20
Artigo Original Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons. Texto Digital, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 65 LITERATURA EM MEIO DIGITAL: CULTURA CODIFICADA E “TRANS- RACIONALIDADE” Enrique V. Nuesch * RESUMO: Propomos que a literatura em meio digital contemporânea possui uma dimensão que chamamos de ―trans-racional‖, constituída pela codificação cultural de uma imagem corporal do leitor na mesma materialidade com que se produzem objetos em meio digital. Para isso, visitamos teóricos que analisam como se constroem objetos tecnológicos e digitais e como se recebem desde uma perspectiva fenomenológica. Concluimos que a codificação cultural do corpo no meio digital torna-se ponto de partida para que autores exerçam a sua criatividade. PALAVRAS-CHAVE: Literatura digital. Cultura digital. Objeto digital. Codifcação. Leitor. Introdução Já são conhecidas e célebres as refexões de Borges sobre a escrita, o livro e a leitura, dispersas ao longo de sua obra, e talvez todas conectadas por uma imagem que lhes forma a cifra, a da biblioteca caleidoscópica e semovente de Babel. Entre tantas dessas reflexões, encontra-se a voz de seu narrador especulando sobre o instante em que a leitura deixa de ser um gesto oral e passa a ser uma incorporação silenciosa do que comunicam as páginas sobre as que se arrastram dedos e olhos, instante que faz recair sob o resgistro confessional de um Santo Agostinho que espiara seu mestre, Santo Ambrósio, em pleno ato da leitura: a fines del siglo IV se inició el proceso mental que, a la vuelta de muchas generaciones, culminaría en el predominio de la palabra escrita sobre la hablada, de la pluma sobre la voz. Un admirable azar ha querido que un escritor fijara el instante (apenas exagero al llamarlo instante) en que tuvo principio el vasto Proceso. Cuenta San Agustín, en el libro seis de las Confesiones: "Cuando Ambrosio leía, pasaba la vista sobre las páginas penetrando su alma, en el sentido, sin proferir una palabra ni mover la lengua‖. [...] San Agustín fue discípulo de San Ambrosio, obispo de Milán, hacia el año 384; trece años después, en Numidia, redactó sus Confesiones y aún lo inquietaba aquel singular espectáculo: un hombre en una habitación, con un libro, leyendo sin articular las palabras (BORGES, 1974, p. 714). * Universidade Estadual do Paraná / Universidade Estadual de Londrina, Paraná, Brasil. Imeio: [email protected]

Literatura em Meio Digital

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Artigo original acerca das implicações contemporâneas da literatura em meio digital. Examina-se o fato de haver uma padronização dos modos de acesso aos objetos digitais produzidos pela cultura ligada a computadores. Conclui-se que uma literatura digital que retome e trabalhe sobre tais padrões viria a trazer inovações no campo da experiência estética.

Citation preview

Artigo Original Esta obra est licenciada com uma Licena Creative Commons. Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 65 LITERATURA EM MEIO DIGITAL: CULTURA CODIFICADA E TRANS-RACIONALIDADE Enrique V. Nuesch* RESUMO:Propomosquealiteraturaemmeiodigitalcontemporneapossuiumadimensoque chamamos de trans-racional, constituda pela codificao cultural de uma imagem corporal do leitor na mesma materialidade com que se produzem objetos em meio digital. Para isso, visitamos tericos queanalisamcomoseconstroemobjetostecnolgicosedigitaisecomoserecebemdesdeuma perspectiva fenomenolgica. Concluimos que a codificao cultural do corpo no meio digital torna-se ponto de partida para que autores exeram a sua criatividade. PALAVRAS-CHAVE: Literatura digital. Cultura digital. Objeto digital. Codifcao. Leitor. Introduo JsoconhecidaseclebresasrefexesdeBorgessobreaescrita,olivroea leitura, dispersas ao longo de sua obra, e talvez todas conectadas por uma imagem quelhes formaacifra,a da bibliotecacaleidoscpicaesemoventedeBabel. Entre tantasdessasreflexes,encontra-seavozdeseunarradorespeculandosobreo instante em que a leitura deixa de ser um gesto oral e passa a ser uma incorporao silenciosa do que comunicam as pginas sobre as que se arrastram dedos e olhos, instantequefazrecairsoboresgistroconfessionaldeumSantoAgostinhoque espiara seu mestre, Santo Ambrsio, em pleno ato da leitura: afinesdelsigloIVseinicielprocesomentalque,alavueltademuchas generaciones,culminaraenelpredominiodelapalabraescritasobrela hablada,delaplumasobrelavoz.Unadmirableazarhaqueridoqueun escritorfijaraelinstante(apenasexageroalllamarloinstante)enquetuvo principioelvastoProceso.CuentaSanAgustn,enellibroseisdelas Confesiones:"CuandoAmbrosiolea,pasabalavistasobrelaspginas penetrandosualma,enelsentido,sinproferirunapalabranimoverla lengua.[...]San AgustnfuediscpulodeSan Ambrosio,obispodeMiln, hacia el ao 384; trece aos despus, en Numidia, redact sus Confesiones yanloinquietabaaquelsingularespectculo:unhombreenuna habitacin, con un libro, leyendo sin articular las palabras (BORGES, 1974, p. 714). *UniversidadeEstadualdoParan/UniversidadeEstadualdeLondrina,Paran,Brasil.Imeio: [email protected] Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 66 PareceuaonarradordeBorgesqueesteinstanteselavaodestinodaleitura enquanto ato silencioso, dispensando o leitor, a no ser a convite, da intruso e da escutadoscircundantese,sedefatoconsiderarmostodoocdigoimplicadona oratriaantiga,talvezdetodaumaposturacorporaldadasobainstruodaactio retrica no contexto do quadrivium. Marca-se, pois, uma transformao de postura e derelaodoleitorcomoescrito,oquenodeixadesearticularcomoutras transformaes, da tbua ao pergaminho, do pergaminho ao rolo, do rolo ao cdex, que,igualmentehaver-se-oacompanhadodemudanasdeposio,deusodas mos,deveredesentirocontatocomosuportesobreoqualseacedeao pensamento codificado por outrem ou por si mesmo. OquetratamosdecolocarcomestepromiojuntoaBorgesquetalvezdeva-se pensar,novamente,queummododeresgistraroprodutodofazerintelectuale artsticodetermina,tambm,omododeacederaoproduto,umapostura,uma maneirademanipular,deexperimentaroregistroenquantomatriaqueafetaos sentidos.Ocasoquenosinteressaaqui,daliteraturaemmeiodigital,talvezhoje seja um dos mais evidentes. Se como descrio mnima dos contornos da literatura emmeiodigitalaceitarmosaspalavrasdeKatherineHayles,segundoaqual Electronicliterature,generallyconsideredtoexcludeprintliteraturethathasbeen digitized,isbycontrast'digitalborn',afirst-generationdigitalobjectcreatedona computer and (usually) meant to be read on a computer (HAYLES, 2008, p.3), basta lembrarmosda diferenaentreasditasprimeiras obraseasquelemoshojepara apontarmos para a mudana radical que se opera na postura do leitor. Love Letter Generator (1953), Stochastic Texts (1959), The IBM poem (1966) e Conceptual Typewriter(1970),paramencionarpoemasdasduasprimeirasdcadas,tmem comumacaractersticadeteremoriginalmentesidolegveisemcomputadores institucionais (no pessoais) ou em exposio de arte/tecnologia (no caso do ltimo), dedependeremexclusivamentedapalavraenquantomeiocentraldeexpresso, almde,excetooltimo,teremoresultadofinalvisvel,ainda,naformada impresso em papel, o que os coloca no limite da definio de Hayles. Por sua vez, qualquerexemploquesetomedoqueseproduziunosltimosdezanos,por Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 67 exemplo,dascoleesdaElectronicLiteratureOrganization,solidosem computadorespessoaisjamplamenteacessveis,mesmoempasesem desenvolvimento.Ocontrastequefazemosapenaslembradofatobviodoandar paraleloentrea marchado desenvolvimento/difusotecnolgica eosurgimentode novasformasemaneirasdelerasobras.Noentanto,obviedadedofato, acreditamos,subjazaquestoquequeremosexplorarnesteartigo:talmudana, bempensada,traztonaumatrans-racionalidadedaliteraturaemmeiodigital contempornea, que pode no cobrir a totalidade da produo, mas pelo menos se exibeesecolocaenquantoproblemasobreoqualrefletir.Como seconformauma tal trans-racionalidade e quais consequncias traz para o entendimento do que a literaturaemmeiodigitalcontemporneae,portanto,aprprialiteratura contempornea, o que iremos inquirir no arrazoado que ora apresentamos. A refuncionalizao do objeto tecnolgico Umaprimeiraaproximaoaoproblemapodefazer-seconsiderandoaformacom que se compe aquilo a que Baudrillard (1968) chamou de objeto tecnolgico. Ora, osobjetostecnolgicos,porexemplo,oautomvel,amquinadeescreverouo computador,apresentam-seaoseuusurio,nestaperspectiva,basicamentecom duas sries de caractersticas, a primeira totalmente visvel e a segunda oculta, porassimdenomin-las.AprimeirasrieaquiloaqueBaudrillardchamoude aspectosinessenciais,aquelesquesoobjetodeumestudopsicolgicoe sociolgico,comoosdesejosemotivaesquedeterminamaescolhadeum determinadoobjetotecnolgicoemfunodesuaaparncia,afirmaosocialde suaposse,sua personalizao;asegunda srieremeteaos aspectosessenciais, aquelesquesoobjetodeumestudotcnico,comoaformadefuncionamentodo objeto,quemecanismossoempregadosparaquepossamrealizaras tarefas/funesparaqueforamidealizados,quaisdessesmecanismossouma inovao tcnica e quais so desenvolvimentos ou herdeiros de estados da tcnica anteriores, como se estruturam no objeto para torn-lo o que . Assim, considerando o objeto tecnolgico como um todo, seu estudo h de remeter de uma srie outra, doinessencialaoessencial,trazendotonaofatodeque,portrsdas Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 68 caractersticasquedeterminamoobjetotecnolgicoemsuaformaaparente enquanto item de consumo (e inclusive em sua significao dentro de um imaginrio tecnolgico, por exemplo, nas narrativas de uma ps-utopia apocalptica povoada de ciborguesouumahumanidadeescravizadapelamquina),estumalnguada tcnica a estrutur-lo em sua funcionalidade e capacidades: Entouterigueur,cequiarrivel'objetdansledomainetechnologiqueest essentiel,cequiluiarrivedansledomainepsychologiqueousociologique des besoins et des pratiques est inessentiel. Nous sommes continuellement renvoysparlediscourspsychologiqueetsociologiquesurl'objetun niveau plus cohrent, sans rapport au discours individuel ou collectif, et qui seraitceluid'unelanguetechnologique.C'estpartirdecettelangue,de cette cohrence du modle technique que peut se comprendre ce qui arrive auxobjetsparlefaitd'treproduitsetconsomms,possdset personnaliss (BAUDRILLARD, 1968. p.9-10). Umatallngua,poranalogiaaosistemadalngua,teriaigualmenteosseus fonemasemonemas,quedenominar-se-iamtecnemas,sendo,ento,ahistria dosobjetostecnolgicosahistriadassuastransformaeserearranjosnassua realizaoemfalasquesoosobjetostecnolgicosconcretos,comassuas determinaesinessencias,asquais,seseguirmosaanalogiadeBaudrillard, poderiam corresponder-se com as variaes diatpicas, diastrticas etc.: noussommeslauniveaud'unelangue,etonpourrait,paranalogieavec lesphnomnesdelalinguistique,appelertechnmesceslments techniquessimplesdiffrentsdesobjetsrelssurlejeudesquelsse fondel'volutiontechnologique. Aceniveauilestpossibled'envisagerune technologie structurale quitudiel'organisation concrtede cestechnmes enobjetstechniquespluscomplexes,leursyntaxeauseind'ensembles techniques simplesdiffrents des objets relsques de sens entre ces divers objets et ensembles (BAUDRILLARD, 1968, p.12). Agora, bem, sucede que, comumente, a srie do inessencial, que poderia parecer completamentedeterminadapeladoessencial,refluisobreesta,interferindono mesmonvelsistmicodoobjetotecnolgico(eisondeaanalogiacomalngua termina, de acordo com o autor). assim que, no sistema dos objetos, podem surgir redundncias,arranjos,combinaesepulverizaodefunesemobjetos diversos, que, do ponto de vista da tcnica, podem ser at contraproducentes, mas perfeitamente plenas de sentido no nvel psicossocial. Em outras palavras, o objeto Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 69 tecnolgicopodevirateronveltecnemticoinfluenciadopelasuaexistncia tambm enquanto objeto cultural: lesconnotationsformellesettechniquess'ajoutantl'incohrence fonctionnelle,c'esttoutlesystmedesbesoinssocialissou inconscients, culturels ou pratiquestout un systme vcu inessentielqui vient refluer sur l'ordre technique essentiel et compromettre le statut objectif de l'objet (BAUDRILLARD, 1968, p.14). Desta forma, para alm de pensar em consequncias referentes ao sentido tcnico dosobjetostecnolgicos,pode-sepensartambmqueessaaberturadonvel tecnemticopermiteumasortedeinovaofuncional,namedidaemquetorna-o suscetvelainvestimentosdeordemcultural.Seolharmosparaocomputador pessoal em sua histria recente, v-se que os protetores de tela (ou screensavers) surgiramnosanos70comumasimplesfuno:evitarqueofsforodatela queimasseporcausadaprojeodosraioscatdicosnosmesmospontospor tempoconstante;esepensadaafunodocomputadornoambientelaboral (indstriaeacademia)emquesurgeasuaaplicao,v-sequeoprocedimento trata-se de uma economia de recursos em momento em que o computador no est sendoutilizado(BUCKHOUSEeFALKENBERG,2000).Dopontodevista puramentetcnico,olgicoeraqueamquinafosseprogramadaparadetera projeo de imagem aps algum tempo sem receber inputs do usurio. No entanto, nofimdosanos80,porquantoasmquinasdapocajpossuiamumarazovel capacidadedeprogamaovisuale,portanto,deproduogrfica(isto,claro,em comparaocom as mquinasdosanos70),alguns programadorespensaramque essemomentodeinatividadedamquinapoderiaserpreenchidocomalgum senso esttico. Tecnicamente, para no acontecer a queima do fsforo, bastava com quenohouvesseraiosprojetadossempresobreomesmolocal,efoientoque programadores como Ian MacDonald e Bill Stewart tiveram a ideia ocupar o espao deinatividadecompadresvisuais,primeiro,comimagensemformatosfixos, movendosesobreofundoescuro,depoisimagensmutveis(SOFTWARE DYNAMICS,2015).Emmeadosdosanos90comeou-seapensarquedisto algumaespciede artepoderiasurgir,eno ano2000acontecea primeira exibio artsticadeprotetoresdetela,intituladaRefresh:TheArtoftheScreensaver, Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 70 organizadapeloArtMuseum.net(BUCKHOUSEeFALKENBERG,2000).Emum artigodoNewYorkTimesdapoca,oorganizadordaexibioafirmaqueno ambientecorporativo,theonlywindowoutisyourcomputerscreen,andtheonly thingonyourcomputerscreenispoeticallyimpoverished.Myhopewastobring somesmallmomentofarttothedesktop(BUCKHOUSEapudMIRAPAUL,2000). V-se, assim, que o refluxo do nvel cultural sobre o tecnemtico pode ser fonte de criao artstica e refuncionalizao do objeto tecnolgico. Do objeto tecnolgico manipulao do objeto cultural-digital Particularmente, o computador pessoal em sua forma contempornea pode ser visto comoumobjetotecnolgicoemcamadas,namedidaemquesobreabase, digamos,maispuramentetecnemtica,adohardware,sobrepem-sediversas linguagensascendentementesucessivasemdireodasuperfcie(aquiloqueo usuriocomumv),cadavezmaisabertasaorefluxodonvelcultural.Grosso modo, poder-se-ia especificar em uma sequncia que vai da linguagem de mquina (oudebaixonvel)slinguagensassembly,slinguagensdealtonvel(como C++,Java,Pascal,Python, ActionScriptetc.)eaoqueenquantousurioscomuns encontramosnaformadeaplicativos,programas,comosquaisinteragimos diretamente na superfcie fenomnica do monitor. nesta camada superificial onde se fazem sentir efeitos como a liberdade de personalizar as coisas, como exibio demens,cores,formasdeexibiodearquivosetc.Noentanto,isto,talcomo podemospensarjuntoaBaudrillard,noquerdizerquesobrecamadasmais profundasnoincidamosrefluxosdonvelcultural,joinstanciamoscomo exemplodosprotetoresdetela.Podemosencontrarnareflexocrticasobreo meio digital e tambm na literatura em meio digital contempornea alguns exemplos que nos fazem lembrar que, de alguma forma, suposta liberdade de ao colocada pelainteratividadesubjazemdeterminaesculturaisinsuspeitasansenquanto usurioscomuns.MarkMarino(2006) propequeseleiam oscdigossubjacentes quilo que vemos no monitor ao modo como se decupam discursos: Iwouldliketoproposethatwenolongerspeakofthecodeasatextin Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 71 metaphoricalterms,butthatwebegintoanalyzeandexplicatecodeasa text,asasignsystemwithitsownrhetoric,asverbalcommunicationthat possessessignificanceinexcessofitsfunctionalutility.[...]Ineffect,Iam proposing that we can read and explicate code the way we might explicate a workofliteratureinanewfieldofinquirythatIcallCriticalCodeStudies (CCS) (MARINO, 2006). ComoexemplodeaplicaodapropostadeMarino,pode-seolharotrabalhode Mark Sample (2011), Criminal Code: The Procedural Logic of Crime in Videogames, queoautorlevouconvenodaModernLanguageAssociationacontecidaem 2011. Este examina os cdigos que determinam o desenvolvimento da trama do jogo em funo das escolhas do jogador e entre os arquivos escritos em linguagem C++, encontracomentriosdoprogramadoracercadaexclusodeacidentesareosda tramae,portanto,daprogramao,emfunodoseventosde11desetembrode 2001. Fig. 1 Trecho do arquivo disaster.cpp, de Micropolis. Em Sample (2011). Damesmaforma,pelaviapotica,pode-sepensaremautorescomoAllan Sondheim,TalenMemmotte,noBrasil,GiseleBeiguelman,quetrabalhamasua poesiadeformaaexporoscdigosdeprogramaocomasquaisasmesmasse fazem e se do a ver, em um tipo de composio chamada codework: itisaformofelectronicliteraryworkinwhichtheprotocolsandstructural aspectsofthesupportingtechnology,fromwhich,towhichtheworkis appliedareexploredandexposedwithinthebodyofthetext(MEMMOTT, 2011, p.35). Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 72 Oquetaisprocedimentossugeremquesobasuperfciedoquevemoshuma codificaoqueaantecedeedetermina,inclusive,nosentidodehaveruma codificaoculturalemaonamesmacodificaoinformtica.ComoapontaLev Manovich, pelo fato de a cultura ter-se nas ltimas dcadas codificado digitalmente, o computador j no apenas um objeto tecnolgico com o qual nos relacionamos enquanto artefato. No estamos mais em uma interface em que se trata de tornar mais palatvel e intuitivo o usodo computador, este se tornou uma interface com a cultura, transformou-se em uma de srie interfaces culturais: Asdistributionofallformsofculturebecomescomputer-based,weare increasingly'interfacing'topredominantlyculturaldata:texts,photographs, films, music, virtual environments. In short, we are no longer interfacing to a computerbuttocultureencodedindigitalform.Iwillusetheterm'cultural interfaces'to describehuman-computer-culture interface: theways inwhich computers present and allows us to interact with cultural data (MANOVICH, 2001, p. 80). Oquecolocaaquestodeumapossvelreduodamultiplicidadedacultura. certoqueavulgatadostemposcorrentesemrelaoconectividadedomundo informatizadorezaquetemosacesso,potencialmente,informaoeculturade todasaspartesdoglobo,noentanto,deve-sepensartambmqueacodificao digitaldaculturadizrespeitosformasqueemergemjemambientedigital,por exemplo,aliteraturaemmeiodigital,lembrandoaonossoleitoraspalavrasde Haylescitadasantes,'digitalborn',afirst-generationdigitalobjectcreatedona computer. Se o refluxo do nvel cultural para o nvel tecnemtico pode ter o efeito deabriroobjetotecnolgicocriatividade,elepode,decertaforma,tambm enrijec-lo, e agoranoporumanecessidadetcnica absoluta.Sejaporinrcia ou deliberadamente,ofatoquedeterminadoscdigosculturaisseenrazamna mesmaestruturadofuncionamentodocomputador,tantoemnveldehardware comodesoftware,oqueredundanoestabelecimentodepadres,emprincpio, incontornveis, mas, certamente no muito questionados: Thisencodingisconsistentwiththeoveralltrajectorydrivingthe computerization of culturesince the 1940's, that being the automation of all Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 73 culturaloperations.Thisautomationgraduallymovesfrombasictomore complex operations: from image processing and spell checking to software-generatedcharacters,3Dworlds,andWebSites.Thesideeffectofthis automationisthatonceparticularculturalcodesareimplementedinlow-levelsoftwareandhardware,theyarenolongerseenaschoicesbutas unquestionable defaults (MANOVICH, 2001, p. 91). Istoquerdizerque,comacodificaodoprpriocomputadorenquantointerface cultural, limitantes, tanto do processo de recepo de objetos digitais-culturais, como de sua produo, podem ser introduzidos de uma forma naturalizada, demodo que astrocassedodentrodeumalgicadaseleo,aqualnodeixadeseruma espcie de controle. O autor exemplifica a tendncia citando o caso da programao do Photoshop: whatwasasetofsocialandeconomicpracticesandconventionsnow becameencodedinthesoftwareitself. Theresultisanewformofcontrol, soft but powerful. Although software does not directly prevent its users from creating from scratch, its design on every level makes it "natural" to follow a different logic: that of selection (MANOVICH, 2001, p. 124-5). Eis pelo menos uma das razes, julgamos, de existir uma vasta literatura de tcnicas aplicadasaodesevolvimentodoquenaindstriadainformticasechamade experinciado usurio(user experience):talvezhajaumacertaimagem docorpo do usurio, com espectativas quanto a coportamentos e modos de agir e sentir, que seprojetejuntamentecomacodificaocultural.Bastaexaminarabibliografia usadaparaelaborarummanualrecentesobreassunto,deautoriadeBorscietal (2014), para notar quanto estudo tem-se dedicado ao tema e, interessantemente, o quantoseconsiderambalizaspsicomotoras/cognitivaseculturais na elaboraode critriosdeusabilidadeeacessibilidade.NomanualdeBorscietal.,l-se,por exemplo, como uma psicotecnologia deve ser levada em conta: Webelievethatthepsychotechnologyisbothamediumofsystemsof symbolswhichareorganizedbyrules,restrictions,andknowledge possibilitiesthatforceuserstoacognitiveandculturalmodificationand adaptation(Miesenbergeretal.,2012)andawaytoguideuserstoa cognitiveandculturalreadaptationoftheenvironmentsystem(BORSCIet al., 2014, p.98). certo que a inteno destes estudos , se formos otimistas, sempre a de facilitar o Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 74 usodatecnologiainformtica,amparadoscomoquehdemelhoremtermosde cincias cognitivas; mas se considerarmos a perspectiva de Manovich, pelo lado de umahistriadainseroculturaldocomputadorenquantoconsituintedeuma verdadeirainterfacecultural,taisestudosentramnojogoemummomentoj avanado,quandodiversasquestesdadigitalizaodaculturajestoem andamento e, portanto, com as melhores intenes, h de contribuir para o processo de naturalizao de cdigos culturais em um momento da histria em que j est em cursotodaumaculturadigital,comseusprocessosdeproduoerecepode objetos culturais-digitais. Nesse sentido, parece-nos que tal estado de coisas vem a criar verdadeiras hexeis nos modos de relacionar-se com dita cultura digital e seus objetos culturais-digitais. SepensarmososentidoquehexistemparaBourdieu,podemoslembrarque, dentreastantasformulaesqueelefez,afirmoutambm:bodyhexisspeaks directlytothemotorfunction,intheformofapatternofposturesthatisboth individualandsystematic,beingboundupwithawholesystemofobjects,and chargedwithahostofspecialmeaningsandvalues(BOURDIEU,1992,p.74),o que, acerca da situao da codificao cultural padronizada do meio digital colocada porManovich,enquantoestemeiotornou-seumainterfaceculturaldealcance global, faz pensar em uma distribuio de igual alcance na formao de hexeis na relaodosreceptorescomosobjetosdigitais-culturais.Interessantemente,como afirmam Butler (1996, p.32), Robbins (2000, p.74) e o mesmo Bourdieu (1989, p.62), naconstruodoconceito dehabitus/hexis,oltimoencontrou entreseus pontos de partida as posies do fenomenlogo Maurice Merleau-Ponty acerca de como se conformamhbitoscorporaisdepercepoemotricidade.Semalongarnos demasiadoexplorandoopensamentodestefilsofo,podemosdizerqueelefez, aindanadcadade40,distinesbastantesignificativasparaseentenderhojeo modocomosedarelaodousuriocomomeiodigital,queforambem trabalhadas, nesse sentido, em uma srie de ponderaes acerca da arte digital, por MarkHansen(2006).Basicamente,umadescriodocomportamentohumano precisadistinguirocorpoobjetivo,enquantoorganismobiolgico,docorpo fenomenal (tambm chamado de corpo prprio), enquanto a vivncia do corpo no Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 75 mundo, a qual possui, alm de uma esfera de ao em relao ao mundo material, umaesferaculturalelingustica.Istoquerdizerqueomodocomopercebemosas coisasenossoiremdireodelascarregaconsigojummododeao determinadopelaformacomonossocorpofenomenalserelacionacomelas,ou seja,temosumesquemacorporalpeloqualsabemos,aindaqueintuitivamente, quais so as possibilidades de ao, a posio de nossos membros, o nosso corpo como um todo (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 114). Nossa tomada de conscincia do mundo, antes de dar-se na forma de um eu penso que, d-se na forma de um eu posso(MERLEAU-PONTY1945:160).Agora,aindaqueesteesquemacorporal seja a forma como orientamos a nossa ao no mundo, ele no fixado de uma vez por todas, ele plstico, na medida em que se forma pelo hbito e na medida em que pode se adaptar a situaes em que o corpo objetivo se v atingido pela perda dealgumacapacidadebiolgica(umaamputao,oucegueira,porexemplo)ou adquire uma nova capacidade. Assim, o cego, quando tateia com a sua bengala est objetivamenteusandouminstrumento,mas,defato,seucorpofenomenal incorporou a bengala a seu esquema corporal e a seu modo de perceber e situar-se no mundo material; da mesma maneira, quando conseguimos distinguir as cores, umoutroestilodevisoqueseinauguraemns,novasdistinesdoentorno materialsefazem,eoesquemacorporalseenriqueceereorganiza(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 179). Mutatis mutandis, a incorporao do computador aos nossos hbitos e a digitalizao da cultura, com sua produo de objetos culturais-digitais a serem percebedios, manipulados e sentidos em meio digital, colocou-nos em contato com um novo aspecto do mundo a ser experimentado por meio do computador, com suas interfaces, perifricos etc. Como afirma Cuomo, gliipermediacreano,appunto,'ambientidivita'.Tendonoaprodurreuna 'secondanatura'tecnologicasemprepiinestricabilmenteconnessaalla 'primanatura',tantodastrutturarenonun'tecno-mondo',comeavolte erroneamente si dice, ma una pluralit interconnessa di microambientiinfo-vitali sempre pi complessie sempre pi autonomizzati (CUOMO, 2007). Ora, assim como dizia Merleau-Ponty acerca da reconfigurao da relao do corpo comomundonacapacidadededistinguirascores,quandopassamosa experimentarvivnciasemmeiodigital,outrasreconfiguraesapartirdahode Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 76 dar-se,emrelaoaosdiversosmicro-ambientesinfo-vitaisdequefalaCuomo; objetivamentesempresefalaemusodemquinas,mas,comodizMerleau-Ponty,antesimportaaexperinciapelocorpofenomenal,asrelaesquese configuram entre este e o mundo percebido: Cen'estjamaisnotrecorpsobjectifquenousmouvons,maisnotrecorps phnomnal,etcelasansmystrepuisquec'estnotrecorpsdj,comme puissance de telles et telles rgions du monde, qui se levait vers les objets saisir et qui les percevait (MERLEAU-PONTY, 1945, p.122) Entendendo-se,aqui,queasregiesdomundoeobjetosatomardo-sepela experincia nos ambientes que se abriram pelo meio digital. Se pensarmos face a isso as questes levantadas h pouco, acerca da codificao culturaldocomputadoredosobjetosculturais-digitais,pode-sevislumbrarcomo, diante destes objetos, o seu modo de acesso, percepo e manipulao podem vir a serdeterminados por uma padrozinaodo computadorenquanto interfacecultural dealcanceglobal:umesquemacorporalquesedistribuiglobalmenteenquanto formadeorientaonomeiodigitalederelancionar-secomosobjetosculturais-digitaisqueneleseencontram;poressarazo,especulvamos,talvezhajauma imagemdocorpo(entendidoenquantocorpofenomenal)queseprojeta juntamentecomacodificaoculturaldocomputadorcomodescritaporManovich. Comojmencionamoshpouco,possvelqueumatalpadronizaosed, maiormente, em funo de garantir acessibilidade e universalidade aos modos de se relacionar motora e cognitivamente com o meio digital; porm, no implausvel, ou pelo menos no deve ser descartado como uma forma de paranoia, que possa haver tambm algo de um determinante talvez mais poltico-econmico: Qualquerformadecodicaocultural,cadaformalizaodasintenes, no apenas um instrumento antropogentico de signicao, no se limita a seruma ferramenta social de sociabilidade, no s uma alavanca para participarvidademocrtica,mastambmumacompetnciaque predeneasformasdessamesmaparticipao,hierarquizando-as(BALDI, 2013, p. 570). Semjulgaraquiaquesto,emuitomenosdiminuir-lheaimportncia,quisramos, Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 77 pornossolado,pensaremumlado,porassimdiz-lo,positivodoproblema,que corresponde ao que anunciamos acima como uma trans-racionalidade na literatura em meio digital. A trans-racionalidade da literatura em meio digital Se,comodiziaBourdieulogoacima,umahxiscorporalengaja-nosemum sistema de objetos, tal sistematicidade pode tambm ser o lugar de um solo comum para a comunicao, a qual, no caso do meio digital, dentro da perspectiva em que o abordamos at agora, pode dar-se pela posse de um mesmo esquema corporal de partidaparaoencontrocomosobjetosculturais-digitais,comoosoasobras literrias em meio digital. Nesse sentido, compartilham-se modos de perceber e todo um aspecto gestual do encontro com tais objetos.O mesmo Merleau-Ponty falava-nosdeum aspectogestual,quese fazpresentenaexpressodesignificaesem geral,paraaqumdeserumaexpressopropriamentelingustica,aspectoantes ancoradonofatodequeprojetamoseinvestimosdesignificaoosobjetosde nosso entorno: Le geste phontique ralise, pour le sujet parlant et pour ceux qui l'coutent, unecertainestructurationdel'exprience,unecertainemodulationde l'existence, exactement comme un comportement de mon corps investit pour moietpourautruilesobjetsquim'entourentd'unecertainesignification (MERLEAU-PONTY, 1945, p.225) Ora,ofatodealiteraturaemmeiodigitalter,entreseusmeiosdeexpresso,a multimidialidade que hoje a tecnologia tornou possvel, faz dela, diferena do que apontamosacercadomomentodesuasprimeirasmanifestaes,olugardeuma comunicaoqueapelaainstnciasmaiscorporais,ligeiraspresenasdiretasdo corponosutensliosdeinteratividade(sobretudomouseeteclado),nessassutis presenas virtuais ou a distncia de nosso corpo no cursor que se move (SANTOS, 2006),invocandosentidostteisemotoresdocorpofenomenalimplicadopelo acoplamentoentreleitorecomputador,orientando-se,assim,aumatendnciaque RidgwayeStern(2008)apontamnaartedigitalcontempornea, adepostularuma nova centralidade do corpo: Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 78 Bodyandimagemediateoneanother,andthelocusofperceptionis between and of the two. Media convergence under digitality, thus, increases ratherthandecreasesthecentralityofthebody(RIDGWAYeSTERN, 2008, p. 124). Aoassimfaz-loqueseabreoespaoparaoaspectotrans-racional,que comunicasignificaesnosolocomumdeumcorpopartilhadopormeioda codificao cultural do meio digital. Quando Roberto Simanowski (2011) trata de dar maisumavoltaaoparafusodadefniniodeliteraturaemmeiodigital,instaa diferenciar o sentido de digital entre o que semitico e o que tecnolgico. A lngua,porexemplo, semioticamentedigital,nosentido dequesuaexpressose compedesignosdiscretos,oquenotorna,porexemplo,umsonetodePablo Nerudasalvoemumdocumentonoformatopdfmaisprximodeserumpoema digital.Umaverdadeiraremediaodigitaldopoema,nosentidodetorn-loum poemadigitaltambmemsentidotecnolgico,seriaincorpor-lolgicadas possibilidadesqueomeiodigitalcolocadetrabalharossignoslingusticos, semioticamentedigitais,comsignosno-discretos,implicando,assim,em contrapartida,tambmaincorporaodoprprioprocessodeleituralgicado meio digital: Thecharacterizationofthetermdigitalliteraturethereforepointstothe technological and not to the semiotic notion of the medium. The result of this characterizationisashiftfromlinguistichermeneuticstoahermeneuticsof intermedial,interactive, and performative signs. It is not just the meaning of a word that is at stake, but also the meaning of the performance of this word on the monitor that may be triggered by the reader's action (SIMANOWSKI, 2011, p.32-3). Ora, se o significado de uma palavra,por definio, determinado pelo sistema da lnguadequeelaprovm,qualseriaosistemadeondeproviriaosignificadoda performancedapalavranomonitorquepodeserengatilhadopeloleitor?Parece-nosqueseria,justamente,doaspectotrans-racionalquesecomunicaatravsda configuraodeumasensibilidadecodificadanomeiodigitalequecapazde atravessarinstnciasderecepodotextoliterriosemdependerdeaspectos culturais localizados. Pode-se pensar, assim, na razo pela qual possvel agrupar Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 79 emumacoleocomoaelaboradapelaElectronicLiteratureOrganizationobras produzidasporautoresdasmaisdiversasnacionalidades,tantasdelasemlnguas diferentes e, inclusive, algumas feitas em cooperao de autores de nacionalidades diferentes. certo que muitas das obras ali presentes tm o seu contedo lingustico emlnguainglesa,masofato,anossovermaisnotvel,quetodasapresentam uma operabilidade que sobrepassa os aspectos idiomticos. Uma operabilidade que sefaz,afirmaramoscom AlckmarLuizdosSantos(2013),enquantoumaretrica do meio digital, que ainda eixigira um estudo mais detido. De todas maneiras, uma retricareferenteaomodocomoseocupacorporalegestualmenteoespaodo meiodigital,enoumataxonomiareferenteafigurasdelinguagememsentido estrito,retrica,porfim,acercadecomoasobrasoperamatransformaodo espaoculturalmentecodificadodomeiodigitalemumespaoexpressivo,para aqum do idioma em particular de onde fala o eu lrico/narrador estruturado na obra eemqueosleitoresasrecebem.Finalizandoaintroduoaseulivroacercade poesiacontemporneaanglfona,NerysWilliams(2011)afirmaqueoseuvolume tratoudeproveruminstantneodasenablingcontinuities,theelementsbothof specificdifferenceandofcommonality,the'vulgartongue'whichindividualsrefine accordingtotheirlight,but also accordingtoitsownblazinglights(Williams,2011, p.21);ora,cremosque,emummesmosentido,agoratranscendendoregies idiomticas, a literatura em meio digital contempornea encontra a sua lngua vulgar na operabilidade dada pela codificao cultural do meio digital. Perguntemo-nospeloquetornaumaobracomoLossofgrasp(2010),deSerge BouchardoneVincentVolckaertcapazdeteroseucontedolingusticoemquatro idiomas,acessveis,comoseomendeumdvdfosse,emexecuesseparadas. Em cada uma delas, muda apenas o idioma, restando os demais elementos da obra intactos. Por conta de apresentar, em um e outro captulo, pores longas de texto, certamenteodomniodepelomenosumdosidiomasdevesernecessriopara explorartodasassignificaesemprofundidade;e,noentanto,ficapendendoa questofulcral:porquenohpelomenosumaalteraomnimadoselementos no-lingusticos em funo das diversas tradues? Fossem os matizes semnticos decadalnguasobredeterminantesparaaeconomiadaobra,porcertodeveria Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 80 havertaisalteraes,talcomoalgunsletrismossointradutveisdeumalnguaa outra,emfunodasletrascomqueseescrevemaspalavrasafazeremojogo imagtico/sonoro em cada uma das lnguas (neste caso, recorre-se transcriao, comoapropuseramnossosconcretistas).Parece-nosquehumadimensoda obraqueganhasentidopormeio doselementoslingusticos, mas quese expressa tambmcomalgumaindependnciadeles,porvezesquasetotalindependncia, como no captulo primeiro, no qual o leitor compe melodias pela explorao com o mouse de crculos em cores, o quinto, em que se trata de distorcer a nossa prpria imagem enviada pela webcam, e ainda o sexto, em que se deve escrever um texto, masnamedidaemqueodigitamoselesetransformanotextoqueaobrahavia programadoparaaparecer.Mesmonesseltimocaso,emqueoleitorinstadoa escrever(portanto,adarinputlingustico),selembrarmosdoditoporSimanowski acima,estemjogoaperformancedapalavra,omodificar-sedossignos lingusticos,antesdaquiloquepropriamenteelessignificam.Interessantemente, acercadoproblemadacodificaoculturaldomeiodigital,estaobraaindatem bastanteadizer,pelofatodetematizarjustamenteaperdadecontrolequeos hbitosdavidaligadaconexocomociberespao,balizadapelospadresde codificaodomeiodigital,normalmentetinhamporgarantidos:queaimagem enviada viawebcamao nosso interlocutor seja fiel que vemos em nosso monitor, que a mensagem de texto enviada seja exatamente a que digitamos, quer dizer, que ascapacidadesdoesquemacorporalde nossocorpofenomenalseexeramde acordo a como estamos acostumados. Se olharmos agora paraNew Word Order: Basra (2003), de Sandy Baldwin, a obra se engaja na longnqua tradio, por assim cham-la, dos MODS, as modificaes devideogames.Longnqua,claro,considerandoalinhadotempodaexistncia de videogames, que no vai muito alm dos anos 60. A base da obra o jogo Half Life(1998),cujatramasituaojogadoremcombatesarmados.Agora,ofatode apropriar-se de tal tradio diz bastante sobre a trans-racionalidade da obra. Como ela retoma a linha dos first person shooter, h uma postura j inscrita no modo como oesquemacorporal sedirigeaoambiente circundante,noqualencontrapalavras suspensas e frases no ar ou apoiadas no cho, para as quais a nica ao possvel Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 81 adestruio,oqueimplicar,detodosmodos,umaperformancedaspalavras, novamente.Assim,apesardestasestarememingls,oqueaprincpiopoderia restringiraobraaumcontextoanglfono,aperformancedaspalavraseoeu possodocorpofenomenalsocomunicadospormeiodahexisinscritana codificao cultural do ambiente criado pela obra. LembrandoaindaemalgonalinhadeNewWordOrder,pode-sepensar,mais recentemente,emDearEsther(2012),deDanielPinchbeck,situadotenuemente entreovideogameeanarrativaliterria,oqualtambmretoma asconvenes do first person shooter, no entanto, construindo um personagem que no atira, no tem inimigos, no salta, no corre, apenas anda em direo do ponto em que cometer suicdio saltando de uma torre de comunicao. Neste caso, as razes para tal esto ditasnahistriaquesenarrapelavozdeummonlogointeriore,noentanto,a inevitabilidadedosuicdiomarca-senosensodecontrolesobreopersonagem: apenaspodemosconduzi-loemdireodamorte,porumcaminhoque calculadamentebalizadoporobstculosvisualmenteirrisriosmasefetivamente intrasponveispelasuspensodascapacidadesfsicasatribudasaocorpoque controlamos;sequeramorteemumlocalquenosejaodosuicdioritualzadona tramapermitida,jqueopersonagemtornavidacadavezqueumamorte prematura tentada. Consideraes finais Seaindanosperguntssemosdequesistemasesobressairiamasobrasliterrias emmeiodigitalenquantofalascomumasignificaoerespondssemosquedo sistema de codificao do meio digital, de codificao dos objetos cultrais-digitais, a prximaperguntaasefazerseriaporcomoelaspoderiamseconstituirenquanto usoscriativosdosistema,comoconstruiriamdiscursosqueviessemapropor recombinaesinovadoraserupturasapartirdoselementoseregrasdoprprio sistema. Talvez uma das respostas seria pela via de desautomatizaes das hexeis codificadas nas corporeidades do leitor que passaram a instaurar-se na medida em quenossossentidos foramsendoincorporadospelohbitocotidianode engajar-se Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 82 comomeiodigital.ComoafirmaDavinHeckman(2011),tratandoderetomar posies de Jakobson, iftheliteraryhasJakobsonsviolencewithinitsfolds,thenelectronic literature might direct this violence towards to the very material within which itisorganized.Ifliteraturecarrieswithinitrevolutionarypotential,thena works merit might be measured by the strength of the order it opposes and the wit with which such an opposition is mounted (HECKMAN, 2011, p.5). AformacomoLossofgrasp,acimamencionada,retomaoselementosde comunicaoquenormalmentetm-seaodispor,automatizadosenquanto ferramentas,eosreconfiguracomoverdadeirasperdasdecontatocomum supostorealque,nofundo,codificao,suspendendootoque(grasp)queo corpocodificadoterianaturalizado,ouamaneiracomoNewWordOrdereDear Esther estabelecem um dilogo com as corporeidades fisrt person shooter propondo umaoutraformadeviv-las,taisformasdetrabalhosobreessadimensotrans-racionalquehojeestimplcitanarelaocomomeiodigital,alimentandocom disposiesgestuais,corporais,tteisemveisotrabalholingustico(lrico, narrativo,sonoro)doscriadores,dirigindo,comoquerHeckman,oprpriosistema decodificaoculturalcontraaordemdasformasjcodificadas,parecemserum dos caminhos que se assomam. DIGITAL LITERATURE: ENCODED CULTURE AND TRANS-RACIONALITY ABSTRACT: We propose that contemporary digital literature has a dimension we call trans-racional, whichis consitutedbythecultural encoding of abodilyimageof the readerin the very materialwith whichdigitalobjectsareproduced.Fordoingso,wepassthroughauthorswhomanalyzehow technologicalanddigital objects are constructed and recieved from a phenomenological perspective. We conclude that cultural encoding of the body in the digital medium is a starting point for authors to exercize their creativity. KEYWORDS: Digital Literature. Digital Culture. Digital Object. Encoding. Reader. Referncias BALDI, Vania. A retrica dos automatismos intuitivos. A lgica autoritria dos intermedirios computacionais. In: SILVA, Augusto Soares da. et al. (Orgs). Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 83 Comunicao Poltica e Econmica. Dimenses cognitivas e discursivas. Braga: Aletheia, Publicaes da Faculdade de Filosofia da UCP, 2013, p. 569-79. BAUDRILLARD, Jean. Le systeme des objets. Paris: Galimard, 1968. BORGES, Jorge Lus. Del culto a los libros. In: BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. v.1. Buenos Aires: Emec, 1974. p.713-716. BORSCI, Simone et all. Computer Systems Experience of Users with and without Disabilities. An evaluation guide for professionals. New York: Taylor & Francis, 1994. BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. Traduo de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989. __________. The Logic of Practice. Traduo de Richard Nice. California: Stanford University Press, 1992. BUCKHOUSE, James; FALKENBERG, Merril. Curatorial statement. 2000. Disponvel em: . Acesso em: 20 out. 2014. BUTLER, Judith. Perfomativity's social magic. In: SCHATZKI, Theodore R; NATTER, Wolfgang (eds.). The Social and Political Body. New York: Guilford Press, 1996. p. 29-47. CUOMO, Vincenzo. Media, interfacce e estetica sperimentale. Fogli e Parole d'Arte. Dicembre, 2007. Disponvel em: . Acesso em: 3 dez. 2013. HANSEN, Mark B. N. Bodies in Code. New York: Routledge, 2006. HAYLES, Katherine. Electronic Literature: New Horizons for the Literary. Indiana: University of Notre Dame, 2008. HECKMAN, Davin. Technics and violence in electronic literature. Culture Machine, Open Humanities Press, p.1-14, v. 12, 2011. Disponvel em: . Acesso em: 27 fev. 2014. MANOVICH, Lev. The Language of New Media. Cambridge: M.I.T. Press, 2001. MARINO, Mark. Critical Code Studies. Disponvel em: . 2006. Acesso em: 10 dez. 2014. Texto Digital, Florianpolis, Santa Catarina, Brasil, v. 11, n. 1, p. 65-84, jan./jun. 2015. ISSNe: 1807-9288. 84 MEMMOTT, Talan. Digital Rhetoric and Poetics. Signifying strategies in electronic literature. Malm: Malm University, 2011. MERLEAU-PONTY, Maurice. Phnomnologie de la perception. Paris: NRF, Gallimard, 1945. MIRAPAUL, Matthew. Screen Savers as Artist's Medium. The New York Times. New York, 23 nov. 2000. Disponvel em: . Acesso em: 15 out. 2014. RIDGWAY, Nicole e STERN, Nathaniel. The Implicit Body. In: RICARDO, Francisco (ed.). Cyberculture and New Media. Atlanta: Rodopi B.V., 2008. p. 117-155. ROBBINS, Derek. Bourdieu and Culture. California: SAGE Publications, 2000. SAMPLE, Mark. Criminal Code: The Procedural Logic of Crime in Videogames. Disponvel em: . 2011. Acesso em: 10 dez. 2014. SANTOS, Alckmar Luiz dos. Palavra e imagem na criao potica digital. In: RETTENMAIER, Miguel; Rsing Tania M.K. (Orgs.). Questes de leitura no hipertexto. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2013. p. 15-31. __________. Escrevendo, lendo, escrelendo. Texto Digital, v. 2, n. 1, 2006. Disponvel em: . Acesso em: 18 mar. 2014. SIMANOWSKI, Roberto. Digital Art and Meaning: Reading Kinetic Poetry, Text Machines, Mapping Art, and Interactive Installations. Minneapolis: University Of Minnesota Press, 2011. SOFTWARE DYNAMICS. Screensaver. Disponvel em: . Acesso em: 20 out. 2014. WILLIAMS, Nerys. Contemporary Poetry. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2011. Texto recebido em: 28/03/2015. Texto aceito em: 07/04/2015.