio princípio da relativida­de do belo: nem Herder, nem Mmede Stael, nem Stendhal, nemManzoni se privaram de tirar as conclusões que se impunham,uma vez admitido o axioma, aliás contestável, de que "a litera­tura é a expressão da sociedade": uma boa parte do impulso doromantismo, como se sabe, provém destas premissas críticas.

A que chegava, por outro lado, a literatura comparada doinício do século XIX, quando se tratava de apresentar pontos devista sobre o passado e não mais de estimular o presente? A in­ventários compartimentados da literatura universal, como efeti­vamente conhecemos muitos. Justaposição de séries paralelas maisdo que interpenetração; filiações e seqüências mais ou menos con­tínuas na ordem nacional, com "crises" principalmente internasexplicadas pelas "variações do gosto", com "períodos" procla­mados gloriosos ou depreciados como insuficientes, conforme umcerto ideal fosse manifesto ou esquecido: é a maneira de Deninaem seu Tableau des révolutions de Ia littérature ancienne et mo­derne ou de Guinguené na Histoire littéraire que devia prolon­gar seus estudos italianos; é a maneira de Eschenburg, de Bou-

terwek e de outros compiladores eruditos. Dir-se-ia que, no en­tusiasmo que seguiu sua libertação do jugo dogmático, e tam­bém na sua alegria de se verem ligadas efetivamente a "naciona­lidades", nações autênticas ou nações em que há esperança, asdiferentes literaturas contentam-se inicialmente com mostrar suasriquezas e desfilar em sua respectiva posição diante da atençãocrescente do mundo. Pois até há lugar, então, neste círculo quese cria, para os retardatários, os lerdos, os oprimidos, gregos mo­dernos, irlandeses, finlandeses, que não hesitam mais em divul­gar seu único bem reconhecido, sua literatura popular, Morla­ques de Nodier e Il1yriens do pastichador Mérimée. Por volta de1825, a imagem da literatura européia, ou mundial, começou cer­tamente a refletir-se, de maneira bastante pitoresca, no espíritodos leitores cultos; e não é de surpreender que a literatura com­parada tenha tirado proveito desta atmosfera tão favorável da Eu­ropa da Restauração.

Mas tudo isso eram apenas visões fragmentárias, um espe­lho quebrado cujas facetas, rigorosamente falando, uniam-se umasàs outras pela noção das mesmas origens ou pela lembrança dealgumas disciplinas recebidas em comum. Impunha-se uma orien­tação nova para que fosse organizado de outro modo o resulta­do de todos aqueles inventários nacionais.

IV

Ás ciências "comparativas" em biologia, no primeiro terço doSlTldo XIX, haviam-se constituído em disciplinas especiais, nasquais a história literária não podia deixar de inspirar-se à suaIlIaueira. Cuvier em anatomia comparada (1800-1805),Blainvillel'1Il fisiologia comparada (1833), Coste em embriogenia compa­rada (I X17) lodos eles tinham, com objetivos diversos, publicadoseus lrahalhos sob O prisma do estudo comparativo: não a sim­ples preocupação - demasiado evidente para qualquer observa­dor de eolcjar os objetos análogos de um mesmo grupo parafins de c1assificação, mas a comparação de fenômenos destaca­dm,~sob ('('rIosaspectos, do grupo ao qual normalmente perten­cem e submetidos a uma confrontação que evidencia um caráter

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comum e, com isso, sugere uma relação de parentesco e de de­senvolvimento entre grupos tidos como estranhos até então.

Importa não perder de vista este ponto de partida, que o ter­mo "comparado" por vezes faz esquecer (e é bastante significa­tivo que a disciplina comparativa em biologia, mesmo após ostrabalhos dos Owen e dos Gegenbaur, tenha precisado muitas ve­zes, ela também, lembrar sua razão de ser essencial). Embora evi­dentemente não se tratasse, no caso da história literária, de to­mar emprestados às ciências biológicas um método e procedimen­tos, ela encontrava naquelas ciências uma tendência que tinha omérito de encorajar, por sua vez, diversos estudos do passado.Littré será um dos eruditos que, na França, garantirão com amaior constância a legitimidade das visões comparadas em do­mínios tão diferentes, ele que, ao deixar o colégio, se apaixonavapor lingüística comparada, tomava partido em 1830 no conflitocriado pela anatomia comparada entre partidários e adversáriosda unidade do plano e ainda lembrava, no prefácio de 1874 deseu último volume, Littérature et histoire, que as diferentes lite­raturas são "irmãs" a despeito de tudo o que as separa.

Aliás, já se haviam oferecido intermediários em vários pon­tos entre o "comparatismo" das ciências da matéria e o das ciên­cias do espírito, e o método comparativo em lingüística produ­zia, após os trabalhos de A. W. Schlegel, os de Bopp e de Diez,entre outros. Chegava a vez das outras ciências, mitografia com­parada, geografia comparada, legislação comparada - sem fa­lar do folclore, comparatista por natureza, que celebrava ao abrigodo romantismo alguns de seus mais populares sucessos.

Eis, portanto, que se apresentam, por volta de 1830, paraa história literária, condições de renovação e de atividade supe­rior, mesmo tendo como objeto o período moderno, e não maissomente as épocas caras aos Fauriel e aos Raynouard, quandoa difusão dos temas de inspiração e a precariedade relativa doíndice nacional tornavam a matéria poética tão fluida e móvel,tão vagabunda e errante quanto possível. As justaposições purase simples de literaturas parecem ser coisas do passado; as reivin­dicações nacionais por comparação parecem inúteis; a interaçãopossível e os contatos evidentes permitem, até para épocas de ex­pressão nacional e de estilo' 'cristalizado", a exposição ligada decertas grandes épocas intelectuais. Guizot empreende com esteespírito seu Cours d'histoire moderne, Villemain, em suas lições

de 1827 e 1828, aborda o Tableau du XVIIIe sii!cle através dapesquisa das influências inglesas: e sabe-se com que emoção ovelho Goethe, desde sua longínqua Weimar, acompanhava essaslições retumbantes que lhe pareciam assegurar, entre os povos mo­dernos, um entendimento intelectual promissor de boa vontadegeral e humana ...

Apesar dessas esperanças do século XIX em seu berço, é certoque, no esforço de um Buckle, de um Hallam, nas histórias lite­rárias não obscurecidas por um egocentrismo nacional, no Sé­culo XVIII de Hettner, mais e mais se afirmam pontos de vistafavoráveis a uma concepção mais orgânica dos grandes conjun­tos literários da Europa. Sem dúvida, essas amplas apresentaçõeseram demasiadamente rápidas. E como não teriam elas sido pre­maturas, precipitadas, superficiais sob inúmeros aspectos? Elastinham pelo menos o mérito de levantar sinteticamente proble­mas que a análise, a seguir, podia resolver, precisando-os. Seuprincipal defeito era - no próprio plano em que elas se coloca­vam - submeter os fatos literários a uma espécie de direção pre­concebida e fazer convergir coisas em excesso para um objetivoque se via antecipadamente, revolução, parlamentarismo, racio­nalismo etc.! As idéias mais que os modos de expressão, as no­ções intelectuais mais que as energias eram analisadas nestas am­plas enquetes, realizadas, evidentemente, de um ponto de vistaque se poderia qualificar como "doutrinário".

J.-J. Ampere teria sem dúvida constituído mais livrementea literatura comparada se tivesse percorrido toda a carreira queele se traçara na época das grandes esperanças. Com seu gostopela vida e pelo individual, sua curiosidade de viajante e de psi­cólogo, a consciência hereditária de pesquisador que possuía, elepodia ultrapassar o estágio das generalizações, sair ousadamen­tv dos períodos em que a intercomunicação da Europa é coisa('vidcnte: ele carregou a pena de uma mobilidade de caráter e deClIlíosídades que foi o preço de resgate das mais belas faculda­de,s_

SII;1 ",cração viu não sem preocupação instalarem-se, na his­tória da likralura e da arte, as idéias às quais Taine, na França,POIICO ;1 POIICO ligou seu nome. Sem dúvida, esta poderosa inte­ligência 1I;l(1ahandonava as fecundas visões de conjunto que ul­trapassav;lIllGltq',orias demasiadamente estreitas; em todas as par­tes de sua ohra, a evocação dos conjuntos implícitos solicita

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engenhosamente o leitor. Quantas vezes não se detém ele paraopor termos sobre os quais a comparação projetará uma luz maisviva, Shakespeare e Racine, Musset e Tennyson, o homem antigoe o homem moderno, Fausto e Manfredo, Flandres e a Itália; oupara instituir analogias favoráveis à interação dos espíritos, Ab­solutismo Francês e Restauração Inglesa, Renascença Italiana eReforma GermânicaL .. Entretanto, seu princípio favorito das"convergências", da concordância das forças e dos efeitos, "aobra de arte determinada por um conjunto que é o estado geraldo espírito e dos costumes", a "estrutura interna" que ele en­contra ao mesmo tempo num poema e numa raça - todas essas·crescentes exigências de suas teorias opunham-se a uma aplica­ção mais fecunda dos métodos comparativos.

Era necessário, com efeito, que fosse novamente maleabili­zado o elo rígido estabelecido por sua doutrina entre todas asmanifestações da vida de um povo. Para um Descartes, um LaBruyere, um Fontenelle, o meio constituído por um conjunto so­cial ou nacional não é tão hermético nem tão fechado que a vidado espírito não possa dele escapar; e, como dizia o último dessesclássicos, "a leitura dos livros gregos produz em nós o mesmoefeito que se nós somente desposássemos gregas". Mas se, ao con­trário, os grupos dos quais emanam criações de arte, línguas eliteraturas, são organismos mais ou menos fechados, então as co­municações literárias entre estes não passam de episódios inor­gânicos. Rejeitada tão logo recebida, ou então limitada a umaação superficial, uma influência estrangeira em nada afetaria asmodalidades essenciais. Desta concepção, como sabemos, pro­vêm muitas denegações formuladas - por um Nisard, na Fran­ça, e por outros, alhures - em relação às trocas intelectuais naatualidade, ou à sua investigação no passado: uma espécie de ego­centrismo faz persistir o gênio de uma nação, não apenas em seuslineamentos principais (o que é evidente), mas também em umairredutível identidade (o que realmente não se sustenta diante dosfatos verificados).

Ora, a flexibilidade que nosso classicismo podia trazer a:umtão compacto determinismo em razão da dualidade do espíritoe da matéria, a ciência recente voltou a propô-Ia em nome da pró­pria pluralidade e multiplicidade. "O maior progresso da fisio­logia moderna, pôde escrever Renan, foi mostrar que a vida daplanta e a do animal não passam de uma resultante de outras vi-

das, harmonicamente subordinadas e resultando em um conjun­to único ... A consciência é uma resultante de milhares de outrasconscicllcias que convergem para um mesmo objetivo ..." Esten­dida às coletividades humanas, uma tal concepção leva a admi­tir a coexistência, em determinado "meio", de disposições, detendências diversas - sobrevivências étnicas, heranças, diferen­ciações sociais e morais sobretudo - que condicionam os jogosmúltiplos da sensibilidade e, com isso, as variedades da expres­são artística e o vaivém das manifestações literárias.

Teria a literatura comparada podido avançar um passo se­quer, se o rigor das teorias às quais o nome de Taine permaneceuligado não tivesse sido atenuado por noções diferentes? É bempouco provável. Em todo caso, vemos em diversas partes, pelofim do século XIX, um esforço que tende, através precisamentede um método comparativo mais direto, a justapor, e freqüente­mente a superpor aos conjuntos de Taine idéias que abrandama exigência destas. Instinto de um certo cosmopolitismo em his­toriadores e críticos pertencentes a pequenas pátrias aos quaissua intensidade nacional não pode bastar: os nomes de G. Bran­des, de Ed. Rod, de Marc Monnier, de V. Rossel estão ligadosprincipalmente a este' 'europeanismo" que é, em muitos casos,a mola propulsora de uma sensibilidade confinada nos limitesda pequena pátria. Sentido mais imperioso das grandes divisõessociológicas da humanidade: Posnett, em 1886, baseia sua teo­ria da literatura comparada nos estágios sucessivos que as aglo­merações humanas atravessam. Para ele e para todo um peque­no cenáculo que dele procedeu na Inglaterra e nos Estados Uni­dos, a evolução das sociedades - passagem do clã à cidade, dogrupo feudal ao grupo nacional, etc. - predomina amplamentesobre a filiação étnica ou sobre a determinação pelo meio físico;a literatura comparada depende dessas relações, mais ou menosconscientes, entre as artes e as variações sociais: ponto de vistaque o livro de Letourneau, L'évo!ution littéraire dans !es diver­ses races humaines, de 1894, representa numa certa medida naFrança, pelo menos para os grupos primitivos. Inversamente, foia complexidade dos componentes étnicos que levou 1.-1. 1usse­rand a retomar do ponto zero a investigação de Taine sobre a his­tória literária do povo inglês; foi a variedade das afinidades doespírito que se afirmou para E. Hennequin (1889) como o gran­de fato intelectual, uma vez que há, entre as sensibilidades, "elos

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eletivos mais vivos e mais vivazes do que esta longa comunidadedo sangue, do solo, do idioma, da história, dos costumes, queparece formar e distinguir povos".

Realizava-se assim em diversos lados uma espécie de opera­ção "centrífuga", se assim se pode dizer, face às sistematizaçõesde Taine, deixando certamente subsistir algumas verdades indis­cutíveis, alguns fortes relevos, mas enfraquecendo as teorias mes­tras de sua obra. A "emoção estética" de Guyau e a preeminên­cia da expressão na arte cara a B. Croce contribuirão à sua ma~neira para abrir caminho a uma concepção mais maleável das pos­sibilidades literárias. Mas, logo, retomando e armando com umalógica vigorosa algumas das idéias assim enunciadas, Brunetierepropunha, para explicar a vida da literatura, sua teoria da evolu­ção dos gêneros. Esta voltava a pôr em movimento e em interco­municação diversos grupos nacionais; supunha um conjunto eu­ropeu cujas principais partes constitutivas podiam realmente agirumas sobre outras, graças principalmente a formas superiores aodeterminismo estreito das raças e dos meios. O momento - istoé, a velocidade adquirida, o legado do precursor ao sucessor, oprestígio de um modo de expressão já firmado - adquiria aquium rigor tal que, por si só, esse terceiro elemento da doutrinade Taine quase bastava para fazer "evoluir" as literaturas. E estemovimento, do qual a existência dos gêneros era a materializa­ção, longe de se encontrar confinado em um único grupo nacio­nal, criava dependências entre as diferentes literaturas, de modoque a evolução de um gênero podia ser escrita como um capítuloda influência da Itália sobre a França, se se tratasse da tragédia,da Inglaterra sobre a França, se estivesse em causa o romancehistórico, da Espanha sobre a França, se fosse visado o Gil Blasde Lesage, "enciclopédia do romance picaresco" ...

Como nascem os gêneros, e graças a que circunstâncias detempo ou de meio; como se distinguem e como se diferen­ciam; como se desenvolvem - à maneira de um ser vivo ­e como se organizam, eliminando, descartando tudo o quepode prejudicá-los e, inversamente, adaptando-se ou assimi­lando tudo o que pode favorecê-los, nutri-los, ajudá-los acrescer; como morrem, através de que empobrecimento oude que desagregação de si próprios; e de que transforma­ção, ou de que gênese de um gênero novo seus destroços se

tornam os elementos: essas são as questões que o métodoevolutivo se propõe tratar ...

Sem dúvida, esse darwinismo literário podia operar, e se ma­nifestava muitas vezes no âmbito de uma tradição única; mas aluta pela existência, aqui invocada, levava imperiosamente as ap­tidões vitais de um gênero a se reforçarem através do emprésti­mo ou da emulação que as fronteiras não podiam impedir.

v

Duas direções mestras solicitavam, conseqüentemente, a litera­tura comparada. Duas atividades principais podiam atrair aque­les que, ao estudarem o passado, dirigiam seus olhares para alémde uma só tradição, de uma linhagem única de monumentos sig­nificativos.

Uma - da qual Gaston Paris foi, na França, o principal re­presentante,e que a erudição estrangeira cultivou copiosamente- esforçava-se por reduzir a elementos simples, tradicionais, osdiferentes temas de que vivem as literaturas, sem renovação bási­ca de sua matéria essencial, sem variação outra a não ser combi­nações novas, e com uma espécie de adulteração contínua de suasimplicidade inicial e de sua significação primeira; e com issomantinha-se implicitamente a noção de uma arte outrora' 'secre­tada", em sua pureza absoluta, por uma alma popular coletiva.Com uma meticulosidade compartilhada com o folclore e como estudo dos mitos, a literatura comparada entendia procurar,deste lado, que fontes mais ou menos diretas se ofereciam à aná­lise de uma obra literária, que análogos dessas fontes se apresen­tavam em algum outro ponto do mundo, fábulas esópicas ou con­tos milésios, narrativas populares ou afabulações religiosas, trans­mitidos passo a passo (por uma tradição oral ou por escrito) eacabando por aflorar na superfície da literatura, após séculos tal­vez de uma vida mais ou menos subterrânea. A Matrona de Éje­so seria a transformação, bastante irônica, de uma história rela­tada pela propaganda moral dos pregadores budistas? O contode Ilarba Azul valorizaria ainda, sem se dar conta, um antiqüís­situo mito solar imaginado pelos arianos antes de sua dispersão?

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o de Cinderela simbolizaria um costume primitivo que atribuíaà caçula da família a guarda do lar? Pois sabe-se que a antropo­logia, juntamente com a mitografia e o indianismo, ofereceramsuas sedutoras hipóteses a esta variedade de literatura comparada.

A outra variedade estendia e precisava as inter-relações visí­veis entre as séries nacionais das obras literárias; em certas evo­luções do gosto, da expressão, dos gêneros e dos sentimentos, eladescobria fenômenos de empréstimo, determinava a zona de in­fluência externa dos grandes escritores. Contudo, não se tratavamais de organizar simples inventários justapostos da literatura"européia" ou "mundial", mas de indicar <;) que G. Brandes cha­mava as "grandes correntes" que atravessam os diferentes gru­pos nacionais; de acompanhar, corno fazia E. Schmidt em seuRichardson, Rousseau e Goethe, um modo de sensibilidade queinvade um gênero literário, transportando-se da Inglaterra paraa França e da França para a Alemanha; de provar pelo detalhe,corno se fez com tanta diligência, que prestígios italianos lança­ram em novos caminhos a França da Renascença; de estudar, àmaneira de Farinelli para Dante, urna grande celebridade fora deseu país ... Brunetiere, na França, continua sendo o principal ad­vogado deste estudo comparativo de nossos grandes séculos lite­rários, e sua obra crítica demonstra um desejo crescente de su­bordinar a história das literaturas particulares à história geral daliteratura da Europa. Parece que, segundo ele, a concepção deurna literatura verdadeiramente una, cada vez mais extensa notempo e no espaço, ganha na medida em que os estudos de J.-A.Symonds sobre a Renaissance en Italie, de Vogué sobre o Romanrusse, de J. Texte sobre as Origines du cosmopolitisme littéraire,revelam afinidades mais numerosas entre partes do mundo quemal se suspeitava estarem tão dispostas a participar em comumda mesma vida do espírito.

Pode-se dizer que o Congresso de História Comparada dasLiteraturas, promovido, em plena Exposição Universal de 1900,pela 6~ Seção dos Congressos realizados em Paris, marcou o fra­terno entendimento entre essas duas maneiras de entender a lite­ratura comparada, no momento em que ambas não davam mais,em suma, do que resultados um tanto reduzidos e em que preci­savam, em todo caso, verificar novamente suas respectivas cre­denciais. Este congresso era presidido por F. Brunetiere, que apre­sentou urna exposição vigorosa e por vezes "especiosa" do obje-

to e do método, do programa e do campo de ação da literaturacomparada, considerada corno ahistoriografia da literatura eu­ropéi,l. "O que eu desejaria ver reconhecida é a situação respec­tiva das cinco grandes literaturas, em relação urnas com as ou­tras; é a curva da evolução da literatura européia através da his­tória destas literaturas; é, finalmente, a identidade deste tipo depesquisas com aquelas que constituem o objeto essencial da 'li­teratura comparada' ..." E, transportando à sua maneira, do da­do nacional ao plano "europeu", a antiga concepção de "orga­nismo" coletivo, Brunetiere concluía assim:

Há, por assim dizer, urna unidade aritmética, urna unidadede repetição, cujas frações são todas iguais ou idênticas aelas mesmas; e há urna unidade orgânica, urna unidade devariedade, cuja harmonia resulta da própria diferenciaçãodas partes que a constituem. Se existe urna "literatura euro­péia", só pode ser neste segundo sentido; e, supondo-se queela ainda esteja em estado inorgânico,então só se poderáconstituí-Ia com a condição de organizá-Ia. Mas ela só seráorganizada na exata medida em que forem diferenciados seuselementos sucessivos... 2

Por outro lado, G. Paris, presidente de honra, lembrou que,ao lado da literatura comparada que trata dos monumentos in­telectuais dos diferentes povos, existia urna "ciência nova que tocaao folclore, à mitografia e à mitologia comparada", que ultra­passa as fronteiras da literatura propriamente dita, "segundo ra­mo da literatura comparada que não é menos importante do queo primeiro"; embora ela não restrinja sua pesquisa às literaturasartísticas, pode praticar a comparação estética das literaturas. Umpouco mais tarde, no prefácio do efêmero Journal of Compara­tive Literature, G. E.Woodberry enumerava as diferentes ativi­dades oferecidas a seu esforço (1903), e a reedição (1904) da Bi­bliographie, de L. P. Betz, que se esgotara em menos de três anos,comprovava os resultados já obtidos e o interesse que os meioseruditos manifestavam por eles. A Zeitschrift de Max Koch tra­balhava há algum tempo no mesmo sentido.

Não dizíamos nós, entretanto, que, nisso também, se haviachegado a um "ponto morto"? Melhor dizendo, a dois pontosmortos, pois, na verdade, ambas as variedades da história com­parada das literaturas viam contestada sua eficácia, e questiona-

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da aquela espécie de legitimidade interna sem a qual não há la­bor que valha. Sem dúvida, muitos dos resultados conquistadoseram incontestáveis; páginas e volumes excelentes estavam sendoescritos; o impulso dado pelas teorias latentes tivera seu efeito.Mas, não parecia ser possível, sem revisão, firmar-se nos concei­tos preconizados nesses dois grupos de trabalhadores para em­preender com confiança pesquisas novas: era o desgaste das teo­rias implícitas e dos métodos - análogo ao empobrecimento dosprogramas artísticos - dos quais o patrimônio total da ciêncianão sofre, mas que obriga os cientistas a trocarem o equipamen­to de seus princípios diretores, sob pena de trabalharem à mar­gem do veio frutuoso ...

Pesquisa da origem e do sentido primeiro dos "motivos"literários? Havia muito tempo que os estudantes do Trinity Col­lege,em Dublin, tinham demonstrado com humor que Max Müllernão passava de um mito solar. Mais seriamente, a fragilidade detantas hipóteses sobre as origens davam matéria para numerosascontestações: "O gênero mais familiar", escrevera G. Paris em1895, "o mais natural aparentemente e, sem dúvida, o mais francêsda Idade Média na sua forma e execução, o gênero das fábulassatíricas, tem sua raízes primeiras bem longe do tempo e do lu­gar em que floresceu ... veio da Ásia, da Índia provavelmente, pas­sando normalmente por Bizâncio ..." Ora, o fato é que, na mes~ma época precisamente, J. Bédier propunha, com muita razão,que se aderisse à hipótese, mais simples em muitos casos, da "po­ligênese" dos contos, os quais podiam muito bem tirar seus ele­mentos essenciais da combinação, sempre renascente e apenas re­novada, dos incidentes da sociedade humana. Mesmo sem estaobjeção, e considerando apenas as hipóteses de origem, tantoscontatos interrompidos deixavam incompleta a cadeia a ser re­constituída que, freqüentemente, as relações estabelecidas pelaStojjgeschichte, ignorando os intermediários orais e indetermi­nados, satisfaziam maIos espíritos históricos, isto é, preocupa­dos com séries contínuas: daí a pouca segurança oferecida portantos Ahasverus, Griselidisou Sete adormecidos, sendo Don Juano único a oferecer quase, pelo menos em sua carreira literária,a continuidade desejável. Enfim, menos preocupada, por natu­reza, em valorizar as formas simples, esta variedade da literaturacomparada estava sem dúvida fadada a ver-se prejudicada, en­quanto se afirmavam de novo, na estética, os direitos da indivi-

dualidade expressiva. Dir-se-ia que, com seus admiráveis méri­tos de cientista e de homem, G. Paris carregava o peso da decla­ração registrada por Taine em 1870: "Se eu fizesse a história deuma literatura, desejaria fazer abstração dos indivíduos, considerá­los como porta-vozes, escrevê-Ia como um tratado de química."

A objeção, com relação a Brunetiere, era de outra ordem.Conferindo aos gêneros literários uma espécie de necessidade,atribuindo-lhes uma existência independente, este espírito impe­rioso criava entidades às quais o passado estava sujeito por umfinalismo que nenhuma realidade justificava. O que, por outrolado, conduzia a um impasse a literatura comparada preconiza­da por Brunetiere era que seu mapa da história literária, por maisorganizado que fosse, por mais móvel que pretendesse ser, erafeito de acordo com as obras mestras e com as grandes correntesatualmente memoráveis. O passado, ele o via em seus resultadosatualmente aceitos, e não em sua gênese tateante. Já se viu queele limitava naturalmente a literatura européia às "cinco grandesliteraturas". Seu Panteão internacional, igualmente, era compostodaqueles que a posteridade nele instalara, e não daqueles que ti­veram a maior participação nas evoluções abolidas: ponto de vistaexcelentesob o prisma social e pedagógico, mas pouco eficaz paraa reconstrução histórica. Com efeito, considerando-se apenas osresultados filtrados hoje, e aliás sempre provisórios, da notorie­dade e da reputação, como saber que Gessner desempenhou umpapel na literatura geral, que Destouches, mais do que Moliere,encantou os alemães, que Delille foi julgado tão absoluto e su­premo quanto, mais tarde, Victor Hugo, que Heliodoro talvez sejatão importante quanto Ésquilo no legado da Antigüidade? Co­mo impedir-se de escrever, como o faz Brunetiere, que deveriamser excluídos da literatura européia os autos espanhóis, por cau­sa da fraca influência que tiveram ... fraca se se ignora seu prestí­gio em todo um distrito do romantismo.

É aí que se encontra, a meu ver, o ponto falho da c<;mcep­ção muitas vezes proposta pelo veemente crítico. Parece-me quea objeção atinge os principais "manuais" de literatura compa­rada ou de literatura geral que foram tentados até aqui, o de F.Loliée na França, o de R. G. Moulton nos Estados Unidos, o deMazzoni e Pavolini na Itália, o de G. M. Saintsbury na Inglater­ra e o de Engel na Alemanha: sua "alquimia literária", como adenomina C. de Lollis, opera sobre os resultados aparentes c Jl:Ú)

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sobre os fatores verdadeiros. É o que G. Renard, em seu Métho­de scientijique de l'histoire littéraire observava com razão e queG. Lanson fazia admitir pelo exemplo e pelo preceito: nesta ma­téria, era impossível limitar-se às grandes obras classificadas; nãoera, de modo algum, somente entre estas que devia ser estabele­cida a continuidade em que se pudesse basear uma' 'evolução".E mais: era preciso fazer "evoluir" (isto é, simplesmente,transformar-se) não somente os gêneros, mas os pontos de vista,os públicos, o objeto e o sujeito simultaneamente; desse modo,podiam obter-se perspectivas até certo ponto próximas da reali­dade do passado. Não foi sem razão que P. Bourget observouque um livro não permanece o mesmo a vinte anos de intervalo.Somente assim, o movimento, ao qual Brunetiere sentia ser ne­cessário submeter retrospectivamente a vida das formas e dasidéias, tinha condições de não desfigurar demasiadamente a ver­dade. É por isso que o autor das presentes linhas consagrou maisde cinco anos a examinar ininterruptamente os principais perió­dicos franceses, jornais e revistas, da época de 1770-1880, parachegar à noção de mobilidade e deixar-se levar, se possível fosse,pela onda. Parece-lhe que importava reencontrar o dinamismode que eram animadas, não somente as obras relevantes das quaisainda guardamos a lembrança, mas a massa das criações, indife­rentes hoje, que sustentavam aquelas; reencontrar também a opi­nião, favorável ou contrária, que as cercava e as tendências so­ciais, igualmente levadas a se posicionarem em torno dessas obras,que se tornaram hoje "testemunhas" mais ou menos verídicas.

J. Texte,em seus belos trabalhos, começara a citar abundan­temente a imprensa, os testemunhos secundários, as opiniões con­temporâneas, mesmo medíocres, e outros pesquisadores com­preenderam quantas visões retrospectivas eram proporcionadasatravés do levantamento dessas vozes reveladoras. O principal be­nefício para o espírito será sempre, a meu ver, uma melhor per­cepção da mobilidade do mundo, dos gostos, das modas, dos su­cessos e das glórias, com a possibilidade de assim se avaliaremcom mais justiça manifestações da arte que a seguir, para alegrianossa, se fixaram, ou que se dissolveram no esquecimento, masque participaram todas, em dado momento, daquelas contínuasassociações e dissoluções de formas e tendências. Encontravam~se aí, para a literatura comparada, condições novas para sua ati­vidade. Em vez de considerar as grandes celebridades como as-

Iras cuja :lsccnsão e órbita se podia seguir no meio de um céufixo, illlporlava dar conta da mobilidade dos próprios planos nosquais se dcstacam as estrelas cujo brilho chegará ao futuro.

r,: dcsnecessário lembrar aqui que circunstâncias favoreciamessa franca admissão da mobilidade no alvor do século XX. Alémd:1Shipóteses científicas e de suas grandes aplicações práticas,all'lll do próprio espetáculo das coisas contemporâneas, é evidenteque as mais recentes estéticas e as mais sedutoras doutrinas doconhecimento estavam abrindo caminho para uma história lite­rúria assim entendida. A literatura comparada, sem cair no erroque seria transpor um método científico para outro domínio, nãopodia deixar de tirar proveito dessas condições tão vizinhas ­assim como, no tempo de Cuvier e de Geoffroy Saint-Hilaire, ti­rara partido do comparatismo biológico.

Com isso, ela passava a ser mais e mais uma "genética", umamorfologia artística; quero dizer que, recusando-se a considerarcomo acabadas as obras e as reputações, ela se instalava mais nosbastidores do que na sala de espetáculo: preferia, segundo umconselho dado ao mesmo tempo por Montaigne e por Goethe,por Descartes e por Sainte-Beuve, surpreender em sua formaçãoe em seu devir as obras que a crítica impressionista ou dogmáti­ca via tais e quais, definitivas, fixadas, sólidas em seu brilho ouem sua mediocridade.

Graças ao benefício tirado de uma viva noção das gênesesintelectuais, a literatura comparada podia não se alarmar muitocom as objeções que de diversos lados lhe eram formuladas: seuinteresse aparentemente mais considerável pelas articulações en­tre as literaturas do que por seus sucessos, parecendo que istmose estreitos a atraem pelo menos tanto quanto oceanos e conti­nentes; o perigo de que despreze analogias que, entre literaturasdiferentes, não seriam o resultado de influências (D. N. Smith);a importância que, em um bom método, deve contil1l,Iarreceben­do o estudo das formas lingüísticas (E. Elster). Ela mereceria,em contrapartida, todas as denegações, se se enganasse quantoà importância dos "infinitamente pequenos" que deve recolhere se pretendesse algum dia fornecer, sozinha, a chave dos fenô­menos do espírito, pelo simples jogo das vivas relações entre li­leraturas diversamente diferenciadas; felizmente, ela se abstém deostentar semelhantes pretensões.

Idéias, imagens, emoções, tendências que procuram colo-

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86 LITERATURA COMPARADA LITERATURA COMPARADA: A PALAVRA E A COISA 87

car-se em forma; fórmulas, quadros excelentes ou simples sobre­vivências, resíduos das formas consagradas ou invólucros mortosque se aplicam a estados de alma ou a movimentos do espírito nemsempre jorram armados para a existência;nuanças da sensibilidade,passos da inteligência que são servidos ou traídos, satisfeitos ouultrapassados por determinadas maneiras de dizer, por determi­nados detalhes da obra de arte; momentos da vida social que tes­temunham, pelo sucesso ou pelo aplauso, sua adesão a obras oua "heróis" que, por isso mesmo, os "exprimem": assim aparecea literatura para quem a considera não um Panteão de celebrida­des aceitas, mas um campo fechado de energias e aparências, subs­tância e atributos, fundo e formas. E é necessário, sob pena de se­rem apenas memorialistas infiéis, que os historiadores literáriosse preocupem em retraçar os episódios discerníveis desses inces­santes movimentos; o gênio, este Deus ex machina cômodo dosapologistas românticos, parece não desempenhar mais um papelabsoluto: ou melhor, presente em doses variáveis em qualquer cria­ção, ele não basta mais para explicar outra coisa do que urna es­pécie de fato vital superior, o ponto genético de onde parte urnanova utilização de elementos anteriores. Na mobilidade do mun­do do espírito (onde, aliás, a tradição, a linguagem, as idéias ge­rais, o prestígio dos modelos oferecem pontos fixos análogos aoque são a consciência e a memória na vida da personalidade), o .esforço pelo individual é a norma, assim corno a caracterizaçãodo individual deveria ser a regra da crítica. Ora, neste reino da uni­versal variação,3 a literatura comparada entende simplesmentepermanecer atenta a fatos cuja importância não deixou de aumen­tar em urna época de relações incessantes e fáceis no globo. Elasabe conservar mais ou menos o lugar - cuja significação seriaigualmente inadmissível reduzir ou exagerar - que desempenha,em economia política ou em história, o estudo das relações como que é externo, das iniciativas ou das pressões de além-fronteiras,das aventuras ou das fatalidades exteriores, com que os grupos hu­manos embaralham e complicam sua atividade.

VI

Significará isso extrapolar urna zona legítima de observação e ar­riscar um desvio de método? Significará introduzir urna nova fi-

nalidade no estudo do passado? Àqueles dentre nós principal­mente que roram, em sua posição, atores no grande drama doqual não é permitido alhear-se, parece hoje, em 1920, que o es­tudo dos fatos e das formas literárias não pode restringir-se à sim­ples crítica dos fenômenos, das influências exercidas ou sofridas,nem mesmo à determinação dos grandes conjuntos da Cidadedo Espírito.

Na medida em que a substância da história literária parecemóvel e diversa, limitada unicamente pelas próprias fronteiras do

. espírito humano, não será importante estabelecer um centro es­sencial para tanta efervescência de superfície? Quanto mais in­determinada e fugaz é a matéria das nebulosas em fusão, tantomais o núcleo em torno do qual ela se move deveria ser definidoe sólido. Da mesma forma, seria sobretudo, a meu ver, a prepa­ração de um novo humanismo o resultado de urna prática am­pliada da literatura comparada, após a crise que ainda nos do­mina: urna espécie de arbitragem, de clearing, a que levaria o es­forço do "comparatismo", abriria caminho para certezas novas,humanas, vitais, civilizadoras, nas quais poderia novamente as­sentar o século em que vivemos.

E por que não? A literatura comparada inicialmente ajudouos dogmatismos pós-clássicos a se dissolverem e os pontos de vistanacionais a se definirem. Mais tarde, graças a ela, a idéia da rela­tividade do belo armou-se de argumentos eficazes. Depois os na­cionalismos literários, que ela contribuíra para formar, foram obri­gados por ela a confessar muitas analogias e muitos elementoscomuns, e não poucas dívidas imperceptíveis e contatos secretos.Será absurdo esperar que, sem se deixar levar por quimeras maisperigosas, a literatura comparada concorra para definir tanto oslimites quanto as contribuições essenciais daquilo que urna vezmais harmonizaria - corno outrora o patrimônio antigo - assensibilidades e as tendências da humanidade esclarecida? Saberaté onde vai, em consciências estrangeiras representadas por sualiteratura, a fortuna de urna idéia ou de um sentimento; verificaronde termina a incredulidade voltairiana, o apelo ao super­homem, o misticismo tolstoiano, determinada forma de cômico,ou nuança de patético, ou audácia de expressão; totalizar as ade­sões c avaliar os descréditos, observar as mutações de valor pelasquais um livro, considerado ático por uns, é rejeitado por outrosdevido a seu bizantinismo, enquanto urna obra desdenhada aqui

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88 LITERATURA COMPARADA

é aclamada ali: são precisões que permitiriam, melhor do que cer­tos apostolados, fornecer à humanidade desarticulada um fun­do mais ou menos precário de valores comuns.

O campo é imenso e a seara se estende a perder de vista; masisso não é demais, para se esperar recolher as mais ricas braça­das do esforço comum de todas as boas vontades.

NOTAS

1 Comparative Literature; Vergleichende Literaturgeschichte; storia comparata delle let­terature, ao lado de letteratura comparata; sammenlignende Litera,turhistorie; literaturacomparada, etc.

2 Annales internationales d'histoire: Congrês de Paris, 1900, fi'! section. Paris, 1901, p.37.

3 Desconfiemos das analogias demasiadamente fáceis que sempre se podem estabele­cer entre objetos essencialmente diferentes do conhecimento. É significativo, entretanto,que, no momento em que estas páginas estão sendo preparadas para impressão, um arti­go da Revue Scientijique, de 10 de julho de 1920, apresente, pela pena de P. Villemin(La fonction de I'organisation des êtres vivants) aquilo que é, serndúvida, o último esta­do das hipóteses biológicas: "O mecanismo da variação outra coisa não é senão a edifi­cação de uma construção nova com os destroços de uma construção que desmoronou,rejuvenescidos pela mutação ... A variação é a regra: a fixidez é apenas uma interrupçãoda variação A variação depende da organização: é uma expressão habitual da vida ...A variação produz as diferenças ... que marcam a personalidade".

I"

CRÍTICA LITERÁRIA, HISTÓRIALITERÁRIA, LITERATURA COMPARADA*

Paul Van Tieghem

As etapas do conhecimento dos livros: leitura crítica, história li­terária. - Você se encontra numa casa antiga, perdida no fundode um campo, obrigado a passar vários dias sem sair. Felizmen­te, lá você descobre uma ampla biblioteca, acumulada por váriasgerações de proprietários letrados. Amante da leitura, nela vocêmergulha. No início, procurando apenas um passatempo, e guiadosomente por sua fantasia, você pega nas prateleiras, quase ao aca­so, diversos volumes cujos títulos lhe despertam certo interesse,outros cujo autor você conhece de nome. Muitas vezes, após al­gumas páginas, o livro lhe cai das mãos; ou então, ele não de­monstra qualquer talento, ou é demasiado técnico e não conse­gue, ao instruí-lo, interessá-lo. Às vezes, você fica satisfeito coma escolha; sua leitura lhe agrada, você a saboreia; e, tendo aca­bado o livro, relê certas páginas que o divertiram ou comoveramde modo especial. A seguir, tenta outro volume.

Ao fim de algum tempo, se o seu espírito já está amadureci­do, e se você tem certo interesse pelas coisas do intelecto, estasimples leitura não lhe basta mais. Você sentiu e se deleitou, semmais; agora, desejaria ter tempo para refletir e julgar. Então, vaià cata de alguns dos volumes que havia separado como os maisinteressantes. Compara tal romance, tal peça de teatro, tal poe­ma a outros lidos no passado, e evocados pela memória; e cons­tata preferências instintivas que logo procura justificar. Consigomesmo, você critica a verossimilhança de tal cena, a justeza detal idéia. Esforça-se a fim de compreender por que razão o estilo

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90 LITERATURA COMPARADA CRÍTICA LITERÁRIA, HISTÓRIA LITERÁRIA ... 91

deste autor o aborrece, e o daquele o encanta. Julga os escrito­res, seja conforme certas regras gerais do gosto e da arte, sejaconforme suas próprias simpatias. Tudo isto pode fazer-se pri­meiro com a simples reflexão pessoal. Depois você encontrarátalvez algum comentário explicativo, se não histórico, alguma no­ta, algum artigo crítico, alguma coletânea de ensaios tratandodos autores que acaba de ler. Aí encontrará interpretações enge­nhosas, reflexões penetrantes, impressões e idéias, que ora refor­çarão as suas, ora as contradirão; julgamentos, frutos da expe­riência, que lhe ensinarão a julgar por si mesmo.

Mas enquanto você se entregava a esse trabalho de análisee de julgamento, uma curiosidade nova brotava em seu espírito.Aquela obra, aquele conjunto de obras que você leu com interes­se, examinou e julgou, qual foi a sua origem, o que as ocasio­nou, qual o seu destino, em resumo, sua história? Este escritorque lhe agrada, como foi sua carreira, breve ou longa, brilhanteou obscura, abundante em publicações ou marcada por um úni­co livro que é uma obra-prima? Sob que influências se formou,como se desenvolveu seu talento, que relações manteve com al­guns de seus contemporâneos dos quais você também leu certasproduções? Permaneceu independente ou fez parte de uma esco­la? Que ação exerceu durante a vida e após a morte? Vocêgosta­ria também de obter algumas informações a respeito dos gran- .­des períodos literários, a fim de ordenar um pouco este amon­toado confuso de obras, a fim de compreender tantas diferen­ças, que vão do aspecto exterior do volume, passando pela lín­gua e pelo estilo, até as idéias, a própria concepção da vida. Vo­cê gostaria também de agrupar sua leituras desordenadas em tornode algumas obras mais importantes, dramas, poemas, romances,e de seguir através dos séculos, graças aos pontos de referênciaque tiver fixado para seu uso, o destino de cada um desses tiposde obras. Ora, explorando melhor a biblioteca, você descobre osLundis de Sainte-Beuve, as Histórias da literatura francesa de Petitde Julleville, de Lanson, de Bédier e Hazard; certa coleção de mo­nografias dos grandes escritores franceses; certa coleção de tex­tos, seja clássica seja rebuscada, cheia de notas ou introduçõeseruditas e precisas. Graças a estes novos guias, por trás do livrovocê perceberá o homem que o escreveu, e, em torno do homem,seu meio e seu tempo, e, por trás dele, a tradição literária na qualse vem inserir seu livro; não foram, por certo, todos estes ele-

mentos que fizeram seu gênio, mas determinaram a forma literá­ria por meio da qual se expressou. Então, retomando certa pági­na preferida num dos volumes que manteve ao seu alcance, vocêa relê com um prazer jamais experimentado e mais completo; nãosomente ela desperta em sua inteligência, em sua sensibilidade,consonâncias profundas, mas também lhe parece rica de toda asubstância de seu autor, de seu século, e da tradição literária aque pertence. Assim explicada, ela o faz comungar, não mais in­conscientemente como ainda há pouco, e sim conscientemente,com a humanidade pensante em suas obras mais bem acabadas.

Formas e funções da história literária. - Este é, resumidoe simbolizado pelo exemplo acima, o movimento natural do es­pírito no conhecimento da literatura. A primeira operação é umaescolha: só é digno do nome de literatura aquilo que oferece umvalor, e um valor literário, isto é, um mínimo de arte. Tais escri­tos oferecem ao espírito, ao coração, um gozo mais ou menosvivo, no qual já entra por vezes a admiração. A este primeiro con­tato sucede a etapa da crítica literária, ora dogmática, polêmicaou filosófica com Brunetiere ou Paul Souday, ora impressionistacom Anatole France ou Jules Lemaí'tre, sempre subjetiva e nãopropriamente histórica, mesmo na pluma de um Émile Faguet.Em seguida vem a história literária, que reintegra a obra e o au­tor no tempo e no espaço, e explica sobre ela e sobre ele tudoo que pode ser explicado.

Esta história literária, à qual chegamos agora, se apresentacom formas bem diversas. A primeira curiosidade que a leiturainspira, já o vimos, nos leva a nos informarmos sobre a pessoae a vida do autor. Por conseguinte, a primeira forma tomada pe­la história literária foi a biográfica. Nela, Sainte-Beuve se impôscomo mestre. Ele teve predecessores; mas teve sobretudo tantossucessores que hoje é ela o caminho mais obstruído que o histo­riador literário poderá tomar. Em todos os países escrevem-sebio­grafias volumosas de escritores cujas obras não merecem esta hon­ra; os biógrafos se perdem nos detalhes; esquecendo que é devi­do à obra que se tem curiosidade pelo autor, perde-se de vistaa obra. Uma forma vizinha e anexa da biografia é a bibliografiaou história dos escritos. Sua função consiste em recuperar o quel'sncveu um autor, publicado ou inédito; em conheceras reedi­l,·ocsc suas variantes; em datar com o máximo possível de preci­S:l!J todas as produções dele; em examinar se as que lhe são atri-

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92 LITERATURA COMPARADA (I~ ITI< '1\ LITERÁRIA, HISTÓRIA LITERÁRIA ... 93

buídas realmente lhe pertencem, e reciprocamente. A crítica deatribuição exige não apenas muita erudição, mas também muitasagacidade e acuidade psicológica, de que Lanson e Bédier dei­xaram exemplos até hoje lembrados.

Diante de determinada obra literária, o historiador encon­tra amplo programa a cumprir. Estudará sucessivamente as ori­gens da obra, seja na carreira do próprio autor, seja fora dele:seus antecedentes, suas fontes, as influências que o ajudaram anascer etc; sua gênese, isto é, as etapas sucessivas de sua forma­ção, desde a primeira concepção, às vezes, longínqua, até o mo­mento de sua publicação; seu conteúdo: fatos, idéias, sentimen­tos etc.; sua arte: composição, estilo, versificação; sua fortuna:sucesso junto ao público, recepção da crítica, reedições, influên­cia, às vezes tardia.

A primeira e a última dessas questões ultrapassam o livroconsiderado, e constituem por si sós um estudo especial. Acaba­mos de falar das influências sob as quais este ou aquele livro foiescrito, de seus antecedentes; depois, das influências que exer­ceu, de sua descendência. Com efeito, raramente uma produçãodo espírito é isolada. Como um quadro, uma estátua, uma sona­ta, um livro também se insere numa série, esteja o autor cons­ciente ou não de tal fato. Ele terá tido precursores; e terá suces­sores. A história literária deve situá-Io no gênero, na forma de "arte, na tradição à qual pertence, e apreciar a originalidade doautor, medindo o que ele herdou e o que criou. Para se compreen­der bem o que as Méditations de Lamartine ofereciam de novo,é preciso conhecer a poesia elegíaca e filosófica anterior. Tam­bém se percebe melhor o alcance de uma obra examinando suaposteridade. As Confessions de Rousseau não têm importânciaapenas por si mesmas, e sim pela multidão de autobiografias sen­timentais que sugeriram.ICertos livros famosos são antes resul­tados; outros, pontos de partida; muitos são uma e outra coisa.De qualquer modo, o jogo de influências sofridas ou exercidasé um elemento essencial da história literária.

E que não se repita mais que a história literária impede odeleite das obras-primas, sobrecarregando-as devido aos comen­tários. Ela acrescenta ao prazer sensível dos belos versos e da be­la prosa, à emoção que inspiram sentimentos e idéias, um prazerintelectual, o de compreender e tornar-se claro. Cada um dessesprazeres, longe de prejudicar o outro, o aviva e reforça. O mesmo

,<;C passa com todas as artes. Será que vou apreciar menos a Gio­conda por haver estudado sobre a carreira e a arte de Leonardo,(lU a Nona Sinfonia deixará de me encantar por eu me ter inicia­do na elaboração da obra de Beethoven? Assim, melhor aprecia­rei Candide quando houver compreendido a que discussões con­temporâneas ele está relacionado, que etapa assinala no pensa­mento de Voltaire, que forma de espírito e de arte representa comexcelência. .

As influências: nacionais, antigas, estrangeiras, modernas.A literatura comparada. - No entanto, um ponto ainda perma­nece mal esclarecido. Ainda há pouco falávamos das influênciassofridas ou exercidas; e com isto nos referíamos também às fon­tes, aos empréstimos de temas, de idéias ou de formas. Numadeterminada literatura, estas influências podem já ser importan­tes, e merecer um estudo detalhado. Em seus Pensées Pascal semostra nutrido por Montaigne, a quem segue de perto, e contraquem, no entanto, reage. Voltaire e os outros trágicos do século.XVIII tomaram Racine por modelo; Taine se reconheceu comodiscípulo de Guizot, Paul Bourget, de Stendhal, Paul Valéry, deMallarmé. Mas, entre escritores da mesma raça e da mesma lín­gua, a imitação não é muito fecunda. Ou ela se reduz a uma in­fluência geral, a um despertar de disposições latentes devido aoestudo e à admiração de um precursor tomado por modelo; ouentão é muito servil e exclui toda originalidade interessante. Mes­mo neste último caso, ela não pode ser muito precisa.

Em compensação, se, percorrendo a literatura francesa, aten­tarmos para seus contatos com outras literaturas, veremos de ime­

diato sua quantidade e importância. A história literária, tal co- \mo a descrevemos, tem de tratar com freqüência de influências, \imitações e empréstimos. Ela não pode estudar a Pléiade sem di- ,zer o que Ronsard, du Bellay e os outros devem aos poetas gre­gos, latinos, italianos. Se passa para Montaigne, este é alimenta­do pelos antigos, e sobretudo, como ele próprio reconhece, porPlutarco e Sêneca. Toda a nossa poesia e parte de nossa prosa,durante o Renascimento e nos dois séculos clássicos que o seguem,estão impregnadas de antigüidade greco-Iatina. Corneille foi bus­car O Cid na Espanha, Moliere lhe deveu Don Juan, e Lesage,Gil Blas. Montesquieu, Voltaire, Diderot, Rousseau devem mui-to ú Inglaterra; nossos poetas românticos, a todas as literaturas,'1;linc, ú Inglaterra e à Alemanha, Renan, especialmente a esta

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94 LITERATURA COMPARADA ('RJ'I'ICA LITERÁRIA, HISTÓRIA LITERÁRIA ... 95

última; e poderíamos por certo multiplicar os exemplos e pro­longá-Ios até nossos dias.

Que fará o historiador da literatura francesa, tendo chega­do a este ponto de suas pesquisas, e diante de uma rede quaseilimitada de forças que agiram sobre os escritores estudados porele? Enquanto lhe bastava considerar ações exercidas no interiorda literatura francesa, ele ainda se sentia em casa. Se esta peçade Moliere se inspira num conto de Scarron, e aquela, numa co­média de Cyrano de Bergerac ou numa farsa da Idade Média,ele encontra tais textos, por assim dizer, na mesma sala da bi­blioteca; eles lhe são acessíveis e inteligíveis. Mas para saber oque pertence a Moliere em L:étourdi, Don Juan ou L'Avare, cumpreconhecer o que ele encontrou em Beltramo, em Tirso de Molinaou Cicognini, em Plauto, e estudar de perto semelhanças e dife­renças. Chateaubriand é tributário da Bíblia, de Homero, de Os­sian, de Tasso, .te Milton; é também dos apologistas ingleses doCristianismo. NQ que tange a certos escritores franceses, o me­nor estudo sobre as origens de sua obra leva a percorrer um do­mínio muito extenso, e, às vezes, pouco explorado. Como pode­rá o historiador da literatura francesa resolver tal problema?

Há que distinguir dois casos. O mais simples é o da imita­ção das literaturas antigas: grega, latina e hebraica, esta últimaconhecida entre nós principalmente através da Vulgata latina ou~das versões francesas.

Esses textos são diretamente acessíveis aos humanistas nu­tridos pelas línguas clássicas; os outros, cujo número aumentaa cada dia, poderão encontrar facilmente boas traduções; supre­mo recurso, um tanto humilhante, e, além do mais, cheio de in­convenientes.

Mas, no que tange aos contatos de nossos escritores com es­critores modernos de línguas estrangeiras, a questão é mais deli­cada. Quando - e é o que acontece muitas vezes - o autor fran­cês só tomou conhecimento do texto estrangeiro numa tradução,basta consultar esta mesma tradução para fazer todas as pesqui­sas necessárias. Se Rousseau imitou Richardson e gostou de Gess­ner, foi através de Prévost e de Huber, pois não conhecia neminglês nem alemão. Mas Voltaire, Diderot, Chateaubriand, Vignysabiam muito bem o inglês, e os clássicos franceses do século XVIIliam italiano e espanhol. Neste caso, é conveniente voltar ao tex­to. Aliás, entre as obras estrangeiras que inspiraram nossos

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escritores, algumas jamais foram traduzidas para o francês. Se­ria, pois, necessário que o historiador da literatura francesa fos­se versado em várias línguas estrangeiras. Além disso, deveria seriniciado em várias literaturas; porque não basta conhecer aque­les textos em questão, é preciso situá-Ios nos conjuntos aos quaispertencem. Portanto, o historiador das letras francesas verá suatarefa crescer infinitamente.

E que será, caso ele considere, como deve, os escritores fran­ceses que estiver estudando, não mais como resultado de diver­sas correntes ou influências, e sim como ponto de partida de on­das que se propagam através das fronteiras e das gerações? Umestudo completo de Racine, de Rousseau, de Zola tem de com­preender não apenas a sobrevivência da obra deixada por eles esua influência na França, mas também seu destino em terra es­trangeira. Para fazer ao menos um esboço deste quadro, seriamnecessários amplos conhecimentos nas mais diversas literaturas.O historiador que estudar em conjunto estes escritores e tantosoutros, poderá apropriar-se dos resultados obtidos por pesqui­sadores mais especializados e expô-Ios; dificilmente ele poderá,salvo no caso de certos pontos que lhe venham a ser mais acessí­veis, descobri-Ios por si mesmo.

Até agora ficamos, e de propósito, exclusivamente no cam­po da literatura francesa. Mas é óbvio que os mesmos argumen­tos poderiam ser usados partindo-se de qualquer outra literatu­ra. Na Itália, na Inglaterra, na Alemanha, na Rússia, o jogo dasinfluências estrangeiras teve no mínimo tanta importância quan­to na França. Em cada um desses países - e mais ainda tratando­se de literaturas de difusão limitada, como, por exemplo, a daHolanda, da Dinamarca, da Suécia, da Hungria, da Polônia ­como poderia o especialista da literatura nacional conhecer umnúmero suficiente de idiomas e de literaturas estrangeiras paradescobrir, para seguir de perto as múltiplas influências sofridase os empréstimos feitos pelos escritores que ele está estudando?É verdade que muitos desses pesquisadores têm sobre seus cole­gas franceses a vantagem de uma familiaridade maior com as lín­guas estrangeiras. No entanto, não se pode exigir deles, para ca­da um dos autores que estudarem, uma variedade de conheci­mentos precisos que ultrapassam as forças e o tempo que lhe po­dem consagrar.

I\xiste uma única maneira de resolver este problema: é fazer

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96 LITERATURA COMPARADA

intervir a diferenciação de tarefas e a divisão do trabalho. Comotodas as partes que compõem o estudo completo de uma obraou de um escritor podem ser tratadas apenas com os recursos dahistória literária nacional, exceto a pesquisa e a análise das in­fluências sofridas e exercidas, convém reservar esta para uma dis­ciplina especial, que terá seus objetivos bem definidos, seus es­pecialistas, seus métodos. Ela prolongará em todos os sentidosos resultados obtidos pela história literária de uma nação,reunindo-os com os que, por seu lado, obtiveram os historiado­res das outras literaturas, e desta rede complexa de influência seconstituirá um domínio à parte. Ela não pretenderá de modo al­gum substituir as diversas histórias literárias nacionais; há decompletá-Ias e uni-Ias; e, ao mesmo tempo, tecerá, entre elas eacima delas, as malhas de uma história literária mais geral. Estadisciplina existe; seu nome é Literatura comparada.

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OBJETO E MÉTODO DALITERATURA COMPARADA*

Marius-François Guyard

A literatura comparada é a história das relações literárias inter­nacionais. O comparatista se encontra nas fronteiras, lingüísti­cas ou nacionais, e acompanha as mudanças de temas, de idéias,de livros ou de sentimentos entre duas ou mais literaturas. Seumétodo de trabalho deve-se adaptar à diversidade de suas pes­quisas. Há, no entanto, condições prévias que ele deve preencher,não importa qual seja a direção que pretenda tomar: um certo"equipamento", como diz Van Tieghem, lhe é indispensável.

I - O equipamento do comparatista

a) Primeiro, ele é ou quer ser historiador: historiador dasliteraturas, sem dúvida alguma, mas podemos julgar honestamenteBossuet, se ignorarmos tudo sobre a situação da Igreja, no sécu­lo XVII, na França? O comparatista deve ter, portanto, uma cul­tura histórica suficiente para recolocar no seu contexto geral osfatos literários que ele examina. Teria sido impossível a Paul Ha­zard fazer o estudo La Révolution jrançaise et le lettres italien­nes (1910),se não conhecesse, e muito bem, a história da Françae da Itália nos fins dos séculos XVIII e XIX.

b) Mas, o comparatista é o historiador das relações literá­rias. Logo, deve estar a par, tanto quanto possível, das literatu­ras de diversos países: necessidade evidente.

c) Ele deve ser capaz de as ler na sua língua original? A ques-

• <;[JYARD, Marius-François. Objet et méthode. La littérafure comparée. Paris: PUI;~1951. J). 12-26.

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98 LITERATURA COMPARADA (lIlJETO E MÉTODO DA LITERATURA COMPARADA 99

tão se coloca não só por causa do grande número de .línguas elimites das forças humanas, mas sobretudo porque, muitas ve­zes, as obras estrangeiras foram conhecidas e lidas, mesmo pelosescritores profissionais, apenas em tradução. Uma vez que osmaiores escritores românticos franceses citam Goethe e não sa­bem alemão, não seria suficiente ler as versões francesas que ti­veram em suas mãos? Isto basta, sem dúvida, para sabermos oque eles conhecem de Goethe, mas não podemos apreciar a in­fluência goethiana nestes mesmos escritores, sem sermos capa­zes de apreciar por nós mesmos a diferença que existe entre o ori­ginal e as traduções. O comparatista deve, portanto, ler diversaslínguas. Ele ganhará com isso pelo fato de poder consultar ostrabalhos estrangeiros úteis às suas próprias pesquisas.

d) Ele deve enfim saber onde encontrar os primeiros dados,como constituir a bibliografia de um assunto. Se for impossívelestabelecer regras que sejam válidas para todos os casos, poder­se-á ao menos indicar sempre os instrumentos de trabalho, cujomanejo é indispensável:

1~ - Os manuais bibliográficos das diversas literaturas (porexemplo, as obras de G. Lanson, J. Giraud, H. P. Tieme, H. Tal­vart e J. Place para a literatura francesa).

2~ - Para a literatura comparada, propriamente dita, umlivro recente que consolida a Bibliografia de Betz, revista pe,laúltima vez em 1904: a Bibliography of Comparative Literature,de F. Baldensperger e W. P. Friederich (1950). Não são mais seismil títulos, mas trinta e três mil que se encontram aí reunidos.

3~ - O Répertoire chronologique des littératures modernes,publicado em 1937 sob a direção de P. Van Tieghem apresenta,ano por ano, o quadro sinóptico de quatro séculos (1500-1900)da produção literária européia. Uma simples consulta a este re­pertório poupa muitas pesquisas e incita a imaginação a aproxi­mações sugestivas. Vejamos, por exemplo, o ano de 1802:

- Alemanha: Goethe, ljigênia; morte de Novalis, autor deHinos à noite;

- Inglaterra: Fundação da Edinburgh Review; Walter Scott,Cantos dos menestréis da fronteira escocesa;

- França: Mmcde Stael, Delphine; Chateaubriand, Gêniodo cristianismo, René;

- Itália: Foscolo, Últimas cartas de Jacopo Ortis.

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4~ - Enfim, as bibliografias da Revue de Littérature Com­parée, da Revue Universitaire, das Publications of the ModernLanguages Association (Estados Unidos), da Modern Humani­ties Research Association (Grã-Bretanha) permitem ao compa­ratista conhecer, em um dado momento, o estado de uma ques­tão e os trabalhos em curso.

II - O domínio da literatura comparada

Sigamos agora o comparatista no caminho que ele escolheu:objeto e método se esclarecerão mutuamente.

1. Os agentes do cosmopolitismo. - Em cada época, livros,homens contribuem para que se conheçam as letras e os paísesestrangeiros. A literatura comparada encontra neles um primei­ro objeto de estudo.

A) Os livros ~ Primeiro, pode certificar-se com exatidãodo conhecimento que um autor, ou um grupo, ou uma época pos­suía de uma língua estrangeira. Esta pesquisa oferece um inte­resse literário certo: entusiasmamo-nos, muitas vezes, com umromance traduzido, mas só o apreciamos, realmente, lendo-o nooriginal. Porém, como fazer o levantamento dos conhecimentoslingüísticos de um homem ou um meio? Quando se trata de umindivíduo, às vezes, ele confessa sua ignorância, e sua confissão,uma vez feita, põe fim à enquête. Na maior parte das vezes, eletem noções de inglês ou italiano, um certo verniz que suas pre­tensões transformam em conhecimentos aprofundados. O com­paratista deve então procurar saber se existem deste escritor obrasescritas em uma destas línguas. As cartas em inglês de Voltairepermitem seguir os progressos realizados e marcar o nível queele atingiu. As traduções são uma prova mais reveladora ainda.Os testemunhos, enfim, utilizados com a prudência e o métodonecessários trazem também soluções para estes difíceis proble­mas em que tanto amor-próprio esteve em jogo.

Quando se trata de um grupo social, só há um meio: estu­dar os dicionários, as gramáticas, as obras pedagógicas que esta­vam em uso. Assim, a existência de um dicionário de latim­italiano-francês do Abade Antonini, publicado em 1735 e reedi­lado até 1763 na França, é uma excelente prova da difusão dalíngua italiana no século XVIII nesse país. Mais interessante ainda

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é a publicação do mesmo autor de uma Grammaire italienne à .l'usage des dames.

Além deste estudo bastante ingrato, mas necessário, temoso das traduções, que, a qualquer época, são a maneira mais usa­da de difusão das obras estrangeiras. Se o comparatista quisersaber o que os franceses da Revolução e do Império conhecemde Goethe, ele deverá primeiro fazer o inventário das versões fran­cesas deste autor, tarefa de pura erudição que deverá ser seguidapor um trabalho de análise e crítica: estas traduções são fiéis, com­pletas? Que pensar das modificações feitas? Que dizem elas so­bre a sensibilidade da época?, etc.

As obras críticas são uma outra fonte de informação sobreo estrangeiro. O leitor as associa, às vezes, às obras lidas no ori­ginal ou em tradução, mas em geral ele se contenta com isso. Fa­zer o levantamento dos livros, dos artigos, que foram publicadosem uma determinada época, na França, sobre Shelley ou Keats,analisá-Ios, apreciar-lhes o valor, medir-Ihes as influências, é tam­bém um trabalho de comparatista. Particularmente importante,sob este ponto de vista, é a leitura das revistas ejornais que con­tribuíram para a difusão das obras estrangeiras: revistas especia­lizadas como o Journal Étranger, no século XVIII, na França,e mais freqüentemente as publicações de interesse geral acessí­veis a um número maior de leitores, a Revue des Deux Mondesou a Nouvelle Revue Française, nos séculos XIX e XX. Tais tra­balhos requerem organização e paciência. Apenas eles permitemsérias investigações sobre as influências. Malraux descobre Faulk­ner: é uma aventura pessoal; os ensaios de Faulkner se multipli­cam nas revistas: é um fato social, um traço marcante de umaépoca.

Enfim, nos contentamos, normalmente, em ler o que os ou­tros escreveram sobre países estrangeiros. Mais de um assinanteda Revue des Deux Mondes, por volta de 1840, não tinha lidoncnhuma obra de Goethe nem de Reine, mas acompanhou umartigo de Jean-Jacques Ampere ou de Edgard Quinet narrandosua peregrinação pela Alemanha. O conhecimento dos relatos deviagens é capital para compreender a tradição que se formou deum autor ou de um país. Das "cartas edificantes" dos padresjesuítas aos apólogos dos filósofos se forma assim, até elevar-seao nível do símbolo, o tipo do "chinês virtuoso". Aqui, igual­mente, o inventário é a primeira tarefa. É preciso, depois, tentar

conhecer a difusão de cada livro, sua influência: catálogos de bi­bliotecas, contabilidade de editores, testemunhos de correspon­dcncias serão, aos poucos, consultados, confrontados e criticados.

13) Os homens. Para facilitar a exposição, consideramos atéaqui dicionários, traduções ou viagens independentemente de seus;Illlores. Estes, em geral, não oferecem nenhum interesse: certoslivros têm apenas inh:resse como elemento de uma estatística oucomo reflexo de uma opinião corrente. Mas, quando o autor éVoltaire,é inconcebível estudarmos suas 1Rttres anglaises sem pro­curarmos saber como ele viveu na Inglaterra, o que ele sabia dalíngua, do país e dos homens.

Entre a multidão de autores desconhecidos e os grandes pa­péis da vida literária, a literatura comparada se ocupa, em geral,de personalidades que parecem ter a vocação para intérpretes deseu país junto a um outro, ou, mais freqüentemente, de uma cul­Iura estrangeira junto à de sua pátria: um Suard, zelador francêsda literatura inglesa, um Georges Moore tentando fazer seus com­patriotas adotarem seus gostos franceses, e, mais perto de nós,( 'harles du Bos, que mereceria um amplo estudo como divulga­dor das grandes obras estrangeiras na França. Sob este aspecto,I)S métodos do comparatista seriam os de todo biógrafo, mas, para;lprccíar a fidelidade de um tradutor, a inteligência de um críti­co, a veracidade de um viajante, ele deve também possuir um co­nhecimento muito seguro da língua, da literatura e do país.

2. O destino dos gêneros. - Os estudos que acabamos deapresentar são indispensáveis; uma vez que dizem respeito aos1I1strumentos(traduções, viagens) ou aos agentes (tradutores, via­j;lIllcs)das relações literárias internacionais e não às relações emsi mesmas, têm, portanto, apenas um valor intermediário.

O primeiro fato que nos pode chamar a atenção, quandoolhamos bem de cima estas relações é o destino dos gêneros quenascem, crescem e morrem, às vezes, sem razão aparente. Por quen;(o se compõem mais tragédias de cinco atos em versos? Por que,110 início do século XIX, em todos os países da Europa se escre­\Tln romances históricos? Por que em todo o Ocidente os poetasIh Renascença celebram em sonetos seus amores? Podemos pen­sal que se trata de questões mortas: a literatura do século XX11;1 '''rança não fez explodir quadros dos mais veneráveis? Porém,;1 história é feita de muita mortes; e, depois, será que problemas;111;'lIoI',OS, senão semelhantes, não se colocam sempre? () rom;!1l

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102 LITERATURA COMPARADA OBJETO E MÉTODO DA LITERATURA COMPARADA 101

ce francês de 1950 não tem uma forma tão rígida quanto umatragédia clássica; no entanto, na falta de gêneros, estes roman­cistas não empregam certos procedimentos, não seguem certasmodas? Simultaneísmo, monólogo interior, simbólica dos sonhossão, igualmente, receitas cujas origens estrangeiras um compara­tista futuramente poderá procurar. A noção de gênero, outroratão importante, se apaga diante da técnica. Romancista, poetaou dramaturgo, o escritor se preocupa menos em ser fiel às con­venções de uma forma bem definida, do que em adotar um certoponto de vista diante dos acontecimentos. Seja este ponto de vis­ta o da durée ou da psicanálise, é preciso, para mantê-Io, nos de­termos em certas regras e descobrirmos que o problema dos gê­neros foi transposto, não abolido.

O interesse das pesquisas sobre o destino dos gêneros é, por­tanto, histórico, mas também atual. Supõe-se que estas pesqui­sas preencham duas condições: um gênero bem definido, um meioreceptor nitidamente delimitado no tempo e no espaço. A tarefado comparatista será mais fácil, se quiser seguir, em apenas umpaís estrangeiro, o destino de uma forma literária, cuja origemé bem conhecida: estudar, por exemplo, a comedia espanhola naFrança, no século XVII, ou as adaptações inglesas da tragédiaclássica francesa. Ele pode sonhar mais alto e tentar escrever ahistória européia do romance histórico no século XIX ou do so­neto no século XVI.

O método consistirá em:I? - Definir o gênero. Caso se trate de um modismo muito

vago, de um estilo mesmo, a pesquisa corre o risco de se perderem um deserto. Como estudar rigorosamente uma influência deestilo, quando por definição se trata de textos estrangeiros, namaior parte das vezes conhecidos em tradução? Registrar torneiosossianescos em determinado poeta do século XVIII ou XIX é so­bretudo observar empréstimos formais a Le Tourneur. Em con­trapartida, um gênero de leis rígidas (soneto petrarquista, tragé­dia raciniana, romance histórico) pode ser reconhecido em seusadaptadores estrangeiros, percebendo-se com exatidão as imita­ções e transformações.

2? - Tirar a prova do empréstimo. O empréstimo pode serdireto ou indireto. Há empréstimo direto quando Hugo resolvetransplantar para a cena francesa o drama shakespeariano; indi­reto quando os epígonos de Hugo retomam a fórmula. Quanto

mais nos distanciamos do primeiro a fazer o empréstimo, mClloso empréstimo é verificável, acabando por haver muito de Ilugoe nada de Shakespeare nesse pequeno dramaturgo romântico.

3? - Apreciar a ação recíproca do gênero e do autor. Casose trate de uma escolha livre, por que o autor a fez? Que enrique­cimento ou que limitações achou nisso? Caso se trate de um mo­dismo ou da submissão a uma autoridade, que partido tirou dasituação ernque se encontrava? Foi ele esmagado por uma formatirânica? Explorou ele todos os recursos? Conhecemos na Françao grande combate de Corneille contra as regras ditas de Aristóte­lesoA literatura comparada mostrará, por exemplo, os "clássicos"ingleses às voltas com a fórmula raciniana de tragédia: um tal es­tudo deverá permitir abordagens significativas sobre o tempera­mento destes autores e mesmo sobre o caráter dos dois povos.

Estudar o destino de um gênero exige, portanto, uma análi­se rigorosa, um método histórico muito sério, uma real penetra­ção psicológica. Longe de serem áridos, tais trabalhos podem edevem ser obra de moralista. A literatura comparada floresce, nes­se caso, como psicologia comparada.

3. O destino dos temas. - Todas as grandes literaturas oci­dentais têm seu Fausto, seu Don Juan. Giraudoux apresentou seuAnfitrião pela trigésima oitava vez. De onde vêm estes tipos queencontramos por toda parte, estes mitos cuja significação, a ca­da época, é retomada pelos autores mais diversos? O direciona­mento da pesquisa é fornecido pelo assunto e não pela forma.Os alemães chamam a este tipo de trabalho Stoffgeschichte (his­tória dos assuntos) e colocaram espontaneamente a literatura com­parada neste caminho. A escola francesa, apoiada em BenedettoCroce, julga estes estudos por demais áridos e condenados à eru­dição pura. De fato, para serem bem-sucedidos, não exigem, àsvezes, mais do que "enumerações inteiras", entremeadas de umcomentário mais ou menos fraco. Tudo, entretanto, depende dotalento do autor e do tema escolhido. Ora, isto quase sempre dáà exposição uma unidade artificial: a "pulga" na literatura fran­cesa e alemã pode ser o tema de uma "dissertação original"; is­to não é comparatismo, pois a "pulga" não é em si um objetoliterário, mas estudar a presença de Fausto nos escritores alemãese franceses é seguir de Goethe a Valéry um tema essencialmentcliterário, que pode ajudar a destacar ou a descobrir traços carac­terísticos de uma psicologia individual ou nacional.

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4. O destino dos autores. - I? - O ponto de partida aquié extremamente preciso: as obras de um escritor, ou apenas umade suas obras, ou, caso se trate de um autor cuja personalidadeteve tanta influência quanto seus escritos, o conjunto indissolú­vel de tudo isso. Exemplos destes três casos: o teatro de Shakes­peare, Hamlet, Goethe.

2? - O receptor poderá também ser mais ou menos exten­so: um país, um grupo ou um escritor. Teremos, assim, estudosde princípio idêntico, mas de extensão e alcance muito diversos:Shakespeare en France, Hamlet en France, Goethe en France, ainfluência de Schiller sobre os dramaturgos românticos, a de Goe-the sobre Carlyle. .

3? - Este gênero de pesquisa é, sem dúvida alguma, o queentre os franceses representa aos olhos do público a literatura com­parada, porque é ele que, na maior parte das vezes, foi praticadoaqui pelos estudiosos. O seu princípio parece simples. Mas, ao olharas obras mais de perto, os problemas são muito complexos, pois épreciso distinguir difusão, imitação, sucesso, influência. Um best­seller é um livro de sucesso; sua influência literária pode ser nula.A poesia de Mallarmé teve uma difusão muito restrita; ela inspi­rou, no entanto, muitos poetas estrangeiros. Estudar a difusão, asimitações, o sucesso de uma obra é uma tarefa que requer paciên­cia e método; distinguir uma influência é muito mais delicado.

Primeiro, há diversos tipos de influência:- pessoal; ex.: o culto de Jean-Jacques durante sua vida e

depois de sua morte;- técnico; ex.: o prestígio do drama shakespeariano junto

aos românticos franceses;- intelectual; ex.: a difusão do espírito voltairiano;- influência em relação aos temas ou aos quadros; ex.: o

empréstimo dos assuntos ao teatro espanhol pelos dra­maturgos franceses do século XVII, a moda das paisa­gens ossianescas na época pré-romântica.

Em segundo lugar, é preciso, como disse Pio XI a Paul Ha­zard, não querer ver "relações de causa e efeito", onde há ape­nas "interferência". Fora o plágio formal, quantas influênciasfal­sas como a de Dickens sobre Daudet, que nunca leu o romancis­ta inglês! Muitas vezes, é preciso saber confessar: eis o que co­nhecíamos de Goel hc, ou de Dostoievski, em tal época, em talpaís, e renunciar a provar influências precisas.

4? - Os métodos deverão adaptar-se a pesquisas tambémvariadas. Todos, entretanto, pressupõem preencher as mesmas con­dições necessárias: conhecimento aprofundado da obra e do ho­mem, dos quais estudamos o destino, bem como do meio recep­tor; estudo escrupuloso dos livros, dos jornais, das revistas; aten­ção constante à cronologia; na exposição das conclusões, pru­dente distinção entre influência e sucesso e entre os diferentes ti­pos de influência. Le Goethe en France (1904), de Fernand Bal­densperger, continua sendo o modelo deste tipo de trabalho.

5. Fontes. - Em um raciocínio inverso, podemos conside­rar um escritor não mais como emissor, mas como receptor deinfluências, e distinguir suas fontes estrangeiras. Quem já se aven­túrou em tais pesquisas, conhece sua dificuldade, e fica tentadoa denunciar sua vaidade: toca-se aqui no mistério da criação. Co­mo definir o papel das impressões (viagens de Goethe à Itália),das fontes orais (conversações de Lamartine com Eckstein sobrea Índia), das fontes escritas (leituras inglesas de Chateaubriand),sem chegar ao ridículo de recusar ao gênio toda originalidade,abafando-o sob as referências ou o estabelecimento de um ba­lanço, do qual jamais conheceremos o saldo? Se ele tem espíritocrítico suficiente, o comparatista se limitará ao estabelecimentode um balanço: do ponto de vista passivo, ele colocará, por exem­plo, as leituras inglesas de Chateaubriand durante seu exílio emLondres, do ponto de vista ativo, Le génie du christianisme. Oproblema começa quando é preciso decidir se tal analogia de for­ma ou pensamento trai o empréstimo, é vaga lembrança, ou re­presenta apenas uma coincidência. Na ausência de plágios per­turbadores ou de uma confissão formal do escritor, a pesquisadas fontes não ultrapassará, na maioria das vezes, caso seja ho­nesta, o inventário das leituras.

6. Movimento de idéias. - Desde que não se trate de gêne­ros, temas ou autores considerados isoladamente, mas de idéiasou correntes de sensibilidade, o jogo das influências se torna muitodifícil de seguir, e é através de vários países ou várias literaturasque o comparatista deve seguir o movimento que ele quer estu­dar. As grandes obras de Paul Hazard mostram que um tal em­preendimento pode ser levado ao fim. Menos ambiciosos que PaulVan Tieghem, que expunha há algum tempo os métodos destapesquisa de "literatura geral", digamos simplesmente que sellll'Ihantes sínteses somente podem ser tentadas por um estudioSll

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depois de imensas leituras, e que seria pretensioso querer dar umareceita para isto. Assinalemos, entretanto, que o perigo consistenisso mais que em qualquer outra coisa - em confundir coinci­dência e influência. A coincidência pode, além do mais, ser ins­trutiva e pode acrescentar à história de cada literatura um senti­do de relatividade que lhe é necessário quando ela se isola. Li­vros como La crise de Ia conscience européenne, de Paul Hazard,dão assim ao quadro das letras francesas, entre 1680e 1715,umareflexão que faz falta, muitas vezes, nas obras que lhes são exclu­sivamente consagradas.

Interpretação de um país - Cada povo empresta aos outroscaracteres mais ou menos duráveis, cuja verdade cede normal­mente lugar à lenda. Um cancioneiro em dificuldades para acharuma rima pode ganhar reputação: todo mundo sabe na Françaque os portugueses (Portugais) são pessoas alegres (gais). Há mui­tas vezes causas mais profundas: um francês não tem condiçõesde apreciar e compreender os mesmos traços do caráter inglêsque um alemão. Na elaboração destes tipos nacionais, a literatu­ra, pelos relatos de viagens, os romances, o teatro, desempenhaum papel decisivo. Quantas pessoas se deram ao trabalho ou ti­veram a ocasião de verificar as opiniões de Maurois sobre a In­glaterra ou de Mmede Stael sobre a Alemanha? É uma tarefa daliteratura comparada estudar o nascimento e o desenvolvimentodestas interpretações.

I? - Através de uma literatura estrangeira - Exemplo: aGrã-Bretanha na literatura francesa do século XIX. Quais os fran­ceses que informaram seus compatriotas sobre a Inglaterra? Quaissão seus preconceitos, seus conhecimentos? Eles conheceram opaís e o que eles conheceram? Há personagens ingleses nos ro­mances, nos dramas? Que traços estes lhes emprestaram? Por quê?Não se trata mais de influência, mas sim de interpretação. Umtal estudo ajuda a compreender como nós vemos os ingleses epor que nós os vemos assim? Ele supõe uma leitura atenta dasobras francesas, mas também uma experiência pessoal da Ingla­terra. Neste ponto, a literatura comparada pode ajudar dois paí­ses a realizar uma espécie de psicanálise nacional: conhecendomelhor a fonte de seus preconceitos mútuos, cada um se reco­nhecerá melhor e será mais indulgente para com o outro que ali­mentou prevençôes análogas às suas.

2? - Através de um autor estrangeiro - Limitado a um es-

critor, um estudo deste gênero procurará também compreendersua interpretação de um país estrangeiro, ao invés de distinguirna sua obra as influências sofridas. Um Voltaire et l'Angleterreanalisaria bem o que deve o filósofo francês a Locke, mas sobre­tudo nos mostraria como o exilado descobriu o país, aprendeua língua, estabeleceu laços de amizade; depois, tendo voltado àFrança, que aspectos da Inglaterra ele fez conhecer, por que es­tes e não outros.

Estes trabalhos têm a vantagem de evitar o risco das influên­cias. Os que a isso se dedicam devem primeiro, por um desdo­bramento tão extenso quanto possível, fazer o levantamento detudo que, na época ou em um dado autor, dizia respeito ao paísem questão: se for a Grã-Bretanha, notas de viajantes de além­Mancha, personagens ingleses, depoimentos sobre a Inglaterrae os ingleses. É preciso também conhecer os que criam esses per­sonagens ou dão esses depoimentos: reunir os resultados obti­dos, levando em conta a cronologia, o sucesso dos autores, asinterpretações particulares que permitem finalmente chegar, pa­ra uma determinada época, a uma espécie de imagem medianada Inglaterra, cujas origens aparecerão doravante de maneira clara.

Estas considerações um pouco abstratas são indispensáveispara conhecer as diferentes vias em que se engajam os compara­tistas.

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i\ CRISE DA LITERATURA COMPARADA 10')

A CRISE DA LITERATURA COMPARADA*

Renê Wellek

O Illlllldo.(ou melhor, nosso mundo) encontra-se em estado decrise P~rmanente~ pelo menos desde 1914. Os estudos literários,em suas formas menos violentas e silenciosas, também-e-stãódl~vididos por conflitos metodológicos desde essa mesma época. As­vêihas certezas dos estudos do século XIX, sua crença ingênuano acúmulo de fatos, na esperança de que cada um deles seja usa­do na construção da grande pirâmide do conhecimento, sua féna explicação causal segundo o modelo das ciências naturais, jáhaviam sido fortemente questionadas antes: por Croce, na Itáliae por Dilthey e outros, na Alemanha. Deste modo, não se podeafirmar que os últimos anos tenham sido excepcionais, ou mes­mo que a crise dos estudos literários tenha alcançado, em algumlugar do mundo, uma solução ou acomodação temporária. Ain­da assim, um reexame de nossos objetivos e métodos faz-se ne­cessário. Há algo de simbólico na morte, nos últimos anos, devários dos antigos mestres: Van Tieghem, Farinelli, Vossler, Cur­tius, Auerbach, Carré, Baldensperger e Spitzer.

O sinal mais sério do estado precário de nossas pesquisasreside no fato de que <!!!1.c:!ªnilose fQÍcapaz de estabelecer umobjeto de estudo distinto e uma metodologia específica. Eu acre­dito que os pronunciamentos de Baldensperger, Van Tieghem, Car­ré e Guyard falharam nesta tarefa essencial. Eles sobrecarrega­ram a lileratura comparada com uma metodologia obsoleta e lheatribuíram o lado estéril do factualismo, do cientificismo e dorelativislllo histórico do século XIX.

* WELLEK, Reli". Til •. ('risis of Comparative Literature. In: FRIEDERICH, Werner,ed. Comparative Utl'ratuw: l'roceedings of the Second Congress of the ICLA. 2 vols.Chapel Hi11:Univ. (lI' NllI'llI Carolina Press, 1959, v. I, p. 149-60. Rep1. em WELLEK,René. Concepts of Criliâ\'III. New Havcn: Yale Univ. Press, 1963, p. 282-95.

A literatura comparada tem o imenso mérito de cOlllbalno falso isolamento das histórias literárias nacionais: ela está ob­viamente correta (e produziu um grande número de evidênciaspara corroborar tal fato) na sua concepção de uma tradição lite­rária ocidental composta de uma rede de inúmeras inter-relações.Mas duvido que a tentativa de Van Tieghem de distinguir a lite­ratura "comparada" da literatura "geral" alcance sucesso. ParaVan Tieghem, a literatura "comparada" restringe-se ao estudodas inter-relações entre duas literaturas, enquanto a literatura "ge­ral" se preocupa com os movimentos e estilos que abrangem vá­rias literaturas. Esta distinção, sem dúvida, é insustentável e im­praticável. Por que se poderia, por exemplo, considerar literatu­ra "comparada" a influência de Walter Scott na França, enquantoum estudo do romance histórico durante o período românticoseria visto como literatura "geral"? Por que deveríamos distin­guir um estudo sobre a influência de Byron em Heine de um es­tudo do byronismo na Alemanha? A tentativa de se restringir a,"literatura comparada" a um estudo do "comércio exterior" entreliteraturas é certamente infeliz. A literatura comparada seria, emseu objeto de estudo, um conjunto incoerente de fragmentos nãorelacionados: uma rede de relações constantemente interrompi­das e separadas dos conjuntos significativos. O comparatista quacomparatista, neste sentido limitado, só poderia estudar fontese influências, causas e efeitos, e seria impedido, até mesmo, deinvestigar uma única obra de arte em sua totalidade, uma vez quenenhuma obra pode ser inteiramente reduzida a influências ex­ternas ou considerada um ponto irradiado r de influência sobrepaíses estrangeiros apenas. Imaginem-se restrições semelhantessendo impostas sobre o estudo da história da música, das belas­artes, ou da filosofia! Poderia haver um congresso ou mesmo umapublicação inteiramente dedicada a tal mosaico de questões co­mo, por exemplo, a influência de Beethoven na França, de Ra­fael na Alemanha, ou mesmo de Kant na Inglaterra? Estas disci­plinas foram bem mais sensatas: há estudiosos de música, de his­tória da arte, de história da filosofia e nenhum deles tem pre­tensões de que haja disciplinas especiais como pintura, músicaou filosofia comparativas. As tentativas de se estabelecer fron­teiras especiais entre a literatura comparada e a literatura geraldevem desaparecer, porque a história literária e as pesquisas lill'drias têm um único objeto de estudo: a literatura. O desejo de

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110 LITERATURA COMPARADA i\ ('IUSE DA LITERATURA COMPARADA III

se restringir a "literatura comparada" ao estudo do comércio ex­terior entre duas literaturas limita-a a uma preocupação com asaparências, com escritores secundários, com traduções, diáriosde viagem, "intermediários"; em suma, torna a "literatura com-

.Pélmc1a'' ...llmél.mt<rasubdiscipliIlªCJ.l,leinvestiiã-dacfüsacerca-ae"fontes estrangeiras e reputações de escritores.

As tentativas de se delimitar não apenas o objeto de estudocomo também os métodos da literatura comparada falharam aindamais seriamente. Van Tieghem estabelece dois critérios que su­postamente distinguiriam a literatura comparada do estudo dasliteraturas nacionais. A literatura comparada, segundo ele,interessa-se pelos mitos e lendas que cercam os poetas e está preo­cupada com autores secundários e menores. Mas é impossível ima­ginar por que o estudioso de uma única literatura nacional nãodeveria fazer o mesmo: a imagem de Byron ou Rimbaud na In­glaterra ou na França foi, com sucesso, descrita sem muita refe­rência a outros países, e Daniel Mornet na França e Josef Na­dler na Alemanha, por exemplo, nos mostraram que se pode es­crever a história literária nacional dando-se atenção apenas a es­critores secundários e esquecidos.

Também não convencem as tentativas recentes def-ª.lJ:.ée Gu­yard de ampliar repentinamente o espectro da literaiuracompa­rãêfã afim deiIlclllir º.~§.t!!go.9ãs ilüs§es-n~cí§nais:'-cras"idCiasfixas' cjll~'ªs·J:lªçÕe&lê.l!Lllll1as·daso~trâs. Poclé ser-inuito-rntér~­sante saber- o conceito qu(;"os"frânc:esesfaziam dos alemães ouingleses - mas seria este ainda um estudo literário? Não seriaeste um estudo de opinião pública, útil, por exemplo, para o di­retor do programa Vozes da América ou de programas análogosem outros países? Isto é psicologia nacional, sociologia e, comoestudo literário, nada mais é do que uma revitalização da antigaSüdlp;eschichte. "A Inglaterra e o inglês no romance francês" nãoé nem um pouco melhor do que "o irlandês no teatro inglês",ou "o italiano no drama elizabetano". Esta ampliação da litera­tura cOlllparada implic;areconheciJ?eIltõ.da esteriüaàªé"deseuObjclo de esfudo habituªr'-=-I'clÍsta;"il"o-e~tãIltõ,a"'iidiss-ôfüçaodo estudo lilerúrio em psicologia s-ôCiale'&Ts1:CSriâcultural.

Todos estes tropeços só são possíveis porque Van Tieghem,seus precursores c seguidores, concebem o estudo literário em ter­mos do factualislllo positivista do século XIX, como um e~tudode fontes e influências. Eles acreditam em explicações causais,

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na informação obtida a partir da investigação dos motivos, te­mas, personagens, situações, enredos, etc., que são tributários dealgum outro trabalho cronologicamente anterior. ):<:lesacumula­ram uma enorme gama de paralelos, semelhanças e, algumas ve­zes, identidades, mas raramente se perguntaram o que estas rela­ções devem mostrar, exceto, possivelmente, o fato de que um es­critor conheceu ou leu um outro escritor.IObras ...de-ar.te.,no en­tanto, não são simples somatórios de fontes e influências; sãoconjuntos em'que amatéria-pl"Ima vinda de outro lugar deixa deser matéria inerte e passa a ser assimilada numa nova estrutura. IA explic~ção callsal leva apenas a um regressus ad fizjinitum e,além disso, no caso da literatura, quase nunca é bem-sucedidano estabelecimento do que se poderia considerar o primeiro re­quisito de qualquer relação causal: "quando X ocorre, Y deveocorrer". Não estou ciente de nenhum historiador da literaturaque nos tenha dado ou nos possa dar provas de tal relação neces­sária, uma vez que o isolamento de causas é impossível no casodas obras de arte, conjuntos concebidos na imagi!!él~ª-ºlivre que,ao serem fragmentados em fontes e influências: têm sua integri­dade e significado violados.

O conceito de fontes e influências tem, sem dúvida, preocu­pado os mais sofisticados estudiosos da literatura comparada.Louis Cazamian, por exemplo, comentando sobre o livro de Carré,Goethe en Angleterre, observa que não há "nenhuma evidênciade que uma ação específica leve a uma diferença determinada."Ele argumenta que Carré está errado ao se referir a Goethe co­mo "tendo, indiretamente, provocado o movimento românticoinglês" simplesmente porque Scott traduziu Goetz von Berlichin­gen.1 Mas Cazamian pôde apenas acenar para a idéia, familiardesde Bergson, de fluxo e vir-a-ser. Ele recomenda o estudo dapsicologia individual ou coletiva que, a seu ver, significa uma teo­ria elaborada, não verificável, das oscilações do ritmo da almanacional inglesa.

De forma semelhante, Baldensperger, em sua introdução aoprimeiro número da Révue de littérature comparée (1921) assi­nalou a dificuldade dos estudos literários preocupados em tra­çar a história dos temas literários. Ele admite que tais estudosnão podem nunca estabelecer seqüências claras e completas. Oautor rejeita também o evolucionismo rígido proposto por Bru­neticre. Mas ele apenas sugeriu, em seu lugar, que os estudos Ii-

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112 LITERATURA COMPARADA 1\ ('RISE DA LITERATURA COMPARADA 111

terários fossem ampliados, para incluir também escritores secun­dários, e que prestassem atenção a avaliações contemporâneas.Para Baldensperger, Brunetiere está muito preocupado com obras­primas. "Como podemos nós saber que Gessner desempenhouum papel na literatura geral, que Destouches encantou mais osalemães do que Moliere, que Delille foi considerado um poetatão perfeito e supremo em sua época quanto Victor Hugo maistarde e que Heliodoro teve tanta importância quanto Ésquilo natradição da Antigüidade?" A solução de Baldensperger é, nova­mente, prestar atenção aos autores secundários e às antigas mo­das do gosto literário. Fica implícito um relativismo histórico:deveríamos estudar os padrões do passado, a fim de escrevermosuma história literária "objetiva". A literatura comparada deve­ria situar-se "por trás da cena e não na frente do palco", comose a peça não fosse o essencial em literatura. Do mesmo modoque Cazamian, Baldensperger acena para o vir-a-ser de Bergson,o movimento incessante, o "reino da variação universal" parao qual cita ele um biólogo como paralelo. Na conclusão de seumanifesto, Baldensperger proclama abruptamente que a litera­tura comparada é uma preparação para um Novo Humanismo.Ele nos pede para verificar a amplitude do cepticismo de Voltai­re, da fé de Nietzsche no super-homem, do misticismo de Tols­toi: para saber por que um livro considerado clássico numa na­ção é rejeitado como acadêmico em outra, por que uma obra des­prezada em um país é admirada em outro. Ele espera que taispesquisas venham fornecer à nossa desarticulada humanidade um"núcleo menos incerto de valores comuns". Mas por que deve­riam tais pesquisas eruditas acerca da difusão geográfica de cer­tas idéias conduzir a algo como uma definição do patrimônioda humanidade? E mesmo que tal definição do núcleo comumseja bem-sucedida e venha a ser amplamente aceita, será que is­to significaria de fato um Novo Humanismo?

11i! um paradoxo na motivação psicológica e social da "li­teralma comparada", como vem sendo praticada nos últimos cin­qüenta anos. A literatura comparada surgiu como uma reaçãocontra o nacionalismo limitado de muitos estudos do século XIX,como um proleslo contra o isolacionismo de muitos historiado­res da literal ma francesa, alemã, italiana, inglesa, etc. Foi fre­qüentemente cullivada por homens que se posicionavam nas fron­teiras entre nações ou, pelo menos, nos pontos limites de uma

nação. Louis Betz nasceu em Nova York de pais alcmáes c foipara Zurique estudar e ensinar. Baldensperger era de origcm 10­rena e passou um ano decisivo em Zurique. Ernst Robert Cur­tius era um alsaciano convencido da necessidade de um melhorentendimento entre França e Alemanha. Arturo Farinelli era umitaliano de Trento, na época ainda irridenta, que ensinava em Inns­bruck.Mas este desejo gemIÍnode servircomornediador e,con­ciliador êiitre-naçoesfõi freqüentemente -encoberto eciistºrçtQº_pelo nacionalismo fervoroso da situação e da época. Ao lermosa autobiografia de Baldensperger, Une Vieparmi d'autres (de 1940,mas escrita, na verdade, em 1935), sentimos um impulso patrió­tico básico por trás de toda a sua atividade: seu orgulho em des­truir a propaganda alemã em Harvard, em 1914; em recusar-sea encontrar Brandes em Copenhagen em 1915; em ir para a Es­trasburgo liberta, em 1920. O livro de Carré, Goethe en Angle­terre,contém uma introdução em que o autor argumenta que Goe­the pertence ao mundo em geral e à França em particular, comofilho da terra do Reno. Depois da II Guerra Mundial, Carré es­creveu LRsÉcrivainsjrançais et le mirage allemand (1947), ondetentou mostrar como os franceses acalentaram ilusões acerca dasduas Alemanhas e foram sempre logrados no final. Ernst RobertCurtius pensou em seu primeiro livro, Die literarischen Jfégbe­reiter des neuen Frankreichs (1918), como uma ação política, co­mo instruções para a Alemanha. Num posfácio a uma nova edi­ção escrita em 1952, Curtius declarou que seu conceito inicial sobrea França era uma ilusão. Romain Rolland não era a voz da novaFrança como ele pensara. Do mesmo modo que Carré, Curtiusdescobriu uma "miragem", mas desta vez era uma miragem fran­cesa. Mesmo em seu primeiro livro, Curtius já havia definido suaconcepção de um bom europeu: "Ich weiss nur eine Art ein gu­ter Europaer zu sein: mit Macht die Seele seiner Nation haben,und sie mit Macht nahren von allem, was es Einzigartiges gibtin der Seele der anderen Nationen, der befreundeten oder derfeindlichen".2 Recomenda-se uma política de poder cultural: tu­do serve apenas para fortalecer a nação de alguém.

Não estou sugerindo que o patriotismo destes estudiosos nãoera bom, correto, ou mesmo de princípios elevados. Reconheçodeveres cívicos e a necessidade de tomar decisões, de tomar par­tido nas lutas de nosso tempo. Conheço a sociologia do conhecimento de Mannheim, sua Ideology and Utopia, e comprccndo

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114 LITERATURA COMPARADA A CRISE DA LITERATURA COMPARADA 11'

que uma prova de motivação não invalida a obra de um homem.Quero estabelecer uma distinção clara entre estes homens e oscorruptores desprezíveis dos estudos da Alemanha nazista ou osdoutrinários políticos da Rússia que, durante algum tempo, con­sideraram a "literatura comparada" tabu e chamaram de "cos­mopolitas sem raízes, reverenciadores do Ocidente" a todos aque­les que disseram que Pushkin escreveu sua história "The GoldenCockerel" a partir de Washington Irving.

Ainda assim, esta motivação basicamente patriótica de mui­tos estudos de literatura comparada na França, Alemanha, Itá­lia, e em outros países, levou a um estranho sistema de contabili­dade cultural, a um desejo de se acumular créditos para seu pró­prio país, provando o maior número de influências possível so­bre outras nações ou, mais sutilmente, provando que sua próprianação assimilou e "compreendeu" um grande escritor estrangei­ro melhor do que qualquer outra. Tal fato é quase que ingenua­mente exposto na tabela do pequeno manual para estudantes deGuyard: ela contém espaços vazios bem ordenados para as tesesque não foram escritas sobre Ronsard na Espanha, Corneille naItália, Pascal na Holanda, etc.3 Este tipo de expansionismo cul­tural pode ser visto até mesmo nos Estados Unidos que, comoum todo, manteve-se imune a ele, em parte porque tinha menosa ostentar, e, em parte, porque estava menos preocupado com apolítica cultural. Ainda assim, a excelente Literary History of theUnited States (editada por R. Spiller,W. Thorp e outros, em 1948),por exemplo, afirma com orgulho que Dostoievski foi um segui­dor de Poe e, até Hawthorne. Arturo Farinelli, um comparatistade primeira linha, descreveu esta situação num artigo, escrito paraMélanges Baldensperger (1930), intitulado "Gl'influssi letterarie I'insuperbire delle nazioni". Farinelli comenta, muito apropria­damente, sobre o absurdo destes cômputos de riquezas culturais,de lodos os cálculos de credores e devedores em assuntos de poe­sia. I<:sqlleeemosque "os destinos da poesia e da arte só são preen­chidos na vida íntima e nos acordos secretos da alma" (1, 273).Em UIll inleressante artigo, o professor Chinard declarou, muitooportunamcnlc, que "não há dívidas" na comparação de litera­tura e citou lima bela passagem de Rabelais sobre um mundo idealem que não hú dcvedores e credores.

Uma demarcaç<lo artificial de seu objeto de estudo e de suametodologia, um conceito mecanicista de fontes e influências, uma

motivação ligada ao nacionalismo cultural, por mais gCIlCJ(),~;1que seja - estes me parecem os sintomas da longa crise da lilL'ratura comparada.

Faz-se necessária uma cuidadosa e completa reorientação cmtodas essas três direções. A demarcação artificial das fronteirasentre literatura "comparada" e literatura "geral" deve ser aban­donada. Literatura "comparada" instituiu-se como o termo em­pregado para qualquer estudo de literatura que transcenda os li­mites de uma literatura nacional. Questionar o uso do termo einsistir para que ela fosse chamada de "o estudo comparativoda literatura" não faz nenhum sentido, uma vez que todo mun­do entende o uso da elipse. O termo literatura "geral" não foiaceito, pelo menos em inglês, provavelmente porque ainda estámarcado por sua antiga conotação ligada à poética e à teoria.Eu, particularmente, gostaria que pudéssemos apenas falar de es­tudo da literatura ou estudos literários e que houvesse, como pro­pôs Albert Thibaudet, professores de literatura, do mesmo mo­do que há professores de filosofia e de história e não professoresde história da filosofia inglesa, apesar de que se pode muito bemser um especialista neste ou naquele período ou país particularou, até mesmo, em um autor específico. Felizmente ainda nãotemos professores de literatura inglesa do século XVIII ou da fi­lologia de Goethe. Mas o nome do nosso objeto de estudo é umassunto institucional de interesse acadêmico no sentido mais li­teral. O que importa é o conceito de estudos literários como umadisciplill,qunificqda não tolhida por restrições lingüísticas. As­sim, não posso concordar com a posição de Friederich de queos comparatistas "não podem e não se devem atrever a invadiroutros territórios", isto é, aqueles dos estudiosos de inglês, fran­cês, alemão, e de outras literaturas nacionais. Tampouco possoentender como é possível seguir seu conselho de não "invadir oterritório alheio". 4 Não existem direitos de propriedade e ne­nhuIlJ."investimento de capital" reconhecido nos estudos literá­rios. Todos podem investigar qualquer questão, mesmo que estase restrinja a uma única obra ou língua e podem estudar até mes­mo história, filosofia ou qualquer outro tópico. Sem dúvida corrc­se o risco de ser alvo de crítica por parte dos especialistas, maseste é um risco que se deve correr. Nós comparatistas certamcllll'não gostaríamos de impedir os professores de inglês de eslllllaras fontes francesas de Chaucer, ou os professores de rranct's til'

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I J(, LITERATURA COMPARADA !\ CRISE DA LITERATURA COMPARADA 117

estudar as fontes espanholas de Corneille, etc., uma vez que nós·comparatistas não gostaríamos de ser proibidos de publicar a res­peito de tópicos confinados a literaturas nacionais específicas.Muito tem sido escrito a respeito da "autoridade" do especialis­ta que freqüentemente tem apenas o conhecimento bibliográficoou a informação material sem necessariamente ter o gosto, a sen­sibilidade e o raio de ação do não especialista, cuja perspectivamais ampla e discernimento mais agudo podem muito bem su­prir anos de intensa dedicação. Não há nada de presunçoso ouarrogante em se advogar uma maior mobilidade e uma universa­lidade utópica em nossos estudos. Toda a concepção de áreas cer­cadas por placas de "não ultrapasse" deve ser rechaçada por umamente aberta. Tal concepção só pode surgir dentro dos limitesda metodologia obsoleta preconizada e praticada pelos teóricosclássicos da literatura comparada que supõem que os "fatos" de­vem ser descobertos como pepitas de ouro e que podemos exigirnossos direitos de garimpeiros sobre eles.

Contudo, os_~st:lldosliterários verdadeiros não estão preo­cupados com fatos neutros, mas sim com valores e qllalidades.Esta é a razão pela qual não há distinção-enin~-história literáriae crítica. Mesmo o mais simples dos problemas de história lite­rária requer um ato de julgamento. Mesmo uma afirmação co­mo a de que Racine influenciou Voltaire, ou de que Herder in­fluenciou Goethe requer, para ser significativa, um conhecimen­to das características de Racine e Voltaire, Herder e Goethe e, por­tanto, u!1Lçº!!hecimento._doconte~to de suastradições,llma.ati­vidade ininterr~Pl;:Lde pe~ill:~SQmpªiª!~analisar e discrlrIliliªr~atividade estaque é essencialmente crític:i~~Ãtéagora, nenhumahistória literária foi esCrIta"sem um-crItério de seleção e sem al­guma tentativa de caracterização e avaliação. Os pesquisadoresda história literária que negam a importância da crítica são eles1I1eSlllOScríticos não conscientes, geralmente críticos secundáriosquc apCllas assumiram padrões tradicionais e aceitaram reputa­<;<lCSl'OuVl'lIcionais.Uma obra de arte não pode ser analisada,caraclcri/.ada c avaliada sem que se faça uso de princípios críti­cos, mCSlllllque assumidos de forma inconsciente e formuladosde modo ohscuro. Norman Foerster, em uma publicação aindapertinente, '111<'/l/1/C'I";can Scholar, afirmou de forma muito con­vincente que () pesquisador da história literária "deve ser um crí­tico afim de ser 1I1llhisloriaelor".5 Nos estudos literários, a teo-

ria, a erítica e a história colaboram para se atingir seu objetivoprincipal: a descrição, interpretação e avaliação de uma obra elearte ou de qualquer conjunto de obras de arte. A literatura com­parada que, pelo menos com seus teóricos oficiais, se absteve destacolaboração e se apegou a "relações factuais", fontes e influên­cias, intermediários e reputações como seus únicos tópicos teráque encontrar seu caminho de volta na grande corrente da críti­ca e dos estudos literários contemporâneos. Em seus métodos ereflexões metodológicas, a literatura comparada está, para ser­mos claros, estagnada. Podemos pensar em vários grupos e mo­vimentos críticos e acadêmicos, ao longo deste século, bastantediversos em seus objetivos e métodos - Croce e seus seguidoresna Itália, o formalismo russo e suas ramificações e desenvolvi­mentos na Polônia e na Tchecoslováquia, a estilística e a Geistes­geschichte alemãs que encontraram eco nos países de língua es­panhola, a crítica existencialista francesa e alemã, o New Criti­cism americano, a crítica mítica inspirada nos padrões arquetí­picos de Jung, e mesmo a psicanálise freudiana ou o marxismo:quaisquer que sejam suas limitações e deméritos, todos estão uni­dos numa reação comum contra o atomismo e factualismo ex­ternos que ainda restringem o estudo da literatura comparada.

Os estudos de literatura comparada hoje necessitam princi­palmente definir seu foco e objeto de estudo. Deve-se distingui­los do estudo da história das idéias, ou de sentimentos e concei­tos religiosos e políticos que freqüentemente se apresentam co­mo alternativas aos estudos literários. Muitos estudiosos impor­tantes, envolvidos nos estudos literários como um todo, e na lite­ratura comparada em particular, não estão, na verdade, interes­sados em literatura, mas na história da opinião pública, em diá­rios de viagem, nas idéias acerca do caráter nacional - isto é,na história cultural de modo geral. O conceito de estudo literá­rio foi por eles tão ampliado que se confunde com toda a histó­ria da humanidade. No entanto, os estudos literários não terãonenhum progresso, metodologicamente falando, a menos que seproponham a estudar a literatura como um objeto distinto dasoutras atividades e produções humanas. Assim, precisamos en­frentar o problema da "literariedade", a questão central da esté­tica, a natureza da arte e da literatura.

Em tal concepção dos estudos literários, a obra de arte emsi será o foco principal e reconheceremos estar estudando pro-

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118 LITERATURA COMPARADA i\ CRISE DA LITERATURA COMPARADA li')

blemas diferentes quando examinamos as relações da obra de ar- .te com a psicologia do autor ou com a sociologia de sua socieda­de. Tenho afirmado que a obra de arte pode ser vista como umaestrutura estratificada de signos e significados que é totalmentedistinta dos processos mentais do autor no momento da criaçãoe, portanto, das influências que se podem ter formado em suamente. Há o que corretamente tem sido chamado de "lacuna on­tológica" entre a psicologia do autor e a obra de arte, entre avida e a sociedade, de um lado, e o objeto estético, de outro. Cha­mei o estudo da obra de arte de "intrínseco" e o estudo de suasrelações com a mente do autor, com a sociedade, etc., de "ex­trínseco". Apesar disto, esta distinção não pode significar queas relações genéticas devam ser ignoradas ou mesmo menospre­zadas, ou que o estudo intrínseco seja mero formalismo ou este­ticismo irrelevante. O conceito cuidadosamente elaborado de umaestrutura estratificada de signos e significados tenta exatamenteultrapassar a antiga dicotomia entre forma e conteúdo. O quegeralmente é chamado de "conteúdo" ou "idéia" em uma obrade arte é incorporado à estrutura desta obra corno parte de seu"mundo" de significados projetados. Nada estaria mais distan­te do que penso do que negar a relevância humana da arte oulevantar uma barreira entre a história e o estudo formal. Embo­ra tenha aprendido com o formalismo russo e o Stilforscher ale­mão, não gostaria de restringir o estudo da literatura nem ao es­tudo do som, do verso e dos recursos composicionais, nem aoselementos de dicção e sintaxe; tampouco gostaria de equiparara literatura à língua. Para mim, estes elementos lingüísticos for­mam, por assim dizer, os dois estratos inferiores: o dos sons eo das unidades de significado. Mas, a partir deles emerge um"mundo" de situações, personagens e acontecimentos que nãopodcm ser identificados com nenhum dos elementos lingüísticosou, mcnos ainda, com nenhum dos elementos da forma orna­mental cxterna. A única concepção correta me parece ser umadecididamcnte "holista" que vê a obra de arte como uma totali­dade diwrsificada, como uma estrutura-desIgnas que, no en.tan­to, prcssup(ic c requer significados e-vaIares. Tanto um estudorelativisla antiquado quanto um formalismo externo são tentati­vas errôncas de desumanizar o estudo literário. A crítica não po­de e não deve ser excluída dos estudos literários.

Se tal mudança e liberação, tal reorientação em direção à

teoria e à crítica, em direção à história crítica ocorrer, o proble­ma da motivação se resolverá. Poderemos continuar ainda bonspatriotas e até mesmo nacionalistas, mas o sistema de créditose débitos deixará de ser importante. As ilusões acerca da expan­são cultural, bem como aquelas sobre a reconciliação mundialatravés dos estudos literários devem desaparecer. Aqui, na Amé­rica, vendo a Europa como um todo do outro lado do Atlântico,podemos facilmente alcançar uma certa imparcialidade, emboratalvez tenhamos que pagar o preço do desenraizamento e do exí­lio espiritual. Mas, se concebermos a literatura, não como umargumento no conflito do prestígio cultural, ou como um bemde comércio exterior, ou, até mesmo, como um indicador da psi­cologia nacional, obteremos a única objetividade verdadeira al­cançável pelo homem. Não será um cientificismo neutro, um re­lativismo e historicismo indiferentes, mas uma confrontação comos objetos em sua essência: uma contemplação imparcial mas in­tensa que levará à análise e, finalmente, a juízos de valores . .!lma,vez que captemos a natureza da arte e da poesia, sua vitória so­61êa morüüidáde e o destino humanos, sua criação de um novomundo da imaginação, as vaidades nacionais desaparecerão. Ohomem, o homem universal, o homem de qualquer lugar e dequalquer tempo, em toda a sua variedade, vai emergir e os estu­dos literários deixarão de ser um passatempo antiquado, um cál­culo de créditos e débitos nacionais ou mesmo um mapeamentode redes de relações. Os estudos literários tornar-se-ão um atoda imagin-ªção, como a própria arte e, portanto, um preser"adore criàdo-idos valores mais elevados da humanidade:---- - .. --

NOTAS

1 Goethe en Angleterre, quelques réflexions sur les problemes d'influence. Revue Ger­manique, 12 (1921), 374-75.

2 Franz6sischer Geist im zwanzigsten Jahrhundert. Berna, 1952, p. 237.

3 GUYARD, M. F. La littérature comparée. Paris: P. U. F., 1951, p. 124-125.

4 La littérature comparée et l'histoire des idées dans l'étude des relations franco­américaines. In: FRIEDERICH, Werner, ed. Comparative Literature: Proceedings (!/ (li,'Second Congress of the [CLA. 2 vols. Chapel Hill: Univ. of North Carolina Prcss, II),>').

v. 2, p. 349-69.

5 Yl'urhook of Comparative and General Literature, 4 (1955), 57.

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o NOME E A NATUREZA DA LITERATURA COMPARADA 17,1

o NOME E A NATUREZADA LITERATURA COMPARADA*

René Wéllek

A expressão' 'literatura comparada" tem suscitado tanta discus~são, tem sido interpretada de modos tão diferentes e freqüente­mente tão mal interpretada, que pode ser útil examinar-lhe a his­tória e tenüu distinguir seus significados nas principais línguas.Somente então se pode esperar definir sua exata extensão e con­teúdo. Lexicografia e "semântica histórica" serão nosso pontode partida. Além disso, uma breve história dos estudos compa­rativos deve levar a conclusões significativas para os nossos dias."Literatura Comparada" ainda é uma disciplina e uma idéia su­jeitas a controvérsia.

As duas palavras usadas separadamente não parecem causarproblema. "Comparative" ocorre no Middle English, obviamen­te derivado do latim eomparativus. Éusado por Shakespeare quan­do Falstaff chama Prince Hal de "o mais comparativo, o mais ve­lhaco, doce jovem príncipe."l Francis Meres, já em 1598, utilizao termo no título de "A Comparative Discourse of Our EnglishPoets with the Greek, Latin and Italian Poets".2 O adjetivo apa­recenos títulos de vários livros dos séculosXVII e XVIII. Em 1602,WiIliam Fulbecke publicou A Comparative Diseourse o/ the Laws.Encontro também A Comparative Anatomy o/ Brute Animais, em1765. I,ogo no ano seguinte, seu autor, John Gregory, publicou ACOlllparalive View o/the State and Faeulties o/ Man with Those(?/ I lU' /1ni/nal World. O bispo Robert Lowth, em suas Leetures onlhe Sact"('(1Poelry o/the Hebrews, escritas eqllatim (1753), for­mulou baslanlc bem o ideal do estudo comparativo:

* WELLEK, Rcné. TIl(' N;IIIlL'and Nature of Comparative Literature. ln: _. Discrimi­nations: Further ConC"I'!S lil ('l'i!iciSJ/l. New Haven: YaleUniversity Press, 1970, p. 1-36.

Devemos ver tudo com os olhos deles [isto é, dos antigoshebreus]: avaliar tudo por suas opiniões; devemos esforçar­nos ao máximo para ler hebraico como os hebreus teriamlido. Devemos agir como os astrônomos com relação a esseramo de sua ciência, que é chamado comparativo, os quais,para formar uma idéia mais perfeita do sistema geral e suasdiferentes partes, se imaginam como se estivessem passan­do através de todo o universo e explorando-o, migrando deum planeta para outro e tornando-se, por algum tempo, ha­bitantes de cada um deles.3

Em sua pioneira History o/ English Poetry, Thomas Wartonanunciava, no prefácio do primeiro volume, que apresentaria "umlevantamento comparativo da poesia de outras nações."4 Geor­ge Ellis, em seu Specimens o/ Early English Poets (1790), fala deestudiosos de coisas antigas cujo "engenho freqüentemente temtido sucesso.em detectar e extrair de crônicas medievais, atravésde crítica comparativa, muitas particularidades concernentes aoestado da sociedade e ao progresso das artes e costumes."5 Em1800, Charles Dibdin publicou, em cinco volumes, A CompleteHistory o/ the English Stage, Introdueed by a Comparative andComprehensive Review o/ the Asiatie, the Grecian, the Roman,the Spanish, the Italian, the Portuguese, the German, the Frenehand Other Theatres. Aí se formula plenamente a idéia principal,mas a combinação "literatura comparada" propriamente dita pa­receocorrer pela primeira vez somente numa carta de MatthewArnold em 1848, na qual diz: "Quão evidente é agora, ainda quea atenção às literaturas comparadas nos últimos cinqüenta anospudesse tê-Io ensinado a qualquer um, que a Inglaterra está, numcerto sentido, muito aquém do Continente."6 Mas isto era umacarta particular, publicada somente em 1895, e "comparada" sig­nifica aqui pouco mais do que "comparável". Em inglês, o usodecisivo foi O de Hutcheson Macaulay Posnett (um advogado ir­landês que mais tarde se tornou professor de Literaturas Clássi­cas e Inglesa no University College, em Auckland, Nova Zelân­dia), que pôs a expressão no título de seu livro em 1886. Comoparte da Série Científica Internacional de Kegan Paul, Trench andTrübner, o livro despertou algum interesse e recebeu, por exem­plo, uma boa crítica de William Dean Howells.7 Posnett, em umartigo "A Ciência da Literatura Comparada", alegava "ter sido

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122 LITERATURA COMPARADA () NOME E A NATUREZA DA LITERATURA COMPARADA 121

o primeiro a definir e ilustrar o método e os princípios da novàciência, e de não apenas tê-Io feito no Império Britânico, masno mundo."8 É claro que isso é um disparate, mesmo se limitar­mos "literatura comparada" ao sentido específico que Posnettlhe atribuiu. A expressão inglesa não pode ser discutida indepen­dentemente de termos análogos na França e na Alemanha.

Pode-se explicar o uso tardio da expressão em inglês se nosdermos conta de que a combinação "literatura comparada" en­contrava resistência na Inglaterra porque o termo "literatura" ha­via perdido seu significado anterior de "conhecimento ou estu­do de literatura" e havia passado a significar "produção literá­ria em geral", ou "o conjunto de escritos de um período, paísou região". Este longo processo está completo hoje, o que se evi­dencia pelo fato de que o Professor Lane Cooper, da Universi­dade de ComeU, se recusou a denominar o departamento quechefiava nos anos 20 de "Literatura Comparada" e insistia quedevia ser de "Estudo Comparativo de Literatura". Ele a consi­derava uma "expressão espúria" que "não tem sentido nem sin­taxe". "Uma pessoa poderia permitir-se igualmente dizer 'bata­tas comparadas' ou 'vagens comparadas'''.9 Mas no uso maisantigo de inglês, "literatura" significa "saber", e "cultura lite­rária", especificamente conhecimento de latim. The 1àtler se ex­prime judiciosamente em 1710: "É vão tentar esconder-se, porfrivolidade, no refúgio das línguas eruditas. A literatura apenastorna o homem mais eminentemente aquilo que a natureza ofez."1OBosweUdiz, por exemplo, que Baretti era "um italiano deconsiderável literatura".l1 Tal uso sobreviveu até o século XIX,quando James Ingram deu uma aula inaugural sobre a Utilityqf Anglo-Saxon Literature (1807), querendo dizer a "utilidadede sabermos anglo-saxão", ou quando John Petherham escreveu/1 tl lIistorical Sketeh of the Progress and Present State of Anglo­,')'axotlLiterature in England (1840), onde "literature" deve sig­lIificar, por certo, o estudo da literatura. Mas esse uso já era ana­cr(lllico: "literatura" já tinha assumido então o significado atualde colljulIlo de escritos. O Oxford English Dietionàry registra aprimeira ocorrência em 1812, mas essa data é tardia demais: averdade é que o uso moderno penetrou na Inglaterra no final doséculo XVIII, provindo da França.

De fato, {)sigllificado de "literatura" como "produção lite­rária" ou "conjullto de escritos" fez reviver um uso da Antigüi-

dade tardia. A princípio, literatura, em latim, é simplesmente L1l11atradução do grego grammatike e às vezes significa a capacidadede ler e escrever, ou até uma inscrição, ou o próprio alfabeto. MasTertuliano (que viveu de cerca de 160 a 240 d.e.) e Cassiano con­trastam literatura secular com bíblica, pagã com cristã, literatu­ra com seriptura.12

Este uso do termo volta à tona somente nos anos 30 do sé­culo XVIII, competindo com os termos literae, lettres, letters. Umexemplo antigo é a série de François Granet Réflexions sur lesouvrages de littérature (1736-40). Voltaire, em Le Siêcle de LouisXIV (1751), sob o título do capítulo "Des Beaux Arts" usa litté­rature com uma referência imprecisa, junto com "eloqüência, poe­tas, e livros de moralidade e divertimento", e em outro ponto dolivro, fala em "littérature légere" e nos "gemes de littérature"cultivados na Itália.13 Em 1759, Lessing começou a publicarBriefe die neueste Literatur betreffend, onde claramente literatu­ra se refere a um conjunto de escritos. O fato de que os Essaissur divers sujets de littérature et morale (1735-54), de Nicolas Tru­blet, tenham sido traduzidos para o alemão como Versuehe überversehiedene Gegenstiinde der Sittenlehre und Gelehrsamkeit(1776)14 ilustra bem que o uso ainda era incomum naquelaépoca.

Este uso da palavra' 'literatura" designando toda produçãoliterária, que ainda é um dos significados que lhe atribuímos, foi,muito cedo, nacionalizado e localizado, no século XVIII. Foi apli­cado às literaturas francesa, alemã, iÚlliana e veneziana, e quaseao mesmo tempo o termo perdia sua abrangência original, tendo­se estreitado o seu significado para nomear o que hoje chama­ríamos de "literatura da imaginação", poesia e prosa imaginati­va, ficcional. O primeiro livro que exemplifica esta dupla mu­dança é, até onde sei, Diseorso sopra le vieende delta letteratura,de Carlo Denina (1760).15 Denina não se propõe discutir "o pro­gresso das ciências e das artes, que não são, propriamente, umaparte da literatura"; ele falará de obras de saber somente quan­do pertencem a "bom gosto e eloqüência, quer dizer, a literatu­ra' '.16O prefácio do tradutor francês fala de uma literatura ita­liana, inglesa, grega e latina. Em 1774 foi publicado em Leghornum Essai sur Ia littérature russe, de N. Novikov, e há uma refe­rência bastante localizada com a Storia delta letteratura venezialia, de Mario Foscarini (1752).

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1.'·1 LITERATURA COMPARADA I..

O NOME E A NATUREZA DA LITERATURA COMPARADA I?\

o processo de nacionalização e, se assim posso dizer, esteti­zação da palavra, é belamente ilustrado em Idea della letteraturaalemanna, de A. de Giorgi-Bertola (1784), uma edição ampliadada anterior Idea della poesia alemanna (1779), tendo a mudançade título sido necessária pelo fato de a posterior incluir um rela­tório sobre romances alemães.17Em alemão, o termo National­literatur enfoca a nação como a unidade da literatura: aparecepela primeira vez no título Beytriige zur Gesehiehte der teutsehenSpraehe und Nationalliteratur, de Leonhard Meister (1777),e per­siste através do século XIX. Algumas das mais conhecidas his­tórias literárias alemãs o trazem em seus títulos: Wachler, Kober­stein, Gervinus em 1835 e, mais tarde, A. Vilmar e R. Gott­schall.18

No entanto, por muito tempo houve uma forte animosida­de em relação à limitação estética do termo. Philarete Chasles,por exemplo, comenta em 1847: "Tenho pouco apreço pela pala­vra 'literatura', que me parece não significar coisa alguma; é oresultado de adulteração intelectual." A palavra lhe parece liga­da à tradição greco-romana de retórica. E "algo que nem é filo­sofia, nem história, nem erudição, nem crítica - algo que nãosei o que é: vago, impalpável e enganoso."19 Chasles prefere"história intelectual" a "história literária".

Omesmo processo se verificou em inglês. Algumas vezes ain­da é difícil distinguir entre o antigo significado de literatura co­mo cultura literária e uma referência a um conjunto de escritos.Assim, já em 1755, o Dr. Johnson queria criar Annals of Litera­ture, Foreign as well as Domestiek. Em 1761George Colman, pai,pensava que "Shakespeare e Milton parecem ser os únicos auto­res de primeira linha, em meio ao destroço geral da antiga litera­lura inglesa."20Em 1767Adam Ferguson incluiu um capítulo in­I ilulado "Sobre a História da Literatura" em seu Essay on thellistorv (~lCivil Society. Em 1774, numa carta, o Dr. Johnsondissc desejar que "o que é imerecidamente esquecido de nossavelha lileratura pudesse reviver";21e John Berkenhout, em 1777,lku. l'OIIIOsubtítulo à sua Biographia Literaria, A Biographiealf /istor.' (~/I.itl'rature, em que propunha oferecer "uma idéia con­eisa do lIaseiulclllo c do progresso da literatura". O prefácio daLiterary l/istor\' (~(the Troubadours, de De Ia Cume de Sainte­Palaye, traduzida Clll 1779 por Susanna Dobson, refere-se aos tro­vadores como "os pais da lileratura moderna", e James Beattie,

em 1783, deseja rastrear o surgimento e a ascensão do romance"a fim de lançar luz sobre "a história e a política, os costumese a literatura dessas últimas épocas".23 Houve livros como /IView of Ancient History, Including the Progress of Literature,and the Fine Arts, de William Rutherford (1788), Sketches of aHistory of Literature, de Robert Alves (1794) e An Introduetionto the Literary History of the 14th and 15th Centuries, de An­drew Philpot (1798),que reclama que "não há nada que faça maisfalta na literatura inglesa" do que "uma história do renascimen­to das letras." Contudo, pode-nos surpreender o fato de que oprimeiro livro com o título A History of English Language andLiterature tenha sido um pequeno manual escrito por RobertChambers em 1836, e que o primeiro professor de língua e litera­tura inglesa tenha sido o Reverendo Thomas Dale, no UniversityCollege, da Universidade de Londres, em 1828.24

Assim, a mudança de significado do termo "literatura" atra­sou a adoção da expressão "literatura comparada" em inglês, aopasso que' 'política comparada", manifestamente defendida pe­lo historiador E.A. Freeman em 1873,25era inteiramente aceitá­vel, bem como "gramática comparada", que figurava na página­título de uma tradução da Comparative Grammar of Sanskrit,Zend, Greek, ete., de Franz Bopp, em 1844.

Na França a estória foi diferente: lá, littérature continuoupor longo tempo a significar estudo literário. Voltaire, em seu ar­tigo inacabado sobre Littérature para o Dietionnaire philosophi­que (1764-72),define literatura como "um conhecimento das obrasde gosto, ligeiras noções de história, poesia, eloqüência e críti­ca", e a distingue da "belle littérature", que se relaciona a "ob­jetos de beleza, a poesia, eloqüência e história bem escrita."26Seu seguidor, Jean-François Marmontel, que escreveu os princi­pais artigos literários para a grande Eneyclopédie, coligidos co­mo Eléments de littérature (1787), usa littérature com o signifi­cado claro de "um conhecimento de belles lettres", que ele con­trasta com erudição. "Com espírito, talento e gosto" - declara- "podem-se produzir obras de engenho, sem qualquer erudi­ção, e com pouca literatura."27 Dessa forma, foi possível no iní­cio do século XIX formar a combinação littérature comparée,aparentemente sugerida pela famosa Anatomie Comparée, de Cu­vier (1800), ou pela Histoire comparée des systemes de philoso­phie, de Degérando (1804). Em 1816, dois compiladores, NoCle

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Laplace, publicaram uma série de antologias de literatura clássi­ca, francesa e inglesa, tendo por título, jamais usado antes, semqualquer explicação: Cours de littérature comparée.28 CharlesPougens, em Lettres philosophiques à Madame *** sur divers su­jets de morale et littérature (Paris, 1826)reclamava não haver obrasobre os princípios da literatura que lhe parecesse recomendável:"un cours de littérature comme je l'entends, c'est-à-dire, un coursde littérature comparée." (p. 149).

Entretanto, quem tornou corrente o termo na França foi, semdúvida, Abel-François Villemain, cujo curso sobre a literatura doséculo XVIII fez um enorme sucesso na Sorbonne no fim dosanos 20. Em 1828-29,esse curso foi publicado em 4 volumes, como título de Tableau de Ia littérature française au XVIIIe siêcle,contendo até as reações elogiosas da platéia ("Calorosos aplau­sos. Risos".) Aí ele usa várias vezes tableau comparti, études com­parées, histoire comparée, mas também littérature comparée, lou­vando Chancelier Daguesseau por seus "vastes études de philo­sophie, d'histoire, de littérature comparée."29 Na segunda sériede palestras, Tableau de Ia littérature au moyen âge en France,en Italie, en Espagne et en Angleterre (2 volumes, 1830), ele tor­na a falar de "amateurs de Ia littérature comparée", e no prefá­cio da nova edição, em 1840, Villemain, não sem razão, se van­gloria de que aí, pela primeira vez na universidade francesa, sefez uma tentativa de "análise comparada" de várias literaturasmodernas.3o

Depois de Villemain, a expressão passou a ser usada comrelativa freqüência. Philarete Chasles proferiu uma aula inaugu­ral na Athénée em 1835, e na versão impressa na Revue de Pariso curso é chamado de "Littérature étrangere comparée".31I\dolphe-Louis de Puibusque escreveu,em dois volumes, uma His­/nin' comparée de Ia littératurefrançaise et espagnole (1843),ondecil:1Villcmain, o secretário vitalício da Academia Francesa, co­1110qllt'lll definira a questão. O termo comparative, contudo, pa­rlU' In l'olllpctido por algum tempo com comparée. J. J. Ampe­rc, 110Sl'Uf)is('ours sur l'histoire de Iapoésie (1830), fala da "his­toirc COIlIP:II:t1ive des arts et de Ia littérature",32 porém mais tar­de usa talllh{'1I1o outro termo no título de sua Histoire de Ia lit­tératurej'rall<,"is('(1/1 moyen âge comparée aux littératures étran­gêres (1841). O texto decisivo em favor da expressão littératurecomparée é o artigo hCIIItardio de Sainte-Beuve, um elogio fú-

nebre a Ampere, publicado na Revue des deux mondes~ elll1868.33

Na Alemanha, a palavra "comparativo" foi traduzida porvergleichend em contextos científicos. Em 1795, Goethe escreveu"Erster Entwurf einer allgemeinen Einleitung in die vergleichendeAnatomie".34 Vergleichende Grammatik foi utilizado por AugustWilhelm Schlegel numa resenha em 1803,35e o livro pioneiro deFriedrich Schlegel Über Sprache und Weisheit der Inder (1808)empregava vergleichende Grammatik36 destacadamente comoum programa de uma nova ciência que expressamente evocavao modelo de "vergleichende Anatomie". O adjetivo se tornou co­mum na Alemanha para etnologia, e mais tarde para psicologia,historiografia e poética. Mas, exatamente como ocorreu em in­glês, houve dificuldade em associá-Io à palavra "literatura". Atéonde sei, Moriz Carriere, em 1854, no livro Das Wesen und dieFormen der Poesie é quem usa pela primeira vez a expressão ver­gleichende Literaturgeschichte.37 Surpreendentemente, a expres­são vergleichende Literatur figura no título de um periódico es­quecido, editado por Hugo von Meltzl, na remota cidade de Klau­senburg (hoje Cluj, na Romênia): o seu Zeitschrift für verglei­chende Literatur circulou de 1877 a 1888. Em 1886, Max Kochfundou, na Universidade de Breslau, um Zeitschrift für verglei­chende Literaturgeschichte, que sobreviveu até 1910. Von Meltzlenfatizava que sua concepção de literatura comparada não se li­mitava à história e, nos últimos números de seu periódico, mu­dou o título para Zeitschrift für vergleichende Literaturwissen­schaft.38 Sendo um termo relativamente novo em alemão, Lite­raturwissenschaft foi adotado no início do século XX significandoo que geralmente chamamos "crítica literária" ou "teoria da li­teratura". O novo periódico alemão Arcadia é chamado de Zeit­schrift für vergleichende Literaturwissenschaft.

Não é necessário traçar a história dos termos em outros lu­gares. Em italiano, a expressão letteratura comparata é clara efacilmente formada a partir do modelo francês. O grande críticoFrancesco De Sanctis ocupou uma cátedra denominada Della let­teratura comparata em Nápoles, desde 1872 até sua morte em1883.39Arturo Graf tornou-se o titular da mesma cátedra emTurim em 1876. Em espanhol, a expressão literatura comparadaparece ser ainda mais recente.

Não estou bem certo sobre quando a expressão é usada pela

12(, LITERATURA COMPARADA o NOME E A NATUREZA DA LITERATURA COMPARADA ID

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12X LITERATURA COMPARADA o NOME E A NATUREZA DA LITERATURA COMPARADA 12')

primeira vez nas línguas eslavas. Alexander Veselovsky,o maior'eomparatista russo, não a empregou em sua aula inaugural co­mo Professor de Literatura Geral em São Petersburgo, em 1870,mas fez uma resenha do novo periódico de Koch em 1877 e aíusou a expressão sravnitelnoe literaturovedenie, calcado em ver­gleiehende Literaturwissensehajt.4O Na Universidade de Pragacriou-se em 1911 uma cátedra chamada srovnávací literatura.

Ainda que incompleta ou até mesmo levemente incorreta nosdetalhes, esta história dos termos nas principais línguas poderiatornar-se mais significativa se tratada no contexto da competi­ção com termos rivais. "Literatura comparada" ocorre naquiloque os semanticistas chamaram de "campo de significação".Aludiu-se aqui a "saber", "letras" e "belles lettres" como ter­mos rivais de "literatura". "Literatura universal", "literatura in­ternacional", "literatura geral" e "literatura mundial" são os quecompetem com "literatura comparada". "Literatura universal"ocorre no século XVIII e é usado bem amplamente em alemão:há um artigo, de 1776, que discute eine Universalgesehiehte derDiehtkunst, e em 1859 um crítico propôs "eine Universalgeschichteder modernen Litteratur".41 "Literatura geral" existe em inglês:James Montgomery proferiu Leetures on General Literature,Poetry, ete. (1833), nas quais "literatura geral" significa o quechamaríamos de "teoria da literatura" ou "princípios de críti­ca". O Reverendo Thomas Dale, em 1831, tornou-se Professorde Literatura e História Inglesa no Departamento de LiteraturaGeral e Ciência no King's College, da Universidade de Lon­dres.42Na Alemanha, J. G. Eichhorn editou uma série de livrosintitulada Allgemeine Gesehiehte der Literatur (1788 e anos se­guintes). Houve compilações similares: Johann David Hartmann,Versueheiner allgemeinen Gesehiehte der Poesie (2 volumes, 1797c 1798), Ludwig Wachler, Versueh einer allgemeinen Gesehiehteder /,íleratur, em 4 volumes (1793-1801), e a enorme compilaçãohihliogr:ífica de Johann Georg Grasse, Lehrbueh einer allgemei­f/l'/1 I,ill'riirgesehiehte (1837-57).

A cxpressão "literatura mundial", Weltliteratur, foi usadapor ('ocl hc cm 1827 ao comentar uma tradução de sua peça Tas­so para o IÚlIlCês,e depois diversas vezes, algumas das quais emsentidos ligciramcnte diferentes: ele pensava numa só literaturamundial, uniricada. lia qual as diferenças entre as literaturas in­dividuais desapareceriam. embora soubesse que isto era uma pos-

·1,

sibilidade bastante remota. Em um rascunho, Goethe iguala lite­ratura "européia" a "mundial", decerto provisoriamente.43Exis­te um conhecido poema de Goethe, "Weltliteratur" (1827), que,ao contrário, enumera os encantos da poesia popular e que, naverdade, teve seu título adulterado pelo responsável pela ediçãopóstuma de 1840.44 A história do conceito foi bem estudada.45Atualmente literatura mundial pode significar simplesmente to­da a literatura, como no título de muitos livros, tais como o deOtto Hauser, ou pode significar uma lista de excelentes obras demuitas línguas, como acontece quando se diz que este ou aquelelivro ou autor pertence à literatura mundial: Ibsen pertence à li­teratura mundial, enquanto Jonas Lie, não; Swift pertence àliteratura mundial, enquanto Thomas Hardy, não.

Da mesma maneira que o uso preciso da expressão "litera­tura mundial" é ainda passível de discussão, o uso de "literaturacomparada" tem suscitado debates quanto a sua abrangência exatae a seus métodos exatos, que ainda não foram solucionados. Éinútil ser dogmático em assuntos como este, na medida em queas palavras têm o significado que os autores lhes atribuem, e nemum conhecimento de história, nem o uso comum podem evitarmudanças ou até distorções completas em relação ao significadooriginal. Ainda assim, clareza em assuntos como este evita con­fusão mental, ao passo que ambigüidade ou arbitrariedade ex­cessivas conduzem a perigos intelectuais que podem não ser tãosérios quanto chamar quente de frio, ou comunismo de demo­cracia, mas que dificultam o entendimento e a comunicação. Pode­se distinguir, primeiramente, uma definição estrita, estreita. VanTieghem, por exemplo, a define assim: "O objeto da literaturacomparada é, essencia.lmente, o estudo de diversas literaturas emsuas inter-relações."46Guyard, em seu manual que segue de per­to V:ª!!]i~lle~m termos de doutrina e conteúdo, chama a lite­ratura comparada de "a históriª.g.e r~lações literárias internacio­nais",47e J.-M. Carré, em seu prefácio ao livro de Guyard,a de­nomina como "umª.r~J!li!LCjl~it()._c:l-ªJlistória.lit@rária;é..o esiuÀo_.de relações espirituais internacionais,c:l~çQ!1JªtQs.iatuais.queeJHs­tiram entre Byron e Pushkin, Goetl1e~.Ç~I::Iyl~,Walter...ScQtLeVigny, entre as obras, as inspirações e mesmo as vidªs ..Q~_ªlIJQIeBque pertencem a ciiversasliteraturas."48 Podem-se encontrar for­mulações semelhantes em outros lugares, como no volume de li­teratura comparada da série Problemi ed orientamenti, de Mo-

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migliano (1948), onde Anna Saitta Revignas se refere à literatura·comparada como "uma ciência moderna, centrada na pesquisados problemas relacionados com as influências exercidas recipro­camente por várias literaturas.' '49Fernand Baldensperger, o líderreconhecido da escola francesa, no programático artigo introdu­tório do primeiro número da Revue de líttérature comparée (1921),não arrisca uma definição, mas concorda com uma limitação ine­rente ao conceito: ele não vê utilidade em comparações que nãoenvolvam "um encontro verdadeiro" que tenha "criado uma de­pendência".50 Mas seu artigo de fato põe em discussão muitosproblemas mais amplos, deixados de lado por seus seguidores.

Num sentido mais abrangente, "literatura comparada" in­clui o que Van Tieghem chama de "literatura geral". Ele limita"literatura comparada" a relações "binárias" entre dois elemen­tos, ao passo que "literatura geral" diz respeito à pesquisa dos"fatos comuns a várias literaturas".51 Pode-se, entretanto, argu­mentar que é impossível traçar uma linha divisória entre litera­tura comparada e literatura geral, entre, por exemplo, a influên­cia de Walter Scott na França e o nascimento do romance histó­rico. Além disso, a expressão "literatura geral" se presta a con­fusão: já foi entendida como teoria literária, poética, princípiosde literatura. Literatura comparada, no sentido estrito de rela­ções binárias, não se pode constituir como uma disciplina signi­ficativa, já que teria de lidar apenas com "o comércio exterior"entre literaturas e, em decorrência, com fragmentos de produçãoliterária. Não permitiria tratar da obra de arte individual. Seria(como aparentemente Carré se contenta em pensar) uma disci­plina estritamente ancilar da história literária, com um objeto deestudo fragmentado, disperso, e sem nenhum método próprio.( ) estudo da influência, digamos, de Byron na Inglaterra não pode,lllelodologicamente, diferir de um estudo da influência de ByronlIa "rança, ou de um estudo do byronismo europeu. QJUétQC1Qde cOlllparação não é específico da literatura comparada; é ubí­quo, ('si{I prcsente em qualquer éstudoHterál"io eertrqualquercil'llcia. seja social, seja natural. Nem tampouco o estudo literá­rio, I1l(,SI1lOlia prática dos mais ortodoxos comparatistas, utilizaapenas~) llIl-lodo comparativo. Qualquer autor especializado emliteratura núo 'lI)Cnashaverá de comparar, mas de reproduzir, ana­lisar, interpn:lar, l"VOCar,avaliar, generalizar, etc., tudo isso emuma única págilla.

110 LITERATURA COMPARADA () NOME E A NATUREZA DA LITERATURA COMPA\RAIlA 111

. , '

Existem outras tentativas de defini! a abrangência da lill'ratura comparada, acrescentando algo específico à definição cslreita.Assim, Carré e Guyard incluem o estudo de falsas impressões na­cionais, as idéias que as nações têm umas das outras. Carré es­creveu um livro interessante sobre Les Écrívaíns françaís et le mí­rage allemand (1947), que é psicologia ou sociologia nacional re­tirada de fontes literárias, mas mal chega a ser história literária.Um livro como La Grande Bretagne dans le roman françaís:1914-1940, de Guyard (1954) é Stoffgeschíchte levemente disfar­çada: uma lista dos clérigos, diplomatas, escritores, coristas, ho­mens de negócios ingleses que figuram em romances francesesde uma dada época.

Menos arbitrária e mais ambiciosa é a tentativa recente deH. H. H. Remak no sentido de expandir a definição de literaturacomparada. Ele a define como' 'o estudo da literatura além doslimites de um país específico, e o estudo das relªçõt:st::ntr~.ªJite­ratura, de um lado, e, de outro, as outras áreas de saber e de crença,tais como as artes, a filosofia, a história, as ciências sociais, aciência, a religião, etc."52Mas Remak é forçado a fazer distin­ções artificiais e insustentáveis, como entre um estudo da rela­ção de Hawthorne com o calvinismo, rotulado de "comparado",e um estudo de seus conceitos de culpa, pecado e expiação, re­servado à literatura "americana". Todo esse esquema soa a algoengendrado com um propósito puramente prático numa facul­dade americana, onde uma pessoa pode precisar justificar umtema de tese como pertencente a "literatura comparada", antesque colegas pouco compreensivos se ressintam de incursões emsuas áreas específicas de competência. No entanto, como defini­ção, ela não sobrevive a um exame mais rigoroso.

Numa dada época da história, decisiva para o estabelecimen­to da expressão em inglês, literatura comparada era entendida co­mo significando algo ao mesmo tempo muito específico e muitolargamente abrangente. No livro de Posnett, significa' 'a teoria geralda evolução literária, a idéia de que a literatura passa por estágiosde incipiência, culminância e declínio."53A literatura comparadase insere numa história social universal da humanidade, "a grada­tiva expansão da vida social, do clã à cidade, da cidade à nação,destas duas à humanidade cosmopolita."54 Posnett e seus seguido­res são tributários da filosofia evolucionista de Herbert Spcnu:r,hoje quase completamente esquecida nos estudos literários.

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11\() NOME E A NATUREZA DA LITERATURA COMPAiRi\f)i\. \

Ido de literatura - história, teoria e crítica - implicam-se 11111tuamente, do mesmo modo que o "estudo de uma literatura l1a­cional não pode ser separado do estudo da totalidade da litera­tura, pelo menos em tese. A literatura comparada pode flores­

cer, e o fará, somente ao se desvencilhar de lirnitaçõésartificiaise se transformar simplesmente em estudo de literatura.

O significado e a origem destas distinções e controvérsiasse tornarão mais claros se olharmos para a história dos estudoscomparados sem dar importância ao nome ou a definições. H.H. H. Remak, numa palestra no Congresso de Friburgo, Suíça,em 1964, corretamente afirmou que "não há tarefa mais urgentedo que escrever e publicar uma história minuciosa de nossa dis­ciplina."55É óbvio que não posso pretender dar conta dessa exi­gência num espaço tão curto, mas como escrevi,vinte e cinco anosatrás,56a primeira e única história da historiografia literária in­glesa e venho-me dedicando constantemente a escritos sobre his­tória literária nos quatro volumes de meu History of Modern Cri­ticism, posso esboçar com alguma segurança os principais está­gios do desenvolvimento da literatura comparada e da literaturageral.

Se lançarmos o olhar para a Antigüidade, ficará evidente queos gregos não poderiam ter sido estudiosos comparatistas no pe­ríodo primitivo, pois viviam num mundo fechado, para o qualtodos os outros povos eram bárbaros. Mas os romanos eram pro­fundamente conscientes de sua dependência em relação aos gre­gos. No Diálogo sobre oradores, de Tácito, por exemplo, há umsofisticado paralelo entre oradores gregos e romanos, no qual cadaescritor é equiparado ou contrastado com certo cuidado. Na Ins­titutio de Quintiliano se oferece um completo desenho da histó­ria das literaturas grega e romana, que consistentemente dá aten­ção aos modelos gregos seguidos pelos romanos. Longino, ouquem quer que tenha escrito o tratado habitualmente chamadoSobre o sublime, compara brevemente o estilo de Cícero ao deDemóstenes e dá, como exemplo do Grande Estilo, o trecho doGênese: "Faça-se a luz; e a luz se fez."57Macrobius, nos bemposteriores Saturnalia, discute longamente a imitação feita porVirgílio de poetas gregos. Embora a experiência da variedade daliteratura na Antigüidade seja limitada, e embora muito de SlJaerudição se tenha perdido - durante a Idade Média ela dew ICI

sido considerada efêmera ou local e por isso não diglla de Sl'1

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LITERATURA COMPARADAI\."

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Finalmente, prdpôs-le a idéia de que a literatura compara­da pode ser mais bem gefendida e definida por sua perspectivae espírito, ao invés de'sê-Io por qualquer setorização circunscris­ta no interior da literatura. Ela estudará qualquer literatura deuma perspectiva internacionaf,-cofifuIlla consciência da unida­de de toda criação e experiência literárias. Nesta concepção (quetambém é a minha), literatura comparada é idêntica ao estudode literaturaindepcndente de fronteiras lingüísticas, étnicas e po~líticas: Não pode limitar-se a um único métocl.o: em seu discur­so, descrição, caracterização, interpretação, narração, explanação,avaliação usam-se tanto quanto comparação. Nem tampouco podea comparação confinar-se a contatos históricos reais. Pode ha­ver, como a experiência da lingüística recente deveria ensinar aestudiosos de literatura, tanto valor em comparar fenômenos comolínguas ou gêneros historicamente não relacionados, quanto emestudar influências que se podem descobrir a partir da evidênciada leitura ou de paralelos. Um estudo de métodos narrativos ouformas líricas chineses, coreanos, birmaneses e persas é certamentetão justificável quanto o estudo de contatos fortuitos com o Orien­te, exemplificados em Orphelin de Ia Chine, de Voltaire.Nem podea literatura comparada ficar confinada à história literária, excluin­do a crítica e a literatura contemporânea, A crítica, como argu­mentei muitas vezes, não se pode divorciar da história, uma vezque não existem fatos neutros em literatura. O simples ato-de fa­zer uma escolha entre milhões de livros impressos é um ato críti­co, e a escolha dos traços ou aspectos sob os quais um livro podeser tratado é igualmente um ato de crítica e de julgamento. Alcntativa de traçar linhas divisórias precisas entre o estudo de his­Iória literária e literatura contemporânea está fadada ao fracas­so, Por que deveria uma data determinada ou até mesmo a mor­ll' de um autor decretar repentinamente que um tabu deixou decxislir'! É possível impor tais limites no sistema centralizado daedlJca,'üo francesa, mas em outros lugares eles são irreais. Nempode a abordagem histórica ser considerada o único método pos­sível, Illl'SlllOpara o estudo do passado nebuloso. As obras lite­rárias S;IO1I1011llmentos,não documentos. São imediatamenteacessíveis hoje em dia; desafiam-nos a buscar uma compreensãoem que pode figllr;lr o conhecimento do cenário histórico ou dolugar que ocupam I1l1ll1atradição literária, mas não de maneiraexcludente ou exausl iV;LAs três principais ramificações do estu-

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1 \·1 LITERATURA COMPARADA ( , NOME E A NATUREZA DA LITERATURA COMPARADA I 1~

copiada - não se deve subestimar o espectro e a intensidade dasabedoria literária da Antigüidade Clássica, especialmente em Ale­xandria e em Roma. Havia muita crítica textual, observação es­tilística e até mesmo algo que poderia agradar um comparatistamoderno: preservou-se uma elaborada comparação do tema deFiloctetes em Ésquilo, Sófocles e Eurípides.58

O Renascimento fez reviver em grande escala a erudição li­terária. Há uma nítida consciência histórica na própria idéia defazer reviver o saber e da ruptura com as tradições intelectuaisda Idade Média, apesar de tal ruptura não ter sido tão radicalnem tão repentina como se pretendeu no século XIX. Mesmo as­sim, procurar precursores de métódos ou perspectivas compara­tivas nessa época é pouco profícuo. º_gll~ªªl,ltoricladedaAnti­

güid'.!defez, llluüas y~z~s,.f9i.ª!Jªfar.ª.yariçg:;v:l~,çQIlçretacl;lStra­ãições literárias medievais e impor,p~IQ ll'l~IlQs.emteoria, umacerta uniformidade. Em sua Poética (Genebra, 1561), Scaliger de­dica todo um livro (V), "Criticus" (um termo novo àquela altu­ra), a uma série de comparações de Homero com Virgílio, de Vir­gílio com outros gregos, de Horácio e Ovídio com os gregos emgeral, sempre afirmando a superioridade dos romanos em rela­ção aos gregos, usando trechos de vários poetas sobre os mes­mos assuntos. A principal preocupação de Scaliger é com o jogode hierarquização, e é motivado por uma estranha espécie de na­cionalismo latino, interessado em denegrir tudo que fosse grego.Etienne Pasquier (1529-1615) usa o mesmo método ao compararum trecho de Virgílio com um de Ronsard.59Para dar um exem­plo inglês do método amplamente difundido de comparações re­tóricas: Francis Meres, em "A Comparative Discourse of Our En­glish Poets with the Greek, Latin and Italian Poets", aqui já men­cionado, equiparava, bem superficialmente, Shakespeare a Oví­dio, Plauto e Sêneca.6oA motivação da maioria dos eruditos doRcnascimento era patriótica: ingleses compilavam listas de escri­t orcs com a finalidade de provar suas gloriosas conquistas emlodos os campos do saber; franceses, italianos e alemães faziamcxalalllcnlc a mesma coisa.

(lavia lambém uma consciência muito eventual da existên­cia de lileralllra fora da tradição ocidental. A notável Defenceof Rime, de Sanlllcl Daniel (1607) demonstra que ele sabia queos turcos e árabes, eslavos e húngaros usam a rima. Para ele, osgregos e os romanos n;\o são uma autoridade absoluta, já que

mesmo os bárbaros são "filhos da natureza, tanto quanto eles"."Só há um saber, que omnes gentes habent in cordibus suis, umúnico espírito que trabalha em todos.' '61Mas esta tolerância euniversalidade de Daniel (os homens são os mesmos em todosos lugares e em qualquer tempo) ainda é completamentenão-histórica.

Mais ou menos na mesma época, uma nova concepção dehistória literária foi proposta por Francis Bacon em seu Advan­cement of Learning (1603). A história literária deveria ser uma"história dos florescimentos, deteriorações, crises, extinções" deescolas, seitas e tradições. "Sem isto a história do mundo se meafigura como a statua de Polifemo, que não tem um olho,faltando-lhe aquela parte que melhor mostra o espírito e a vidada pessoa."62Na versão latina posterior (1623), Bacon acrescen­ta a sugestão de que a partir do "gosto e observação do argu­mento, estilo e método" dos melhores livros, "o sábio espíritode uma era, como por uma espécie de encanto, deveria ser des­pertado e levantado dos mortos.' '63É claro que Bacon não con­cebia a história literária primordialmente como uma história daliteratura imaginativa: era, antes, uma história do saber, que in­cluía a poesia.64 De qualquer modo, a proposta de Bacon iamuito além das enfadonhas listas de autores, compilações de vi­das de autores, e repertórios bibliográficos, que estavam sendoorganizados naquela época na maioria dos países ocidentais.

Demorou muito para que o programa de Bacon fosse postoem prática. Na Alemanha, por exemplo,Peter Lambeck (1628-1680)compilou um Prodromus historiae literariae (1659), que reproduzo trecho de Bacon como uma espécie de epígrafe, mas cujo con­teúdo demonstra que Lambeck não entendeu de modo algum aidéia de Bacon em relação à história intelectual universal. Ele co­meça com a criação do mundo, história bíblica, descreve os ensi­namentos de Zoroastro, compila dados sobre filósofos gregos, etc.Tudo permanece como uma massa de saber acrítico, inerte e nãodigerido.65Se quisermos nos orgulhar do progresso em nossos es­tudos, recomendo examinar-se Versucheiner Einleitung in die his­toriam literariam antediluvianam d.h. in die Geschichte der Ge­lehrsamkeit und derer Gelehrten vor der Sündflut, de Jakob Fried­rich Reimann (HalIe, 1727), uma exibição de pedantismo infan­lil, que não demonstra nenhum senso de evidência ou cronologiaalém daquele que se pode extrair dos relatos do Antigo Testamento.

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IllI LITERATURA COMPARADA () NOME E A NATUREZA DA LITERATURA COMPARADA IT/

o acúmulo de depósitos de informação biobibliográfica atin- 'giu proporções enormes no século XVIII. Na França, os benedi­tinos começaram uma Histoire littéraire de Ia France (12 volu­mes, 1733-62), a qual, no século XVIII, mal atingia o século XII.A Storia della letteratura italiana, de Girolamo Tiraboschi (14vo­lumes, 1772-81)ainda é admirada por sua acuidade e riqueza deinformação. Um jesuita espanhol, Juan Andrés, compilou em ita­liano um dos mais impressionantes repertórios de todas as lite­raturas, Dell'origine, progresso, e stato attuale d'ogni letteratura(1782-99), em sete grandes volumes, nos quais todo o mundo doslivros é dividido por gêneros, disciplinas, nações e séculos, semnenhum senso de fluxo narrativo e com pouco senso de conti­nuidade. A obra inglesa de história literária comparável a essasrealizações do Continente é a History of English Poetry, de Tho­mas Warton (3 volumes, 1774-81). Embora na maior parte sejaum repertório de excertos, um relato de manuscritos e notíciasbiográficas, a obra é permeada por um novo espírito. Não pode­ria ter sido escrita sem a idéia de progresso, sem o novo interessetolerante pela Idade Média, e sem uma idéia (ainda que esque­mática) de desenvolvimento literário. 66

A idéia de progresso, também em literatura, triunfou na"Querelle des anciens et des modernes", que em inglês é normal­mente chamada de A Batalha dos Livros. O Parallele des ancienset des modernes, de Charles Perrault (1688-97), argumenta como contraste e a comparação das orações fúnebres de Péricles, Lysiase Isócrates, com as de Bossuet,Fléchier e Bourdaloue, ou do pa­negírico de Plínio ao Imperador Trajano com o elogio de Voitu­re a Richelieu, ou das cartas de Plínio e CÍCero com as de Guezde Balzac - sempre preferindo os franceses aos antigos.67 Oprogresso na literatura, como em outras esferas, tornou-se o te­lua obsessivo de todo o século, embora nem sempre tenha sidoiugclluamente concebido como unilateral e admita a existênciade rd rocessos. Para dar exemplos ingleses: até o conservador Dr..JOllllSOIIconcebe a história da poesia inglesa como um avançoregular da rudeza bárbara de Chaucer à perfeita homogeneidadede Popc, quc m10 seria passível de aperfeiçoamento nem no fu­turo: W;lIiou, quc gostava verdadeiramente de Chaucer e Spen­ser, semprc prckrc as idéias de sua própria época, de discrimi­nação, propricdadc, correção e bom gosto aos encantos irregula­res dos elizabelauos."HNo entanto, Warton demonstra uma no-

va tolerância em relação à variedade da literatura e uma curiosi­dade por suas origens e derivações. Ele pertence a todo um gru­po de eruditos do século XVIII interessados na instituição da ca­valaria e do amor cortês e em seus análogos literários, oromance69 e o lirismo cortês. Mas o novo interesse pela tradiçãoliterária não-latina era ainda pouco intenso. Homens como War­ton, e os Bispos Percye Hard sustentavam um ponto de vista que

exaltavaélép()ca da RainhaElizabeth como a idade de Ol.lI"ü-·craliteratura inglesa, mas que, ao -mesmotempo;lhespetmitia aplau­dir o triunfo da razão em sua própria literatura' 'bem-educada".Acreditavam no progresso da civilização e até no bom gosto mo­derno, porém lamentavam a decadência de "um mundo de belafabulação", que estudavam como arqueólogos exercitando umhobby fascinante. Animava-os um genuíno espírito histórico detolerância, mas permaneceram distanciados e indiferentes e, as­sim, estranhamente estéreis em seu ecletismo.70

Em Warton e seus contemporâneos, aflorou uma nova ten­dência, que se vinha preparando há muito tempo. A literaturaera compreendida, principalmente, como belles lettres, como li­teratura imaginativa, e não meramente como um ramo do saber,no mesmo nível da astronomia ou da jurisprudência. Este pro­cesso de especialização é ligado a toda a ascensão do sistema mo­derno de artes e sua clara distinção em relação às ciências e aosofícios, e à. formulação do empreendimento da estética.71 "Es­tética", como termo, vem da Alemanha, inventado por Baum­garten em 1735, embora o destaque da poesia e da prosa imagi­nativa já houvesse sido conquistado anteriormente, em conexãocom o problema de gosto, bom gosto ou de belles lettres, artes"elegantes", "bem educadas" ou de qualquer outro nome porque as chamassem naquela época.72 Com a ênfase naquilo quedenominaríamos arte da literatura, veio também a ênfase na na­cionalidade, pois a poesia era profundamente embebida numa lin­guagem nacional, e a resistência crescente ao nivelamento cultu­ral conquistado pelo Iluminismo acarretou uma nova volta ao pas­sado, que inevitavelmente era medieval ou, no máximo, muito in­cipientemente moderno. Os críticos ingleses e escoceses do sécu­lo XVIII prepararam o caminho, mas foi na Alemanha que o idealde história literária nesses novos termos foi proposto e levado aefeito mais consistentemente. A figura decisiva foi Johann Gotl­fried Herder (1744-1803),que imaginou a história literária como

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1.1 X LITERATURA COMPARADA () NOME E A NATUREZA DA LITERATURA COMPARADA lI')

uma totalidade, na qual "a origem, o crescimento, as mudançase a decadência da literatura com os diferentes estilos de regiões,períodos e poetas"73 seriam evidenciados, e na qual cada litera­tura nacional se constituiria como a entidade básica que ele de­sejava defender em sua pureza e originalidade. Q2rimeiro livro

importante de Henier, Über die neuere deutsche Literotur:Frag­mente (1767), condena ~.ill1itaç~o, ~spec:iall1leIltt::º.ªsliterªtllrasfrancesa e latina, e salitmtãos' póderes' rêgeneiª4ores4apo.~siapop1Jlar:Herder recomenda coletá-Ia não somente entre os ale­mães, mas entre "os citas e eslavos, vênetos e boêmios, russos,·suecos e poloneses.' '74Desse modo, o fervoroso nacionalismoalemão levou, paradoxalmente, a uma ampla expansãgdo. hori­zonte literário: toda nação toma parte, ou deveriátomar, comsua voz peculiar, no grande concerto da poesia. Ao mesmo tem­po que Herder delineou um novo ideal que apenas os românti­cos realizaram, estava ainda muito impregnado dos conceitos desua época. O processo literário é encarado por ele, muitas vezes,em termos de um determinismo bastante ingênuo, de clima, pai­sagem, raça e condições sociais. O livro de Madame de Stael, DeIa littérature (1800), com sua confiança simplória na perfectibili­dade e no contraste do sul alegre e ensolarado com o norte escu­ro e melancólico, até na literatura, pertence ainda à história es­quemática do Iluminismo.

Somente os irmãos Schlegeldesenvolveram as sugestões avan­çadas das propostas de Herder e se tornaram os primeiros histo­riadores literários que, em larga escala e com sólido conhecimento,levaram avante a idéia de uma história literária narrativa univer­sal num contexto histórico. Embora seja compreensível que esti­vessem interessados na Europa ocidental, expandiram, pelo me­nos de quando em vez, o seu interesse à Europa oriental e forampioneiros no estudo da literatura sânscrita. O Über Sprache undJ!Veisheitder Inder, de Friedrich Schlegel (1808), foi um progra­ma ousado a que, mais tarde, deu parcial continuidade A.W. Schle­gd. COIIlsuas edições das epopéias indianas. Para Friedrich Schle­gd, a IiIeral lira forma "um grand~ todo, completamente coeren­te e regularlllente organizado, abrangendo em sua unidade mui­tos lllUll<.IoSarl íslieos e constituindo-se, ele próprio, em uma ó'brade arte específica";" mas esta "poesia universal progressiva" éentendida com base na literatura nacional como um organismo,como a síntese da lJislória de uma nação: "a essência de todas

as faculdades e produções intelectuais de uma nação."/I, Infclil'.mente, a Geschichte der alten und neuen Literatur, de FriedrichSchlegel (1815) foi escrita depois de sua conversão ao catolicis­mo, na atmosfera da Viena de 1812,e é assim tingida fortementepelo espírito da restauração antinapoleônica. As primeiras pa­lestras de A.W. Schlegel em Berlim (1803-04), que traçam todaa história da literatura ocidental tendo como princípio organiza­dor a dicotomia "clássico vs. romântico", só foram publicadasem 1884,77e as suas Palestras sobre arte dramática e literatura(1809-11)limitam-se a um só gênero e são intensamente polêmi­cas. Ainda assim, em traduções francesa, inglesa e italiana, elaslevaram a mensagem do Romantismo alemão para o resto da Eu­ropa.78O conceito dos irmãos Schlegel de literatura, que é defi­nitivamente comparativo, tanto no sentido estrito quanto no la­to, ainda me parece verdadeiro e significativo, apesar das defi­ciências de suas informações, das limitações de seu gosto e daparcialidade de seu nacionalismo.

Escreveu-se, em muitos países, por todo o século XIX, his­tória literária schlegeliana. Com Sismondi ela penetrou na Fran­ça, onde Villemain, Ampere e Chasles a experimentam. Na Itá­lia, Emiliani Giudici, na Dinamarca, Brandes (com sua políticabastante diferente), e na Inglaterra, Carlylecompartilham de suasidéias. Quando Carlyle diz que "a história da poesia de uma na­ção é a essência de sua história política, econômica, científica,religiosa", e quando chama a literatura de "o mais verdadeiroemblema do espírito e da maneira de ser de uma nação,' '79fazeeo aos Schlegel e a Herder. Por mais surpreendente que possaparecer, até mesmo Taine compartilha de sua percepção básica.Obras de arte "fornecem documentos porque são monumen­toS."80

O conceito schlegeliano de história literária precisa ser dis­tinguido do conceito a que eu chamaria especificamente' 'român­tico": a visão baseada na idéia de pré-história, uma espécie dereservatório de temas, do qual deriva toda a literatura modernae a cujas glórias ela só se compara como uma fraca luz artificialse compara ao sol. Tal visão foi estimulada pelo novo estudo demitologia, religião comparada e filologia. Os irmãos GrimJll sãoos expoentes máximos, os primeiros a pôr em prática uma pes­quisa comparada da migração de contos de fada, lendas e sagas.Jakob Grimm acreditava que a poesia natural se compusera no

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140 LITERATURA COMPARADA O NOME E A NATUREZA DA LITERATURA COMPARADA 141

passado remoto e enevoado e viera-se deteriorando à medida quese distanciava da fonte divina da revelação. Seu patriotismo é pan­teutônico, mas seu gosto abarca qualquer poesia popular, ondequer que se encontrasse: velhos romances espanhóis, chansonsde geste francesas, epopéias heróicas sérvias, contos folclóricosárabes e indianos.81 Os Grimm estimularam, por toda parte, oestudo do que mais tarde se chamou Stoffgeschichte. Vale a pe­na ler o prefácio escrito por Richard Price para a nova ediçãoda History of English Poetry, de Warton (1824), para se ver co­mo a concepção mudou. Price defende a idéia de "literatura ge­ral" como um imenso tesouro de temas que se espalham, se mul­tiplicam e migram, de acordo com leis semelhantes às que se es­tabeleceram para a língua pela nova filologia comparada. Acre­dita que' 'a ficção popular é, em sua natureza, tradicional" e re­presenta uma sabedoria simbólica milenar.82 Na 'Inglaterra, es­tudiosos como Sir Francis Palgravee Thómas Wright dedicaram-sesistematicamente a esses estudos com grande erudição. Na Fran­ça, Claude Fauriel, que traduzira canções populares gregas, é umafigura semelhante, com a diferença de que aquilo que nos irmãosGrimm era um enevoado passado teutônico é rastreado por Fau­riel em sua própria terra natal: o sul da França, a Provença.

Por volta de 1850, a atmosfera mudou completamente. Asconcepções românticas caíram em descrédito, e ideais importa­dos das ciências naturais se tornaram vitoriosos, até na maneirade escrever história literária. Deve-se, no entanto, distinguir en­tre o que se poderia chamar "fatualismo", a enorme prolifera­ção da pesquisa de fatos ou de supostos fatos, e o "cientificis­mo", que apelava principalmente para o conceito de evolução bio­lógica e antevia um ideal de história literária em que se descobri­riam as leis da produção e da mudança literárias. A transiçãopode ser ilustrada de modo impressionante por L'Avenir de Iascience, de Renan, que volta os olhos para Herder, para a novamitologia e para o estudo da poesia primitiva. "O estudo com­parativo de literatura", afirma ele, demonstrou que Homero é umpoeta coletivo; pôs em relevo o seu' 'mitismo", a lenda primitivaque está por trás dele. O progresso da história literária se deveinteiramente à sua busca das origens e daí deriva sua atenção aliteraturas exóticas. O uso do método comparativo, esse' 'grandeinstrumento da crítica" é o momento decisivo.83 Ao mesmo tem­po, Renan está como que intoxicado de esperança no futuro da

ciência da filologia, que fixará a história da mente humana. Masele ainda é cauteloso (e mais cauteloso ficou quando mais velho)com respeito a quaisquer tentativas de estabelecer leis em litera­tura e em história, tais como buscaram Comte, Mill, Buckle emuitos outros, antes de Darwin ou Spencer.

A idéia de leis, de simetrias em literatura, retrocede à Anti­güidade e foi expressa sob outra forma em esquemas especulati­vos do século XVIII, porém se torna uma preocupação domi­nante com a vitória da filologia comparada, com sua idéia dedesep-volvimento, continuidade e derivação. O darwinismo e es­quemas filosóficos semelhantes, particularmente o de Spencer,deram novo ímpeto à idéia de evolução e gênero, concebidos combase na analogia a uma espécie biológica em história literária.84Na Alemanha, Moriz Haupt defendeu uma "poética compara­da", particularmente uma história natural da épica. Estudou odesenvolvimento analógico da épica na Grécia, na França, na Es­candinávia, na Alemanha, na Sérvia, e na Finlândia.85 Hauptinspirou Wilhelm Scherer, que imaginou a história literária co­mo uma morfologia de formas poéticas.86Muitas dessas idéiassurgiram de um círculo de Berlim em torno de'Steinthal, que fun­dou o Zeitschriftfür Volkerpsychologie em 1864. Tal círculo ser­viu de inspiração a Alexander Veselovsky,que, ao retomar à Rússiaem 1870, produziu um fluxo regular de estudos sobre a migraçãode temas e enredos, abrangendo todo o mundo ocidental e oriental,desde a mais remota Antigüidade até a literatura romântica. Elevisava a uma "poética histórica", uma história evolutiva univer­sal da poesia, uma abordagem coletiva que se aproximaria do idealde uma "história sem nomes".87 Na Inglaterra, a influência deSpencer se fez sentir. de maneira um tanto diferente. John Ad­dington Symonds aplicou uma analogia estritamente biológicaao drama elizabetano e à pintura italiana, e defendeu a "aplica­ção de princípios evolutivos" à arte e à literatura também teori­camente: cada gênero segue um curso predestinado de germina­ção, expansão, florescimento e apodrecimento. Deveríamos sercapazes de predizer o futuro da literatura.88 O livro de Posnett,que foi crucial para o estabelecimento da expressão "literaturacomparada", é outra aplicação do esquema spenceriano de umdesenvolvimento social da vida comunitária para a individual.Existem muitos livros, hoje esquecidos, alguns escritos por ;111

tores americanos, que seguem a mesma tendência. Be/!,innings (lI

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142 LITERATURA COMPARADA o NOME E A NATUREZA DA LITERATURA COMPARADA 1,11

Poetry, de Francis Gummere (1901)e The Evolution of Literatu­re, de A.S. Mackenzie (1911)podem servir como exemplos.

Na França, Ferdinand Brunetiere foi o teórico e praticanteda evolução. Tratava os gêneros como espécies biológicas e es­creveu histórias da crítica, do drama e da poesia lírica francesesde acordo com este esquema. Embora se limitasse a temas fran­ceses, sua teoria, logicamente, o levou a um conceito de literatu­ra universal e a uma defesa da literatura comparada. Quando daExposição Mundial de Paris, em 1900,organizou-se um Congressode Estudos Históricos, no qual se destinou toda uma seção (muitopouco concorrida) à "Histoire comparée des littératures". Bru~netiere a inaugurou com um discurso sobre "literatura européia",que invocava não somente o modelo dos irmãos Schlegele de Am­pere, mas também o de J.A. Symonds. Ao discurso de Brunetie­re seguiu-se o de Gaston Paris, o grande medievalista francês. 89

Ele expôs, num dramático choque de pontos de vista, a concep­ção mais antiga de literatura comparada - isto é, o conceito fol­clórico, a idéia da migração de temas e motivos pelo mundo to­do. Algum tempo mais tarde, este estudo ganhou novo impulsoa partir da pesquisa do folclore finlandês e se ampliou de modoa constituir um ramo do saber quase independente, relacionadoà etnologia e à antropologia. Em nosso país, é hoje raramenteconfundido com literatura comparada. Mas jornais literários maisantigos do século XIX são cheios desses tópicos, e nos países es­lavos "literatura comparada" freqüentemente significa simples­mente um tal estudo de temas e motivos internacionais.

Com o declínio do evolucionismo e com a crítica à sua apli­cação mecanicista lançada por Bergson, Croce e outros, e como predomínio do esteticismo e do impressionismo do fim do sé­culo XIX, que enfatizavam de novo o criador individual, a obrade arte em sua unicidade e a literatura altamente sofisticada, es­ses conceitos de literatura comparada foram ou abandonados ouempurrados para a margem dos estudos literários.

() que voltou à tona foi, de modo amplo, o fatualismo her­dado da tradição geral do empirismo e do positivismo, sustenta­do pelo ideal de objetividade científica e explicação causal. O em­preendimeIlto organizado de literatura comparada na França con­seguiu, principalmente, um enorme acúmulo de provas de rela­ções literárias, especialmente da história de reputações, os inter­mediários entre nações - viajantes, tradutores e propagandis-

tas. O que se presume, sem exame crítico, em tal pesquisa, 6 aexistência de um fato neutro que supostamente deve ser ligado,como por um fio, a outros fatos precedentes. Mas toda a COIl­cepção de uma "causa" em estudo literário é singularmente acrí­tica: ninguém jamais pôde demonstrar que uma obra de arte foi"causada" por outra, mesmo que seja possível acumular parale­los e semelhanças. Uma obra de arte posterior pode não ter sidopossível sem uma que a preceda, mas não se pode demonstrarque foi causada por ela. Todo o conceito de literatura nessas pes­quisas é externo e muitas vezes viciado por um nacionalismo es­treito: por um cômputo de riquezas culturais, um cálculo de cré­dito e débito em assuntos da mente.

Não sou o único a criticar a esterilidade desta concepção.Ainda assim, minha comunicação sobre "A Crise da LiteraturaComparada", proferida no segundo Congresso da Associação In­ternacional de Literatura Comparada, em Chapel Hill, em 1958,parece ter cristalizado essa oposição.90 Tal comunicação formu­lava as objeções ao fatualismo das teorias e das práticas: seu fra­casso em delinear um assunto e uma metodologia específica. Acomunicação suscitou infindáveis polêmicas e, temo eu, infindá­veis mal-entendidos.91 É especialmente lamentável a tentativa decriar um litígio entre uma concepção francesa de literatura com­parada e uma suposta concepção americana. É claro que eu nãoestava argumentando contra um país ou sequer contra uma es­cola local de estudiosos. Estava argumentando contra um méto­do, não por mim mesmo ou pelos Estados Unidos, nem tampoucocom argumentos novos e pessoais; simplesmente declarei o quese segue a partir de uma percepção da totalidade da literatura:que a distinção entre literatura comparada e literatura geral é ar­tificial e que pouco se pode realizar pelo método da explicaçãocausal, a não ser um retrocesso infinito. O que advogo, assim comomuitos outros, é um distanciamento dos conceitos mecanicistas,fatualistas, herdados do século XIX, em benefício da verdadeiracrítica. Crítica significa uma preocupação com valores e quali­dades, com uma compreensão de textos que incorpora sua histo­ricidade, e assim necessita da história da crítica para tal compreen­são, e, finalmente, significa uma perspectiva internacional quecontemple um ideal distante de história e erudição literária uni­versal. A literatura comparada por certo deseja superar precon­,'citos e provincianismos nacionais, mas disso não resulta ignorar

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OU minimizar a existência e a vitalidade das diferentes tradições 'nacionais. Precisamos nos acautelar contra escolhas falsas e des­necessárias: precisamos tanto da literatura nacional quanto dageral, precisamos tanto da história quanto da crítica literárias,e i'fecisamos da perspectiva ampla que somente a literatura com­parada pode oferecer.--

NOTAS

1 Henry IV, I, 2.90.2 SMITH, Gregory, ed. Elizabethan Critical Essays. Oxford, 1904, v. 2, p. 314.3 Tradução de G. Gregory. 2 vols. Londres, 1787, v. 1, p 113-114.4 Londres, 1774, voI. 1, p. iv.5 2~ ed., 2 vols. Londres, 1801, v. 1, p. 58.6 RUSSEL, G.W.E., ed. Letters. 2 vols. Londres, 1895, v. 1, p. 8.

7 Harper's Magazine, 73 (1886), p. 318.8 The Contemporary Review, 79 (1901), p. 870.9 Experiments in Education. Ithaca, N.Y. 1942, p. 75.

10 The Tatler, n? 197, 13 juI. 1710.11 HILL, G.E., ed. e POWELL L. F. rev. Life of Samuel Johnson. Oxford, 1934, v. 1,p.302.12 WÓLFFLIN, Eduard. Zeitschrift für lateinische Lexikographie, 5 (1888), p. 49.13 GROOS, René, ed. Paris, 1947, v. 2, p. 113:"Mais, dans l'éloquence, dans Ia poésie,dans Ia littérature, dans les livres de morale et d'agrément." Cf. v. 2, p. 132 e 145.

14 Comentado por Herder em suas Samtliche Werke. Berlim: Suphan, 1877,v. 1, p. 123.15 Turim, 1760; Paris, 1776;Glasgow, 1771, 1784. A ligação com Glasgow se deve ao fa­to de que Denina conheceu Lady Elizabeth Mackenzie, filha do Duque de Argyle, quan­do seu marido exerceu funções diplomáticas em Turim.16 Na página 6 do livro de Denina: "Non parleremo ('00) dei progressi delle scienze edelle arti, che propriamente non sono parte di letteratura (00.) aI buon gusto, ed alla elo­qucnza, vale a dire alla letteratura."17 Núpoles, 1779; Lucca, 1784.

IS WACHLER, Ludwig. Vorlesungen über die Geschichte der teutschen Nationallittera­lur, 1 ed. 1818,2 ed. 1834; KOBERSTEIN, A. Grundriss der Geschichte der deutschenNalionallittemlUl; 1827; GERVINUS, Georg Gottfried. Geschichle der poetischen Na­tionallileralllr tier Deutschen, 1835-1842, 5 v.; VILMAR, A. Vorlesungen über die Ges­chichte der delllschen Nationalliteratur, 1845;GOTSCHALL, R. Die deutsche National­literatur des /9. Jahrhuntierts, 1881.Este termo parece ter desaparecido depois, emborase deva atentar para KÜNNECKE, G. Bilderatlas zur Geschichte der deutschen Natio­nalliteratur, 1886.

19 Études sur l'anliquilé. Paris, 1846, p. 28: "J'ai peu d'estime pour le mot littérature.Ce mot me parait dénué de sens: il est éelos d'une dépravation intellectuelle"; p. 30: "quel-

que chose qui n'est ni Ia Philosophie, ni I'Histoire, ni l'Erudition, ni Ia Cdliqllc; jcne sais quoi de vague, d'insaisissable et d'élastique."

20 Critical Reflections on the Old English Dramatick Writers, Extracted from a Prc:/iJ­tory Discourse to the New Edition of Massinger's Works. Londres, 1761.

21 Carta do Dr. lohnson ao Rev. Dr. Horne, datada de 30 de abril de 1774. Catalogueof the Johnsonian Collection of R.B. Adams. Buffalo, 1921.22 "Romance" no original, referindo-se às narrativas medievais, sobretudo aos chama­dos "romances de cavalaria". [N.T.)23 BEATTIE, lames. Dissertations. Moral and Critical. Londres, 1783, p. 518.24 Sobre Dale, ver PALMER, D.l. The Rise of English Studies. Londres, 1965, p. 18 eseguintes.25 Londres, 1873. Ver The Unity of History. Cambridge, 1872, louvando o método com­parativo como "um estágio pelo menos tão grande e memorável como o renascimentoda sabedoria grega e latina' '.26 O trabalho só foi publicado em 1819, nas Oeuvres. Paris: Moland, 1877-85, v. 19, p.590-592: "Une connaissance des ouvrages de goílt, une teinture d'histoire, de poésie, d'élo­quence, de critique (...) aux objets qui ont de Ia beauté, à Ia poésie, à l'histoire bien écrite."27 Eléments. Paris, reimpressão de 1856, v. 2, p. 335: "La littérature est Ia connaissancedes belles lettres (... ) avec de l'esprit, du talent et du goílt, il peut produire des ouvragesingénieux sans aucune érudition et avec peu de littérature."

28 A Bibliotheque Nationale relaciona Leçons françaises de littérature et de morale, em2 volumes, de 1816,e Leçons latines de littérature et de morale, em 2 volumes, 1816.Le­çons anglaises de littérature et de morale, em 2 volumes, de 1817-1819,tem um outro co­autor, ChapsaI.29 Nova edição, em 4 volumes. Paris, 1873, v. 1, p. 2, 24; v. 2, p. 45; v. 1, p. 225.

30 Nova edição, em 2 volumes. Paris, 1875, v. 1, p. 187; v. 1, p. 1.

31 Segunda série, 1835, v. 13, ii, p. 238-262. Em versão revista introduzindo Études surl'antiquité (1840),Chasles não utiliza a expressão. VerPICHOIS, Claude. Philarete Chasleset Ia vie littéraire au temps du romantisme. Paris, 1965, v. 1, p. 483.32 Edição original de Marselha, 1830; reimpresso em Mélanges d'histoire littéraire. Pa­ris, 1867, v. 1, p. 3.33 Reimpresso em Nouveaux Lundis. 13 vols. Paris, 1870, v. 13, p. 183 e seguintes.

34 Samtliche Werke, Jubilaumsausgabe. 40 vols. Stuttgart, 1902-1907,v. 39, p. 137 e se­guintes. [vergleichend, forma de particípio presente, poderia ser traduzido, aproximada­mente, por "comparante" ou "que pode ser comparado". N. T.)

35 Resenha crítica de Sprachlehre, de Bernhardi, in Samtliche Werke, editadas por Boc­king, v. 12, p. 152.

36 Samtliche Uf!rke. 2~ ed. 15 vols. Viena, 1846, v. 8, p. 291, 318.37 Em uma seção intitulada "Grundzüge und Winke zur vergleichenden Literaturges­chichte des Dramas". Uma nova edição de Leipzig, em 1884,recebeu o nome de Die Poe­sie: Ihr Uf!senund ihre Formen mit Grundzügen der vergleichenden Literaturgeschichte.

38 Ver Á. Berczik. "Eine ungarische Konzeption der Weltliteratur (Hugo von Meltzls ver­gleichende Literaturtheorie)". Acta Literaria Academiae Scientiarum Hungaricae. 1962,v. 5, p. 287-293.39 A cátedra foi criada em 1861 e reservada ao poeta alemão Georg Herwegh, que ja­mais a ocupou.40 Sobranie sochinenii. 8 vols. São Petersburgo, 1913,v. 1, p. 18-29. Veselovsky já utili­za a expressão sravnitelnoe izuchenie (estudo comparativo) em 1868. Ver ibid., v. 16, p. I

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14h LITERATURA COMPARADA () NOME E A NATUREZA DA LITERATURA COMPARADA 1,17

I"sravnietelnoe literaturovedenie" significa, aproximadamente, "teoria literária compa- 'rada"; "srovnávací literatura" quer dizer "literatura comparada".) [N. T.)

41 "Über die Hauptperioden in der Geschichte der Dichtkunst". Gothaisches Magazinder Künste und Wissenschaften, 1776, v. 1,p. 21 e seguintes; p. 199e seguintes; uma rese­nha de Albert Lacroix, Histoire de I'influence de Shakespeare sur le théâtre français, inJahrbuch für romanische und englische Literatur, 1859, v. 1, p. 3.42 Ver nota 23, acima.

43 GOETHE. Werke. Jubilãumsausgabe, v. 38, p. 97, 137, 170, 278. Cf. a discussão ecoletânea de trechos. STRICH, Fritz. Goethe und die weltliteratur. Berna, 1946,p. 393-400.44 Werke. Jubilãumsausgabe, v. 3, p. 243. Cf., para o título, p. 373.45 Cf. BEIL, EIse. Zur Entwicklung des Begriffs der weltliteratur. Leipzig, 1915;BRANDT CORSTIUS, J. C. "De Ontwikkeling van het wereldliteratuur", De VlaamseGids,41, 1957, p. 582-600; BENDER, Helmut e MELZER, Ulrich, "Zur Geschichte desBegriiffes 'Weltliteratur"', Saeculum, 9, 1958, p. 113-122.

46 La Littérature eomparée. Paris: Colin, 1931,p. 57: 'Tobject de Ia littérature compa­rée est essentieIlement d' étudier les oeuvres des diverses littératures dans leurs rapportsles unes avec les autres."

47 La Littérature eomparée. Paris. PU.E, 1951,p. 7: "L'histoire des relations littérairesinternationales.' '

48 Ibid. p. 5: "Une branche de I'historie littéraire: eIle est I'étude des relations spirituel­les internationales, des rapports de fait qui ont existé entre Byron et Pouchkine, Goetheet Carlyle, Walter Scott et Vigny, entre les ouvres, les inspirations, voire les vies d'écri­vains appartenant à plusieurs littératures."

49 Problemi ed orientamenti: Notizie introduttive. Milão: Momigliano 1948,p. 430: "Unascienza moderna rivolta appunto ad indagare i problemi connessi cogli influssi esercitatireciprocamente daIle varie letterature."

50 "Literature comparée: Le Mot et Ia chose". Revue de littérature eomparée, 1. 1921,p 1-29; p. 7: "Une rencontre réeIle (... ) crée une dépendance."

51 Van Tieghem. La littérature comparée, p. 170: "rapports binaires - entre deux élé­ments seulement"; p. 174: "Ies faits communs à plusieurs littératures."

52 STALLKNECHT, N. P. e FRENZ H., ed. Comparative Literature: Method and Pers­peetive, Carbondale: Southern Illinois Univ. Press, 1961, p. 3.53 GAYLEY, Charles M. e SCOTT, Fred N. An Introduetion to the Methods and Mate­riaIs of Literary Critieism. Boston, 1899, p. 248, resumindo Posnett.

54 POSNETT, H.M. Comparative Literature. Londres, 1886, p. 86.

" "The Impact of Nationalism and Cosmopolitism on Comparative Literature from theIRRO'sto the Post World War 11Period." In Proeeedings ofthe Fourth Congress of theII/Iemlllional Comparative Literature Assoeiation. Haia: Mouton, 1966, p. 391.

,t, '!'lI('Rise r~lEnglish Literary History. Chapel Hill, 1941;nova ed., Nova York, 1966.

" Sobre I,ongino, ver GILBERT, AIlan H. Literary Critieism: Plato to Dryden. NovaYork, 1')40, p. 157, 162.

5H Ik awnlo ('()Ill ATKINS, J.W.H. Literary Criticism in Antiquity. Londres, 1924, v.2, p. IR7, 111. () Iralado sobre Filocteto é atribuído ou a Dio de Prusa (40-120 d.C.) ouaDio CrisÓSlonll1.

59 Reeherches tlr' Ia "''11l/ce,7. Paris, 1643, p. xi.60 Ver nota 2, acinla.

61 Elizabethan Criliml h\'says, v. 2, p. 359, 372.

62 SPEDDING, Ellis ct alii, ed. 11iorks.14 vols. Londres, 1857, v. 3, p. 329.

(,J Ibid, v. 1, p. 502-04.64 Cf. FLÜGEL, Ewald. "Bacon's Historia Literaria". In Anglia, 21 (IR')'), p. 2S') HR.65 Vi a edição de Leipzig e Frankfurt, de 1710. Depois do trecho de Bacon, de indnideclarações semelhantes de Cristopher Mylius, De scribenda universitatis historia, e deG.J. Vossius, De philologia.66 Para comentários sobre Warton, ver GETTO, Giovanni. Storia delle storie letterarie.Milão, 1942, e o meu Rise of English Literary History.

67 JAUSS, H.R., ed. Munique, 1964, p. 256 e seguintes, 269 e seguintes, 279.6S Cf. o meu Rise of English Literary History, p. 139 e 180 e seguintes.69 Ver nota 22, acima [N.T.).70 Cf. o meu History of Modern Criticism. 4 vols. New Haven, Yale Univ. Press, 1955,v. 1, p. 131-132.71 Ver KRISTELLER, Paul Oskar. "The Modern System of the Arts". RenaissanceThought. 3 vols. Nova York, 1965, v. 2, p. 163-227.72 Sobre estética e gosto, ver, além de histórias gerais de estética, BAUMLER, Alfred.Kant's Kritik der Urteilskraft. HaIle, 1923, v. 1, e a introdução de SPINGARN, J.E. aCritical Essays of the Seventeenth Century. 3 vols. Oxford, 1908, V. 1.73 Sãmtliche werke, v. 1, p. 294: "Den Ursprung, das Wachstum, die Veranderungen undden FalI derselben nebst dem verschiedenen Stil der Gegenden, Zeiten und Dichter lehren."74 Ibid., p. 266: "Scythen und Slaven, Wenden und Bõhmen, Russen, Schweden und Po­len."

75 Lessings Geist aus seinen Schriften. 1804, v. I, p. 13: "ein grosses, durchaus zusam­menhangendes und gleich organisirtes, in ihrer Einheit viele Kunstwelten umfassendesGanzes und einiges Kunstwerk."76 Sãmtliehe Werke, v. 1, p. 11: "De Inbegriff aIler inteIlectueIlen Fahigkeiten und Her­vorbringungen einer Nation."77 Vorlesungen über schone Literatur und Kunst. Stuttgart; Jakob Minor, 1884.78 KÓRNER, Josef. Die Botschaft der deutsehen Romantik an Europa. Augsburgo, 1929.

79 Works. Edição do centenário. Londres, 1896-1899;Essays, v. 2, p. 341-42; UnfinishedHistory of German Literature. Lexington: Hill Shine, 1951, p. 6.

80 Histoire de Ia littérature anglaise. 2? ed. 5 vols. Paris, 1866,v. 1, p. xvii: "Si eIles four­nissent des documents, c'est qu'eIles sont des monuments."

81 Ver o meu History of Modern Criticism, V. 2, p. 283 e seguintes.

82 Reimpresso em WARTON, History of English Poetry. 4 vols. Londres: Hazlitt, 1871,V. 1, p. 32-33.

83 Paris, 1890,p. 297: "L'étude comparée des littératures"; p. 296: "Ie grand instrumentde Ia critique".

84 Cf. o meu "The Concept of Evolution in Literary History". Coneepts of Criticism.New Haven: Yale Univ. Press, 1963, p. 37-53.

85 Para a resenha crítica de 1835, ver BEWER, Christian. Moriz Haupt aIs akademis­eher Lehrer. Berlim, 1879, p. 323; ver também SCHERER, W. Kleine Schriften. 2 vols.Berlim: Burdach & Schmidt, 1893, V. 1, p. 120, 123, 130.

86 Sobre Scherer, especialmente sobre sua Poetik, de 1888, ver o meu History of Mo­dern Criticism. 1965, V. 4, p. 297 e seguintes.

87 Sobre Veselovsky,ver ibid., p. 278-280, e ZHIRMUNSKY, V. Introdução a Istori(,/I('skaya poetika. Leningrado, 1940.XH Vero meu History, v. 4, p. 400-07. Cf. SYMONDS, J.A. "On the Applieal ion "I" I:v"

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14H LITERATURA COMPARADA

lulionary Principies to Art and Literature". Essays Speculative and Suggestive. 2 vols.Londres, 1890, v. 1, p. 52-83.

H9 "La Littérature européenne". In Annales internationales d'histoire, Congres de Pa­ris, 1900. Paris, 1901, v. 6, p. 5-28; "Résumé de l'allocution de M. Gaston Paris". Ibid,p. 39-41.

90 Reimpresso no meu Concepts o/ Criticism, p. 282-295.

91 Discuto alguns desses mal-entendidos em "Comparative Literature Today". In Com­parative Literature, 17 (1965), p. 325-337.

OS MÉTODOS DA SOCIOLOGIA LITERÁRIA*

Robert Escarpit

A literatura comparada é um dos mais eficazes esforços dos his­toriadores e críticos literários das duas últimas gerações para selibertarem das esmagadoras determinações doutrinais impostasa suas pesquisas por mestres como Taine ou Lanson, na França,De Sanctis ou Croce, na Itália, para se libertarem sobretudo daalternativa em que os encerram os dois postulados do formalis­mo· e do historicismo.

No entanto, é visível que os próprios comparatistas conti­nuam parcialmente prisioneiros da alternativa. Minha intençãoé propor aqui a sociologia da literatura não como um novo mé­todo universal de explicação ou de exposição, mas como uma es­pécie de ciência auxiliar incumbida de limpar e iluminar uma partedo terreno.

A antinomia formalismo-historicismo data do momento emque por um lado a literatura se desligou como arte autônoma da­quilo que outrora chamávamos de letras, e hoje chamamos decultura, para ser percebida como fato estético formal, e de outrolado a história deixou de ser descritiva para se tornar explicati­va, deixou de se ater aos acontecimentos políticos para englobarem tentativas de interpretação geral todos os fatos de civilização,inclusive, precisamente, os fatos literários. Este momento podefixar-se nos últimos anos do século XVIII. A antinomia já existeimplicitamente no espírito dos teóricos do grupo de Coppet (tantoentre os Schlegel como em Madame de Stael), que foram, incon­testavelmente, os fundadores da história literária moderna.

* ESCARPIT, Robert. Les méthodes de Ia sociologie littéraire. In: FRIEDERICH, Wcr­ncr, ed. Comparative Literature: Proceedings o/the Second Congress o/the TCLA. Cha­pel Hill: Univ. of North Carolina Press, 1959, p. 142-49.

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"i() LITERATURA COMPARADA OS MÉTODOS DA SOCIOLOGIA LITERÁRIA ''''

Ora, desde aquele momento, o próprio título da grande obraleórica de Madame de Stael indicava a solução sociológica: DeIa littérature considerée dans ses relations avec les institutions so­

dales. É claro, na verdade, que os traços específicos do fenôme­no literário se situam no seu aspecto social. É por suas relaçõescom a vida coletiva (objeto de estudo da sociologia literária) queele se distingue fundamentalmente dos outros fenômenos estéti­cos ou históricos.

De fato, enquanto as outras artes apelam para meios de ex­pressão universais por natureza (embora sua utilização, sua res­sonância possam variar consideravelmente, de acordo com o con­texto social), como sons, formas, cores, a literatura supõe de iní­cio o emprego de uma linguagem inteligível, isto é, de um siste­ma de signos que são formas e sons, mas que, para uma coletivi­dade bem determinada, transcendem este simples valor formale adquirem um valor representativo inteiramente novo e ligadoà própria existência desta coletividade.

Por outro lado, se, como todo fato histórico, o fato literárioé uma criação única e insubstituível, determinada pelo encontrode fatos anteriores e de vontades individuais, ele possui a parti­cularidade de não poder existir como tal sem ser posto livremen­te em circulação numa coletividade mais ou menos grande. Ouseja, sem a publicação (que esta se faça por meio de repetiçãooral, cópia, impressão ou qualquer outro processo), o fato lite­rário não existe como tal, a obra é apenas um fato histórico en­tre outros, e não tem acesso à existência literária.

Devido à escassez de tempo, não poderei citar outras provasdo caráter especificamente sociológico da literatura, mas bastalembrar que este caráter nunca foi de todo ignorado. Taine o con­siderava em sua tripla determinação do fato literário pela raça,o meio c o momento. Por outro lado, certos formalistas russos,COlllO'Ibmachevski, afirmaram com ênfase a necessidade de umasociologia ela literatura.

Mas tanto num como noutro caso, a preocupação socioló­gica aparccia como subordinada, sujeita à doutrina fundamen­tal, quer se Iralasse do determinismo tainiano ou do formalismoestilíslieo. N;I verdade, o papel da sociologia literária deve ser aomesmo tempo IlIais fccundo e mais modesto. Ela deve manter-seà distância dos prohklllas fundamentais a respeito da naturezado fato literário, portanlo dos postulados e doutrinas destina-

dos a penetrar no segredo desta natureza. Em compcnsaç;\ll,pode e deve elucidar as circunstâncias sociais em que se prodll".o fato literário, aclarando-o assim de seu ponto de vista espccífico.

Social, o fato literário o é em primeiro lugar e principalmenleem razão de seu ponto de chegada, a leitura, ou, para empregaruma linguagem mais geral, o consumo. Ele é também social, masnum sentido mais estreito e mais técnico, ~ível dll distribuiçãoe da.circulação das obras. Enfim, é social, mas de um modo in­finitamente delicado e discreto, .d)}ível da produção das obras,domínio por definição secreto e individual.

Portanto, é preciso considerar primeiro todo um conjuntode métodos para o estudo sobre o consumo literário: o que selê e como se lê? Enquanto se tratar do presente, pode-se lançarmão dos métodos objetivos da estatística e dos métodos subjeti­vos da investigação. Na verdade, as bases estatísticas são quaseinexistentes, salvo no que concerne às leituras de bibliotecas, pa­ra as quais elas continuam bem insuficientes. Uma de minhas alu­nas acaba de proceder a uma verificação minuciosa em três dassete bibliotecas públicas de Bordeaux, e o resultado mais clarode suas pesquisas foi haver posto em evidência o fato de que ur­ge instalar-se em toda parte um sistema moderno e universal deinscrição e de marcação permitindo acompanhar de modo satis­fatório as variações estatísticas do comportamento dos leitoresem função do sexo, da faixa etária, da profissão, da renda, etc.Atualmente, meu colega Gilbert Mury está aperfeiçoando umatécnica: ela permitirá proceder-se a enquêtes estatísticas junto àslivrarias; logo, alcançará não o público que faz empréstimo, esim o que compra o livro. Esta técnica tem por modelo a quese empregou nas igrejas da França para estudar a freqüência dosfiéis.

Mas a estatística só poderá dar resultados brutos, e somen­te a enquête permitirá interpretá-Ias. Nada é mais árduo que umainvestigação sobre as leituras, pois os pudores e as ilusões queenvolvem o comportamento cultural são barreiras dificilmente pe­netráveis: o próprio Dr. Kinsey acharia mais árduo estudar osreading habits do que os sexual habits. Portanto, será necessárioagircom muita paciência e tentar descobrir métodos de interro­gatório que permitam desmascarar as mentiras voluntárias 011 unoque, prova-o a experiência, são cada vez mais numerosas ú mcdi

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152 LITERATURA COMPARADA OS MÉTODOS DA SOCIOLOGIA LITERÁRIA 1\ \

da que aumenta o nível cultural do interessado. O único meiode vencer estas dificuldades serão campanhas de interrogatóriosconcernindo não só à leitura, mas a todas as atividades de lazer,num território bem vasto e com critérios bem uniformes, a fimde permitirem cotejos indispensáveis. Na França, a Liga do En­sino está procedendo agora a uma enquête deste tipo, cuja ex­ploração exigirá, por certo, vários anos.

A partir do momento em que se trata do passado, o proble­ma se complica ao extremo, pois não possuímos estatísticas e nãopodemos proceder a investigações retrospectivas. A imensa mas­sa das leituras populares, em especial, negligenciada pelos letra­dos contemporâneos, quase não deixou vestígio. Se é relativamentefácil estabelecer a Belesenheit de um indivíduo com o auxílio detestemunhos exteriores ou interiores, não se pode fazer o mesmoem se tratando de multidões anônimas cujas palavras ou escritosjá foram esquecidos, e das quais os próprios livros, desprovidosde valor comercial, desapareceram há muito tempo. O único re­curso é reconstituir indiretamente o quadro recorrendo ao esta­do da instrução, aos jornais, aos arquivos dos pequenos tipógra­fos e livreiros que alimentavam as prateleiras das pequenas livra­rias ou o cesto do vendedor ambulante. Às vezes, com um poucode sorte, pode-se até chegar a descobrir uma obra como a de Char­les Nisard sobre a Littérature de colportage;! infelizmente trata­se de exceções.

Assim, com infinita paciência, chegaremos a restituir a fi­sionomia desse leitor anônimo, desse common reader. Quantoa isto, o livro admirável de Richard D. Altick, The English Com­mon Reader, A Social History of the Mass Reading Public,/800-/900, publicado em Chicago em 1957, constitui um exem­plo c um modelo. Sem dúvida se aperfeiçoarão ainda os méto­dos cmpregados por Altick, mas não se pode negar que tenhaabcrto um caminho. Urge que outros pesquisadores lhe sigam ocxclllplo.

I)eixo dc lado os problemas propostos pela sociologia da dis­tribui<,:úoc da drculação do livro. Neste domínio, poderemos, comdiscernimclllo, aplicar à edição, à livraria e à biblioteconomia mé­todos inspirados nos que servem ao estudo dos mercados. Preci­samos, em espcdal, o mais rápido possível, de uma classificaçãodos pontos de vcnda ou de empréstimo do livro, de acordo comseu status econômico, vizinhança, clientela, etc. Nada disto é im-

possível se ao menos os industriais, comerciantes e rcspollsúveispelo livro entenderem que lhes interessa conhecer melhor o passado histórico e social mais remoto de sua própria proriss;Ú).

O fenômeno do sucesso perderá assim, finalmente, seu irri­tante mistério. Embora sua irrupção tenha que permanecer im­previsível, o mecanismo do best-seller tem leis que é preciso elu­cidar. Graças à excepcional compreensão de um editor, o senhorHassenforder, na França, pôde recentemente analisar a progres­são cronológica e topográfica das vendas de três livros de tipodiferente. This análises têm de multiplicar-se antes de se chegara conclusões.

Será também de especial importância identificar o quedenomino os circuitos de distribuição. Atualmente, quase novedécimos do que em geral se chama de literatura são distribuí­dos, nos países ocidentais, somente a uma minoria de letradosou semi-Ietrados. Apenas esta minoria exerce uma ação reflexasobre os escritores e os editores. As massas se sujeitam à litera­tura que lhes é concedida por meios de difusão menos nobresque o livro: revistas, folhetos, estórias em quadrinhos, cinema,rádio, televisão. É impossível perceber a totalidade do fenôme­no literário sem levar em conta este fato. É impossível perceberos aspectos sociais da história literária sem estender ao passadoo estudo da participação das massas não letradas na distribui­ção das leituras.

Com relação a isto, um trabalho de fôlego, e que só poderiaser coletivo, consistiria em refazer a história da literaturareintegrando-nos, para cada ano, no contexto cronológico, exa­minando que autores, que obras eram realmente lidos, por quem,

:lli em que condições. .Obtém-se deste modo um quadro totalmente diverso do que

nos oferecea perspectiva histórica. E assim chego ao terceiro pontode minha exposição, a aplicação do método sociológico à pro­dução literária. É este ponto que vem sendo objeto de minhaspesquisas nos últimos cinco anos. Encaminhei-me para ele cons­tatando justamente o desacordo existente entre a imagem que umcontemporâneo cria para si mesmo da produção literária e a quese fixa quase definitivamente desde que o recuo ultrapassa unstrinta anos após a morte de cada escritor. Neste trabalho fui oricn­tado pelas interessantíssimas pesquisas do psicólogo americano

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Harvey C. Lehman exatamente como foram publicadas em TheScientifie Monthly, pouco antes da Segunda Guerra Mundial.

Assim consegui chegar à noção de uma "população literá­ria" de escritores definidos historicamente em relação com as so­ciedades e instituições que lhes permitiram, precisamente, ser es­critores. Esta população literária está sujeita às mesmas leis de­mográficas de qualquer população, mas possui ainda certo nú­mero de caracteres específicos.

Na comunicação que fiz em 1954, em Oxford, por ocasiãodo VI Congresso da Federação Internacional de Línguas e Lite­raturas Modernas, eu havia esboçado o método estatístico do qualpretendia servir-me para estudar esta população. Depois retifi­quei certas hipóteses arriscadas, e aperfeiçoei meu método recor­rendo sobretudo à técnica dos cartões perfurados. Até agora sóme foi possível estudar a população literária francesa, e algunsdos primeiros resultados obtidos foram publicados este ano emmeu pequeno compêndio de Sociologie de Ia Littérature. Agoraestá em curso o exame da população literária inglesa.

Uma das conclusões que desde já se podem tirar de tais pes­quisas é que se impõe revisar o conceito metodológico de gera­ção literária, que foi, de modo extremamente sumário, assimila­do ao de geração biológica. Propus substituí-Io pelo conceito deequipe. A equipe se constitui e se fixa em torno de uma institui­ção de que a Academia Francesa é o tipo ideal no século XVII,em geral graças a um novo reino, a uma revolução, a um finalde guerra.

Sendo feita esta constatação, é preciso esclarecê-Ia estudan­do de que modo estas grandes desordens institucionais modifi­clm a situação do escritor, donde a necessidade de fazer a histó­ria econômico-social da produção literária. Vale dizer que é pre­ciso se dedicar a enquête sobre a origem geográfica, o círculo fa­m ilia r, a formação cultural, os recursos financeiros dos escrito­res. Iksla maneira será possível mostrar, por exemplo, como fe­IIÔllll'II0S I;ú) f ipicamente contemporâneos quanto a aparição naInglalcrra, por volta de 1740, do romance, do editor, do homemde lei ras, l'sl {lO ligados à profunda revolução da economia e dasociedade iIIgll's;1.

Restarú elll:io cxaminar o fenômeno que chamo de "traiçãocriadora": é a COIIStIIh;;IO do personagem histórico de um escri­tor pelos públicos sllccssivos que lhe utilizam as obras de modo

insuspeitado (e freqüentem ente insuspeitável) pelo próprio ;11I­

tor. Com efeito, à criação literária original, ato criador indivi­dual que minha análise sociológica não pretende explicar em ne­nhum nível, se sobrepõe uma nova criação mais ou menos rica,mais ou menos prolongada, que é a contribuição dos públicosnos quais a obra tem curso sucessivamente, sem que o autor otenha querido ou previsto. É, em suma, uma nova maneira deconsiderar o clássico problema comparatista da "fortuna" de umescritor ou de uma obra numa época ou num país diferentes dosseus de origem.

Este estudo propõe problemas de psicologia social, especial­mente no que tange às motivações, aos tabus, às conveniências.Propõe problemas de semântica, de pedagogia, de moral. Por­tanto, não se deve negar que está crivado de dificuldades. Maso resultado justifica o esforço que se fará.

Na verdade, só assim pode-se esperar vencer o problema fun­damental de toda a literatura comparada: o do desacordo entreduas coletividades literárias - quer se trate de tradução, de in­fluência, de fortuna ou de miragem. Será evitado o erro meto­dológico que julgo ser a causa de todas as nossas hesitações, detodas as nossas querelas: aquele que consiste em partir de umavisão pessoal das obras e dos escritores, de uma visão cronológi­ca e socialmente determinada. Não podemos falar normalmenteda influência ou da sorte de Shakespeare, pois nosso Shakespea­re já é uma reconstrução, em que a contribuição de públicos an­teriores a nós, assim como a daquele ao qual pertencemos, é pro­vavelmente superior à do Shakespeare original.

O conjunto de métodos coordenados que proponho com onome de sociologia d~ literatura tende a evitar este obstáculo, ten-

'~ tando reconstituir primeiro em seus aspectos estáticos bem co­mo em seus aspectos dinâmicos os contextos sociais nos quaisnasceram e viveram os fatos literários. Há que lembrar semprede que um fato literário não é simplesmente uma obra, e sim umhomem que viveu em certas circunstâncias, tendo uma obra ser­vido como traço de união entre este homem e um certo públicopor meio de uma técnica, e enfim uma série mais ou menos lon­ga, um conjunto mais ou menos vasto de públicos sobressalentesque deram a esta obra uma verdadeira colaboração, seja enrique­cendo-a, seja empobrecendo-a, seja, o que constitui o caso maisfreqüente, relegando-a ao esquecimento.

154 LITERATURA COMPARADA OS MÉTODOS DA SOCIOLOGIA LITERÁRIA I""

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15(, LITERATURA COMPARADA

Não se trata aqui, repito-o para terminar, de propor uma novaLiteraturwissenschaft, uma nova ciência explicativa da literatu­ra, e sim, no máximo e com toda modéstia, uma ciência auxiliarda história literária.

NOTA

1 São obras populares, difundidas por vendedores ambulantes (do séc. XVI ao séc.XIX).

A ESTÉTICA DO ESTUDODE INFLUÊNCIAS EM LITERATURA

COMPARADA*

Claudio Guillén

Aquilo que Brunetiere chamou de "le champs presque infini deIa littérature comparée"l evidentemente lida não com um, mascom muitos métodos, já que examina uma vasta gama de fenô­menos, de muitos pontos de vista e não de apenas um. O carátertradicionalmente plural tanto dos assuntos quanto dos objetivosdo comparatista torna uma discussão metodológica, do tipo queserá aqui conduzido, tão necessária quanto pouco convidativa.Será que esta variedade, como já foi sugerido, expressa a proxi­midade do campo com a complexa tessitura da história literária,ou da própria história,2 o que é, em última análise, uma quali­dade? Este pode muito bem ser o caso. Mas antes que a hetero­geneidade dos estudos comparativos seja avaliada, é indispensá­vel que ela seja mais uma vez examinada e compreendida.

Há algum tempo Hemi Peyre sugeriu a necessidade de rea­valiar a noção de influência literária,3 e é possível que uma con­sideração deste problema nos possa fornecer uma abordagem útilà área dos estudos comparativos ou um método que permita ma­pear suas várias províqcias. O conteúdo de meu trabalho, por-

'it.'tanto,será dedicado a uma análise preliminar do conceito de in­fluência.

Qualquer teoria sobre este assunto implica uma compreen­são, consciente ou não, da natureza do ato criativo em arte. Qualera a teoria estética subjacente ao trabalho dos antigos pratican­tes de Literatura Comparada - autores como Fernand Baldens­perger e seus seguidores, a quem devemos tanto e sobre cuja vi-

* GUILLÉN, Claudio. The Aesthetics of Influence Studies in Comparative Literaturc.In: FRIEDERICH, Werner, ed. Comparative Literature: Proceedings o/the Second CIII1­

gress o/ the ICLA. Chapel Hill: Univ. of North Carolina Press, 1959, p. 175-92.

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I)~ LITERATURA COMPARADA i\ HSTnTICA DO ESTUDO DE INFLUÊNCIAS ... I,')

são somos levados naturalmente a refletir? Só posso responder .a essa questão brevemente e grosso modo:4 referindo-me a cer­tas idéias que prevaleceram na França e que foram adotadas emoutros lugares durante o último quartel do século XIX. O pen­samento de Taine continua sendo o exemplo mais representativodesse clima intelectual, como já foi sugerido por L.F. Benedettoem sua concisa definição: "Letteratura comparata, Storia gene­rale della letteratura: due aspirazioni romantiche rifiorite in unclima tainiano."5

A interpretação que Taine deu ao ato criativo não é tão ex­plícita quanto sua visão da natureza da arte ou da relação entreum trabalho artístico e as pessoas ou o ambiente que o produzi­ram; indicar um ponto de partida e um resultado final, uma causae um produto, não é o mesmo que mostrar como a distância en­tre os dois é eliminada, ou seja, questionar o próprio processode criação. Sabemos que no sistema de Taine cada obra de arteé determinadaporurnél célllséle (l~y~~er.explicada por ela; mas,repeHmos~iii~ícafque A.%ê()ntrolaB Ilão é o mesmo que mostàrcomo o artista foi de A a B. Contudo, esta própria falta de ênfa­se revela a crença de que a intervenção do artista não é tão radi­cal, tão absolutamente inventiva, quanto o termo "criação" po­de levar a pensar. Que um "coeficiente de criação" seja um co­rolário da teoria de Taine se torna claro pelo seu atalho metafísi­co favorito - o atalho biológico: sua crítica artística é "elle-mêmeune sorte de botanique appliquée, non aux plantes, mais aux oeu­

vres humaines' '.6 Os .ev~Ilt9~""~~J2!Ittll"él!§.§~(),"c()rnooseventosfí­sicos, baseados noprindpio da~()Ils~rv(lç~oda matéria, da tràris~mutação e ré()[$atlização <.l~çertoselenientos iniciais em produ­fos diferentementeproporciollétdos. As§im, a criação de um poemaou de uma pintura é rigorosamente paralela ao processo de trans­formação química responsável pelo crescimento de uma planta.

'TIlÍneestava tão ocupado corrias causas não-artísticas da arteque fendia a subestimar a importância das causas artísticas, ha­bitualmente chamadas de influências. A arte imita diretamentea natme'.a e apenas indiretamente a arte. Quando se achava diantede um grupo de pintores tão coerentes quanto os flamengos, elepreferia aponfar as formas de existência nacionais ou as condi­ções históricas por eles compartilhadas do que observar a traje­tória de influências esfritamente pictóricas. Restou, contudo, aoscomparatistas tentar nll1areconciliação entre, de um lado, a abor-

dagem de Taine da obra de arte como documento e um en foquemais substancial da literatura pela literatura e, por outro lado,entre a forte ênfase dada por ele à psicologia nacional e às aspi­rações cosmopolitas e sintéticas da idade romântica anterior?(duas aspirações que, para parafrasear Benedetto, compõem aprincipal motivação da Literatura Comparada). A contribuiçãode Joseph Texte - o fundador da Escola Francesa de LiteraturaComparada e uma mente superior - é claramente representati­va dessa fase de transição.

A confiança de Joseph Texte na idéia de génie des peuplese na analogia biológica dominava seu pensamento sobre influên­cias internacionais quando da publicação de seu Jean-JacquesRousseau et les origines du cosmopolitisme littéraire, em 1895,e dos Études de littérature européenne, em 1898. A posterior con­centração da literatura comparada nas influências de uma naçãosobre outra, enquanto negligenciava fenômenos similares dentrode um mesmo país, deveu-se principalmente à fusão anterior de

dois conceitos - o da crença romântica nas originalidades na­cionais e o da biologia"evolutiva do tempo de Taine e Brunetiere."Pour qu'il y ait lieu à des études du geme de celles dont nousparIons" - explicou Taine - "il faut en effet qu'une littératuresoit conçue comme l'expression d'un état social déterminé, tri­bu, clan ou nation, dont elle représente lesotraditions, le génieet les espérances ... II faut, en un mot, qu'elle constitue un genrebien determiné dans Ia grande espece de Ia littérature de l'huma­nité".8 Assim, cada literatura individual era vista como um ti­po de subespécie e a Literatura Companlda cOill()().estudo deinfluências recíprocas e contatos entre essas subespécies, ou desua evolução e mutaçõe.s: "C'est qu'en effet, pas pltis qU'un or-

\sganisme animal, une littérature ou une nation ne grandissent iso­lées des nations et des littératures voisines. L'étude d'un être vi­vant est, en grande partie, l'étude des relations que l'unissent auxêtres voisins et des influences de tous gemes qui nous envelop­pent comme un réseau invisible."9

A abordagem biológica e evolucionista de Texte, para retor­narmos a nosso tópico principal, levou-o a um conceito de cria­ção, ainda que implícito, similar ao de Taine. Na verdade, ele ti­nha os dons de um crítico psicológico. E o que poderíamos cha­mar de "conceito de transmissão" nunca é tão claro como quandoa crítica tenta lidar com os estados mentais de um autor e com

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160 LITERATURA COMPARADA A ESTÉTICA DO ESTUDO DE INFLUÊNCIAS ... 11.1

suas obras ao mesmo tempo, ou quando quer mostrar como asubstância dos primeiros é incorporada às segundas. Em seu en­saio sobre Wordsworth, por exemplo, Texte está interessado so­bretudo em indagar como uma poesia feliz pode ser escrita poralguém que não o seja; e em seu ensaio sobre Aurora Leigh querdemonstrar como a autora, Elizabeth Barrett Browning, " ... s'yest revelée toute entiere."1OA idéia de transmissão., .implícita nes­sa crítica biográfica, simplesmente excluià questão que será centralneste trabalho: quando falamos de influências sobre um escri­tQI, estanlOSfazendo uma afirmação psicológica ou uma afirma­ção literária (ou seja, estamos investigando fatos biográficos ouobras artísticas)? A esta pergunta, o crítico psicológico respon­deria que estados mentais e obras de arte não são apenas indivi­síveis, mas são também dois estágios de um processo ininterrup­to de reorganização formal; uma vez que a obra de arte, para re­lembrar a definição de Taine, " ...a pour but de manifester quel­que caractere essentiel ou saillant..., plus clairement et plus com­pletement que ne le font les objets réels, ...en employant un en­semble de parties liées, dont elle modifie systématiquement lesrapports" (p. 47).

~ A idéia de influências do século XIX surge desta noção deliteratura como o produto de uma reorganização direta da expe­riência humana elll.arte. Tudo se passou como se os estudiososda literatura simplesmente mudassem seu objetivo sem alterarema visão do processo criativo que havia sido expressada por histo­riadores e filósofos sociais. Esses estudiosos procuravam causasliterárias em vez de causas humanas - uma decorrência natu­ral, já que os dois tipos de fenômenos eram, em sua opinião, pra­ticamente intercambiáveis. Um examinava o fato de que a obraliterária transmite não apenas a substância da experiência, masa experiência de obras literárias anteriores. A imagem etimológi­ca de .f7uxo (fluere) foi usada para dizer que uma influência re­conhece a passagem de uma estrutura ou matéria eomum de umpoellla para outro.

( '011I0 o objetivo deste trabalho é antes metodológico do quehistórico, núo posso fazer justiça à evolução da teoria literáriadesde a época de Thine. Meus exemplos não pretendem ser exaus­tivos, mas develll servir para discutir uma visão teórica e resumirum ponto de visla pertencente a uma grande área da crítica con­temporânea. É sul"icienteindicar, portanto, uma abordagem que,

1\.

além de ser representativa, tenha o mérito de fornecer ullla ViS;IOde nosso problema inteiramente diferente.

A criação artística, de acordo com esse ponto de vista, deveser encontrada em algum ponto entre dois extremos: o processode transmissão e reorganização acima mencionado; e, no outroextremo, a idéia basicamente religiosa de criação absoluta (ou crea­tio ex nihilo). Nenhuma das duas crenças capta a natureza pecu­liar da arte. A primeira parece ser baseada numa analogia bioló­gica insatisfatória. A emergência de uma obra de arte não é com­parável ao aparecimento de um novo membro de uma espécie,como apenas uma variação daquela espécie,ou ao desdobramentogradual de element.os.embriônicos, .ou à simples mutação de es'.­trutura - o que faria supor uma separação de conteúdo e for­ma. A vida, ou o biológico, termina precisamente onde a artecomeça, a fim de dar lugar a uma entidade inorgânica dotadacom qualidades estéticas capazes, por sua vez, de estimular umtipo de experiência que é vital, mas que tem que ser distingui dacom rigor das outras formas de vida. Em relação àquela última- criação absoluta - parece ser uma necessidade da mente enão um fato - uma idéia-limite ªqllal outras .idéias elecriação

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se devem provavelmente referir. 11Criação, antes de tudo, é umtermo particularmente adaptável à arte, desde que se exclua deletanto o extremo da criatio ex nihilo e a suposição de que o pro­cesso criativo represente uma passagem de uma entidade a ou­tra, dentro da mesma ordem de realidade, isto é, sem uma mu­dança básica e completa de espécie. O movimento de uma espé­cie de realidade para outra é o que a idéia de criação pode razoa­velmente significar, e é o que o artista precisamente realiza. Por­que ele torna possível. a emergência de um objeto que é novo esui generis - um objeto que não é preexistente e é capaz de rei­vindicar sua própria situação vital. Ele modela o produto artís­tico a partir de uma realidade previamente existente, na verdade,mas uma realidade que é vida, não arte, e que está separada doproduto final por uma diferença de ser ou "distância ontológi­ca". A criação supera, pois, esta distância fundamental e não podeser considerada uma espécie de contínuo. O poeta não apenasdeflecta, ou refrata, a experiência, ou mesmo a contradiz. Ele 6capaz de suplantar ou substituir tanto a vida quanto as obras dcarte anteriores - pelo bem do leitor e do seu próprio. O poclllaé o resultado de um processo de suplantação da experiência.

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Circunscrever este processo é uma tarefa árdua -e "wurdeuns Grenzenlose gehen", como Goethe revelou a Eckennann, aofalar das influências que sofreu.12 Este processo não inclui a vi­da inteira do escritor, no sentido de que cada poema em particu­lar reúne diferentes camadas de experiência ou de personalidade- embora essas camadas possam atravessar a totalidade da ex­periência do artista. A gênese de um poema é, se não um proces­so sem fim, um processo altamente complexo - tão abrangente,dentro de certos limites temporais, quanto nosso conhecimentoda vida interior do indivíduo possa ser. Certos eventos ou condi­ções têm importância crucial, outros são triviais, mas ,certamen­te nenhum acontecimento ou condição controla, modela ou ex­plica sozinha as dimensões finais da obra de arte.

Nossa idéia de influência seria relevante no contexto estéti­co que acabei de indicar. Ela definiria uma influência como umaparte reconhecível e signifIcativa da gênese de uma obra de arteliterária. Ela veria â poesia como parte da experiência do escri­tor (darnesma maneira que cada source é uma source vécue), edistinguiria entre condições genéticas genuínas e a presença nopoema acabado daquelas convenções e técnicas pertencentes aoequipamento do escritor ou às possibilidades tradicionalmentetransmitidas de seu meio. A vida do escritor e seu trabalho cria­tivo existem, como acabei de lembrar, em dois níveis de realida­de diferentes. Uma vez que as influências se desenvolvem estrita­mente no nível anterior, elas são experiências individuais de umanatureza particular: porque representam um tipo de intromissãoou de modificação no ser do escritor, ou a ocasião para tal mo­dificação; porque seu ponto de partida é a poesia anteriormentecxistente; e porque as alterações que elas acarretam, não impor­ta quão pequenas sejam, têm um efeito indispensável nos está­gios subseqüentes da genesis do poema. Elas são forças que seimiscuem no processo de criação, por assim dizer, vindas de fora

(~/ans c estímulos que carregam o "movimento" genético pa­ra adianle, c permitem ao artista prosseguir na sua elaboraçãodo "scgundo mundo" da poesia. Ao mesmo tempo, então, queas influências tornam possível um poema, este as transcende eàs demais expcriências. (Seus efeitos, na verdade, cessam ou de­sapareCClll,1'rL~qiicntcmente,dentro da própria dimensão da cons­ciência do cscritor). O poema, para repetir nossos termos, é tam­bém o produto dc uma série de influências suplantadas. E essas,precisamente porquc S;IO suplantadas e abrem caminho para o

que é diferente, devem ser distinguidas das técnicas rcconhecidasque se acham presentes no poema concluído e podem, ou nüo,ser comparáveis às formas responsáveis pelos estímulos gcnéti­cos originais. 13

Se agora retomarmos ao que foi chamado anteriormente deconceito de transmissão, a presente divergência precisaria ser maisbem esclarecida. Uma influência seria, de acordo com aquele con­ceito, a transferência de formas literárias e de temas de uma obrapara outra. Na prática, essa noção tem três desvantagens distin­tas:

1. Ela sugere que uma influência é uma conexão objetiva,um evento tangível, do qual alguns vestígios materiais deveriampermanecer após o término da obra. Isto elimina todos os fenô­menos mais sutis, genéticos ou psicológicos, dos quais o críticonão pode encontrar provas muito objetivas. (Em alguns casos,o crítico positivista se satisfará com localizar a prova na evidên­cia externa da fonte ou do produto influenciado - tal como umacarta, ou notas marginais feitas pelo escritor no seu exemplar deum livro,14sempre quando esse rapport de jait possa ser com­provado mais tarde na própria obra.)

2. A idéia de transmissão atribui ao fenômeno de influên­cia, em muitas ocasiões, um tipo de importância, de necessidadeou de eficiência tão grande ou tão invejável quanto a do própriotrabalho artístico. Como todos os elementos influentes são, fi­nalmente, incorporados no poema terminado, nada é realmenteperdido e tudo está bem quando acaba bem. O comparatista tra­dicionalmente otimista não é inclinado a perceber a arbitrarie­dade ou o absurdo (um termo de abrangência variada), ou o queeu gostaria de chamqr de contingência, de muitos fenômenos dessetipo. Ele observa e anota com satisfação que, por exemplo, a re­putação de Cervantes foi por muitos anos inferior à de muitosde seus contemporâneos espanhóis; ou que nenhum francês, deacordo com Carlo Pellegrini, apreciou Dante realmente antes doséculo XIX;15ou que Antonio de Guevara foi traduzido para oinglês do francês, para o alemão do italiano, para o húngaro dolatim e para o holandês e o sueco do alemão.16Por esta atitudecomplacente a respeito de influências é provável, penso eu, queas tcorias estéticas mencionadas são responsáveis. Ao estabele­cer que as influências são suficientes, elas superestimam sua pro­ximidade com a arte, ou as mantêm dentro da área na qual tcm

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lugar a genuína literatura e na qual o crítico naturalmente en­contra acolhida.

3. A conseqüência mais notável desta teoria é a persistenteconfusão entre influências e similaridades textuais, e a recusa emapurar, com alguma agudeza, como esses dois grupos de fatosse relacionamY O conceito de transmissão, já que presume queuma influência conduz à presença na obra B de elementos de al­gum modo comparáveis a outros em A, é equivalente à premissade que influências e paralelismos são indivisíVeIS, Nossa posição,ao contrário, é de que os estímulos genéticos são parte da expe­riência psíquica do escritor, enquanto as similaridades textuaispertencem à realidade da literatura. Daí a convicção, partilhadapor numerosos especialistas recentemente,18 de que uma influên­cia não necessita tomar a forma reconheCÍvel de um paralelismo,assim como cada paralelismo não tem que necessariamente pro­ceder de uma influência.

A primeira teoria (mais bem manifestada pela metáfora da"fonte", que é sem utilidade sob qualquer outra perspectiva) tema vantagem de ser empiricamente manuseável e simples. Ela tor­na, em outras palavras, o estudo de influências possível. A se­gunda teoria está acompanhada de dificuldades, tanto teóricasquanto práticas, na medida em que se aproxima do enigma doato criativo. Por esta razão, seria proveitoso discutir um exem­plo.

Sabemos que o processo de criação freqüentemente irrom­pe de, ou é decisivamente estimulado por, um estado emocionalfavorável particular que pode ser descrito como uma intensa dis­posição da vontade ou uma necessidade urgente de escrever ou,mais simplesmente, de um desejo: o desejo, seja ele agradável ou11;10,de compor um trabalho do qual apenas os delineamentosh;'ISicos, ou os mais vagos, podem ser percebidos. Esta é a condi­,";10 que Schiller descreveu a Kõrner, em 25 de maio de 1792: "Ichglallhc, es ist nicht immer die lebhafte Vorstellung seines Stoffes,solHkrn 01'1 nm ein Bedürfnis nach Stoff, ein ubberstimmterDrallg 1I;lch Ergiessung strebender Gefühle, was Werke derBcgcislL'ruII1'.crzcugt. Das Musikalische eines Gedichtes schwebtmir wcil óflL'l' vor der Seele, wenn ich mich hinsetze, es zu ma­chen, aIs der Idare Bcgriff von InhaIt, über den ich oft kaum mitmir einig bin." Hsla disposição da vontade pode ser conectada,como escreve SchillL'l', com a visão da qualidade musical do

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poema - o seu tom, ritmo ou estrutura. É bem conhecido Iambém que esta disposição pode ser realçada ou nutrida por ou! raobra de arte, e parece claro que este estímulo externo, vindo el11momento tão crucial, deveria ser chamado de influência. Alémdisso, a obra em questão não precisa ser literária. Aprendemoscom escritores como Alfieri, Kleist, e Frei Luis de León que adisposição criativa pode ser muito proveitosamente estimuladapor uma experiência musical.

Desta maneira explica Jorge Guillén a influência exercida peloBolera, de Ravel, sobre o poema final de Cântico, "Cara a ca­ra". A feição teimosa, persistente e obsessiva do ritmo desta mú­sica - mas só o seu ritmo - detonou o desejo inicial do poetade escrever sua resposta tenaz aos aspectos mais caóticos da vi­da. Seria correto procurar aqui um paralelismo objetivo? Duvi­do, e não somente porque tal semelhança seria muito vaga; mas,principalmente, porque, fazendo-o, estaríamos transferindo pa­ra a obra de Ravel a interpretação extremamente pessoal que opoeta espanhol dela fez. Ou, para sermos mais precisos, estaría­mos aplicando a lembrança da experiência original da música vi­vida pelo poeta no momento do Stimmung, ou desejo. Nossa con­clusão, se persistíssemos em estabelecer um paralelismo, seria ba­seada essencialmente na evidência fornecida, não por uma com­paração objetiva entre duas obras de arte, mas por nosso conhe­cimento do tipo de estado psíquico sobre o qual a música agiu.O efeito do Bolera em Jorge Guillén é, antes, representativo dotipo de influência do qual nenhum eco objetivo pode ser espera­do (a disposição sendo importante apenas enquanto estiver co­nectada .com a dinâmica do escrever, com a intenção do poetae enquanto ela prepa~a emoções subseqüentes, libera forças pre­servadas na sensibilidade do poeta, etc.), embora, por certo, taleco possa também se dar. Não existe uma relação direta, em ou­tras palavras, entre o elemento influente e o texto final. Disto,a influência-Stimmung é um exemplo extremo.

No outro extremo, encontramos paralelismos que não sãoinfluências, isto é, que desempenham um papel tão limitado noprocesso genético que não podemos lhes dar um nome reserva­do para repercussões significativas de uma obra de arte em ou­tra. Não estou me referindo a semelhanças fortuitas ou coinci·dências, válidas apenas enquanto elas se inserem na experi011ciado leitor ou do crítico; pois elas não constituem o nosso prohk·ma. Certas correspondências textuais não são produtos do acaso

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166 LITERATURA COMPARADA i\ I'SI'LiTICA DO ESTUDO DE INFLUÊNCIAS ... 1/,/

e podem ser encontradas somente nos escritos de um autor em .particular; ainda assim é possível que não estejam conectadas coma corrente central de desenvolvimento genético à qual as influên­cias necessariamente pertencem. (Isto pode se aplicar a elemen­tos maiores ou menores; sua função, não sua dimensão, é o queimporta.) Foi notado que, para retomarmos a Jorge Guillén, umverso do poema "La Florida" (também de Cântico)

Todas Ias rosas son Ia rosa,

reproduz quase exatamente um endecassz7abode Juan Ramón Ji­menez:

Todas Ias rosas son Ia misma rosa.

Uma comparação textual daria, uma vez mais, um parco re­sultado, pois podemos estar certos de que até mesmo o sentidode cada um destes versos é diferente em seus respectivos contex­tos. Novamente, não nos pode o método comparativo forneceruma conclusão válida, já que é possível que a ausência de simi­laridade esconda uma influência genuína (o que foi o caso doBolero e de "Cara a cara"). Não passa de mera informação sa­ber que esse pequenino eco provém de uma reminiscência invo­luntária, da qual o autor não teve consciência a não ser váriosanos após escrever o poema; e que a dívida considerável de Jor­ge Guillén para com Juan Ramón é do tipo que afeta somenteo "vocabulário" inicial de um poeta. (Juan Ramón modelou demaneira ampla o instrumento lingüística que os poetas da gera­ção seguinte à sua usaram ainda melhor do que ele.) Este "voca­bulário" é a soma dos elementos preservados na memória ou nasensibilidade do poeta antes do começo da gênese de um poemaem particular e que estão indiferentemente à disposição de todaa sua obra posterior. Nele estão contidos elementos de sensibili­dade, rcminiscências e mesmo contradições intrínsecas. Inclui tam­h6111proccdimentos lingüísticos ou formais, preservados na "me­IlIúria 16cnica" do artista, do tipo que é descrito pelos termos"COllVl'II\~ÔCS"e "técnicas". Tais artifícios e "costumes verbais"súo cOlldi\~(lcs da produção do poeta. São as circunstâncias descu ofício ou a situação lingüística na qual ele se encontra. Masnão POdClll ,~crconsiderados como causas a não ser que eles to­quem dirdalllcIIlc o cmergir do poema. O fato é que nenhum es­tado psíquico sigllificativo, dentro dos limites da gênese de "LaFlorida", concela "todas Ias rosas son Ia rosa" com "todas Iasrosas son Ia misllla rosa".

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Somos então levados a reconhecer as seguintcs proposi(;llcs:1. O método comparativo é insuficiente. A questão da pos

sível influência de A sobre B não pode ser resolvida por uma silll'"pIes comparação entre A e B. Cada estudo de influência é ini­cialmente um estudo da gênese de uma obra de arte e deve serbaseado no conhecimento e na interpretação dos componentesdesta gênese.

2. Estabelecer uma influência éfazer um juízo de valor, nãoé medir um fato. O crítico é obrigado a avaliar a função ou aabrangência do efeito de A na formação de B, porque não estaráfazendo uma lista da soma total desses efeitos, que são inúme­ros; estará ordenando-os. Desta maneira, "influência" e "influên­cia significativa" são termos praticamente sinônimos.

3. Um estudo de influência, quando integralmente realiza­do, contém duas fases bastante diferentes, uma vez que ele cruzaa distância entre a origem do processo criativo e o poema pro­priamente dito. O primeiro passo consiste, como já vimos, na in­

terpretação dos)fenôrnenos genéticos; O segundo passo é textuale comparativo, mas inteiramente dependente do primeiro paraatingir seu significado. Desta forma, primeiramente estabelece­ríamos que uma influência realmente ocorrera e avaliaríamos asua relevância ou "função genética". Em seguida consideraría­mos o resultado objetivo que a influência poderia haver produ­zido; finalmente, definiríamos a sua "função textual".

4. O valor de uma influência não é estético, mas psicológi­co. Ao avaliar uma influência, buscamos julgar sua função ge­nética. A presença adicional ou a ausência de um paralelismo éum assunto diferente, pois o reino da estética - a área do poe­ma - deve ser mantido à parte do domínio das influências (on­de a função é psicológica) que também envolve os valores. Ob­viamente, a descoberta de uma influência não modifica nossaapreensão estética de um poema (embora as convenções a pos­sam modificar), e a determinação de tais fenômenos tem muitís­simo pouco a ver com qualquer escala absoluta de valor estético- tal como a escolha dos trabalhos que devem compor o queé algumas vezes chamado de Weltliteratur. (Embora muitos, sc­guindo o exemplo de Goethe, não admitam que este termo signi­fique um thesaurus artístico.) Iríamos estar, caso contrário, repetindo o erro de Bruneti{:re, para quem somente aquelas obrasou aquelas literaturas que tivessem exercido influência all~lIl dc

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suas próprias fronteiras seriam consideradas dignas de serem parte·da "Literatura Européia". Sempre que estudiosos de influênciasperdem essa distinção de vista, tendem a se tornar ratificadoresdo sucesso e do poder internacionais, ou historiadores políticos,mesmo que esta não tenha sido a sua intenção. 19

5. O estudo das convenções e das técnicas (modos, gêneros,mitos, temas, figuras de estilo, estrutura, etc.) é distinto do dasinfluências e do estudo do paralelismo, sempre que estes últimossão considerados como estando relacionados. O mérito dos es­tudos de influência pode consistir no fato de que eles indicamo quanto do equipamento de um escritor permanece intocado,em muitos casos, pelas influências verdadeiramente valiosas exer­cidas sobre ele. Como essas investigações analisam as várias li­nhas que se entretecem na gênese de um poema, elas são capazesde distinguir entre o que é mais convencional e o que é central­mente operativo, podendo descobrir que convenções se tornaramparticularmente opera:tivas. Quanto aos paralelismos, eles eviden­temente aumentam a colheita de recorrências e convenções do in­vestigador.

Vou terminar sugerindo uma classificação dos objetivos ematérias da literatura comparada do ponto de vista da naturezadas influências, tais como estas foram discutidas neste trabalho.Tenho em mente quatro perspectivas amplas, que, embora dis­tintas, não se exclueme, na prática, se superpõem freqüentemente.As duas primeiras se ocupam das influências e requerem o usodo método genético. As duas últimas, sem interesse em influên­cias, baseiam-se no método comparativo. Todas quatro podemser consideradas domínios da Literatura Comparada na medidaem que esta disciplina - cujo espírito, ainda que não a metodo­logia, é bastante claro - incorporou através da crítica literária,as aspirações sintéticas e cosmopolitas dos últimos cinqüenta anos(e devem preencher as esperanças dos futuros Welleks e Warrensde realizar uma "história literária como uma síntese, história li­lerúria elll escala supranacional..."20). Antes de caracterizar bre­vemenle eslas perspectivas, contudo, será preciso mençionar umaforma adicional de pesquisa, que, embora não seja estritamenteliterária, fornece ao comparatista muito dos materiais que ele ne­cessita.

I. A literal !Ir: I colllparada estabelece o que poderíamos cha­mar de sua própria agbH:ia de investigações,ou Hilfswissenschaft,

quando ela recolhe todos os tipos de informações históricas semnenhuma intenção de entender o caráter de um período históri­co ou de compreender a própria literatura. Refiro-me a, por exem­plo, informações concernentes ao ensino de línguas estrangeiras,dicionários, viagens, reportagens de jornal, intermediários e tra­duções, quando essas não são consideradas literatura - o quefreqüentemente acontece. Este fato tem a virtude de, em algunscasos, resgatar do esquecimento obras de terceira classe ou lite­ratos de terceira categoria que tornaram possíveis realizações deescritores de primeira linha. Lidar com tal variedade de fatos podeaumentar consideravelmente nossa faina metodológica. Porém istoé inseparável das qualidades de uma disciplina que se vê forçadaa prestar atenção a áreas marginais à literatura, ainda que essasnão sejam literárias, porque examina não apenas a gênese da ar­te mas também a carreira das relações culturais entre as nações.Considerados sob esse aspecto, traduções, viagens, intermediá­rios, etc., explicam por que meios a distância entre poesia e poe­sia é eliminada.

lU. Críticos comparatistas podem concentrar-se no estudode influências, e interpretar o nascimento de obras de arte indi­viduais, ou podem ir além disto e interpretar toda a obra de umescritor, de uma escola, de um movimento ou de uma tradição.Com o objetivo de organizar tais grupos de fenômenos, os com­paratistas têm escolhido uma personalidade e as realizações deum único poeta (Goethe e sua experiência da cultura européia),a influência de um único escrito sobre uma nação (Montaignena Inglaterra) ou ambos (Shelley e a França) e ainda influênciassobre áreas mais limitadas, tais como conexões entre escolas emovimentos e autores individuais. Esses estudos são, freqüente­mente, mais pretensiosos do que produtivos. Hoje em dia, porrazões bem conhecidas por todos,21 costumam despertar maiscrítica do que interesse. Os críticos contemporâneos se inclinamde preferência a limitar o seu foco e a examinar os contatos entreobras e autores isoladamente.

A influência de A sobre B, sob este ponto de vista, geral­mente presume que B é uma obra literária ou um escritor ou umgrupo de escritores. No passado, contudo, certos comparatistaschegaram a selecionar como ponto de partida, como o seu A,fatores não-artísticos tais como miragens nacionais e outras ma­nifestações da psychologie comparée des peuples (geralmente limaverdade medíocre, ainda que operante), lendas literárias e pes

I(,K LITERATURA COMPARADA

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soais, etc. Essas investigações, ainda que não sejam exclusivamenteliterárias, têm a virtude de não fingir que o são. Pois todos osusos do método genético tendem a abordar a arte de maneira in­direta.

2. Os próprios fatos de influência podem ser interpretadosglobalmente e a posteriori como formando amplos padrões dedifusão, sucesso ou fortuna. Esta abordagem, porém, não se li­mita a amalgamar ou a resumir influências que já tenham sidoestabelecidas. Esses amplos esquemas são relacionados a mode­los históricos e a valores puramente artísticos. Eles fazem amplautilização da natureza particular das influências - do extensopapel desempenhado nelas por fatores não-literários - ficando,então, em posição de apreender sua "contingência" com refe­rência a uma organização de obras literárias verdadeiramente es­tética. É fato reconhecido que a poesia é tornada possível e épreparada não somente pela leitura prévia de poemas, mas atémesmo por sua interpretação errônea (como foi notado por Ale­xander Gillies); e não somente por ilusões, lendas, erros de tra­dução e outras falácias, mas também por todas as situaçõespolítico-históricas (preconceitos e ódios nacionais,22conquistas,exílios, etc.) nas quais tanto nações quanto escritores se envol­vem. No futuro, tais estudos poderão enfatizar que a histórianão dá forma à arte simplesmente - como entendem os histo­riadores de idéias ou Geistesgeschichte - mas controla tambéma sua passagem das mãos do poeta às mãos do leitor: a poesianão é escrita por homens isentos de preconceitos, num universopacífico onde a grande arte é comunicada de maneira justa elivre e assim' 'atualizada" (para usar a terminologia de Wellek);ela é regida, ao contrário, por acidentes de natureza social, polí­Iiea ou econômica. Que tais vicissitudes venham a ser chamadasde "acidentes" é, por certo, altamente discutível, mas, parececlaro que o comparatista, que investiga vastas configurações de11IovillICntosliterários, está certo ao perguntar-se o mesmo tipode qlleslfio - relativa a padrão, necessidade e sentido - queos filósofos da história se fazem sobre a história. Como "filóso­fo da lileral ma", o comparatista observa a importância da poe­sia no lIIulldo da história humana ou, uma vez que observamosque artc e vida constituem duas ordens de realidade diferentes,a importância de UllIa ordem sobre a outra. Assim, nossa pri­meira abordagclII cOllcentra-se na gênese do poema e a segundana carreira do livro (dialllc do público leitor). Pois se o poema

demonstra a experiência pessoal e histórica, a biografia do livrosignifica uma substituição daquela ordem de experiência e l~ullIafunção dela.

3. O campo da Literatura Comparada admite - cada vezmais, aparentemente - o estudo do que chamei anteriormentede convenções e técnicas: especialmente de temas, topoi, arqué­tipos, mitos e imagens. Aqui o método é, ao mesmo tempo, com­parativo e histórico e duas tentativas anteriores, 8toffgeschichtee Geistesgeschichte são reavaliadas por padrões modernos e in­corporadas. Tais investigações podem ter uma tendência a trans­cender a história e a possuir uma visão de permanência, sob ainfluência da psicologia junguiana ou da antropologia espiritualde um Gaston Bachelard, mas geralmente não vão tão longe.Tornam-se um instrumento útil, não um desvio, para a busca daoriginalidade do artista individual- ou então se afastam da li­teratura. Podem também recorrer ao método genético quando per­guntam, por exemplo, que função criativa um certo tratamentodo tema de Don Juan teve na composição de outro. Esta função,contudo, é freqüentemente mais limitada do que a continuidadede um topos ou de uma técnica possa levar certos leitores a pen­sar, e a temática geralmente avalia diferenças e distâncias entreautores mais do que semelhanças e proximidades. A crítica con­temporânea, de modo geral, não se inclina a superestimar a in­fluência da literatura sobre a literatura. Daí o fato de esta pers­pectiva ser particularmente apropriada a um tempo em que umaconcepção sintético-histórica de poetas, historiadores, críticos dearte, psicólogos e antropólogos (Saint-John Perse, Toynbee, Mal­raux, E. R. Curtius, Auerbach, Américo Castro, Jung, Bache­lard, Eliade, etc.) cqincide com a de críticos literários tais como:Harry Levin e Northrop Frye na América, e, na prática ou nateoria, a recente escola de comparatistas alemães (Kurt Wais, Wal­ter Hõllerer). Desta maneira, os comparatistas podem continuara enfatizar simultaneamente a continuidade da literatura e a ori­ginalidade do poeta.

4. Os estudos comparativos podem pelo menos assumir, oureferir-se a - ou mesmo perseguir academicamente - uma quartaperspectiva inteiramente atemporal. Trata-se da organização pu­ramente estética da totalidade da literatura - tal como esla seapresenta aos leitores cultos do ocidente - em termos de gruposou padrões, ou "tradições" (no sentido deEliot). Não 6 IICCCS

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sário que seja um retorno ao classicismo, uma vez que não ten­ciona aplicar nenhuma poética específica. Pelo contrário, ela amal­gama os resultados de nossa terceira perspectiva (como nossa se­gunda fez com a primeira) e se divorcia tanto das consideraçõeshistóricas quanto das psicológicas e antropológicas. Para que is­to não pareça demasiadamente abstrato, eu sugeriria, ao termi­nar, que tais padrões são familiares a todos, uma vez que fazemparte da experiência da leitura. As comparações devem ser con­sideradas, não como um método ou um instrumento sem impor­tância, mas como fatos conectados com a Erlebnis da arte. Quan­do lemos um certo poema, as comparações que fazemos com ou­tros participam diretamente da experiência estética ou apenas pre­param ou seguem aquele momento? A solução deste problemanão precisa nos preocupar de maneira prática. Os poemas sãorelembrados, e organizados em aglomerados ou sistemas, pela lei­tura de poemas; desta maneira a literatura se torna vitalmenteestruturada e adquire uma realidade supra-individual. Este efei­to pode ser abordado em termos paralelos aos da lingüística deFerdinand de Saussure e à sua distinção entre as dimensões sin­crônica e diacrônica da linguagem.23 A langue da literatura uni­versal torna-se, ao lermos, a parole dos sistemas literários reme­morados, e os laços criados por essa experiência comparativa sãosimilares à interdependência das palavras de uma mesma língua,o que Saussure chamava de valeur. Assim, uma análise da fun­ção da memória na experiência da leitura pode ser um funda­mento sólido, ainda que não seja o único, para o estabelecimen­to de uma ordem completamente estética das obras literárias.

NOTAS

I 11IHINHTII'.:RH, Fcrdinand. La litterature européene. Varietés litteraires. Paris, s./d.p.5.

2 Cr. SI( 'II.IANO, flalo. Quelques remarques sur Ia Littérature comparée, Lettere Ita­liane. ti (1'>5h), H; e especialmente, GILLES, Alexander, Some Thoughts on ComparativeLiteraturc. Ye/l,./wo!i (!I" ( 'olllparative and General Literature, 1 (1952), 17. (Esta última

publicação scrá 1I('si<lSIH,II<lS,dcnominada Yearbook.)3 Cf. PEYRE, Ilcllli. A (Ballee at Comparative Literature in America. Yearbook, 1

(1952), 7.

·1 I :.slou consciente da maneira concisa e apressada com que os problemas IIl<1is1',('I:lis',<10Iralados neste artigo, cujas idéias principais serão desenvolvidas com maior pl'Ol'lIl1didadc em um livro já planejado.

, IlENEDETTO, Luigi Foscolo. La letteratura mondiale. Il Ponte, 2 (1946), 129, rcproduzido em Uomini e tempi, Milão-Nápoles, 1953.

!> TAINE, Hippolyte. Philosophie de l'art. 8~ ed. Paris s/do V. 1, p. 15.

7 Faço distinção entre essas duas aspirações e considero que somente a segunda é pu­ramente literária. A tendência cosmopolita ou internacional reage contra o nacionalismoc incorpora os sonhos de unidade européia, de melhor compreensão internacional, deum fundo comum de valores - um tipo de revitalização da Idade Média. Considera aliteratura como uma causa nos dois sentidos da palavra. Sem dúvida inspirou, não ape­nas os contemporâneos de Goethe e de Mazzini, mas também comparatistas e estudiososeuropeus, do tempo de Texte ao tempo de Baldensperger (cf. Littérature comparée: lemot et Ia chose. Revue de Littérature Comparée, 1 (1921), 29) ou de Ernst Robert Cur­tius. A segunda tendência é o grande desejo de se chegar a uma síntese ou a um sistema,nascida, como a anterior, do iluminismo e do romantismo. Culmina, em primeiro lugar,na inclinação romântica alemã a buscar, nas palavras de Fausto, "wie alIes sich zum Ganzenwebt"; no pensamento de críticos tais como Adam Müller e Friedrich Schlegel. O últimocunhou o termo "Sympoesie", mas também ironizou esta tendência no aforismo: "Ue­bersichten des Ganzen wie sie jetzt Mode sind, entstehen, wenn einer alies einzelne über­sicht und dann summiert." CL WELLEK, René, A History of Modern Criticism, 2 vols.New Haven: Yale Univ. Press 1955.

8 TEXTE, Joseph. I..?Histoire comparée des litteratures. Études de litterature européen­ne. Paris, 1898, p. 3.

9 Ibid, p. 14.

to TEXTE" J. Elizabeth Browning et l'idéalisme. Op. cit., p. 240.

11 Cf. FERRA TER MORA, José. Diccionario de filosofia. 4~ ed. Buenos Aires, 1958,p. 291.12 Na conversa de 16 de dezembro de 1828.

13 Não quero sugerir que influências tenham lugar somente "na mente", como algunsleitores podem inferir do sumário conciso de meu artigo "Literatura como sistema" fei­to por Haskell Block em seu ensaio "The Concept of Influence in Comparative Literatu­re", Yearbook, 7 (1958), 33: uma influência seria " ... uma parte do processo pelo qualas obras são criadas, e portanto são localizadas na mente do escritor e não em sua obra."Minha ênfase, como o ProL Block indica, está no fato de que influências são uma partedo "trabalho em andamento", e que elas acontecem ao escritor em primeiro lugar ­a todo o seu ser. E isto pode ter lugar antes mesmo que o artista comece a obra, ficandoclaro, neste caso, que o produto artístico é afetado de forma indireta. Felizmente, influênciasmais significativas parecem fazer parte do processo criativo. Se o trabalho artístico jáfoi começado, nosso problema se torna, naturalmente, mais árduo, e eu seria o primeiroa reconhecer a dificuldade de qualquer tentativa de precisar o momento exato no qualuma obra de arte se tornou independente de seu criador e assumiu uma vitalidade estéti­ca própria. Mas a existência de tal momento deve, para propósitos teóricos, ser aceita.

14 CL um exemplo desta falácia discutido por Harry Levin, La Littérature comparée:point de vue d'outre-Atlantique, Revue de Littérature Comparée, 27 (1953), 20.

1., PELLEGRINI, Carlo. Relazioni fra Ia letteratura italiana e Ia letteratura francese. Le/­/C'l'I1turecomparate. Milão, 1948, p. 48.

Ir, Cr. CLAVERÍA, Carlos. Estudios hispano-suecos. Granada, 1954, p. 12.

11 Mcncionarei, para orientação do leitor, alguns artigos a respeito do assunto, (JIIClI:íoposso discutir dentro dos limites deste trabalho (minhas diferenças com M.M. Ilalesoll

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e Stallman já são bastante claras): CAZAMIAN, Louis. Goethe en Angleterre. Quelquesreflexions sur les problemes d'influence. Revue Germanique, 12 (1921), 371-378; BATE­SON, F,w. Editorial Commentary. Essays in Criticism, 4 (1954),436-440; HASSAN, Ihab.The Problem of Influence in Literary History: Notes Toward a Definition. Journal ofAesthetics and Art Criticism, 14 (1955),66-76; STALLMAN, R.W. The Scholar's Net:Literary Sources, College English, 17 (1955) 20-27; e BLOCK, Haskell, art. cito Concor­do com o Prof. Block em relação a sua crítica às práticas mais mecânicas dos compara­tistas, e também no que diz respeito à sua visão das influências como reais e indispensá­veis à compreensão da própria literatura. Mas quando ele escreve que "substituição determinologia não irá alterar esta necessidade" e que "o movimento de influência nãoé simplesmente de escritor a escritor mas vai também de obra a obra", sem nenhumaanálise ou explicação posterior, parece-me que ele não está lidando com o tipo de ques­tões que eu levanto neste trabalho. Certamente podemos pensar em exemplos de influên­cias, do tipo mencionado no artigo do Prof. Block, que são genuínos e convincentes.Mas também reconhecemos a existência de técnicas e convenções recorrentes, e de ecose paralelismos não-influentes. E o que é necessário hoje em dia, e o Prof. Block nãonos dá, não é apenas uma abordagem empírica e ocasional dessas diferenças, mas umasérie de termos e conceitos que as esclareçam. Aceito á afirmação "influências de obrassobre obras existem". Mas, acredito que ela necessita ser explicitada.

18 Cf. de modo geral, WELLS, Henry W. New Poetsfrom Old, New York, 1940, p. 25;CLAVERÍA, Carlos. Cinco estudios de literatura espanola moderna. Salamanca, 1945,p. 7; PEYRE, Henri, art. citop. 7: "uma influência é raramente uma imitação"; L'EVIN,Harry, art. cit.; WELLEK, René. The Concept of Comparative Literature, YearbóiJk, 2(1953), 1-5;ALONSO, Amado. Estilística de Ias fuentes literárias. Rubén Darío y MiguelAngel. Materia y forma en poesia. Madri, 1955;PRAZ, Mario. Rapporti tra Ia letteratu­ra italiana e Ia letteratura inglese. Letterature comparate; e, finalmente, WAIS, Kurt. Ver­gleichende Literaturbetrachtung. Forschungsprobleme der Vergleichenden Literaturges­chichte, Tübingen, 1951, 11:"es empfichlt sich überdies, zwisschen Aufnahme und Ein­fluss zu unterscheiden und je nachdem das Sprunghafto ... oder das Kontinuierliche inder Art der Auswirkung festzustellen".

19 Cf. a distinção entre "literatura universal" e "literatura cosmopolita", feita por Guil­lermo de Torre em Las metamorfosis de Proteo. Buenos Aires, 1956, p. 284.20 WELLEK, René e WARREN, Austin, Theory of Literature New York, 1949, p. 42.21 Cf. Ibid, p. 40.

22 Tais antagonismos, causados pelo poder político, nem sempre levam a uma maior com­preensão da cultura dos poderosos - como foi o caso da Itália do século dezesseis emrelação a seus conquistadores espanhóis: cf. CROCE, Alda. Relazioni della letteraturaitaliana con Ia letteratura spagnola. Letteratura comparate, p. 110.23 Cf. meu ensaio Literatura como sistema. Filologia Romanza, 4 (1957), 22-27.

LITERATURA COMPARADA:DEFINIÇÃO E FUNÇÃO*

Henry H. H. Remak

A lit~ratura comparada é o estudo da literatura além das frontei­ras de um país específico e o estudo das relações entre, por umlado, a literatura, e, por outro, diferentes áreas do conhecimentoe da crença, tais como as artes (por exemplo, a pintura, a escul-

'tura, a arquitetura, a música), a filosofia, a história, as ciênciassociais (por exemplo, a política, a economia, a sociologia), as ciên­eiãs,a religião et~~j<:.msuma,é a comparação de uma literaturacom outra ou outras e a comparação da literatura com outras.esferas da expressão humana.

Esta definição 1 é provavelmente aceitável para a maioriados alunos de literatura comparada dos Estados Unidos, mas se­ria objeto de grande discussão entre um importante segmento decomparatistas que, de modo conciso, denominaremos a "escolafrancesa".2 Para esclarecer estas diferenças de opinião - algu­mas bem básicas, outras, mais de ênfase -, talvez seja sensatotomarmos a primeira parte de nossa definição antes de tratar dasegunda. .

Enquanto as "escolas" americana e francesa concordariamcom esta parcela de nossa definição, a saber, a literatura compa­rada como o estudo da literatura além das fronteiras nacionais,em sua aplicação prática encontramos variações significativas deimportância relativa. Os franceses inclinam-se a favorecer ques­tões que podem ser resolvidas na base da evidência fatual (geral­mente envolvendo documentos pessoais). Tendem a excluir a

* REMAK, Henry H. H. Comparative Literature, its Definition an Function. In: S'II\I ,I(NECHT, N. & FRENZ, H. eds. Comparative Literature: Method and Persp('clil'(·. ('arIJondale: Southern Illinois Univ. Press, 1961, p. 3-19.

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176 LITERATURA COMPARADA

T

lITERATURA COMPARADA: DEFINIÇÃO E FUNÇÃO 177

crítica literária do domínio da literatura comparada; olham de·soslaio para estudos que "simplesmente" comparam, que "sim­plesmente" apontam analogias e contrastes. Carré e Guyard che­gam a advertir contra estudos de influência, afirmando que sãovagos demais, incertos demais, e nos levariam a nos concentrar­mos em questões de recepção, intermediários, viagens ao estran­geiro e atitudes em relação a um determinado país na literaturade outro, durante certo período. Ao contrário de Van Tieghem,estes dois estudiosos se mostram igualmente cautelosos com re­lação a vastas sínteses da literatura européia que, a seu ver, seaproximariam da superficialidade, das simplificações perigosase da falsa metafísica.

As raízes positivistas dessas reservas são claramente identi­ficáveis. Em nossa opinião, o desejo francês da securité literáriaé infeliz numa época que, como foi apontado por Peyre, clamapor mais (e não menos) imaginação. Com efeito, o problema deinfluências é muito delicado, e requer de quem se dedica a elemais conhecimento enciclopédico e mais jinesse do que se temmostrado em algumas dessas diligências no passado. Em muitosestudos de influência deu-se atenção excessiva à localização defontes, e muito pouca a questões tais como: o que foi mantidoe o que foi rejeitado, epor quê, e como o material foi absorvidoe integrado, e com que sucesso? Conduzidos dessa maneira, osestudos de influência contribuem não apenas para o nosso co­nhecimento da história literária, como também para nossa com­preensão do processo criativo e da obra de arte literária.

Na medida em que a preocupação em localizar e provar umainfluência pode encobrir questões mais fundamentais de avalia­ção e interpretação artística, os estudos de influência podem con­tribuir menos para a elucidação da essência da obra de arte lite­rária do que estudos comparando autores, obras, estilos, tendên­cias e literaturas nos quais nenhuma influência consegue ou pre­tende revelar se temas puramente comparativos constituem umreservatório inesgotável longe de ser esvaziado pelos estudiososcontemporâneos, que parecem ter esquecido que o nome de nos­sa disciplina é "literatura comparada", e não "literatura influen­te". HerdeI' e Diderot, Novalis e Chateaubriand, Musset e Hei­ne, Balzac e Dickens, Moby Dick e Fausto, Roger Malvin's Burial,de Hawthorne, e Judenbuche, de Droste-Hülshoff, Hardy eHauptmann, Azorin e Anatole France, Baroja e Stendhal, Ham-

sun e Giono, Thomas Mann e Gide são eminentemente compa­ráveis, não importa o quanto influenciaram um ao outro ou mes­mo se isso de fato ocorreu.3

A falta de inclinação de Carré e Guyard para sínteses de lar­ga escala em literatura comparada também nos parece excessiva­mente cautelosa. É preciso ter síntese, a menos que o estudo deliteratura se queira condenar à eterna fragmentação e isolamen­to. Se temos qualquer ambição de participar na vida intelectuale emocional do mundo, devemos, de vez em quando, reunir aspercepções e os resultados alcançados pela pesquisa em literatu­ra e tornar significativas conclusões disponíveis para outras dis­ciplinas, para a nação e para o mundo em geral. Os perigos dasgeneralizações apressadas, mesmo sendo reais, com demasiadafreqüência são opostos como um escudo a encobrir a tentaçãotão humana de não correr riscos. "Devemos esperar até que te­nhamos todos os dados." Mas, nunca teremos todos os dados,e sabemos disso. Ainda que uma única geração conseguisse reu­nir todos os dados sobre um determinado autor ou tópico, os mes­mos "fatos" estariam e deveriam sempre estar sujeitos a dife­rentes interpretações por diferentes gerações. O estudo e a pes­quisa especializada devem tomar justas precauções, mas não de­vem ficar paralisados por um perfeccionismo ilusório.4

Felizmente os franceses têm sido muito menos tímidos e dou­trinários na prática efetiva que na teoria.5 A literatura compa­rada deve uma grande parcela, provavelmente a maior parcela dosestudos comparativos importantes, aos estudiosos franceses eàqueles que seguem sua orientação. Rousseau et les origines ducosmopolitisme littéraire de Texte, Goethe en France eLes mou­vements des idées dans l'emigrationjrançaise, 1789-1815,de Bal­densperger, Goethe en Angleterre, de Carré, e o admirável pa­norama do Iluminismo através da Europa, realizado por Hazard,são apenas algumas dentre as sínteses francesas percebidas pelosensível e hábil manejo de comparações e influências, pela cons­ciência sutil de valores literários e das delicadas nuances do sin­gularmente individual, assim como por uma estranha habilida­de para dirigir uma miríade de observações a lúcidos padrões dedesenvolvimento globais. As próprias introduções francesas deVanTieghem e Guyard à literatura comparada são síntesesde gran­de utilidade. Os estudiosos americanos, por sua vez, develllprecaver-se contra o leve desprezo dado a certos tópicos (esludos

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de recepção, atitudes, intermediários, viajantes, Belesenheit) ape~nas porque os franceses parecem tê-Ios favorecido à exclusão oudescaso de outros temas comparativos.6

Ao examinarmos a segunda parte de nossa definição, qualseja, a relação entre a literatura e outras áreas, nos deparamoscom uma diferença não de ênfase, mas de distinção básica entreas escolas "americana" e "francesa". Nos únicos estudos con­temporâneos da área de literatura comparada escritos até hojeem forma de livro, Van Tieghem e Guyard não discutem e nemmesmo chegam a listar a relação entre a literatura e outras áreas(arte, música, filosofia, política, etc.). Durante os muitos anosem que a Revue de littérature comparée foi dirigi da por Baldens­perger e Hazard, suas bibliografias trimestrais absolutamente nãoreconheciam esta categoria de tópicos. Essa orientação perma­neceu inalterada sob a direção de editores posteriores. Já as pu­blicações (incluindo bibliografias) e os currículos americanos deliteratura comparada, ao contrário, geralmente abrangem essedomínio.

Os franceses com certeza se interessam por tópicos tais co­mo as artes comparativas, mas não pensam neles como estandona jurisdição da literatura comparada.? Há razões históricas pa­ra esta atitude. A despeito da rigidez da compartimentalizaçãoacadêmica, a literatura comparada foi capaz, por mais de meioséculo, de ocupar um lugar preciso e respeitável nas universida­des francesas exatamente porque combinava uma cobertura maisampla da literatura com uma prudente restrição à literatura. Oestudante ou o professor de literatura que se aventura além dasfronteiras nacionais já admite um fardo extra. Os franceses pa­recem temer que assumir, além disso, o estudo sistemático da re­lação entre a literatura e qualquer outra área do empenho huma­no lhes traga a acusação de charlatanismo, e seja, de qualquermodo, prejudicial à aceitação da literatura comparada como umrespeitável e respeitado domínio acadêmico.8

Uma objeção mais fundamental e a isso relacionada deveriatambém ser levada em consideração: a falta de coerência lógicaentre a literatura comparada enquanto o estudo de literatura alémdas fronteiras nacionais e a literatura comparada enquanto o es­tudo das ramificações da literatura além das suas próprias fron­teiras.9 Além disso, embora as conotações geográficas do termoliteratura comparada sejam bastante concretas, as ramificações

genéricas implicadas no conceito americano levantam sérios pro­blemas de demarcação, que os estudiosos americanos não se (l~ll\disposto a encarar honestamente.

É difícil encontrar critérios firmes de seleção quando se exa­mina o conjunto de títulos na Bibliography of Comparative Li­terature, de Baldensperger-Friederich, especialmente naquelas par­tes do Livro 1 que incluem "Generalidades", "Tematologia" e"Gêneros literários", e no capítulo sobre "Correntes literárias"no Livro 3. Estamos falando apenas de verbetes que não são, nempelo título nem (sob exame) pelos conteúdos, comparativos nosentido geográfico (senão incidentalmente), cuja inclusão na Bi­bliography deve portanto ter sido determinada em função da am­pliação do objeto de estudo ou em decorrência de uma noçãopouco clara de "literatura geral". Sob os títulos de "Motivos in­dividuais" e "Motivos coletivos", por exemplo, encontramos gran­de número de investigações de amor, casamento, mulheres, paise filhos, crianças, guerra, profissões, etc., dentro de uma litera­tura nacional. Será que a incorporação desses temas numa bi­bliografia de literatura comparada pode ser justificada pela pre­missa de que estamos lidando aqui com dois domínios - litera­tura e "motivos"? Mas os motivos são parte e parcela da litera­tura; eles são intrínsecos, não estranhos. Sob os títulos de "Gê­neros literários" e "Correntes literárias", encontramos estudossobre o romance americano, o Bildungsroman, a Geração Espa­nhola de 98, etc., etc. Mas, exposições de gêneros literários, mo­vimentos e gerações num determinado país, ainda que sejam denatureza geral, não são comparativas em si mesmas. As noçõesde gêneros, movimentos, "escolas", gerações, etc., estão implíci­tas em nossa idéia d.e literatura e história literária; elas estão den­tro, não fora da literatura. Aceitamos que, com um pouquinhode racionalização, quase tudo e qualquer coisa no estudo e nacrítica literária poderia pretender ser' 'literatura comparada", sefossem aceitos os critérios ultra-elásticos da Bibliography. A li­teratura comparada como um termo quase totalmente abrangentenão teria muito sentido.lO

Admitindo-se que existe uma zona crepuscular, onde um casopode ser usado a favor ou contra a "comparatividade" de Ullldeterminado tópico, no futuro teremos de ser mais discrimilladores quanto à inclusão na literatura comparada de um tópiconessa categoria. Devemos assegurar que comparações ellt rl' :\ li

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teratura e outra área que não a literatura sejam aceitas como"literatura comparada" apenas se forem sistemáticas, e se umadisciplina coerente, indiscutivelmente separável, de fora da lite­ratura, for estudada enquanto tal. Não podemos classificar es­forços acadêmicos como "literatura comparada" simplesmenteporque discutem aspectos inerentes à vida e à arte que se deveminevitavelmente refletir em toda a literatura - pois do que maistrata a literatura? Um trabalho sobre as fontes históricas do dra­ma shakespeariano, a menos que se concentrasse em outro país,só seria' 'literatura comparada" se a historiografia e a literaturafossem os principais pólos de investigação, se os fatos ou relatoshistóricos e suas adaptações literárias fossem sistematicamentecomparados e avaliados, e se se chegasse a conclusões que se re­lacionassem aos dois domínios enquanto tais. Um tratamento dopapel do dinheiro e Pêre Goriot, de Balzac, somente seria com­parativo se sua preocupação principal ( e não apenas incidental)fosse a osmose literária de um sistema financeiro ou conjuntode idéias coerente. Uma investigação a respeito das idéias éticasou religiosas de Hawthorne ou Melville só poderia ser conside­rada comparativa se lidasse com um movimento religioso (o cal­vinismo, por exemplo) ou conjunto de crenças organizado. O de­lineamento de um personagem de romance de Henry James sóestaria no âmbito da literatura comparada se desenvolvesse umavisão metódica desse personagem à luz das teorias psicológicasde Freud (ou Adler, Jung, etc.).

Tendo em mente esta advertência, nossa preferência recai,no entanto, sobre o conceito "americano", mais abrangente, deliteratura comparada. Devemos, com efeito, lutar para alcançare manter um conjunto mínimo de critérios que demarcam nossaárea de eleição, mas não nos devemos preocupar tanto com suaunidade teórica, de modo a esquecer o talvez mais importanteaspecto funcional da literatura comparada. Concebemos a lite­ratura comparada menos como uma matéria independente, quedeve a todo custo estabelecer suas próprias e inflexíveis leis, doque como uma disciplina auxiliar extremamente necessária, umelo entre segmentos menores de literatura paroquial, uma ponteentre áreas da criatividade humana organicamente relacionadas,mas fisicamente separadas. Quaisquer que sejam as discordân­cias sobre os aspectos teóricos da literatura comparada, existe con­senso sobre a sua tarefa: dar aos estudiosos, aos professores e

estudantes, e, last but not least, aos leitores, uma compreensãomelhor e mais completa da literatura como um todo, em vez deum segmento departamental ou vários fragmentos departamen­tais de literatura isolados. E isso ela pode fazer melhor não ape­nas ao relacionar várias literaturas umas às outras, mas ao rela­cionar a literatura a outros campos do conhecimento e da ativi­dade humana, especialmente os campos artístico e ideológico;ou seja, ao estender a investigação literária tanto geográfica quan­to genericamente.

IIDiversas áreas e termos são contíguos à literatura comparada ouparecem sobrepor-se a ela: literatura nacional, literatura mundiale literatura geral. Um esclarecimento dos seus significados é in­dispensável à delimitação dos termos da literatura comparada.

Não há qualquer diferença fundamental entre os métodosde pesquisa em literatura nacional e em literatura comparada; en­tre, por exemplo, uma comparação de Racine e Corneille e de Ra­cine e Goethe. Há, contudo, certos temas encontrados na pes­quisa em literatura comparada que vão além dos estudos de lite­ratura nacional: o contato ou colisão entre diferentes culturas,em geral, e os problemas ligados à tradução, em particular. Ou­tros tópicos inerentes ao estudo de literatura nacional ocorremem padrões algo diferentes e tendem a ocupar um lugar de maiorimportância na pesquisa em literatura comparada: moda, suces­so, recepção e influência da literatura, viagens e intermediários.

Mesmo em termós geográficos, uma distinção irrefutável en­tre literatura nacional e literatura comparada é por vezes difícil.O que fazer com autores que escrevem na mesma língua mas per­tencem a nações diferentes? Provavelmente jamais hesitaríamosem atribuir à literatura comparada uma comparação entre GeorgeBernard Shaw e H. L. Mencken, ou entre Sean O'Casey e Ten­nessee Williams, mas quando voltamos à literatura inglesa e ame­ricana do período colonial, o caso, como sugeriu Wellek, se tor­na muito menos claro. Maeterlinck e Verhaeren eram belgas queescreviam em francês; será que um estudo de suas conex.õesínti­mas com o simbolismo francês seria classificado como literatura

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comparada? E o que dizer de autores irlandeses escrevendo em .inglês ou finlandeses compondo em sueco? Dificuldades seme­lhantes surgem em investigações sobre o lugar do nicaragüenseRubén Darío na literatura espanhola, ou sobre as posições emi­nentes dos suíços Gottfried Keller e Conrad Ferdinand Meyer edos austríacos Adalbert Stifter e Hugo von Hofmannsthal na li­teratura alemã (para não mencionar os casos ainda mais compli­cados de Rilke e Kafka). Até que ponto a naturalização legal de­veria ser levada em consideração? Certamente existe uma dife­rença, nas conseqüências para a sua obra literária, entre a cida­dania inglesa de T. S. Eliot e a cidadania americana de ThomasMann.

Por outro lado, há autores que pertencem à mesma nação,mas escrevem em diferentes línguas ou dialetos. A literatura ga­lesa em relação à inglesa, a literatura baixo-alemã em relação àalemã, a literatura flamenga em relação à francesa (na Bélgica),a literatura siciliana em relação à italiana, a literatura ucranianaem relação à da Grande Rússia, a literatura basca e catalã emrelação à espanhola ou francesa, todas elas levantam questõesque devem ser respondidas caso a caso. Em geral, podemos for­mular a regra de que o estudioso que afirma que um tópico tran­sicional dessa natureza é comparativo deve assumir o fardo daprova incontestável de que ele está lidando com diferenças signi­ficativas de linguagem, nacionalidade ou tradição.

A maioria dos comparatistas, embora admitindo complica­ções ejustaposições, concordará que essas dificuldades não são nemfreqüentes nem sérias o bastante para invalidar a distinção entrea literatura estudada dentro das fronteiras nacionais e além delas.

Entre a literatura comparada e a literatura mundialll exis­tem diferenças de grau e também outras mais fundamentais. Aprimeira compreende elementos de espaço, tempo, qualidade eintensidade. A literatura comparada (geograficamente falando)envolve, assim como a literatura mundial, um elemento de espa­ço, mas, com freqüência, embora não necessariamente, um queseja mais restrito. A literatura comparada normalmente lida coma relação dc apcnas dois países, ou dois autores de nacionalida­de diferente, ou um autor e outro país (por exemplo, relações li­terárias franco-alemãs, Poe-Baudelaire, a Itália nas obras de Goe­the). O termo mais pretensioso "literatura mundial" implica re­conhecimento em todo o mundo, geralmente o mundo ocidental.

"Literatura mundial" também sugere um elemento de felll­po. Normalmente, a aquisição de renome mundial exige tcmpo,e a "literatura mundial" em geral lida com literatura consagra­da como grande pelo teste do tempo. A literatura contemporâ­nea, portanto, é com menos freqüência incluída no termo "lite­ratura mundial", ao passo que a literatura comparada, pelo me­nos em teoria, pode comparar qualquer coisa que seja compará­vel, não importa o quanto as obras possam ser antigas ou recen­tes. Mas, prontamente, deve-se admitir que, na prática, muitos,talvez a maioria, dos estudos de literatura comparada lidam mes­mo é com vultos literários do passado que alcançaram fama emtodo o mundo. Muito do que vimos fazendo e do que estaremosfazendo é, na verdade, literatura mundial comparada.

A literatura mundial, portanto, trabalha predominantementecom produções literárias de qualidade duradoura, que obtiveramprestígio ao longo do tempo e em todo o mundo (por exemplo,a Divina comédia, Dom Quixote, Paraíso perdido, Cândido, JiVér­ther), ou, menos marcadamente, com autores de nossa própriaépoca que obtiveram grande aprovação no exterior (por exem­plo, Faulkner, Camus, Thomas Mann), os quais, em vários ca­sos, podem se mostrar transitórios (como Galsworthy, MargaretMitchell, Moravia, Remarque). A literatura comparada não é de­marcada, na mesma proporção, por critérios de qualidade e/ouintensidade. Estudos comparativos esclarecedores foram feitos ­e muitos outros possivelmente restam a fazer - sobre autores desegunda linha, com freqüência mais representativos dos traçosepocais de seu tempo do que os grandes autores. Investigaçõescomo essas incluiriam autores outrora considerados grandes ouconhecidos como muito bem-sucedidos (por exemplo, Lilo, Gess­ner, Kotzebue, Dumas pai e filho, Scribe, Sudermann, Pifiero),ou até mesmo autores menores que nunca progrediram no exte­rior, mas cuja produção poderia ilustrar tendências pan-européiasdo gosto literário (apenas na Alemanha citaríamos nomes comoFriedrich de Ia Motte-Fouqué, Zacharias Werner, Friedrich Spiel­hagen, Max Kretzer).

Além desses, certos autores de primeira linha ainda não acla­mados pela literatura mundial são eminentemente talhados paraos estudos de literatura comparada. Tais estudos podem efel íva~mente contribuir para sua aceitação enquanto figuras de lilcralura mundial. Dentre os homens de letras do passado rccclJlc~

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184 LITERATURA COMPARADA LITERATURA COMPARADA: DEFINIÇÃO E FUN<-'ÃO J K',

mente descobertos ou "ressuscitados" (ou no processo de o se­rem) pelo mundo ocidental estão Donne, Diderot, Blake, Hõl­derlin, Büchner, Gérard de Nerval, Melville, Kierkegaard e Hes­se. Outros, igualmente merecedores da atenção mundial, aindaesperam por um comensurável reconhecimento em seus própriospaíses: Espronceda, Larra, Galdós, Azorín, Baroja (Espanha);Herder, Hebbel, Keller, Fontane, Trakl, Hofmannsthal (Alema­nha, Áustria e Suíça); Petõfi (Hungria); Creanga, Eminescu, Sa­doveanu (Romênia); Jens Peter Jacobsen, Johannes V. Jensen eIsak Dinesen (Dinamarca); Frõding (Suécia); Obstfelder (Norue­ga); Willa Cather, F. Scott Fitzgerald - a lista é infinita. A lite­ratura báltica e eslávica (à exceção da russa) e a literatura quenão pertence à tradição ocidental permanecem quase intocadas;elas provavelmente contêm muitas e surpreendentes jóias literárias.

Elementos de espaço, tempo, qualidade e intensidade esta­belecem diferenças de grau entre a literatura mundial e a litera­tura comparada. Mas, há distinções mais fundamentais. Em pri­meiro lugar, o conceito americano de literatura comparada en­globa inquirições a respeito da relação entre literatura e outrasórbitas; a literatura mundial, não. Em segundo lugar, mesmo adefinição "francesa", mais restrita, de literatura comparada (ondeo material a ser estudado é inteiramente literário, como na lite­ratura mundial) especifica um método; a literatura mundial, não.A literatura comparada requer que uma obra, autor, tendênciaou tema sejam realmente comparados a uma obra, autor, ten­dência ou tema de um outro país ou esfera, mas uma coleçãode ensaios sobre, digamos, Turgeniev, Hawthorne, Thackeray eMaupassant, sob um único título, bem poderia ser chamada Fi­guras da Literatura Mundial, sem que contivesse quaisquer com­parações, ou, talvez, apenas comparações incidentais. Websterdefine' 'comparativa" como sendo "estudada sistematicamenteatravés da comparação de fenômenos ... como literatura compa­rada." Vários cursos dedicados à análise de obras-primas literá­rias de diversos países são oferecidos atualmente nas faculdadesamericanas, e têm-se publicado várias antologias elaboradas paratais cursos. Esses cursos e livros deveriam ser - e normalmenteo são - designados pelo termo "literatura mundial", e não "li­teratura comparada", já que, de modo geral, as obras são estu­dadas enquanto obras-primas individuais, e não (ao menos não re­gularmente) comparadas de forma sistemática. Caberia ao professor

ou ao organizador desse curso ou livro torná-Io rcallllclIll' COIIIparativo, desde que a escolha de textos se prestasse a tralal\ll'lllocomparativo.

Um estudo de literatura comparada não tem que ser com­parativo a cada página ou a cada capítulo, mas o propósito, aênfase e a execução globais devem ser comparativos.12 A verifi­cação do propósito, da ênfase e da execução requer igualmenteo julgamento objetivo e o subjetivo. Portanto, não se pode e nemse deveria estabelecer regras rígidas além desses critérios.!3

O termo "literatura geral" tem sido utilizado por cursos epublicações que lidam com literatura estrangeira em tradução in­glesa, ou, de modo ainda mais vago, por disciplinas que não seencaixam em compartimentos departamentais e parecem ser dointeresse de estudantes fora de uma literatura nacional. Este ter­mo às vezes se refere a tendências literárias, problemas e teoriasde interesse "geral", ou à estética. Coleções de textos e de estu­dos críticos ou comentários tratando de várias literaturas foramincluídas nesta categoria; por exemplo, muitas antologias e obrashistóricas e críticas tais como Laird (org.), The World throughLiterature, Shipley (org.), Dictionary of World Literature, e Ency­clopedia of Literature. Deve-se lembrar que, assim como o ter­mo "literatura mundial", literatura geral não consegue prescre­ver um método comparativo de abordagem. Embora cursos e pu­blicações de "literatura geral" possam proporcionar uma baseexcelentepara estudos comparativos, eles não são necessariamentecomparativos em si mesmos.

A própria nebulosidade do termo "literatura geral" pareceter contribuído para a posição vantajosa que ela ocupa nos Es­tados Unidos. Uma d.efinição muito mais precisa de "literaturageral", elaborada pelo estudioso francês Paul van Tieghem (Sor­bonne), embora não seja amplamente aceita fora da França, me­rece a nossa atenção.14 Para ele, literatura nacional, literaturacomparada e literatura geral representam três níveis consecuti­vos. Literatura nacional trata de questões restritas a uma litera­tura nacional; literatura comparada normalmente lida com pro­blemas envolvendo duas literaturas diferentes; literatura geral sededica a desenvolvimentos em um maior número de países com:­tituindo unidades orgânicas, tais como Europa Ocidental, Euro­pa Oriental, Europa, América do Norte, Europa e América doNorte, Espanha e América do Sul, o Oriente, etc. Exprcssa vi-

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sualmente, a literatura nacional seria o estudo da literatura entremuros, a literatura comparada, além dos muros, e a literatura ge­ral, acima dos muros.15 Num estudo de literatura comparada, asliteraturas nacionais continuariam a ser fatores primários, ser­vindo como âncoras de investigação; num estudo de literaturageral, as literaturas nacionais simplesmente forneceriam exem­plos para tendências internacionais. Segundo Van Tieghem, umestudo sobre o lugar na literatura da Nouvelle Héloise, de Rous­seau, seria parte da literatura nacional; um trabalho sobre a in­fluência de Richardson na Nouvelle Héloise, de Rousseau, per­tenceria à literatura comparada; um exame do romance sentimen­tal europeu seria literatura geral. O próprio Van Tieghem escre­veu uma série de trabalhos ilustrando suas idéias de literatura geral:La littérature latine de Ia Renaissance, Histoire littéraire de l'Eu­rope et de l'Amérique de Ia Renaissance à nos jours, Preroman­tisme, Romantisme européen, Découverte de Shakespeare dansle continent. Outras sínteses desse tipo incluem Europaische Li­teratur und Lateinisches Mittelalter, de Curtius, II Romanticis­mo nel mondo latino, de Farinelli, Outline of Comparative Lite­rature, de Friederich, e as duas magistrais obras geminadas deHazard: La pensée européenne, 1680-1715e La pensée européen­ne au XVllIe siêcle.

As definições de Van Tieghem levantam pelo menos umaquestão. Não seria arbitrário e mecânico relegar, como ele fez,o termo literatura comparada a investigações comparativas limi­tadas a dois países, enquanto estudos envolvendo mais de doispaíses são reservados à literatura geral? Por que uma compara­ção entre Richardson e Rousseau deveria ser classificada comoliteratura comparada, ao passo que uma comparação entre Ri­chardson, Rousseau e Goethe (tal como foi feita, anos atrás, porErich Schmidt) seria atribuída à literatura geral? Será que o ter­mo "literatura comparada" não é suficiente para cobrir síntesesenglobando qualquer número de países (assim como acontece noOutline of Comparative Literature, de Friederich?)

Ao estabelecer suas categorias distintivas, Van Tieghem pro­vavelmente pensava menos em unidades logicamente coerentes doque numa necessária divisão de trabalho. O número de obras cria­tivas, históricas e críticas a serem absorvidas por um especialistaantes que ele possa pretender retratar adequadamente um aspec­to ou período limitado de uma literatura se tornou tão enorme,

que não se pode esperar desse mesmo especialista que se dedi~que a uma ou mais literaturas adicionais. Por outro lado, por ra­zões de inclinação, aptidão e longevidade, estudiosos se especia­lizando em literatura comparada serão - teme Van Tieghem ­provavelmente incapazes de se reunir e integrar as pesquisas demais de duas literaturas nacionais. Um terceiro grupo de espe­cialistas se faz portanto necessário para combinar as descobertasda literatura nacional e da literatura comparada e as incorporarna literatura geral.

Os perigos de tal arranjo, além de sua muito hipotética via­bilidade, dado o acalentado individualismo da profissão acadê­mica, são de pronto aparentes. Os especialistas em literatura com­parada e literatura geral teriam que se contentar com a organiza­ção das descobertas de outros (em si, uma tarefa hercúlea), umencargo que tende a expô-Ios à perda de contato com o texto lite­rário e a fazê-Ios carregar as sementes da mecanização, superfi­cialização e desumanização da literatura. Os próprios livros deVan Tieghem certamente não escaparam desse perigo totalmenteilesos. Mas Hazard, por outro lado, em suas duas sínteses, foimagistralmente bem-sucedido em apresentar o espírito de umaépoca (pré-iluminismo e racionalismo) sem deixar os ossosdescarnados.

Somos inclinados a pensar que uma rígida divisão de traba­lhos entre os especialistas em literatura nacional, literatura com­parada e literatura geral não é nem possível nem desejável. 16 Es­pecialistas em literatura nacional deveriam entender e guiar-se pelaobrigação de ampliar suas perspectivas, e deveriam ser encoraja­dos a empreender, de vez em quando, excursões em outras litera­turas ou esferas relacionadas à literatura. Especialistas em litera­tura comparada deveriam ocasionalmente retomar às áreas maiscircunscritas da literatura nacional para se certificarem de que

. pelo menos um pé está bem plantado no chão. É exatamente issoo que têm feito com coerência os melhores estudiosos da áreade literatura comparada, seja nos Estados Unidos seja no exterior.

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Nenhum dos termos discutidos é absolutamente preciso. Existemsobreposições entre todos. As definições de literatura nacional

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LITERATURA COMPARADA LITERATURA COMPARADA: DEFINIÇÃO E FUN~:ÃO IX')

e literatura comparada e as distinções existentes entre elas são,contudo, suficientemente claras para nos serem úteis. Emborasubscrevamos o conceito americano, mais abrangente, de litera­tura comparada, insistimos em que os tópicos que se diz perten­cerem a essa área sejam submetidos a um escrutínio mais rigoro­so, com base em critérios mais estritos, do que tivemos até hoje.Literatura mundial, no sentido de uma literatura de mérito ousucesso tão relevante que chegou a ganhar atenção internacio­nal, é um termo útil, mas não deve ser utilizado com indulgên­cia, como uma espécie de alternativa para literatura comparadaou literatura geral. Deve-se esperar que o termo literatura geralseja evitado sempre que possíveL Ao menos hoje em dia, ele sig­nifica inúmeras coisas diferentes para inúmeras pessoas. Em seulugar, deveríamos usar sinônimos para a conotação pretendida;literatura comparada, ou literatura mundial, ou literatura em tra­dução, ou literatura ocidental, ou teoria literária, ou a estruturada literatura, ou só literatura, qualquer que seja o caso.

NOTAS

1 A abordagem escolhida deliberadamente neste ensaio é descritiva e sincrônica, e nãohistórica e genética. Uma combinação dessas duas abordagens teria ido além da inten­ção e das proporções deste [rabalho, mas permanece sendo o objetivo último. Tampoucoeste estudo se preocupa com o status da pesquisa e dos programas de literatura compara­da em universidades e países específicos, a não ser na medida em que mantém relaçãodireta com a questão básica da definição.

2 Este segmento é representado por estudiosos tais como Fernand Baldensperger, JeanMarie Carré, Paul Hazard, Paul van Tieghem, Hemi Roddier, e ainda Marcel Bataillon,Charles Dédéyan, Basil Munteano, M.-F. Guyard, Jacques Voisine, Claude Pichois, Si­mon Jeune e outros. Embora se tenha tido cuidado para que este ensaio se concentrasseem problemas não abordados em minha contribuição para o Yearbook 1960 há entre elesleves e ocasionais coincidências nos momentos em que se contrastam as tendências ame­ricanas e européias.

3 Ao pesar a possibilidade da coincidência contra a possibilidade da influência, o com­paratista poderia aprender bastante com as técnicas do folclorista, que há muito teve queconfrontar estc problema em seu exame de motivos. Muitos estudos sobre o folclore sãocomparativos por excelência.

4 Algumas frases desse parágrafo foram retiradas de minha resenha sobre o ensaio de

Fritz Neubert, Studien zur vergleichenden Literaturgeschichte, em Modern Language Fo­rum, 39 (1954), 154-55.

5 Mesmo na teoria, vemos alguns sinais de hesitação. Em seu estudo, Guyard relata querecentemente tem havido um movimento em direção a uma apreciação não estética daliteratura. Ele também admite que estudos de influência e vastas sínteses, embora perigosos,

são necessários, e chega mesmo a ver lugar para estudos "de coineidêucias", V;lll Til"'.hem, embora excluindo comparações "coincidentes" da literatura comparada, as illl'llli.algo arbitrariamente, na "Literatura Geral". Alguns estudiosos franceses (l3élllOl. J ~Iil'lIlble, etc.) desafiaram os objetivos tradicionais do comparatismo francês em seus t rah"IIIIISou já na época dos debates do Primeiro Congresso Francês de Literatura Comparada (BOI'deaux, 1956) e do Segundo Congresso Internacional de Literatura Comparada (Chapcl J lill,1958). Além disso, conferencistas tão proeminentes no último encontro como Frappier,Roddier, Munteano, Escarpit, etc., enquanto defendiam a solidez básica da tradição com­parativa francesa, já conheciam seus abusos passados e potenciais, e sugeriam novas apli­cações dos seus métodos. O trabalho de Etiemble, Comparaison n'est pas raison, assimcomo os manuais de Claude Pichois, A.-M. Rousseau e Simon Jeune, ainda que não te­nham rompido com a tradição "francesa" de literatura comparada, incorporaram cons­trutivamente em suas linhas mestras idéias correntes na teoria e na prática americanas.

6 Também na América, teoria e prática não são idênticas. Parece seguro afirmar quea maioria dos estudiosos americanos, inclusive aqueles de literatura comparada, fazemsua pesquisa efetiva segundo linhas históricas mais ou menos tradicionais, a despeito desua teórica adesão ou não adesão à crítica.

7 No Primeiro Congresso Francês de Literatura Comparada, realizado em Bordeaux,em março de 1956, Basil Munteano atribui a relação entre literatura e outras artes à "li­teratura geral" (Littérature générale et Histoire des idées, 1957, p. 25). Simon Jeune se­guiu seus passos (1968).

8 Os conceitos italiano e inglês de literatura comparada acompanham de perto as idéiasfrancesas. Os estudos comparativos ingleses, que têm pouca Gestalt, parecem, no entan­to, algo menos restritivos do que os franceses em sua maior atenção à literatura da IdadeMédia, embora a posição francesa original; que excluía a Antigüidade e a Idade Médiada literatura comparada, tenha sido submetida a uma revisão nos últimos quinze ou vin­te anos (ver Jean Frappier, "Littératures médiévales et littérature comparée: problemesde recherche et de méthode", nos Proceedings do Segundo Congresso da Associação In­ternacional de Literatura Comparada, Chapel Hill, 1959, 1: 25-35). Comparatistas italia­nos, sem dúvida influenciados por Croce, não hesitam em enfatizar o lado estético daliteratura, apesar de sua adesão geral aos modelos franceses. A tendência na Alemanha,assim como nos Estados Unidos, era decididamente na direção da crítica literária, daanálise intrínseca da obra, até meados da década de 60. O interesse na crítica literária

e, especialmente, na literatura do século XX, bem como nos traços "contemporâneos"da literatura anterior, permanece ao lado de preocupações sociais e politicas correntes.Por outro lado, a orientação do principal corpo de estudos comparativos nesses dois paí­ses continua sendo histórica, e o órgão de estudos dos comparatistas alemães, Arcadia,tem uma forte propensão histórica. O Japão, há muito devedor da tradição francesa, sevolta agora para a orientação americana. Para detalhes sobre a situação da literatura com­parada em muitos países, ver o Yearbook of Comparative and General Literature, o Fors­chungsprobleme der Vergleichenden Literaturgeschichte 1 e 2, a Revue de Littérature Com­parée, e os Anais dos Congressos.

9 Para o comparatista americano, uma tal "falta de coerência lógica" seria mais apa­rente do que real, pois ele veria uma conexão fundamental entre a inclusão da "literaturae as artes", "literatura e música" etc., na Literatura Comparada, e a abordagem "analó­gica no interior da literatura" reconhecida pelos praticantes americanos: em ambos oscasos, a comparação (seja "pura", seja relacionada causalmente) salienta característicasinerentes ou potenciais da literatura.

10 As bibliografias trimestrais da Revue de littérature comparée contribuíram para amesma confusão. O que fazem numa bibliografia comparativa títulos como Erziih(liJl"llll'1Iill den Werken Gerhart Hauptmanns ou Zur erlebten Rede im englischen Romall tI,.s 20..Iahrhunderts (33, jan.-março 1959, 148-149)?

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190 LITERATURA COMPARADA

11 Os termos "literatura internacional" e "literatura universal" são mais ou menos si­nônimos de "literatura mundial", mas não conseguiram impor-se. O holandês J. C. BrandtCorstius oferece, em seu De Muze in her Morgenlicht (Zeist, 1957, p. 149-70), um exce­lente relato, tanto descritivo quanto crítico, da evolução do termo "literatura mundial",desde os primórdios da história, passando por Herder e Goethe, até o século XX. Maisrecentemente, estudos marxistas da Europa Oriental consideraram "Literatura Mundial"um termo mais próximo de "Literatura Comparada".

12 As pioneiras Lectures on Dramatic Art and Literature (1808), de Wilhelm von Schle­gel, podem servir como ilustração. Pertencem à literatura comparada não porque o au­tor cobre as literaturas da Grécia e de Roma no primeiro volume, e as literaturas da Itá­lia, França, Inglaterra, Espanha e Alemanha no segundo. Mesmo que se limitassem adiscussões independentes destas literaturas, seus ensaios continuariam fornecendo ricomaterial para a literatura comparada. Eles são literatura comparada porque, por exem­plo, em sua primeira conferência, o autor compara não apenas o teatro grego com o lati­no, mas o teatro clássico com o romântico, e comenta o teatro espanhol, português ealemão; porque ele se refere constantemente às literaturas clássicas quando trata, por exem­plo, da literatura italiana e francesa; porque ele aproveita toda oportunidade para esbo­çar comparações gerais entre as literaturas dramáticas da Inglaterra e da Espanha, daEspanha e de Portugal, da França e da Alemanha, etc.; porque ele tem sempre em menteas pelaridades gerais do teatro (tragicômico, poético-teatral, "Ernst und Scherz", etc.);porque, sempre que possível, ele dirige sua atenção para as artes. É a combinação dessesfatores que torna esta obra nitidamente comparativa. Mas, não são todos os capitulosque poderiam (ou precisariam) ser enquadrados no rótulo globalizante de comparativo;sua décima primeira conferência, por exemplo, limita-se completamente à França, suadécima terceira, à Inglaterra.

13 Julius Petersen argumenta que qualquer tratamento de uma literatura estrangeira é,de certo modo, comparativo, uma vez que utiliza, consciente ou inconscientemente, cri­térios derivados do ambiente nacional do próprio autor (Die Wissenschaft von der Dich­tung, Berlim, 1939, 1:7).Esta observação é válida, mas é claro que o ângulo comparativode um estudo literário deve ser explícito, e não implícito, se pretende ter algum padrão.14 Às vezes Van Tieghem usa o termo alternativo "literatura sintética".

15 Esta definição foi sugerida pelo Professor Craig La Driere ao falar na seção de Lite­ratura Comparada da Modern Language Association of America, em New York, em de­zembro de 1950,e elaborada por ele nos Proceedings do Segundo Congresso da Associa­ção Internacional de Literatura Comparada, 1: 160-75.

16 Igualmente inaceitável, porque artificial, é a sugestão de compromisso de Werner P.Friederich de que os estudiosos de literatura comparada se deveriam restringir ao "siste­ma francês" no ensino, mas poderiam permitir-se o "ponto de vista americano" em suaspesquisas (Zur Vergleichenden Literaturgeschichte in den Vereinigten Staaten, ERNST& WAIS, eds., Forschungsprobleme der Vergleichenden Literaturgeschichte. Tübingen,1958, vol. 2, p. 186).

CRISE DA LITERATURA COMPARADA?*

Renê Etiemble

Krise du Komparatistik, The Crisis of Comparative Literature,Crise de Ia littérature comparée. Isso também deve ser ·dito emsérvio e em japonês ... Ainda que a palavra crise esteja na modae que, para desafiar o leitor, os autores de artigos ou de obrassobre qualquer assunto a utilizem indiscriminadamente em qual­quer situação - lugar-comum -, a literatura comparada, efeti­vamente, experimenta, pelo menos há vinte anos, o que não é maisconveniente chamarmos de crise. Eu me proponho fazer aqui odiagnóstico desse fato com a intenção, quem sabe, de prescrever,ou pelo menos sugerir, alguns remédios.

Contra todo chauvinismo ...

Marius-François Guyard, professor da Faculdade de Letrasde Estrasburgo, publicou em 1951,na coleção Que sais-je?, a pri­meira edição de um trabalho destinado sobretudo ao grande pú­blico, mas muito discutido pelos especialistas: La littérature com­parée. Ainda que tenha sido prefaciado por Jean-Marie Carré,professor da Sorbonne, foi friamente recebido aqui e em outroslugares, sobretudo nos' Estados Unidos. Numa recensão que pu­blicou sobre e contra esse trabalho, Calvin S. Brown observou,ironicamente, que o nosso compatriota classifica os trabalhos com­paratistas sob as seguintes designações: "Escritores franceses noestrangeiro", "Escritores estrangeiros na França", "Influênciasentre literaturas estrangeiras". Assim, quem poderia proibir oscomparatistas americanos de dar à sua literatura a mesma posi­ção central: the same central position? Da mesma forma, quem

* ETIEMBLE, René. Crise de Ia littérature comparée? Comparaison n'est pas raison.Paris: Gallimard, 1963, p. 9-23.

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ousaria proibir o árabe, ou, se quisermos, o muçulmano, deaproveitar-se do fato, para ele indiscutível, de que a sua línguaé a língua de Deus, e de exigir que uma literatura dotada de talprivilégio prevaleça sobre todas as outras? Por que, ainda, a China,favorecida pela enorme população que logo terá, favorecida pe­los quatro mil anos de uma reconhecida civilização, conscientedo seu nome - o País do Centro, o Império Central-, não rei­vindicaria para a sua literatura o ponto de vista que Guyard, co­mo bom patriota, adota para a dele? Como cidadãos dos Esta­dos Unidos, país que tem uma consciência talvez excessiva de seuspoderes, Calvin S. Brown, então, não age mal em contestar o pos­tulado de Guyard: esse método é, em verdade, insensato: that waymadness lies.

Quando apresentei minha candidatura para a cátedra de li­teraturas comparadas, aberta na Sorbonne com a morte de lean­Marie Carré, nunca escondi que, sendo admitido nessa institui­ção, tentaria introduzir ali uma outra concepção para a nossa dis­ciplina. Ao ser eleito, o Reitor Sarrailh ofereceu-me os Annalesde rUniversité de Paris para neles expor o meu ponto de vista.Estando restrito às dimensões de um artigo, produzi algumas pá­ginas intituladas "Littérature comparée ou comparaison n'est pasraison".l Pouco tempo antes, um número especial da Revue deLittérature comparée, Orientações em literatura comparadaGaneiro-março 1953), à sua maneira, parecia também responderàs teses de Guyard; além da concepção francesa, apresentava aalemã, a americana e a italiana. Franco Simone referia-se à esté­tica de Croce, lembrava que Luigi Foscolo Benedetto, com razão,julgava que' 'a crítica literária e a história literária são duas dis­ciplinas distintas e igualmente legítimas". Assim, se um ameri­cano considerava nossa disciplina "um pouco centrífuga", umalemão chegava quase a confundir literatura ocidental e literatu­ra universal. É lamentável, entretanto, que nenhum estudo dessenotícias do comparatismo na Rússia. É verdade que a tirania deStalin proibia ali, naquele momento, essa ciência burguesa! Em1950, o ditador dos escritores - Fadaiev - condenava, no Pravda,Georges Lukács, julgando-o culpado por praticar o comparatis­mo, isto é, o cosmopolitismo, por mostrar um espírito burguês(faltando pouco para acusá-Io de cumplicidade com o capitalis­mo)! Por sorte os tempos mudaram. Desde 1958, a Societas Scien­tiarum Lodziensis, da Universidade de Lódz, na Polônia, publi­ca, sob a direção de Stefania Skwarczynska, lan Trzynadiowski

c Witold Ostrowski, uma revista que já está no sétimo 1l1l1llCIOc cujo título, em três línguas, por si só configura um progr~lIl1a:Zaganienia Rodzajów Literackich, Voprosy literaturnyh Zanrov,Lesproblemes des genres littéraires.Em 1962, a Academia de Ciên­cias da Hungria organizou, em Budapeste, de 26 a 29 de outu­bro, um Congresso Internacional de Literatura Comparada, doqual participaram não apenas representantes do mundo socialis­ta - com exceção da Albânia e da China -, como também re­presentantes da Bélgica, da Suíça, dos Países-Baixos e da Fran­ça, inclusive, ex offido, W.-A.-P. Smit, presidente da AssociaçãoInternacional de Literatura Comparada. Agora que o mundo so­cialista fica livre de uma incômoda personalidade e reconhece quea nossa disciplina responde à exigência fundamental do marxis­mo, a literatura comparada, concebida segundo as normas de Gu­yard, parece ainda mais provinciana. Mesmo que os Voprosy Is­torii de 1958 tenham censurado os estudiosos soviéticos de se te­rem isolado do resto do mundo (ainda que não se possa enten­der Lomonossov sem recorrer à cultura européia, nem os demo­cratas revolucionários russos sem conhecer o pensamento dos so­cialistas utópicos da França e da Inglaterra) é curioso ver reapa­recer, no mesmo ano, uma reedição de La littérature comparée,na qual Guyard não altera nada daquilo que escrevera em 1951.

... e todo provincianismo

Atitude ainda mais incompreensível, neste momento, é ver­se que o mundo inteiro, ou pelo menos parte dele, se dedica cadavez mais às nossas pesquisas. Comprovam isso o Centro de In­vestigaciones de Literatura Comparada de Ia Universidad de Chile,os trabalhos publicados no Peru por Estuardo Nunez - Autores

,germanos en el Perú (Lima, 1953) e Autores ingleses y nortea­'0.mericanosen el Perú, em Estudios de literatura comparada (Li­ma, 1956) - e ainda, segundo as normas mais rigorosas da es­cola francesa, Los viajeros italianos en el Perú, de Raúl PorrasBarrenechea (Lima, Ecos, 1957). Testemunho ainda mais como­vente, dadas as circunstâncias políticas, é o trabalho de lakobBen Iechouroun sobre o Lirismo russo e sua influência na poesiahebraica;2não somente os temas e as imagens, mas até os tor­neios frasais da poesia judia contemporânea teriam sofrido grandeinfluência dos clássicos russos. Não é tarefa minha, então, in­formar aos japoneses a existência do Hikaku Bunkaku, .Iournal

1'1\('RISE DA LITERATURA COMPARADA?LITERATURA COMPARADA192

li

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194 LITERATURA COMPARADA CRISE DA LITERATURA COMPARADA? I()~

ojComparative Literature, publicado pela Comparative Litera­ture Society of Japan, ou dos Hikaku Bunkakukenkyy, Étudesde littérature comparée, publicados pelo Instituto de LiteraturaComparada da Universidade de Tóquio.

Política e literatura comparada

A primeira tarefa dos comparatistas agora, dentre todas asque se impõem, é renunciar a todo tipo de chauvinismo e pro­vincianismo, reconhecendo, enfim, que a civilização humana, on­de os valores se intercambiam há milênios, não pode ser com­preendida nem apreciada sem que se faça constante referênciaa essas trocas, cuja complexidade impede a quem quer que sejade ordenar a nossa disciplina em função de uma língua ou deum país, privilegiando-o dentre os demais.

Não se trata de proibir a um povo ou a um grupo de povosde interessar-se por questões que lhes dizem respeito. É necessá­rio, ainda, que a política não intervenha excessivamente, alteran­do o funcionamento dessas pesquisas particulares. Veja-se, porexemplo, a conferência com a qual L-O. Nieoupako"ieva abriu,depois de Vlanu, o Congresso de Budapeste em 1962. Após umelogio à escola francesa e uma crítica à escola americana, a qual,segundo ela, parecia desnacionalizar de forma inoportuna as li­teraturas, essa influente figura da Academia de Ciências de Mos­cou condenou a tendência do mundo capitalista de estudar co­mo um conjunto privilegiado a história comparada das literatu­ras da Europa Ocidental, não obstante tivesse aprovado um dostemas desse congresso: o início de um estudo comparado das li­teraturas da Europa oriental e balcânica. De duas, uma, respondi­lhe, resumidamente: ou bem se admite, e eu admito de bom gra­do, que, por razões geográficas, históricas e, hoje em dia políti­cas, o mundo socialista tem bons motivos para estudar particu­larmente as relações culturais e especialmente literárias nos paí­ses danubianos, no leste e no sudeste da Europa, ou então é ne­cessário admitir que pelas mesmas razões - geográficas, histó­ricas e hoje políticas -, os povos da Europa ocidental tambémpossuem motivos para estudar as relações culturais e literáriasentre os países que foram civilizados por Roma, como a Itália,a Península Ibérica, a França, a Inglaterra, a Alemanha Ociden­tal e, por que não, a África do Norte. Evitemos, somente, que,tanto a leste quanto a oeste, esses estudos regionais de literatura

comparada não sirvam para instigar ou dissimular manobras dcalta política.

Pela idéia que alguns alemães têm da literatura comparada,eu percebo, em certos casos, um reflexo do sonho europeu quefoi, depois de tantos outros, o de Hitler, e que é motivo de in­quietação para nossos colegas soviéticos tanto quanto para nós.Certamente, a Europa não esperou esse maníaco para se sentir,para se querer uma; Roma, Carlos Magno, Carlos V, Luís XIV,Napoleão e Bismarck provam-nos que, sob diferentes linguaja­res, uma Europa se buscou constantemente, encontrando-se al­gumas vezes, da Antigüidade à Idade Média, da Renascença aoSéculo das Luzes e do Primeiro Império aos nossos dias. Nãoé necessário, contudo, que por meio de tentativas hoje esboça­das de reconstituir a Europa - das quais o Mercado Comume a Comunidade Européia de Energia Atômica são, até o presen­te, as mais espetaculares - não é necessário, repito, que a litera­tura comparada tenda a reconstituir, em benefício de uma Euro­pa conservadora e católica, um novo centro do mundo, arbitrá­rio e perigoso. Não é necessário, também, que a partir de agora,reunidos por uma ideologia comum, os países socialistas encon­trem nisso um pretexto para negligenciar ou vilipendiar suas an­tigas relações e suas relações atuais com a Europa Ocidental. Porsorte, todos os tipos de comunicações ou de relatos apresentadosno Congresso de Budapeste pelos representantes dos países so­cialistas sugeriam que as teses de Nieoupako"ieva acentuavam umaposição teórica, posição essa de que eu já tinha tomado conheci­mento através de algumas publicações soviéticas, mas que outrosrepresentantes nuançavam com discernimento e, às vezes, comenergia. Os discursos de encerramento e os termos da resoluçãofinal provaram que, apesar de certas divergências no emprego dovocabulário - divergências essas que poderão ser atenuadas lo­go (eu penso, particularmente, no emprego dos termos realismo,realismo crítico, realismo socialista, que não têm o mesmo senti­do nas línguas dos países socialistas e nas dos países capitalistasmas que o recente' 'Discurso de Praga", pronunciado por LouisAragon, poderia conduzir a um único sentido) -, os compara­tistas do mundo capitalista e do mundo socialista concordam sobreo essencial: o objeto, e a seguir os métodos de sua disciplinacomum.

É necessário então desejar que um artigo como o do ProL

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Host Rüdiger, de Mayence, "Nationalliteraturen und Europiii­sche Literatur", publicado em maio de 1962, no Schweizer Mo­natshefte, não signifique um retorno a qualquer chauvinismo eu­ropeu que, mesmo restrito, não seria preferível ao nacionalismofrancês de Marius-François Guyard.3 Não é, portanto, inteira­mente sem razão que, não obstante os seus méritos, o ensaio deErnst Robert Curtius sobre Europiiische Literatur und Lateini­sches Mittelalter [Literatura européia e Idade Média latina] sus­cite certa inquietude aos comparatistas dos países socialistas. Emcontrapartida, quando Nieoupakoieva investe contra a exposiçãode René Wellek no segundo Congresso Internacional de Litera­tura Comparada (realizado em Chapel Hill, 1958), quando con­testa o artigo tão moderado e sensato de Henry H. H. Remak,"Comparative Literature at the Crossroads: Diagnosis, Therapyand Prognosis", quando também censura a Henri Peyre de afir­mar que o traço mais apreciável do comparatismo é, sem dúvi­da, a consciência supranacional que ele consegue dar aos homens,não posso evitar de ver aí um sinal evidente de seu patriotismorusso, patriotismo esse que não deve degenerar em nova descon­fiança contra o espírito cosmopolita (não no sentido burguês, masno sentido socrático, montanista desse termo).

A literatura comparada é o humanismo

Pareceu-me útil, então, lembrar ao Congresso de Budapesteduas fórmulas, que eu via como o credo de todo comparatista:"O antigo isolamento local e nacional, em que cada um se bas­tava a si próprio, dá lugar a uma interdependência universal dasnações. O que é verdadeiro para a produção material aplica-seà produção intelectual. As obras de uma nação tornam-se pro­priedade comum de todas as demais. A estreiteza de espírito eo exclusivismo nacionais não podem mais ser admitidos; a par­tir de numerosas literaturas nacionais e mesmo regionais forma­se, de agora em diante, uma literatura universal" (Karl Marx)."Se eu soubesse qualquer coisa que me fosse útil e que fosse pre­judicial à minha família, eu a excluiria de meu pensamento. Sesoubesse qualquer coisa de útil para a minha família e que nãofosse útil à minha pátria, eu procuraria esquecê-Ia. Se soubessequalquer coisa de útil para a minha pátria e que fosse prejudicialà Europa, ou, ainda, que fosse útil à Europa e prejudicial à hu­manidade, eu a consideraria um crime" (Montesquieu). Que es-

candaloso paradoxo se apenas os países capitalistas desejasseme pudessem assegurar hoje em literatura comparada os princípiosinternacionalistas de Montesquieu e Karl Marx!

Determinadas essas questões, julguei-me feliz por ouvir nossacolega da Academia de Ciências de Moscou sustentar que a lite­ratura comparada deve estudar não somente as relações entre asdiferentes literaturas da época moderna e contemporânea, mas,no seu conjunto, a história dessas relações, devendo voltar ao pas­sado mais antigo. Nieoupakoleva, que revela uma grande simpa­tia pela escola francesa de literatura comparada, me recorda, muitoa propósito, que o ensino de nossa disciplina é ministrado, naSorbonne, por um Institut de Littératures modernes et compa­rée, e que, tradicionalmente, se estuda aí não mais que as rela­ções internacionais a partir dos séculos XVI e XVII, dando maiorênfase aos séculos XIX e XX. Como se o estudo das relações en­tre a literatura grega e a literatura latina não pudessem ou nãodevessem nos interessar, a nós os comparatistas! Como se as re­lações entre o mundo grego, o árabe, o judaico, o romano, o es­lavo e o império mongol da Idade Média não fossem dignos denossa atenção! Como se, quando, ao ocupar-se da origem da tra­gédia e da comédia, o comparatista pudesse negligenciar, a par­tir de então, o livro do cônego Etienne Drioton sobre Le ThéâtreÉgyptien, prelúdio indispensável a toda reflexão sobre o trágicoe o cômico dos gregos e, conseqüentemente, sobre a dramaturgiada Europa.

Quanto aos comparatistas japoneses, se, desde a era Meiji,eles se interessam, com razão, pelas relações de seu país com asliteraturas da América e da Europa, se eles encontram motivopara estudar a influência da poética inglesa sobre a prosódia ja­ponesa, a influência das letras inglesas e italianas sobre Natsu­me Soseki, ou ainda a influência da literatura francesa sobre Aku­tagava Ryanosuke, como, sem trair o espírito de nossa discipli­na, negligenciariam eles as relações antigas e duráveis que os uni­ram à China e ao mundo budista? Quando Koichi Sakai exami­Ila a influência do 'R:h'a King sobre o Chashin Monogatari, elese comporta do mesmo modo que o francês que estuda como ollIito de Teseu, de Édipo ou de Prometeu são tratados hoje por( 'odeau e por Gide.

Poder-se-á objetar, de antemão, que a literatura compara­li;l, di fundida de modo desmesurado no espaço - já quc prctell-

1'17('RISE DA LITERATURA COMPARADA?LITERATURA COMPARADA196

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198 LITERATURA COMPARADA

de cobrir todo o planeta - poderá vir a sê-Io também no tempo,o que não permitiria, aos estudiosos da matéria, a obtenção denada mais do que rudimentos, ainda que investissem nisso todaa sua vida? Eu responderei que me limito até aqui a definir o es­pírito de nossa disciplina, e que, justamente, se trata, no presen­te, de verificar se podemos conciliar as exigências de nosso ofí­cio com a duração média da vida de um homem, mesmo que se­ja ele comparatista.

NOTAS

1 CL Hygiime des Lettres. 1. 3, Savoir et goUt. Paris: Gallimard, 1958, p. 154-73.2 O autor cita o título em francês de uma obra editada em Te!Aviv, em hebreu, edições

Dvir, 1955. (N. da T.)3 Tal nacionalismo, como bem acentuou Mortier, professor da Universidade de Bruxe­

las, apresenta um grande progresso se comparado ao de Louis Raynaud, que condenavano romantismo o fato de ser um movimento de origem germânica.

SOBRE O ESTUDODA LITERATURA COMPARADA*

Victor M Zhirmunsky

Tem sido uma prática comum a interpretação do estudo de "lite­ratura comparli\-da" em termos de "influências literárias";considera-se cada semelhança mais ou menos casual entre os au­tores ou entre suas obras como o resultado de "influências literá­rias" exteriores, venham estas do mesmo país ou de países estran­geiros. Esta abordagem aos estudos comparativos, ainda bastantedifundida nos tempos atuais, deu origem a uma atitude geralmen­te cética em relação a um método de comparação de fatos literá­rios indiscriminado e formal, que consistentemente ignora fatos re­levantes, como, por exemplo, a personalidade criativa do autor, aconexão de sua obra com a vida social que ela reflete, sua origemnacional e histórica e as adaptações ao tempo, lugar e individuali­dade, aos quais tais "empréstimos" necessariamente se sujeitam.

Porém, a despeito desse fato, parece-me que em pesquisa li­terária, bem como em outros estudos sociais, a comparação temsido sempre - e assim deverá permanecer - o princípio básicoda investigação histórica. A comparação não destrói a particu­laridade do objeto estudado, seja este individual, nacional ou his­tórico; pelo contrário, são precisamente os pontos de similarida­de e diferença entre os objetos comparados que - começandocom uma justaposição elementar - nos levam finalmente à suaexplanação histórica. Neste sentido, o estudo comparativo, den­tro ou além dos limites de uma literatura nacional, deve ser vistocomo um princípio fundamental da pesquisa literária.

• ZHIRMUNSKY, Victor M. On the Study of Comparative Literature. Oxford Slavonic/',,/)('rs, 13 (1967), 1-13. Conferência pronunciada na Tay10r Institution, em Oxford, a.!'i de abril de 1966. O acadêmico Zhirmunsky recebeu, no dia seguinte, o título de Dou­I", I!onoris Causa em Letras, no Teatro She1donian.

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200 LITERATURA COMPARADA :;( lItRH O ESTUDO DA LITERATURA COMPARADA 201

Movimentos literários em geral e fatos literários em parti­cular, considerados como fenômenos internacionais, são parcial­mente baseados em desenvolvimentos históricos similares na vi­da social dos respectivos povos e, parcialmente, em suas relaçõesculturais e literárias recíprocas. Quando consideramos as tendên­cias internacionais na evolução da literatura, devemos distinguirentre analogias tipológicas e importações culturais ou "influên­cias", que são elas mesmas baseadas em similaridades na evolu­ção social. 1

Neste sentido, o estudo comparativo da literatura pressupõe,como princípio básico, a noção de unidade e regl,llaridade na evo­lução social da humanidade em geral. Semelhanças no domíniodas idéias, entre povos em estágios de desenvolvimento históricosemelhantes, são baseadas nos paralelismos de sua organizaçãosocial - paralelismos que podem ser traçados mesmo entre ospovos da Europa Ocidental e da Ásia Central durante o períodofeudal. Analogias tipológicas, ou convergências do mesmo tipoentre literaturas de povos distantes, sem contacto direto entre si,são muito mais comuns do que geralmente se supõe. Este fatofoi confirmado por meus estudos sobre o folclore e a literaturamedieval clássica das nações iranianas, árabes e turcas do Orien­te Próximo e do Oriente Médio, comparadas com as do Ociden­te germânico, românico e eslavo. Certamente, as convergênciassão sempre temperadas (como em outras esferas da vida social)por divergências específicas causadas por peculiaridades do de­senvolvimento histórico local e nacional. Os estudos comparati­vos dessas tendências comuns na evolução literária conduzem auma compreensão de algumas das leis gerais do desenvolvimen­to literário e de suas precondições sociais e, ao mesmo tempo,a uma compreensão mais profunda das peculiaridades históri­cas e nacionais de cada literatura individual.

Começarei com dois exemplos, que já discuti de maneira maisexplícita em russo.2 A poesia heróica de tipo essencialmente nar­rativo (canções e poemas épicos) emergiu independentemente entrepovos diferentes em um estágio inicial de desenvolvimento social(a assim chamada "idade heróica"). Já se demonstrou que exem­plos de tal poesia, que sobreviveu em forma oral e escrita, pos­suem numerosos elementos de similaridade, como ficou eviden­te em obras clássicas da erudição inglesa, tais como a HeroicPoetry, de Sir Maurice Bowra e The Growth of Literature, de H.

Munro Chadwick e Nora Chadwick. Pontos de similaridade tí­picos desta espécie são, por exemplo, o nascimento mÍraculosodo herói; sua invulnerabilidade mágica; suas proezas na primei­ra infância; sua conquista de um maravilhoso cavalo de batalhac de uma espada de qualidades sobrenaturais; a idealização tra­dicional do herói e dos guerreiros que o acompanham, de suaforça e coragem (provadas em uma batalha com inimigos inu­meráveis, com um dragão ou outros tipos de monstros, ou comum gigante de imensa estatura e grande força física e de horrívelfeiúra). Outras características comuns são o costume da frater­nidade adotiva entre dois heróis, como seqüela a um combatesingular no qual eles demonstram igual valor; a figura típica dadonzela guerreira, que o herói derrota em batalha e em seguidatoma como noiva; episódios na busca por uma noiva, a "corteheróica" envolvendo os concorrentes em competições de cavala­ria, arco e flecha e luta corporal.

Estas similaridades foram, no princípio, estudadas num li­mitado contexto indo-europeu e eram atribuídas a um fundo co­mum de mitos e tradições épicas "arianas" (isto é, proto-indo­européias) - uma teoria que recentemente encontrou novos ad­vogados entre os "neomitólogos", como, por exemplo, GeorgesDumesnil e Jan de Vries. Mas existem às vezes tantos pontos desemelhança entre canções épicas turcas e mongólicas e as by/inyrussas como entre estas últimas e os épicos germânicos. Mais tarde,foi apresentada uma hipótese envolvendo "influências" e "em­préstimos". Um grande número de obras interpretam desta ma­neira todas as semelhanças que existem entre épicos de diferen­tes povos; por exemplo, entre o alemão e o celta (Zimmer) e oescandinavo e o russo (Stender-Petersen). Alguns encontram asorigens do épico francês e do espanhol na lenda heróica alemã(Pio Rajna e Menéndez Pidal), das canções junak da Sérvia naschansons de geste francesas (Vaillant), ou das by/iny russas emfontes persas ou turco-mongólicas (Vsevolod Miller e V. Stasov).Mas o caráter universal das analogias observáveis nas literaturas(~picasde muitos povos que nunca estiveram em contacto diretouns com os outros torna essas hipóteses bastante inconsistentes.

Os seguintes exemplos servem para ilustrar este ponto de vis­Ia. Não são apenas os heróis de origem indo-européia, como Aqui­ks, Siegfried, Isfendiar (no Shahnama) e Sosruko (no épico Os­s('/c Nart), que possuem invulnerabilidade mágica: a maioria dos

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I

t SOBRE o ESTUDO DA LITERATURA COMPARADA 203

heróis dos épicos turcos e mongóis (tal como, por exemplo, AI­pamysh) gozam da mesma qualidade mágica - diz-se geralmen­te deles que "lanças não podem penetrá-Ias, espadas não podemferi-Ias e que as flechas ricocheteiam em seus corpos". Mesmo as­sim, a maioria dos heróis são' 'condicionalmente vulneráveis": oponto vulnerável de Siegfried localiza-se entre suas omoplatas, emAquiles no calcanhar, em Isfendiar no seu único olho, em Sosru­ko no joelho. Assim, o conceito da mágica invulnerabilidade doherói torna-se reconciliável com a história de sua morte trágica.

A infância heróica (enjances) dos paladinos das chansonsde geste (CarIos Magno, Roland, Vivien, etc.) se parece com ados heróis da byliny russa, como, por exemplo, acontece com osjovens Konstantinushko e Ermak Timofeevich. Os jovens Rolande Aimeri de Narbonne realizam seus primeiros feitos heróicos naausência dos mais velhos e à testa de um bando de outros jovens.Uma história semelhante é cantada na "Canção dos três meni­nos" Kalmyk (filhos do Khan Dzhangar e de seus homens) que,na ausência de seus pais, salvam sua terra de uma invasão estran­geira; épicos usbeques também contam os feitos de Nurali e Raws­han, os heróicos netos do famoso Gorogli que, nas idades de no­ve e sete anos, respectivamente, salvam o pai de Nurali, Awaz~Khan, quando este se encontra cercado por seus inimigos e antesque Gorogli e seus guarda-costas possam vir em sua ajuda.

"Jurei pertencer somente àquele que me derrotasse em com­bate singular". Estas palavras pronunciadas por Khandit, a he­roína do épico armênio Davi de Sasun são repetidas, palavra porpalavra, por numerosas beldades beligerantes em épicos turcose mongóis, assim como por Nastas'ya-a-filha-do-rei (Nastas'ya­korolevishna), a amazona russa (polenitsa) que é vencida "emcampo aberto" pelo herói Dunay Ivanovich. Uma interpretaçãocorreta destas - e de uma série de outras - analogias tipológi­cas foi oferecida, acredito, por A. N. Veselovski (1838-1906), ofundador dos estudos comparativos na Rússia, em seu livro so­bre a poética dos enredos.3 Veselovski interpretou motivos poé­ticos deste tipo como fórmulas simbólicas determinadas em suasorigens por condições semelhantes de vida e psicologia social.Queria quc scu livro fosse uma "paleontologia de enredos", quetentasse revelar suas bases e precondições históricas e suas pecu­liaridades psicológicas c sociais por meio de comparações literá­rias de amplo alcancc.

Analogias tipológicas entre os épicos heróicos de povos di­ferentes, contudo, não se limitam a motivos e enredos. Elas sãomais profundas e mais gerais e incluem todo um complexo decaracterísticas externas e internas da poesia épica, como de umestágio particular de desenvolvimento cultural e literário: a subs­tância ideológica da narrativa épica e sua estrutura como gêneropoético; suas figuras e situações típicas; seu estilo tradicional (fór­mulas, epítetos fixos, repetições épicas de vários tipos); as for­mas sucessivas na evolução do gênero (formação de ciclos bio­gráficos e genealógicos; desenvolvimento, da canção curta ao poe­ma longo, da forma literária oral à escrita); e, finalmente, o sta­tus social dos menestréis épicos, o cantor e o seu público (canto­res populares e cantores das cortes principescas), o caráter da can­ção oral, com sua interação de tradição e improvisação com re­criação parcial do texto dentro dos limites de uma herança poé­tica coletiva. Semelhanças, bem como diferenças deste tipo de­vem ser consideradas como pertencentes ao campo das analogiastipo lógicas.

Meu segundo exemplo concerne o estágio seguinte no de­senvolvimento da poesia épica e relaciona-se com as similarida­des detectáveis entre os romances de cavalaria da Europa Oci­dental, dos séculos XII e XIII (o roman courtois), e o assim cha­mado "épico romântico" nas literaturas do Oriente Próximo, decerca do mesmo período. Os poemas persas do poeta Nizami, doAzerbaijão (c. 1140-1203)(Layli-u-Majunun, Khrusrow-u-Shirin,etc.) são, em muitos aspectos, semelhantes aos romances metri­ficados de seu equivalente europeu, Chrétien de Troyes, o funda­dor deste gênero na França, e de seus numerosos seguidores emtoda a Europa medieyal. O velho tema heróico é, em ambos oscasos, substituído por uma história de amor romântica; a narra­tiva se desenvolve em torno do tema psicológico do amor ideal,pintado sobre um fundo mais ou menos substancial de aventurase feitos de cavalaria; o amante corteja a sua dama em termos davassalagem feudal; enlanguesce com sua ausência e, por vezes,desmaia em sua presença; o amor é representado como uma es­pécie de doença que pode mesmo levar à insanidade (Majnun,no poema de Nizami, e Lancelot ou Yvain, nos de Chrétien). Tu­do isto é expressado em termos de introspecção psicológica ­solilóquios do herói, diálogos, epístolas líricas, etc.

Uma comparação dos romances metrificados de Chréticn c

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204 LITERATURA COMPARADA SOBRE O ESTUDO DA LITERATURA COMPARADA 205

Nizami revela aspectos semelhantes de um gênero literário novoe, ao mesmo tempo, de uma época cultural específica, que sãointeiramente independentes de qualquer "influência" ou "em­préstimo" diretos. A disseminada popularidade deste gênero, tantono Ocidente quanto no Oriente, é testemunho do fato de que elese tornou a encarnação poética da nova ideologia da sociedadefeudal em um estágio avançado de seu desenvolvimento e umareflexão idealizada de condições sociais semelhantes, que, inci­dentalmente, eram mais adiantadas no Oriente do que no Oci­dente.

Poderíamos, também, comparar as canções de amor dos trou­veres e Minnesinger do Ocidente com as dos poetas árabes clás­sicos, seus predecessores e contemporâneos. Sua similaridade, noque concerne ao conteúdo psicológico e - em parte - ao estilopoético, que é tão notável, por exemplo, em O colar da pombado poeta andaluz Ibn-Hazm (primeira metade do século XI) é,a meu ver, não uma indicação de influência literária, mas de ana­logia tipológica - mesmo se admitindo a possibilidade de umintercâmbio cultural entre a Espanha árabe e o sul da França.4

O exemplo mais instrutivo de estreita semelhança entre doisentrechos narrativos dentro da moldura de um gênero comumé, certamente, aquele que se constata entre o romance medievalfrancês lNstan et Iseult (cuja primeira redação data provavelmentede 1150)e o poema romântico persa de Gurgani Vis-u-Ramin (da­tado de meados do século XI e com um enredo que pode ser lo­calizado em uma fonte persa-média). A similaridade entre as duasnarrativas é tão notável que o problema das fontes orientais deTristan foi mais de uma vez debatido (por R. Zenker e, mais re­centemente, por F. R. Schroeder) - embora de maneira não con­clusiva.5 Por outro lado, os canais pelos quais a influência ira­niana poderia passar para a literatura francesa antiga não po­dem ser identificados dentro de um razoável grau de probabili­dade; além disso (como foi mostrado por G. Schoepperle e porA. Smirnov),6 o romance francês obviamente utiliza fontes cél­ticas locais, como, por exemplo, Diarmuid e Gráinne, da antigatradição irlandesa. Compartilho inteiramente o ceticismo de V.Minorsky sobre este assunto,? e a mim parece que a semelhan­ça entre os enredos é ainda outra instância de analogia tipológi­ca determinada por condições sociais semelhantes e por pré­requisitos similares na construção do enredo.

Quando nos voltamos para a história das literaturas euro­péias dos tempos modernos, podemos traçar, do século XVI emdiante, a mesma sucessão regular de tendências literárias e esti­los artísticos que se seguem na mesma seqüência em países dife­rentes e que são causados por tendências paralelas na evoluçãosocial: Renascença, barroco, classicismo, romantismo, realismoe naturalismo, modernismo (usado como termo geral para cor­rentes literárias variadas, tais como: impressionismo, simbolis­mo, expressionismo, surrealismo, etc.) e, finalmente, realismo so­cialista (como um novo estágio no desenvolvimento da arte rea­lista no socialismo). As diferenças no ritmo do desenvolvimentosocial são responsáveis por divergências cronológicas no padrãogeral (por exemplo, a Espanha do século XIX em comparaçãocom a França do mesmo período). Condições históricas e tradi­ções culturais especiais dão origem ao sabor nacional peculiardas respectivas literaturas. As tendências literárias gerais podempossuir um caráter mais ou menos definido ou podem, ao con­trário, desviar-se das formas clássicas (comparar, por exemplo,o realismo francês e inglês nas obras de Balzac, Flaubert, Dic­kens ou Thackeray com o caráter' 'provinciano" do realismo ale­mão - o que combina com o nível geral de desenvolvimento so­cial daquele país em meados do século XIX).

Quando falamos desta sucessão de tendências e estilos prin­cipais, temos em mente mudanças gerais em diferentes literatu­ras nacionais que são marcadas por convergências em larga es­cala, tanto de ideologias quanto de meios de expressão artística:convergência em idéias, imagens, motivos e enredos, na represen­tação do homem e da natureza, de conflitos psicológicos e lutassociais na formação de novos gêneros literários e de novos esti-

'\;'."los poéticos. TIpico da:era do romantismo é, por exemplo, o gê­nero histórico (drama e romance histórico): sua voga internacio­nal deveu-se à elevação do nível de consciência nacional duranteos conflitos sociais e internacionais da RevoluçãoFrancesa, à qualestava associado um crescente interesse pela ciência, pela arte epelo passado nacional. O desenvolvimento de tais gêneros român­ticos novos, como o poema lírico, o drama lírico e o romancelírico, está ligado às origens do individualismo moderno, ao con­flito entre o indivíduo e a sociedade burguesa contemporânea e,conseqüentemente, ao egocentrismo e à introspecção poética emliteratura. Por outro lado, a escola literária do realismo clássico

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206 LITERATURA COMPARADA

forjou por toda a Europa e América, em meados do século XIX,como principal arma de crítica da sociedade contemporânea, aforma do romance longo que retrata homens comuns e seus con­flitos diários, mostrados em suas precondições e ambientes so­ciais típicos.

Mal poderíamos nos justificar se atribuíssemos eventos lite­rários que marcaram época, tais como a mudança de classicis­mo a romantismo, de romantismo a realismo ou de realismo amodernismo, e assim por diante, a uma influência literária es­trangeira casual, ou se tentássemos explicá-Ios com os lugares­comuns dos recursos literários tradicionais e habituais da litera­tura nacional em questão. Podemos afirmar que o romantismoinglês e o alemão emergiram na mesma data (1798) como umareação contra a Revolução Francesa e o Iluminismo do séculoXVIII; o sentido de natureza panteísta de Wordsworth (como,por exemplo, em "Tintern Abbey") era semelhante ao de seuscontemporâneos alemães Tieck e Novalis, embora ele não tenhajamais estudado filosofia alemã, como fizera seu amigo Cole­ridge. Mas, por outro lado, não há dúvida de que o desenvolvi­mento do romance histórico e do poema lírico na Europa duran­te o período romântico pode ser atribuído, em suas formas con­cretas, às relações literárias internacionais: à influência de mo­delos literários individuais, tais como os romances de Walter Scotte a poesia de Byron, tanto quanto os dramas históricos românti­cos se inspiraram na herança literária das tragédias e das peçashistóricas de Shakespeare. Sem esses modelos, a literatura român­tica na Europa teria desenvolvido tendências similares gerais, maselas teriam tomado outras formas individuais.

Os exemplos acima citados podem mostrar que convergên­cias ou analogias tipo lógicas no desenvolvimento de literaturassão geralmente cruzadas por tendências literárias internacionais,contactos e influências - um fato que obviamente não pode serignorado no estudo de literatura comparada. A história da hu­manidade não pode mostrar exemplos de um desenvolvimentosocial, cultural (e conseqüentemente) literário isolado, intocadopor tais influências entrecruzadas. Cada grande literatura desen­volveu seu caráter nacional em constante interação com outrasliteraturas.

Quando falamos de influências literárias internacionais, épreciso ter em mente as seguintes considerações gerais. Em primei-

ro lugar, uma influência literária não é um impulso mecânico eacidental vindo do exterior, ou um mero' 'acontecimento" na vi­da de um escritor ou de um grupo de escritores. Ela não se origi­na com a leitura de um livro ou com o desejo de seguir uma mo­da literária ou com um encontro com um transmetteur bilíngüe- o viajante ou político émigré, tão querido dos comparatistes.Cada influência ideológica (e, daí, literária) é um fato social his­toricamente condicionado e determinado pelo desenvolvimentointerno da literatura nacional em questão. As precondições paraa adoção são a necessidade de importação ideológica e a exis­tência de tendências mais ou menos paralelas na sociedade e naliteratura adotada. Veselovskidescreveu tais tendências paralelascomo vstrechnye techeniya - "contracorrentes" - e a existên­cia dessas contracorrentes freqüentemente complica o problemade distinguir entre influências e analogias tipológicas.

Assim, a questão de saber se o Decamerão influenciou osContos de Canterbury permanece sem solução,8 embora sejaprovável que Boccaccio e Chaucer - que se encontravam já noumbral do Renascimento - tenham feito uso independente decontos medievais semelhantes, e mesmo idênticos, do tipo queera corrente na literatura urbana e no folclore. Os contos forampor eles adaptados de maneira a fornecer um quadro realista desuas sociedades - tal como o fizera anteriormente o escritor persaSaadi em seu Bustan.

Tendências similares podem ser detectadas no surgimento dodrama e do romance familiar na Inglaterra e na França - for­mas literárias características da burguesia do século XVIII. Aque­les que, como Gustave Lanson, tentaram investigar os gênerosfranceses até suas origens na tradição nacional, em vez de buscá­Ias nas fontes inglesas, não estavam provavelmente longe da ver­dade, pelo menos quanto ao início do desenvolvimento do gêne­ro (Destouches, Nivelle de Ia Chaussée, La vie de Marianne deMarivaux); mas em data posterior, nas teorias e nas peças dra­máticas de Diderot, bem como em Miss Sarah Thompson, de Les­sing, a influência da Inglaterra - a nação que liderou a era doIluminismo - é indisputável.

Tomemos um outro exemplo de caráter menos geral. O ro­mance de Alphonse Daudet Le Petit Chose (1868) pinta um qua­dro tocante e engraçado de um humilde homenzinho só e desam­parado na sua luta contra o egoísmo sem coração que reina su-

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premo na sociedade capitalista. Em suas idéias e em seu humorsentimental, o romance tem uma grande semelhança com os ro­mances de Dickens. Mas Daudet insistiu que nunca lera Dickens,embora seja certamente possível que as técnicas de um autor tãopopular quanto o grande romancista inglês tenham chegado aDaudet por intermédio de outros. Mas é bom notar que, pelo me­nos no que concerne à literatura russa, a simpática representa­ção da figura do "homenzinho", de maneira sentimental e hu­morística, ocorreu pela primeira vez em O chefe da posta (1830),de Pushkin e, mais tarde, em O capote, de Gogol (1839-41), emum período certamente anterior à influência direta exercida porDickens na "escola natural" russa e no jovem Dostoievski.

Em segundo lugar, cada influência literária envolve a trans­formação social do modelo que é adotado, isto é, sua reinterpre­tação e sua adaptação às condições literárias e sociais que deter­minaram sua influência, às novas relações de tempo e espaço, àtradição literária nacional em geral e à individualidade ideológi­ca, psicológica e artística do autor em questão.

Consideremos o seguinte caso. A literatura alemã da meta­de do século XVIII viu na épica bíblica de Milton o exemplo su­premo de arte moral e religiosa, em oposição (segundo a menta­lidade do Bürger alemão do período) à literatura 'secular', ga­lante e heróica do aristocrático classicismo francês. Mas, em so­lo alemão, o Paraíso perdido de Milton deu à luz o Messias deKlopstock. Satan, a figura central no poema de Milton, a encar­nação do espírito de rebeldia da Revolução Puritana (Blake es­creveu que Milton "pertencia, sem o saber, ao partido do Dia­bo") é substituído por uma imagem lírica de Cristo, o herói danão-resistência, cuja grandeza reside em sua humildade e mansi­dão diante da carga de sofrimento inevitável. Ao mesmo tempo,em lugar da narrativa épica, encontramos uma sucessão de qua­dros líricos que visavam a evocar uma resposta emocional do lei­tor. Esta transformação social revela não apenas a individuali­dade artística e humana de Klopstock, em contraste com a deseu grande modelo; ela também reflete o caráter de um outro tem­po e de uma sociedade diferente - o espírito piedoso e concilia­dor do Kleinbürger alemão do tempo, sentimental e introspecti­vo, politicamente impotente e regido por sua "religião do cora­ção".

Conseqüentemente, para o estudioso das influências literá-

rias, diferenças históricas, nacionais ou individuais, entre os ob­jetos de seu estudo são de não menos importância do que simi­laridades e afinidades. Tentei demonstrar esta tese muitos anosatrás ao comparar Pushkin com Byron, reconhecidamente o seumestre - um problema clássico em pesquisa comparatista na li­teratura russa antes da Revolução.9 O byronismo de Pushkin eraimportante para mim principalmente em relação a seu desenvol­vimento, dos primeiros modelos românticos a uma forma clássi­ca de realismo. A influência de Byron sobre Pushkin foi, desdeo início, uma luta contra esses modelos. De uma arte individua­lista, onde o herói, como a voz lírica do poeta, era supremo, Push­kin rapidamente desenvolveu uma visão que reconhecia o valorindependente de outras personalidades nos conflitos dramáticosde seus poemas, e veio a compreender como a nação e a socieda­de compartilham do destino dos indivíduos. O desenvolvimentode sua arte madura, da forma lírica (de proveniência byroniana)ao drama histórico ou psicológico ou ao épico em verso ou pro­sa, é um resultado desta evolução vista em termos de arte e estilopoético.

Em terceiro lugar, as conexões e as influências literárias sãocategorias históricas que variam em intensidade e em qualidade.Já mencionei em outro lugar que a canção ou o poema épico,já que o épico é, por sua própria natureza, uma idealização he­róica do passado de um povo, estão muito menos sujeitos às in­fluências internacionais do que foram os romances e as baladaspopulares medievais, ou os contos folclóricos de caráter miracu­loso, novelístico ou anedótico; pois seus enredos tinham por ob­jetivo divertir, e não refletir, uma realidade histórica e eram poristo muito suscetíveis a influências de todos os tipos. 10

É característico dos romances medievais, dos romances deTristão, Percival ou Alexandre, por exemplo, que seus enredos tra­dicionais apareçam em uma série de versões e variantes interna­cionais. Da França, a terra clássica do feudalismo, eles passaramà Inglaterra e à Alemanha, além dos Pireneus e, mesmo, à Islân­dia. Tomaram a forma típica de "traduções", que são, no casode poetas como Gottfried de Estrasburgo ou Wolfran von Eschen­bach, recriações e adaptações de um modelo francês às exigên­cias ideológicas da literatura que os toma de empréstimo e de suastradições literárias locais e talvez, em grau menor, da personali­dade do autor. Assim, o Roman de Tristan francês encontra pa-

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raleIo em uma série de versões poéticas (pelo menos quatro), noTristan alemão de Eilhart e de Gottfried, na Ballad of Sir Tris­tram inglesa e na Saga de Tristan e 1soft norueguesa.

A regularidade tipológica deste fenômeno na literatura me­dieval é claramente demonstrada por ca'sos idênticos na literatu­ra do oriente islâmico. Romances metrificados como Layli-u­Majnun, Khrusrow-u-Shirin e Yusuf-u-Zuleikha também ocorremem uma famosa série de recriações e adaptações conhecidas ge­nericamente por Nazira (literalmente, a "resposta" de um poetaao tema de outro poeta).ll Poetas clássicos dos séculos XV eXVI, como Alisher Navoy na Ásia Central ou Fizuli no Azerbai­jão turco, não menos do que seus grandes contemporâneos noOcidente - Wolfran e Gottfried -, jamais teriam pensado emreproduzir em seus poemas a realidade social de seu tempo (co­mo foi natural para um Dickens ou um Tolstoi) - eles preferiamadaptar um assunto tradicional de proveniência internacional àsua própria experiência humana e artística. No oriente, o con­servadorismo no desenvolvimento social ajudou essa prática poé­tica medieval a sobreviver até o final do século XIX.

Tudo isto é ainda mais verdadeiro em relação ao conto me­dieval. Os Schwiinke alemães são freqüentemente traduções mo­dificadas dos fabliaux franceses, que podem por sua vez ter tidoorigem em fontes orientais. Coleções de contos divertidos e ins­trutivos como os Panchatantra, os Contos do papagaio, Os setesábios, etc. fizeram o percurso da Ásia e da Europa, viajandode país em país e de literatura em literatura, sendo modificadose adaptados, em grau maior ou menor, para que melhor pudes­sem ser inseridos em novos ambientes e pontos de vista. A for­ma em prosa dos contos folclóricos orais facilitou especialmentesua migração e permitiu substituições que retiraram a cor locale os detalhes peculiares dos originais estrangeiros.

Encontramos enredos tradicionais de caráter internacionalna literatura do Renascimento - usados por Boccaccio, Arios­to, e até mesmo por Shakespeare e pelos dramaturgos elizabeta­nos, embora em suas mãos eles tenham sido transformados e in­dividualizados a um grau desconhecido na arte tradicional da Ida­de Média. Mas esta não é mais a típica forma de influência lite­rária internacional nas literaturas da Idade Moderna (séculosXVIII e XIX). As literaturas das sociedades capitalistas mostramum espírito nacional fortemente pronunciado, que não era tão

marcado na Idade Média; a arte adquire um caráter pessoal co­mo a express'ão da individualidade em pensamento, sentimentoe forma artística (dentro dos limites históricos da ideologia so­cial e da tradição literária). O romantismo de Byron e Lermon­tov, ou o realismo de Dickens e Dostoievski são diferentes tantoem relação a seu caráter nacional quanto no que concerne a seucaráter pessoal. Podemos, conseqüentemente, falar agora da in­fluência internacional de autores individuais, refletindo uma novaideologia e criando novas tendências artísticas: por exemplo, dainfluência de Byron sobre as literaturas européias durante o pe­ríodo romântico, da influência de Walter Scott no romance his­tórico europeu, das influências de Dickens, Dostoievski, Tolstoi,Checov e outros - tendo em mente, por certo, o que já falamossobre as precondições históricas para tal relacionamento literá­rio internacional e considerando a adaptação dos modelos às ne­cessidades das literaturas que tomam de empréstimo.

Assim, de mãos dadas com o surgimento do nacionalismo,das distinções e das barreiras nacionais, das literaturas nacionaisaltamente diferenciadas, desenvolveu-se a tendência a uma novaforma de troca literária internacional. Nas vésperas da Revolu­ção de 1848, Marx e Engels escreviam que esta tendência era umdos aspectos característicos da nova era capitalista:

Em lugar da velha reclusão e da auto-suficiência local e na­cional, temos relacionamentos em todas as direções, inter­dependência universal de nações. E isto tanto na produçãomaterial quanto na intelectual. As criações intelectuais denações individuais tornam-se propriedade comum ... e dasnumerosas literaturas locais e nacionais surge uma literatu­ra mundial.12

Provavelmente terá sido Goethe na sua velhice, entre 1827e 1830, seguindo e desenvolvendo as idéias de seu grande mestreHerder, o primeiro a falar no surgimento de uma literatura mun­dial ou universal (allgemeine Weltliteratur). Ele via nesta litera­tura um fenômeno da época, baseada em "um comércio maisou menos livre de bens espirituais" (freier geistiger Handelsver­kehr), e que se "estenderia além de limites nacionais e absorve­ria tudo o que existisse de realmente valioso na cultura de todosos povos, em todos os níveis de desenvolvimento histórico". Goe­Ihc disse a Eckermann: "No momento, a literatura nacional não

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tem muito valor. Estamos no umbral da era da literatura mun­dial, e cada um de nós deve trabalhar a fim de apressar o seusurgimento." 13

O próprio Goethe foi indubitavelmente o exemplo mais no­tável de poeta "universal" da nova era, ao absorver e assimilarà sua personalidade e ao seu caráter nacional a variegada tradi­ção da literatura mundial. Ele teveo mais vivo interesse pela poesiada Europa Ocidental, tanto a clássica quanto a moderna -- porShakespeare e por Byron, por Racine, Voltaire e Diderot, peloromantismo francês contemporâneo, pela poesia lírica da Pérsiae da China, pelas canções folclóricas alemãs, e pela poesia épicada Sérvia. A herança cultural nacional da Idade Média alemã (emGoetz von Berlichingen), a cultura e a arte da Antigüidade (emIphigenie), a poesia do Oriente Próximo - uma descoberta desua velhice (Westostlicher Divan) - foram estágios sucessivos deseu desenvolvimento poético e da forma de sua arte ao mesmotempo individual e nacional.

Algo semelhante a isto pode ser dito sobre Pushkin e sobreo que ele significou na história da literatura russa. Pushkin nãofoi apenas o primeiro poeta russo a ter um papel ativo e proemi­nente nos movimentos e tendências gerais da literatura européiade seu tempo: a universalidade de seu gênio introduziu a litera­tura russa na grande herança cultural da literatura mundial, gra­ças à sua assimilação criativa do folclore e da literatura clássicaoriental, eslava e européia ocidental, que ele recriou (tal comoo fizera Goethe) em novas composições poéticas de caráter a umtempo nacional e altamente pessoal.

Os modernos manuais de literatura comparada enfatizam adiferença entre literatura "geral" (ou "universal") e literatura"comparada", no sentido estrito da palavra. Considera-se quea primeira área cubra o estudo da literatura mundial em geral eque a segunda se ocupe em particular das inter-relações entre asliteraturas individuais. Para mim, tal dicotomia é o resultado deum estudo da literatura que representa sua história como umamera soma total de fatos empíricos e não como o resultado deleis e tendências gerais do desenvolvimento histórico e literário.A literatura comparada, no sentido amplo do termo, revela a exis­tência de paralelismos regulares na evolução literária, e de ana­logias tipológicas e convergências entre literaturas que parecemser sintomas de tendências gerais; ela também revela o jogo de

inter-relações literárias não menos regulares baseadas em "contra­correntes", no sentido de Veselovski. Aqui temos dois aspectosdialéticos do mesmo processo literário baseados nas leis geraisda evolução histórica.

Mas, baseada nesses princípios, a disciplina "história lite­rária universal" não pode pretender ser "geral" ou "universal"no nosso sentido do termo, uma vez que ela, de fato, inclui ape­nas as literaturas da Europa Ocidental - ou das nações euro­péias. As literaturas clássicas e modernas do Oriente, da Ásia eda África precisam encontrar um lugar nessa grande moldura his­tórica. Isto exigiria, porém, que elas perdessem aos nossos olhosaquele tom exótico que tinham ao tempo em que a arte chinesafoi, pela primeira vez, introduzida na Europa (a chinoiserie doséculo XVIII), ou que as esculturas africanas ainda possuem. Es­sas literaturas, a despeito de seu isolamento geográfico e de suascaracterísticas locais, devem tomar o seu lugar histórico no pro­cesso de evolução literária e social, exatamente como o faz a pro­dução da Europa "civilizada' '.

Tenho o prazer de comunicar que uma história da literaturamundial, em doze volumes, concebida dentro dessas linhas, estáno momento sendo planejada em Moscou pela Academia Sovié­tica de Ciências, na forma de um trabalho coletivo, preparadapor uma equipe de especialistas em várias áreas da pesquisa lite­rária. O estudo comparativo da literatura, no sentido que tenteiexpor, pode ajudar na realização desse projeto de tanta impor­tância.

NOTAS

I Ver ZHIRMUNSKY, V. M. Problemy sravnitel'no-istoricheskogo izucheniya literatur.Vzaimosuyazi i vzaimodeystvie literatur: materialy diskussii 11-15yanuarya 1960 g. M.:Izu-vo AN SSSR, 1961, p. 52-60.2 Ver ZHIRMUNSKY, V. M. Literaturnye otnosheciya Vostoka i Zapada kak proble­

lIIa aravbitel'nogo literaturovedeniya. Trudy yubileyung nauchnoy sessii: sektsiya filolo­gicl1eskikh nauk. Leningrado: Leningradsky Gosudarstvenny universitet, 1946, p. 152-78;idem. K. voprosu o literaturnykh otnosheniyakh Vostoka i Zapada. Vestnik Leningrads­Iwgo gosudarstvennogo universitets, 4 (1947), 100-19.I VI\SEWVSKI, A. N. Poetika syuzhetov. ln: -. Istoricheskaya poetika, red., vstupi­

Id'lIaya stat'ya i primechaniya V. M. Zhirmunskogo. Leningrado, 1940, p. 493-596.

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214 LITERATURA COMPARADA

4 Para uma discussão deste assunto controvertido, ver meu Literaturnye otosheniya Vos­toka i Zapada, p. 167-70.

5 ZENKER, R. Die Tristansage und das persische Epos von Wls und Râmin. Romanis­che Forschungen, 29 (1910), 321-62; SCHRODER, F. R. Die Tristansage und das persis­che Epos Wls und Râmin. Germanisch-romanisehe Monatssehrift, N. F. 11, 42 (1961),1-44.

6 SCHOEPPERLE, G. Tristan and Isolt: a Study of the Sourees of the Romance. 2~ed. Nova York, 1960. v. 2, p. 391-475; SMIRNOV, A. A. Roman o Tristane i lzol'de pokel'tskim istochnikam. In: -. Iz istorii zapadno-europeyskikh literatur. Leningrado, 1965,p. 49-64.

7 MINORSKY, V. Vis-u-Ramin (III). Bulletin of the School of Oriental and AfrieanStudies, 16 (1954), 91-92.

8 Foi respondido de maneira negativa por M. P. Alexayevem seu: "Kenterveriyskie rass­kazy" i "Dekameron". Uehenye zapiski Leningradskogo gos. pedagogieheskogo institu­ta imo A. I Gertsena [Leningrado], 41 (1941), 57-110.

9 ZHIRMUNSKY, V. M. Byron i PÍlshkin. Leningrado, 1924.10 ZHIRMUNSKY, V. M. Narodnyy geroieheskiy epos: sravnitel'no-istorieheskie oeherki.Leningrado, 1962, p. 168-69, 178-79.11 BERTEL, E. E. Izbrannye trudy. Navoy iDzhali. Moscou, 1965, p. 434-35.12 MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto of the Communist Party. Moscou, 1965, p.45-46.

13 Gespriiche mit Goethe in den lezten Jahren seines Lebens. Leipzig, 1948, p. 180-208.

PARA UMA DEFINIÇÃODE LITERATURA COMPARADA*

Claude Pichois & André M Rousseau

Que é literatura comparada? perguntávamos. Nos dois pontos es­senciais - objeto e método -, nossas idéias ganharam em cla­reza, mas a resposta continua indecisa. De que trata a literaturacomparada? Das relações literárias entre dois, três, quatro do­mínios culturais, entre todas as literaturas do globo? Sem qual­quer contestação, tal é hoje seu feudo natural.

Isto é tudo? Por direito de uso ou de conquista, para preen­cher lacunas na pesquisa e no ensino, pelo encaminhamento es­pontâneo de sua dialética, ela também trata de história das idéias,de psicologia comparada, de sociologia literária, de estética, deliteratura geral. Uma bibliografia como a de O. Klapp reflete es­sa ambigüidade. Da introdução intitulada "Generalidades", amaior parte dos comparatistas reivindicaria de bom grado a me­tade (Gêneros e formas, Sociologia da literatura, Temas e moti­vos, Literatura regional, Traduções, Influências) e acharia insu­ficientes as poucas páginas da rubrica Comparatismo consagra­das à teoria apenas. Existe então toda uma gama de estudos en­tre a interpretação estreita (estreita pela simplicidade da defini-

'í!>'çãoe não pela amplitude do domínio explorado, pois o estudodas relações literárias internacionais nada tem de estreito!) e ainterpretação ampla.

Na falta de um campo de pesquisas, detém a literatura com­parada o monopólio de um método? Método histórico, genéti­co, sociológico, estatístico, estilístico, comparativo, ela se servede cada um segundo suas necessidades. No final das contas, o

* PICHOIS, Claude & ROUSSEAU, André M. Vers une définition. ln: -. La litératureeomparée. Paris: Colin, 1967, p. 173-85.

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216 LITERATURA COMPARADA PARA UMA DEFINIÇÃO DE LITERATURA COMPARADA 217

método comparativo deveria ser seu forte. Entretanto, é tambémo que pior se aplica às relações literárias internacionais, excetoquando se trata de tradução. Negligenciando o aperfeiçoamentodesse instrumento, os comparatistas mantiveram o equívoco so­bre seu rótulo e finalmente traíram o espírito de uma especialida­de que prometia ser muito mais que um simples ramo da críticaliterária. Uma parte do mal-estar atual provém dessas hesitações.

No princípio era o espírito do escritor criador, que, entre­tanto, não se manifesta, a não ser através dos textos que tambémprecisam do leitor para atingir a plenitude de ser. Pode-se consi­derar ainda o texto, não como um ato vivo, mas como um mo­numento erigido, às vezes abandonado, hic et nunc, espécie deobjeto único e fechado, que, por seu estilo, comparado ao estilode objetos análogos, se transforma em documento, de tal modoque esse Todo se torna Parte, o Uno se funde no Múltiplo, o Ab­soluto admite o Relativo. Como os homens, cada texto é único,incomparável, insubstituível, o que não abole famílias, comuni­dades ou raças.

No centro da dialética que acabamos de esboçar situa-se aliteratura comparada, em seus quatro níveis: intercâmbios literá­rios internacionais, história literária geral, história das idéias, es­truturalismo literário. A definição seguinte resume-os em umaúnica fórmula:

A literatura comparada é a arte metódica, pela busca de la­ços de analogia, de parentesco e de influência, de aproxi­mar a literatura dos outros domínios da expressão ou do co­nhecimento, ou então os fatos e os textos literários entre si,distantes ou não no tempo ou no espaço, desde que perten­çam a várias línguas ou culturas, que façam parte de umamesma tradição, para melhor descrevê-Ios, compreendê-Iose saboreá-Ios.

Cada qual não tem mais que suprimir dessa definição o quelhe pareça deslocado ou supérfluo para chegar a seu próprio re­trato. Por exemplo, a supressão do membro da frase: "desde quepertençam ... culturas", definiria uma posição extrema do com­paratismo americano (R. Wellek) pela qual a literatura compa­rada se exerce também no interior de uma literatura nacional, en­quanto os europeus fazem da passagem da fronteira lingüísticaou cultural uma condição sine qua nono

Impelida por uma lamentável rivalidade, cada nação seapressou em adotar a fórmula literatura comparada, inventadapelos franceses, para perceber, em seguida, que já possuía seuselementos sob outro nome e outra forma. Sem entrar em dis­cussões sobre palavras, reconheçamos que há tanto de literatu­ra(s) comparada(s) quanto de combinações entre as quatro va­riedades acima.

Mas, considerando-as de perto, essas quatro variedadesencadeiam-se invencivelmente como os graus sucessivos de umaúnica e mesma reflexão sobre a literatura, desde o instante emque se consente em deixar as dependências de um território na­cional. Querer limitar a literatura comparada a um aspecto emvez de outro, pode-se justificar taticamente, em dado momento,ante adversários críticos, na medida em que, por exemplo, a pe­dagogia força a certos comprometimentos; mas essa mutilação,pois se trata de uma, é um erro contra a lógica e o dinamismodo conjunto. Para retomar uma profissão de fé de além-Atlântico,"este domínio não é uma zona marginal e não deve ser fragmen­tado por distinções artificiais. A única justificação da literaturacomparada é permitir o estudo da literatura em sua totalidade".

A experiência prova que os comparatistas mais resolutos emacantonar-se em tal ou qual setor cederam, com freqüência, aoque chamavam tentações, de fato, ao apelo imperioso de umalógica interna. Inversamente, os especialistas de uma única lite­ratura nacional inscrevem hoje no programa de seus colóquiosassuntos que antes teriam sido encaminhados ao comparatistaprofissional. Quer isto dizer que a literatura comparada, poucoa pouco diluída na massa dos estudos literários de todos os ti­pos, não representa seI).ãouma etapa diaIética e está condenada

'~,a desaparecer depois de ter desempenhado seu papel? Não é im­possível teoricamente, mas cremos antes na perenidade do com­paratista como especialista das generalidades.

Para que se realize este aniquilamento por assimilação pro­gressiva, seria preciso que a literatura comparada fosse imutá­vel. Ora, tudo nela indica uma função, no sentido matemáticodo termo, que subsiste por trás do jogo flutuante das variáveisque a compõem. Hoje caduca e transitória em aparência, ama­nhã, quando forem preenchidas as condições que a tornariam su­pérflua, já terá operado a metamorfose necessária a sua sobrevi­vência.

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218 LITERATURA COMPARADA

Fazendo agora tabula rasa dos múltiplos distinguo requeridospor uma definição erudita, podemos ater-nos a dois princípios:

1. A língua em que está escrita uma literatura ou a unidadeespiritual da coletividade da qual ela é a expressão (ligada a fron­teiras políticas, a um passado nacional, a uma religião, a um PO­vo, a uma raça, etc.) recortam naturalmente a literatura em célu­las restritas. Pondo-se acima dessas restrições, o comparatista seesforçará em nunca estudar essas células isoladamente.

2. A literatura é uma das manifestações específicas da ati­vidade espiritual do homem, no mesmo patamar em que a arte,a religião, a ação política ou social, etc. Pode-se, então, estudá­Ia como função fundamental sem consideração de tempo ou lugar.

Isto posto, podemos oferecer uma definição mais lapidar quepossa figurar em um repertório:

Literatura comparada: descrição analítica, comparação me­tódica e diferencial, interpretação sintética dos fenômenos lite­rários interlingüísticos ou interculturais, pela história, pela críti­ca e pela filosofia, a fim de melhor compreender a Literatura comofunção específica do espírito humano.

LITERATURA GERAL ELITERATURA COMPARADA*

Simon Jeune

1. Gênese da Literatura Comparada

Empregamos o termo "literatura geral" de acordo com anomenclatura que aparece no programa oficial do Primeiro Ci­clo e que conhece apenas a "história literária geral".! É assimque definimos literatura geral como aquela que liga entre si asdiversas literaturas nacionais e como aquela que estabelece pon­tes entre a literatura e as be1as-artes.2

Mas há a necessidade de se estudar simultaneamente os doistermos, literatura comparada e literatura geral, como termos nãode duplo emprego, mas, ao contrário, que se completam harmo­niosamente.

Ao invés de buscarmos apoio em definições arbitrárias, pa­rece preferível pesquisar estes dois termos através das idades lite­rárias. Ao mesmo tempo em que as palavras irão aparecer, des­cobriremos o que elas designam. Este método genético é ao mes­mo tempo mais vivo e mais comprobatório. Oferece a vantagem.~omplementar de evocar certas noções importantes da Histórialiterária tradicional e mostrar que não existe nenhuma soluçãode continuidade entre esta última e a literatura comparada.

Quando, então, vemos surgir na história da literatura as no­ções de literatura comparada e de literatura geral? Grosso modopodemos dizer que a literatura comparada data de cerca de 1830,enquanto que a literatura geral se afirma apenas na aurora doséculo XX.

* JEUNE, Simon. Genese de Ia littérature comparée. In: -. Littérature genérale et litté­rature comparée. Paris: Lettres Modernes, 1968, p. 29-57.

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220 LITERATURA COMPARADA LITERATURA GERAL E LITERATURA COMPARADA 221

A noção de literatura comparada é estranha à época clássi­ca. Isto não quer dizer que os séculos XVI e XVII não tenhamconhecido trocas entre as literaturas nacionais. Pelo contrário,essas trocas eram bastante freqüentes. Numerosos trabalhos com­paratistas estudam, nos dias de hoje, tais questões de influências.Mas os escritores franceses do século XVI, por exemplo, um Ron­sard, um Du Bellay, não tinham a sensação, quando liam os ita­lianos petrarquisantes, de abordar uma literatura verdadeiramenteestrangeira. As literaturas italiana, espanhola, francesa, perten­cem todas à mesma origem romana, à mesma língua mãe, a lín­gua latina, a uma mesma tradição, a tradição clássica, são irmãsgêmeas. Passando de uma a outra, os autores, os próprios leito­res, não se sentem expatriados, alienados. Até pelo contrário, odomínio inglês, o domínio alemão (este ainda pouco desenvolvi­do do ponto de vista literário), que naquele momento são os ver­dadeiros domínios estrangeiros, continuam pouco conhecidos pe­los povos latinos desta época. Não se tem absolutamente idéiade que trocas proveitosas possam ser estabelecidas com estas li­teraturas bárbaras, que usam línguas ininteligíveis.

É a partir do século XVIII que a situação se modifica coma descoberta que a França faz da literatura inglesa e em seguidada alemã. Já o último quartel do século XVII começa a sacudiro aparelho imponente e pesado das certezas dogmáticas, do ab­solutismo político, do Classicismo racionalista e ordenado. Pas­sávamos da estabilidade ao movimento.3 Esta "crise de cons­ciência" foi estudada em uma das mais notáveis obras de litera­tura comparada que a França já produziu, La crise de Ia cons­cience européenne, de Paul Hazard (1935, obra constantementereeditada).

O inglês "ousado pensador" e "cientista objetivo" torna-seum dos fermentos desta revolução intelectual que apaixona a Fran­ça. Conhecemos a influência de Locke, de Newton e dos pensa­dores ingleses sobre Voltaire, Montesquieu, Diderot e os filóso­fos franceses.4 Do ponto de vista literário, os Richardson, Fiel­ding, Sterne, parecem dar uma nova dimensão à realidade roma­nesca. Swift estimula o contista e o satírico Voltaire. A poesiada noite, dos túmulos, é introduzida por Young, a das charnecascaledonianas, com seus heróis bárbaros e suas soturnas pelejasfaz ressoar o nome de Ossian.5 Mas, sobretudo, á descoberta,também por Voltaire, deste bárbaro genial chamado Shakespeare,

provoca rumores infindáveis que se vão ampliando e se transfor­mam em tempestade, no último quartel do século. A tradução deTourneur que aparece entre 1776e 1782provoca a cólera violentade Voltaire que, após haver introduzido e louvado Shakespeare nosanos 30, se debate contra este autor "bom para os huguenotes".Ao contrário, para Tourneur e seus amigos, Shakespeare é a na­tureza encarnada, o dramaturgo do povo, "um colosso por entreas pernas de quem nós todos passaríamos", diz Diderot.

No último terço do século, a descoberta dos alemães vemse juntar à dos ingleses: a poesia campestre de Gessner, a religio­sa de Klopstock e sobretudo o Werther de Goethe, objeto de umverdadeiro entusiasmo entre 1776e 1800. Assim se criou um no­vo espírito na maneira de ver as literaturas e suas relações.

Enquanto no século XVII os críticos admitiam de modo ge­ral que as diversas literaturas eram expressões mais ou menos im­perfeitas de um belo ideal do qual as literaturas antigas se apro­ximavam mais do que as outras, o século XVIII não apenas seafasta da Antigüidade, mas começa a formular um princípio derelatividade do belo. Admitimos que não há um belo em si, masmúltiplas formas de beleza ligadas aos diferentes climas, aos di­ferentes povos, aos diferentes tempos, às diferentes línguas. As­sim, cada literatura, à sua maneira, poderá dar à beleza uma in­terpretação original. O Abade Du Bos é o principal teórico destaestética relativista. Mesmo um homem de gosto clássico restrito,como Voltaire, foi tentado, em sua juventude, por esta amplia­ção do gosto; sob a influência de sua permanência na Inglaterra,escreve no Essais sur Iapoésie épique, de 1728: "Quase todas asobras dos homens mudam, assim como a imaginação que as pro­duz. Os costumes, as línguas, o gosto dos povos mais vizinhos

'{f:'diferem:a mesma nação não é mais reconhecível ao fim de trêsou quatro séculos. Nas artes que dependem puramente da ima­ginação existem tantas revoluções quanto nos estados".

Deste modo, no fim do século XVIII e no início do XIX,alguns críticos (nem todos) têm o sentimento de originalidade pro­funda de cada literatura nacional. Começam mesmo a esboçarreagrupamentos que se tornarão uma das idéias fundamentais dacrítica romântica. Opõem as literaturas do Norte (Inglaterra e Ale­manha, principalmente) às do Sul (Itália, Espanha e eventual­mente a França). Vemos que se prepara, assim, a definição dasliteraturas "românticas", essencialmente nórdicas, que eonser-

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varam uma ligação orgânica com suas tradições nacionais e me­dievais.

Dentre os pioneiros da crítica romântica, é preciso citar Wil­helm Schlegel, Mmede Stael e seu pequeno grupo de amigos, fre­qüentadores de seu salão de Coppet, próximo a Genebra. Alémdisso, Schlegel fez, ele próprio, durante algum tempo, parte des­te grupo, pois foi o preceptor dos filhos de Mmede StaeI. Talveztenha sido em Coppet que se tenham preocupado mais intensa­mente, com os Bonstetten (L'homme du nord et l'homme du midi,1824) e os Sismondi, em definir os dois grupos étnicos, os doisespíritos, as duas literaturas do Norte e do Sul. Isto não é sur­preendente se consideramos que a Suíça representa precisamenteo cruzamento vivo do norte com o sul.

Assim, o século XVIII tem o sentimento de irredutível ori­ginalidade de cada literatura nacional. Mas uma outra idéia vemcompletar e nuançar esta: a da necessidade de influências estran­geiras para renovar o patrimônio nacional. Dito de outra forma,não consideramos esta originalidade como fechada em si mes­ma. Achamos que ela pode ter uma ação fecunda. Já Garat es­crevia, em fevereiro de 1780, em Le Mercure de France, revistaque não tinha como maior virtude o cosmopolitismo: "Um es­tudo comparado dos escritores de que se orgulham as nações quetêm uma literatura é sem dúvida o que existe de mais propíciopara fecundar e multiplicar talentos."

E Frédéric Schlegel, sonhando precisamente em fecundar ostalentos germânicos, declarava em 1803: "É preciso exaltar al­guns ilustres poetas que pretendem transplantar as belezas da poe­sia italiana e espanhola para nosso solo nacional, pois as floresde cores frescas e ornamentos artísticos destas produções pare­cem realmente próprias para conter e alegrar a seriedade seten­trional de nossa velha poesia alemã."6

Mmede Stael desempenha, neste domínio, um papel decisi­vo. Seu grande livro De l'Allemagne, publicado em 1810, mas con­fiscado por Napoleão e difundido unicamente em 1813, pode serconsiderado como uma das primeiras obras comparatistas porsua preocupação em apresentar a mentalidade alemã (as menta­lidades, pois há o Sul e o Norte da Alemanha) e a literatura ale­mã em paralelo não apenas explícito, mas também implícito, coma França. É nesta obra que encontramos um belo elogio à influên­cia intelectual do estrangeiro:

As nações devem servir de guias umas às outras e todas seenganam ao se privarem das luzes que podem mutuamentese oferecer. Há algo de bastante singular na diferença entreum povo e outro: o clima, o aspecto da natureza, a língua,o governo, enfim, em especial os acontecimentos da histó­ria, poder ainda mais extraordinário que todos os outros,contribuem para esta diversidade e nenhum homem, por su­perior que seja, pode adivinhar o que se desenvolve natural­mente no espírito daquele que vive sobre outro solo e respi­ra um outro ar: faz-se bem, em qualquer país, em acolheros pensamentos estrangeiros, pois desta maneira a hospita­lidade faz a fortuna de quem recebe.

Página especialmente bela que desemboca em um cosmo­politismo otimista e na qual se reencontram as duas idéias fun­damentais já assinaladas: originalidade de cada povo, benefícioda influência estrangeira.? Podemos dizer que essas duas idéias,conseqüência de uma curiosidade aberta ao estrangeiro, foramverdadeiramente fundadoras da Literatura Comparada.

Na verdade é em torno de 1830 que vemos nascer a literaturacomparada (ao mesmo tempo a palavra e a coisa). A expressãoprovavelmente apareceu sob a influência das ciências: falava-semuito, então, em anatomia e zoologia comparada.8 Estudando,por exemplo, a poesia da Europa na Idade Média, Jean-JacquesAmpere,o filho do grande estudioso, e ele mesmo um bom críti­co, escreve: "É preciso estabelecer aqui, como na botânica e nazoologia, nos objetos que classificamos, não divisões arbitrárias,mas séries e famílias naturais".9 Não procederemos por compa­rações vagas; estudarerp.os, por exemplo, a passagem de um te-

'~,\ma a outro ou as filiações de uma obra a outra.Se Ampere é, sem dúvida o melhor teórico daquilo que ele

mesmo chamava de "história comparativa das artes e das litera­turas em todos os povos", é provavelmente Villemain quem deuà França o primeiro exemplo de um grande livro comparatistabaseado num método rigoroso. Seu Tableau de Ia littérature auXVI/le Siecle, redação de um curso proferido em 1828, é impor­tante não por seus aspectos ao mesmo tempo oratórios e capri­chosos. É uma obra rica e historicamente bem informada que pas­sa com facilidade da França à Inglaterra e aos países mediterrâ­neos (na verdade a Alemanha é um tanto negligenciada), que se

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prende às idéias, e segue-as em seu caminho através das frontei­ras, em suas conquistas e suas transformações. O jogo de influên­cias diretas, indiretas, recíprocas já está aí bem registrado.

Nasceu a literatura comparada.lO No início ela teve grandedificuldade em se distinguir dos estudos de literatura estrangei­ra. Na verdade, os críticos da época romântica não se especiali­zavam em literatura estrangeira, mas abriam-se a todas as influên­cias. Seus estudos testemunhavam uma preocupação quase cons­tante com a comparação com a França. Assim fazem um Jean­Jacques Ampere, um Philarete Chasles, um Edgar Quinet, umXavier Marmier, e, mais tarde, um Émile Montégut. Mas, à me­dida que os estudos de literatura estrangeira vão se fechando ca­da qual em um domínio lingüístico especial, que vão aparecen­do especialistas do inglês, alemão ou espanhol, a Literatura Com­parada assumirá, por sua vez, uma fisionomia mais distinta, maisprecisa, mais rigorosa, e se definirá como o estudo das relaçõesliterárias e intelectuais internacionais. Será uma realidade no úl­timo quartel no século XIX. 11

Quanto à expressão' 'literatura geral", esta teve um destinocurioso. Ao que parece era anterior a "literatura comparada".Nós a encontramos em Népomucene Lemercier, autor do "Cur­so Analítico de Literatura Geral" ministrado no Ateneu e publi­cado em 1817.12 Este curso era geral ao tratar de todos os gêne­ros literários, enunciando as leis gerais de cada gênero e, maisainda, ao tentar apresentar o conjunto das literaturas conheci­das com uma real abertura de espírito. Mas o termo "geral" en­contrava muitos concorrentes em 1830. O lado universal do epí­teto que agradava aos ideólogos, discípulos dos "filósofos", erabem menos sedutor aos olhos dos românticos que a proveitosa"comparação", que deixa intacta a originalidade de cada umafavorecendo as trocas.l3 Conserva-se, entretanto, várias vezes li­teratura "geral" ao lado de "mundial" ou de "universal" paradesignar o estudo dos grandes autores de todas as literaturas. Goe­the, no final da sua vida, era um fervoroso partidário da Weltli­teratur.14 Na França, Edgar Quinet torna-se o apóstolo de um"vasto Panthéon onde serão admitidas todas as formas do be­10".15 Durante a segunda metade do século XIX, certas univer­sidades forneciam um estudo muito especializado de Literatura:grandes cavalgadas históricas que passavam pelos pontos maisaltos. Mas, foi sobretudo nos Estados Unidos que na aurora do

século XX se desenvolveu um ensino deste gênero. Um fio con­dutor ligava trechos tirados das grandes obras da literatura uni­versal. E esses cursos de vulgarização chamavam-se "LiteraturaGeral".

A literatura geral assim concebida teve pouco sucesso nasuniversidades européias no século XX. Era considerada rápida,superficial, senão elementar. Mas, a palavra foi finalmente reto­mada para definir certos estudos comparatistas mais amplos oumais ambiciosos do que os outros. Trata-se, então, menos de re­sumir a literatura mundial do que de estudar os movimentos, ascorrentes internacionais de envergadura maior ou menor.

Chegamos, deste modo, à seguinte divisão, às vezes arbitrá­ria, mas cômoda e bastante expressiva: a literatura comparadaestuda essencialmente as influências entre autores ou entre lite­raturas de diferentes nações, assim como a propagação dessas in­fluências. O ponto de partida nacional nunca é perdido de vistae os estudos, freqüentemente, são de uma precisão minuciosa;por exemplo, a influência do teatro espanhol sobre Corneille ousobre Claudel, a fortuna crítica de Baudelaire na Alemanha. Osadversários deste gênero de estudos associam o comparatista aum agente alfandegário da literatura que vigia nas fronteiras apassagem dos livros, conta as traduções e se empenha em desco­brir tudo que possa trazer marcas do estrangeiro. Mas, esta ima­gem nada tem de ofensivo. Um bom agente alfandegário mani­festa qualidades de destaque; observação, intuição psicológica,engenhosidade e também uma certa humanidade: o senso de dis­criminação e de nuances. Tais são exatamente as qualidades docomparatista, inclusive o insubstituível "faro". Um comparatis­ta alemão de renome cqega a intitular uma de suas obras como'Nas fronteiras das literaturas nacionais" (Kurt Wais, An den

Grenzen der Nationalliteraturen, Berlim, 1958).A literatura geral, ao contrário, se ergue acima das frontei­

ras e do ponto de vista nacional. Elabora sínteses. Seu ponto departida não é um autor ou um país, mas um elemento em si mes­11I0 internacional: um tema ou um tipo, um gênero literário, umIllovimento. Por exemplo, o tema do conquistador, Fausto, DonIlIall, o soneto, o romantismo. Enquanto a literatura comparadaIl'ce lima espécie de teia de aranha entre os autores de diversaslill'laturas, a complexa rede de interconexões literárias, a litera­1111;1 geral, utilizando as aquisições da literatura comparada, as

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ultrapassa. Estende um imenso "toldo" ou edifica uma vasta cú­pula sobre as literaturas nacionais. Ocupa-se, deste modo, me­nos em uni-Ias do que em incluí-Ias num grande conjunto cujocoroamento constrói.

2. Relações entre escritores estrangeiros

Trataremos aqui da literatura comparada propriamente di­ta: as relações literárias internacionais, as que se estabelecem en­tre um autor nacional (ou um grupo destes autores) e um autorou um público estrangeiro. Essas relações, essas trocas, podemtomar fisionomias diversas. Um autor, uma obra, pode ser a fontede outra: há quem diga, por exemplo, que Guillén de Castro éa fonte do Cid; diz-se, também, que em seu romance históricoLes Chouans Balzac se inspirou em Walter Scott, e mais aindaem Fenimore Cooper, cujos romances que descreviam a florestae a pradaria americanas, naquela época faziam grande sucessona Europa. Cooper é, pois, uma "fonte" de Balzac e os Vendéensdeste não estão longe dos moicanos do autor americano. Natu­ralmente as fontes podem ser mais ou menos claras, mais ou me­nos evidentes, às vezes fragmentárias, às vezes contestáveis. Nemsempre um autor confessa suas "fontes". Acontece de até mes­mo camuflá-Ias. Balzac inventa uma história confusa para expli­car a origem de seu conto fantástico "L'Elixir de longue vie",quando a influência direta de Hoffman é inegável.

Ao lado das fontes, podemo-nos interessar pelo sucesso oupela fortuna crítica de uma obra estrangeira em um dado país.Podemos estudar o sucesso arrebatador do Werther no fim doséculo XVIII na França, o dos Bandidos de Schiller .um poucomais tarde, ou de uma obra cuja influência foi mais social e hu­mana do que literária: o romance antiescravagista de Mrs. Bee­cher-Stowe, A cabana do Pai Tomás, em 1852 (11traduções dife­rentes em 10meses). Esses estudos de sucesso se aplicam freqüen­temente a obras de mérito literário modesto mas de grande tira­gem (o que hoje em dia chamamos de best-seller). Um exemplotípico, além de A cabana do Pai Tomás, seria o romance cristão"histórico-decorativo e místico-erótico" (Jean Fabre) do polo­nês Sienkiewicz, Quo Vadis (1896). Num outro gênero, o ro-

mance de guerra pacifista e de horror de Erich Maria Remarque,Nada de novo no front (1929), comoveu profundamente a opi­nião de todo o Ocidente. Percebemos aí uma idéia importante:a literatura comparada é levada a se interessar tanto pelas reali­dades políticas e sociais, pelo movimento das idéias e pela histó­ria dos costumes e do gosto em geral quanto pela própria litera­tura. Também deste ponto de vista a literatura comparada esta­belece pontes.

O termo "fortuna crítica" tem uma dimensão mais vasta.Engloba naturalmente o sucesso (bom ou mau, ou parcial, outardio, etc.) mas estuda toda a vida da obra (original, traduzi daou criticada) em um país estrangeiro. Evoca as diversas interpre­tações que lhe são dadas, freqüentemente até as influências maisou menos precisas, mais ou menos diretas que pôde exercer so­bre escritores e pensadores desse país estrangeiro. Há, portanto,em relação ao "sucesso" noções complementares de duração ede influência. Mas, sobretudo, o sucesso, em geral, é o de umlivro, a fortuna crítica é, em geral, a do conjunto de uma obra.Le Goethe en France (1904), de Fernand Baldensperger, Goetheen Angleterre (1920) de Jean-Marie Carré são modelos deste gê­nero de estudos.

Enfim, quando a reputação de um autor toma tal dimensãoque à sombra que projeta aparece como desmesuradamente am­pliada, por vezes deformada, quando a verdade sobre um autoré substituída, correntemente, pelo óbvio ou pela lenda, podemosfalar do "mito" de um autor.

Desse modo, Etiemble se dedicou durante longos anos aoestudo do "mito" Rimbaud através da literatura (três volumesque apareceram de 1952a 1961).Procurou mostrar a elaboração

",deste "mito" que ele próprio contribuiu, deste modo, para des­montar, desmitificando a opinião, avaliando que Rimbaud é aindamaior quando se livra de todas as interpretações convencionaisou partidárias.

. Os estudos de fontes, do sucesso, da fortuna crítica, da re­putação, do mito podem ser resumidos em uma palavra, tomadaem seu sentido mais amplo: influência. Esta noção de influên­cia, já importante nas literaturas nacionais, recebe um valor acen­tuado na Literatura Comparada. Na verdade, no seio de uma sóe mesma literatura o problema das influências é relativamente sim­ples. O contato entre o autor que influencia e o autor que é in-

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fluenciado (os comparatistas dizem "às vezes: o contato entre oemissor e o receptor) se faz da forma mais simples, raramentepelo conhecimento direto e pessoal, de modo geral pelo texto ori­ginal impresso, escrito em língua comum aos dois autores. Naliteratura comparada as questões se multiplicam ao mesmo tem­po em que se multiplicam os intermediários. O conhecimento di­reto e pessoal torna-se realmente excepcional (seria o caso de umRilke, estabelecendo amizade com Valéry e admirando-o com en­tusiasmo, ou de Michelet, vivendo em comunhão de pensamen­to com Mickiewicz). Entre autores estrangeiros, é muito raro, poroutro lado, que a influência se exerça diretamente através de umtexto lido na língua original. O conhecimento se faz graças a in­termediários muito variados: viajantes que redigem um diário oua narrativa de seus encontros; emigrados por razões políticas, eco­nômicas, sociais; círculos, salões ou associações cosmopolitas quesão como encruzilhadas; revistas e jornais especializados na des­coberta do exterior, críticos literários igualmente especializadosna apresentação de obras estrangeiras, como Philarete Chaslesentre 1830 e 1870, um Charles du Bos ou um Edmond Jalouxentre as duas guerras. Mas, o intermediário mais freqüente con­tinua sendo, naturalmente, o tradutor. Ele é tão mais importantequanto mais se coloque inteiramente a serviço daquele de quemtraduz. Mas, por múltiplas razões, isto permanece impossível, ebasta lembrar o provérbio italiano para perceber que tradutor etraidor são doublets; são apenas traduções de duas palavras lati­nas muito próximas.

O problema das influências estrangeiras é pois singularmentemais complexo que o das influências autóctones. Indiquemos umaconseqüência essencial desta complicação: contrariamente ao quese passa no seio de uma influência nacional, a influência estran­geira comporta necessariamente uma deformação do original, eisto por diversas razões:

1) Mesmo que não sejamos uns fanáticos da psicologia dasraças, somos obrigados a admitir que as mentalidades não sãoexatamente as mesmas de um povo a outro. Um autor estrangei­ro não está forçosamente de acordo com a sensibilidade france­sa. Isto não impede que este desacordo seja freqüentemente fe­cundo: aceitamos do estrangeiro um estranhamento ao país quecondenaríamos se o encontrássemos em um compatriota. Mus­set faz, prazerosamente, esta observação a propósito do alemão

Jean-Paul Richter: "O escritor que os franceses mais amam naqualidade de alemão e que detestariam ainda mais se ele tivessetido a infelicidade de nascer na França". No entanto, vemos nas­cer aqui uma primeira fonte de deformação. Os franceses nãocompreenderam adequadamente o Fausto que, apesar disso, fezgrande sucesso na França. Deste guardou-se apenas a atmosferasatânica e o episódio de Margarida.

2) Um autor estrangeiro, mesmo lido no original, nem sem­pre é bem compreendido pelo leitor, mesmo que este seja umagran~ figura e um grande escritor. Não é necessário insistir nes­te fato. Grandes autores não são forçosamente grandes lingüistas.Mesmo as ótimas traduções do Paraísoperdido por Chateaubriande dos Contos de Poe por Baudelaire não são casos de absolutafidelidade. Goethe encontrava prazer em ler o Fausto na tradu­ção de Gérard de Nerval, porque descobria em sua obra um sa­bor novo. Não é isso o mesmo que confessar que ele absoluta­mente não a reconhecia? A distorção aparece pela primeira vezno nível da tradução; torna a aparecer pela segunda vez no mo­mento da leitura da versão francesa por um alemão, mesmo quese trate de Goethe.

3) Toda tradução é necessariamente infiel e radicalmente im­potente para dar ao texto original todo o seu sabor. A escolhaque faz o tradutor entre a tradução livre e a tradução literal éalgo com que nos conformamos por falta de melhor e que sacri­fica alguns aspectos do texto para ressaltar outros. O compara­tista consagrará uma boa parte de seus esforços à apreciação dovalor das traduções. Procurará, em seguida, informar-se sobresua difusão. E, especialmente, quando o autor for influenciadopor determinada obra 'estrangeira, buscará determinar através deque tradução poderá tomar conhecimento da obra. Desse modo,Shakespeare recorreu a Plutarco para escrever seu Júlio César.Mas não conhecia grego. Na verdade, utilizou uma tradução in­glesa da tradução francesa de Amyot. Somente esta tradução in­glesa pode ser considerada como a fonte de Shakespeare. Inver­samente, Musset, preparando-se para escrever Lorenzaccio,utilizou-se principalmente da adaptação da História de Florençade Varchi, que George Sand tinha redigido sob forma dramáti-

·ca. Mas, Musset sabia italiano e procurou em Varchi os detalhesque George Sand não tinha mantido ou havia modificado.

4) Acontece, por vezes, que uma obra estrangeira, mesmo

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importante, não seja conhecida senão por fragmentos (contra­riamente ao que se possa acreditar, a "condensação" não é ab­solutamente uma invenção americana: nós a encontramos cor­rentemente nas revistas européias do século XIX). Pode ser co­nhecida somente por análises, resenhas. Aí as oporfllnidades dedeformação se multiplicam. Os fragmentos podem mostrar os as­pectos mais característicos de uma obra? As análises são exatas?Os resumos tratam do essencial? Qual é o valor do crítico queresenha uma obra? Qual é a sua inteligência, sua competência,sua consciência? Quais são os seus pressupostos? Freqüentementeos leitores tomam como um julgamento original aquilo que nãoé senão reprodução, ou a tradução literal de um texto que apare­ceu em uma revista inglesa ou alemã. Mesmo críticos famososcomo um Philarete Chasles ou um Gustave Planche usaram estesubterfúgio. Para não falarmos de Stendhal!

5) Enfim, enquanto no interior de uma literatura nacionalo conjunto da obra de um autor é acessíve.1a todo momento (pe­lo menos nas bibliotecas), a obra de um autor estrangeiro só éconhecida, salvo algumas exceções, de forma incompleta. É raroque uma obra seja traduzida integralmente. Em geral é precisoesperar que um autor tenha atingido notoriedade no seu própriopaís para que se pense em traduzi-lo. As primeiras obras traduzi­das são, portanto, muito freqüentemente, as da maturidade. Seessas obras têm sucesso, publicam-se, em seguida, as obras dajuventude do autor em questão. Daí acontecer com os leitoresque não estão advertidos uma certa confusão e impossibilidadede reencontrar o itinerário espiritual e artístico do autor.

Os estudos sobre influências, em sentido amplo, são, pois,muito variados e muito complexos. Trata-se menos de estudar asgrandes obras tomadas em si mesmas do que sua interpretaçãoe sua posteridade (mais ou menos bem~vinda) no estrangeiro. Aspesquisas levarão\ portanto, freqüentemente a intermediários: tra­dutores, críticos, viajantes, etc. Com exceção de certos casos pri­vilegiados, não é muito freqüente poder estabelecer uma relaçãoentre duas grandes figuras (merece destaque, portanto, o caso deum Baudelaire admirador apaixonado e tradutor de Poe). Por ou­tro lado, o trabalho do comparatista leva, freqüentemente, a fa­zer aparecerem simplificações, distorções, falsos sentidos, contra­sensos. Mesmo os maiores autores, um Shakespeare, um Goethe,um Schiller, um Dostoicvski, não são sempre compreendidos fora

de sua pátria; ou então percebem-se apenas seus aspectos maisexteriores. Nada impede que estes erros, e até estes contra-sensos,sejam freqüentes quando os "culpados" são eles mesmos gran­des criadores. Estes, na verdade, não imitam, eles se inspiram.Musset toma de um conto do alemão Tieck dois amigos opostose complementares: imagina a partir de Shakespeare que a mu­lher cortejada por um se apaixona por outro que serviu de inter­mediário, e eis o esboço de uma obra extremamente original, Lescaprices de Marianne.

i Tais são, pois, os estudos de influências que tratam geral­mente de dois autores, ou de um autor e uma literatura.16 Cer­tos trabalhos mais ambiciosos tentam fazer a soma das influên­cias de um país sobre o outro. Temos, assim, obras sobre as in­fluências alemãs na França e reciprocamente,17 ou sobre as tro­cas franco-inglesas no século XVIII ou no XIX.18 Como casoextremo, temos as sínteses, como o útil livrinho de Philippe VanTieghem relativo às Influences étrangeres dans Ia littérature fran­çaise (1961). A Literatura Comparada tende então a reencontrara Literatura Geral. Não se confunde, no entanto, com esta, namedida em que o ponto de referência é um autor ou um país,a perspectiva nacional permanecendo essencial.19

3. Imagem de um povo estrangeiroem uma literatura determinada

Até aqui as influências evocadas eram exclusivamente literá­rias, no sentido mais estreito do termo. O "emissor" era um au­tor, ou um grupo de autores, ou seja toda uma literatura: Faustona França, Goethe na França, os românticos alemães na Françaou seja, a influência da literatura alemã sobre a literatura france­sa. Ora o estudo remetia à acolhida feita a um livro estrangeiro,à interpretação deste livro pela crítica, ou ao número e à impor­tância das traduções, ora se preocupava mais especialmente coma influência exercida por este livro sobre os autores autóctones. Emnenhum momento abandonamos o mundo dos escritores, de suasobras, de seus intérpretes: jornalistas, críticos, professores. Se ci­tamos os viajantes, foi a propósito de seus contatos com os escri­tores, a leitura ou a vida intelectual ou cultural no estrangeiro.

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233LITERATURA GERAL E LITERATURA COMPARADA

verdade; mas o que conta é o efeito que produz sobre o público).Escreve também seu ltineraire de Paris à Jérusalem, protótipo detoda uma série de viagens à Grécia, à Terra-Santa ou mesmo aoEgito. Mas o século XIX vê curiosidades surgirem de todos oslados: Théophile Gautier e a Espanha, Edgar Quinet e a Alema­nha (ou mesmo Hugo e a Alemanha, veja-se o pitoresto álbumde viagem, Le Rhin): Taine e a Inglaterra nos esclarecem sobreas paisagens, a arte, a psicologia, a filosofia, a sociedade nessesdiversos países. O próprio livro de Mmede Stael, De l'Allemag­ne, qpe apontamos como um dos primeiros grandes exemplos deuma influência literária estrangeira não é"absolutamente prisio­neiro da literatura e dos escritores, mas tende a apresentar duascivilizações muito distintas, duas psicologias quase opostas: a daAlemanha do Norte protestante e a da Alemanha do Sul, católi­ca. Não há uma fronteira estanque entre as diferentes categoriasde obras. Certos estudos são polivalentes, a influência dos ho­mens se mistura à dos livros.

Os autores que acabamos de citar foram diferentemente in­fluenciados pelos países estrangeiros. Mas pode acontecer queesta influência se torne primordial, essencial. O que seria de Stend­hal sem a Itália? Seguramente, ele não seria Stendhal. Este ho­mem se deixou enfeitiçar a ponto de se proclamar "milanês" emseu próprio epitáfio, redigido em italiano "Arrigo Beyle, mila­nese". A Itália foi para ele a pátria ideal, enquanto que só de­monstrava severidade em relação à França, país de convençõese vaidades. Mas, o que lhe agradava na Itália não era exatamentesua literatura (ainda que fosse grande admirador de Ariosto e deTasso), eram as belas-artes: a pintura da Renascença, a músicada ópera e da ópera-bufa; eram ainda mais o clima e as paisa­gens, mas antes de mais nada os costumes de um povo que haviasabido descobrir e pôr em prática uma arte de viver (arte di go­dere) feita de simplicidade, de sinceridade, de naturalidade comuma atenção de uma indulgência toda especial para com as aven­turas do coração e da paixão. Assim é a Itália inteira, sem dúvi­da uma Itália mais sonhada do que real, que impregna a almade Stendhal e revive em sua obra.

Abordemos agora uma segunda categoria de estudos: a ima­gem de um país estrangeiro em toda uma literatura. Não é maisa Espanha vista por Théophile Gautier, mas a Espanha na litera­tura romântica; não é mais a Inglaterra vista por Voltaire ou Tai-

LITERATURA COMPARADA232

A influência de que tratamos aqui é diferente. Ainda que elase exerça sempre, exclusivamente, sobre os escritores, não é exa­tamente da mesma ordem. Não é uma obra literária que exerceuma influência, é de todo um povo estrangeiro, de um país emseu conjunto que se trata, e do qual os escritores de outro paísrecolhem a imagem ou o reflexo. A literatura se apaga, portanto,por trás de uma idéia de civilização, o livro é substituído por ummodo de vida.

Esses estudos podem-se dividir em duas grandes categorias:a influência de um país pode ser exercida sobre um só autor pri­vilegiado. Pode, ao contrário, ser enfocada como remetendo glo­balmente ao conjunto de uma determinada literatura, isto é, defato, ao conjunto dos autores mais ou menos importantes, maisou menos bem informados que falaram deste país. Notamos, emseguida, que, no primeiro caso (por exemplo Renan na Alema­nha) o autor receptor tem pelo menos tanta importância quantoo país emissor, enquanto que no outro caso (por exemplo: "a ima­gem da Alemanha nas letras francesas entre as duas últimas guer­ras"), é o país emissor e a imagem que dele apresentamos de ummodo geral que conserva importância essencial em detrimentode autores individuais.

Examinemos mais de perto essas duas categorias de obras.Todos os viajantes, na medida em que escrevem e publicam

lembranças ou narrativas de viagem de um certo valor literárioe humano contribuem para formar a imagem de um país estran­geiro. Se acontece deste viajante ser um grande escritor, sua obratem ainda mais valor. Nos séculos XVII e XVIII estes relatos fre­qüentemente são obras de missionários cuja intenção apologéti­ca não impedia necessariamente que se mostrassem ao mesmotempo deliciosos e exatos. Às vezes, por uma reação inesperada,a civilização pagã que descreviam tomava, a seus olhos, uma ri­queza, uma autenticidade maior que a sociedade cristã perverti­da pelos vÍCiosde uma sociedade evoluída: assim nasce o mitotão importante do "bom selvagem" de que se apossam com na­turalidade os filósofos ateus ou anticristãos. Mas neste mesmoséculo XVIII, os "filósofos" fazem também descobertas na Eu­ropa: Voltaire apresenta de modo favorável a Inglaterra comer­ciante e progressista nas Lettres Anglaises. No século XIX, mar­cado pelo exotismo, tais relatos se IÍlUltiplicam: Chateaubriandconta sua viagem à América (em grande parte imaginária, é

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234 LITERATURA COMPARADA I.ITERATURA GERAL E LITERATURA COMPARADA 235

ne, mas a miragem inglesa na França do século XVIII ou do XIX;não é a Alemanha de Edgar Quinet, mas o mito da Alemanhano século XIX na França. Trata-se, portanto, de estabelecer portoda uma série de estudos particulares uma imagem global obti­da, se quisermos, por superposições sucessivas. Bem entendido,a contribuição individual de cada autor é avaliada. Mas, o queconta, antes de mais nada, é a imagem resultante. Não se tratade dar uma imagem completa do país. As obras literárias estu­dadas pelo comparatista não pretendem rivalizar com os manuaisde geografia, de antropologia, de história, de economia políticaou de história das instituições. Os aspectos mais técnicos são dei­xados de lado. A vida econômica, se pode chamar a atenção doescritor honnête homme, o faz por seus lados pitorescos, exóti­cos ou arcaicos (determinado aspecto da vida artesanal ou cam­ponesa, por exemplo), ou pelo desenvolvimento insólito, parti­cularmente "espetacular" por sua rapidez e sua amplitude (o de­senvolvimento industrial dos Estados Unidos depois da segundametade do século XIX ou, posteriormente, da URSS). Mas, aisto se misturam, freqüentemente, considerações políticas: pararetomar o exemplo dos Estados Unidos ou da URSS, esta pro­gressão econômica pode vir reforçar um sentimento de admira­ção pelo grande capital ou pela livre empresa, ou, ao contrário,pela economia planificada de um regime socialista. A brusca ex­pansão econômica e colonial da Alemanha no final do séculoXIX e no começo do século XX provoca espanto e inquietudenos franceses. Os escritores - que raramente são especialistasem geografia - não retêm do estrangeiro senão aquilo que po­de realmente "interessar", no sentido mais forte do' termo, aoseu público. Ora, deixando de lado um certo exotismo superfi­cial que convida ao esquecimento, ao estranhamento feliz, à ob­servação divertida daquilo que é "diferente" pelo prazer da di­ferença, o que interessa ao público é o que permite confronta­ções "instrutivas" sobre duas maneiras de conceber e viver a vi­da, individualmente, no quadro da família, da sociedade oú danação. Finalmente, a lição de todo um país se condensa nos ti­pos humanos que têm como missão representar um povo e suamaneira de viver: esses tipos são tanto mais significativos quan­to são simplificados e enrijecidos. O século XVIII europeu, emgeral, aceita o mito do "bom selvagem" da Guiné ou das Ilhas,o do gentleman fiel à sua palavra ou tomado pelo spleen. O iní­cio do século XIX descreve um alemão sentimental e chefe de

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família, um turco impiedoso, cruel, sacrílego. No fim do mesmoséculo, a atenção se volta para os Estados Unidos com dois tiposcompletamente novos: para o "homem de negócios': o negócionão é (como indica a etimologia latina negotium) uma lamentá­vel privação de lazer, mas a atividade que dá à vida de um ho­mem sua plena significação. Daí a valorização atribuída ao di­nheiro, talvez não por ele mesmo, mas porque simboliza o suces­so de um homem. Daí uma moral do trabalho que poderia es­candalizar uma sociedade européia ainda ligada ao ideal aristo­crático da ociosidade cultivada.

Frente ao homem que trabalha, a jeune jille que lê, sai, sediverte, convive livremente com os jovens de sua idade e escolheseu próprio noivo, oferece também aos europeus do final do sé­culo XIX uma ocasião de se encandalizarem, mas também de fazê­los se voltarem para suas próprias filhas enclausuradas até o diade um casamento arranjado pelos pais, levando mais em consi­deração as fortunas a serem reunidas do que os corações que sedeveriam juntar.

Quais são as características deste imaginário com relação aospovos estrangeiros?

1) Inicialmente é extremamente simplificado. Para alguns paí­ses muito próximos de nós o assunto pode ensejar estudos compesquisa, sutis, aprofundados. Assim é o belo livro de ClaudeDigion intitulado La crise allemande de Ia pensée jrançaise de1871 à 1914. O próprio título indica que o autor, ao contráriodo que é mais freqüente, se interessa mais pelo debate de idéiasdo que por sua encarnação em tipos representativos: qual o va­lor da ciência alemã, do militarismo alemão, do espírito empreen­dedor e colonizador alemão, da universidade alemã? Quais sãoos impactos do nietzschianismo e do wagnerianismo sobre a ci­vilização? Mas, trata-se de um caso privilegiado, pois a Alema­nha logo após sua vitória sobre a França em 1871 deu origema uma profunda crise de consciência dos intelectuais francesescujo eco é interessante buscar. 20

Geralmente, em lugar de idéias encontramos imagens colo­ridas freqüentem ente com humor e fineza, mas que nem por issodeixam de ser "típicas". Basta que se pense, apenas com refe­rência à Inglaterra, nas figuras criadas por André Maurois doDoutor O'Grady (Les discours du Docteur Q'Grady) ou do Co­ronel Bramble (Les silences du Colonel Bramble) ou na silhueta

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mais recente do Major Thompson, que tornou célebre o nomePierre Daninos. Em tais retratos sintéticos, as nuances são, evi­dentemente, esquecidas.21

2) Esta estilização é ainda mais evidente no teatro do quena narrativa de caráter romanesco. Ao mesmo tempo em que ace­lera o tempo, o teatro reforça os efeitos. É conveniente que o es­pectador identifique rapidamente como tal um inglês ou um bra­sileiro. Atribuem-se, então, a estes traços muito evidentes e mui­to convencionais, razoavelmente ridículos, pois o espectador é es­pontaneamente "patrioteiro" (mais, em todo caso, do que umleitor de romance). Além disso, existeuma "tradição" muito maisimperativa no teatro do que no romance. Daí os eternos inglesesde boné, terno xadrez e culotes de golfo, ingleses de dentaduraprotuberante, roupas berrantes e rostos assustados.

3) Os tipos tendem a se entranhar em seu ser, devido a umapreguiça dos autores e, mais ainda, do público. Um dos exem­plos mais significativos é o do alemão considerado, a partir deGessner, no século XVIII, e Mmede Stael no início do séculoXIX, como um ser doce, sentimental, dado a efusões familiares,inclinado ao sonho, à especulação filosófica e incapaz de se or­ganizar em uma sociedade ativa, em uma nação forte. Apesardos gritos de alarme de um homem como Quinet que denuncia­va bem antes de 1850o militarismo e um certo imperialismo ale­mão, os compatriotas de Thine e de Renan continuavam a ver,como estes, nos alemães, metafísicos e músicos, pelo menos atéa derrota infligida pela Prússia à Áustria em Sadowa em 1866.Os tipos só evoluem, portanto, com lentidão, eles estão sempreatrasados em relação aos costumes e aos acontecimentos. A pe­quena obra de Jean-Marie Carré, Les écrivainsjrançais et te mi­rage allemand (Boivin, 1947), é significativa sob este aspecto.

4) Se os tipos nacionais são sempre esquemáticos, existempossibilidades de correção pelo fato da coexistência possível dedois tipos contraditórios, representando (ou pretendendo repre­sentar) um mesmo povo. Na verdade, o tipo é, por definição, sim­plificado. Mas, se há alguma opinião vacilante, vemos nàscer, pararepresentar um mesmo estrangeiro, dois tipos igualmente simpli­ficados, mas apresentando qualidades complementares.

A massa dos escritores franceses via, assim, na época român­tica, os turcos como bárbaros 'sedentos de sangue (lembrança daguerra de independência gregá). Mas, certos peregrinos do Oriente

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(em particular Lamartine) os descreviam como humanos e tole­rantes. Deste modo, um certo equilíbrio podia-se estabelecer. Damesma forma, a jovem americana representada pelos autores fran­ceses de comédias (Victorien Sardou) como uma emancipada pe­rigosamente dedicada a esta instituição diabólica chamadajlirt,era, ao contrário, descrita por certos autores de tendência femi­nista (como o austero Tocqueville) como modelos de virtude es­clarecida e sabedoria um pouco fria, embora livre.22

5) Enfim, o tipo literário levado ao extremo da simplifica­ção dá origem ao tipo gráfico da caricatura. E, reciprocamente,pode-haver uma influência do desenhado sobre o descrito. Os de­senhistas vão até o último limite do símbolo já que uma silhuetaé suficiente para indicar todo um povo: o grande boneco JohnBull, tão largo quanto alto, representa a Inglaterra; o Tio Sam,comprido, comprido, com o queixo enfeitado por um cavanha­que e com uma cartola na cabeça é o retrato estilizado do maiscélebre presidente dos Estados Unidos: Lincoln.

Este gênero de estudo nos afasta um tanto das "belas-letras"tradicionais. Estamos aqui, na realidade, nos confins da históriaeda história da literatura. Parece, entretanto, que podemos fa­zer uma distinção. O historiador estudará, por exemplo, os Esta­dos Unidos frente à opinião francesa no século XIX. Ele se preo­cupará antes de mais nada com o desenvolvimento da históriapolítica, das relações diplomáticas, com os problemas da emi­gração e sua repercussão na opinião, isto é, através de todos ostestemunhos, impressos ou não, que permitem apreender ou re­constituir esta opinião. Entre os impressos que constituem a massada documentação, o historiador se interessará pelos comunicadose pelos discursos ofiçiais, mas também pela revista especializada,pelas memórias de diplomatas ou pelo artigo do cotidiano po­pular, como o guia do emigrante. Assim fez René Rémond emsua grande obra, Les États Unis devant l'opinion jrançaise1815-1852 (Colin, 1962). O comparatista se preocupará com osreflexos propriamente literários desta imagem da América. Iráprocurá-Ios nos relatos de viagem de certo fôlego e das obras deimaginação (às vezes poesia, mas mais freqüentemente literaturaromanesca e teatro). Se a imagem é freqüentemente mais defor­mada que aquela que emana de um documento oficial ou técnico,ela é aureolada de um prestígio e dotada de um poder de influênciaque a torna particularmente interessante para ser destacada.

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Assim, tais estudos, que não são desprezíveis do ponto devista literário, revestem-se de uma grande importância do pontode vista da história dos costumes e das idéias. Conduzem de umlado em direção à sociologia, de outro em direção à psicologiados povos. Melhor ainda do que isto, pondo em destaque ima­gens simplificadas, distorcidas, falsas mesmo, que adquirimos deoutros povos através dos séculos, procurando e descobrindo ascausas destas deformações e distorções, a literatura comparadacontribui para dissipar o clima de incompreensão e desentendi­mento entre os povos. Elimina os mal-entendidos. Adquire umafunção política dando à palavra seu sentido mais nobre e maisgeneroso.23

NOTAS

1 "Literatura geral" e "história literária geral" são expressões vizinhas. A primeira serefere a pesquisas de caráter teórico, define os gêneros, as estruturas ou as tendênciassem referência explícita ao fator temporal. A 'segunda introduz uma preocupação crono­lógica: descreve os movimentos e as evoluções, pesquisa as origens, valoriza as influên­cias e os resultados finais. Na realidade, a primeira expressão, mais simples, tende, nouso corrente, a se generalizar. Seguiremos este emprego.

Notemos que o vocabulário técnico de editoração e catalogaçãb emprega' 'literaturageral" em outro sentido: tudo que não entra numa categoria definida e especializada deobras, por exemplo, tudo que não é nem ciência, nem religião, nem belas-artes, nem histó­ria, nem viagens; é essencialmente tudo que pertence à literatura pura e à crítica literária.

2 A esta "literatura geral", ligação entre literatura e belas-artes, os americanos chamamde Comparative Literature. Preferimos dar à "literatura comparada" um sentido maisrigoroso e mais estrito. Mas não é preciso nos atermos a essas divergências: nunca serádemais repetirmos que as fronteiras entre "literatura geral" e "literatura comparada"não são e não podem ser traçadas de forma definitiva. O que importa é o espírito deabertura para o exterior, que anima os dois gêneros de pesquisa.

3 La Fontaine é um dos primeiros escritores franceses a ler autores "do Norte", da mes­ma forma que "do Sul" (cL seu Epftre à Huet). Este cosmopolitismo indica uma am­pliação do gosto e anuncia a literatura comparada.

4 Nunca será demais insistir na importância da permanência de Voltaire na Inglaterra.André-Marie Rousseau enfatiza, em uma vasta obra, as relações entre Voltairee a Inglaterra.

5 O fato dos poemas de Ossian serem supervalorizados por Mac Phersõn não mudanada fundamentalmente. Os contemporâneps viram em Ossian "o bardo do Norte", al­guém semelhante a Homero (cL VAN TIEGHEM, Paul. Ossian en France, 2 vols. Rie­der, 1917; e Le Préromantisme, Sfelt, 1947, t. .I.

6 O julgamento de Garat é citado por Pierre Moreau, em La critique littéraire en Fran­ce (Paris: Colin, 1960,p. 84), e o de Frédéric Schlegel por Paul Van Tieghem, em Le mou­vement romantique 3~ ed., Vuibert, 1940, p. 67.

7 Goethe, espírito cosmopolita e partidário de uma Weltliteratur, aplaudiu o livro deMffie de Staêl: "Foi como uma ovelha que abriu uma larga brecha na muralha da Chinados velhos preconceitos que cresceram entre nós na França."

8 A palavra, senão a coisa no seu sentido preciso, é encontrada na França em 1817.Umuniversitário, Fr. Noêl, publicou, em colaboração com Fr. Delaplace, em 1804, nas edi­ções Le Normant, as Leçons de littérature et de morale ou Recuei! en prose et en versdes plus beaux morceaux de notre langue dans Ia littérature des deux derniers siecles.Em 1816,os dois autores publicaram as Leçons latines de littérature et de morale e, em1817,Noêl, desta vez ajudado por Chapsal, publica as Leçons anglaises de littérature etde morale. Essa obra, assim como as reedições das antologias precedentes, recebem omesmo título geral Cours de Littérature comparée, que aparecerá naturalmente nas Le­çons italiennes... de 1824 e nas Leçons allemandes ... de 1827.

9 Jean-Jacques Ampere ministrou em 1830 no Ateneu de Marselha um curso de litera­tura de grande sucesso (nossa citação é da aula inaugural de 12de março). Foi Jean-JacquesAmpere que deu, na Sorbonne, o primeiro curso oficial de "Literatura Comparada" em1832. Villemain e Ampere foram precedidos por eruditos como Raynouard e sobretudoFauriel em quem alguns viam os primeiros comparatistas. Veja-seo artigo de Sainte-Beuvesobre Jean-JacqUes Ampere (e seus antecessores). Revue des Deux Mondes, I? de setem­bro de 1808, incluído em Nouveaux Lundis XIII, p. 183-205.

10 A Alemanha desempenha igualmente um papel de primeiro plano na formação deum clima comp.aratista com suas críticas de uma vasta cultura e de uma prodigiosa cu­riosidade que são, por exemplo, os irmãos Wilhelm e Friedrich Schlegel. O primeiro, emespecial, exerceu uma grande influência através de suas aulas em Berlim sobre "A litera­tura e a arte" (1801-1804)e em Viena sobre "A literatura e a arte dramática" (1809-1811).O segundo destes cursos, que foi rapidamente publicado (1809-1811),e em seguida tradu­zido para o francês (1814), tem um papel de importância na batalha romântica. Essasobras acrescentam a um cosmopolitismo muito aberto uma hostilidade fundamental comrelação ao Classicismo francês e apresentam preconceitos bastante freqüentes.11 Os estudos de literatura comparada se multiplicam na segunda metade do século: ini­cialmente tipos históricos e legendários, depois relações entre autores estrangeiros, influênciade uma literatura sobre outra ou de uIl).grande autor sobre uma literatura estrangeira. Asobras mais consideráveis chegam a propor uma história internacional das literaturas: Histoirelittéraire du XVIJle siecle en Angleterre, en France et en Alemagne, do alemão HermannHettner (1856-1876),eLes grands courants de Ia littérature européene au XIXe siecle dodinamarquês Georg Brandes, obra brilhante e apaixonada (1872-1890).

Na França, a literatura comparada se constitui como disciplina de ensino rigorososob o impulso de Ferdinand Brunetiere. Uma primeira cadeira de Literatura Comparadafoi criada em Lyon em 1896por Joseph Texte,autor de uma tese sobre Jean-Jacques Rous­seau et les originesdu cosmopolitisme littéraire(Hachette, 1895).Em 1896começou tambéma aparecer uma Bibliographie de Littérature Comparée obra do alsaciano Louis-Paul Betz,autor de Heine in Frankreich (Zurique, 1895).12 A história da crítica na França na aurora do século XIX ainda não foi sistematica­mente traçada. Pode dar lugar a descobertas. Devo à gentileza de Régaldo, fino conhece­dor deste período negligenciado, as seguintes indicações: Sebastien Mercier ministrou de1799a 1800, no Liceu Republicano (futuro Ateneu), um curso sobre a "Literatura Anti­ga e Moderna, Francesa e Estrangeira". Os escritores estrangeiros (Shakespeare e, em par­ticular, Schiller) eram aí exaltados. Por outro lado, Ginguené, abrindo seu curso de "His­tória Literária" (e não de literatura, cabe notar a novidade do termo) no Ateneu em 1805,

_ anunciava o plano de uma vasta história literária da Europa, mas não teve tempo de es­crever senão a monumental Histoire littéraire d'Italie, muito bem informada e com ummétodo bastante moderno (1811-1819).13 Sainte-Beuve, em 1831, sonhava em se mudar de Paris para Liege onde lhe oferece-

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ram a cátedra de Literatura Comparada ou Geral. Finalmente a cátedra criada foi deLiteratura Comparada, mas Sainte-Beuve renunciou a ela.14 "A literatura nacional não significa grande coisa atualmente: chegou o momento daliteratura universal e cada um deve se ocupar em acelerar a chegada deste tempo". De­poimento de Eckerman, 31 de janeiro de 1827. Os escritos do ano de 1827 são cheiosdesses apelos à Weltliteratur.

15 De l'unité des littératures modernes. Revue des Deux Mondes, I~ ago. 1838. Cabe ob­servar o título característico.

16 Eis alguns exemplos deste tipo de obra: ESTEVE, Edmond. Byron et le romantismefrançais. Hachette, 1907; 2~ ed., Boivin, 1929 - MARKOVITCH, Milan. Rousseau etTolstoi. Champion, 1928; DÉDÉYEN, Ch. Montaigne chez ses amis anglo-saxons. Boi­vin, 1947;ESCARPIT, Robert. L'Angleterre dans l'oeuvre de Mme de Stael. Didier, 1954;VOISINE, Jacques. Jean-Jacques Rousseau en Angleterre à l'époque romantique. Di­dier, 1956; PICHOIS, Claude. L'image de Jean-Paul Richter dans les lettres françaises.Corti, 1963;ASSELINEAU, Roger, ed. The Literary Reputation of Hemingway in Euro­pe. Lettres Modernes, 1965.

Podemos aproximar este tipo de estudos das pesquisas de fontes que, a bem da ver­dade, raramente atingem as dimensões de um volume: BALDENSPERGER, Fernand.Orientations étrangéres chez H de Balzac. Champion, 1927.

Enfim, os intermediários (viajantes, críticos, salões, jornais ou periódicos) dedicam-sea estes estudos de influência, em sentido amplo. Exemplos: BALDENSPERGER, F. Lemouvement des idées dans l'émigrationfrançaise, 2 v. Plon, 1925; CARRÉ, J. M. Voya­geurs et écrivansfrançais en Egypte, 2 v. Le Caire: Imprimerie de l'lnstitut Français d'Ar­chéologie Orientale, 1923 (nouveIle ed. 1956).

Encontramos, além disso, viajantes no capítulo seguinte que evoca a imagem de umpovo estrangeiro, essas classificações não são rígidas.17 Cf. as obras antigas de SÜPFLE, T. História da influência da civilização alemã so­bre a França. Gotha, 1886 (em alemão); de RAYNAUD, Louis. Histoire générale de I'in­fluence française en Allemagne. Hachette, 1914. Da influência passamos, sem sentir, àimagem de todo um povo.18 Assim Minuet de F. C. Green (Londres: J. M. Dent, 1939), estuda as afinidades lite­rárias franco-inglesas no século XVIII e Enid Stakie, em From Gautier to Eliot: the in­fluence of France on English Literature, faz o balanço das influências francesas na In­glaterra de 1850 a 1939 (Londres: Hutchinson University Library, 1960).19 Inversamente, um estudo do tema pode se referir a dois paises. Por exemplo: o sonhona literatura alemã e francesa (Albért Béguin, L'âme romantique et le rêve). O que defi­nimos como "literatura geral" tomará, então, uma fisionomia comparatista. Notemos,entretanto, que há, neste caso, limitação voluntária a dois paises de um estudo que, emseu desenvolvimento normal (o sonho na literatura) teria uma v()Caçãomuito geral. Quandose trata da influência de um tema estrangeiro sobre um autor nacional, o aspecto "com­paratista" o envolve de forma definitiva. Por exemplo, Le theme du Rhin dans l'inspira­tion d'Apollinaire, Lettres Modernes, 1956.20 Para o período romântico dispomos da obra densa e clara de André Monchoux, L'AI­lemagne devant les lettresfrançaises de 1814à 1835. Colin, 1953, recentemente reeditada.21 O livro de Marius-François Guyard desenha com segurança e vivacidade L'image deIa Grande Bretagne dans le roman français, 1914 à 1940 (Didier, 1954).

22 Cf. JEUNE, Simon. De Graindorge à Barnabooth. Les types américains dans le ro­man et le théâtre français (1860-1917). Didier, 1964.

23 Acrescentar no caso da Espanha vista pela França: HOFFMAN, Léon-François. Ro­mantique Espagne, Paris: p.u.F., 1961;e da·Rússia: LORTHOLARY, Albert. Le miraclerusse en France au XVIlIe siecle. Boivin, 1951,e CADOT, Michel. La Russie dans Ia vieintellectuelle française (1839-1950), Fayard, 1967. .

PARA O ESTUDO COMPARATIVODE LITERATURA*

Jan Brandt Corstius

li'

[A literatura ocidental] forma uma comunidade histórica deliteraturas nacionais, que se manifesta em cada uma delas.Cada texto lírico, épico ou dramático, independente de suascaracterísticas individuais, foi em parte retirado de materialcomum e, assim, tanto confirma quanto perpetua tal comu­nidade. Para o criador de arte literária, a literatura do passa­do e do presente constitui o contexto de idéias e de formasno qual ele se insere. Os movimentos literários e a crítica li­terária também demonstram essa unidade básica da literatu­ra ocidental. A literatura comparada se baseia nessa visão daliteratura nacional. ... Ao encarar os objetos da pesquisa li­terária - textos, gêneros, movimentos, crítica - nessa pers­pectiva internacional é que a literatura comparada contribuipara o conhecimento da literatura.**

1. O leitor vs. o estudioso de literatura 1

A força propulsora do estudo de literatura é nosso senso devalores literários, que em muitos de nós surge sob a forma de umvivo interesse pela poesia e pela prosa contemporânea. Somoscativados por poemas, romances e peças modernas, que ficamosansiosos por ler, citar e discutir. Alguns de nós começam a escre­ver sua própria poesia ou prosa. São as obras líricas ou de prosa

* BRANUf CORSTIUS, Jan. Toward the Comparative Study of Literature. In: -. In­troduction to the Comparative Study of Literature. New York: Random House, 1968,p. 3-19.** Ibidem. Prefácio, p. v.

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242 LITERATURA COMPARADA

íI

PARA o ESTUDO COMPARATIVO DE LITERATURA 243

escritas por nossos contemporâneos que mais freqüentemente nosintroduzem na natureza e na arte da literatura. As primeiras im­pressões que nos causam podem determinar nossa atitude em re­lação à literatura como um todo e contribuir para darmos à crí­tica literária de nossa geração suas feições características. Quan­do, por esse processo, a literatura já se tornou parte essencial denossas vidas, não mais nos detemos em suas manifestações mo­dernas. Fazemos descobertas na poesia e na prosa de inúmerasépocas e povos. É claro que existem pessoas que são iniciadasnos mistérios da literatura através da leitura de obras de poetase prosadores do passado.

Até esse ponto, nossas experiências não diferem das de to­dos os leitores interessados. Entretanto, no momento em que de­cidimos fazer da literatura nosso objeto de estudo profissional,deixamos de ser membros normais da comunidade de leitores:nossa atitude em relação a um poema ou trecho de prosa se tor­na bem mais complicada do que a de um mero leitor. Passamosa tentar extrair o máximo possível de um texto, situando-o histó­rica e formalmente num quadro de referência. Fortalecemos nossaapreensão intelectual do objeto e nos acostumamos a pensar so­bre ele com as categorias operacionais e convencionalmente ro­tuladas de uma disciplina científica. Assim, por exemplo, paranós, Uma viagem sentimental, de Sterne: a) é um romance daera do sentimentalismo; b) pertence à tradição rabelaisiana; c)marca uma fase decisiva do desenvolvimento semântico do ter­mo "sentimental" no século XVIII; d) é o protótipo de um gê­nero romanesco de sucesso.

Somos treinados para elucidar e interpretar uma obra lite­rária, na medida em que a tratamos como um modo especial deorganização da língua, analisamos sua estrutura e pesquisamosseu contexto histórico-literário, seu pano de fundo cultural. Dessemodo, as análises frias que são típicas do estudioso em que nostransformamos tendem a interferir nos prazeres sem sofisticaçãodo leitor que éramos anteriormente. Cada um de nós, forçosa­mente, passou por essa estranha experiência. Sentimo-nos sujei­tos a uma rotina intelectual que ameaça transformar a poesia ea prosa em objetos inanimados de conhecimento.

Conscientes deste impasse, tentamos encontrar o equilíbriode todas as faculdades de que necessitamos para compreendera natureza desse ato peculiar ao ser humano, que é a criação de

literatura. Esforçamo-nos para aproximar cérebro e coração, in­tuição, sensibilidade e realização intelectual, tal como o fazem,de maneira exemplar, os grandes mestres da interpretação literária.

O estudo de literatura, além disso, pressupõe um contato con­tínuo com certo número de grandes obras - quer em suas ver­sões originais, quer em traduções. Assim, conseguimos perma­necer ligados ao espírito e às formas da verdadeira literatura. Atra­vés desse contato, nossa mente retém as normas realmente críti­cas, que às vezes corremos o risco de perder de vista no trabalhoenfadonho de estudar pormenores diminutos, mas indispensáveis.Todo estudfoso de literatura deve ter a seu alcance uma quanti­dade desses grandes livros, para que a qualquer momento possapegá-los e ler-Ihes alguns trechos, e assim se dar conta, mais umavez, daquilo que seu estudo realmente significa.

Sempre haverá relações mais ou menos tensas entre o leitorcomum e o estudioso de literatura, análogas às tradicionais ima­gens antitéticas do poeta enquanto criador e do crítico enquantoaquele que disseca a poesia. Não devemos, contudo, nem enfati­zar nem negar essa antítese. É verdade que os estudiosos de lite­ratura podem degenerar em amanuenses e "teorizadores" há mui­to abandonados pelas Musas. O leitor comum, por outro lado,pode tomar a aparência pela essência. A autêntica crítica literá­ria, entretanto, é sempre um reflexo da literatura e assim afetaa experiência interior tanto do poeta como do leitor. É por issoque a crítica literária determina o caráter da literatura, ao mes­mo tempo que é determinada por ele. Nesta relação, não há ques­tão de incompatibilidade entre o temperamento do poeta e o docrítico, nem tampouco entre o temperamento do leitor e o do es­tudioso de literatura.,

2. Uma comunidade de literaturas

Normalmente, porém, não se entra para a universidade co­mo um estudioso de literatura. Entra-se para a universidade a fimde estudar uma língua e a literatura escrita nessa língua, ou en­tão, um grupo de línguas e literaturas intimamente relacionadas.É deste modo tradicional que travamos conhecimento com as con­venções, técnicas e problemas de história e de crítica literárias.

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Adestramo-nos no conhecimento das origens da literatura emquestão e das características específicas dos diferentes períodospelos quais passou sua história, aprendendo a ver esta históriaem seus contextos político, social, econômico e cultural. Adqui­rimos um conhecimento básico dos métodos e termos utilizadosem pesquisa literária e somos instruídos sobre como aplicá-Ios.Em pouco tempo dominamos o uso das ferramentas de nosso es­tudo, tais como bibliotecas, manuais, dicionários, bibliografias,edições críticas de textos.

Enquanto isso, damo-nos conta de que nossa compreensãoda história literária que estudamos é em grande parte o resulta­do de uma minuciosa interpretação de textos. Assim, precisamosconhecer os princípios lingüísticos, estilísticos, prosódicos e es­truturais da interpretação literária; em seguida, precisamos sertreinados na sua aplicação, para apreendermos o significado dostermos-chaves e das principais formas e temas que figuram nes­ses textos. E mais: precisamos ter consciência daquilo que era en­tendido por "literatura" no decurso de vários períodos históricos.

É bastante compreensível que, durante a fase inicial de nos­so estudo, tendamos a relacionar as noções literárias que adqui­rimos à literatura específica de que nos ocupamos. Por exemplo:como estudiosos de língua e literatura inglesa, podemos ler os"Poetas do Lago" e seus contemporâneos e consultar atentamentecapítulos sobre o Romantismo em manuais de histó'ria da litera­tura inglesa. Ao fazê-Io,podemos acreditar que os fenômenos comque nos deparamos são exclusivamente ingleses. Lemos, por exem­plo, sobre a aspiração de Wordsworth de usar linguagem colo­quial e empregar recursos prosódicos simples ao escrever poesia.Sabemos que suas "baladas líricas", assim como as de Colerid­ge, foram inspiradas em canções populares. Shelley, por outrolado, acreditava na origem sobrenatural da inspiração poética eexaltou ardentemente a imaginação, a ponto de considerá-Ia oelemento principal da criação poética. Os mesmos poetas atri­buíram à poesia a augusta função de "legisladora" da humani­dade. Enquanto isso, podemos não estar conscientes de que tan­to estas práticas quanto estes tipos de concepção literária têm si­milares e podem ocorrer, na mesma época, fora das Ilhas Britâni­cas. Em nosso pensamento, limitamo-nos à literatura inglesa, aindaque as histórias que consultamos se refiram eventualmente a fe­nômenos em outras literaturas por causa de sua semelhança aos

ingleses. Inclinamo-nos a pensar que tais referências têm a vercom paralelos fortuitos e deixamos de nos dar conta de que elespodem, ao contrário, apontar para a existência de uma comuni­dade literária internacional.

Aos poucos, todavia, tomamos consciência de que, como es­tudiosos de uma literatura nacional do Ocidente, estamos conti­nuamente concentrando-nos em dados históricos, em princípiose métodos de pesquisa que são igualmente operacionais no estu­do de outras literaturas. Daí resulta que deixamos de encarar nossocampo de estudo como algo desvinculado de outros da mesmaespécie. A história de uma determinada literatura passa a presu­mir a existência de uma comunidade literária, e muitas vezes des­cobrimos que suas origens são profundamente enraizadas em ou­tras literaturas. À medida que conseguimos rastrear sua história,deparamo-nos com o impacto de textos e autores de fora de suasfronteiras. Assim, verificamos que seus períodos receberam ró­tulos internacionais não apenas por razões cronológicas, comoas expressões "Antigüidade" e "Idade Média" poderiam levar­nos a supor, mas porque esses rótulos dão conta de característi­cas literárias internacionais.

Nossa percepção de situações literárias internacionais aumen­ta com regularidade à proporção que aumenta nosso conhecimen­to de crítica literária. Gêneros, modos e recursos que a princípioconsiderávamos como de caráter tipicamente nacional parecemexistir também em outras literaturas. Uma comunidade de for­mas, temas e técnicas pode dever-se tanto a uma origem comumquanto a relações literárias internacionais, quanto ainda a umacombinação desses dois fatores.

Simultaneamente, capacitamo-nos de que tal comunidade nãoquer dizer conformidàde. Quando reconhecemos o aspecto in­ternacional de um determinado fenômeno literário, de fato é maisfácil ver, através disso, suas modificações nacionais ou individuais.Podemos então observar que os desvios e as diferenciações emrelação ao modelo internacional ao qual pertencem resultaramem algo novo e único. Por exemplo: um estudioso de língua eliteratura alemã, lendo Die Leiden des jungen Werther, de Goe­the, poderá tomar como pressuposto que este livro é um roman­ce epistolar na tradição do gênero internacional que teve tantoprestígio no século XVIII. No entanto, é a partir da concentra­ção nesta forma ficcional em seu uso específico por Goethe que

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246 LITERATURA COMPARADA í PARA o ESTUDO COMPARATIVO DE LITERATURA 247

se faz luz sobre as qualidades essenciais do famoso livro. Obser­var que o autor alemão abandonou as regras românticas do gê­nero, tais como estabelecidas primeiramente por Richardson e de­pois levadas avante por Rousseau - isto é, de cartas intercepta­das, escondidas, lidas por pessoas indevidas; cartas nunca envia­das, contidas em outras, remetidas para endereços equivocados;cartas que serviam como dissertações sobre tópicos sentimentais- é abordar Die Leiden des jungen Werther como a criação ori­ginal que foi. Ao libertar-se desses modelos do romance episto­lar, Goethe foi capaz de atingir a plenitude do uso da carta co­mo expressão do indivíduo.

Mais do que isto: uma comparação mais ampla do livro comseus predecessores evidencia que Goethe excluiu de sua obra ascostumeiras aventuras, motivos, incidentes sensacionais do roman­ce:2 não há pais cruéis, não há sedutores, empregados malévo­los; não há raptos, aprisionamentos, fugas. Como resultado, aobra foi quase completamente despojada das feições do roman­ce do século XVIII, que ainda prevaleciam na sua forma episto­lar. Além disso, Goethe não construiu uma correspondência múl­tipla, nem sequer entre duas pessoas, como seria apropriado, masempregou o gênero de um modo inteiramente seu. O produto fi­nal é um romance altamente poético, cujos períodos e estrutura,símbolos e seqüências de tempo funcionam, todos, como meiospara a auto-expressão de Werther.

O estudo de uma literatura nacional do Ocidente em cursosuniversitários também afeta nossa compreensão do caráter inter­nacional da crítica literária. Independentemente do setor da lite­ratura ocidental que tenhamos escolhido como objeto de estudo,inevitavelmente encontramos os nomes de Aristóteles, Horácio,Scaliger, Heinsius, Boileau e outros grandes teóricos da poesia.O mesmo se aplica a influentes obras críticas e didáticas do pas­sado, o que aponta para o fato histórico de que a mesma poéticaformou os modelos que subjazem à arte da poesia em vários paí­ses, enquanto os mesmos livros importantes, embora atualmentemuitas vezes nos pareçam obscuros, foram, durante eras, fontesinexauríveis de temas e imagens.

História e crítica literárias parecem ser agências internacio­nalizadoras, operando em diversas literaturas que, assim, consti­tuem grupos conexos. Regimes militares e políticos e suas con­quistas, ou supremacia cultural pacífica, foi o que determinou

a separação entre países que se tornaram parte de uma comuni­dade literária e os que não se tornaram. Isto também é verdadequanto à teoria e crítica que assumiram um papel internacionalpredominante.

3. A parte e o todo

Nosso e$tudo de qualquer literatura nacional faz-nos, assim,constatar que, para uma compreensão autêntica das obras, gê­neros e movimentos dessa literatura, devemos ao mesmo tempoencará-los como partes integrantes de um todo internacional. Naprática da pesquisa literária, esta constatação faz surgirem mui­tas dificuldades e, portanto, demanda cautela. Por exemplo: umestudioso de literatura francesa há de defrontar-se com a defesado romance epistolar feita por Rousseau no Préfáce de Julie ouentretien sur les romans de Julie ou Ia nouvelle Heloise. Para umainterpretação correta do texto, esse estudioso deve, pelo menos,ter um conhecimento mínimo de certos fenômenos literários in­ternacionais, tais como as teorias do século XVIII sobre a imita­ção literária da natureza humana, a tradição "entusiástica" dapoética, as relações, então em transformação, entre o público eo romance. Ainda assim, a despeito desse conhecimento, sua in­terpretação da defesa do gênero efetuada por Rousseau será pre­cária se o estudioso simplesmente fizer um diagnóstico do grauem que está presente no texto o pensamento literário tradicionale limitar-se a descrever o ambiente social do Prefácio. Proceden­do assim, o estudioso ,certamente não conseguirá apreender o in­teresse individual da defesa. Ao fixar-se no contexto, perde devista o texto, isto é, a maneira pela qual o gênio de Rousseau crioualgo novo a partir de coisas comuns, e com isto, por sua vez, criouum impulso para substituir o padrão e o característico em litera­tura pelo individual e original.

Falando em termos gerais, os estudiosos de literatura devemestar conscientes da individualidade literária e ao mesmo tempodesenvolverum conhecimento de comunidade literária. A primeiraé a qualidade preciosa que continuamente demanda proteção con­tra o perigo de afogar-se na correnteza do conhecimento históri­co, cultural, sociológico e filosófico. Atualmente, os objetivos e

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248LITERATURA COMPARADA PARA O ESTUDO COMPARATIVO DE LITERATURA 249

técnicas do estudo literário enfocam o caráter único de um poe­ma ou de um texto de prosa. Conseguem-se belos resultados nes­ta perspectiva, especialmente quando se trata de poesia. Entre­tanto, a unicidade é sempre de uma certa espécie, nesse caso uni­cidade literária, que se relaciona com tradições lingüísticas e pro­sódicas. Mais ainda do que as outras artes, a literatura - a arteda linguagem -liga-se a pensamento, a significado, a idéias. Con­seqüentemente, a unicidade literária também dá forma a uma partedas tradições de conteúdo. É óbvio que a individualidade de umaobra literária se manifesta tão mais convincentemente quanto maisas partes entrelaçadas que constituem o todo internacional fo­rem cuidadosamente desenredadas pela pesquisa do texto, paraque suas funções naquele exemplo específico de criatividade pos­sam ser observadas. Esses componentes, na verdade, serão prin­cipalmente tradições de estrutura, idéias e imagens, mais do quede sonoridade e ritmo, intimamente ligados à língua nacional.

Ao estudar os movimentos e épocas de uma literatura na­cional, deve-se encará-los, portanto, em relação às escolas e pe­ríodos internacionais. No caso desses processos históricos, hojeem dia aceitamos com bastante facilidade uma atuação interna­cional de características. Sabemos, porém, que ainda há estudiososque traçam o perfil de um movimento literário em linhas estrita­mente nacionais, isto é, tão logo se utiliza o termo "romantis­mo", traduzem-no para Romantismo inglês, francês, alemão, etc.Sua reação é a mesma com respeito ao Simbolismo, ao Surrea­lismo, etc. Para tais estudiosos, a noção de um movimento lite­rário é mera abstração.

Esta atitude em relação ao fenômeno aqui discutido é res­ponsável, bem curiosamente, pela confusa identificação de umrepresentante nacional de um movimento literário internacionalcom aquela "abstração", que tão freqüentemente encontramosna história e na crítica literárias. Por exemplo: como é de se es­perar, o termo "romantismo" aparece numa discussão em quesomente uma de suas cristalizações nacionais é posta em debate.A noção "abstrata", aparentemente ainda de algum valor, perdede repente seu pálido rosto e revela uma colorida maquiagem na­cional. Este manuseio parcial da entidade internacional do mo­vimento literário enfraquece a posição erudita da história e dacrítica literárias, e ainda é responsável por outra falha dessa abor­dagem. É possível apreender as características individuais nacio­nais de uma literatura apenas através do conhecimento de for-

mas e temas que marcam o modelo literário internacional daqueleperíodo. Muitas vezes consideramos como característica nacio­nal o que, evidentemente, é uma convenção internacional. De mo­do análogo, não conseguimos avaliar uma qualidade genuinamen­te nacional porque não conhecemos sua contrapartida interna­cional.

Tal reserva em relação à noção de um movimento literáriocomo parte de um fenômeno internacional decorre de uma visãodefeituosa que têm de sua tarefa alguns estudiosos de uma de­terminada literatura nacional. Os movimentos e escolas de umaliteratura naclonal são o seu principal objeto de estudo. 1êm per­feito conhecimento desse movimento específico: sua linguagem,objetivos, formas predominantes, autores, críticos, contextos cul­turais e sociais. Conhecem este mundo pelo avesso, mesmo quetenham de deparar-se com aspectos obscuros e problemas cru­ciais. É claro que sabem que movimentos semelhantes existemem outros países e eventualmente até se sentem tentados a fazercomparações ou buscar traços comuns. Mas por que ­perguntam-se - deveríamos trocar o profissionalismo pelo ama­dorismo? Por que deveríamos abandonar nosso campo de estu­do por algo que, afinal, é território estrangeiro, no qual nos ar­riscaríamos a nos perder?

Assim, propõem questões irrelevantes e de curto alcance. Umhistoriador ou crítico de uma literatura nacional não pode pres­cindir de algum conhecimento de literatura geral e comparada. Pre­cisa conhecer fenômenos internacionais: os principais tópicos deteoria literária, tais como as relações entre história e crítica literá­ria, as características dos gêneros, poética, e outros. Sobretudo,como foi mencionado,acima, ele somente se tornará um bom es­tudioso de uma literatura nacional se buscar os meios de distin­guir e, conseqüentemente, de avaliar, as qualidades literárias pro­priamente nacionais. O esforço para obter tal conhecimento nãoé nem amadorismo nem invasão de território estrangeiro.

4. A dimensão da comunidade

Esta relutância em pesquisar fenômenos literários interna­cionais é uma precaução prudente dos estudiosos - na medida

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em que faltam linhas gerais definidas da comunidade literária in­ternacional. Pois o que significa afirmar que os fenômenos deuma literatura nacional devem ser encarados como partes inte­grantes de um todo internacional? O que significa adquirir co­nhecimento de uma comunidade literária internacional? As poucassugestões oferecidas nos parágrafos precedentes apontaram paraalgumas literaturas da Europa ocidental e para o fato de que, jun­tas, elas formam uma tal comunidade, de acordo com a históriae com a crítica. Pode haver mais do que uma boa razão para queparemos por aqui. Contudo, antes de fazê-Io, examinemos umpouco mais a noção de uma comunidade literária internacional.Por que razão os argumentos que indicam a existência de umacomunidade de algumas literaturas européias ocidentais não seaplicariam à literatura ocidental como um todo, isto é, às litera­turas européias e suas derivações fora da Europa? Avancemos maisum passo: não poderia existir uma história e uma crítica comunsa todas as literaturas do mundo? A pergunta é pertinente, apesarde seu caráter altamente abstrato.

Algumas questões importantes de crítica e de teoria literá­rias têm um caráter universal, como a indagação sobre a funçãode alguns recursos literários e sobre a natureza da literatura e dainspiração literária. Qual é o significado dos elementos estrutu­rais básicos da poesia (metro e ritmo)? A literatura visa princi­palmente a estabelecer a identidade do significante e do signifi­cado, como têm proposto alguns estudiosos de literaturas bemdiferentes? A colocação em palavras e a revelação dos mais altosvalores da comunidade humana, e também ôs da personalidade,são em si mesmas transcendentes? É correto afirmar, como o fezRaymond Schwab em sua introdução à literatura oriental: "àmoins de faire cause commune avecles génies non-européens, nousn'aurons jamais qu'une idée boiteuse de ce que nous-mêmes ap­pelons Ia littérature"? O mesmo autor fala da literatura orientalcomo sendo "cette pensée jumelle et antagoniste de Ia nôtre" Econtinua: "le corpus strictement européen des littératures qu'onenseigne dans nos écoles a l'air d'un estropié congénital ou d'unmutilé volontaire." Schwab acredita poder prever' 'qu'avant Ia finde ce siecle on ne pourra plus analyser des grands processus his­toriques, en littérature grecque, française ou américaine, sans pui­ser des éléments de comparaison dans les séries orientales."3

No entanto, nenhum estudioso pode, sozinho, dar conta das

exigências feitas pela pesquisa literária numa escala universal. E,enquanto faltar a cooperação efetiva entre especialistas em lin­güística e literatura, o estudioso deve manter-se à distância deassuntos como este, se quiser evitar as armadilhas da hybris. Acooperação que se menciona aqui deve tomar a forma de umacolaboração institucionalizada em grande escala, quer concen­trada em um centro internacional, quer organizada por um nú­mero de unidades associadas de pesquisa. Deve ser patrocinadapor um organismo supranacional, como a Unesco, ou por umafundação internacional, mantida por universidades, sociedadesacadêmicas, etc. Recentemente, René Etiemble, professor de lite­ratura comparada na Sorbonne, sugeriu enfaticamente estabele­cer um centro nestes moldes em Paris.4

5. Limitações necessárias

Voltemos ao aluno na Universidade. Que tipo de organiza­ção didática lhe é disponível para o estudo dos aspectos interna­cionais da história e da crítica literária? Em algumas universida-

'des existe um Departamento de literatura comparada, no qual aexpressão' 'literatura comparada" significa o estudo da literatu­ra de um ponto de vista internacional. A função deste estudo éapenas em parte a de elucidar as obras, gêneros e movimentosde uma literatura, colocando-os em seu contexto internacional.Na verdade, o adjetivo "comparada" é, nesses casos, uma relí­quia do tempo em que as ciências naturais dominavam o pensa­mento das humanidades. Comparar é, afinal, apenas um aspec­to da disciplina multifacetada que é a literatura comparada.

Um tal departamento pode às vezes ser auto-suficiente, istoé, possuir um quadro de profissionais que organizam cursos in­dependentemente de outros departamentos. Em outros casos, podefuncionar como um elo entre professores de vários departamen­tos de línguas. Algumas universidades têm uma cadeira de lite­ratura comparada, ou por tradição, ou entregue, em ocasião es­pecial, a um erudito de prestígio. Um professor pode decidir le­cionar tópicos de literatura comparada mesmo se esta não é asua disciplina principal. Faculdades de Letras e cursos de verãooferecem programas sobre relações literárias internacionais. Fre-

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252 LITERATURA COMPARADA PARA o ESTUDO COMPARATIVO DE LITERATURA 253

qüentemente se organizam congressos sobre o estudo compara­do de literatura, promovidos e patrocinados por um departamentoou por uma universidade, e algumas universidades podem man­ter "institutos de literatura comparada", cujo quadro é compos­to de professores e pesquisadores.

Este aparato multiforme está à disposição do aluno. A subs­tância do que é ensinado em muitos casos se restringe a questõesliterárias da comunidade cultural internacional à qual a univer­sidade pertence. Por exemplo: exceto por algumas incursões ilu­minadoras nas relações literárias entre Oriente e Ocidente, os de­partamentos de literatura comparada de universidades ocidentaislidam principalmente com a literatura ocidental. Desse modo, ofe­recem ao aluno, sobretudo, uma introdução a assuntos de histó­ria e crítica literárias ocidentais. Por sua vez, o estudante precisaenfrentar o desafio de saber ler em pelo menos três línguas. Alu­nos de uma de várias línguas intimamente cognatas, como as lín­guas românicas, eslavas ou árabes, já têm um bom ponto de par­tida para estudos literários comparativos. Isto valerá realmentese o sistema de ensino refletir as relações aí implicadas.

Até aqui concentramos nossa atenção principalmente em umaspecto do estudo comparativo de literatura, a saber: sua utili­dade na elucidação de fenômenos literários nacionais. Vimos que,de fato, o estudante de literatura comparada provavelmente rece­berá seu treinamento inicial em pesquisa literária através do es­tudo de uma determinada literatura. Somente à medida que pro­gride é que, gradualmente, se vai deparando com questões de li-teratura comparada. .

No decorrer de seus estudos, ele poderá defrontar-se comtópicos que não derivam originariamente do estudo de uma lite­ratura específica. Poderá interessar-se por tradições internacio­nais relativas a forma e conteúdo, por visões literárias sobre anatureza distinta da prosa e da poesia ou do poeta e do prosa­dor, ou ainda pela história de idéias e temas. Com efeito, o cam­po é tão vasto, que o aluno facilmente pode se perder. Assim,a primeira coisa que tem de fazer é limitar drasticamente o es­pectro de seus estudos, em tempo e espaço. Literatura compara­da é essencialmente um estudo intensivo, e certamente não ex­tensivo, como os leigos muitas vezes supõem.

A limitação no espaço é uma conseqüência óbvia do núme­ro relativamente pequeno de línguas que o estudante domina, em-

bora alguns tópicos como imagística, composição e estrutura pos­sam ser abordados com a ajuda de traduções. A limitação no tem­po significa concentrar-se nos fenômenos literários internacio­nais de uma época ou de um período. São necessários anos e anosde estudo para que se conheçam os pressupostos literários inter­nacionais de uma época, de sua história e crítica literárias, desuas palavras-chaves, e do modo pelo qual formas e conteúdostradicionais funcionavam nesses períodos. Para um conhecimentoabrangente de uma época, tem-se de estudar o maior número pos­sível de poemas e obras em prosa - não apenas os famosos, masprincipalmente as obras de autores de segunda linha. As resenhasliterárias e prefácios do período devem também ser estudados,assim como dissertações sobre literatura, suas tendências de pen­samento e suas controvérsias. O mesmo se pode aplicar à limita­ção ao estudo de um determinado estilo literário internacional,como Classicismo, Barroco, Maneirismo. Muitas vezes é deste mo­do que, tradicionalmente, se conduzem os estudos de literaturacomparada.

A necessidade desse tipo de limitação não implica que de­vamos perder de vista a literatura e sua história como um assun­to pertinente ao mundo todo. Infelizmente, um certo modo depensar, juntamente com o uso de termos dele resultante, tendea obscurecer a perspectiva universal. Assim, falamos "das" lín­guas e literaturas modernas ou vivas, excluindo, via de regra, asnão-ocidentais. Lemos histórias da literatura "mundial" que sãona verdade histórias da literatura ocidental. Sem criticar, aceita­mos a asserção de um autor de que seu estudo (sobre literaturaocidental) trata da história da "mente humana". Do mesmo mododiz-se, de um livro famoso, que foi de importância inestimável"para a humanidade", embora seu efeito jamais se tenha irra­diado para além da comunidade literária ou cultural internacio­nal à qual a obra pertence. Esta estreiteza mental pode ser ado­tada por certa prática cotidiana de literatura comparada. Mas,não é necessário que seja assim. Dentro de seu raio de ação limi­tado, essa prática pode até ser louvável, especialmente se não iden­tificarmos como literatura "mundial" a comunidade literária in­ternacional específica em que nos concentramos.

Nesse meio tempo, precisamos, afinal, adquirir um conhe­cimento básico sobre essa comunidade específica. Este texto in­trodutório ao estudo comparativo de literatura visa a ajudar os

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254 LITERATURA COMPARADA

leitores a compreenderem o seguinte: seu foco é, em poucas pa­lavras, a literatura ocidental. É impossível dizer se se poderia ounão tratar de outras comunidades literárias internacionais de modosemelhante, já que não sabemos em que medida a essência dosfenômenos literários é universal ou, pelo menos, presente em maisde uma dessas comunidades.

O conhecimento fundamental necessário ao estudo compa­rativo da literatura ocidental inclui, de qualquer maneira, mode­los históricos de pensamento literário. Além disso, lida com con­venções de forma e conteúdo, suas origens e desdobramentos, suasrelações com a singularidade da obra individual e com a histórialiterária. Finalmente, precisamos conhecer minuciosamente os sig­nificados de termos operacionais na disciplina, como "antece­dentes",5 "palavra-chave" e "influência".

NOTAS

I o título em inglês deste primeiro segmento é "The Reader vs. the Student of Litera­ture". Preferi traduzir "student" por "estudioso" por me parecer mais adequado ao con­texto da introdução como um todo, embora às vezes a palavra tenha, no texto, o signifi­cado denotativo de "estudante" ou "aluno", que usei quando me pareceu pertinente,como ocorre, especificamente, no segmento 5. [N. da T.]

2 "Romance", no original, remetendo às narrativas medievais de cavalaria e a seus ar­remedos "góticos" do século XVIII, cheios de passagens secretas, identidades duvido­sas, enigmas indecifráveis. [N. da T.]

3 Enciclopédie de Ia Pléiade, Histoire des litteratures. Paris: Gallimard, 1955, v. 1, p.104, 105, 106, 108.

4 ETIEMBLE, René. Comparaison n'est pas raison; Ia crise de Ia littérature comparée.Paris: Gallimard, 1963.

5 No original, "background", que, em função do contexto, preferi traduzir por "ante­cedentes", ao invés de "ambiente", ou "cena de fundo". [N. da T.]

PROPÓSITO E PERSPECTIVASDA LITERATURA COMPARADA*

A. Owen Aldridge

Concorda-se atualmente que a literatura comparada não cOm­para literaturas nacionais, no sentido de se contrapor uma a ou­tra. Ao invés disso, ela fornece um método de ampliação da pers­pectiva na abordagem de obras literárias isoladas - uma manei­ra de se olhar para além das estreitas fronteiras nacionais, a fimde que sejam discernidos movimentos e tendências nas diversasculturas nacionais e de que sejam percebidas as relações entre aliteratura e as demais esferas da atividade humana. O estudo daliteratura comparada não é fundamentalmente diferente do dasliteraturas nacionais, exceto pelo fato de possuir um objeto deestudo mais vasto, uma vez que este provém de mais de uma lite­ratura, e não exclui qualquer obra literária que o estudante sejacapaz de ler. O comparatista, ao invés de encontrar-se limitadoaos artigos de uma única nação, vai às compras em uma loja dedepartamentos literária. Definida de forma sucinta, a literaturacomparada pode ser considerada como o estudo de qualquer fe­nômeno literário, sob a perspectiva de mais de uma literatura na­cional, ou em conjunção com outra disciplina intelectual, ou mes­mo com várias. Os tennos "lei comparada", "filologia compa­rada", e "folclore comparado" são paralelos a "literatura com­parada", e esta última deve ser considerada como nada mais doque um rótulo conveniente para se descrever aqueles estudos li­terários que transcendem fronteiras nacionais.

Os primeiros estudos dessa disciplina foram dedicados pri­mordialmente à história literária e às relações entre literatura e

* ALDRIDGE, Owen. The Purpose and Perspectives of Comparative Literature & TheConcept of Influence in Comparative Literature. ln: -, ed. Comparative Literature:Matterand Method. Urbana: Univ. of Illinois Press, 1969, p. 1-6.

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256 LITERATURA COMPARADA PROPÓSITO E PERSPECTIVAS DA LITERATURA COMPARADA 257

sociedade. Em certo sentido, a pioneira dos estudos comparadosfoi Mmede StaeI, que escreveu dois livros mundialmente famo­sos acerca das relações literárias internacionais: De Ia Littératu­

re considérée dans ses rapports avec les instituitions sociales (1800);e De l"Allemagne, (1813). A Revue de littérature comparée publi­cou a correspondência de Mmede Stael com Thomas Jeffersonem seu segundo volume (1922), e Irving Babbitt comentou nessamesma época que ela havia "feito mais do que qualquer outrapessoa para promover o estudo da literatura comparada comoatualmente a entendemos".

Partindo de um ponto de vista mais estético, Friedrich Schle­gel, em 1798, incorporou o cosmopolitismo associado à literatu­ra comparada, em seu conceito de Universalpoesie. Nas suas pa­lavras, "a poesia romântica é uma poesia universal progressiva".Universal, no conceito de Schlegel, não possui o significado deuniforme, isto é, que exprime atitudes sentidas por todos ou exerceum apelo tão abrangente a ponto de provocar resposta por partede todos. Possui, antes, o sentido de um objeto de estudo abran­gente que abarque virtualmente todos os aspectos da experiênciahumana. O poeta ou romancista, em outras palavras, não deveexcluir de sua obra qualquer nuance dos personagens ou emo­ção que desperte seu interesse.

Goethe, um quarto de século mais tarde, enunciou o concei­to de Weltliteratur, incorporando características geográficas àspsicológicas e estéticas. Goethe acreditava que as necessidadesespirituais de todas as nações poderiam ser satisfeitas através doconhecimento de uma "Literatura Mundial Universal". Esse seutermo expressa a herança comum, representada pelos esforços dosmelhores poetas e autores estéticos de todas as nações, dirigi dapara tudo aquilo que a humanidade possui de universal. A lite­ratura comparada, em seu melhor sentido, combina a perspecti­va psicológica abrangente da Universalpoesie de Schlegel e a preo­cupação com a excelência estética refletida na Weltliteratur deGoethe.

Na verdade, alguns críticos opõem-se ao conceito de litera­tura mundial, baseados no argumento de que ela seria equiva­lente ao estudo dos "grandes livros" ou das "obras-primas mun­diais" como artefatos individuais, sem se levar em consideraçãosuas relações uns com os outros ou as tradições históricas da li­teratura e da cultura. Outros colocam objeções porque na práti-

ca a Literatura Mundial tem sido tratada meramente como Lite­ratura Ocidental, em detrimento das tradições asiática e africa­na. Essas objeções são válidas; entretanto, devem referir-se ape­nas às aplicações inadequadas da teoria de literatura mundial,e não ao princípio em si. Certamente, o estudo da literatura com­parada deve abranger todo assunto de importância para a vidahumana que tenha sido tratado com sucesso pelas obras escritasda imaginação; deve relacionar obras individuais às criações si­milares dentro das demais tradições nacionais; e deve incluir aliteratura do Oriente assim como a do Ocidente. A única razãopela qual a maioria dos comparatistas negligencia as literaturasorientais é o fato de faltar a eles a competência lingüística paracom elas lidar.

Tanto na Europa quanto na América, os termos literaturageral e literatura comparada são, por vezes, empregados inter­cambiavelmente. Existe uma distinção, mas, como freqüentementeocorre, os estudiosos não chegam a um consenso acerca da na­tureza desta distinção. Poder-se-ia, contudo, relacionar a litera­tura geral às teorias de Schlegel e Goethe no que diz respeito aouniversalismo - à do tema em Schlegel e à da resposta estéticaem Goethe. Nesse sentido, a literatura geral compreenderia os es­tudoS' de temas, gêneros e obras-primas sem referência explícitaa épocas ou períodos. A literatura comparada compreenderia tantoa história literária (incluindo-se os movimentos, períodos e in­fluências) como as relações da literatura com o panorama social,político e filosófico. De acordo com esta distinção, a literaturageral transcenderia completamente as fronteiras nacionais, en­quanto que a literatura comparada enfocaria as relações entre umaliteratura em particular .e as literaturas a ela ligadas. Mas bastade distinções. Na prática, as duas tendências em geral se fundem;e mesmo quando isso não ocorre, o termo literatura comparadaé amplamente utilizado para ambas.

A comparação pode ser utilizada nos estudos literários pa­ra indicar afinidade, tradição ou influências. A afinidade con­siste nas semelhanças de estilo, estrutura, tom ou idéia entre duasobras que não possuem qualquer outro vínculo. Como exemplo,o romance russo Oblomov pode ser comparado a Hamlet por­que cada uma dessas obras é um estudo da indecisão e da pro­crastinação dos personagens. A tradição ou a convenção consis­tem no estudo das semelhanças entre obras que fazem parte de

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258 LITERATURA COMPARADA PROPÓSITO E PERSPECTIVAS DA LITERATURA COMPARADA 259

um grande grupo de obras similares interligadas histórica, cro­nológica ou formalmente. aDie Leiden des jungen Werther deGoethe pode ser comparado aos romances epistolares de Richard­son e Rousseau por causa do foco narrativo na primeira pessoae da expressão irrestrita de sentimentos em todas as três narrati­vas. Como exemplo de influência, podemo-nos voltar para o ro­mance histórico italiano I promessi sposi de Manzoni, que, demuitas maneiras, foi diretamente inspirado pelas obras do inglêsWalter Scott que o antecederam.

Para aqueles que advogam a ênfase no ponto de vista histó­rico, a Era Dourada da Literatura Comparada corresponde à épo­ca entre as duas grandes guerras. Nos principais estudos publi­cados durante aquele período, as relações literárias assinaladaseram precisas e concretas e apoiadas em evidência bibliográficarigorosa; as obras de menor destaque eram levadas em conta, jun­tamente com as mais importantes; e o fundo social e filosóficoera freqüentem ente trazido à baila. Nos estudos históricos da li­teratura, o conceito de influência constitui interesse primordial,e é dada atenção aos emissores, receptores e intermediários (ter­mos um tanto inadequados, geralmente reservados aos tópicosbibliográficos). Um estudo de Goethe e da Inglaterra, por exem­plo, poderia ser dedicado à influência da vida e da literatura in­glesas na obra do autor alemão: os autores ingleses seriam con­siderados como emissores, o próprio Goethe seria o receptor, eseus correspondentes ingleses ou amigos anglófilos alemães se­riam os intermediários. Se fosse invertida a perspectiva, em umestudo da influência de Goethe na Inglaterra, Goethe seria, na­turalmente, o emissor; os autores ingleses e o público leitor in­glês seriam os receptores; e as traduções, edições e resenhas dasobras de Goethe seriam os intermediários, juntamente com osviajantes ingleses à Alemanha e com os correspondentes inglesesde Goethe. Estudos mais gerais, concentrando-se em temas e ti­pos, podem demonstrar influências, mas isso ocorre apenas in­cidentalmente. Nos estudos de lendas ou temas clássicos - Faustoou Don Juan, por exemplo - a ênfase recai na psicologia, namoralidade e na filosofia, assim como em outros aspectos dasobras individuais, ao invés de nos autores ou nas origens nacio­naIs.

A ênfase dada às influências tem sido atribuída, erronea­mente, a meu ver, à orientação científica do século XIX, presu-

mivelmente dominado por uma preocupação com a genética. Oscríticos, supostamente, possuíam uma visão da literatura comoorganismo científico, crescendo e evoluindo como se fosse umespécime biológico. Em outras palavras, a Literaturwissenschaftteria supostamente adotado os métodos da Naturwissenschaft.A busca de influências data do século XVIII, entretanto, e, aomenos na literatura inglesa, ela está estreitamente associada à crí­tica de textos bíblicos, na qual a procura de paralelos entre o An­tigo e o Novo Testamentos era procedimento corriqueiro. Ade­mais, o método foi estimulado pela estreita ligação entre a poe­sia e os clássicos latinos, sendo que os próprios poetas freqüen­temente imprimiam passagens paralelas ou apontavam semelhan­ças em notas de pé de página. As notas de T.S.Eliot em The WasteLand pertencem a. esta tradição.,

Em anos recentes, a perspectiva estética tem predominado cadavez mais entre os comparatistas e os estudos que demonstram se­melhanças ou afinidades, ao invés de influências, têm sido privile­giados. O método de rapprochement, que se assemelha à lei com­parada ao apontar' 'analogias sem contacto", permite que se con­centre em obras maiores, oferece uma oportunidade de análise es­tética, epode fornecer uma visão do processo de criação ariÍstica.

....Os estudos de influências podem ser criticados por depen­derem demasiadamente de características e obras menores; e osestudos de afinidades podem ser criticados por dependerem emdemasia da visão subjetiva e impressionista. Os primeiros pode­rão aparentar rigidez meto dológica; os segundos poderão dar aimpressão de falta de método. Segundo alguns estudiosos, o es­tabelecimento de origens e de influências pode ser comparativo,mas não é literatura; st';gundooutros, a revelação de paralelos atra­vés do rapprochement pode ser comparação literária, mas nãoé literatura comparada. No entanto, cada qual possui valor à suamaneira, no sentido de promover uma crescente compreensão ea apreciação da literatura.

Por causa da vastidão do material e da multiplicidade de pro­blemas encontrados na literatura comparada, não existe um mé­todo ideal ou modelo para o estudo. A terminologia metodoló­gica é, quando muito, ambígua, e inúmeros métodos diferentespodem ser utilizados, ainda que se tratando do estudo de um mes­mo problema. Em outras palavras, o método é menos importan­te do que a matéria.

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o DESAFIO DA LITERATURA COMPARADA 261

o DESAFIO DA LITERATURA COMPARADA*

Werner Friederich

Da mesma forma que todo governo bem administrado tem umDepartamento de Assuntos Internos, para cuidar dos problemase assuntos internos diversos, e um outro departamento, o de As­suntos Estrangeiros, responsável pela análise de suas relações po­líticas e culturais com as nações que o cercam, penso que todaboa universidade deveria também estabelecer aquilo que é comu­mente chamado de Currículo Interdepartamental de LiteraturaComparada, a fim de se manter sempre informada sobre o cons­tante fluxo de idéias, trabalhos literários e influências que acon­tecem além das fronteiras nacionais e lingüísticas, e poder rede­finir constantemente a multiplicidade dos créditos e débitos queocorrem no campo do cosmopolitismo literário.

As atividades e aspirações dos departamentos de literaturasespecíficas não nos dizem respeito aqui. Eles podem oscilar en­tre dois extremos objetáveis e ser ou simplistas, enumerativos, bio­gráficos e prosaicos, ou, como o New Criticism gostaria que fos­sem, totalmente subjetivos, isolados, rapsódicos, desconsideran­do o aparato e o plano acadêmico e, ao invés, enfatizando o im­pacto pessoal único que exercemsobre a instabilidade de uma obrade arte in vacuo. A solução mais adequada entre estes extremosreside é claro, em um oportuno meio-termo, que tente combinaros fundamentos culturais e fatuais adquiridos durante o apren­dizado acadêmico, com uma apreciação sempre aguda e atentado texto, da obra de arte em si mesma. O comparatista não precisa

* FRIEDERICH, Werncr. The Challenge of Comparative Literature. In: - The Chal­lenge ojComparative Literalure and Olher Addresses. Chape1 Hill: Univ. of North Ca­rolina Press, 1970, p. 36-50. Conferência prOferida na Sessão Plenária do AustralasianLanguage and Literature Congress, em Melbourne, Austrália, em agosto de 1964.

necessariamente se envolver com este tipo de disputa puramentedepartamental, embora se deva deixar claro que, devido ao seuinteresse pelas influências e contracorrentes internacionais, é na­tural que ele não seja um entusiasta do New Criticism.

É preciso, porém, cautela. Se devo falar de coisas desagra­dáveis já desde o início, falo exatamente do problema que deuorigem à discussão entre os comparatistas franceses e america­nos. Basta olhar para a rica produção dos comparatistas france­ses desde 1920, para as centenas de artigos da Revue de Littéra­ture Comparée e os resultados das monografias da Bibliothêquede Ia Revue de Littérature Comparée para perceber que a ques­tão das influências sempre foi a menina dos olhos dos france­ses. Para os americanos, como R. Wellek, da Universidade deYale, esta busca incessante de fontes e empréstimos parecia mui­to desinteressante, prosaica e mecânica, já que tendia a perderde vista a grandeza e a especificidade de uma obra de arteper se e a entrar no atoleiro de uma classificação quase pura­mente científica de valores espirituais, que, como Aristófanesem Os sapos afirma a respeito de sua comparação entre Ésquiloe Eurípides, não podem ser pesados como meros quilos de quei­jos. Foi para estabelecer o problema tão importante da abran­gên€ia e dos métodos da literatura comparada e os diferentespontos de vista dos acadêmicos franceses e americanos que,em 1952, em continuidade ao trabalho iniciado com o periódicoComparative Literature, publicado em Oregon desde 1949, fun­dei o Yéarbook of Comparative and General Literature, na Ca­rolina do Norte, no qual se puderam rever definições e rediscu­tir pontos de vista. Sinto-me feliz em declarar que um artigoimportante sobre as çluas escolas de comparatismo, no Year­book IX de 1960, escrito por Henri Remak, da Universidadede Indiana, estabeleceu pelo menos um modus vivendi entrecomparatistas franceses e americanos. Devo, porém, acentuarque esta briga familiar ocorre entre internacionalistas dos doislados do Atlântico, i. é, entre homens e mulheres que acreditamem influências recíprocas e cosmopolitas, concordando de bomgrado com a perspicaz afirmação de Paul Valéry de que todostemos uns nos outros a morada e o alimento, e que mesmoo leão nada mais é do que um cordeiro assimilado. Esta briganão ocorre com os adeptos radicais do New Criticism que, nacontemplação de uma obra-prima literária, não consideram a

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requintada variedade da química da criação. Tais extremistas ten­dem a condenar o comparatismo a priori, considerando-o comouma violação de sua fé.

Não é este o lugar nem a hora para falar das origens do es­tudo comparatista de literatura, exceto para dizer que ele na ver­dade não saiu da estaca zero - p. ex., os ensaios de Dryden, OnDramatic Poesy, ou de Voltaire, Essai sur iepoeme épique - en­quanto o preconceito neoclássico manteve os autores no cativei­ro. Somente o pré-romantismo e o romantismo proporcionaramum entendimento entusiasta, universal e intuitivo, da poesia e damentalidade das mais diversas nações e raças, livre de falsos na­cionalismos e "condescendência". Talvez tenha sido a Suíça queinaugurou esta fase com a tradução e a defesa de O paraíso per­dido, feita por Bodmar, e com o pioneirismo de seu ensaio Ue­ber das dreyfache Gedicht Dantes; com o texto muito significati­vo de Mmede Stael, De i'Allemagne, e mais tarde sua visão pró­italiana em Corinne; ou com o trabalho claramente comparatis­ta de Sismondi, De ia littérature du Midi de L'Europe. A Alema­nha deu continuidade a este processo com o valioso ensaio deHerder sobre Shakespeare, sua antologia de folclore Die Stim­men der Vdiker in Liedern, e seu estudo comparatista sobre Ho­mer und Ossian; com A. W. Schlegel e suas boas traduções deShakespeare, Dante e Calderón e sua preocupação crescente coma literatura da Antiga Índia; com Goethe que cunhou o termoaudaciosamente desafiante Weltliteratur. Outras nações seguiramessa tendência; p. ex., De Sanctis na Itália, Longfellow na Amé­rica, Georg Brandes na Dinamarca. Depois de tudo dito e feito,a nossa dívida maior é com a França, e é na França de JosephTexte a Baldensperger, Hazard, Van Tieghem, Carré, Bataillone Roddier, e os que se seguiram, que o comparatismo se tornouuma disciplina séria dentro dos estudos acadêmicos. O Institutde Littérature Comparée, na Sorbonne, tem hoje apenas um ir­mão mais moço na Europa, o Institute for Comparative Litera­ture, em Utrecht, enquanto o comparatismo americano, que co­meçou no início do século, em Columbia, Harvard, Wisconsine Carolina do Norte e, depois de 1945, se expandiu para outrasinstituições, atingiu hoje provavelmente o seu nível mais alto naUniversidade de Yale.

Não vou discutir o pequeno, mas importante manual La Lit­térature Comparée do excelente pesquisador Paul Van Tieghem

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sobre o qual o comparativismo francês se apóia; em vez disso,vou mencionar três trabalhos de Fernand Baldensperger, a fimde ilustrar três modos básicos de abordagem que caracterizama escola francesa. Primeiro, seu Goethe en France, que apontapara a enorme importância conferi da ao papel do emissor - oimpacto dos trabalhos de Goethe desde Werther até Faust sobrea literatura e a mentalidade francesa em geral até o século vinte.Em segundo lugar, o texto de Baldensperger Les orientations étran­geres chez Honoré de Baizac, que se baseia na importância doreceptor na literatura, apontando para todas as inspirações lite­rárias que Balzac recebeu do mundo latino, germânico e eslavo.E, em terceiro lugar, é claro, há o valioso papel apresentado pe­los intermediários, neste caso, os refugiados, que Baldenspergercita no seu notável Le mouvement des idées pendant ia Révoiu­cion française. É esta científica e quase mecânica relação de fa­tos, créditos e débitos que deu origem à ira de Wellek; e Jean­Marie Carré, num livro subseqüente intitulado Le mirage alle­mand dans ia littératurefrançaise, deu aos americanos ainda maismunição porque não se baseava tanto nos aspectos literários, es­téticos e artísticos do impacto alemão na França, mas nas impli­cações claramente sociológicas e políticas entre escritores fran­c<;;sese jornalistas da propaganda pró-Alemanha, que vai desdeMadame de Stael, passando por Romain Rolland, até a épocade Lava!. Isto, de acordo com Wellek, não é mais literatura com­parada, nem mesmo literatura. Daí o título alarmante de sua co­municação no Congresso da Associação Internacional de Lite­ratura Comparada na Universidade de Carolina do Norte em 1958,HThe Crisis of Comparative Literature': na qual ele nos previnecontra o risco de nos enredarmos em todo tipo de campos peri­féricos e perdermos de vista a nossa tarefa central: a avaliaçãoartística de uma obra-prima. Um trabalho simultâneo apresen­tado por um colega japonês, que mostrou a influência de JamesJoyce no Japão (traduções, imitações, artigos e livros sobre ele,etc.) através de tabelas estatísticas, como se os altos e baixos deJoyce no Japão fossem comparáveis a uma cifra de corretagemde Wall Street, só serviu para aumentar a distância entre a escolaamericana, liderada principalmente por Wellek, e a escola de com­paratismo franco-japonesa.

Apesar disto, as coisas não estão tão ruins - e há muitomais convicções comuns do que diferenças entre os comparatistas.

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Uma breve alusão à Bibliography of Comparative Literature deBaldensperger & Friederich, uma listagem de mais de 33.000 itens,publicada pela primeira vez em 1950 e suplementada nos Year­books of Comparative Literature da Carolina do Norte e de In­diana desde 1952, seria suficiente para convencer qualquer leitorda riqueza e do desafio da abordagem comparativa para o estu­do da literatura. Para ser exato, há centenas de páginas dedica­das ao emissor (p. ex., Erasme en Espagne, de Bataillon), ao re­ceptor (as fontes estrangeiras de Boccaccio) ou aos intermediá­rios- tanto tradutores como Florio, viajantes como Camões,refugiados como Mickiewicz, diplomatas como Paul Claudel oufreqüentadores de salões como aqueles de MmeNecker ou de So­phie d'Houdetot. Mas, há ainda muito mais. Há o imenso cam­po da tematologia, da Stoffgeschichte, tão caro aos alemães: daIfigênia, de Roma, dos Alpes, de Joana d'Arc, de Don Juan oudos médicos, soldados ou rouxinóis da literatura. Há a investi­gação internacional dos gêneros e das formas literárias atravésdos séculos, e das barreiras lingüísticas - o soneto, o romancehistórico, o romance de aprendizado, o drama burguês, a épicavirgiliana, a sátira em várias literaturas. Há, sobretudo, a tenta­tiva dos comparatistas de aprender um grande movimento literá­rio, se não na sua totalidade, pelo menos em tantas literaturasquantas forem possíveis, como faz Van Tieghem admiravelmen­te bem em Le Pré-Romantisme e em Le Romantisme - a ques­tão, por exemplo, do que distingue a Renascença italiana da es­panhola e estas duas da Reforma germânica; a questão se existeuma literatura internacional barroca que aproxime os chamadospoetas metafísicos, os "preciosistas", os marinistas e os gongo­ristas - e, caso exista, de quais são os denominadores comunsentre eles; a questão do que distingue o classicismo de Racinedo de Goethe, o romantismo tempestuoso de tantos europeus dotranscendentalismo quase ascético da Nova Inglaterra dos bos­tonianos; o problema do realismo nos diferentes romances regio­nalistas de Heimatliteraturen que se estende de Gotthelf na Suí­ça e Verga na Itália a Bret Harte na Califórnia e Mikhail Sholo­khov na Rússia Comunista; a incerteza de que o Naturalismo te­nha nascido talvez não com Zola, na França, ou Dostoievski naRússia, mas muito antes com o livro Celestina, de Rojas, na Es­panha de Fernando e Isabel. E, na investigação destes movimen­tos literários internacionais, permita-se acrescentar, não é tão im-

portante nos basearmos em influências que sejam demonstráveis,mas encontrarmos evidências de um assim chamado Zeitgeist, deum espírito de época que tenha produzido, independentementeumas das outras, mentalidades semelhantes, e conseqüentemen­te trabalhos e estilos semelhantes nos mais diversos países, se­jam do rococó ou do impressionismo.

No entanto, mesmo a preocupação do comparatista com as­suntos periféricos, não exclusivamente literários, não me preo­cupa tanto quanto preocupa a alguns colegas. Com certeza, umestudante de literatura que pretenda compreender as coisas hori­zontalmente - p. ex., de três a cinco literaturas de um determi­nado século - ao invés de verticalmente - apenas uma literatu­ra na íntegra desde Beowulf até T. S. Eliot ou desde Les Sementsde Strasbourg até Proust - está em melhor situação do que oprofissional monoglota para tecer um julgamento válido a res­peito do tremendo irppacto do darwinismo, marxismo ou freu­dianismo sobre a literatura dos últimos 50 ou 100 anos. E, pas­sando a outros campos periféricos da história da cultura, talvezmais aceitáveis, e às suas conexões com as belles lettres com queo comparatista está especialmente bem qualificado para lidar, háa filosofia e suas relações com a literatura, por exemplo, o efeitodO,cartesianismo sobre a literatura do Iluminismo, o impacto deSpinoza sobre o romantismo, a importância de Schopenhauer oude Nietzsche para a nossa época; há a história - ou historiado­res como Plutarco e sua influência frutífera sobre toda a Renas­cença de Jacques Amyot e Montaigne a Lord North e Shakes­peare, ou grandes figuras e eventos históricos tais como Napo­leão e a Revolução Francesa, com suas enormes reverberações in­ternacionais, que se f;stenderam de Foscolo e Goethe até Carlylee Guerra e paz de Tolstoi; há as Belas-Artes - pintura, arquite­tura, escultura, música - e os incontáveis estudos que podemser feitos por estudiosos como Helmut Hatzfeld ou Calvin Brown,na América, de seu parentesco com a literatura de um dado pe­ríodo - sem falar de Laokoon de Lessing, Ruskin, Pater, ou ospré-rafaelitas. E, finalmente, mas não menos importante, há, semdúvida, a relação entre Literatura e Religião, uma vez mais umcampo no qual o comparatista pode abrir perspectivas muito maisamplas do que o especialista de uma só literatura, tanto no casode textos religiosos épicos, como A divina comédia ou Der Mes­sias, como de maneira especial, no de místicos desde Thomas à

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Kempis para além de Santa Teresa de Jesus, do drama jesuíta,desde o pai Caussin até Avancini, do impacto da Bíblia sobre Cal­derón ou sobre MacPherson, do jansenismo de Racine ou de Man­zoni, das batalhas religiosas de Pascal ou de Lessing, do purita­nismo de Milton ou Hawthorne, dos aspectos do ateísmo em Di­derot ou Shelley, do deísmo de Shaftesbury ou Tom Paine, dopapel do quakerismo em Voltaire ou em John Greenleaf Whit­tier, das crises de desespero religioso em Leopardi ou Kafka ­ou, ainda no caso do impacto da Inquisição ou do Index Libro­rum Prohibitorum sobre o De Monarehia de Dante, O príncipede Maquiavel, a Città dei Sole de Campanella na Itália, o Laza­rillo de Tormes ou os "erasmitas" na Espanha, Lutero ou Fis­chart na Alemanha, La Pueelle d'Orléans ou Mahomet de Vol­taire na França.

Na enumeração de todas estas possíveis abordagens, um as­pecto em especial deve tê-Io impressionado - tal como aconte­ceu com Baldensperger e comigo quando fizemos a compilaçãoda Bibliography, ou seja, que há muito poucas comparações reaisno campo da literatura comparada. Comparações simples, co­mo, por exemplo, entre Vico e Herder ou, novamente, entre Bal­zac e Dickens - as semelhanças e as dessemelhanças entre vi­das, características, enredos, idéias, estilos - são possíveis masnão muito animadoras e nos deixam com uma certa impressãode insatisfação. Os comparatistas em geral procuram ser caute­losos nas comparações não relacionadas - assim como, por ou­tro lado, evitam investigar a linha metafórica de um poeta paraoutro, ou acumular um grande número de tragédias sobre Cleó­patra ou de comédias do tipo Miles Gloriosus em várias literatu­ras simplesmente por fazê-Io. Eles deveriam, e devem, procurarconexões mais relevantes entre grandes autores, tendências e es­tilos para tornar seus trabalhos mais significativos e valiosos. Onome' 'literatura comparada" é, portanto, até certo ponto, umadenominação errônea tanto quanto "barroco", "romantismo"e "simbolismo". Esses termos nos foram impostos e estamos agorapresos a eles; mas o importante é que possamos definir o quesignificam quando deles fizermos uso.

Mas, passemos agora do desafio puramente acadêmico demergulhar nas vastas reverberações e ramificações internacionaisda grande figura, gênero, ou tema literário, para as vantagens prá­ticas de se ter um Currículo de Literatura Comparada em cada

Universidade. Note-se que digo "Currículo" e não necessaria­mente "Departamento" de Literatura Comparada - porque émuito mais vantajoso ser parte de um grupo de comparatistasbem treinados, provenientes de vários departamentos, que, soba direção de um comparatista dedicado e de tempo integral e preo­cupado em encorajar a abordagem internacional da literatura,peça a um membro especialista em Clássicas para preparar, sepossível, um curso sobre as influências do drama grego ou dasobras de Ovídio sobre o período da pós-Renascença; ou a um me­dievalista para preparar um curso sobre o Ciclo do Rei Artur naInglaterra, França e Alemanha, incluindo também o Amadis deGaula na Espanha. Os comparatistas das literaturas modernasdeveriam ser encorajados a dar um curso sobre o período em quesua literatura principal tenha sido mais rica do ponto de vista in­ternacional. Por exemplo, um italianista deveria considerar umprivilégio ser solicitado a,discorrer a respeito da enorme influên­cia do Trecento e do Cinquento sobre a Espanha do Marquês deSantillana até Garcilaso de La Vega, sobre a França de Laurentde Premierfait até Phillipe Desportes, sobre a Inglaterra de Chau­cer até o período posterior ao Palaee of Pleasure de Painter ­desta abundância de influências literárias italianas que se esten­dem de Fortugal até a Hungria e a Polônia. Um hispanista podefazer o mesmo sobre suas duas Idades de Ouro: a primeira sobo domínio dos árabes e a segunda no reinado de Felipe II e IIIdos quais encontramos traços em Alhambra, de Washington Ir­ving, em Le Dernier des Abencerrages de Chateaubriand, no Cid,de Corneille, em Simplissimus, de Grimmelshausen, ou mesmoem Hudibras, de Butler. Um especialista na França pode-se ba­sear na literatura européia imediatamente anterior e posterior a1700, quando o classicismo francês e o iluminismo eram a inspi­ração suprema para todos, chegando até à Rússia de Trediakovs­ki e Sumarokov. O germanista pode enfatizar a vasta significa­ção internacional da era de Goethe, desde os discípulos de Her­der no leste europeu até os hegelianos de St. Louis, na América- e os eslavistascom tendência ao comparatismo podem apoiar-senaquilo que o Ocidente deve aos grandes romancistas russos, ouvice-versa. Mesmo que os professores de inglês mais conserva­dores não se ponham de acordo, eu considero o século XVIII operíodo de maior contribuição inglesa no exterior; mas osespecialistas em literatura inglesa podem também ir além e

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estudar, por exemplo, as profundas raízes inglesas da literaturaamericana. Além disso, se estaria também fazendo comparatis­mo se se estudassem as diferentes correntes e peculiaridades lo­cais que se imbricam nas várias literaturas da comunidade britâ­nica em geral ou, ainda, se se procedesse a uma análise de comoos novos valores presentes nos textos irlandeses desde Goldsmithaté Shaw, Joyce e Yeats contribuíram para a literatura inglesa.Cercado por um grupo de pesquisadores interessados, como oda Universidade de Indiana, por exemplo, o responsável pelo Cur­rículo pode coordenar o seu programa, oferecer seminários su­plementares sobre problemas, métodos, abrangência e bibliogra­fia de literatura comparada, e desenvolver um programa de mes­trado e doutorado neste campo fascinante. Neste Currículo, pelomenos, e finalmente, tem-se um companheirismo entre os váriosdepartamentos das áreas das ciências humanas, e uma prósperacooperação, em lugar da indiferença ou, pior, da inimizade oudo esnobismo que existe, infelizmente, em tantas universidades.

E quais são os requisitos para um diploma no nosso cam­po? Neste particular, eu tomaria as Universidades de Indiana eYale, como dois extremos, e diria que as de Carolina do Norte,Wisconsin e Berkeley ocupam o que eu chamaria de um meio ter­mo saudável. A Universidade de Indiana, além de valorizar enor­memente o programa de pós-graduação, é conhecida, particular­mente, por estimular os alunos de graduação a obter o bachare­lado em literatura comparada e pelas 15 ou 20 disciplinas queoferece anualmente sobre a chamada literatura mundial em tra­dução inglesa. Yale, por outro lado, defende o princípio de que,definitivamente, literatura comparada não é para alunos de gra­duação (que deveriam, em primeiro lugar, se especializar em umaou mais literaturas estrangeiras) e é também muito difícil e adian­tada para alunos de mestrado; portanto oferece apenas um pro­grama de doutorado para a elite dos estudantes. Nós, na Caroli­na do Norte, não estimulamos alunos de graduação a cursaremdisciplinas em literatura comparada, e temos, na realidade, de cin­co a oito bacharelandos por ano; mas enfatizamos muito o nos­so programa de pós-graduação, e, no momento, temos mais detrinta alunos comparatistas trabalhando tanto em nível de mes­trado como de doutorado. É para estes jovens que dedicamos to­da a nossa atenção e não para os alunos de-graduação, que cer­tamente estariam melhor nos departamentos de Grego, Espanhol,

Alemão ou Russo. Os requisitos para o doutorado são em médiavinte e quatro disciplinas de três horas por semana depois do ba­charelado, das quais seis devem ser cursadas em três departamen­tos de literatura específica, enquanto o quarto grupo de seis dis­ciplinas deve ser em literatura comparada - com cerca de duassobre a herança grega e latina da literatura ocidental. Estas últi­mas são as únicas disciplinas que o candidato pode cursar emlíngua inglesa. Nosso jovem doutorando, portanto, conhece trêsliteraturas no original e geralmente escolhe o período entre a Re­nascença e o presente - apesar de nos últimos anos termos tidotambém dois doutorandos em literatura comparada medieval, comas literaturas modernas integrando apenas a área de concentra­ção menor. Se uma das três literaturas é a inglesa, isto significaque ele tem que conhecer apenas duas línguas e literaturas es­trangeiras; se ele é um americano patriota, significa também, seele assim optar, que pode estudar a literatura inglesa somente apartir de Chaucer até a morte de Shelley e Byron, e que, nos últi­mos cento e quarenta anos, pode-se voltar para a literatura ame­ricana de Bryant até Faulkner em vez de se dedicar aos vitoria­nos e aos escritores britânicos do século xx. Há, ainda, uma outracombinação possível, que é a de uma literatura antiga com duasmodernas, por exemplo, grega, italiana e inglesa. A nossa com­binação mais comum, entretanto, tem sido a literatura inglesacomparada com a francesa e a alemã.

Dê-se um pequeno aviso àqueles comparatistas como nós quepodem não encontrar toda a ajuda necessária em seus campi eque, portanto, têm que lecionar a maioria das disciplinas de lite­ratura comparada. Foi o que aconteceu conosco em Carolina doNorte, onde, antes de 1963, somente alguns entre os nossos cole­gas das áreas de inglês, francês ou espanhol eram capazes, ou es­tavam dispostos a ministrar disciplinas acerca da vasta influên­cia de suas Idades-de-Ouro sobre as literaturas vizinhas. Nossosalunos, então, tinham que cursar a maioria de suas disciplinasdas três literaturas escolhidas hermeticamente isoladas uma daoutra - e a tarefa de construir pontes e apontar as muitas in­fluências recíprocas que ocorrem entre as literaturas nacionais eradeixada nas mãos de um punhado de comparatistas. Somos, por­tanto, a única entidade estrangeira na nossa área de literatura,e nas disciplinas que ministramos, nós nos limitamos ao compa­ratismo de forma direta e simples. Não gostaríamos de passar

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por cima de outros departamentos, analisando a fundo Dante,Shakespeare, Schiller ou Whitman; ao invés disto, nos baseamosna contribuição que Dante recebeu de Virgílio e deu a Milton;no que Shakespeare aprendeu de Ovídio ou Bandello, e em porque foi abominado por Voltaire e aclamado por Baretti e Goe­the; no que Schiller significou para os dramaturgos românticosfranceses; e no fato de Whitman, muito mais do que Cooper ouPoe, ter sido o primeiro americano a inverter o tráfego de mão­única das influências literárias da Europa para a América, ao lan­çar ondas poderosas de volta para as margens européias. Anosde experiência valiosa ao mobilizar os comparatistas americanosno sentido de uma organização sólida dentro da Associação deLínguas Modernas (MLA), esforço este que culminou com a fun­dação do nosso período próprio, a publicação da Bibliographye do Yearbook, e com a fundação da Associação Internacionalde Líteratura Comparada, me ensinaram que não somos, de for­ma alguma, bem-vindos se, na nossa escalada, ao invés de nosapoiarmos somente nas relações estrangeiras, ameaçarmos os pri­vilégios de nossos colegas nos diversos departamentos de litera­tura, dizendo-lhes que restrinjam seu âmbito de atuação, porqueagora queremos fazer parte do seu trabalho. Isso seria um erro,pois nossa tarefa é apenas aquilo que nossos colegas não podemou não querem fazer, devido a suas especializações ou limitações.Sempre me preocupei com a sugestão de que todos os nossos tí­tulos, professores de inglês, francês, alemão, ou, na verdade, deliteratura comparada, devessem ser abolidos e de que nós devês­semos simplesmente ser chamados professores de literatura, por­que muitos idealistas sustentam a idéia de que a nossa tarefa de­veria ser a de avaliar uma grande obra-prima, como Dom Qui­xote, sob todos os seus aspectos, nacionais e internacionais. Taisprofessores de literatura (com I maiúsculo), conhecedores de tu­do, morreram há muito tempo, e devemo-nos contentar em sermeros especialistas em um ou outro campo do conhecimento. Deminha parte, sempre considerei mais satisfatório deixar as análi­ses minuciosas de De Rerum Natura, Oparaíso perdido, WilhelmMeister ou Os irmãos Karamazov nas mãos de especialistas mui­to mais qualificados e contentar-me com detectar certas ramifi­cações internacionais nessas obras. Somente esta auto-restriçãonos tornará aceitáveis e aceitos em todos os campi, um amigoe aliado valioso e coordenador suplementar, mais do que,um ri-

vaI, na nossa tarefa comum de explorar a maravilha de um gran­de homem ou obra em todas as direções.

Para concluir, tecerei uma breve discussão sobre duas pecu­liaridades americanas relevantes que favorecem a literatura com­parada - peculiaridade que, infelizmente, só podemos compar­tilhar com a Austrália. A primeira é a nossa localização geográ­fica favorável, na encruzilhada dos acontecimentos. Há sete anosatrás eu me baseei no futuro promissor do comparatismo ameri­cano em uma comunicação que fiz na Universidade de Zurique,posteriormente publicada em Tübingen - quando achei que de­veria explicar por quê, no nosso campo, a América já tinha maisdo que alcançado o mesmo nível de liderança que a França. Quan­do Paul Van Tieghem em sua 10 littérature comparée acentuoutanto o papel dos intermediários, ele tinha em mente países me­nores como a Bélgica, a Suíça e a Tchecoeslováquia, ou talvezaté a Áustria e regiões como a Alsácia, como intermediários ideaisentre as culturas latinas, germânicas e eslavas da Europa. Os Es­tados Unidos, naquela época, pareciam estar muito distantes, eramperiféricos e não muito importantes para a visão eurocêntrica do­minante. Hoje a situação é diferente, pois os EUA estão no cen­tro do desenvolvimento, não só na área política e da ciência, mastambém no que concerne às grandes correntes literárias que atra­vessam os mares. A América Latina, que se costumava expor di­retamente às influências culturais européias, atualmente canali­za muitas delas via Nova York ou Washington, pois, com o apa­recimento de Franco na Espanha, os vínculos de hispanicidadeentre a Espanha e o Chile ou o Uruguai - antes tão extraordi­nariamente fortes - se enfraqueceram independentemente do fatode que a terra-mãe de Whitman, Jack London e Hemingway setinha tornado um emissor cada vez mais importante. Com rela­ção a um Japão aberto às influências ocidentais, há apenas cemanos, são novamente os EUA que se tornam a terra intermediá­ria imprimindo à sua própria e à literatura geral européia umavelocidade acelerada desde a vitória e a ocupação de 1945. Noque concerne à Ásia e à Austrália, e ainda a outros países da Co­munidade Britânica, como a Índia, que têm ricas possibilidadesculturais e meios militares inadequados, de dar pena, a crise doSuez de menos de dez anos atrás nos mostrou que o tênue víncu­lo com a Europa, sempre à mercê de Nasser, é, na verdade, mui­to inseguro, e que, tendo em vista o barril de pólvora que é a África

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272 LITERATURA COMPARADA O DESAFIO DA LITERATURA COMPARADA 273

do Sul, O caminho mais seguro e conveniente de Londres e Cin­gapura ou Christchurch pode bem passar por São Francisco. Não,a América do Norte de hoje não é mais a periferia, um continen­te mantido à parte entre dois imensos oceanos; para melhor oupara pior, por bem ou por mal, por Harvard como também porHollywood, devido à sua geografia e ao seu poder, é hoje umemissor e um intermediário de primeira grandeza.

Uma segunda característica, que pode ser compartilhada coma Austrália, e que aponta grandes esperanças para um começoefetivo da literatura comparada neste país e um desabrochar tar­dio (que a Inglaterra insular, apesar de sua proximidade com ogrande continente-mãe europeu, talvez nunca experimente) é obackground multirracial do americano e agora também do povoaustraliano. Dificilmente se encontra hoje um americano que nãotenha pelo menos um par de ancestrais franceses, alemães, sue­cos, italianos, tchecos, ou judeus - e a Austrália, da mesma for­ma, tem sido tão intensamente enriqueci da desde 1945 pelo in­fluxo de todos os tipos de elementos nacionais e raciais, que oimpacto benéfico pouco a pouco tem substituído a atitude pro­vinciana bitolada e restritiva por uma visão do mundo e da lite­ratura mais ampla e mais tolerantemente cosmopolita. O menosdigno entre os comparatistas europeus freqüentemente abraçavaa profissão somente para traí-Ia, para ignorar o fato de que ocomparatismo, em última análise, constitui um credo político, umacondenação de todas as formas de racismo - porque, às vezes,estes homens publicam livros chamados comparatistas simples­mente para acentuar a pretensa superioridade de suas própriasliteraturas nacionais. Isto não acontece com os americanos de hojenem acontecerá com os australianos de amanhã, que têm por trásuma linhagem rica e variada - e com toda a sua língua-mãe,o inglês, serão justos e imparciais no julgamento dos débitos ecréditos literários das terras de seus ancestrais. Isto pode fazercom que os nossos alunos sejam melhores lingüistas e melhorescomparatistas - e uma breve olhada em alguns dos nossos com­paratistas mais destacados da América vai-nos convencer de quea obra de anglo-saxões como Lawrence Marsden Price, da uni­versidade de Berkeley, Gilbert Highet, de Columbia, ChandlerBeall, de Oregon, Haskell Block, do Brooklyn College, Owen Ald­ridge, de Maryland, ou David Malone, da Califórnia do Sul, émais do que amplamente complementada por franceses como

Henri Peyre, de Yale, ou Gilbert Chinar, de Princeton; por ale­mães como Horst Frenz, de Indiana, Victor Lange, de Prince­ton, ou Oskar Seidlin, de Ohio, State; por italianos como GianOrsini, de Wisconsin, ou Giuseppe Fucilla, de Nórthwestern; portchecos como René Wellek, de Yale; suíços como François Jost,de Illinois; espanhóis como José de Onís, do Colorado; polone­ses como Zbigniew Folejeswski, da Pensilvânia; russos como GledStruve, de Berkeley. Esta mesma riqueza de inspirações pode servista entre as figuras literárias da América também - desde osfundamentos franceses de Philippe Freneau, na época de Jeffer­son, até os alemães de Theodore Dreiser, os ancestrais portugue­ses de John dos Passos, a natureza anglo-saxã pura de RobertFrost, as características armênias de William Saroyan, as raízesjudaicas de Shalom Asch, a herança italiana de Frances Winwar,aliás Francesca Vinciguerra, o rico veio negro de Langston Hug­hes, Richard Wright e James Baldwin.

E, por falar destes americanos de cor - em momentos emque estamos todos profundamente deprimidos com os fatos queocorreram em Little Rock ou em Birmingham, não nos esqueça­mos com alegria, e talvez uma pitada de orgulho, de que a vozdo homem negro foi ouvida pela primeira vez na história não naÁfrica, não às margens do Congo, mas às margens do Mississip­pi - e que foi na sempre revolucionária América que os primei­ros escravos, através de spirituals comoventes, romances, dramase poemas atraentes, tiveram a chance de expressar suas esperan­ças e angústias, seu desespero e a visão de uma raça que aspiracom razão a um lugar de respeito no mundo.

Este é o sangue da nossa vida, o extenso campo que os com­paratistas podem explorar, o desafio com que nos podemos de­parar e vencer quando' nos sentimos frustrados e desencorajadospela estreiteza em grande parte dos estudos literários concebidosdentro de uma visão meramente nacionalista. Eu gostaria de con­cluir com uma declaração de R. W. Emerson contra um partidopolítico antiestrangeiro de mais de cem anos atrás que parece ex~tremamente adequada nesta seqüência de idéias: "odeio a estrei­teza do Native American Party, diz Emerson em seu Journal desetembro de 1845. É o cachorro na manjedoura. É exatamenteo oposto de todos os ditames de amor e magnanimidade; e, por­tanto, é claro, contrário à verdadeira sabedoria... o homem é amais complexa das criaturas .... Assim como no antigo incêndio

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274 LITERATURA COMPARADA

do templo de Corinto, pela fusão e mistura de prata, ouro e ou­tros metais, uma nova combinação mais preciosa, chamada obronze de Corinto, se formou; neste continente - asilo de todasas nações - a energia dos irlandeses, alemães, suecos, polone­ses, cossacos e todas as tribos européias - dos africanos e dospolinésios - irá formar uma nova raça, uma nova religião, umnovo estado, uma nova literatura, que será tão vigorosa quantoa nova Europa que surgiu da fusão da Idade das Trevas - "LaNature aime. les croisements".

O que Emerson disse sobre a América de 1850pode, da mes­ma forma, ser dito sobre a Austrália dos anos 60 - e é este tipode pensamento que me leva, a mim, um homem de três pátrias,Suíça, Estados Unidos e Austrália, a dedicar esta palestra tão es­perançosa sobre "O desafio da Literatura Comparada", aos no­vos australianos que se encontram entre nós.

COMPARANDO A LITERATURA*

Harry Levin

Ao ser chamado em público para dissertar, de maneira geral, so­bre questões profissionais, para esticar um bate-papo cheio dejargão a um ritual, procura-se reunir o apoio de um texto. Mi­nha falta de segurança pode ser aferida pelo fato de, para a pre­sente ocasião, ter-me armado com dois textos. Infelizmente, ne­nhum dos dois carrega qualquer autoridade real. Ambos me fo­ram passados pelo ar, por ouvir dizer. Um foi o mais alegre ecasual dos comentários que passaram por mim; o outro viola aprivacidade dos sonhos de um total estranho. Se ilustram algu­ma coisa, é a dim~nsão em que a reputação de nossa disciplinamergulhou, ou não, no subconsciente coletivo. O primeiro de meustextos foi-me transmitido por meio dos bons ofícios de um cole­ga a quem não pretendo embaraçar nomeando aqui. Ele gozoudo arriscado privilégio de ser apresentado a Dylan Thomas, du­rante um dos circuitos do talentoso poeta em campi norte­americanos. Assim que soube que meu informante era como amaioria de nós - um professor de literatura comparada, Tho­mas perguntou: "A que você a compara?" E, com seu jeito ini­mitável, desinibido e explosivo, tratou de oferecer uma sugestãomonossilábica, que não pudemos acolher.

A que, então, nós a comparamos? A nenhum outro modode expressão humana, uma vez que, desde o início, temos cons­ciência de que a literatura é incomparável. A repetida tentativa

* LEVIN, Harry. Comparing Lheliterature. ln: -. Groundsfor Comparison. Cambrid­ge, Mass.: Harvard Univ. Press, 1972, p. 75-90. Discurso do Presidente no lU Encontroda Associação Americana de Literatura Comparada, realizado na Universidade de In­diana, em 19 de abril de 1968. Publicado pela primeira vez no Comparative LiteratureYearbook (Bloomington, 1969).

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de compará-Ia à religião não conseguiu lançar muita luz sobrenenhuma das duas matérias. Comparações hostis entre literatu­ra e ciência terminaram atoladas em estéreis controvérsias aca­dêmicas, tais como a discussão britânica sobre duas culturas. Ana­logias com as artes visuais facilitam conversas agradáveis, masaté agora quase não foram além do plano verbal. Não se trataaqui de negar as importantes relações que a literatura mantémcom a arte, a ciência, a religião, com todos os artefatos e insti­tuições do homem, nem de desconsiderar a freqüente relevânciaque têm em nossos estudos. Trata-se de afirmar que nosso obje­to de estudo, em sua autonomia básica, está além de compara­ções. Como diria Hamlet, seu semelhante é seu espelho: em ou­tras palavras, só pode ser comparado a si mesmo. Toda obra lite­rária tende, para arriscar uma qualificação, a ser mais ou menosúnica. Já que devepartilhar certas características com outras obras,devemos abordá-Ia no aspecto relativo - ou seja, o comparati­vo. Acreditar na unicidade absoluta é, tal como Benedetto Cro­ce, proibir a comparação e, portanto, inibir a crítica.

"La littérature comparée n'est pas Ia comparaison littérai­re", escreveuJean-Marie Carré. Aqueles que lembram de seu char­me, sua coragem e sua cortesia devem lamentar o fato de que elese sentiu constrangido a empreender uma ação de retaguarda con­tra uma concepção de história literária que relegava a literaturacomparada a uma espécie de suplemento extraterritorial. Umavez que o ato de comparar é central ao processo crítico, por quedeveríamos nós - entre todas as pessoas - amarrar nossas pró­prias mãos? Um comparatista que não faz comparações deve sercomparado a um violinista que desdenha usar um arco e assimlimita sua perjormance a uma seqüência de pizzicati. Nosso mo­delo tradicional é o anatomista, que compreenCleãs formas e fun­ções de um determinado corpo ao compará-l o implicitamente aoutros e inumeráveis organismos. Comparações semelhantes nosensinaram tudo que sabemos sobre a evolução dos gêneros e asnormas da técnica literária. Sem elas não chegaríamos a quais­quer julgamentos de valor; não poderíamos identificar tendên­cias nem registrar desenvolvimentos: não seríamos capazes de dis­tinguir uma obra-prima de uma tarefa diária. Não devemos tam­pouco esquecer que a comparação final, como Dylan Thomaspode ter obscenamente insinuado, faz a literatura medir forçascom a vida, autenticando uma enquanto acentua a outra.

Mas vejo que prego aos convertidos. É claro que isso é par­te de nossa liturgia organizacional. Freqüentamos esses encon­tros e reuniões a fim de termos a confirmação de nossa fé e ser­mos fortalecidos em nosso zelo, de modo que possamos resistirà suspeição - senão oposição - de departamentos menos ilu­minados que o nosso, quando no dia seguinte voltarmos para nos­sas respectivas universidades. Espero não criar qualquer rachaem nossa causa comum se, junto a minha lealdade, eu expressaralguns receios. Meu segundo texto é baseado em uma dessas mí­ticas anedotas que o-protagonista é a última pessoa a ouvir. Háalguns anos me contaram que a esposa de um estudante de pós­graduação sonhou que foram acordados, tarde da noite, por umbarulho de caminhão e uma batida à porta. Seu marido se le­vantou e desceu para ver o que estava acontecendo. Lá, de pé,havia dois homens de macacão que, após maior inspeção, conclui­se serem Renato Poggioli e eu. O estudante reagiu com aquelefeliz savoir-jaire sempre tão característico dos sonhos. Ele sim­plesmente voltou a subir as escadas e disse à mulher: "Os ho­mens estão aqui para comparar a literatura." O que ela respon­deu ou o que pensou que isso fosse ela não conseguia lembrar.Seu sonho precisa ainda encontrar seu José, e eu não me atrevoa arriscar nenhuma interpretação.

É um axioma, e deveria ser uma lei, o fato de ninguém serresponsável pelo papel que ele possa vir a ter nos sonhos de al­guém. Mesmo assim sinto-me altamente honrado por, ainda queem tão tênue fantasia da mitologia local, ser identificado tão ín­tima e vigorosamente com a minha área de estudos e com o meuamigo. Não"existem muitos norte-americanos da minha geraçãoque podem dizer - como hoje podem, felizmente, os nossos alu­nos - que fizeram o doutorado ou tiveram muita prática de pós­graduação em literatura comparada. Eu não posso, e a essa altu­ra presidi tantas bancas de exames em que eu teria dificuldadespara passar, que quase enrubesço ao admiti-Io. Como é que sechega a essa associação? Meio autodidaticamente. Se alguém éiniciado entre os clássicos e se vê perdido em meio aos estranhosdeuses da modernidade, se as circunstâncias da sua formação lhepermitiram alguma exposição à vida no exterior, se tem pai oumãe naturalizado - ou, ainda melhor, um cônjuge -, com lem­branças constantes de outros mundos, se seu aprendizado foi maisútil para escrever como jree-Iance em periódicos de crítica do que

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para preencher os requisitos de doutor de um departamento deliteratura inglesa, então foi pura sorte que o colocou no cami­nho certo e apontou o seu destino.

Em contraste com essa formação dessultória, meu colabo­rador tinha a mais completa e profunda vocação para literaturacomparada que tive o privilégio de testemunhar em primeira mão.Poggioli era poeta e crítico e ainda um scholar, e, até o fim desua carreira tragicamente abreviada, ele continuou a publicar tra­duções italianas de uma dúzia de línguas. Com formação de es­lavista na Itália e na Tchecoeslováquia, deu conferências sobreas línguas românicas na Polônia e nos Estados Unidos antes devir para Harvard, em 1946. Florentino, tendo a tradição culturalcomo direito nato, ele era um modernista entusiástico em suassimpatias estéticas, intelectuais e sociais; conseqüentemente, suaresposta a seu país de adoção foi sincera e impecável. De sua ex­periência poliglota ele ganhara uma percepção especial da dinâ­mica dos movimentos literários e dos princípios da inovação ar­tística, que formulou em seu último livro completo, The Theoryof the Avant-Garde. Uma tradução em língua inglesa, realizadapor seu ex-aluno Oerald Fitzgerald, e recentemente publicada, am­pliará sua influência humana e (re)vitalizadora entre os compa­ratistas americanos. É significativo que o volume seja dedicadoa quatro colegas da Europa, que desenvolvem sua carreira de pro­fessor universitário nos Estados Unidos: Herbert Dieckmann,Erich Heller, Henri Peyre e René Wellek.

Em meu sonho particular, a pessoa que está de pé ao ladode Renato Poggioli, comparando a literatura, não sou eu, maso Professor Wellek. As contribuições estratégicas que fizeram fo­ram tão complementares quanto seus diferentes temperamentos:o italiano, tão intuitivo e evocativo, o tcheco, tão direto e siste­mático. Embora eu não seja místico, estou inclinado a ver algoprovidencial na coincidência que trouxe Wellek a Yale no mesmoano em que Poggioli chegava a Harvard, ambos para cadeiras quecombinavam línguas eslavas com literatura comparada. Vinte anosdepois, parece bastante claro que seus prenomes sinônimos pres­sagiavam um renas cimento. Outros, chegando de outros paísese se estabelecendo em outras universidades, contribuíram de for­ma vital para essa vida nova. O que quero dizer é que uma pro­porção muito grande dos que fizeram isso acontecer era de expa­triados, impelidos nesta direção - para nosso eterno benefício -

pela grande dispersão política dos anos 30. Consideremos o con­selho editorial do periódico Comparative Literature, hoje em seuvigésimo ano. Nosso editor, Chandler Beall, foi um pioneiro en­tre os norte-americanos, assim como o editor associado, suíçode nascimento, Werner Friederich. Três dos cinco editores con­sultivos, ativos desde o início, são emigrados: Helmut Hatzfeld,Victor Lange, e, mais uma vez, René Wellek.

Um empreendimento como esse - ou, mais recentemente,o Yearbook de Indiana e Comparative Literature Studies de Illi­nois - não poderia se manter em um período anterior. The Jour­nal of Comparative Literature patrocinado pela Columbia Uni­versity, que mereceu uma acolhida mais amigável do que Croceconcedeu, não durou mais do que o ano em que começou, 1903.Columbia estabelecera o primeiro Departamento de LiteraturaComparada nos Estados Unidos em 1899. Harvard, que já vi­nha por alguns anos oferecendo cursos, não ofereceu diplomaou título senão em 1906. Sua vaidade institucional pode ser sal­va pela lembrança de que o primeiro professor da Columbia, O.E.Woodberry, foi aluno de Harvard. Seu aluno e colega, J.E. Spin­garn, surgira como o mais promissor comparatista da Américado Norte quando, por razões pessoais, se demitiu e afastou-seda vida acadêmica. A literatura comparada em Columbia, paraseu prejuízo e perda nossa, foi então anexada ao departamentode língua e literatura inglesa. Ao reconhecer essas mudanças quan­titativas e qualitativas que deram novo ímpeto à nossa disciplinadurante o período pós-guerra, enquanto sinalizavam essa inver­são transatlântica que americanizou um grupo tão brilhante deintelectuais europeus, não pretendemos fechar os olhos ao meioséculo de desenvolvimepto anterior ou subestimar o esforço e aantevisão de nossos predecessores nativos.

Voltando no tempo, pudemos observar precedentes para aprática da literatura comparada avant Ia lettre. Antes que hou­vesse professores de inglês ou das línguas modernas, um cultiva­do homem de letras como James Russell Lowell poderia disser­tar sobre belles-Iettres,movimentando-se com facilidade de Dantee Cervantes a Chaucer e os elizabetanos. A antiga tradição pe­dagógica da retórica se desenvolveria, com Lane Cooper em Cor­nell, naquilo que ele insistiu em chamar de "o estudo compara­tivo da literatura". Nos departamentos filológicos - germâni­cos, românicos -, os grupos relacionados de línguas exigidas for-

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neceram a base para os estudos comparativos, ainda que prosai­cos. Ninguém jamais poderia ser um medievalista sem antes setornar um comparatista. Quanto aos classicistas, sentiam-se à von­tade no duplo domínio do jogo greco-romano de mútuas refe­rências, e alguns deles estavam curiosos a respeito do contínuoimpacto dos antigos. A partir de suas análises estilísticas das fór­mulas homéricas, Milman Parry foi levado a investigar os para­lelismos fornecidos pela poesia oral, e a comprovar sua demons­tração coletando o repertório dos bardos sérvios. Sua teoria dacomposição épica, junto ao trabalho de campo que lhe serviu deapoio, deve figurar dentre as poucas pesquisas humanísticas denosso tempo que tiveram o mesmo reconhecimento concedido auma descoberta científica.

Tive muita sorte em encontrar Milman Parry como instru­tor de calouros, e em manter com ele um contato bem próximoao longo de todo o breve lustro que lhe restava. A impressão agudaque ele deixou - a fala comedida, o pensamento ousado, os gos­tos parisienses, as energias californianas - se mostraram impos­síveis de erradicar. Penso nele sempre que tento entender os fun­damentos da literatura: do que é feita, como opera, o papel quetem na vida dos homens. Embora eu também tenha estudado comIrving Babbitt, e tenha tentado expressar minha admiração porele em outra parte, nunca me incluí dentre seus numerosos disCÍ­pulos. Se ele, mais do que qualquer norte~americano antes dele,foi bem-sucedido em animar e projetar nossa disciplina, foi por­que utilizou a literatura comparada como tela de fundo para odrama moral. Podia-se resistir às suas doutrinas, mas não se po­dia evitar ser arrebatado por seu panorâmico senso de continui­dade, sua habilidade enciclopédica em inter-relacionar idéias ouquestões atuais com tradições clássicas ou mesmo com a sabe­doria do Oriente. Aqueles para quem os nomes de certos autoresnão passavam de nomes vão viram mais do que um arrolar denomes em suas majestosas listas de chamada. Era preciso um co­nhecimento textual que se aproximasse ao seu para verificar suasjustaposições e ligações.

Homens como Babbitt e Spingarn funcionavam tanto comocríticos quanto como comparatistas, numa época em que estu­diosos nos campos literários mais restritos cultivavam a históriaà custa da crítica. R.S. Crane, já em 1935, ao se transferir de umdomínio para o outro, declarou que os dois eram mutuamente

excludentes. Considerá-Ios co-extensivoscom tanta freqüência temsido uma atitude tipicamente norte-americana em relação à lite­ratura comparada. Comparatistas europeus, pelo menos até poucotempo, têm sido mais estritamente históricos em seu campo deação. Hesito em esboçar essas distinções hemisféricas porque euacredito firmemente no princípio ecumênico defendido por Cor­nelis de Deugd em sua brochura em holandês, De Eenheid vanhet Comparatisme: a unidade da literatura comparada. Uma denossas convicções básicas certamente tem sido a transcendênciado nacionalismo. Falar de uma escola norte-americana parece par­ticularmente de pouca visão, quando tantas de nossas luzes maisbrilhantes têm origem européia. Mas podemos observar que estecontinente proporcionou-Ihes uma perspectiva muito mais am­pla do que poderiam jamais obter em sua terra natal. A precon­dição étnica da nossa cultura, o próprio fato de que aqui elesse misturam a colegas de diferentes proveniências, favorece a mú­tua fertilização das idéias. Nosso objetivo não é uma escola na­cional, mas uma perspectiva internacional.

Nações menores, cujas línguas não são faladas amplamen­te, gozam da vantagem compensadora do multilingüismo. GeorgBrandes lamentou q.uea maioria de seus leitores não podia lê-Iono original dinamarquês: por outro lado, seu domínio de litera­turas estrangeiras fez dele o mais cosmopolita dos críticos. Nãoé à toa que a Suíça e a Alsácia-Lorena produziram comparatis­tas, que, por sua vez, concentraram seus esforços pioneiros nasrelações franco-alemãs, especialmente na época romântica. Co­mo essas áreas foram delimitadas e mapeadas, a ênfase tem sedeslocado culturalmente para as regiões eslávicas e historicamentepara outras épocas. Uma cultura imperial como a da Grã­Bretanha, tendo imposto sua língua em terras tributárias, tem si­do menos receptiva a culturas rivais. De qualquer maneira, osbritânicos têm tardado a mostrar qualquer interesse na literaturacomparada - embora alguns deles, como H.M. Chadwick, W.P.Ker e Sir Maurice Bowra, a tenham praticado discretamente sobrubricas mais convencionais. Os Estados Unidos, ainda que se­jam predominantemente anglófonos, estão numa posição bemdiferente. Seu passado colonial, seu isolamento continental, suacontínua série de emigrações, para não mencionar a inquietaçãode seus escritores contemplando a cena americana, os condi cio­naram a olhar para fora, para o leste, em direção à Europa.

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Se a nossa tendência tem sido centrífuga, a França tem re­solutamente tendido a uma direção centrípeta. Muitos caminhosestrangeiros levaram a Paris, daí eles terem devolvido as bem­sucedidas importações de língua e cultura. De forma alguma sur­preende que o comparatiste tenha por vezes confundido sua ta­refa com a do do uanier. Os franceses, de sua parte, demonstra­ram considerável interesse por outras terras, o tipo de interesseque atenienses demonstram ter pelos bárbaros, e aumentaram oconjunto de seus conhecimentos com lendas exóticas que seus via­jantes, assim como Heródoto, trazem para casa. Sua consciên­cia de viverem no centro da civilização ocidental foi, de modogeral, justificada pelo curso dos acontecimentos. Mais do quequalquer outro povo, eles definiram o ritmo, ditaram os termose forneceram o modelo para a história literária. Parece lógico quea França tenha sido o local de nascimento e, por longos interva­los, o principal mantenedor da literatura comparada. Esta é umadas várias dívidas intelectuais para com ela que o resto do mun­do deveria agradecidamente reconhecer. Também parece naturalque seus estudiosos e críticos estivessem essencialmente preocu­pados com a sua própria literatura, e que a sua preocupação comoutras literaturas fosse regulada pelo grau do relacionamento quemantinham com as questões da França.

Durante a era de l'entre-deux-guerres, quando os intelectuaisde todas as nações gravitavam em direção à sua segunda pátria,e Paris era a capital das artes e das idéias, estudantes estrangei­ros da área de humanas encontravam um porto seguro no Insti­tut de Littérature Comparée na Sorbonne, fundado e dirigido porFernand Baldensperger. Compreensivelmente, os estudos que de­senvolviam quase sempre se centravam em algum ponto de con­tato entre a literatura francesa e a sua. E quando Leon Edel quistrabalhar em ninguém menos que Henry James, não recebeu qual­quer incentivo dos cursos de pós-graduação norte-americanos _como isso hoje nos parece distante! No fim, ele teve que escreversuas duas teses precursoras sob a orientação do primeiro profes­sor francês de literatura norte-americana, Charles Cestre. Masquando Edel chegou à Universidade de Paris, ele naturalmentecomeçou consultando Baldensperger. Este último, embora de for­ma alguma sem simpatia, explicou que era tarde demais: o tópi­co acabava de ser coberto. Então ele exibiu a tese de Marie-ReineGarnier, Henry James et Ia France. Essa conjunção se revelou

de fato profícua, à qual o Professor Edel acrescentou nuancesposteriores. É uma pena que seja um número muito pequeno ode escritores que se prestam, tão generosamente como James, àaplicação automática da fórmula de Baldensperger.

Muito mais tarde, quando estava por um semestre dando aulana Sorbonne, pude, de relance, ver o outro lado da moeda. Umestudante de literatura comparada veio consultar-me, com algumespanto, sobre o que lhe coubera como tema para dissertação:André Gide e a América. Uma vez que Gide nunca visitara osEstados Unidos e não tocara, senão marginalmente, em sua lite­ratura, era mais provável que se tratasse de um estudo sobre re­cepção e influência. Para azar do candidato, a reação norte­americana fora relativamente superficial e esporádica, de formaque dificilmente poderia fornecer o material literário necessáriopara um breve ensaio crítico. A suposição que havia por trás detarefas como essas - não verificada diante dos fatos do lado re­ceptor - é que, de alguma forma, todo eminente autor francêsdeve ter tido uma substancialfortune em todos os países, que me­rece ser investigada em detalhes. O valor da investigação é, alémdisso, posto em dúvida, quando os méritos do récepteur são sen­sivelmente inferiores àqueles do émetteur, por exemplo, a influên­cia de Flaubert em Lafcadio Hearn. A abordagem francocêntri­ca foi reduzida ao absurdo no pequeno manual de M.F. Guyard,em que um quadro, incluído como apêndice, indica que reivindi­cações foram feitas e que esferas de influência não reivindicadasesperam pelo arrojado prospector.

O método é facilmente transferido para outras bases de ope­ração. Como afirma Jan Brandt Corstius, na mais recente Intro­duction to the Comparative Study of Literature, "é enorme o nú­mero de livros lidando' com autor X no país Y". Em seu livroconcorrente, La Littérature comparée, Claude Pichois e A.M.Rousseau usam a mesma formulação: "Ia formule X et Y". Pa­rece bastante adequado ao espírito algébrico que por tanto tem­po reinou sobre nós: Queremos crer que ele esteja sendo suplan­tado por um esprit de finesse. No entanto, devemos ser gratosa Baldensperger por ter reunido as coisas na hora e no lugar cer­tos, por ter imposto concretude a uma disciplina que até entãofora por demais difusa. Já sublinhei sua contribuição positiva numestudo biográfico para a faculdade de Harvard, à qual ele per­tenceu por seis anos; devo-lhe minha gratidão pessoal por ter si-

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do o primeiro a me incentivar a dar aulas num curso de literatu­ra comparada. Ele talvez seja mais bem compreendido enquantoum estudioso contemporâneo de Romain Rolland e Jean Girau­doux, que compartilharam suas boas intenções com respeito afronteiras, especialmente o Reno. Academicamente, poder-se-iaargumentar que o chauvinismo e o provincialismo dos outros de­partamentos literários justificaram a emergência da literatura com­parada enquanto uma disciplina limítrofe, de fronteiras, Grenz­wissenschajt.

O problema é que ela despendeu muito da sua energia pa­trulhando essas fronteiras em vez de atravessá-Ias; deu a maioratenção àqueles autores que mais viajaram, intermediários emvez de inovadores; e, por essa avaliação, seu maior gênio revelou-seser Madame de StaeI. Paul Hazard, primordialmente um histo­riador literário da França, ou Marcel Bataillon, essencialmenteum hispanista, eram capazes de ressaltar um primeiro plano fran­cês ou espanhol contra um plano de fundo comparativo. Baldens­perger, comprometido com o profissionalismo do arqui­comparatista, estava menos interessado na literatura em si mes­ma do que em suas "orientations étrangêres". Ele conseguia tor­nar mais vivas certas matérias com alusões tópicas - como quan­do, durante o escândalo da abdicação de Eduardo VIII, Baldens­perger deu uma palestra na Aliança Francesa sobre "Une Amiedu Roi d'Angleterre", uma amante francesa de Carlos lI. Quan­do seu colaborador, Paul Van Tieghem, renunciou a essas parti­cularidades para compilar um resumo histórico das literaturas eu­ropéia e norte-americana, este não teve lugar em littérature com­parée; foi apresentado sob a categoria mais sintética de littératu­re génerale. Ai desse tão bem-intencionado internacionalismo!A primeira edição do livro, que saiu durante a ocupação alemãde Paris, não permitiu que se reconhecesse a existência de Hein­rich Heine ou de Thomas Mann.

Os editores de Van Tieghem deram novo lugar ao seu guiaintrodutório de 1931,juntando-o ao de Pichois e Rousseau. Com­parar o comparativo, em um período de 36 anos, é assinalar au­mentos na flexibilidade e na amplitude. O francocentrismo pa­rece ter sido depurado e modificado. Não de modo afetado, osautores estendem-se nas primeiras conquêtes do movimento fran­cês; mas eles generosamente também reconhecem que O compa­ratismo americano' 'sur bien des points désormais, a plus de le-

çons à donner qu'à recevoir". Se o ponto de vista parece ecléti­co, tanto melhor; já tivemos simplicidade demais para um em­preendimento que deveria ser mais variado; todos os procedimen­tos que genuinamente lançam luz sobre o objeto deveriam ser re­levantes para ele e, conseqüentemente, para nós. Pichois e Rous­seau começam de forma bem tradicional, com fontes e influên­cias e a antiquada mecânica de intercâmbio. Logo passam paraa história das idéias, o significado dos temas, e um depósito debugigangas dignificado pelo rótulo de estruturalismo. Confessoque me sinto um pouco como M. Jourdain em suas aulas, quan­do vejo meu próprio nome listado em lisonjeira companhia sobo título: "Phenoménologie de Ia transposition littéraire". Con­tudo, exceto por tais aberrações inexplicáveis, o volume possuiuma qualidade open-ended que incita ao ressurgimento da lite­ratura comparada francesa.

Isto representaria uma mudança animadora; pois, se exami­narmos candidamente todo o campo, nos encontraremos em vãoprocurando por uma obra importante da França desde 1937, anoque testemunhou a publicação de L'Ame romantique et le rêve,de Albert Béguin, assim como de Erasme en Espagne, de MarcelBataillon. René Et'iemble estava evidentemente erguendo algumtipo de monumento em seu Le Mythe de Rimbaud. Mas isso éÜberliejerungsgeschichte, hagiografia anticlerical, um estudoexaustivo e extenuante a partir de uma concepção equivocada.O próprio autor o chama de "sociologie religieuse", documenta-oao ponto da obsessão ou da paródia, e admite que ele raramentetrata de literatura comparada. Muito pouco do que é escrito naFrança hoje, "sous le titre officiel de littérature comparée", sa­tisfaz os cânones estabelecidos no panfleto que lançou quandoacedeu a uma cadeira em Paris, Comparaison n'est pas raison.Ele é rabugento, embora ardente, internacionalista, que não dei­xa de recorrer ao jranglais quando se refere ales yanquis. Masele tomou sério conhecimento das discussões profissionais tra­vadas tanto no leste quanto no oeste da França. Os leitores norte­americanos não têm motivos para se surpreender com suas reco­mendações, na medida em que elas envolvem tematologia, ima­gística, tradução e poética. O que pode nos surpreender é queessas abordagens encontraram um rosto na Sorbonne.

O aspecto mais notável da plataforma de Etiemble é o seuvasto cosmopolitismo. Existem muitas nações no mundo cuja li-

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teratura ainda está por ser comparada. Nossa disciplina não terárealizado completamente suas potencialidades ou objetivos atéque sua rede as tenha abarcado todas. Enquanto isso, fazemostudo o que é possível para estabelecer programas de cooperaçãocom o pequeno e altamente qualificado grupo de especialistasem literaturas não ocidentais hoje disponíveis, tais como as con­ferências realizadas na Indiana University. Os elos mais comuns,os empréstimos interculturais, as imagens e miragens recíprocas,embora interessantes, são em geral desapontadoramente espar­sos e superficiais. O desafio estimulante deste primeiro movimentoestá justamente no fato de abrir uma esfera desconexa de com­paração. Ainda que o domínio do comparatista ocidental seja mui­to amplo e incomparavelmente rico, é necessariamente circuns­crito; ele permanece sendo, seja por que for, o que o ProfessorBrandt Corstius - em seu modesto e inteligente guia - deno­mina "uma comunidade de literatura". Seus elementos, conquantovariados, são os produtos afins da difusão cultural e lingüística,e são influenciados um pelo outro indiretamente, senão direta­mente, enquanto uma literatura de origerp.totalmente díspar nosoferece um corpo de formas e temas para comparar, no sentidomais importante, com a nossa. Se soubermos o que o teatro nôtem em comum com a tragédia grega, podemos generalizar so­bre processos orgânicos.

Não podemos senão concordar com Etiemble que seria degrande valia para qualquer comparatista europeu se familiarizarcom uma língua não européia. Mas insistir nisso como requisitoé um conselho de perfeição - tal como ele certamente deveentendê-Io, se seu interesse pela China o levou a entrar em con­tato com sinólogos, que consideram uma familiarização com aliteratura chinesa em si mesma um rigoroso trabalho para a vidatoda. Mais prática é a sua recomendação para fomentar tais con­tatos e auxiliar no desenvolvimento de comparatistas asiáticos.Ainda assim, embora esteja feliz por saber que a Coréia do Sulagora tem uma Sociedade de Literatura Comparada, não me sintoculturalmente destituído por causa de minha inabilidade para lersuas transações. Eu realmente cuido para que, ao oferecer indis­criminada simpatia por culturas estranhas, não relaxemos as exi­gências da literatura comparada européia, sucumbindo a nossorisco ocupacional e querendo abarcar o mundo todo com as per­nas. Que vantagens trará a nossos alunos aprender suahili e não

saber nenhum latim? Seria paroquial inverter o verso etnocêntricode Tennyson: "Better fifty years of Europe than a cycleof Cathay."Mas é apenas prudente lembrar, com devido respeito à Ásia e à Áfri­ca, a epígrafe de Marvell que o falecido Eric Auerbach colocou napágina de rosto de seu Mimesis: "Had we but world enough andtime..." Certifiquemo-nos de que fazemos justiça a essas partes domundo das letras que definitivamente estão ao nosso alcance.

O subtítulo de Etiemble, Crise de Ia littérature comparée,faz ecoar o título da polêmica comunicação apresentada pelo Pro­fessor Wellek no Congresso Internacional em Chapell Hill, em1958, uma ocasião da qual se pode afirmar ter dramatizado oamadurecimento dos Estados Unidos na literatura comparada.O Professor Wellek usou-o para criticar a incômoda e restritivametodologia associada a Baldensperger e Carré - ambos mor­tos naquele mesmo ano. A maioria dos antigos comparatistas emtoda parte, inclusive nos Estados Unidos, empregara essa meto­dologia, normalmente com menos distinção que seus expoentesna Sorbonne. No entanto, a crítica foi interpretada, entre certosgrupos, como um ataque contra uma Escola Francesa ci-devant,e um manifesto el1\nome de uma soi-disant Escola Americana.Seria não apenas irônico, mas também trágico, se um movimen­to que visava à união dos hemisférios terminasse provocando opo­sição entre eles. Já vivemos com crises sociais e políticas demais.A crise na literatura comparada, longe de ser um conflito franco­americano de linhas nacionalistas, tem sido uma questão meto­dológica entre duas gerações - e, enquanto tal, uma manifesta­ção de crescimento. Uma década de discussão trouxe sinais deum realinhamento na França, que se assemelha a algumas dasmudanças pelas quais ,temos passado. Nossos problemas são osmesmos, e devemos continuar como parceiros na busca de solu­ções.

Contudo, é com tristeza que suspeito não termos escutadoo último deste discurso divisor sobre duas escolas, ou a últimadas tentativas em nos manter presos a uma controvérsia com osfranceses. Alguns dos nossos colegas japoneses foram mal orien­tados para se voluntariarem como nossos aliados. Henri Peyre,um símbolo vivo da concórdia franco-americana, descreveuo pon­to de vista do comparatista como supranacional. Sua descriçãoconciliadora foi raivosamente atacada por Irina Neupokoeva, umarepresentante russa na conferência sobre literatura comparada con-

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vocada pela Academia Húngara de Ciências, em 1962. Uma vezque os norte-americanos - que não estavam representados emBudapeste - foram apontados como uma escola, esta polêmicasenhora, aproveitando a oportunidade tática, passou a invecti­var contra eles. Ela foi tão longe ao ponto de defender a posiçãoobsoleta de Guyard. O que se conhece por comparatismo foraoficialmente desaprovado na Rússia, tal como o cosmopolitis­mo, o formalismo ou outros pontos de vista semelhantes. Ao avan­çarem metade do caminho em direção à literatura comparada,os russos não abandonaram seu compromisso com o nacionalis­mo ou, de qualquer maneira, com o pan-eslavismo, o anti­ocidentalismo e a propaganda política. Madame Neupokoeva estáenvolvida na história soviética da literatura mundial, cujos prin­cípios russocêntricos ela expôs num discurso à Associação Inter­nacional de Literatura Comparada em Belgrado, em 1967.

Parte da hostilidade dos marxistas para conosco parece de­rivar de uma impressão supersimplificada do New Criticism, queconsideram anti-histórico. Um olhar de primeira mão sobre nos­sa produção crítica deveria assegurá-Ios de que o historicismo ain­da é preponderante, e de que alguns de nós, com seriedade, dãoatenção à sociologia, à ideologia, e, na verdade, ao marxismo.Tentamos situar nossas comparações no contexto da história. MasMadame Neupokoeva, rejeitando o termo comparativo, preferefalar de "o estudo da interconexão e interação da literatura". Is­so não passa de história literária à Ia Guyard e Van Tieghem, comum desvio de prioridades para as esferas eslávicas e orientais. Aoprocesso de comparação, tão essencial a qualquer análise formal,ela proporia como substituto um segundo tipo de história. Seriadiacrônico, em vez de sincrônico; dito de outra forma, em vezde considerar fenômenos simultâneos numa seqüência cronoló­gica, funcionaria a partir de modelos de desenvolvimento histó­rico pré-organizados, que seriam aplicados a diferentes períodosem diferentes países. A pré-organização seria, é claro, determi­nada pela doutrina marxista. Metodologicamente, é bem pareci­do com o que ela repreende nas tipologias culturais de ArnoldToynbee. Embora ela fale pretensiosamente de ciência, o métodocientífico - sendo empírico, não dogmático - não pode operarnum sistema fechado de idéias.

Os estudos marxistas de literatura parecem estar ganhandomais flexibilidade e pragmatismo na Hungria, com István Sõtér

e seus colegas. Suas investidas têm significado imediato para nós,já que fomos convidados a colaborar numa história da literaturaem línguas européias, um projeto internacional a ser coordena­do pelo Instituto de Pesquisas Literárias da Academia Húngara.Esboços preliminares sugeriram modos de reduzir o tema mas si­vo a proporções manuseáveis por meio da divisão horizontal emmovimentos, e da vertical em gêneros. Isso teria o efeito de en­cerrar considerações formais num tabuleiro histórico, uma arma­ção tão descontínua que desencorajaria o traçado de formas ealgumas das estratégias comparativas. Foi proposto que se co­meçasse in medias res com o período romântico, uma área nãoimune à auto consciência nacional. Estarei curiosamente obser­vando o que exala quando chegarmos ao movimento realista ­tendo percebido, para meu desconforto em Belgrado, que nossoscamaradas da União Soviética ainda se prendem desesperadamen­te a esse conceito anistórico de Realismo Socialista que herda­ram de Górki, Zhdánov e Stálin. A cooperação acadêmica queatravessa fronteiras ideológicas é uma perspectiva que devería­mos desejar promover. Mas será que nossos colaboradores nospedirão, como fizeram os comunistas no verão passado, para acei­tar seus dogmas ideblógicos?

Se não somos capazes de começar concordando sobre a de­finição de termos, então estaremos construindo uma nova 1brrede BabeI. No bureau da Associação Internacional de LiteraturaComparada, confesso, havia momentos em que nos sentíamosmembros do Conselho de Segurança das Nações Unidas. No en­tanto, deveria haver esperança quanto ao resultado final, assimcomo intermitente frustração, nessa analogia. Podemos talvez ex··trair alguma confirmação do dicionário de termos que está sen­do compilado agora sob'a responsabilidade da AILC, e que devebasear nosso uso crítico num sólido fundamento semântico. Taiscompilações desconjuntadas podem ser mais satisfatórias do queas sínteses difusivas de equipes semi-anônimas; pois, apesar denossos vocabulários literários serem nitidamente irregulares, elescontêm muitos artigos, cujo valor é garantido pela assinatura doautor individual. A literatura comparada oferece diversas opor­tunidades para o trabalho em equipe, para o encontro de mentese idéias em jogo dialético, se bem que não em Gleichschaltung.Porém, uma vez que permanece sendo uma busca humanÍstica- "La littérature comparée, c'est l'humanisme", diz o enfático

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Etiemble - suas realizações devem ser aquelas de indivíduos. Asobras a serem comparadas devem, em cada caso, ser abarcadaspor uma mente individual. O termo comparatista é, confessada­mente, esquisito; mas ganha impulso quando o utilizamos paradesignar um Lukács, um Curtius, um Brandes, ou um Croce, ape­sar de si mesmo.

Eu deliberadamente citei exemplos de estatura incontestável,que guardam certa distância temporal e geográfica em relaçãoa nós. Pode ser que as condições com que nos defrontamos nãoengendrem polímatas como esses. Mas uma associação de com­paratistas não está em sua infância, quando seus membros erigi­ram monumentos no mundo dos estudos acadêmicos tais comoMotif-Index o/ Folk-Literature, A History o/ Modern Criticism,A History o/ Literary Criticism in the Italian Renaissance, ou TheSinger o/ Tales. O aprendizado moderno não está livre de des­temperos: quem dera tivéssemos um Bacon para diagnosticá-Ios!Em vez disso, temos um William Arrowsmith, que abandonouo humanismo pelo obscurantismo, adotou a prática da anti­erudição, e buscou o aplauso dos filisteus, ao denunciar indis­criminadamente as atividades de seus colegas humanistas, numaretórica tão frouxa quanto as suas próprias traduções. A maio­ria de nós está não menos consciente do que ele da chicanice quetem freqüentem ente trivializado a pesquisa no campo filológico.Reagimos contra isso em nosso tempo, e a isso opusemos a críti­ca construtiva em reuniões intramuros da profissão. O que é maisimportante, nós mesmos deixamos as disciplinas mais especiali­zadas pela literatura comparada por causa das possibilidades dealargamento, integração e revitalização que ela traz para as hu­manidades.

Que precisamos primeiro arrumar a casa, que estamos re­pensando nossos conceitos e centrando nosso foco - é o que con­sidero o significado da nossa assim chamada crise. Ela nos deuliberdade para avançar em direções até então evitadas ou ignora­das. No passado, os comparatistas eram às vezes censurados portrabalharem muito distantes do objeto estético. Dois proeminen­tes Romanisten que passaram o final de suas carreiras nos Esta­dos Unidos, Leo Spitzer e Erich Auerbach, inevitavelmente gra­vitaram para a literatura comparada, e demonstraram com bri­lhantismo o uso que ela poderia fazer da explication de texte.Suas interpretações, tão exemplares em suas diferenças, muito fi-

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zeram para cobrir a distância entre a estilística e a lingüística.Esse rapprochement também ajudaria a aguçar o escrutínio damétrica comparativa. A tradução, que há muito não era reconhe­cida, foi redescoberta como um instrumento para revelar traçosestilísticos e culturais. Os poetas têm trazido inspiração nova àtarefa do tradutor. Os comparatistas têm especial responsabili­dade em cuidar para que ela seja praticada com escrúpulos. Norecente caso de O mestre e a margarida, de Mikhail Bulgakov,eles deveriam ter distinguido entre a escrupulosidade da tradu­ção de Mirra Ginsburg e o desleixo de Michael Glenny, que des­mascarou os revisores que não deram as caras.

O terreno mais comum entre a história e a crítica foi bastan­te ocupado pela história da crítica. De forma mais ampla, a his­tória das idéias, o estudo da literatura como meio de expressão fi­losófica, têm reorientado nossa compreensão das correntes de pon­ta e dos ismos artísticos. O método caracterizado por E.E. Stollcomo' 'histórico e comparativo" trouxe rica e nova luz às formasem mudança e às convenções que persistem no drama. Embora elenão seja tão prontamente aplicável a um gênero tão polimorfo co­mo o romance, vinilosconsolidando e sistematizando nossas per­cepções das técnicas da narrativa. O folclore, antes excluído doslimites da literatura bem-educada, agora parece ser seu modelo,e não só isso, mas também sua matriz. O hábito da fabulação po­de nos fornecer uma chave para os processos da imaginação. Clau­de Lévi-Strauss vê uma progressão, que poderíamos ilustrar, "dumythe au roman". Se nossos críticos de periódicos se mostram pro­míscuos ao reduzir tudo ao mito, ou muito ansiosamente amado­rísticos ao seguir o rastro do símbolo até a sua toca, então cabeao comparatista propor e manter padrões mais altos de interpre­tação. Novos modos de pensamento crítico diariamente nos pres­sionam, alguns deles amplos em seu alcance externo, outros pro­curando penetrar profundezas internas. Para a literatura compa­rada eles oferecem uma extensão da perspectiva, em troca do ri­gor meto dológico que claramente exigem.

Sob o slogan algo confuso de Néo-critique, essas tendênciasse manifestaram na França, talvez como reação à Paléo-critiqueque atribuem à Sorbonne. Sua palavra-chave, structure, parecetomar emprestado parte do seu uso à lingüística e à antropolo­gia. Pode sugerir, mas não promete, uma morfologia da literatu­ra; está preocupada não com a forma, mas com o que era des-

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mezado pelos formalistas corno conteúdo. A Stojjgeschichte, queera tudo menos preterida pela literatura comparada, foi revividacom a temática, e pode esperar por um luminoso futuro. Toman­do os motivos, topo i, ou imagens corno componentes distintivosde estruturas imaginativas, podemos observar corno eles são reu­nidos, ou diferenciar os significados que adotam em contextos va­riados. A armadilha é a tentação psicanalítica a entregar-se a bio­grafias subjetivas; o objetivo é urna análise orgânica das obras deum autor e do código por meio do qual ele se comunica conosco.Considerar essas potencialidades é reconhecer a obsolescência deinstrumentos que serviram a seu propósito: em particular, a biblio­grafia de Baldensperger-Friederich. Ainda que suas listas possamser atualizadas indefinidamente, suas categorias não mais cobremo tema de forma pertinente. Tendo agora toda a literatura corno11lOSSO campo de conhecimento e esfera de ação, precisamos de bi­bliografias especiais, e não de um omnium gatherum.

Somente o Recording Angel poderia ser o bibliógrafo per­feito; e se ele registrar nossas publicações e ações, temo que per­ceba um certo desequilíbrio. Gastamos muito da nossa energiafalando - como estou agora - sobre literatura comparada, enão o bastante comparando a literatura. Temos programas de­mais e desempenhos de menos, um excesso de tambores-mor einsuficientes instrumentalistas, gente demais nos dizendo cornofazer coisas que elas nunca fizeram. Damos excessiva ênfase aconstruir ou destruir mecanismos. Debatemos interminavelmen­te sobre problemas puramente esquemáticos corno a periodiza­ção, enquanto os períodos são deixados de lado, aguardando in­vestigação. Horas que deveriam ser devotadas à leitura e à con­templação são consumidas, corno essa aqui, em encontros e con­ferências. Resumindo, a substância de nossa busca comum é com­prometida por um excesso de ênfase na organização e na meto­dologia. Sentirei muito se meu candor soar corno desprezo portanto esforço necessário. Sei que novos pontos de partida têm queser organizados, e que não se podem atingir resultados sólidossem discussão de métodos. Urna disciplina que ainda está elabo­rando suas relações com disciplinas mais bem estabelecidas nor­malmente se envolverá em críticas e autocrítica. Tornará o aspecto

urna causa, abraçará sentimentos evangelizadores, se anun­ciará com fanfarras heráldicas e promoverá seus interesses comauto propaganda.

Tudo isso é absolutamente compreensível. Além do mais, anatureza de nossa matéria é excursiva e gregária: estimula-nosa viajar e a nos confraternizar; e seríamos ingratos se nos afas­tássemos, com espanto, do tipo de intercâmbios sociais e intelec­tuais que nos foram proporcionados tão auspiciosamente aqui.Pichois e Rousseau, ao falar de congressos, deram um aviso epi­gramático, junto a um trocadilho etimológico: "Se faire carre­four ... ne va pas sans une certaine trivialité". Se os comparatis­tas resistirem ao perigo de se tornarem homens de organização,devem compreender que há muito já passaram do estágio orga­nizativo, e devem parar de se preocupar com as trivialidades doparacomparatismo. Não estou nem mesmo certo se nos devería­mos estar congratulando pelo crescimento da Associação Norte­Americana de Literatura Comparada. Afinal, não somos o Ro­tary International. Nossas faculdades e universidades, que Thors­tein Veblencomparou a lojas de departamentos, competem urnascom as outras instalando novas marcas de produtos populares.É o que acontece com a atual expansão da literatura comparada.Se urna instituição de fato deve ter um departamento desses, anão ser que tenha 'um grupo forte de departamentos de línguas,um certo número de eruditos totalmente experientes e urna gran­de biblioteca - essa foi a questão colocada a vocês pelo relató­rio de nosso comitê sobre normas e critérios profissionais, trêsanos atrás.

É duvidoso que nossas recomendações estão sendo seguidasde maneira consistente, e não ternos qualquer autoridade paraforçá-Ios a isso, além do apelo à boa vontade e ao bom senso.Mais urna vez, correndo o risco de bancar o desmancha-prazeres,tenho minhas dúvidas quanto a se a esfoliação de periódicos éem si mesma um sinal de progresso. A máxima hegeliana prova­ria ser aplicável ao contrário: um aumento de quantidade pode­ria significar urna diminuição de qualidade. Se a literatura com­parada promete algum avanço para além das disciplinas vizinhas,é porque é mais exigente do que elas; pressupõe mais preparaçãodo que elas, e diluir suas exigências colocaria em perigo a suaessência. Aqueles que a praticam devem continuar a ser especial­mente qualificados e, mais do que isso, a ter um senso de voca­ção. Hesita-se em mencionar a simples noção de elite, numa de­mocracia onde os piores são tão cheios de apaixonada intensida­de. O precedente de Henry Adams não é nada estimulante, já que

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294 LITERATURA COMPARADA

- apesar de seu considerável feito - ele considerou sua carreiraacadêmica um fracasso. E contudo nos passou um preceito opor­tuno em seu Education, quando deu ao capítulo final o títulode "Nunc age". Depois de todas as preliminares, as propedêuti­cas, as estimativas, as pesquisas e os autoquestionamentos, apósreavaliar o estado de nossa união, o comparatista deveria acon­selhar a si mesmo: Nunc age. Agora vão em frente: comparema literatura.

o QUE É LITERATURA COMPARADA?*

s. S. Prawer

Admite-se há bastante tempo que a expressão "literatura com­parada", corrente na Inglaterra desde sua utilização fortuita porMatthew Arnold por volta de 1840,1 não é, de modo algum,uma expressão feliz. Aparentemente, expressõesanálogas nas ciên­cias naturais não estão sujeitas às mesmas objeções: "anatomiacomparada" faz sentido, porque anatomia é tanto um modo co­mo um objeto de estudo, ao passo que "literatura" é, atualmen­te, apenas um objeto de estudo. É preciso frisar este "atualmen­te", porque, como René Wellek (que se dedicou profundamenteà história desta é de expressões correlatas) demonstrou recente­mente, a palavra "literatura" de fato teve seu significado estrei­tado.2 "Um italiano de considerável literatura" significava, pa­ra Boswell, um homem sábio e possuidor de cultura literária. Talsignificado perdurou pelo século XIX adentro, mas é hoje obso­leto. "Literatura", em nossos dias, significa (além de "o conjun­to de livros e artigos que tratam de um assunto específico"), "pro­duções literárias como um todo", "os escritos de um país ou deum período, ou do mundo em geral". A expressão "literatura com­parada", portanto, se apresenta vulnerável a ataques tais comoo que lhe fez Lane Cooper nos anos 20: "uma expressão absur­da", que "não tem sentido nem sintaxe". "Uma pessoa poderiapermitir-se falar em 'batatas comparadas' ou em 'vagens com­paradas'''.3 Por isso prefiro, como Lane Cooper, a denominaçãomais incômoda porém mais precisa' 'estudo comparativo de lite­ratura", embora às vezes, em nome da brevidade, vá usar a

* PRAWER, s. s. What is Comparative Literature? In: _. Comparative Literary Sfu­dies: an Infroducfion. Londres, Duckworth, 1973, p. 1-12.

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296 LITERATURA COMPARADA O QUE É LITERATURA COMPARADA? 297

expressão mais consagrada. O alemão e o holandês evitaram es­ta dificuldade através do uso de um particípio presente e de umsubstantivo composto: vergleichende Literaturwissenschajt des­creve nossa atividade com mais precisão do que a formação ad­jetiva usada em inglês, e também mais satisfatoriamente do queo particípio passado utilizado no francês littérature comparée.4

"Literatura comparada" implica um estudo de literatura queusa a comparação como seu principal instrumento. No entanto(como Benedetto Croce jamais se cansou de indicar em seu vi­goroso ataque à noção de que letteratura compara ta podia seruma disciplina separada), isto se aplica a qualquer estudo de li­teratura: não se pode apreciar plenamente a individualidade deWordsworth, seu lugar numa tradição e na modificação dessa tra­dição, sem comparar sua obra, explícita ou implicitamente, coma obra de Milton e James Thomson, com a de Shelley e Keats.A literatura comparada, então, faz suas comparações atravessandojronteiras nacionais. Mas aí, novamente, nos defrontamos comuma dificuldade. Se compararmos o maior romance alemão dedesenvolvimento e educação, Os anos de aprendizado de WilhelmMeisteJ; de Goethe (Wilhelm Meisters Lehrjahre) com Der Nach­sommeJ; um romance da mesma tradição, escrito pelo austríacoAdalbert Stifter, e com outro romance semelhante, Der grüneHeinrich, do suíço Gottfried Ke11er- estamos contribuindo pa­ra os estudos literários comparativos? De certo modo, é claro quesim, pois as tradições nacionais da Alemanha, da Áustria e daSuíça, e os diferentes ambientes políticos e sociais destes países,podem ajudar-nos a dar conta de importantes diferenças de tom,estilo e assunto. Stifter e Keller, entretanto, apesar de uma ínti­ma ligação com suas regiões natais, consideravam-se, com razão,como escritores inseridos na grande tradição da literatura alemã.A avaliação das diferenças entre eles pertence ao domínio da ger­manística. Estudos literários comparativos, tais como são geral­mente entendidos, e como os entendo, operam, então, atraves­sando fronteiras lingüísticas. Neste sentido, pareceria legítimo tra­tar como objeto de tais estudos a obra de um homem que escrevecompetentemente em mais de uma língua: Yvan Go11,por exem­plo, que usava francês e alemão com facilidade quase igual; Sa­muel Beckett, inteiramente à vontade em inglês e francês; e Vla­dimir Nabokov, cuja obra é inicialmente escrita em russo e, pos­teriormente, em inglês. Para fazer justiça à realização desses ho-

mens, o crítico tem de ser poliglota num sentido mais amplo doque o crítico que tenta fazer justiça à obra de um poeta anglo­irlândes como Yeats, ou a poetas anglo-americanos, como Eliote Pound.

Muitas vezes se faz uma distinção entre o que se chama lite­ratura "comparada" e o que se chama literatura "geral". R.A.Sayce estabeleceu sucintamente as diferenças entre as duas: defi­ne "literatura geral" como "o estudo da literatura sem preocu­pação com fronteiras lingüísticas", "literatura comparada" co­mo "o estudo de literaturas nacionais em relação umas com asoutras".5 Esta distinção é útil na medida em que reconhecemosque o conceito de literatura "nacional" tem seus problemas e queos dois tipos de estudo devem, inevitavelmente, matizar um aooutro. Quando rastreamos o desenvolvimento do soneto na Eu­ropa desde os dias de Petrarca, estamos contribuindo para a "li­teratura geral" - como sempre o fazemos ao discutir questõesde teoria literária, poética e princípios de crítica num contextosupranacional. Porém quando, no decurso de um tal mapeamento,comparamos um soneto de Shakespeare com um de Petrarca, es­tamos na área da "literatura comparada". O fato de que estasduas atividades são, em última instância, inseparáveis, não de­veria precisar de inaior demonstração.

Começamos agora a fazer o que nos ensinou a lingüísticamoderna, da qual a maioria das disciplinas humanísticas têm al­go a aprender: prestar atenção às nossas palavras-chaves, não iso­ladamente, mas em campos associativos e campos lexicais.6 Ocampo lexical de "literatura comparada" inclui, além da expres­são "literatura geral", o campo da expressão "literatura mun­dial" ou Weltliteratur. Este termo, consagrado por seu uso na obratardia de Goethe, veió adquirindo muitos sentidos díspares, en­tre os quais três são importantes no nosso contexto. O primeiroé o que advém de sua ocorrência no título de muitas históriasda literatura: descreve a tentativa de escrever tal história numabase global (ou pelo menos européia), justapondo capítulos e se­ções sobre as várias literaturas nacionais, ou descrevendo váriosmovimentos, correntes ou períodos no maior número possível depaíses. As possibilidades e os perigos deste tipo de historiografiaforam belamente analisados por J. Brandt Corstius.7 Em segun­do lugar, a expressão "literatura mundial" tem sido usada paradesignar "grandes livros", "clássicos", "o melhor que já se es-

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creveu no mundo": a Odisséia, a Orestia, a Eneida, a Divina co­média, Fausto, Madame Bovary, A montanha mágica, todos po­dem ser considerados corno pertencentes a esta categoria. Maisimportante do que estes dois usos da expressão, porém, é o ter­ceiro, que devemos a Goethe: o que ele entendia por Weltlitera­tur era uma consciência de tradições nacionais diferentes da decada um de nós, uma abertura a obras escritas em outros paísese em outras línguas, trânsito e troca entre as várias literaturas,que se igualariam às transações comerciais, e as suplementa­riam.s É claro que isto não implica o abandono de tradições na­cionais ou o desaparecimento de literaturas nacionais. Com efei­to, André Gide, ao comentar, num diário em 9 de outubro de 1916,a necessidade de "europeizar" a cultura, chegou bem perto davisão de Goethe sobre o assunto. No meio de uma guerra mun­dial, Gide sentiu a necessidade de mergulhar numa cultura nas­cida "das várias literaturas de nosso velho mundo, cada uma de­las poderosamente individualizada." E acrescentou, num trehoque teria merecido o aplauso de Goethe: "somente a particulari­zação da literatura, somente sua nacionalização, poderia permi­tir a europeização da cultura."9 A grande diferença é que Goe­the cada vez mais olhava para além da Europa; que em seus últi­mos anos tentou aproximar-se da literatura e da cultura do Oriente(Pérsia, os países árabes, a Índia), tanto quanto de seu continen­te natal. Os próprios títulos de seus últimos ciclos de poesia ­West-ostlichen Divan, Chinesisch-deutsche Jahres-und­TageszeitenlO - falam do esforço por ele empreendido para fe­cundar a literatura alemã através do contato com literaturas e cul­turas mais remotas.

Weltliteratur, como a entende Goethe, é nitidamente ligadaa literatura comparada e pode levar os comparatistas a fazeremmuitas de suas perguntas mais interessantes: como se forma o câ­non de grandes autores? Por que Dante dá tanta importância aLucano e a Estácio na Divina comédia? Por que, aparentemente,foi Virgílio e não Homero o grande modelo dos poetas épicosantes do século XVII?l1 Por que Dostoievski se foi tornando ca­da vez mais importante na Europa do século XX? 12 Por que oGeneral De Gaulle, ao responder quais seriam as três maiores fi­guras da literatura européia, nomeou "Dante, Goethe e Chateau­briand"? Quão excêntrica e quão significativa é a avaliação deDe Gaulle?13 Uma busca da resposta a muitas perguntas deste ti-

po deve levar ao território social e político, assim como ao cultu­ral. Contudo, não se precisa ser um sociólogo profundo para apre­ciar a diferença entre a alegação de René Etiemble (em seu esti­mulante Comparaison n'est pas raison, de 1963) de que devería­mos seguir o exemplo de Goethe, procurando além da Europanossos parâmetros de excelência, bem como um desafio a umanova produção literária, e a atitude do francês bem-intencionadoque foi professor de Léopold Senghor quando estudante emDakar:

O Reverendo Diretor do Collêge Libermann, em Dakar, nun­ca cessava de repetir-nos: nossos ancestrais não haviam criadouma civilização. Haviam-nos deixado apenas uma tabula ra­sa, na qual tudo ainda estava por ser inscrito. Quando, emnosso juvenil espírito de oposição, pedíamos roupas de li­nho, ele replicava mandando-nos de volta às nossas tangashabituais. E acrescentava, como argumento irrefutável, quenos deixávamos encantar pela música das palavras, ao invésde nos atermos à sua substância: o significado. Aquilo era,obviamente, uma prova decisiva de nossa falta de civiliza­ção.14

Expandir seu raio de' ação é das tarefas mais importantes da­queles que desenvolvem hoje os estudos literários comparativos;expandir seu raio de ação e seus termos de referência o suficientepara destruir o que resta desse imperialismo cultural complacen­te. É uma tarefa que se tornou mais fácil graças ao fato de queMilman Parry, Albert B. Lord e C.M. Bowra nos acostumarama alargar nosso conceito de "literatura" o suficiente para incluiraté material oral. .

É claro que nenhum leitor pode ter na cabeça uma lista pes­soal que inclua a totalidade da literatura mundial. Cada um pre­cisa fazer sua própria seleção, encontrar seu próprio caminho,descobrir que autores, que obras têm a mais profunda afinidadecom sua natureza. Muitos ainda se inclinarão a concordar como preceito de Sainte-Beuve quando discutiu, na Causerie du lun­di, de 24 de outubro de 1850, a questão: "O que é um clássico?"

"A casa de meu Pai tem muitas moradas" - que isto sejaverdade a respeito do Reino da Beleza, não menos do quedo Reino dos Céus. Homero, como sempre e em qualquer

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lugar, seria o primeiro nesse reino, o que mais se assemelha­ria a um deus; mas atrás dele, como a procissão dos magos,viriam aqueles três poetas magníficos, aqueles três homerosque por tanto tempo nos foram desconhecidos, que compu­seram epopéias imensas, reverenciadas nas nações da Ásia:Valmiki e Vyasa, os hindus, e Firdusi, o persa. No domíniodo gosto, é bom pelo menos saber que tais homens existi­ram, para que a raça humana seja vista como um todo. Noentanto, tendo prestado nossa homenagem, não nos deve­mos deter nesses climas distantes. 15(Grifo do autor.)

Há leitores e escritores, porém - pense-se em Hermann Hes­se, por exemplo, ou em Arthur Waley- que experimentaram umaespécie de iluminação, de "choque de reconhecimento", ao se de­pararem com a literatura e com o pensamento não-europeus; pa­ra quem a fusão de Oriente e Ocidente é uma necessidade; cujalista pessoal precisa incluir Li Tai Po e Confúcio, tanto quantoGoethe e Keats. Estes podem, então, tornar-se mediadores entreleitores europeus e escritores de fora da Europa, e ajudar a am­pliar a gama de escolhas disponíveis para os leitores ocidentaisà cata de uma literatura com que tenham afinidade pessoal. 16

No capítulo de Discriminations ao qual já me referi aqui,René Wellek faz uma lista de outras expressões que entram nocampo de significação do qual faz parte "literatura comparada":termos como "saber", "letras" e belles lettres (competindo com"literatura"); expressões como "literatura universal" e "litera­tura internacional" (competindo com "literatura comparada" ouWeltliteratur). Entretanto, já se disse o bastante para que seja pos­sível uma definição operacional de "estudo literário comparati­vo", tal como o entendo aqui:

Um exame de textos literários (incluindo obras de teoria li­terária e de crítica) em mais de uma língua, através de umainvestigação de contraste, analogia, proveniência ou influên­cia; ou um estudo de relações e comunicações literárias en­tre dois ou mais grupos que falam línguas diferentes.

Embora em outros pontos a ela se assemelhe, esta definiçãodifere da de Claude Pichois e A.M. Rousseau17em dois aspec­tos significativos. O primeiro desses aspectos é que ela acaba coma noção de que não se pode ser um comparatista a não ser que

se lide com mais de uma cultura nacional. Esta é uma noção quedemonstrará ser muito mais um estorvo do que um auxílio quandose discute a obra de autores bilíngües como Beckett, ou regiõesmultilíngües como a Alsácia e a Suíça. Com isso, é claro que nãotenho a intenção de negar ou diminuir o papel que as tradiçõesnacionais e regionais sempre desempenharam na gênese e no de··senvolvimento das literaturas. Muitas pessoas, hoje em dia, re­jeitariam concepções de caráter nacional baseadas em diferen­ças biológicas, mas ninguém pode, lucidamente, recusar-se a re­conhecer divergências devidas às forças sociais, educacionais, geo­gráficas e históricas que formaram as várias nações e seus escri­tores. O segundo aspecto é que minha definição não inclui nc-·nhuma referência àquela função mais ampla que Henry H. Re­mak tentou induzir os estudos literários comparativos a desem­penharem: "os estudos das relações entre a literatura, por um la­do e, por outro, as demais áreas do saber e da crença, tais comoas artes, a filosofia, a história, as ciências sociais, a ciência, areligião, etc."18A pesquisa destas outras "áreas de conhecimen­to e de crença" é de fato importante para esclarecer fatos literá·­rios - mas não tem lugar numa definição que se proponha dis­tinguir entre o território do "comparatista" e o de outros estu-diosos de literatura. i

Não é que tal território possa, mesmo assim, ser demarcadocom precisão. Como definir "línguas diferentes"? Há quem con··sidere o inglês britânico e o americano modernos, ou o alemãoe o alemão-suíço, como sistemas lingüísticos diversos, enquantooutros tentam distinguir entre situações diglóssicas e bilíngües.Quando um habitante de Zurique passa a usar o alemão padrào,demonstra sua competência diglóssica, mas quando passa paraum francês excelente,' é bilíngüe.19Pode-se admitir uma diversi­ficação relativa: o inglês de Graham Greene e o americano deSalinger são menos diferentes do que (digamos) o alemão e o ho­landês, ou o espanhol e o português. E pode-se muito bem lem­brar o epigrama mordaz de Max Weinrich, resultante de uma vi­da inteira de esforço para ver o ídiche reconhecido como umalíngua independente: "Uma língua é um dialeto que tem um exér­cito e uma marinha.' '20 Esta é uma zona de fronteira, e semprehaverá possibilidade de contenda.

Também é importante assinalar que o termo' 'literatura" emnosso contexto não precisa invariavelmente referir-se aos melho-

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res e mais elevados escritos - a obras que já entraram ou prova­velmente um dia entrarão para a lista dos clássicos literários deuma nação. Como outros estudiosos, é aconselhável que os com­paratistas não se detenham nesses clássicos, e examinem os es­critos mais humildes de entretenimento e instrução. A obra deBalzac, Dickens e Dostoievski, por exemplo, como Donald Fan­ger e outros autores apontaram, pode ser significativamente ilu­minada pelo estudo do romance gótico, do romance de boule­vard, das historietas de pavor, do romance de folhetim, do melo­drama ou da revistinha policial. Como Shakespeare antes deles,os grandes romancistas do século XIX souberam apropriar-se doselementos de entretenimento popular e fazê-Ios revelar potencia­lidades até então insuspeitadas.

Relatos da história dos estudos de literatura comparada mui­tas vezes se reduzem a uma história das expressões "littératurecomparée" e "literatura comparada" - o que recua no temposomente até o início do século XIX, quando a expressão france­sa passou a ser utilizada como emulação à Anatomie comparée,de Cuvier; ou se reduzem a uma história do assunto como umadisciplina acadêmica, que se inicia isoladamente com uma sériede cursos de NoeI e Laplace na Sorbonne (Cours de littératurecomparée, 1816-1825)e ganha ímpeto em meados do século XIX.Mas, de fato, literaturas de várias culturas e de várias línguas têmsido "comparadas" desde o tempo em que os romanos avalia­vam sua própria poesia e oratória em relação às dos gregos. Ereferências a obras em várias línguas ocorreram naturalmente aformadores de opinião, que propuseram uma visão geral da lite­ratura ocidental no Renascimento.21 Quando o latim perdeu seulugar de língua "universal" e nacionalismos emergentes dividi­ram a Europa cada vez mais, os estudos literários comparativosassumiram novas funções: a de restaurar uma unidade e uma uni­versalidade perdidas, ou a de enriquecer tradições nativas estrei­tas, através de contatos benéficos com outras. Também de modocrescente, os comparatistas começaram a lançar os olhos para alémdo mundo ocidental: primeiro, para os clássicos indianos, comos românticos alemães; para a literatura árabe, persa e até chine­sa, com Goethe; e, na nossa época, para outras tradições literá­rias e orais do Extremo Oriente e também da África. À medidaque métodos de análise e classificação novos e mais sutis foramsendo benéficos para os estudos literários de todos os tipos,

usaram-se comparações atravessando fronteiras lingüísticas, pa­ra formar (pelo contraste) um conceito de tradições nativas; pa­ra alterar (pelo exemplo) o curso de uma literatura nacional es­pecífica; e para construir (com uma irrestrita amplidão de refe­rência) uma teoria geral da literatura.

A obra de August Wilhelm Schlegel ilustra o primeiro des­ses casos, a de Matthew Amold, o segundo, e a de Friedrich Schle­gel, o terceiro. E de maneira cada vez mais intensa, como obser­vou Sainte-Beuve na Revue des Deux Mondes (setembro de 1868),os estudos literários comparativos prosseguiram num espírito de"curiosidade puramente intelectual", que os colocou à parte daspolêmicas declaradamente parciais de Lessing ou Voltaire. Des­de então, estes estudos muitas vezes correram o perigo de se afun­darem nos pântanos do positivismo, ou de degenerarem em umacoleção de fatos não relacionados a qualquer experiência primor­dialmente literária. Mas, por outro lado, têm sido salvos por es­tudiosos/críticos. bem-dotados, dentro das universidades e foradelas, e por poetas, dramaturgos e romancistas que não apenasforam sensíveis a obras escritas em outras línguas, mas tambémregistraram sua reação a elas em ensaios críticos. Tais homens,de modo geral, encararam iil literatura comparada como

um objeto, mais do que um assunto - um objetivo que an­glicistas e americanistas compartilharão quando considera­rem seus respectivos campos em todas as direções.22

Manifestaram a tendência de acreditar, com AnthonyThorlby, que

a literatura comparada em si mesma não obriga ninguém aseguir qualquer outro princípio a não ser o de que a compa­ração é uma técnica utilíssima para a análise de obras de ar­te, e o de que, ao invés de limitar as comparações a escritosnuma mesma língua, uma pessoa pode, com proveito, esco­lher pontos de comparação em outras línguas .... Examinarum poema, ou um quadro, ou um edifício é ser pouco sen­sível às suas qualidades. Examinar outro exemplo da "mes­ma" coisa, que, sendo outra obra de arte, evidentemente nãoé a mesma, mas apenas "comparável", é dar o primeiro passona direção de reconhecer o que, em cada caso, é bom, origi­nal, difícil, intencional. 23

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Tentaram, com Lilian Furst, conquistar, através dos estudoscomparativos,

uma visão mais equilibrada, uma perspectiva mais verdadeirado que é possível pela análise isolada de uma só literaturanacional, por mais rica que seja.24

Por trás de seu trabalho, quase sempre está a convicção,que Friedrich Schlege1 foi o primeiro a pôr em palavras emseu célebre ensaio "Sobre o estudo de literatura grega" (1795-96),de que

retiradas de seu contexto e encaradas como entidades sepa­radas, que existem por si mesmas, as diversas porções na­cionais de literatura moderna são inexplicáveis. Somente emrelação umas às outras podem sua tonalidade e definição25ser adequadamente avaliadas. Porém, quanto mais cuidado­samente se examina todo o conjunto da literatura moderna,mais esse todo parece ser uma simples parte de um todomaior.26

Estão tão convencidos quanto Matthew Arnold de que

por toda parte existe conexão, por toda parte há exemplifi­cação: nenhum acontecimento isolado, nenhuma literaturaisolada pode ser adequadamente compreendida a não ser emrelação a outros acontecimentos, a outras literaturas. 27

NOTAS

1 "Quão claro está agora, ainda que nos últimos 50 anos certa atenção às literaturascomparadas pudesse ter-nos ensinado, que a Inglaterra está, num certo sentido, muitoaquém do continente." (Carta a sua irmã, datada de maio de 1848). Notar-se-á que Ar­nold aqui ainda fala das "literaturas comparadas", e não de "literatura comparada",e que - tal como Madame de Stael antes dele, volta-se para outras literaturas como pedras­de-toque em relação às quais se deveriam avaliar os escritores de seu próprio país.

2 WELLEK, René. Diseriminations: Further Coneepts of Criticism. New Haven, YaleUniv. Press, 1970, p. 1 e seguintes.

3 WELLEK, op. cit., p. 4.4 A diferença entre as expressões alemã e francesa poderia, de fato, constituir a base

de um exercício de estilística comparada. Ilustra uma tendência do francês moderno, no­tada por Albert Malblanc, a usar termos estáticos, enquanto o alemão utiliza termos dinâ-

micos: súr em oposição a treffsieher [= de objetivo preciso] e a zielbewuss [= certo desua própria meta], fatal em oposição a unheilbringend [= o que traz má sorte, pernicio­so], étrier em oposição a Steigbügel [=lugar onde se apóia o pé para levantar, para par­tir], Ia mer est grosse em oposição adie See geht hoeh [=0 mar está para cima, o marestá revolto]. MALBLANC, Albert. Stylistique eomparée du français et de l'allemand.Paris, 1961.

5 Yearbook of Comparative and General Literature 15 (1966), 63.6 CL WELLEK, op. cit., p. 13.7 BRANDT CORSTIUS, J. Writing Histories of World Literature. Yearbook of Com-

parative and General Literature, 12 (1963), 5-14.

8 CL STRICH, Fritz. Goethe und die Weltliteratur. Berna, 1946, p. 13-27. O paralelofeito por Goethe entre troca material e cultural é elaborado, de modo característico, noManifesto do Partido Comunista, composto por Marx e Engels, em 1848: "A burguesiadeu, através de sua exploração do mercado mundial, um caráter cosmopolita à produçãoe ao consumo em todos os países .... Em lugar do antigo isolamento e da antiga auto­suficiência, locais e nacionais, temos agora intercâmbio em todas as direções, interde­pendência universal de nações. E assim como na produção material, também na intelec­tual. As criações intelectuais de cada país se tornaram propriedade comum. Parcialismoe estreiteza mentais nacionais se tornam cada vez mais impossíveis e, das numerosas lite­raturas nacionais e locais, surge uma literatura mundial [Wéltliteratur]. In MARX, Karl.Seleeted Works. Londres, 1942, v. 1, p. 209.

9 GlDE, André. Journals 1889-1949, traduzidos, coligidos e editados por Justin O'Brien.Harmondsworth, 1967, p. 257-58.

10 "Divan" significa "reunião" ou "grupo". Poetas persas usavam esta palavra para des­crever uma coleção de poemas. "Coleção ocidental-oriental", "Estações e horas do diachinesas-alemãs' '.

11 CL WEISSTEIN, Ulrich. Einfarung in die vergleiehende Literaturwissensehaft. Stutt­gart, 1968, p. 109.

12 CL TRILLING, Lionel. The fate of pleasure: Wordsworth to Dostoievski. In FRYE,Northrop, ed. Romantieism Reeonsidered: Seleeted Papers from the English !nstitute.Nova York, 1963, p. 73-106.

13 Cit. por George Steiner em The Uncommon Market. The Times (Saturday Review),14 ago. 1971. Steiner acrescenta que, quando indagado: "E Shakespeare?", De Gaullerespondeu: "Você falou em literatura européia." Steiner comenta: "Nas preferências deDe Gaulle podemos observar uma estética unitária, um conjunto de critérios sobre a gra­vidade e o decoro de formas literárias e poéticas elevadas", características da sensibilida­de clássica e do ensino clássico franceses.

14 CL SENGHOR, Léopold Sédor. Anspraehen anldsslieh der Verleihung des Friedens­preises der deutsehen Buehhandels. Frankfurt, 1968, p. 44-48. Os leitores ingleses possi­velmente se lembrarão aqui da famosa explosão de Lord Macaulay contra a idéia de sefinanciar o estudo de literaturas e culturas árabc c indiana para os súditos da RainhaVitória: "Estou pronto a aceitar o saber oriental pela opinião que dele têm os própriosorientalistas. Jamais encontrei entrc eles um que pudesse negar que uma única prateleirade uma boa biblioteca européia valia tanto quanto toda a literatura nativa da Índia eda Arábia .... Com toda certeza, jamais encontrei um orientalista que se aventurasse adefender a idéia de que a poesia árabe e sânscrita pudesse comparar-se à das grandesnações européias. Mas quando se passa das obras de imaginação para obras em que seregistram fatos, a superioridade dos europeus se torna absolutamente imensurável. Acre­dito que não é exagero dizer que toda a informação histórica coligida em todos os livrosescritos em sânscrito tem menos valor do que o que se pode encontrar no mais reles com­pêndio usado nas escolas preparatórias da Inglaterra. Em qualquer ramo da filosofia

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natural ou moral, a posição relativa das duas nações é praticamente a mesma .... Diz-seque o sânscrito e o árabe são línguas em que foram escritos os livros sagrados de cemmilhões de pessoas, e que tais livros têm, em função disso, direito a um incentivo espeCÍ­fico. Seguramente é dever do governo britânico na Índia ser não apenas tolerante, masneutro, em todas as questões religiosas. Mas, encorajar o estudo de uma literatura reco­nhecida como de pequeno valor intrínseco, apenas porque tal literatura incute os maissérios erros sobre os mais importantes assuntos, é um procedimento incompatível coma razão, com a moral, ou mesmo com aquela neutralidade que deveria ser, como todosestamos de acordo, sagradamente preservada. Admite-se que uma língua é estéril em co­nhecimento útil. Devemos ensiná-Ia porque ela é fecunda em superstições monstruosas.Devemos ensinar falsa história, falsa astronomia, falsa medicina, porque as encontra­mos junto com uma falsa religião .... Eu interromperia de imediato a impressão de livrosárabes e sânscritos, aboliria o Colégio de Madrassa e Sânscrito em Calcutá." [Memoran­do dirigido por Macaulay a Lord Bentinck, Governador Geral da Índia, datado de 2 defevereiro de 1835.] No mesmo memorando, Macaulay declarava expressamente qual de­veria ser o objetivo da educação na Índia: "Devemos, no momento, fazer o possível paraformar um grupo de pessoas que possam servir de intérpretes entre nós e os milhões depessoas que governamos; um grupo de pessoas, indianas de sangue e de cor, mas inglesasde gosto, de opiniões, de costumes e de intelecto. A esse grupo podemos delegar o refina­mento dos dialetos vernáculos do país, o enriquecimento desses dialetos com termos cien­tíficos tomados de empréstimo à nomenclatura ocidental, e transformá-los, gradualmente,nos veÍCulos para transmitir conhecimento à grande massa da população."15 A tradução que utilizei é de Francis Steegmuller e Norbert Guterman, em seu Sainte­Beuve: Seleeted Essays. Londres, 1963, p. 8. Numa palestra recente, Harry Levin fez ecoaos sentimentos de Sainte-Beuve: "Que benefício trará aos nossos alunos aprender sua­hili e abandonar o latim?"

16 Cf. a valiosa distinção feita por Ronald Peacock entre duas funções da literatura: "Porum lado, podemos distinguir uma função pública e social, no sentido de que a literaturaencerra uma totalidade imensa de pensamento, sentimento e experiência, adquirida atra­vés dos séculos, desde que a criação literária teve início, e que está à disposição, em certamedida (mais parcial do que inteiramente), de qualquer pessoa; e por outro lado, umafunção individual, pessoal, porque pode ser tratada seletivamente por indivíduos e assi­milada ao processo de seu próprio pensamento, sensibilidade e caráter espiritual. In Cri­ticism and Personal Taste. Oxford, 1972, p. 14.

17 La Littérature eomparée. 2~ ed. Paris, 1967, p. 174-176.

18 A muito discutida definição de Remak de literatura comparada como "a compara­ção de uma literatura com uma ou com outras, e a comparação da literatura com outrasesferas da expressão humana" aparece primeiro em STALKNECHT, N.P. & FRENZ, H.Comparative Literature: Method and Perspeetive. Carbondale: Southern Illinois Univ.Press, 1961, p. 3.

19 Estas questões são amplamente discutidas em WEINREICH, Uriel. Languages inContaet. 2~ ed. Haia, 1963,e em FORSTER, Leonard. The Poet's Tongues:Multilingua­lism in Literature. Cambridge, 1970.

20 Cf. LYONS, John. New Horizons in Linguisties. Harmondsworth, 1970, p. 19: "Ori­ginariamente, pelo menos, uma língua normal é apenas um dialeto que, por razões histó­rica e lingüisticamente "acidentais", adquiriu importância política e cultural numa de­terminada comunidade."

21 As pessoas que se dedicam à pesquisa das literaturas do Renascimento e do Pré­Renascimento em qualquer língua européia só podem fazer justiça a seu tema se se tor­narem comparatistas. O que Keith Whinnom disse sobre "distorções" em estudos espa­nhóis se aplica igualmente ao que ocorre fora das fronteiras da Espanha: "A primeiraforma de distorção de que quero tratar surge do fato de que as pessoas se dedicam com-

pletamente ao estudo da literatura "espanhola". De saída, ficam prejudicadas por esseconceito "espanhola". A distorção decorrente é bem menos importante na literatura mo­derna, na qual as fronteiras lingüísticas, embora permeáveis, tendem de fato a empare­dar as literaturas da Europa, separando-as umas das outras. Mas, para a literatura renas­centista, e, mais ainda, para a medieval, a distorção é gravíssima .... Seria uma generali­zação imprecisa afirmar que todas as obras substanciais da literatura espanhola medie­val são traduções. Porém, uma grande proporção das principais obras são traduções li­vremente adaptadas, glosas ampliadas, amálgamas de trechos e topo i tomados de em­préstimo, imitações próximas de obras do latim medieval (e, em alguns casos, do francêsmedieval ou do árabe) .... Se deixarmos de levar em conta a literatura latina da Idade Mé­dia, a literatura espanhola medieval se reduz a uma série de milagres." In Spanish Lite­rary Historiography: Three Forms of Distortion. Exeter, 1967,p. 6-9. O estudo "Tristan,Isolde und Ovide", de Peter Ganz serve para demonstrar quanta luz se pode lançar sobretextos medievais em vernáculo se se fizer uma comparação com a literatura latina clássi­ca (e também medieval). In Medievalia Litteraria. Munique, 1971, p. 397-412.22 LEVIN, Harry. Countercurrents in the Study of English. Vancouver, 1966, p. 29.23 Comparative Literature. Times Literary Supplement, 25 jul., 1968, e Yearbook ofComparative and General Literature 18 (1968), p. 78-79.24 Romanticism in Perspeetive: A Comparative Study of Aspeets of the Romantie Mo­vement in England, Franee and Germany. Londres, 1969, p. 277.25 A significação precisa do termo "Haltung", que Schlegel emprega aqui, é discutível.A tradução "definição" foi sugerida pelo Professor Hans Eichner.26 SCHLEGEL, Friedrich. Samtliehe Werke. Viena, 1823, v. 5, p. 40-41.27 ARNOLD, Matthew. On the Modern Element in Literature. Aula inaugural na Uni­versidade de Oxford, em 14 de novembro de 1857.

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LITERATURA COMPARADA:DEFINIÇÃO*

Ulrich Weisstein

Uma das tarefas essenciais de um trabalho de introdução à Lite­ratura Comparada como o presente deve ser a de se definir umtermo que denote este ramo específico do estudo literário. Ao bus­carmos uma definição, seria proveitoso, dentro dos limites queestabelecemos para nosso estudo, ~scolher um meio-termo entreo c9nceito um t,mto ljll1itªocl.o"pºs~"l;!I~~ªo-l?~lºsre.1lL~utantes-,QI:todoxos da escola de_PariSo_(Paulvan Tieghem, Jean-Marie Car-ré e Marius-François Guyard, em especial), eayisª9mªi~)iberaladotada pelos expoentes da chamada. Esc91a.A:meri~a.Ila:"}1âçõ'esta escolha, não porque desejo colocar grlíhÕes"emOno~~adisci­plina - que ainda está longe de ter alcançado um estado de ma­turidade - mas, antes, porque, no estudo sistemático de um ri­co corpus de material, a escassez é sempre preferível ao excesso.

De um extremo, temos a definição que aparece no breve pre-fácio de Carré aLa Littérature comparée, de Guyard, onde lemos:

A literatura comparada é um ramo da história literária: elaé o estudo das relações espirituais internacionais, dos rap­ports de fait entre Byron e Pushkin, Goethe e Carlyle, Wal­ter Scott e Alfred de Vigny, e entre as obras, as inspiraçõese até entre as vidas de escritores pertencentes a literaturasdiferentes.!

Discutiremos, a seguir, a noção de literatura comparada co­mo um ramo da história literária, uma classificação que Carréparece considerar por si só evidente. Antes, porém, consideremosa ênfase dada por ele aos rapports de fait.

* WEISSTEIN, Ulrich. Definition. In: -. Comparative Literature and Literary Theory:Survey and Introduction. Bloomington: Indiana Univ. Press, 1973, p. 3-28.

1 LITERATURACOMPARADk DEFlN1ÇÃO 309 -

A ênfase dG(~ no fatual, isto é, nasco~~x~ese jnflllên-,cias passíveis de's~~fr(rne4i4<ls, faz sentido se recordarmos a si­tuação dos estudos comparativos em particular, e da historiografialiterária em geral, que prevalecia no final do século XIX, de men­talidade positivista, época em que predominava o interesse pelofolclore e pela tematologia, hoje considerados obsoletos ou fal­tando complementação. Se o estudo da literatura se degrada aoponto de se tornar mera compilação de material, ele perde suadignidade, já que os aspectos estéticos da obra de arte literáriadeixam de ter valor.

Por uma série de razões (sendo que a mais importante é afalta inevitável de continuidade perfeita), o patriarca do compa­ratismo francês do nosso século, Fernand Baldensperger, fazia for­tes restrições à compilação folclorística de material. Ele era daopinião de que tal procedimento ignorava o elemento individual,criativo, a personalidade, iniciativa e originalidade do escritor.Como ele mesmo afirmou: "essefolklore ou Stoffgeschichte, emtorno do qual todo um ramo da literatura comparada tende a gra­vitar, representa um modelo de investigação que se mostra maisinteressado no assunto que se tem em mãos do que na arte, e pa­rao qual os sobreviventes escondidos são de maior interesse doque a iniciativa do artesão".2 Adotando uma perspectiva seme­lhante e excluindo inteiramente o folclore da literatura compara­da - por causa do anonimato de seus produtos, mesmo no casodestes serem literários, como no caso do conto-de-fadas, do mi­to, da lenda e da hagiografia - Van Tieghem, seguindo o mes­mo precedente, afirmou que

isto é folclore, e não história literária, pois a última é a his­tória da mente humana vista através da arte de escrever.Nessasubdivisão de tematologia, entretanto, se leva em considera­ção apenas o assunto em questão, sua passagem de um paíspara outro, e suas modificações. A arte não desempenhaqualquer papel nestas tradições anônimas, que possuem co­mo natureza a impessoalidade, enquanto que a literaturacomparada estuda as ações e influências exercidas pelos in­divíduos.3

Essa atitude explica, pelo menos em parte, o ostracismo aque foi relegada a literatura antiga e medieval, que, mesmo nãopossuindo embasamento teórico, é estudada de longa data na

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310 LITERATURA COMPARADA LITERATURA COMPARADA: DEFINIÇÃO 311

Sorbonne. Pois, nos escritos daquelas épocas, o autor (do épicohomérico ou da Nibelungenlied, por exemplo) nem sempre podeser identificado com exatidão:

A literatura comparada tem como objetivo principal. .. o es­tudo das obras de várias literaturas em seu inter­relacionamento. Concebida em termos gerais, ela compreen­de - para falarmos apenas do mundo ocidental- as relaçõesmútuas entre a literatura grega e latina, a dívida da literaturamoderna (desde a Idade Média) para com a literatura antiga,e, finalmente, as ligações entre as diversas literaturas moder­nas. Este último campo de investigação, que é o mais extensoe complexo dos três, é aquele que a literatura comparada, nosentido em que geralmente a entendemos, adota para si. (VanTieghem, p. 57f.)

O fato de essa posição não ser mais aceitável, e de as litera­turas antiga e medieval residirem plenamente dentro do campoda literatura comparada não precisa ser sublinhado, em uma épocaem que se aprendeu a concentrar nas belles-lettres propriamenteditas, e a se considerar o estudo das matérias-primas da literatu­ra e da psicologia do gênio criador como disciplinas auxiliares,ao invés de primordiais. 4

Contrastando com muitos de seus antecessores e contempo­râneos, Carréconsid~rava o estudo das influênçiasliterMias pe­rigoso, porque nele se é freqüentem ente forçado a ligar çQID_ele­mentos intangíveis. Ele, portanto, alertou seus alunos e colegas:"Talvez tenha havido uma tendência excessiva aos estudos dasinfluências. Estes são difíceis de serem administrados e freqüen­temente se revelam enganosos, já que muitas das vezessomos obri­gados a lidar com elementos imponderáveis" (Guyard, p. 6). Maisseguro e gratificante, continua ele, seria o estudo da "históriado sucesso das obras, dos destinos do escritor, da sobrevivênciade uma grande figura, das interpretações mútuas de diferentespovos, de viagens e de miragens: como nos vemos uns aos ou­tros, ingleses e franceses, franceses e alemães ..." Aqui nos encon­tramos, do ponto de vista literário, em uma estrada que leva àsociologia, por um itinerário através do qual os viajantes che­gam ao destino final somente pelo estudo da sobrevivência dasobras, da fama (René Etiemble diria o "mito" ) do escritor, edas imagens que os povos formam uns dos outros por intermé­dio de documentos literários, e neles baseados.5

L

Essa concepção pseudoliterária da literatura comparada érejeitada por René Wellek, que, em seu adendo perspicaz à no­ção postulada por Carré, assinala que tal substituição é metodo­logicamente questionável, já que "a psicanálise comparada demitos nacionais exigida por Carré e Guyard não [é] uma partedo estudo literário", e sim "uma matéria pertencente à soCiara'"g'ia ou à história geral".6 Eu compartilho de seu ponto de vista,especialmente porque o próprio Guyard fornece a chave para es­ta abordagem, em termos essencialmente extraliterários, quandoele afirma, com referência à genologia (o estudo teórico e histó­rico de gêneros literários), que

Estudar o destino de determinado gênero exige uma análiserigorosa, um método histórico extremamente rígido, e umavisão psicológica genuína. Longe de serem áridos, tais estu­dos podem e devem ser, em última instância, o trabalho deum moralista. A literatura comparada, neste caso, estende­se, como freqüentemente ocorre, ao terreno da psicologiacomparada (p. 20f.).

"I..;Etranger tel qu'on le voit" é o título do oitavo e últimocapítulo da pesquisa de Guyard, na qual o futuro da literaturacomparada é retratado em cores vivas. Deve-se notar que, em fa­ce do desenvolvimento que se havia verificado nesse entretempo,o estudioso francês sentiu-se compelido, no posfácio à segundaedição, revisada, de seu livro (1961), a modificar sua postura demaneira a dar conta da posição assumida pelos "rebeldes" Etiem­ble e Escarpit.7 Ainda assim, o mal já havia sido feito e foi, sobalguns aspectos, irreparável. Desta forma, estudos como o de Si­mon Jeune sobre a maneira como tipos americanos são delinea­dos na literatura francesa moderna parecem anacrônicos em umaépoca em que suas bases metodológicas já não são válidas. 8

Se uma definição de literatura comparada baseada exclusi­vamente no estudo dos rapports de fait pouco acrescenta, seu ou­tro extremo - a deprecação de vínculos fatuais e o levantamen­to de simples analogias - passa por cima, na minha opinião,do objetivo cientificamente justificável. Eu concordo, em princí­pio, com a generosidade de Henry H. H. Remak, segundo o qual"o desejo francês pela sécurité literária é infeliz em um momen­to que exige... mais (não menos) imaginação".9 Mas eu tambémgostaria de sublinhar as desvantagens de tal generosidade, mesmo

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312 LITERATURA COMPARADA LITERATURA COMPARADA: DEFINIÇÃO 313

correndo o risco de ser chamado de reacionário. Visando o po­tencial e os excessos verdadeiros da mera busca de paralelos, nãose deve deixar o alerta de Baldensperger passar despercebido. Háquase cinqüenta anos, ele, o fundador da Revue de Littératurecomparée, ofereceu os seguintes comentários:

Nenhuma clareza explicatória resulta de comparações quese restringem ao olhar voltado simultaneamente para doisobjetos diferentes, à recordação, condicionada pelo jogo delembranças e impressões, de semelhanças que podem ser pon­tos aleatórios furtivamente interligadas pelo capricho damente. 10

Como tantos de seus colegas, Carré gostaria de banir da li­teratura comparada os estudos de tais analogias, enquanto queVan Tieghem os admite, ao menos na medida em que apontamuma tendência comum (courant commun).ll Mas, mesmo assim,na sua maneira de ver, eles se referem mais apropriadamente àLiteratura Geral (littérature générale) do que à literatura compa­rada concebida no seu sentido mais restrito.

Mais uma vez: admiro o entusiasmo de Remak, mas não de­sejo desertar a terra firma da segurança acadêmica sem tomarmedidas que previnam o deslizamento em direção ao abismo damera especulação. Não nego, por exemplo, a relevância do apelode Etiemble para um estudo comparado de aspectos tais comométrica, iconologia, iconografia, estilística; hesito, contudo, emestender o estudo de paralelos para o de fenômenos referentesa duas civilizações diferentes. Parece-me que apenas dentro deuma única civilização é possível encontrar-se elementos comunsde uma tradição, consciente ou inconscientemente mantidos empensamento, emoção e imaginação, que podem, nos casos de umaemergência razoavelmente simultânea, ser vistos como tendên­cias comuns significativas, e que, mesmo para além dos limitesdo tempo e do espaço, freqüentemente constituem espantosos la­ços de unidade. Isto pode ser ilustrado pelo valor emocional deepítetos de cor, pela concepção de paisagem, e pode verificar-seno que concerne à psicologia individual ou de massa, mesmoquando não há dúvida acerca de um Zeitgeist em comum. As­sim, os estudos como os representados por comparações entreRainer Maria Rilke e Antônio Machado, ou entre Rilke e Walla­ce Stevens (tão populares em nossas universidades) são mais fa-

cilmente defensáveis da perspectiva da literatura comparada doque a tentativa de se descobrir um modelo de semelhança entrea poesia ocidental e a do Médio ou do Extremo Oriente.12

A que extremos pode levar-nos a comparação entre a poe­sia da Ásia Oriental e a européia é demonstrado, com impres­sionante ingenuidade, por Etiemble, que conhece bem as duastradições, e que faz questão de assinalar que "o estudo compa­rado da estrutura de poemas (sejam as civilizações em questãoligadas por relações históricas ou não) nos permite averiguaras condições sine qua non do poema" (Etiemble, p. 102). Estascondições, no entanto, podem, na melhor das hipóteses, referir­se a características básicas reduzíveis a lugares-comuns, tais co­mo a resposta à pergunta: "Quando, e sob que circunstâncias,um romance deixa de ser romance?" É com certa reserva, por­tanto, que apóio a visão programática defendida pelo editorde Arcadia, Horst Rüdiger, que afirma que sua publicação' 'evi­tará a discussão de todos os paralelos anistóricos baseados uni­camente na especulação, e passíveis de causarem dano à reputa­ção da literatura comparada, no momento em que ela está sen­do consolidada".13

Para retornarmos, mais uma vez, brevemente, ao problemados rapports de fait: pareceria óbvio que tais ligações fatuais in­teressariam, sobretudo, ao historiador da literatura. Dessa for­ma, nossa disciplina, ao rêstringir-se voluntariamente ao estudode tais conexões, limitar-se-ia à área da história da literatura com­parada. Que isso já não corresponde à visão "progressista", emconformidade com o estado atual em que se encontra o estudode nossa disciplina, fica demonstrado pela mudança de termospor parte dos alemães. Conforme se evidencia pelo subtítulo des­critivo da Arcadia, a tendência, já há algum tempo, tem sido dese dar preferência ao termo vergleichende Literaturwissenschaft,ao invés do termo mais limitado vergleichendeLiteraturgeschichte.Apenas os representantes da escola mais antiga, de mentalidadefilológica - como o romanista Werner Krauss no título de seudiscurso dirigido à Academia de Berlim OrientaP4 - ainda in­sistem no termo antigo. Fatores políticos também podem ter umpapel relevante, como pode ser deduzido pelo relatório de Eva­maria Nahke sobre o quarto congresso da AILC, na revista Wei­marer Beitriige.15

Nos idiomas mais conhecidos, o nome de nossa disciplina

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314 LITERATURA COMPARADA LITERATURA COMPARADA: DEFINIÇÃO 315

nem sempre corresponde ao assunto de que ela trata e ao méto­do que utiliza em seu estudo. Em ensaio publicado em 1901, oacadêmico inglês H. M. Posnett reclamava que o termo "litera­tura cornpm·.ªºª" {ilerivadõ'doTrancês)aesignaõ-obletode'es­thdo,ao invés do método empregado. Dessa maneira,êõnfonne"sua própria colocação, ele se via compelido a "fazer com queo nome do assunto em questão fizesse as vezes do nome aindanão cunhado para o estudo desse assunto." 16O termo francêslittérature comparée e seus equivalentes em italiano, espanhol eportuguês (letteratura comparata e literatura comparada) sãoigualmente insatisfatórios do ponto de vista semântico, mesmoquando se leva em conta o fato de serem derivados, por analo­gia, das ciências naturais (anatomie comparée, etc.).17"Litera­tura comparável" (literatura comparativa) e "literatura compa­rada" (littérature comparée) são apenas formas abreviadas de sedesignar' 'os produtos de determinada literatura nacional com­parados àqueles de uma ou diversas outras". Como o termo ho­landês (vergelijkend literatuuronderzoek), o rótulo alemão é bemmais descritivo.

Deve-se sublinhar que Literaturwissenschajt é muito maisabrangente do que Literaturgeschichte, porque envolve, além doestudo da história literária, o estudo da crítica e da teoria literá­rias, assim como o da poética, enquanto exclui a estética comoum ramo da filosofia que utiliza a literatura para ilustrar teore­mas a priori.18 No quarto capítulo de seu Theory oj Literature,René Wellek e Austin Warren lidam bastante extensivamente comas divisões e limitações desses ramos da literatura e oferecem aseguinte visão:

Dentro de nosso estudo, as distinções entre teoria literária,crítica e história são claramente as mais importantes. Exis­te, em primeiro lugar, a distinção entre uma visão da litera­tura sobretudo como uma série de obras organizadas em or­dem cronológica e como partes essenciais de um processohistórico. Existe, em seguida, a distinção entre o estudo dosprincípios e dos critérios da literatura e o estudo de obrasconcretas de arte literária, quer isoladamente, quer em or­dem cronológica. Parece que o melhor que se tem a fazeré chamar a atenção para estas distinções, descrevendo co­mo "teoria literária" o estudo dos princípios da literatura,

suas categorias, critérios, e outros elementos similares, e dis­tinguindo os estudos de obras concretas de arte como "crí­tica literária" (essencialmente estática na abordagem) ou"história literária."19

Assim, o setor de "literatura comparada" teria de ser divi­dido em segmentos: "crítica literária comparada" e "teoria lite­rária comparada". Se nossa matéria for definida desta maneira,a relevância de se comparar, por exemplo, A. W. Schlegel e Cole­ridge, ou Aristóteles e Corneille (como faz o autor de Discourssur les trois unités), fica tão óbvia quanto a de se examinar a re­lação entre, digamos, Gerhart Hauptmann e Tolstoi. Em 1973,somente um indivíduo pedante pode acreditar na necessidade ­conforme exigiam os teóricos da literatura comparada há duasou três décadas atrás - de se evitar toda e qualquer "crítica",já que ela nos força a fazer julgamentos de valor.20

Ao postular que a literatllrªl:()m1J(lr(ld~~~2!.~Q~u.Q<L~n­frontar os produtos de literaturas nacionais diversas, não afir­mamOs.especificâmentequais as.circtiIl.st~~.ei~~qllê'ãêveriam·es­'tar sub()rºina-cúi.iªesta atIvidade. É cÍlegacfaa' horã'de'repãrar­mõsessa omissão, primeiramente através da definição dos elosna corrente dos fenômenos conhecidos como literatura nacional,literatura comparada, e literatura mundial, respectivamente. Afim de se formar um quadro mais completo, deve ser acrescenta­do aos termos acima o de literatura geral, que, conforme já vi­mos, foi posto em circulação e dotado de um significado especi­ficamente comparatista por Van Tieghem.

Para começar, o termo "literatura nacional" precisa ser de­finido de maneira a se associar à literatura comparada, já que,dada a sua própria natureza, ele se refere às unidades formado­ras da basede nossªdisciplin~f.5Assim; a questão que se apresen­tà-eado que preéisarnente constitui a literatura de determinadopaís e de que limites específicos se impõem a tal entidade. É igual­mente necessário decidir se tal definição deve ser feita de acordocom critérios político-históricos ou lingüísticos. Após cuidado­sa reflexão, é provável que se conclua ser necessário conceder prio­ridade ao último critério, visto que, com o passar do tempo, esob a pressão de circunstâncias históricas, as fronteiras políticastendem a mudar mais freqüentemente e mais rápido do que aslingüísticas. Tomemos apenas um exemplo, retirado da história

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316 LITERATURA COMPARADA LITERATURA COMPARADA: DEFINIÇÃO 317

recente: a divisão da Alemanha em 1945 separou uma nação lin­güisticamente unificada em dois estados possuidores de uma he­rança cultural e literária comum. Contudo, mesmo atualmente,vinte e poucos anos depois da divisão, hesitamos em chamar deincondicionalmente comparativo o estudo dos escritos produzi­dos, respectivamente, na República Federal Alemã e na Repúbli­ca Democrática Alemã.

A possível irrelevância dos aspectos políticos no estudo daliteratura comparada é demonstrada pela relativa indiferença comque teriam de ser tratadas as questões de cidadania ou residên­cia, na maioria dos casos. Basta pensarmos no destino dos escri­tores emigrantes alemães das décadas de 30 e 40. Heinrich Mann,por exemplo, fugiu para a França, tornou-se cidadão tcheco e pas­sou a última década de sua vida nos Estados Unidos. Deveriaele, então, por causa de circunstâncias histórico-geográficas, serconsiderado um autor alemão/francês/tcheco/americano? É evi­dente que não. No entanto, com base na sua afinidade com a Fran­ça, no seu conhecimento íntimo do idioma francês, e na sua es­colha de um assunto francês para sua obra-prima romanesca, Hen­ri Quatre, um esprit gaulois pode ser detectado em sua obra, cu­jas partes finais estão repletas de expressões, trechos e até capí­tulos inteiros em francês. Em outros escritores, o bilingüismoencontra-se ainda mais evidente, e homens que, como Rilke e opoeta português Fernando Pessoa, são igualmente versados emduas línguas e duas tradições literárias diferentes, tornam-se, defato, objetos apropriados para o estudo comparado.

Se, juntamente com a maioria dos teóricos, dermos prefe­rência aos critérios lingüísticos, ao invés de políticos e geográfi­cos, iremos, certamente, nos deparar com outras dificuldades. Porexemplo, a questão da incorporação à literatura francesa de obrasde autores belgas, suíços, canadenses e africanos escritas em fran­cês nos faz parar para refletir. O mesmo se aplica à literatura ale­mã, que se estende às letras austríacas, assim como às obras deautores suíços de fala alemã, como Max Frisch e Friedrich Dür­renmatt e os membros do círculo de Praga em torno de Max Brode Franz Kafka. E o que fazer quanto à literatura espanhola con­tinental, em relação às letras da América Central e do Sul (comexclusão do Brasil), ou quanto à literatura árabe, como o reposi­tório de uma herança cultural à qual o Egito, o Iraque, a Síria,o Líbano e a Arábia Saudita são, igualmente, reconhecidos.

No que diz respeito a essas questões, vale ponderarmos osargumentos oferecidos por Wolfgang von Einsiedel, no prefácioao levantamento de cento e trinta literaturas por ele editado. Ein­siedel relata que as literaturas incluídas em seus livros são "deacordo com famílias lingüísticas (Sprachgemeinschajten), que nãocoincidem com as nações; e, apenas em casos excepcionais, comfamílias religiosas ou étnicas (Glaubensgemeinschajten e Bevol­kerungsgruppen)."21 Na sua maneira de ver, uma das caracterís­ticas básicas de cada entidade estudada em seu livro é o fato deela possuir "uma fisionomia mais ou menos distinta, que se tor­na claramente reconhecível somente quando, tomada como umtodo, ela é comparada a outras literaturas.' '22

Cada um dos problemas levantados acima constitui um ca­so especial e exige uma solução cuidadosamente adaptada às cir­cunstâncias históricas e a seu modo de utilização por historiado­res literários. Para o comparatista prospectivo, o estudo de di­versas histórias de uma mesma literatura nacional é, portanto,especialmente instrutivo, já que ele descobrirá na comparação uminstrumento prático para a determinação de fronteiras. Como ilus­tração, nos referimos à prática comum entre historiadores literá­rios franceses, sobre a qual comenta Van Tieghem:

Na França, onde a unidade nacional é tão antiga, e o senti­do de unidade é"1ãoprofundo e vívido, a questão é resolvi­da com uma timidez freqüentemente desajeitada, e por ve­zes absurda. Por razões óbvias, consideramos o genebrêsRousseau e o saboiano [Xavier]de Maistre como autores fran­ceses. Geralmente damos carta de cidadania aos escritoressuíços [A.] Vinet, [Edmond] Schérer, [Edouard] Rod, e [Vic­to r] Cherbuliez, e os belgas [Georges] Rodenbach e [Emile]Verhaeren, visto terem eles gravitado em torno de Paris co­mo centro de suas atividades literárias. Mas deixamos [Ro­dolphe] Toepffer para a Suíça e Camille Lemonnier para aBélgica porque eles permaneceram voluntariamente em suasrespectivas pátrias. Para sermos lógicos, é necessário, por­tanto, que se considere a influência de Emile Zola sobre Le­monnier, como assunto para a Literatura Comparada. O mes­mo se aplica ao Romantismo em Genebra e em Vaud, e àinfluência francesa sobre as literaturas produzidas em lín­gua francesa no Canadá, Haiti, etc. (p. 58f.)

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318 LITERATURA COMPARADA LITERATURA COMPARADA: DEFINIÇÃO 319

'"

A literatura dos países africanos em desenvolvimento, mui­tas vezes estruturada em idiomas do Ocidente, deve também serlevada em conta pelo estudioso de literatura comparada. Aqui,mais uma vez, surge a questão da possibilidade de se consideraruma visão de mundo em particular ou uma característica localespecífica como produtora de traços literários nacionais.

Ficará evidente, para os leitores da Bibliography of Compa­rative Literature de Baldensperger/Friederich - na qual a Suíçade Friederich e a Alsácia de Baldensperger ocupam lugares espe­ciais, enquanto que a Áustria e o Canadá são "anexados" às li­teraturas alemã, francesa e inglesa respectivamente - que a ques­tão levantada aqui não é puramente acadêmica, mas, ao contrá­rio, possui aplicações práticas imediatas.

Seria igualmente questionável separar-se, em prol de um pu­rismo metodológico mal orientado, a literatura irlandesa da in­glesa, pois, através de escamoteações desse tipo, escritores comoSwift, Yeats e Shaw teriam suas raízes artísticas arrancadas, parabeneficiar um princípio não-literário. Um problema de especialinteresse é o que diz respeito ao parentesco íntimo entre as letrasinglesas e norte-americanas, pois aqui se tem um caso de doispaíses ou nações que, culturalmente (e, portanto, literariamen­te), têm seguido cada qual seu caminho, ao menos desde o iníciodo século XIX. Assim, apesar de continuarem a utilizar um idio­ma em comum (com a exceção de pequenas variações lingüísti­cas), os produtos de suas respectivas literaturas considerados, porum consenso geral, como "nacionais", poderiam ser objeto le­gítimo de estudos comparados.

Nossa escolha da diferença lingüística como elemento deci­sivo para a resolução da questão de como deve ser tratado deter­minado caso - se pelas filologias especializadas, ou se dentrodos limites da literatura comparada - apóia-se na observaçãoda situação que prevalece nos países unidos politicamente, masdivididos lingüisticamente, e que, como resultado, não possuemum idioma nacional único. Este grupo inclui a Suíça (com rela­ção a cuja produção literária global, François Jost prefere falarde letras suíças, ao invés de literatura suíça, em seu sentido maiscomum),23Índia, e a União Soviética, onde as minorias lingüís­ticas são abundantes. Pareceria evidente, para a maioria dos lei­tores do Ocidente, que uma comparação entre os romances deGottfried Keller e Charles Ferdinand Ramuz, por exemplo, per-

tence inteiramente ao campo da literatura comparada. E o mes­mo pode ser dito com relação aos estudos que envolvem obrasescritas nos diversos idiomas indianos (hindu, bengali, urdu, ta­mil, por exemplo), assim como corpus literários produzidos emrusso, ucraniano, estoniano, letão, georgiano, buriata e quirguiz- para ficarmos com apenas algumas das inúmeras línguas fa­ladas na União Soviética, que se podem orgulhar de possuir suaspróprias tradições literárias.24

Mesmo dentro de uma nação essencialmente monolíngüe,como a França ou a Inglaterra, no entanto, existem misturas "es­trangeiras" e bolsões cuja relação com o koiné do país como umtodo pode exigir uma análise verdadeiramente comparada. Vêm­nos à mente o poeta provençal do século XIX, Frédéric Mistral,de quem Van Tieghem diz: "nossas histórias literárias não lhereservam qualquer lugar, e, para que se possa apreciar seu víncu­lo com os escritores franceses deve-se, portanto, recorrer à litera­tura comparada" (p. 170), e o poeta escocês Robert Burns, cujacidadania literária foi definida por Louis Cazamian comosemi-étrangere.

Esse último caso demonstra que mesmo a literatura escritano que se denominaria normalmente dialeto (isto é, uma línguaque não pode ser, ao menos de imediato, compreendida pelos con­terrâneos que falam e escrevem o vernáculo-padrão) pode bemser considerada como 'Oportuna para o estudioso da literaturacomparada. Deve-se manter em mente, contudo, que as frontei­ras entre "dialeto" e "língua" são relativamente fluidas, e que,na ausência de meios de diferenciação rigorosamente científicos,o teste pragmático da inteligibilidade deve determinar a que ca­tegoria pertence determir;tadapeça. Metodologicamente, vale notarque os romances de Fritz Reuter em baixo-alemão, e as comé­dias sicilianas de Eduardo de Filippo devem ser vistos como obrasestrangeiras, já que requerem tradução para o alto-alemão e "al­to" italiano, respectivamente, de maneira a atrair uma platéia ver­dadeiramente nacional.25 Aqui, porém, parece que chegamos aum beco sem saída, porque ninguém afirmaria seriamente queo Ut de Stromtid de Reuter, que a versão original do drama DieWeber, de Hauptmann, ou que o hilariante Filserbriefe bávarode Ludwig Thomas não são uma parcela da Nationalliteratur ale­mã.

Ao enfatizar os critérios lingüísticos e sua importância para

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320 LITERATURA COMPARADA LITERATURA COMPARADA: DEFINIÇÃO 321

a literatura comparadá, devemos notar que eles precisam ser uti­lizados com o máximo de cautela sempre que se refiram a fasesdistintas no "desenvolvimento orgânico" de dado idioma, comoé o caso do anglo-saxão ou do alto-alemão antigo, que o inglêsou alemão atual têm de aprender como um idioma estrangeiro.Uma comparação entre obras originalmente escritas em inglês an­tigo, médio e moderno (digamos, entre Beowulj, os CanterburyTales de Chaucer e um romance de Dickens) não pode ser consi­derada como material de estudo para a nossa disciplina.

Tendo explicado, de forma bastante extensiva, quais os pro­blemas que surgem quando se busca definir a essência de uma li­teratura nacional, delimitar várias literaturas, e relacioná-Ias umascom as outras, devemos agora examinar as ligações terminológi­cas e conceituais entre literatura comparada, de um lado, e litera­tura geral, de outro. Essa divisão resulta artificial e a ela não deveser atribuída qualquer significação metodológica. Van Tieghemdefine littérature générale (significando história geral da literatu­ra) na terceira e última parte de seu livro. Na sua opinião, a litera­tura comparada restringe-se ao estudo de "vínculos binários en­tre dois elementos, sejam eles obras e autores individuais, gruposde obras e homens, ou literaturas inteiras" (p. 170). Por outro la­do, os fenômenos literários abarcando três ou mais elementos, fi­cam ao encargo da literatura geral, "uma disciplina que se apóiaem fatos comuns a diversas literaturas, consideradas como tal, sejapor sua interdependência, seja por analogia (dans leur coinciden­ce)" (p. 174).26 Claude Pichois e André Rousseau, em seu ma­nual, não rejeitam inteiramente essa distinção, mas sabiamente res­tringem o campo da literatura geral aos estudos que não envolvemrapports de /ait. (La littérature comparée, p. 95.)

Conforme já apontado por Wellek, o próprio Van Tieghemdeixa, na verdade, de traçar um limite claro entre os significadosdos dois termos. Em seu ensaio "The Concept of ComparativeLiterature", Wellek observa que

[Literatura comparada] já é um termo estabelecido e com­preensível, enquanto que "literatura geral" não o é. "Lite­ratura geral" costumava referir-se à poética, à teoria da li­teratura, e Van Tieghem tentou dar a este termo um sentidonovo e especial. Nenhum dos dois significados está claroatualmente. Van Tieghem estabeleceu a distinção entre' 'li-

teratura comparada", que estuda as inter-relações entre duasou mais [sic!] literaturas, e "literatura geral", cujo interessereside nos movimentos internacionais. Mas, como podemosdeterminar se, por ex., o ossianismo é um tópico relativo àliteratura "geral" ou "comparada"? Não se pode estabele­cer uma distinção válida entre a influência de Walter Scottno estrangeiro e a moda do romance histórico. As literatu­ras "geral" e "comparada" fundem-se, inevitavelmente.(YCGL, 2 (1953], p. 5).

Dentre os tópicos a serem estudados sob o título littératuregénérale, Van Tieghem (p. 176) cita: o estudo de correntes inter­nacionais, tais como o petrarquismo e o rousseauísmo, a preo­cupação com problemas de Geistesgeschichte e a história dasidéias, como exemplificado pelo Humanismo, pelo Iluminismo,e pela Era da Sensibilidade; a análise de movimentos literáriosdesconexos, como o Naturalismo e o Simbolismo; e as chama­das/ormes communes d'art ou de style (gêneros), como o sone­to, a tragédia clássica e o romance rústico. Mas, na Parte 2, Ca­pítulo 2, de sua pesquisa, ele trata a questão do estilo e do gêne­ro como uma área da literatura comparada, cancelando explici­tamente, desta maneira, a divisão artificial em duas disciplinasseparadas. Deve-se, também, manter em mente que muitos dostópicos assinalados por Van Tieghem como pertencentes à lite­ratura geral encaixam::Se mais apropriadamente na história inte­lectual (Problemgeschichte). A divisão, contudo, só seria admis­sível se os fenômenos verdadeiramente literários fossem separa­dos dos elementos filosóficos, religiosos e científicos, e se a His­tória das Idéias fosse classificada como uma disciplina auxiliar,porém independente.27 •

A inadequação da definição de Van Tieghem fica sublinha­da pelo fato de Guyard contradizer abertamente seu mestre, quan­do, no Capítulo 7 de sua pesquisa, intitulado "Grands courantseuropéens: idées, doctrines, sentiments", ele lamenta essa conta­minação e, embora a aceite como um mal necessário, ridiculari­za o erro metodológico de seu antecessor:

Paul Van Tieghem propõe denominar littérature généraleaquela forma superior de comparação que vai além do nívelde relações binárias, através de um ponto de vista verdadei­ramente internacional (ou, pelo menos, europeu) com relação

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à história das idéias ou correntes de sensibilidade. [Mas], paraele, littérature générale também abarca fatos propriamenteliterários: a história dos gêneros, das formas e dos temas.Esse livro evita cuidadosamente discussões teóricas, freqüen­temente inúteis nesse campo ... Para a testemunha ignoran­te, ou simplesmente indiferente, dessas batalhas verbais, deve­se ressaltar, contudo, ... que, se o termo littérature généralepossui qualquer significação, essa se aplica precisamente àsabordagens comparadas discutidas no primeiro capítulo (p.96f.)

Tendo passado da literatura nacional para a literatura com­parada e, daí, para a littérature générale de Van Tieghem, chega­mos agora à literatura mundial. Esse termo, como seus corres­pondentes estrangeiros (tais como littérature universelle, Weltli­teratur), é menos controvertido do que literatura geral, mas, ain­da assim, oferece uma série de dilemas interpretativos. No con­texto atual, é impossível darmos conta do alcance total de seuspossíveis significados e nuances.28 Estamos, aqui, unicamente in­teressados em cobrir aquelas nuances de significados que tocam,ou que se superpõem à literatura comparada.

Como pode ser visto por seus comentários sobre o assunto- compilados por Fritz Strich - Goethe considerava a Weltlite­ratur um fenômeno histórico vinculado aos desenvolvimentos so­ciais, políticos e tecnológicos do passado imediato, e condicio­nado pelo "período atual e extremamente turbulento", assim co­mo pelos "meios de comunicação amplamente aprimorados". 29

Esse período "extremamente turbulento", entretanto, foi a he­rança deixada por Napoleão, "pois todas as nações, emaranha­das umas nas outras nas mais terríveis guerras, e depois deixadasnovamente a sós, perceberam que haviam observado e absorvidomuitos elementos desconhecidos" e haviam começado a sentir"certas necessidades espirituais previamente desconhecidas".

Assim, para todos os fins práticos, Weltliteratur significavapara Goethe apenas que as diversas nações (ou, mais precisamente,os escritores contemporâneos residindo em países diferentes daEuropa) deveriam "perceber e compreender umas às outras, e casonão se quisessem amar umas às outras, ao menos aprendessemcomo se tolerar mutuamente." Goethe tinha a sincera esperançade que a singularidade das literaturas nacionais fosse preservada

nesse processo de intercâmbio e reconhecimento mútuo. Ele afir­mou expressamente "que não há hipótese de as diversas naçõesvirem a pensar da mesma forma". Uma harmonização estava paraocorrer por intermédio dos contactos internacionais, dentro dasliteraturas individuais - mas não na forma de um nivelamentogeral. A 12 de outubro de 1827, Goethe escreveu a seu amigo SulpizBoisserée: "Eu também gostaria de observar que o que chama­mos de Weltliteratur ocorrerá mais provavelmente quando as di­ferenças que prevalecem dentro de determinada nação forem re­conciliadas através das perspectivas e julgamentos de outras na­ções."

Goethe sabiamente evitou advogar a uniformidade univer­sal. Pelo contrário: ele odiava completamente esse tipo de sans­culottisme cultural, cujas conseqüências inevitáveis - graças àassustadora eficiência da mass media - enfrentamos hoje. Defato, em épocas de nacionalismo literário de mentalidade taca­nha, a cidadania literária mundial (o cosmopolitismo) é bem­vinda, mas seus extremos devem ser evitados a qualquer preço.Como objeto de estudo no contexto da literatura comparada, ocosmopolitisme tem gozado sempre - ao menos junto aos fran­ceses - de uma posição privilegiada porque é, naturalmente, aterra fértil em que nossa disciplina viceja.3D Desta forma, VanTieghem sublinha a importância das quatro eras cosmopolitasdas letras européias:_

Na Idade Média, a identidade da fé religiosa e a cultura la­tina - um imenso reservatório de lendas populares, de de­voção e bravura - criaram entre o clero e os escribas do Oci­dente inúmeros pontos de contacto que os levaram a se vercomo cidadãos de'uma mesma cidade divina e humana. Noséculo XVI, o Renascimento, ao oferecer como fontes parao pensamento os grandes pensadores gregos e latinos, criouuma forte ligação entre os humanistas de todos os países,que aderiam às mesmas idéias, e delas se alimentavam, as­sim como entre todos os escritores que tentavam superar osantigos, através da imitação. No século XVIII, a larga dis­seminação da língua francesa fez com que a admiração pe­los escritores franceses se espalhasse pelas camadas altas dapopulação de toda a Europa ... e a semelhança de gostos li­terários e correntes filosóficas uniu os homens de letras e

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rLITERATURA COMPARADA: DEFINIÇÃO 325

iluminou o público de todas as nações por meio de um cos­mopolitismo racionalista. No século XIX, finalmente, sob ainfluência de revoluções, guerras e emigrações, sob a influênciados estudos históricos e filológicos ... e, sobretudo, através doimpacto do Romantismo, muitos críticos consideravam as"li­teraturas européias modernas como um todo cujas partes di­versas oferecem contrastes ou semelhanças (p. 26).

Inspirado por Rousseau, Sebastien Mercier aplicou o con-ceito de cosmopolitismo à literatura, e, em seguida, Joseph Texteconcedeu a esse conceito status pleno na historiografia literá­ria.31 Como ramo da literatura comparada, contudo, esse fenô­meno (ao qual os participantes do congresso da AILC em Fri­burgo [1964] dedicaram especial atenção)32 deve ser visto comcautela, pois ele traz consigo um sabor nitidamente político. Nasociologia literária, por outro lado, o cosmopolitismo opera soba máscara da erudição (Belesenheit), como ficará aparente ao lei­tor dos Fribourg Proceedings.

Devido ao fato de enfatizar contactos internacionais e inter­relações literárias proveitosas, impedindo a erradicação de carac­terísticas nacionais distintas, o conceito de Weltliteratur de Goe­the é extremamente útil para a nossa disciplina. Além disso, anoção também implica uma ênfase sobre o papel do intermediá­rio, o que, segundo a teoria' 'clássica" da literatura comparada,é muito bem-visto. Nesse sentido, tanto os estudiosos francesesquanto os não-franceses têm-se mostrado interessados, de longadata, pelas atividades dos tradutores, viajantes, emigrantes e re­fugiados políticos, e pelos salões e revistas que contribuem parao intercâmbio internacional de produtos literários.

O conceito extremamente variado e um tanto ambíguo deliteratura mundial não se exauriu, de forma alguma, com nossasreflexões até o presente. Como medida de precaução, assinalo,ainda, outra nuance de significado que é bastante comum nosEstados Unidos, e popular em nossos meios acadêmicos. Trata­se de uma ampliação do termo de modo a incluir as obras-primasda literatura de todas as épocas e lugares, conforme são apresen­tadas e analisadas, mais ou menos profissionalmente, em cursossobre a literatura mundial, antologias escolares, grandes livros,ou na área das humanidades em geral.33 A fim de evitar qual­quer confusão entre esse emprego e o sentido dado por Goethe

a Weltliteratur, talvez fosse melhor substituirmos o termo' 'clás­sicos" neste caso, sem restringirmos sua aplicação, como faz T.S. Eliot, a um número de obras singularmente seminais, tais co­mo a Eneida ou a Divina comédia. Ao invés disso, deveríamos in­cluir nesta categoria como faz Matthew Arnold, "o que de me­lhor se conhece e pensa no mundo". É metodologicamente signi­ficativo o fato de que, no contexto pedagógico, essas obras-primassão raramente apresentadas de forma verdadeiramente compara­da, e de que os métodos comparativos são geralmente aplicadosapenas quando existem relações genéricas ou temáticas (como emcursos sobre o romance moderno ou o anti-herói na ficção mo­derna). Ademais, a apresentação dos Grandes Livros muitas ve­zes faz parte de um esforço conjunto que se esconde sob a falsaaparência de uma introdução geral à história da cultura - umaprática que frustra qualquer análise verdadeiramente comparada.

Ao concluir, não posso esquecer de mencionar o empregodo termo "literatura mundial" como forma abreviada de "his­tória da literatura mundial", o que pressupõe uma analogia comliteratura comparada (= história comparada da literatura) e comliteratura geral (= história geral da literatura). A história da lite­ratura mundial deve ser entendida como a história de todas asliteraturas do mundo, independentemente de seu alcance ou deseus significados históricos ou estéticos. No entanto, como, emuma escala universal,_as literaturas principais são mais popula­res e mais conhecidas que as outras, a AILC procurou ter comotarefa especial enfatizar o papel - freqüentem ente intermediá­rio - dessas irmãs mais jovens ou menos afortunadas, em seusanais. Assim, um número significativo de trabalhos lidos no con­gresso de Utrecht de 19q1 foi dedicado a esse tópico em particular.

Apesar do vasto corpus de conhecimento e do vasto âmbitode informação que elas pressupõem, não faltam pesquisas glo­bais sobre a literatura mundial (ver o grande número de itens cita­dos na Bibliografia da Literatura Comparada e o levantamentodos itens mais recentes apresentado por Jan Brandt Corstius noensaio intitulado "Writing Histories of World Literature").34 Emsua exposição, o acadêmico holandês chama atenção para o fatode a grande maioria dos estudos por ele examinados serem de cunhoanalítico e de, em quase todos, as literaturas serem tratadas se­qüencialmente, segundo critérios geográficos, lingüísticos oucronológicos. O volume Die Literaturen der Welt, de Kindler,

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iluminou o público de todas as nações por meio de um cos­mopolitismo racionalista. No século XIX, finalmente, sob ainfluência de revoluções,guerras e emigrações, sob a influênciados estudos históricos e filológicos ... e, sobretudo, através doimpacto do Romantismo, muitos críticos consideravam as:>li­teraturas européias modernas como um todo cujas partes di­versas oferecem contrastes ou semelhanças (p. 26).

Inspirado por Rousseau, Sebastien Mercier aplicou o con-ceito de cosmopolitismo à literatura, e, em seguida, Joseph Texteconcedeu a esse conceito status pleno na historiografia literá­ria.31Como ramo da literatura comparada, contudo, esse fenô­meno (ao qual os participantes do congresso da AILC em Fri­burgo [1964] dedicaram especial atenção)32 deve ser visto comcautela, pois ele traz consigo um sabor nitidamente político. Nasociologia literária, por outro lado, o cosmopolitismo opera soba máscara da erudição (Belesenheit), como ficará aparente ao lei­tor dos Fribourg Proceedings.

Devido ao fato de enfatizar contactos internacionais e inter­relações literárias proveitosas, impedindo a erradicação de carac­terísticas nacionais distintas, o conceito de Weltliteratur de Goe­the é extremamente útil para a nossa disciplina. Além disso, anoção também implica uma ênfase sobre o papel do intermediá­rio, o que, segundo a teoria' 'clássica" da literatura comparada,é muito bem-visto. Nesse sentido, tanto os estudiosos francesesquanto os não-franceses têm-se mostrado interessados, de longadata, pelas atividades dos tradutores, viajantes, emigrantes e re­fugiados políticos, e pelos salões e revistas que contribuem parao intercâmbio internacional de produtos literários.

O conceito extremamente variado e um tanto ambíguo deliteratura mundial não se exauriu, de forma alguma, com nossasreflexões até o presente. Como medida de precaução, assinalo,ainda, outra nuance de significado que é bastante comum nosEstados Unidos, e popular em nossos meios acadêmicos. Trata­se de uma ampliação do termo de modo a incluir as obras-primasda literatura de todas as épocas e lugares, conforme são apresen­tadas e analisadas, mais ou menos profissionalmente, em cursossobre a literatura mundial, antologias escolares, grandes livros,ou na área das humanidades em gera1.33A fim de evitar qual­quer confusão entre esse emprego e o sentido dado por Goethe

a Weltliteratur, talvez fosse melhor substituirmos o termo' 'clás­sicos" neste caso, sem restringirmos sua aplicação, como faz T.S. Eliot, a um número de obras singularmente seminais, tais co­mo a Eneida ou a Divina comédia. Ao invés disso, deveríamos in­cluir nesta categoria como faz Matthew Arnold, "o que de me­lhor se conhece e pensa no mundo". É metodologicamente signi­ficativo o fato de que, no contexto pedagógico, essas obras-primassão raramente apresentadas de forma verdadeiramente compara­da, e de que os métodos comparativos são geralmente aplicadosapenas quando existem relações genéricas ou temáticas (como emcursos sobre o romance moderno ou o anti-herói na ficção mo­derna). Ademais, a apresentação dos Grandes Livros muitas ve­zes faz parte de um esforço conjunto que se esconde sob a falsaaparência de uma introdução geral à história da cultura - umaprática que frustra qualquer análise verdadeiramente comparada.

Ao concluir, não posso esquecer de mencionar o empregodo termo "literatura mundial" como forma abreviada de "his­tória da literatura mundial", o que pressupõe uma analogia comliteratura comparada (= história comparada da literatura) e comliteratura geral (= história geral da literatura). A história da lite­ratura mundial deve ser entendida como a história de todas asliteraturas do mundo, independentemente de seu alcance ou deseus significados históricos ou estéticos. No entanto, como, emuma escala universal, __as literaturas principais são mais popula­res e mais conhecidas que as outras, a AILC procurou ter comotarefa especial enfatizar o papel - freqüentemente intermediá­rio - dessas irmãs mais jovens ou menos afortunadas, em seusanais. Assim, um número significativo de trabalhos lidos no con­gresso de Utrecht de 19~1 foi dedicado a esse tópico em particular.

Apesar do vasto corpus de conhecimento e do vasto âmbitode informação que elas pressupõem, não faltam pesquisas glo­bais sobre a literatura mundial (ver o grande número de itens cita­dos na Bibliografia da Literatura Comparada e o levantamentodos itens mais recentes apresentado por Jan Brandt Corstius noensaio intitulado "Writing Histories of World Literature").34 Emsua exposição, o acadêmico holandês chama atenção para o fatode a grande maioria dos estudos por eleexaminados serem de cunhoanalítico e de, em quase todos, as literaturas serem tratadas se­qüencialmente, segundo critérios geográficos, lingüísticos oucronológicos. O volume Die Literaturen der Tfélt, de Kindler,

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oferece um exemplo convincente dessa prática, apesar de as di­versas literaturas da Índia, por exemplo, serem tratadas em umúnico capítulo - procedimento que tende a confundir o leitor,e impede uma avaliação adequada dos valores proporcionais.

As tentativas de se escrever uma história da literatura mun­dial de maneira que as inter-relações entre as diversas literaturasque participam na construção de determinada tradição sejam tra­tadas sinteticamente são ainda escassas. A última grande tentati­va desse tipo foi o Outline of Comparative Literature from Danteto O'Neil, de Werner P. Friederich e David H. Malone, mas elanão alcançou inteiramente seus objetivos.35 Dessa forma, atémuito recentemente, a crítica da Brandt Corstius era pertinente:

Depois do que foi dito, parece evidente que ainda não che­gou a hora de se escrever uma história da literatura mundialde forma sintética. Existe alguma dificuldade no emprego dotermo "literatura mundial" em relação à historiografia lite­rária. O termo certamente não pode ser entendido no senti­do, dado por Goethe, de condições favoráveis ao cosmopoli­tismo na literatura. Porque a história da literatura mundialnão é nem a história dos preliminares de uma literatutra cos­mopolita, nem tampouco a história daquela literatura em simesma. Ela não pode ser entendida no sentido canônico dosGrandes Livros; a história da literatura mundial não podelançar mão desse conceito como princípio orgânico, porquenós não possuímos o conhecimento que tal tarefa exige. Tal­vez fosse melhor simplesmente falarmos da história da lite­ratura.36

Nos últimos cinco anos, contudo, surgiu um novo ponto departida. Resta-nos saber se é possível ou não a realização plenado plano de se escrever conjuntamente a História Comparada dasLiteraturas de Línguas Européias, esboçado pela AILC e agoraprestes a mostrar seus primeiros resultados palpáveis. Mas, pode­se supor que ao menos uma fase preliminar dessa pesquisa - aprojeção de uma série de estudos analíticos de diferentes perío­dos, correntes, e movimentos internacionais - estará completaem um futuro previsível.37

Ao discutirmos a literatura geral no sentido dado ao termopor Van Tieghem, colocamo-nos em uma zona fronteiriça, umaespécie de no man's land, que se estende para além do domínio

da literatura propriamente dita e de outros ramos do conhecimentoque ora se inclinam em direção à literatura, ora são por ela refle­tidos de uma forma ou de outra. Uma área fronteiriça de interes­se considerável para o estudioso é aquela conhecida como histó­ria das idéias, que liga as belles-lettres à filosofia, teologia e ou­tros modelos sistemáticos de pensamento abstrato. Como a lite­ratura é um reservatório para a preservação, e um veículo para atransmissão de valores intelectuais, e ocupa por esse motivo umespaço central em toda cultura, existeuma abundância de tais áreas.Portanto, seja ele ou não um comparatista, o estudante de litera­tura deve determinar as posições exatas dessas áreas. Por razõesde ordem eminentemente prática, o estudioso deve, ademais, de­cidir entre apoiar a rigorosa concepção francesa de nossa disci­plina ou as visões mais generosas expostas por Remak, para quem

a literatura comparada é o estudo da literatura além dos li­mites de um país em particular, e o estudo das relações en­tre, de um lado, a literatura e de outro, outras áreas do co­nhecimento, e da crença, tais como as artes, ...a filosofia,a história, e as ciências sociais, a ciência, a religião, etc. Emsuma, é a comparação entre uma literatura e outra ou ou­tras, e a comparação da literatura com as demais esferas daexpressão humana. (Stalknecht & Frenz, p. 3).

Para ser breve, deixarei de lado por ora os problemas rela­cionados à interação entre a literatura e as demais artes (música,artes plásticas, arquitetura, dança, cinema, por exemplo), e a con­taminação mútua entre elas. Devo dizer, contudo, que na medi­da em que a literatura é uma forma de arte, isto é, o produto deuma atividade não utilitária e criativa, ela tem determinadas afi­nidades com os domínios presididos pelas demais Musas, o quetorna viável, e mesmo provável, que existam, apesar dos meiosdiferentes empregados, denominadores comuns entre elas (que,por sua vez, podem servir como base sólida de comparação). Ain­da que somente por essa razão, me vejo inclinado a qualificarcomo' 'comparado" o estudo das belles-lettres em suas relaçõesmútuas com as demais formas de arte, especialmente nos casosem que ocorre de fato uma ligação ou fusão, como no Gesamt­kunstwerk de Wagner, ou no Doppelbegabungen (talentosmúltiplos) de artistas individuais trabalhando com dois ou maismeios diferentes. A meus colegas puristas, que desejam ver a lite-

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328 LITERATURA COMPARADA LITERATURA COMPARADA: DEFINIÇÃO 329

ratura comparada restrita a seus limites estritamente literários,posso assegurar que prometo utilizar sempre a literatura comoponto de partida e objetivo final. Mesmo nesse caso particular,entretanto, tendo a duvidar da vantagem de se separar o estudoacadêmico da pedagogia, como propõe Friederich, a fim de quese possa salvar nossa consciência filológica.38

Na minha maneira de pensar, a resposta não é tão simplesno caso dos estudos que envolvem as relações entre a literaturae "esferas da expressão humana" não-estéticas ou basicamentenão-estéticas, tais como filosofia, sociologia, teologia, historio­grafia, e ciências puras ou aplicadas. Antes de chegarmos a qual­quer conclusão a esse respeito, pode-se levantar a pergunta apa­rentemente ingênua: o que, afinal, constitui a literatura? Esse pro­blema, brevemente mencionado por von Einsiedel em sua intro­dução aDie Literature der J#lt (onde ele assinala que, no latimmedieval, que começa, pelo menos, com são Jerônimo, litteratu­ra designava principalmente obras seculares, enquanto os escri­tos sagrados eram denominados scriptura),39 foi levantado, sig­nificativamente, por Escarpit na sua contribuição ao ainda iné­dito !nternational Dictionary of Literary Terms.40

Nesse contexto, podemos apenas esboçar a etimologia do ter­mo e a evolução histórica de seu significado. No entanto, tem-secerteza do seguinte: em inglês, assim como em francês, a palavra"literatura" era originalmente empregada no sentido de apren­dizagem (Bildung) ou erudição. Voltaire,por exemplo, fala de Cha­pelain como tendo tido' 'une littérature immense", e foi somen­te no século XVIII que o foco finalmente mudou do sujeito parao objeto de estudo. Mas, mesmo nesse estágio relativamente tar­dio de seu desenvolvimento, a "literatura" incluía praticamentetodos os escritos publicados, independentemente de sua nature­za (como em inglês, francês e alemão, o substantivo ainda é fre­qüentemente usado no sentido de "literatura secundária"). Es­pecialmente no século XVIII, a escrita não-utilitária era muitasvezes qualificada como poesy em inglês, ou seus corresponden­tes em outras línguas. Foi somente no século XIX que se inicioua separação entre os escritos pragmáticos e os não-pragmáticos.É apenas quando essa distinção se torna universal que chegamosà definição de literatura fornecida por Raymond Queneau, emseu prefácio à Encyclopédie de Ia Pléiade, onde ele nos diz queela é a "maneira de se escrever, em oposição ao emprego funcio-

nal de palavra escrita" em uma era em que os "técnicos têm gra­dativamente elevado suas especialidades à dignidade das ciências."Não esqueçamos, contudo, que, já na virada do século, o Prê­mio Nobel de Literatura foi repetidas vezes conferido a cientis­tas naturais e filósofos.

Uma vez que a divisão entre literatura científica e "estéti­ca" já é, hoje, fait accompli (apesar dos casos fronteiriços, co­mo a ficção científica), a inter-relação entre as duas esferas é .de­finitivamente um dilema metodológico. Deve-senotar logo de iní­cio que aqui, como é tantas vezes o caso na esfera intelectual,nem sempre se pode traçar uma linha de demarcação perfeita,pois somos inevitavelmente confrontados com formas híbridas- por exemplo, o romance histórico, o ensaio, o diário, a auto­biografia e outros gêneros literários ou semiliterários, que têmatraído renovada atenção. Para sermos mais específicos: como,por exemplo, devemos classificar o Either/Or de Soren Kierke­gaard, que foi considerado, por um crítico contemporâneo, co­mo um romance psicológico-erótico? E o que dizer das Confes­sions de Rousseau, do Dichtung und Wahrheit de Goethe, dosdiários de André Gide, dos Caracteres de La Bruyere, e dos Es­sais de Montaigne? E será que se pode considerar o estudo doimpacto de Sigmund Freud sobre os surrealistas franceses comoliterário e/ou um tópico "comparativo"?41 No contexto da his­tória cultural alemã, por exemplo, geralmente não se questionaa classificação de Nietzsche como Dichter - não somente porcausa dos poemas escritos por ele, ou da qualidade literária desua prosa, como também por causa de sua influência sobre inú­meros escritores alemães e não-alemães - dentre eles o jovemGide, Gabriele d'Annun,zio e os irmãos Reinrich e Thomas Mann.Entretanto, no caso de místicos como Meister Eckhart e JakobBoehme, assim como no de filósofos como Arthur Schopenhauere Renri Bergson, esse rótulo seria um tanto questionável. Final­mente, os escritos de Kant, Hume e Aristóteles pareceriam umtanto técnicos na maioria dos casos para merecer um lugar dedestaque na história da literatura.

Os franceses, cuja vida intelectual é mais unificada e maisbem-integrada do que a da Alemanha (pois na França quase todasas palavras expressas por escrito são julgadas pelo estilo), vêemDescartes, juntamente com Montaigne, Pascal e Bergson, comoautores literários de prestígio,ao passo que nomes como John Locke

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330 LITERATURA COMPARADALITERATURA COMPARADA: DEFINIÇÃO 331

OU John Stuart Mill estão conspicuamente ausentes da maioriadas histórias da literatura inglesa. Teoricamente, se o meio aca­dêmico literário deseja ver resultados, teria provavelmente de evitaro estudo de fenômenos que não se ativessem estritamente ao li­terário. Mas, na prática, é inevitável estender-se a área de com­petência pressuposta, como no caso do Lehrstück de Brecht e dopoema didático De rerum natura, de Lucrécio.

É claro que, ao compararmos obras literárias com outras não­literárias, abrem-se as comportas do diletantismo toda vez que ohistoriador literário ou crítico não tiver um conhecimento incisi­vo de primeira-mão das disciplinas científicas, que proçura utili­zar em suas aplicações literárias. A proposta de Remak de anexaressa terra-de-ninguém à literatura comparada apóia-se na pressu­posição benevolente de que, em todos os casos, se pode, e se deve,distinguir entre critérios pragmáticos e sistemáticos. Em outras pa­lavras, "Devemos considerar 'literatura comparada' apenas as com­parações de ordem sistemática entre a literatura e outra área quenão seja literatura, ou as comparações com uma disciplina que, em­bora definitivamente separada, fora do âmbito da literatura, sejaestudada como literatura". Porém, conforme demonstram os pou­cos exemplos citados por Remak, essa visão é metodologicamenteinsustentável. Ademais, ela é única na história de nossa discipli­na, já que não é endossada pelos principais representantes da Es­cola de Literatura Comparada, nem francesa, nem americana.

Poucos comparatistas concordariam com a noção de que oestudo das fontes históricas do drama shakesperariano seria com­parativo no momento em que' 'a historiografia e a literatura fos­sem os pólos principais de investigação"; ou de que o estudo dafunção do dinheiro no romance Pêre Goriot de Honoré de Bal­zac seria comparativo "se estivesse primordialmente ... preocu­pado com a osmose literária de um conjunto de idéias ou siste­ma financeiro coerente." O primeiro tópico interessaria unica­mente ao crítico ou historiador da literatura inglesa, e o últimosomente tem interesse para o estudioso do romance, de um lado,e para o historiador econômico, de outro. Para lançarmos mãode uma metáfora faustiana, levar a colonização a esse ponto sig­nifica, na minha opinião, minar as próprias forças que requeremconsolidação, pois, enquanto comparatistas, não somos um grupode pessoas a quem falta espaço; ao contrário, nos sobra espaço.Sofremos de uma espécie de agorafobia intelectual.

NOTAS

I Paris: P.u.P., 1951, p. 5.2 Littérature comparée: le mot et Ia chose. Revue de Littérature comparée 1 (1921), 12.

Daqui por diante como RLC.3 VAN TIEGHEM. La littérature comparée. Paris: Colin, 1931, p. 89.4 Os problemas especiais que surgem com a inclusão de estudos medievais na literatu­

ra comparada foram discutidos por Jean Frappier em seu ensaio altamente informativoLittérature médiévale et littérature comparée: problemes de recherche et de méthode. Pro­ceedings lI, vol. I, p. 25-35. Ver também os comentários de Horst Rüdiger no primeironúmero de Arcadia.

5 No entanto, Guyard declara que "[a] imprensa desempenha seu papel ao enfatizar'as características positivas ou negativas de determinado país, mas a tarefa do compara­tista se inicia com as transposições literárias, que têm sido sugeridas, em parte, por essainformação e pela conduta de diplomatas e jornalistas" (p. 13).

6 The concept of comparative literature. Yearbook of Comparative and General Lite­rature 2(1953), 4. Daqui por diante como YCGL.

7 "Essa postura possuía, na época (1951), e ainda possui, elementos sedutores para osjovens acadêmicos. Mas existem outras perspectivas, novas ou recicladas, atualmente dis­poníveis (1961):para citar um exemplo, o estudo comparado de formas e estilos encontra-senovamente aberto para eles; acrescente-se a isso o fato de eles serem levados a criar umasociologia da literatura" (Guyard, p. 22).

8 De F. T. Graindoge à A. O. Barnabooth: les types américains dans le roman et le théâ­tre français (1861-1917).Paris, 1963. Ver lIÚnha resenha desse livro na Arcadia, 2 (1967),113-116.

9 A citação foi tirada do ensaio "cSomparative literature: its definition and function".In: STALKNECHT, P. & FRENZ, H., eds., Comparative literature: Method and Pers­pective. Carbondale: Southern Illinois Univ. Press, 1961, p. 3-37.10 RLC 1 (1921), 7.11 A respeito da relação entre Ibsen e George Sand, Van Ticghcm comenta que "[e]lesse moviam dentro do mesmo círculo, mas não eram cndividados um ao outro: não haviainfluência. O outro exemplo é o de Daudet, que era considerado ... um imitador de Dic­kens. Mas ele negava persistentemente tê-Io lido. Por cstranho que pareça, não havia in­fluência, apenas uma corrente comum" (p. 136).12 Tanto o Zeami, Basho, Yeats, Pound: a study in .lapanese and English poets, de Ma­koto Ueda (resenhado por Ear! Mincr na CL, 18 [1966], p. 176f.), quanto o ensaio deAmiya Kumar Dev, "Catharsis and Rasa" (YCGL, 15, 1966,192-197) movem-se em dire­ção à estética.13 Arcadia, 1 (1966), p. 3.14 Probleme der vergleichenden Literaturgeschichte. Sitzungsberichte der Deutschen Aka­demie der Wissenschaften zu Ber!in, Klasse für Philosophie, Geschichte, Staats-, Rechts­und Wirtschaftswissenschaften, .lahrgang 1963, n? 1, Berlin, 1963.

15 Weimarer Beitriige, 2 (1965), 252-62.16 "The science of comparative literature", The Contemporary Review, 79 (1901), 856.

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17 Na p. 7 de seus comentários, no primeiro número da RLC, Baldensperger declara queLittré, em seu Dictionnaire, faz objeção ao emprego do particípio, "comparée", assina­lando que "Anatomie comparée soa pior do que anatomie comparative".18 Com relação à revista Comparative Literature, seus editores declaram que ela preten­de ser um forum "para aqueles estudiosos e críticos envolvidos no estudo da literaturade um ponto de vista internacional". "Seus editores", continuam eles, "definem a litera­tura comparada da forma mais abrangente possível, e aceitam artigos que tratam de to­do um leque de inter-relações literárias, da teoria da literatura, de movimentos, gêneros,período, e autores - desde as épocas mais remotas até os dias de hoje. ComparativeLiterature contempla em particular os estudos mais extensos sobre tópicos abrangentese problemas de crítica literária."

19 N. Y.: Harcourt & Brace, 1949, p. 30.20 Com relação ao tratado de Stendha1 sobre Racine e Shakespeare, Guyard observa comdesdém que" [s]e trata ou de crítica ou de eloqüência" (p. 9), e Carré ridiculariza aspráticas retóricas dos críticos literários (/bid, p. 6).

21 Die Literaturen der Welt in ihrer mündlichen und schriflichen Uberlieferung: Beitra­ge zu einer Gesamtdarstellung (Zurich, 1964), p. V.22 /bid, p. XIX.

23 Ver seu ensaio "Y a-t-il une 1ittérature suisse?". Essais de littérature comparée, vol.I (Fribourg: Editions Universitaires, 1964), p. 315-338.24 Assim, torna-se evidente por que o Professor R. K. Das Gupta, diretor do Departa­mento de Línguas Indianas da Universidade de Nova De1hi, se considera um comparatis­ta ex officio.

25 Os possíveis efeitos desse problema sobre o estudo da literatura comparada são tra­tados em meu ensaio "Dialect as a Barrier to Trans1ation",Monatshefte, 54 (1962),233-243.26 Ver também o artigo de Van Tieghem "La synthese en histoire littéraire: littératurecomparée et littérature générale", Revue de Synthese Historique, 3/ (1921), 1-27.27 Sobre a relação entre literatura comparada e história das idéias, ver o ensaio de Hen­ri Roddier, "La Littérature Comparée et I'histoire des idées", RLC, 27 (1953),43-49. Vertambém WIENER, Ph., ed., A Dictionary of the History of /deas, 4 vo1s.Nova York:Scribner's.

28 Para esse levantamento, recomenda-se ao leitor interessado que se dirija ao corpusda literatura sobre o assunto, citado no apêndice bibliográfico de meu livro ComparativeLiterature and Literary Theory, onde estão citadas as mais importantes contribuições aoestudo histórico e sistemático do conceito de Weltliteratur. Em anos recentes, os compa­ratistas, especialmente no leste da Europa, começaram a operar com o conceito de zonasliterárias como mediadoras entre a literatura nacional e a mundial. Ver Anais do Coló­quio de Budapeste (nov. 1971). Neohelicon, n~s 1/2 (1973, 115-73).29 As citações seguintes foram retiradas do apêndice de STRICH, Fritz. Goethe und dieWeltliteratur Berna, 1957.

30 O título de um dos capítulos do livro de Van Tieghem (p. 23-28) é "Cosmopo1itismeromantique et premiers essais de littérature comparée", e o terceiro capitruo do livro deGuyard intitula-se "Agents du cosmopolitisme littéraire". Pichois e Rousseau, contudo,não abordam esse fenômeno.

31 Dignos de nota com relação a esse tópico são os comentários de J. Gíllet sobre Cos­mopolitanisme et littérature comparée. Les Flandres dans les mouvements romantiqueet symboliste. Paris, 1958, p. 45-51.

32 As comunicações relevantes constituem um volume inteiro de Proceedings. Particu­larmente informativa é a apresentação de Kurt Wais, "Ie cosmopolitanisme littéraire àtravers les âges" (p. 17-28).

"

33 Esse complexo é tratado pedagogicamente no seguinte simpósio: BWCK, Haskell M.,ed., The Teaching of World Literature. Chapel Híll: The University of North CarolinaPress, 1960.

34 YCGL, 12 (1963), 5-14.

35 Chapel Híll: The Universíty of North Carolina Press, 1954.36 YCGL, 12 (1963), 14. Brandt Corstius e Wellek (no primeiro volume de seu Historyof Modern Literary Criticism) acusam injustamente Goethe de ter promovido a causado cosmopolitismo (Weltbürgertum).37 A melhor fonte de informação para esse empreendimento é o volume bilíngüe Rap­port relatif au projet d'une histoire de Ia littérature europenne (Budapeste, 1967), divul­gado no Congresso de Belgrado. Vários participantes do Congresso de Bloomington daAILC expressaram opiniões a respeito do projeto (ver YCGL, 17 [1968], p. 86-98). En­quanto isso, o primeiro volume da série, Expressionism as an /nternational Literary Phe­nomenon (WEISSTEIN, u., ed.) foi publicado conjuntamente pela Publishing Houseof the Hungarian Academy of Sciences em Budapeste e pela Didier em Paris. Os volu­mes sobre literatura renascentista (Ottawa/Tours Center), literatura do fin des lumieres(BudapestlParis Center) e o uso do folclore na literatura romântica (Alberta Center)encontram-se no prelo.

38 Van Tieghem toca brevemente nesse tópico no capítulo de seu livro "Idées", que ecoao Capítulo Sete do manual de Guyard.39 Die Literaturen der Welt, p. VII.40 ESCARPIT, Robert. La définition du terme "littérair" Bordeaux: Centre de Socio­logie des faits littéraires, 1961.Agora também em Le littéraire et le social: elements pourune sociologie de Ia littérature. Paris: Flammarion, 1970, p. 259-272. Ver também WEL­LEK, René "The Attack on Literature", The American Scholar 42 (1972/73), 27-42, esp.37-41.

41 Ver os comentários de Anna Balakian a respeito de "Influence and Literary Fortune:the Equivocal Junctin of two Methods", YCGL, 11 (1962), 24-31, especialmente p. 28.

333LITERATURA COMPARADA: DEFINIÇÃOLITERATURA COMPARADA332

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UMA FILOSOFIA DAS LETRAS 335

UMA FILOSOFIA DAS LETRAS*

François Jost

/"

"Literatura mundial" e "literatura comparada" não são noçõesidênticas. A primeira é um pré-requisito para a segunda e forne­ce ao erudito a matéria-prima e a informação que ele ordena deacordo com princípios críticos e históricos. A literatura compa­rada, portanto, pode ser definida como uma Weltliteratur orgâ­nica; é um "relato" articulado, histórico e crítico, do fenômenoliterário visto como um todo. O comparatista não somente in­corpora as grandes obras de todas as nações à sua lista de livrosa serem lidos e analisados; mais do que isto, ele examina a con­catenação dos eventos literários significativos e tenta atribuir aosescritores um lugar na história geral das idéias e da estética. Elenão só justapõe, mas também coordena. Para ele, a literatura éum amálgama, um complexo, e não uma série de obras indivi­duais. É um ciclo e uma soma. Uma realidade cultural está naorigem desta disciplina: condições interligadas efetivamente ouidealisticamente unem uma literatura às outras. O estudioso, queleva em consideração esta verdade fundamental, concebe o com­paratismo como o novum organum da crítica literária.

A própria expressão "literatura comparada" é uma fonte demal-entendidos, um exemplo dos perigos e ciladas da terminolo­gia crítica. 1 Ela confirma a idéia de que a literatura deve sercomparada, mas não indica os termos da comparação. Desta for­ma, Harry Levin pôde ironicamente intitular sua palestra profe­rida em 1968, como presidente da Associação Americana de Li­teratura Comparada, "Comparing the Literature".2 Geralmen­te, contudo, o termo é entendido por aquilo que ele sugere: uma

* JOST, François. A Philosophy of Letters. In: -. Introduction to Comparative Litera­ture. Nova York: Bobbs Merrill, 1974, p. 21-30.

comparação mútua e até mesmo sistemática das literaturas na­CIOnaIS.

Há duas definições do conceito de "literatura nacional", umapopular, a outra acadêmica. A primeira é tautológica: a literatu­ra inglesa é a literatura da Inglaterra, e a portuguesa, a de Portu­gal. O adjetivo se refere ao país. Quanto à segunda, dois crité­rios combinados de erudição literária circunscrevem a literaturanacional adequadamente: por um lado, ela consiste em obras queaderem a códigos de estética idênticos e que são, conseqüente­mente, escritos na mesma língua. Por outro lado, seus escritorestêm a mesma formação cultural. É aquele corpus geralmente con­siderado como a expressão de uma cultura específica e formadopor um vocabulário e uma sintaxe comuns. A literatura america­na é criada na língua americana, que é bem distinta da britâni­ca, e nos moldes da civilização americana; no entanto, nenhumcrítico excluiria os irlandeses como Yeats ou Joyce, Shaw e Syngedos manuais de literatura inglesa. Muitos outros nomes poderiam,sem dúvida, ser acrescentados a esta lista de escritores nascidosna Irlanda: Farquhar, Sterne, Goldsmith, Sheridan, Swift, Par­nell, Wilde. Os alemães se deliciam lendo autores austríacos esuíços, que eles consideram, com justiça, seus compatriotas lite­rários: Stifter e Grillparzer, Keller e Dürrenmatt. De forma se­melhante, a história da literatura francesa deveria incluir Verhae­ren, de Coster, e Maeterlinck, assim como Ramuz, Blaise Cen­dras e Denis de Rougemont. Ao contrário, Joseph Roumanillee Fréderic Mistral, escrevendo na língua provençal, são de nacio­nalidade francesa, mas não são poetas franceses. É a comunida­de cultural e lingüística - dentro da qual regionalismos endêmi­cos e independentes se podem desenvolver à vontade - que ca­racteriza as literaturas individuais. Idéias e ideais políticos sozi­nhos não constituem fronteiras literárias. A literatura da Alema­nha Oriental ou a literatura da Alemanha Ocidental, por exem­plo, não são conceitos críticos mas apenas conveniências jorna­lísticas. A comparação de literaturas individuais ou de partes de­las era o objetivo dos primeiros comparatistas no sentido técni­co da palavra, aqueles que, no início do século XX, lançarameste novo modo crítico, como os críticos franceses Paul Hazarde Fernand Baldensperger, Paul Van Tieghem e Jean-Marie Carré.

A confrontação de literaturas individuais não é, evidcntc­mente, um empreendimento recente. Baseados em análiscs mais

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minuciosas vemos que as literaturas sempre foram postas ladoa lado com o propósito implícito de encará-Ias simultânea e sin­teticamente. Neste sentido, o comparatismo é tão velho quantoa própria literatura. Ele nasceu no dia em que um escritor desco­briu que tinha um colega além das fronteiras de sua esfera lin­güística e cultural. A partir do momento em que os dois estabe­leceram relações vitais entre si através de suas obras, e se deramconta de que suas preocupações e problemas básicos eram idên­ticos ou diferentes, ou seja, comparáveis, pode-se dizer que a li­teratura comparada, apesar de não ser ainda um sistema crítico,surgiu como um ponto de referência para o discernimento e oconhecimento. Tal comunhão intelectual existia flntes de CarlosMagno e a influência moura nos dois lados dos Pirineus; antesde Apuleius que foi educado em Cartago e em Atenas antes deensinar Retórica em Roma; antes de Heliodoro, cuja Aethiopicamarcou a entrada da cultura etíope nas literaturas do mediterrâ­neo; aliás, antes de Alexandre que, dizem as lendas, manteve cor­respondências com os brâmanes da Índia; ou mesmo antes dosjudeus exilados no Egito e na Babilônia. E, mais especificamen­te, é possível datar a literatura comparada a partir de Dante, co­mo Werner P. Friederich doutamente nos mostra, apesar de quequalquer afirmação precisa seria, necessariamente, arbitrária.3 ADivina comédia, em sua inspiração italiana e européia, é o pró­prio símbolo da literatura comparada. A idéia comparatista, quepode ser considerada tão velha quanto a Torre de Babel, ou co­mo Prometeu, a quem Settembrini, em Der Zauberberg chamade den ersten Humanisten, revela-se com um brilho especial nofinal da Idade Média. Petrarca escreve que considera todos os li­vros do mundo seus fiéis companheiros com os quais gosta deconversar de quando em quando.4 No período da Renascença ocosmopolitismo literário estava, mais do que nunca, florescen­do. As guerras literárias mais importantes que estouraram no de­correr do século XVII foram, na realidade, causadas por com­paratistas. Um exemplo muito claro disto é a "Querela dos An­tigos e dos Modernos", cujas fases são testemunhadas e descri­tas por listas de obras tais como a Battle o/ Books, de Swift (es­crito em 1697), e a série de Perrault, Parallêles des Anciens et desModernes (primeiro volume, 1688). Apesar disto, nós estamos,sob o ponto de vista técnico, muito mais no domínio da Weltlite­ratur do que no da literatura comparada, que pressupõe a exis­tência de conceitos críticos modernos.

Alega-se, seguidamente, que a literatura comparada tem seusmétodos críticos específicos. Isto não é bem verdade: o procedi­mento de investigação é basicamente o mesmo, tanto se o assun­to pertencer a uma única literatura, como a várias. Podemos lero Volksbuch vom Doctor Faust [livro de contos populares e ba­ladas do DI. Fausto] impresso por Johannes Spiess (1587) e des­cobrir aí elementos comparáveis aos de Klinger (1791) e ao Faus­to de Goethe (1808). Poderíamos encontrar analogias similaresentre a TragicalHistory o/ Doctor Faustus, de Christopher Mar­lowe (cuja primeira encenação foi em 1594), e a farsa de WilliamMountfort, Life and Death o/ Doctor Faustus (1684). Em ambosos casos estaríamos fazendo um estudo literário em nível nacio­nal. Entretanto, caso incluíssemos neste estudo de Fausto as obrasalemãs e inglesas, ou se ousássemos também levar em considera­ção a obra de Imre Madach, intitulada Tragedy o/ Man (1862),estaríamos penetrando o território do comparatismo, embora amesma quantidade de "comparação" estivesse envolvida ao exa­minarmos o Fausto alemão e o inglês separadamente, deixandode lado o húngaro. Os materiais e as ferramentas - sejam eleslingüísticos ou bibliográficos - mais do que os procedimentosgerais, são diferentes. Torna-se óbvio, então, que a denominaçãoda disciplina pode ser enganadora. Seria melhor que, em vez de"literatura comparada", ela se chamasse "literatura global", jáque su~s diferenças específicas residem na sua natureza abran­gente.

Estes comentários não dizem respeito apenas aos estudos detemática, como no caso do Fausto. Costuma-se aceitar, por exem­plo, que a análise da influência de Shakespeare em Ben Jonsonpertence à erudição inglesa, mas que a análise da influência deShakespeare em SchiI1er, à erudição comparatista. É possível eválido investigar o crescimento do romance epistolar na Ingla­terra do século XVIII, mas também é possível e válido expandiro campo de inquirição à França, Alemanha e outras nações tam­bém. Em breve, todos os caminhos que levam à compreensão ge­ral da literatura - estudos de relações e analogias, movimentose tendências, gêneros e formas, temas e motivos - são os mes­mos também conhecidos e escolhidos pelos eruditos em qualquerliteratura nacional, ou em fragmentos de literaturas naciona~s.É impossível encontrar em qualquer biblioteca do mundo um úni­co livro ou um único ensaio sobre' 'comparatística aplicada" que

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338 LITERATURA COMPARADAUMA FILOSOFIA DAS LETRAS 339

sustente a asserção feita em tantos artigos e tratados de "compa­ratística teórica" de que não somente o assunto, mas também ométodo é significativamente diferente nos estudos de literaturacomparada e de literaturas nacionais. Nos dois tipos de estudo,podemos usar, por exemplo, os métodos sincrônico e diacrôni­co.S Podemos proceder pela dedução ou indução, basear-nos emdocumentos ou detectar analogias. Os fatos e fatores, os meiose técnicas podem variar, mas não existe nenhuma metodologiaespecífica e autônoma da literatura comparada. A. Owen Aldridgeafirma que "o estudo da literatura comparada não é fundamen­talmente diferente do estudo das literaturas nacionais, com exce­ção de que seu objeto de estudo é muito mais vasto, por provirde mais de uma literatura". 6 A semelhança ou identidade meto­dológica entre ambas as disciplinas literárias está implícita na afir­mação de Victor Zhirmunsky: "o estudo comparatista tanto den­tro quanto fora dos limites de uma literatura nacional deve servisto como um princípio fundamental da pesquisa literária".7Em outras palavras, já que todo o estudo literário, seja qual forseu assunto, tem que ser' 'comparativo" e, portanto, tem que sernecessariamente tratado pelo método comparativo, a literaturacomparada, de acordo com o estudioso soviético, é idêntica tan­to à crítica literária quanto à própria literatura. Embora com umaargumentação diferente, René Wellek"em seu livro Teoria da Li­teratura, chegou à mesma conclusão'vinte anos antes.8 Enquan­to Wellek sugere que a literatura comparada é apenas literatura,Zhirmunsky afirma que toda literatura nada mais é do que lite­ratura comparada.

As três maiores escolas de comparatistas - a francesa, a ame­ricana e a russa - concentraram seus esforços em três aborda­gens diferentes da disciplina. Hoje estas "escolas" representampouco mais do que três aspectos gerais da crítica literária aplica­da, especificamente, à literatura comparada. Portanto, os com­paratistas franceses, enquanto sua especialidade estava integra­da à vida acadêmica, simplesmente seguiram a tendência comumentre os eruditos de seu país: combinaram o historicismo e o po­sitivismo com um forte sentimento nacionalista. A França, naverdade, tinha uma grande literatura, mas os franceses achavamque era a maior de todas. Na opinião deles, sua literatura forma­va a espinha dorsal do sistema literário universal, e a tarefa docomparatista consistia em examinar como e por que as costelas

inglesa, alemã, espanhola, italiana e russa estavam ligadas a ela.Esta anatomia literária se reflete nos trabalhos de mestres emi­nentes até meados do presente século; eles estavam preocupadosprincipalmente com fontes e influências, desenvolvimento crono­lógico e evolução. Na "escola francesa", a literatura comparadatem sido, antes de mais nada, uma disciplina secundária dentrodo campo da história da literatura francesa; em vez de interna­cional, ela tem sido, desde então, apenas transnacional em suaabordagem. Há menos de vinte anos, Jean-Marie Carré susten­tava esta idéia: "A literatura comparada é uma ramificação dahistória literária"9, e vinte anos antes Paul Van Tieghem tinhajá declarado: "Uma idéia clara e distinta de literatura compara­da supõe, em primeiro lugar, uma idéia clara e distinta de histó­ria literária, da qual ela é uma ramificação' '.10 Estas afirmaçõesformam um contraste muito forte com as que são feitas em ou­tros países. Em 1878, Heinrich e Julius Hart declararam em seuDeutsche Monatshejte: "Mesmo que nosso periódico esteja vol­tado, antes de qualquer outra coisa, para os interesses da litera­tura alemã, não devemos esquecer que cada literatura nacionalé somente um ramo na árvore da Weltliteratur, e só pode serapreendida na sua verdadeira significação em relação a esta últi­ma' '.11 Mais recentemente, na França, princípios nacionalistas efactográficos têm dado lugar a visões mais amplas e até a um fértilcosmopolitismo. A distância percorrida durante estas três ou qua­tro décadas pode ser medida por dois livros, ambos com o títuloLa Littérature Comparée; o de Paul Van Tieghem (1931), um do­cumento histórico, e o de Claude Pichois e André-M. Rousseau(1967), um livro-texto contemporâneo escrito ao modo novo.

Enfocar o comparatismo na literatura americana e sua his­tória seria uma idéia absurda: um século e meio não é o suficien­te para construir aquilo que usualmente se entende por tradiçãoliterária, e a literatura americana deve continuar a ser estudadaem contraposição aos seus fundamentos anglo-saxões. Os com­paratistas americanos, no entanto, têm outras razões para nãoadotar um preconceito patriótico como os franceses o fizeram.Os Estados Unidos são uma nação de imigrantes, "uma raça deraças", para citar W. Whitman. A maioria dos críticos america­nos - e isto se aplica também aos canadenses - ainda reconhe­cem a sua antiga pátria cultural em outros continentes, especial­mente na Europa, mesmo sem nunca ter vivido lá. Muitos deles

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possuem, conseqüentemente, uma anima naturaliter comparafis­fica. Além disto, enquanto, via de regra, se exige de professoresde universidades francesas que sejam franceses, nos Estados Uni­dos a cidadania americana não é necessária para a indicação auma cátedra, e, desta forma, o corpo docente de suas faculdadespode apresentar um cunho mais cosmopolita. Tendências comoo New Criticism afetaram o comparatismo mais profundamentenos Estados Unidos do que na França,12onde a teoria é aplica­da à literatura francesa mais do que à literatura mundial. O re­sultado é que a literatura comparada como uma disciplina uni­versitária e um campo de pesquisa acadêmica na América do Nor­te caracteriza-se, por um lado, pela multiplicidade de teorias li­terárias que surgem da mais absoluta liberdade no ensino acadê­mico, e, por outro lado, por uma ausência quase total de preocu­pações nacionalistas. Estes são os dois únicos denominadores co­muns que se detectam entre os comparatistas americanos. Os doisprincípios permitem uma variedade infinita de tendências na in­vestigação e na interpretação literária, e quase não há mais coe­são na "escola americana" do que havia, por exemplo, na "La­ke School" na qual Coleridge, Wordsworth e Southey, longe detrabalhar por objetivos comuns, realizavam seus ideais românti­cos individualmente. A escola americana de literatura compara­da não apresenta um programa ou uma doutrina precisa, maspratica a tolerância e o ecletismo. É a escola em que, para citara frase de Wellek, é "melhor falar simplesmente de literatura".J3

Nos países chamados burgueses e capitalistas, geralmente nãose conhece ou reconhece que Marx e Engels foram dos primeirose mais eloqüentes entusiastas da literatura comparada. No Ma­nifesto do Partido Comunista (1848) eles falam da interdepen­dência universal das nações, tanto na esfera material quanto naespiritual. "As criações intelectuais de cada nação se tornam pro­priedade comum", eles dizem, " ...e das numerosas literaturas na­cionais e locais surge uma literatura mundial"14. Neste caso, en­tretanto, literatura mundial não é mais, como Goethe pensava,um conjunto de obras escolhidas de acordo com padrões estéti­cos, em vez de nacionalistas; ela é a epítome do fenômeno literá­rio universal considerado como um todo. Em outras palavras, éliteratura comparada. Da mesma maneira, o Instituto A.M. Gorkide Literatura Mundial, em Moscou é, na verdade, um Institutode Literatura Comparada.

Na União Soviética, entretanto, de acordo com decisões go­vernamentais, a literatura tem que servir aos interesses do Esta­do, que é como diz o primeiro parágrafo da Constituição: "umestado socialista de trabalhadores e camponeses". O utilitarismoliterário é sempre árido e sem brilho, seja ele racial ou confessio­nal, filosófico ou teológico, econômico ou político. Mais do queoutras escolas, o realismo socialista reforça o realismo social.Quanto a este aspecto, Victor Zhirmunsky pode ser consideradoo porta-voz dos comparatistas soviéticos. O princípio que domi­na e que permeia toda a crítica soviética é o de que a literaturaem todas as suas dimensões é essencialmente um produto da so­ciedade.15

"Os movimentos literários em geral", ele diz, "e os fatos li­terários em particular, considerados como fenômenos inter­nacionais, são, em parte, baseados em desenvolvimentos his­tóricos similares da vida social dos respectivos povos, e emparte, no intercâmbio cultural e literário entre eles. Ao con­siderarmos as tendências internacionais da evolução da lite­ratura, devemos, portanto, distinguir entre analogiastipológicas16 e importações culturais ou 'influências', elasmesmas baseadas nas semelhanças da evolução social"Y

Este conceito da relação entre literatura e sociedade é umcorolário da teoria russa do realismo socialista adotado pelo pri­meiro congresso de escritores soviéticos, em 1934.18 O realismosocialista se tornou a doutrina literária oficial nos países comu­nistas, dando um fim a tendências como o formalismo,19que erabaseado no simbolismo e na análise de estilos e gêneros, e quefoi fortemente promovido por acadêmicos como Victor Shklovsky,Roman Jakopson, Boris Eichenbaum, Yuri Tynyanov e o jovemZhirmunsky. Embora na Rússia a crítica social e socialista possaremontar, pelo menos, a Belinski (1811-1848), ela só constituiuum método coeso de interpretação literária trinta ou quarenta anosatrás.

A objeção tradicional ao ideal literário soviético é que elenegligencia os aspectos estéticos da cultura, parece ignorar a es­pontaneidade da mente humana e hesita ou se recusa a valorizaro individual. Argumenta-se que nenhuma inteligência coletiva pro­duziu beleza, e que toda obra de arte tem um caráter pessoal muitoacentuado. Se a sociedade cria um romance, os habitantes de New-

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gate são os autores de Mol! Flandres, o clã de Harlow, de Claris­sa, os "caballeros" espanhóis, de Dom Quixote, o povo russo,de Eugény Onégin. Nomes de autores, no entanto, estão ligadosa estas obras. Alguém teve que ordenar as cinqüenta mil ou qui­nhentas mil palavras em uma determinada forma. E enquantoestes trabalhos estavam sendo feitos, não houve nenhuma elei­ção: Defoe e Richardson sozinhos, Cervantes e Pushkin sozinhosassumiram a responsabilidade destas obras-primas, e cada umadelas tem sua beleza e seus mistérios exclusivos, que resistem evão além de qualquer análise. Além de tudo, certos hábitos lite­rários e certas formas literárias foram claramente impostos aopovo por um autor, em particular, ou por um grupo de autores.Autores individuais e não a sociedade como um todo - nem mes­mo a sociedade cortesã exclusiva do século XIII - foram os cria­dores do soneto, embora o soneto, evidentemente, tivesseque agra­dar a uma certa classe social.

Os realistas socialistas não discordariam desta argumenta­ção. Eles, no entanto, iriam, certamente, observar que as circuns­tâncias históricas, as situações culturais e as condições institu­cionais formam a infra-estrutura necessária a qualquer trabalhode literatura. Estas condições são os dados primários, e, por as­sim dizer, geológicos. Cada trabalho está profundamente incrus­tado em algum tipo particular de solo humano e se concretizougraças, principalmente, a um meio humano específico. Adolphe,o herói do romance.,.de Constant, e Oblomov, o de Goncharov,ilustram bem um aspecto semelhante da natureza humana: umcerto estado de indecisão e de inércia, a incapacidade de agir. Elessão imagens e símbolos de uma vida passiva: um é claramentefrancês; o outro, sem dúvida, russo. E a linguagem também é umproduto da sociedade, que decide sobre as regras estéticas bási­cas. Em termos políticos, a sociedade é a legislatura; o artistaretém o poder executivo, embora não possa sempre, para come­çar, governar com a maioria. Na maior parte do tempo, no en­tanto, seu mérito pessoal é medido de acordo com padrões queele mesmo não estabeleceu.

As teorias e doutrinas, as opiniões e convicções que pare­cem caracterizar as "escolas" específicas estão longe de ser mo­nopolizadas por qualquer um dos países designados pelos adje­tivos "americano", "russo" e "francês". Etiemble20 pode serchamado um "americano" e Robert Escarpit21 um "russo", en-

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quanto alguns franceses permanecem ... "franceses". Deveria serreconhecido que estas "escolas" representam atitudes específi­cos de comparatistas e aspectos importantes da crítica compara­tista. A história literária mostra que a grande arte tem, de tem­pos em tempos, sido considerada pessoal, impessoal ou coletiva.O romantismo, o formalismo e o realismo socialista são apenasexpressões recentes desta tricotomia. Cada uma destas "escolas"mencionadas contesta ou critica as outras duas por supervalori­zar aqueles aspectos da disciplina que seus próprios seguidoresnão levam suficientemente em consideração. Um tom satírico podeser facilmente detectado neste tipo de crítica circular. Os france-

. ses são criticados por fazerem o papel do oficial alfandegário in­telectual controlando as importações e exportações culturais e pelaavidez em afirmar que seu país ainda tem a moeda literária maisforte. Estes gregos dos tempos modernos parecem sempre olharcom condescendência e mesmo com desacato para o mundo bár­baro que os rodeia. Os americanos são censurados pelo fato denão penetrarem le fond des choses, de praticar um esteticismovago e, como uma nação, que está ainda em busca de uma tradi­ção, pelo prazer em não atribuir importância real às literaturasnacionais. Os soviéticos são reprovados por seu dogmatismo; qual­quer verdade contida no credo russo é recebida com ceticismo,porque tem o sabor de uma ideologia: o realismo socialista foideclarado verdadeiro por uma maioria e serve aos interesses dopartido. De fato, as três teorias se complementam, e nenhum domprofético se faz necessário para prever que nas próximas déca­das o crisol comparatista irá fundi-Ias na substância fundamen­tal da disciplina.

Hoje, pelo menos teoricamente, os princípios gerais e gera­dores da literatura comparada são amplamente aceitos na totali­dade do mupdo acadêmico. O fato de a cultura européia - queinclui todas as culturas nacionais de línguas européias - formarum todo indivisível, já é reconhecido há muito tempo. A críticaocidental, no entanto, ainda reluta em integrar as literaturas doschamados continentes exóticos no corpus litterarum, por nenhumaoutra razão além da simples ignorância destas civilizações e des­tas línguas.22A China, o Japão, o Oriente Médio, as Indias Oci­dentais e a África podem muito bem, como qualquer região eu­ropéia, contribuir para a compreensão da essência da criação li­terária, para definir suas características e determinar critérios para

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I'

344 LITERATURA COMPARADA UMA FILOSOFIA DAS LETRAS 345

julgamentos de valor. A era da hermenêutica nacional terminou,mesmo no Oriente. No Ocidente, acredita-se, em geral, que Ja­mes e Proust não podem ser adequadamente estudados nem en­tendidos independentemente um do outro, nem Poe e Baudelai­re, Scott e Manzoni, Alfieri e Schiller, Hauptmann e Miller. Éraro um estudioso que não se refira a Milton ou a Esopo ao es­tudar o Messias de Klopstock ou as fábulas de La Fontaine. Nasuniversidades cujos administradores conhecem literatura, Tols­toi e Stendhal, Shawe Strindberg, O'Neill e Pirandello nem sempresão interpretados em departamentos e salas de aula diferentes.Tem havido muito empenho em investigarem-se as cicatrizes nocorpo da literatura; apesar disto, freqüentem ente as marcas quepodemos notar em uma análise mais cuidadosa se revelam comomera maquillage.

A literatura comparada representa uma filosofia das letras,um novo humanismo. Seu princípio fundamental consiste na cren­ça na totalidade do fenômeno literário, na negação das autar­qui as nacionais na economia cultural e, como conseqüência, nanecessidade de uma nova axiologia. A "literatura nacional" nãopode constituir um campo de estud023 inteligível devido à suaperspectiva arbitrariamente limitada: a contextualização interna­cional na crítica e na história literária se tornaram lei. A literatu­ra comparada representa mais do que uma disciplina acadêmica.É uma visão globalizante da literatura, do mundo das letras, umaecologia humanístic~, uma Weltanschauung literária, uma visãodo universo culturaC englobante e abrangente. Desde a Antigüi­dade, a educação ideal tem sido um studium generale; a escolafundada na Idade Média se chamou Universitas. A Universida­de do século XX tem-se transformado numa Diversitas. O com­paratismo se destina a restaurar e renovar, no âmbito das letras,o antigo espírito, e reconverter as diversidades em universidades.Na verdade, trata-se muito mais do que de uma reconversão, jáque o comparatismo significa a abolição de qualquer barbari­cum, antigo ou moderno. Na seção "Happiness of the Age" deHuman AII-too Human Nietzsche descreve o novo horizonte in­telectual que o homem pode agora contemplar. Ele não somentepode apreciar todas as culturas passadas e seus produtos, comotambém está próximo às forças mágicas que estão fazendo nas­cer o que poderia ser chamado de universalismo. Enquanto ascivilizações anteriores só podiam ter o prazer da sua autocon-

templação, todo o globo terrestre compartilha interesses literá­rios idênticos e tem objetivos semelhantesY A história culturalda humanidade apresenta a imagem clássica dos círculos concên­tricos. Os primeiros são os da família e da tribo; segue-se o dasnações, e o da humanidade tem que, necessariamente, incluir to­dos os outros. A literatura comparada é o resultado inevitáveldo desenvolvimento histórico geral.

NOTAS

1 Durante os últimos vinte e cinco anos do século XIX, o termo e seus equivalentesforam usados em grande parte da Europa, como "anatomia comparada" ou "lingüísti­ca comparada". Na França, comparatif foi empregado por vezes em lugar de comparé;comparatiste, comparatisme são termos mais recentes. O alemão mudou de vergleichen­de Literaturgeschichte para vergleichende Literaturwissenschaft. Komparatist e Kompa­ratistik (antes Komparativistik) são palavras relativamente comuns. Os ingleses e osamericanos, antes de dizer comparatist, diziam comparativist, mas ainda relutam emaceitar comparatism, comparativism, e agora, pela primeira vez, creio eu, encontramosneste livro comparatistics, que é uma expressão bastante prática. Isto não significaque o termo comparatistics revele de maneira mais adequada a realidade por trás dele;pelo menos ele elimina o confuso comparative. No entanto, geralmente a terminologiacientífica permánece simbólica e precisa de interpretação. Portanto, "física", que etimo­logicamente se refere a "ciência da natureza" não diz respeito à medicina, química,biologia, agricultura, astronomia ou zoologia, embora obviamente estas disciplinas se­jam ramificações das "ciências naturais". De maneira semelhante, a literatura é excluídadas "belas-artes", o que poderia sugerir que a literatura não é "bela", uma arte, umabela arte ou uma arte bela.

2 Yearbook of Comparative and General Literature. Bloomington, Ind. (1968), 5-16.3 FRIEDERICH, Werner & MALONE, David. Outline ofComparative Literaturefrom

Dante Alighieri to Eugene O'Neill. Chapel Hill, 1954.4 Nunc hos, nunc illos percontor; multa vississim / Respondent, et multa canunt et mul­

ta loquuntur! (Ad Iacobum Columna, da Epystole Metrice.)

5 r. Neupokoeva confirma esta afirmação quando diz: "um papel significativo na aná­lise comparativa diacrônica é desempenhado também pelo elemento nacional interno,como por exemplo, a comparação entre romances de Anatole France e o romance doIluminismo francês ou entre o romance épico na literatura russa soviética e os de LeonTolstoi". The Comparative Aspects of Literature in the History of World Literature. In:BANASEVIé, Nikola, ed. Proceedings ofthe Fifth Congress ofThe International Com­parative Literature Association, Amsterdam, 1969, p. 40.

6 Comparative Literature: Matler and Method. Urbana, Il!., 1969, p. 1. Entretanto, Ed­win Koppen, apesar de relutante, responde a sua pergunta afirmativamente: "Hat dievergleichende Literaturwissenschaft, eine eigene Theorie?" In RÜDIGER, Horst, ed. ZurTheoric der vergleichenden Literaturwissenschaft. Berlim, 1971, p. 41-65.

7 On the Study of Comparative Literature. Oxford Slavonic Papers, 13 (1967), 1-13.

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s Alguns autores de definições clássicas insistem mais do que eu na inclusão na disci­plina de estudos sobre inter-relações entre a literatura e outros ramos do conhecimentohumano. Henry H.H. Remak escreve: "A literatura comparada é o estudo da literaturaalém das fronteiras de um determinado país, e o estudo das relações entre a literatura,por um lado, e outras áreas e credos, tais como as artes (cf. pintura, escultura, arquitetu­ra, música), a filosofia, a história, as ciências sociais (cf. política, economia, sociolo­gia), as ciências, a religião, etc., por outro. Em resumo, é a comparação de uma literaturacom outra ou outras, e a comparação da literatura com outras esferas da expressão hu­mana". (Comparative Líterature, its Definition and Function. ln: STALKNECHT, N.& FRENZ, H. Comparative Literature: Method and Perspective, p. 1.) A fórmula con­densada de Aldridge diz: "A literatura comparada pode ser considerada o estudo de qual­quer fenômeno literário da perspectiva de mais de uma literatura nacional ou em con­junto com outra disciplina intelectual ou mesmo várias". (Comparative Literature: Mat­ter and Method, p. 1.) O ut pictura poesis pertence ao domínio da teoria da estética gerale à crítica literária em geral. Já foi amplamente examinado desde Horácio até Lessingpor muitas mentes ilustres. Já que a literatura comparada, especialmente nos EstadosUnidos, absorveu a literatura geral, a questão é freqüentemente abordada pelos compa­ratistas americanos. Mas, obviamente, esta não· é uma preocupação exclusiva dos com­paratistas. Além disto, os exemplos práticos de tais relações são geralmente confinadosa uma única literatura: há estudos sobre pinturas e textos de William Blake, pinturas etextos de Eugene Fromentin. Estas são questões de literatura inglesa e francesa, respecti­vamente. As pesquisas no campo da história das idéias tendem a incluir várias literatu­ras, e são, portanto, mais genuinamente comparativas por natureza.

9 GUYARD, Marius-François. La littérature comparée. Prefácio de Jean-Marie Carré.Paris, 1951, p. 5.

10 La littérature comparée. Paris, 1931, p. 23.

11 "Wenn unsere Zeitschrift sich auch zunãchst den lnteressen der deutschen literaturwidmen soll, so vergessen wir doch nicht, dass jede Nationalliteratur nur ein Zweig amBaum der Weltliteratur ist und allein aus dieser heraus in ihrer wahren Bedeutung erfasstwerden kann" (Deutsche Monatshefte, 1 (1978), 112.

12 Este ponto de vísta é claramente afirmado por Van Tieghem e Carré. Van Tieghem:"Le mot comparée doit être vidé de toute valeur esthétique et recevoir une valeur scienti­fique". (Guyard, La littérature comparée, p. 21.) Carré: "La littérature comparée ne con­sidere pas essent,iellement les oeuvres dans leur valeur originelle, mais s'attache surtoutaux transformations que chaque nation, chaque auteur fait subir à ses emprunts". (Ibid.,p. 6.) De acordo com a escola tradicional francesa, o New Criticism e a literatura compa­rada são duas teorias incompatíveis.

13 WELLEK, René & WARREN, Austin. Theory of Literature. 3 ed. rev. Nova York,1962, p. 49.

14 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. The Communist Manifesto. Trad. F. Engels. No­va York, 1948, p. 13. Ver também: idem. Über Kunst und Literatur. 2 vols. Berlim, 1967(textos selecionados).

15 Anteriormente, Louis de Bonald disse: "La littérature est l'expression de Ia societé".Du style et de Ia littérature (1806). ln: ABBÉ MIGNE. Oeuvres completes de M de Bo­nald. 13 vols. Paris, 1859, p. 3-976. Uma nota explica: "La société se prend ici pour Iaforme de constitution politique et religieuse". Bonald diz que "expression" significa "re­présentation, production au dehors d'un object".

16 "Tipológica" é uma palavra-chave no comparatismo soviético. Refere-se a qualquergrupo característico de elementos da literatura, a obras, por ex., que pertençam a ummesmo gênero ou movimento. Ver CHRAPCENKO, M.B. Typologische Literaturfors­chung und ihren Prinzipien. In: ZIEGENGEIST, Gerhard, ed. Berlim, 1968, p. 17-46.

17 Study of Comparative Literature. Oxford Slavonic Papers, p. 1. A mesma idéia apa­rece no "Methodologische Probleme der marxistichen historisch-Vergleichenden Litera­turforschung, de Zhirmunsky, que está em Aktuelle Probleme, p. 1. "Wichtigste Voraus­sentzung für eine historisch-vergleichende Erforschung der Literaturen. Verschiedener Vól­ker bildet die marxistische Auffassung von der Einheit und Gesetzmãssigkeit des Gesamt­prozesses der Sozialgeschichtlichen Entwicklung der Menschheit, durch die auch die ge­zetzmãssige Entwicklung der Líteratur odder der Kunst als einer ideologischen Überbauers­cheinung bedingt wird". O que Zhirmunsky sustenta é que o desenvolvimento da artee da literatura ocorre de acordo com leis fixas e é paralelo ao desenvolvimento sócio­histórico da humanidade. Desta forma, a sociedade é o substrato necessário da literaturae a literatura, um superestrato acidental - Überbauerscheinung - da sociedade. Umacoleção abundante de estudos sobre a teoria da literatura comparada já existe, escritapor autores soviéticos, tais como o livro de lrina Grigor'evena Neupokoeva, intituladoProblemi Vzaimodeistviia Sovremennykh Literatur; tri ocherka. [Problemas da inter-relaçãodas literaturas modernas; três ensaios]. (Moscou, 1963);Soviet Literary Theories, 1917-1934,de Herman Ermolaev; The Genesis of Socialist Realism (Los Angeles/Berkeley, 1963) ea coleção de artigos intitulada Vzaimosviazi i vzarmodeistvie natsional'nykh Literatur[Inter-relações e interações das literaturas nacionais] (Moscou, 1901).IS Ver ERMOLAEV, Soviet Literary Theories. A definição oficial do realismo socialis­ta dada pela União dos Escritores Soviéticos, de 6 de maio de 1934, diz o seguinte: "Orealismo socialista, o método básico da literatura imaginativa de criação e de crítica so­viética, exige do artista uma descrição fiel e historicamente concreta da realidade no seudesenvolvimento revolucionário. Ao mesmo tempo, esta fidelidade e concretude históri­ca da imagem artística da realidade deve combinar-se com a tarefa da moldagem ideoló­gica e educação do trabalhador dentro do espírito do socialismo". O realismo tambémé interpretado no artigo de Harry Levin intitulado "On the Dissemination of Realism"e no de Béla Kõpeczi, "Le réalisme socialiste en tant que courant littéraire internatio­nal", ambos publicados em: BANASEVIé, ed. Proceedings of the Fifth Congress of the[CLA, p. 231-41 e 371-77 respectivamente.19 Ver ERLICH, Victor. Russian Formalism. History - Doctrine. 2~ ed. Haia, 1965.

20 Autor de Comparaison n'est pas raison: Ia crise de la littérature comparée? Paris, 1963.

21 Autor de Sociologie de la littérature. Paris, 1964. Ver também GOLDMAN, Lucien.Pour une sociologie du romano Paris, 1964.22 A crítica chinesa e japonesa, por incrível que pareça, se preocupa bem menos coma literatura européia do que a crítica européia se preocupa com as literaturas da Ásia.23 O testemunho de Friedrich Schlegel em Über das Studium der griechischen Poesie éum dos mais convincentes: "Wenn die regionellen Theile der modernen Poesie aus ihremZusammenhang gerissen, und'als enzelne für sich bestehende Ganze betracht werden,so sind sie unerklãrich".

24 Menschliches, Allzumenschliches. 2 vols. Berlim, 1967, p. 2-93.

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AUTORES

HUTCHESON MACAULAY POSNETT - Irlandês, radi­cado na Nova Zelândia, o Professor Hutcheson MacaulayPosnett declarou certa vez ter sido o primeiro crítico a ela­borar os "métodos e princípios" da Literatura Compara­da. De fato, seu livro, cujo título é o nome da disciplina ­Comparative Literature (1886) - foi o primeiro em línguainglesa dedicado exclusivamente ao assunto.

Influenciado pelos conceitos sociológicos de HerbertSpencer e Sir Henry Maine, e baseando-se na equação emvoga à sua época entre as normas literárias e as de ordembiológica e social, Posnett procura aplicar a tese da progres­são da vida comunitária para a individual à história da lite­ratura, e acaba traçando um panorama apressado da evolu­ção da literatura, num movimento que se estende do parti­cular para o geral.

Apesar das limitações óbvias, resultantes da abordagemadotada, que fazem de Posnett um típico crítico da segundametade do século XIX e dão a seu livro o teor de tratadoà maneira científica, este vale, ademais do aspecto históri­co, como tentativa de construção de uma história da litera­tura de âmbito universal.

O trecho escolhido é um capítulo do livro em questão,em que o autor discute o pensamento e o método compara­tista, e procura estabelecer suas relações com a Literatura.

JOSEPH TEXTE (1865-1900)- Foi o primeiro crítico fran­cês a fazer uso dos princípios, métodos e teorias da Litera­tura Comparada apresentados por Ferdinand BruneW:re nolivro L'évolution des genres dans l'histoire de Ia littérature

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ber. Ele é também um dos primeiros europeus a reconhecera importância dos estudos comparatistas que se vinham de­senvolvendo então nos Estados Unidos.

FERNAND BALDENSPERGER - Professor de Literatu­ra Comparada na Universidade de Sorbonne e professor vi­sitante em diversas universidades norte-americanas, FernandBaldensperger foi fundador, junto com Paul Hazard, da Re­vue de Littérature Comparée (1921), um dos principais ór­gãos dedicados às pesquisas comparatistas, e autor, em co­laboração com Werner Friederich, da famosa Bibliographyof Comparative Literature (1950), tida por muitos como omarco inicial dos modernos estudos de Literatura Compa­rada.

Historiador da literatura e bibliógrafo incansável, Bal­densperger deu grande impulso ao desenvolvimento do COI11-

BENEDETTO CROCE - A contribuição de Benedetto Cro­ce (1866-1952)para os estudos literários é amplamente co­nhecida. Além de seus trabalhos sobre estética em geral, den­tre os quais o volume com este título (1902), em que desen­volve sua teoria da intuição como expressão, de enorme re­percussão em todos os setores de atividades artísticas, Cro­ce produz textos sobre Dante, Ariosto, Shakespeare, Corneillee Goethe, entre outros, e grande quantidade de ensaios crí­ticos de cunho bastante indagador, como os que põem emxeque as teorias tradicionais sobre os gêneros literários.

Embora os estudos de Croce sobre literatura e estéticasejam de natureza eminentemente comparatista, e voltadospara preocupações que transcendem barreiras nacionais e lin­güísticas, o autor reagiu ao longo de sua carreira à maneiracomo a Literatura Comparada vinha sendo praticada, so­bretudo no que diz respeito aos estudos de Stoffgeschichtee de fontes e influências, e procurou inovar a disciplina, ques­tionando seus métodos e técnicas em curso.

O presente texto é um dos mais significativos entre aque­les que indagam sobre o conceito de Literatura Compara­da. Aqui, Croce discute a questão do método comparatistae a possibilidade de a Literatura Comparada vir a constituiruma disciplina.

- 350 LI1ERATURA COMPARADA r(1890), de grande impacto à época de sua publicação. Discí­pulo de Brunetiere, Texteo ultrapassa, contudo, tanto no do­mínio sistemático dos métodos da Literatura Comparada,quanto na aplicação desses métodos ao estudo de literatu­ras européias modernas.

Grande estudioso da inter-relação das literaturas, Jo­seph Textefoi um dos defensores da tese do cosmopolitismoliterário, orientação que amparou, durante muito tempo, aLiteratura Comparada. Embora considerasse essencial a pre­servação do aspecto nacional de determinada literatura, eleclamava que o historiador literário deveria estender seus co­nhecimentos além das fronteiras de seu país e dedicar suasenergias ao estudo das influências e atuações recíprocas en­tre as diversas literaturas nacionais. Seus principais livros,voltados primordialmente para a questão das fontes e influên­cias, são hoje estudos clássicos de crítica e historiografia li­terária.

Joseph Texte inaugurou, em 1896, a cátedra de Litera­tura Comparada na Universidade de Lyon e ministrou nosanos subseqüentes uma série de conferências sobre o assun­to na Sorbonne.

LOUIS PAUL BETZ - Outro grande defensor do cosmo­politismo literário, o alsaciano Louis Paul Betz (1861-1904),professor da Universidade de Zurique, é o autor de La litté­rature comparée: essai bibliographique (Estrasburgo, 1900),que serviu de base à famosa Bibliography of ComparativeLiterature, de Baldensperger e Friederich.

Mas, a contribuição de Betz à Literatura Comparadanão se restringe a este trabalho. Seus ensaios críticos, igual­mente importantes, abrangem um amplo espectro e voltam­se sobretudo para a questão das relações entre as diversasliteraturas. São estudos na maioria das vezes de fontes e in­fluências, em especial sobre as literaturas de língua francesae alemã, mas com uma abrangência que aponta inclusiveparaa transcendência do âmbito estritamente literário.

Betz concebia a Literatura Comparada não como umnovo método, mas como uma nova categoria dos estudos li­terários e chamava a atenção para a necessidade de amplia­ção desses estudos, relacionando-os com outras áreas do sa-

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paratismo na França, mas a perspectiva que adotou em seusensaios foi evidentemente historicista, à maneira tradicional,e seu método documental, voltado para a necessidade de com­provação de um contato real entre autores e obras ou entreautores e países. Por este método, que definiu a linha da Re­vue de Littérature Comparée durante todo o período em quefoi seu co-diretor, Baldensperger estimulou grandemente osestudos de fontes e influências e ampliou o interesse, já con­siderável na época, pelo acompanhamento do destino dasobras, ou, melhor, de sua "fortuna crítica" dentro e forado país de origem.

Como os demais membros da chamada "Escola Fran­cesa" de Literatura Comparada, Baldensperger defendeu ocaráter internacional da disciplina, mas apenas pela ópticabinária que a opõe aos estudos de literaturas nacionais.

PAUL VANTIEGHEM - Foi dos primeiros a procurar sis­tematizar a teoria e os métodos da Literatura Comparadaem uma espécie de manual normativo, intitulado La littéra­ture comparée (1931),que se tornou um clássico da discipli­na, tanto na França quanto no exterior.

De orientação nitidamente historicista, em consonân­cia com a tradição francesa dos estudos literários, a obra deVan Tieghem constituiu um marco nas pesquisas ainda in­cipientes de Literatura Comparada, e seu autor foi um dosiniciadores da chamada "Escola Francesa", termo empre­gado para designar um grupo representativo de estudos emque predominavam as relações "causais" entre obras ou en­tre autores.

O autor definiu o objeto da Literatura Comparada co­mo o estudo das diversas literaturas em suas relações recí­procas e distinguiu Literatura Comparada de Literatura Ge­ral, considerando a primeira como um ramo tanto da segundaquanto da historiografia literária, e restringindo a atuaçãodo comparatista à pesquisa do que chamou de "fatos co­muns a duas literaturas parecidas".

A despeito dessa postura que adotou sobre a Literatu­ra Comparada, a importância de Van Tieghem para o de­senvolvimento do comparatismo é inegável, e seu livro, tra­duzido para vários idiomas, foi, durante muitos anos, o ma-

'I nual por excelência da disciplina, utilizado pela maioria dasuniversidades da Europa Ocidental.

MARIUS-FRANÇOIS GUYARD - Na linha dos manuaisde Literatura Comparada que se seguiram ao de Van Tieg­hem, La littérature comparée (1951),de Marius-François Gu­yard foi dos de maior repercussão tanto na França quantono exterior, tendo sido traduzido para diversos idiomas e setornado mais um texto clássico sobre o assunto.

Preocupado com a falta de precisão do âmbito e obje­tivos da Literatura Comparada, e com o cunho pouco cien­tífico que a disciplina vinha adquirindo, o autor a define,à maneira da "Escola Francesa" a que pertencia, como "ahistória das relações literárias internacionais" e acentua anecessidade de o comparatista conhecer diversas línguas edominar um instrumental bibliográfico básico.

A definição de Guyard tem o interesse de conferir umtônus mais científico à disciplina e de acentuar seu caráterinternacional, mas está bastante comprometida com a pers­pectiva historicista, e o livro peca pelo teor excessivamentenormativo e pela ênfase que dá aos estudos de fontes e in­fluências. Com tudo isso, porém, é um texto que não podepassar despercebido ao estudioso da Literatura Comparada.

RENÉ WELLEK - Reagindo contra o historicismo causa­lista e sobretudo contra o cunho extraliterário dos estudoscomparatistas de orientação francesa clássica, René Wellekintroduz verdadeira ruptura no comparatismo tradicional eoferece uma das co.ntribuições mais significativas para queele seja repensado e necessariamente reformulado. Sua con­ferência "A crise da Literatura Comparada", pronunciadadurante o 2? Congresso da Associação Internacional da Li­teratura Comparada (AILC/ICLA) realizado em Chapel Hill,em 1958,constitui verdadeiro libelo contra os pronunciamen­tos do grupo francês, representado por Baldensperger, VanTieghem, Carré e Guyard, e uma espécie de marco inicialdo que viria a ser chamado, posteriormente, de "Escola Ame­ricana" de Literatura Comparada.

Influenciado pelo Formalismo russo, a Fenomenolo­gia e o New Criticism norte-americano, Wellek critica com

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1~,1 LITERATURA COMPARADA AUTORES 355

veemência os estudos de fontes e influências, de ordem ex­traliterária e baseados em princípios causalistas, e propõeuma análise centrada primordialmente no texto. Entretan­to, ele não se atém à postura imanentista dessas correntes;ao contrário, considera um complemento fundamental oestudo das relações entre o texto e o contexto em que estefora produzido. A Literatura Comparada, para Wellek, étambém uma atividade crítica, e, como tal, não pode pres­cindir do elemento histórico. Sua crítica incide sobre o his­toricismo tradicional, mas não sobre a dimensão histórica,que não deve ser dispensada na abordagem do fenômenoliterário.

Wellek condena também a distinção entre LiteraturaComparada e Literatura Geral, e o ressurgimento da velhaStoffgeschichte alemã, e aceita a possibilidade de estudoscomparatistas no interior de uma só literatura. Tais aspec­tos, somados à sua postura anti-historicista e à defesa do pri­mado do texto, constituem a base da cisão entre uma supos­ta orientação norte-americana e a francesa clássica e fazemdo autor uma espécie de epígono da nova Literatura Com­parada.

ROBERT ESCARPIT - Adotando uma perspectiva socio­lógica, que o afastava das tendências em voga do compara­tismo francês, o professor da Universidade de Bordeaux, Ro­bert Escarpit, conferiu novo ímpeto aos estudos de Litera­tura Comparada, projetando-os para além das fronteiras es­tritamente literárias.

Embora aceitasse alguns dos conceitos da correntetradicional, representada sobretudo por Van Tieghem eGuyard, tais conceitos adquiriram novas luzes nas pesqui­sas de Escarpit, cujo tônus principal estava sempre volta­do para as relações entre o literário e o social. Assim,noções como as de "transmissão" e "recepção" revestem­se aqui de novos matizes ao reaparecerem transpostas paraa esfera do econômico sob a designação de "distribuição"e "consumo".

Partindo do pressuposto de que a literatura era um fe­nômeno de três dimensões, Escarpit promoveu e realiZou,através do Instituto de Literatura e de Técnicas Artísticas e

de Massas que dirigiu durante anos na Universidade de Bor­deaux, diversas pesquisas sobre o público ledor e antecipoualgumas questões que vieram a ser futuramente retomadase reelaboradas pelo grupo de Constança da Estética da Re­cepção.

CLAUDIO GUILLÉN - Mesmo tendo atuado durante mui­to tempo em universidades norte-americanas, onde desen­volveu a maior parte de suas pesquisas em Literatura Com­parada, a origem espanhola e a formação anterior à sua idapara os Estados Unidos fazem de Claudio Guillén uma dasvozes periféricas mais representativas do comparatismo.

Dotado de imensa bagagem intelectual e conhecedor dediversas literaturas nacionais, Guillén se serve no início deuma perspectiva estético-genética, como a que se observa notexto em questão, em que procura classificar os estudos deinfluência, estabelecendo uma distinção entre sources vécuesgenuinamente genéticas, convenções, técnicas e técnicas e pa­ralelismo. Mas, em seguida, amplia de tal modo o escopode sua visão, que passa a questionar todo método restritivo,tornando-se um crítico combativo do etnocentrismo.

Concebendo a Literatura Comparada como "certa ten­dência ou ramo dos estudos literários, que se ocupa da pes­quisa sistemática de conjuntos supranacionais", e estendendosuas reflexões a conjuntos em um número cada vez maiorde obras de diferentes procedências, sobretudo asiáticas elatino-americanas, Guillén é um dos que mais têm contri­buído para a ampliação das chamadas dimensões leste-oestee universal nos e~tudos comparatistas.

HENRY H. H. REMAK - Na mesma esteira de Wellek,Henry H. H. Remak condena a exclusão da Crítica Literá­ria do domínio da Literatura Comparada e qualquer divi­são rígida entre Literatura Comparada e Literatura Geral,e critica o caráter historicista e extraliterário dos estudos defontes e influências.

Mas a contribuição do autor para o comparatismo nãopára aí. Professor durante longos anos da Universidade deIndiana, Remak publicou vários estudos sobre os princípiose a história da Literatura Comparada como disciplina aca-

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dêmica, e acentuou constantemente o seu cunho abrangen-.te e interdisciplinar. Para ele, a Literatura Comparada nãotem de ter uma metodologia exclusiva, podendo servir-se deuma pluralidade de métodos e dos aportes de variadas cor­rentes teórico-críticas. Do mesmo modo, ela inclui a com­paração da literatura com outras formas de manifestaçõesartísticas, como pintura, escultura, arquitetura e música, ede outras áreas do conhecimento, dentre as quais filosofia,história, ciências sociais (política, economia, sociologia),ciências em geral e religião.

Sua visão da Literatura Comparada, ao frisar a varie­dade de abordagens e a interdisciplinaridade, aponta paranovos caminhos, que serão trilhados também por outros re­presentantes da chamada "Escola Americana", e lhe asse­gura um papel de relevo entre os estudiosos da disciplina.

RENÉ ETIEMBLE - Criticando o etnocentrismo da tra­dição comparatista francesa, que, embora defendesse o ca­ráter internacional dos estudos, tomava sempre como refe­rência a literatura nacional, ou a dos demais países da Eu­ropa Ocidental, Etiemble amplia o escopo do comparatis­mo ao chamar atenção para outras literaturas, como as asiá­ticas, e a insistir que elas sejam tratadas em pé de igualdadecom relação às européias. A partir do conceito de Marx deque as obras de uma nação se tornam propriedade comumde todas as outras, o autor questiona a perspectiva hierar­quizadora dos estudos de fontes e influências, e propõe oque denomina de "invariantes literárias", isto é, a unidadede fundo da literatura como totalidade.

Professor da Sorbonne, onde sucede a Carré, Etiembleprocede a uma revisão criteriosa dos princípios até então do­minantes, e critica com veemência o cunho extrínseco do his­toricismo, que, ao se voltar de tal modo para o estudo dosproblemas marginais à literatura, deixa de lado os textos emsi mesmos. Em seu livro Comparaison n 'est pas raison: Iacrise de Ia littérature comparée (1963), ele julga duramenteos métodos e concepções convencionais que insistem em in­vestigar somente questões periféricas e defende a combina­ção de dois métodos considerados tradicionalmente incom­patíveis, o da investigação histórica e o da reflexão crítica.

i Essa postura combativa e inovadora coloca Etiemble,ao lado de Wellek, como um dos expoentes da nova Litera­tura Comparada.

VICTOR M. ZHIRMUNSKY - Os estudos de LiteraturaComparada já existiam no mundo eslavo desde o século XIX,e a disciplina, embora com o título de Literatura Geral, co­meçou a ser lecionada na Universidade de São Petersburgoem 1870 por Alexander Veselovski. Tais estudos, de ordemna maioria dos casos sociológica, tinham quase sempre co­mo princípio básico a compreensão da literatura como pro­duto da sociedade.

Discípulo de Veselovski, mas também influenciado pe­lo Formalismo, que dominou o universo da Teoria e da Crí­tica Literárias eslavas na terceira década do século XX, Vic­tor Zhirmunsky institui-se como um dos expoentes do com­paratismo russo e seus trabalhos são hoje bastante conheci­dos dentro e fora do Leste Europeu. Baseado na idéia de queos fatos literários devem ser considerados independentementede sua gênese e seu contexto histórico, ele procurou encarara literatura a partir de um sistema de analogias tipológicasque correspondiam sempre a situações similares na evolu­ção social, e distinguiu tais analogias do que chamou de "im­portações culturais", que não passavam, na verdade, de ou­tra forma de designar as "influências".

A proposta desenvolvida por Zhirmunsky, embora pe­que por certos excessos analógicos, e pela preocupação exa­gerada com uma tipologia, prestou grande contribuição àspesquisas comparatistas, sobretudo pela atenção que chamoupara os topoi da tradição popular e legendária, e seu pensa­mento evoluiu no sentido de uma incorporação mais acen­tuada do elemento histórico-contextua1.

CLAUDE PICHOIS E ANDRÉ M. ROUSSEAU - Outromanual francês de Literatura Comparada de grande reper­cussão dentro e fora do país de origem é o de Claude Pi­chois e André Michel Rousseau, que mantém o título dosde Van Tieghem e Guyard - La littérature comparée (1967).Mais rico e atualizado em suas informações, bem como maisabrangente nos conceitos e nas propostas, o livro dcscnvolve, contudo, plano idêntico ao de Guyard, acabando por 11';1

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tar sobretudo de "trocas literárias internacionais" eocupando-se, como aquele, com a caracterização dos elemen­tos que intermediam esses processos. A aceitação que teveesse manual foi tal (a segunda edição, de 1971, esgotou-secom rapidez), que deu origem ao surgimento de nova ver­são, com o título Qu 'est-ce que Ia littérature comparée (1983)e a colaboração de um terceiro co-autor, Pierre Brune!.

A nova formulação ganha em interesse por seu carátermais diaiético e pela discussão em torno das contribuiçõesteóricas recentes. Mas, apesar de sua feição mais modernae da maior explicitação dos conceitos teóricos, os princípiosfirmados nas duas edições anteriores permanecem em vigor.Assim, já não se estabelece a subserviência da LiteraturaComparada à Literatura Geral, pois se quer acentuar a com­plementaridade entre elas, mas ainda se insiste em "coinci­dências, analogias e influências" como o interesse centraldo comparatista.

Na definição de Literatura Comparada proposta pelosautores no capítulo final da primeira edição aqui incluído(que foi mantida na edição da qual Brunel participa), per­manece a preocupação com certa cientificidade, já presentenos manuais anteriores, e o cunho internacional dos estu­dos comparatistas, chamando-se atenção também para a re­lação da literatura com outras áreas do conhecimento.

SIMON JEUNE - Mais um manual, voltado para o ensi­no da Literatura Comparada, mas também de grande reper­cussão, sobretudo pelo seu tom acentuadamente didático, éo Littérature générale et littérature comparée (1968), de Si­mon Jeune.

Seguindo a tradição historicista francesa de Van Tieg­hem e Guyard, mas assimilando ao mesmo tempo algumasdas inovações introduzidas por Etiemble, máxime no que con­cerne ao caráter internacional dos estudos literários, Jeunesitua-se numa espécie de posição intermediária dentro doquadro do comparatismo francês de meados do século. Deum lado, aceita a distinção entre Literatura Comparada eLiteratura Geral, declarando que' 'o ensino da história lite­rária geral é uma extensão da literatura comparada", mas,de outro, declara que as diferenças entre as duas disciplinasse esfumam e tendem a apagar-se. Do mesmo modo, defende

a importância do texto nos estudos de literatura e é um dosgrandes entusiastas do método de "explicação de textos",mas o utiliza na Literatura Comparada com vistas ao esta­belecimento de fontes e influências.

Contraditório em algumas de suas posições, mas sim­ples e direto em sua abordagem das questões propostas, olivro de Jeune marca um momento de transição do compa­ratismo francês e é de utilidade ainda hoje para o estudiosoda disciplina.

JAN BRANDT CORSTIUS - Baseado na idéia de que aLiteratura Ocidental forma uma comunidade histórica de li­teraturas nacionais, que se manifestam em cada uma delas,e de que os movimentos e a crítica literária também demons­tram essa unidade básica, o professor da Universidade deUtrecht, Jan Brandt Corstius, defende com veemência o ca­ráter internacional da Literatura Comparada. Para ele, é so­mente através da abordagem de objetos da pesquisa literá­ria por uma óptica internacional que a disciplina contribuipara o conhecimento da literatura.

Mas, a essa perspectiva, que o aproxima de Etiemblee dos comparatistas integrantes da chamada' 'Escola Norte­Americana", e a que não falta boa dose de intertextualida­de, acrescenta-se também grande preocupação científica comos objetos da pesquisa literária - textos, gêneros, movimen­tos, e inclusive a crítica, que o autor não exclui dos estudosde Literatura Comparada. Brandt Corstius opõe-se, em seusestudos, à perspectiva historicista tradicional, bem como atoda forma de abordagem puramente extraliterária, mas acei­ta, à maneira de ·Wellek, a dimensão histórica dos estudoscomparatistas.

Seu livro, a que pertence o texto em questão, é uma in­trodução prática e datada para iniciantes da Literatura Com­parada, mas tem como interesse, entre outras coisas, discus­sões sobre a oposição entre tradição e originalidade em lite­ratura.

A. OWEN ALDRIDGE - Na esteira da tradição que se vi­nha desenvolvendo no meio universitário norte-americano,depois da crise desencadeada em 1958pelo pronunciamen­to de René Wellek em Chapel Hill, o professor da Universi-

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dade de Il1inois, Owen Aldridge, em livro coletivo com o tí­tulo Comparative Literature: Matter and Method, reúne tra­balhos de diversos especialistas na área e define a disciplinacorno "o estudo de qualquer fenômeno literário pela pers­pectiva de mais de urna literatura nacional ou em relação comoutra disciplina intelectual, ou até mesmo várias' "

Embora o caráter internacional do comparatismo con­tinue sendo um elemento indispensável para Aldridge, a im­portância de sua definição reside na ênfase que o autor con­fere à perspectiva adotada na abordagem do fenômeno lite­rário. Para ele, a Literatura Comparada não é o mero estu­do de obras ou autores de línguas ou nacionalidades dife­rentes, nem muito menos o simples estabelecimento de con­frontos entre literaturas nacionais. O que a disciplina visaé à ampliação da perspectiva do crítico na abordagem da obraliterária. A perspectiva comparatista pode estar voltada pa­ra urna única literatura ou até mesmo para urna obra exclu­siva, mas o olhar do estudioso deve transcender limites es­treitos corno os impostos por fronteiras nacionais, e encararo objeto em questão por urna óptica que permita relacioná­10com um contexto mais amplo e com outras esferas da ati­vidade humana.

Para Aldridge, a mais importante de todas as relaçõesliterárias é a relação entre a literatura e a vida, e é com esteprincípio em mente que ele defende um conceito bastanteabrangente de Literatura Comparada.

WERNER FRIEDERICH - Autor, em colaboração comFernand Baldensperger, da Bibliography of Comparative Li­terature (1950), considerada por muitos corno o marco inicialdos modernos estudos de Literatura Comparada Werner Frie­derich é também um dos que mais lutaram pelo desenvolvi­mento da disciplina nos Estados Unidos e pela sua consoli­dação e autonomia no meio acadêmico norte-americano. O2~ Congresso da Associação Internacional de Literatura Com­parada (AILC/ICLA), que organizou em 1958 na Universi­dade de Carolina do Norte, em Chapel Hill, onde lecionava,marca, sobretudo pelo pronunciamento de Wellek, "A criseda Literatura Comparada", a grande virada nos estudos com­paratistas e o início do que veio a ser designado mais tardede "Escola Americana", em oposição à Francesa.

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Humanista no sentido pleno do termo, Werner Friede­rich vê a literatura corno o produto de amplas tradições cul­turais, que transcendem em muito a história de urna únicanação e acredita que não apenas a literatura, mas a huma­nidade em geral develibertar-se de barreiras corno as impostaspelos conceitos de nacionalidade e comunidade específica.Assim, lutou durante toda a vida pela internacionalizaçãodos estudos literários, desde a época de sua formação aca­dêmica na Suíça, país de origem, até seu estabelecimento de­finitivo nos Estados Unidos, onde transformou a LiteraturaComparada de matéria secundária, quase relegada ao esque­cimento, em urna disciplina fundamental e efervescente, pre­sente na maioria dos currículos universitários.

A atuação de Werner Friederich no campo da Literatu­ra Comparada foi incansável. Além da ensaística que pro­duziu e de sua atividade corno professor em Chapel Hill eoutras universidades americanas, européias e orientais, elefoi o criador, junto com Chandler Beall, do periódico Com­parative Literature (1949) da Universidade de Oregon, e deThe Yearbook of Comparative and GeneralLiterature (1952),e um dos fundadores da AILC, da qual veio a ser presidentemais tarde.

HARRY LEVIN - Professor de Literatura Comparada du­rante cerca de três décadas na Universidade de Harvard eum dos mais pródigos e proeminentes críticos literários norte­americanos de sua geração, Harry Levin sempre reagiu con­tra todo tipo de visão reducionista, corno a que requeria urnadelimitação rígida entre as atividades do crítico e do com­paratista. A grande vantagem da perspectiva comparatista,para ele, reside justamente na possibilidade de encarar a li­teratura corno um conjunto orgânico e acumulativo, em vezde um aglomerado de produtos isolados, e nesse sentido eladeve estar também na base de qualquer atividade crítica.

Do mesmo modo, embora normalmente considerado umrepresentante da chamada "Escola Americana" de LiteraturaComparada, Levincontesta esta divisão,declarando que se tratamenos de urna questão de oposição entre franceses, ou euro­peus em geral, e norte-americanos, do que urna polêmica legí­tima entre duas gerações de comparatistas. Os primeiros, namaioria franceses, estavam sem dúvida mais voltados para uma

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perspectiva centrípeta e os últimos compartilham uma visão deordem mais centrífuga, mas o que isto assinala é uma mudan­ça de orientação nos estudos comparatistas, que constitui a seuver uma saudável manifestação de desenvolvimento.

A contribuição de Harry Levin para a Literatura Com­parada é incalculável, e se acha na maioria dirigida para es­tudos de textos literários. Teórico também da literatura, Le­vin critica a excessiva preocupação metodológica da partede seus colegas, e clama, como no texto em questão, pelanecessidade de se substituir, com mais freqüência, essa preo­cupação pelo exercício mesmo da comparação.

S. S. PRAWER - Apesar do cunho pioneiro do livro de Hut­cheson Posnett, a Literatura Comparada não teve na Grã­Bretanha a mesma fortuna que encontrou na França e nosEstados Unidos, ou mesmo em outros países europeus, co­mo a Alemanha e a Itália. Avessa ao historicismo francês,que constituía a tônica do comparatismo desde o século XIX,e voltada para os estudos tradicionais de Filologia Clássica,a Grã-Bretanha só começa a interessar-se verdadeiramentepela questão em meados do século, quando a disciplina passaa ser discutida em universidades como Aberdeen (1945) eManchester (1953), e é finalmente introduzi da nos currÍCu­los de Essex e Oxford (1964). Mesmo assim, os livros quese publicaram sobre o assunto como os de Gifford, Compa­rative Literature (1969), e de Wrenn, The Idea of Compara­tive Literature, são ainda bastante superficiais e escritos poruma óptica predominantemente impressionista.

É neste sentido que o livro do professor de Oxford, S.S. Prawer - Comparative Literary Studies: an Introduction(1973)- vem preencher um vazio, instituindo-se como o pri­meiro estudo introdutório cientificamente viável sobre a ques­tão. Reagindo contra a idéia ainda vigente nas universida­des britânicas de que a Literatura Comparada adotava umaperspectiva extrínseca e não-específica, em oposição, porexemplo, à Crítica Literária, Prawer procura apresentar umaespécie de tipologia descritiva dos estudos comparatistas edescreve os diferentes tipos de investigação operados por pes­quisadores e críticos que atuaram na área, estabelecendo re­lações entre obras e autores de línguas distintas. A istoacrescentam-se uma discussão sobre a busca do caráter na-

cional na literatura e o estudo de contactos interculturais,representados por questões como a analogia, a tradução ea adaptação.

O texto escolhido é uma amostra do pensamento desteautor que, a despeito de algumas simplificações, resultantestalvez da parca tradição dos estudos comparatistas na Grã­Bretanha, prestou valiosa contribuição ao desenvolvimentoda área em seu país.

ULRICH WEISSTEIN - O livro do professor da Univer­sidade de Indiana, Ulrich Weisstein, a que pertence o extra­to escolhido, publicado originariamente em alemão (1968),e traduzido para o inglês em 1973 sob o título ComparativeLiterature and Literary Theory: Survey and Iniroduction, foiconsiderado, à época de sua publicação, como um dos me­lhores estudos de fôlego sobre o assunto, e constitui aindahoje um item indispensável na formação de qualquer com­paratista.

Criticando a concepção estreita dos representantes or­todoxos da "Escola Francesa", mas, ao mesmo tempo, ques­tionando os excessos das versões mais liberais da "EscolaAmericana", Weisstein apresenta desde uma tentativa de de­finição ou conceituação da disciplina até discussões sobrequestões como influência, imitação, recepção, periodização,gêneros, estilos de época, movimentos, tematologia e rela­ção da literatura com outras formas de atividade artística.E sua posição é sempre lúcida e moderada: combate o his­toricismo tradicional, mas defende a necessidade de rela­cionar-se a abordagem intrínseca de uma obra literária aoestudo do contexto histórico-cultural em que ela surge; de­fende a interdisciplinaridade, mas requer um rigor na abor­dagem interdisciplinar para evitar que se incorra na elabo­ração de meros paralelos ou numa espécie de visão impres­sionista.

A contribuição do Professor Weissteinà Literatura Com­parada é ampla e dinâmica, e, como tal, vem-se reestrutu­rando constantemente até o presente, através de uma ensaís­tica rica e variada.

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FRANÇOIS JOST - O livro do Professor François Jost,da Universidade de Illinois - !ntroduction to ComparativeLiterature (1974)- constitui uma espécie de síntese dos pos­tulados defendidos pela chamada "Escola Norte-Americana"de Literatura Comparada. Defende o primado do texto lite­rário, mas levando em conta as relações da obra com o con­texto em que emerge; retoma a noção de uma comunidadeliterária internacional, que transcende qualquer fronteira lin­güística ou nacional; rejeita distinções rígidas entre estudoscríticos e comparatistas; reconhece a necessidade da inter­disciplinaridade tanto com relação às demais formas de ati­vidade artística, quanto no que concerne aos outros cam­pos do saber; e finalmente prega a abrangência dos estudoscomparatistas, mas ao mesmo tempo chamando a atençãopara a importância de uma metodologia científica, que nãoos deixe incorrer num simples sistema de trocas bilaterais.

Com este complexo de idéias, a que se soma a propostada Literatura Comparada como uma disciplina quadridimen­sional, Jost divide seu livro em cinco partes, discutindo naprimeira a disciplina como um todo, e dedicando cada umadas partes subseqüentes a uma de suas abordagens: relações- analogias e influências; gêneros e formas; e motivos, ti­pos e temas. Tais abordagens são apresentadas por uma du­pla óptica - teórica e prática - e são acompanhadas deexemplos cuidadosamente escolhidos, que levam a conclu­sões sempre de ordem genérica.

A despeito de certos excessos, decorrentes da generali­zação, e da simplicidade de algumas das afirmações, o livroconstitui relevante contribuição para os estudos de Litera­tura Comparada, não podendo deixar de figurar em qual­quer bibliografia sobre o assunto.

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