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ALMIR BAULER
LITERATURA INDIANISTA, CIÊNCIA HISTÓRICA E INDIGENISMO NO SÉCULO
XIX: O PROJETO DE NAÇÃO DOS INTELECTUAIS DA REVISTA GUANABARA
(1849-1856).
DOURADOS – 2019
ALMIR BAULER
LITERATURA INDIANISTA, CIÊNCIA HISTÓRICA E INDIGENISMO NO SÉCULO
XIX: O PROJETO DE NAÇÃO DOS INTELECTUAIS DA REVISTA GUANABARA
(1849-1856).
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História da Faculdade de Ciências Humanas da
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) como
parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em
História.
Área de concentração: História, Região e Identidades.
Orientador: Prof. Dr. Protasio Paulo Langer.
DOURADOS – 2019
ALMIR BAULER
LITERATURA INDIANISTA, CIÊNCIA HISTÓRICA E INDIGENISMO NO SÉCULO
XIX: O PROJETO DE NAÇÃO DOS INTELECTUAIS DA REVISTA GUANABARA
(1849-1856).
TESE PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH/UFGD
Aprovada em 06 de dezembro de 2019.
BANCA EXAMINADORA:
Presidente e orientador:
Protasio Paulo Langer (Dr., UFGD) _______________________________________________
2º Examinador:
Thiago Leandro Vieira Cavalcante (Dr., UFGD) _____________________________________
3º Examinador:
Pablo Antunha Barbosa (Dr., UFSB) ______________________________________________
4º Examinador:
Eliane Cristina Deckmann Fleck (Dra., UNISINOS) __________________________________
5º Examinador:
Lucio Tadeu Mota (Dr., UEM) __________________________________________________
AGRADECIMENTOS
Inúmeras são as pessoas que, de alguma forma, contribuíram para a realização desta
pesquisa doutoral e, certamente, merecem a formalização dos meus sinceros agradecimentos.
Agradeço à Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia
do Estado do Mato Grosso do Sul (FUNDECT) pela concessão de bolsa de doutorado que
possibilitou a materialização desta pesquisa.
Ao orientador Protasio Paulo Langer que sempre se mostrou um grande entusiasta deste
trabalho. Pela confiança, parceria e pelas frutíferas conversas que tivemos durante esse
percurso, lhe agradeço muito.
Ao grande companheiro de minha vida, Cicero Nunes da Silva, que, de forma
incondicional, sempre apoiou meus projetos pessoais.
À professora Graciela Chamorro por quem tenho profunda admiração. Felizmente nossa
relação acadêmica transcendeu os seus “muros” e transformou-se em uma relação de amizade.
Desejo imensamente que, em um futuro breve, possamos viajar novamente.
Por último, gostaria de agradecer aos amigos mestrandos e doutorandos do Programa de
Pós-graduação em História da UFGD. Juntos compartilhamos momentos memoráveis em que
dividimos alegrias, angústias, discussões e descontrações que permanecerão em minha
memória afetiva. No entanto, gostaria de destacar três pessoas em particular: Rosely Stefanes,
Maiara Laís Pinto e José Augusto. Agradeço ao universo por conspirar e lhes colocar em meu
caminho. Qualquer tentativa de externar neste espaço o carinho e a amizade que sinto por vocês
seria inglório.
Obrigado a todos/as.
RESUMO
A presente pesquisa doutoral investiga o interesse integracionista contido na discussão
indigenista que atravessa a literatura romântico/indianista, a ciência histórica e antropológica e
a política indigenista oficial de meados do século XIX. Assim, este trabalho parte da hipótese
de que, essa discussão que envolveu considerável parcela da elite política e intelectual do
Império compartilhava o desejo comum de, em um futuro breve, apagar o nativo americano da
composição étnica e social da população brasileira. Essa hipótese foi avaliada através da análise
hermenêutica e compreensiva das publicações romântico/indianistas, histórico/científicas e das
propostas indigenistas contidas na principal fonte de pesquisa que compõe a tese: a Guanabara:
revista artística, científica e literária. Para isso, os textos analisados foram interpelados
enquanto campo de debate sociopolítico. Assim, as análises compreensivas realizadas
estiveram em permanente diálogo com o contexto de sua produção, momento em que a
intelectualidade oitocentista debatia o lugar do índio na história e no futuro da nova nação que
se formava nos trópicos. Desta forma, para além de uma análise exclusivamente artística ou
literária, as publicações romântico/indianistas foram interpretadas enquanto arena de contendas
político/ideológicas, sobretudo no que respeita às distintas e conflitantes convicções históricas
e indigenistas existentes no interior da comunidade literária. Semelhante tratamento foi
aplicado aos textos científicos e às propostas indigenistas que integram o conjunto de fontes
que compõem esta investigação. Mais do que expressar as convicções
indigenistas/integracionistas de seus autores, os distintos textos e gêneros narrativos utilizados
e analisados atenderam ao objetivo de diagnosticar o estatuto histórico e o destino adverso
atribuído ao indígena no futuro do novo país que procurava se projetar frente às demais nações.
Destaca-se, ainda, que as publicações analisadas expressam o desejo consciente de seus autores
em representar o Brasil enquanto país civilizado, ou pelo menos, sinalizam o desejo do
incipiente país em superar o atraso e as contradições internas, como a diversidade étnica e racial
de sua população para, em um futuro próximo, atingir um paralelo civilizatório próximo ao dos
países europeus.
PALAVRAS-CHAVE: Indígenas. Império do Brasil. Romantismo literário. Nacionalismo.
ABSTRACT
The present doctoral research investigates the integrationist interest contained in the indigenous
discussion that crosses the romantic / indianist literature, the historical and anthropological
science and the official indigenous politics of the mid-nineteenth century. Thus, this paper
assumes that this discussion, which involved a considerable portion of the Empire's political
and intellectual elite, shared a common desire to erase the Native American from the ethnic and
social composition of the Brazilian population in the near future. This hypothesis was evaluated
through the hermeneutic and comprehensive analysis of the romantic / indianist, historical /
scientific publications and the indigenist proposals contained in the main source of research that
makes up the thesis: a Guanabara: artistic, scientific and literary journal. For this, the analyzed
texts were challenged as a field of sociopolitical debate. Thus, the comprehensive analyzes
carried out were in permanent dialogue with the context of their production, at which time the
nineteenth-century intelligentsia debated the place of the Indian in the history and future of the
new nation that was formed in the tropics. Thus, in addition to an exclusively artistic or literary
analysis, romantic / Indianist publications were interpreted as an arena of political / ideological
contention, especially with regard to the distinct and conflicting historical and indigenous
convictions within the literary community. Such treatment was applied to the scientific texts
and to the indigenous proposals that are part of the set of sources that compose this
investigation. More than expressing their authors' indigenous / integrationist convictions, the
different narrative texts and genres used and analyzed served the purpose of diagnosing the
historical status and the adverse destiny attributed to the indigenous in the future of the new
country that sought to project itself towards other nations. . It is noteworthy that the publications
analyzed express the conscious desire of their authors to represent Brazil as a civilized country,
or at least signal the desire of the incipient country to overcome the backwardness and internal
contradictions, such as the ethnic and racial diversity of their country. in the near future to reach
a civilizing parallel close to that of the European countries.
KEY-WORDS: Indigenous. Brazilian Empire. Literary romanticism. Nationalism.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
IMAGENS
Imagem 1 – Moema (1866), de Victor Meirelles................................................. 52
TABELAS
Tabela 1 – Importação de escravos (1840-1853) ................................................ 211
ABREVIATURAS E SIGLAS
IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
RIHGB – Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
HGB – História Geral do Brasil.
SUMÁRIO
Lista de Ilustrações ................................................................................................ 7
Lista de abreviaturas e siglas ................................................................................. 8
Introdução ........................................................................................................... 11
Capítulo 1
LITERATURA E NACIONALISMO: SÉCULOS XVIII E XIX................................ 23
1.1. Literatura patriótica e nacionalismo no século XIX ........................................ 23
1.2. Em defesa e em busca de uma literatura patriótica .......................................... 29
1.3. A imagem do índio setecentista em O Uraguai e em Caramuru......................
1.4. O índio redimível em O Uraguai.....................................................................
1.5. O índio redimível em Caramuru.....................................................................
1.6. O Índio redimível em O Guarani.....................................................................
1.7. A remissão do “pecado da gentilidade” em O Uraguai, Caramuru e O
Guarani..................................................................................................................
39
40
47
54
63
Capítulo 2
O INDIANISMO E A CIÊNCIA HISTÓRICA DE GONÇALVES DIAS ................ 69
2.1. Gonçalves Dias: uma breve biografia..............................................................
2.2. O indianismo de Gonçalves Dias na Revista Guanabara: O Gigante de
Pedra.....................................................................................................................
2.3. O indianismo gonçalvino em História Pátria: reflexões sobre os anais
Históricos do Maranhão por Bernardo Pereira de Berredo..................................
2.4. História Pátria reverberou: Resposta à Religião.............................................
2.5. Meditação........................................................................................................
2.6. Brasil e Oceania: contexto histórico de produção do ensaio gonçalvino.......
2.7. Martius e a Decadência Indígena.....................................................................
2.8. A racionalização da decadência indígena em Brasil e Oceania.......................
69
73
79
92
98
109
113
124
Capítulo 3
LITERATURA “PERIFÉRICA” NA REVISTA GUANABARA E O PROCESSO
CIVILIZATÓRIO...........................................................................................................
137
3.1. Regulamento acerca das missões de catequese e civilização dos índios de
1845.......................................................................................................................
137
3.2. Itaé: idílio americano e a moral civilizadora…...............................................
3.3. Aricó e Caocochee: uma voz no deserto e seu contexto histórico....................
3.4. Aricó e Caocochee: uma voz no deserto e sua moral civilizatória....................
3.5. Lucia de Miranda: o combate entre a barbárie e a civilização..........................
Capítulo 4
O ÍNDIO DE CARNE E OSSO: CONQUISTA E CIVILIZAÇÃO NO BRASIL
OITOCENTISTA........................................................................................................
4.1. Apagamento étnico, catequese e civilização dos índios no Império do
Brasil..................................................................................................................
4.2. Francisco Adolfo de Varnhagen e sua concepção de Estado........................
4.3. O Memorial orgânico .................................................................................
4.4. Unidade territorial e integração nacional.....................................................
4.5. A intervenção do Estado na transformação da composição étnica da
população brasileira na concepção de Varnhagen...............................................
4.6. Estado, povos indígenas e o projeto civilizatório de Henrique de Beaurepaire
Rohan............................................................................................................................
Conclusão..........................................................................................................
Referências Bibliográficas...............................................................................
143
152
160
170
181
181
198
201
205
210
231
243
249
11
Introdução
Ao longo da presente tese procuramos diagnosticar o destino e o estatuto atribuído aos
indígenas no contexto político de formação do Estado Nacional brasileiro de meados do século
XIX. Neste momento, intensos e acalorados debates agitavam os círculos intelectuais e políticos
do Império, onde diferentes personalidades discutiam o lugar do índio na história e no futuro
da nova nação. Em comum, encontrava-se o desejo de representar o Brasil enquanto país
civilizado, ou pelo menos, de sinalizar a inclinação do país em superar o atraso e as contradições
internas, como a diversidade étnica de sua população, para, em um futuro breve, atingir um
paralelo civilizatório próximo ao dos países europeus. Esse debate e suas diferentes
perspectivas irão compor nossa tese que pretende demonstrar que, enquanto os herdeiros da
colonização portuguesa e da cultura ocidental projetam o destino da nação brasileira a partir de
seus gabinetes, e igualmente projetam o seu, o nativo americano estava sendo condenado a um
destino adverso.
A hipótese sobre a qual se sustenta nossa tese é a de que, no contexto de formação do
Estado Nacional brasileiro, a discussão indigenista que atravessa a literatura
romântico/indianista, a ciência histórica e antropológica e a política indigenista oficial
compartilhava um desejo comum: o desaparecimento étnico do índio. Compreendemos a
expressão desaparecimento étnico a partir do pensamento nacionalista do Brasil de meados do
século XIX que, diante de seu interesse racial homogeneizante, rogou pela diluição étnica do
índio no conjunto da nação, tanto nos romances indianistas quanto nos debates científicos e,
sobretudo, nas propostas indigenistas. Essa hipótese será submetida à avaliação a partir da
análise das publicações indianistas, científicas e indigenistas contidas em nossa principal fonte
de pesquisa: a revista científica e literária Guanabara (1849-1856).
Destacamos que os textos submetidos à análise compreensiva serão interrogados à luz
do contexto histórico e político no qual foram produzidos. Logo, com o interesse de visibilizar
o ambiente político, intelectual e sociocultural que fomentou as obras, estabeleceremos um
permanente diálogo entre texto e contexto, sobretudo aquele relativo à discussão indigenista.
Assim, interpretados enquanto produtos que refletem questões pertinentes ao seu tempo de
produção, os épicos, poemas e romances indianistas serão tratados enquanto campo de debate
sociopolítico no interior da comunidade literária. O mesmo raciocínio deve ser aplicado aos
textos científicos e às propostas indigenistas que integram o conjunto desta obra. Se os textos
citados pertencem a um campo de debate sociopolítico, como destacamos, torna-se natural a
12
ocorrência de antagônicos posicionamentos políticos entre seus interlocutores. Logo, além
desses divergentes posicionamentos, pretendemos demonstrar as diferentes convicções
indigenistas que alimentaram acirrados debates no interior da comunidade intelectual
oitocentista. Lembremos que, para além da mentalidade de uma elite imperial interessada na
construção de uma imagem identitária ao Brasil, encontravam-se letrados com divergentes
posicionamentos ideológicos, variadas formações e vinculações políticas e sociais com o
Império. Em comum, como já destacamos, havia a preocupação com a integração do indígena
à nova nação.
Para uma melhor compreensão, façamos algumas reflexões que sustentam nossa tese.
No indianismo, versão dominante do romantismo, o indígena sócio-antropológico cede espaço
ao nativo idealizado. Para isso, é depurado etnicamente, contemplado, elevado à categoria de
protagonista e herói de romances e épicos e, algumas vezes, apresentado enquanto aliado do
colonizador. Atributos como a bravura, a coragem e o caráter do índio são positivados e
enaltecidos. No entanto - respeitadas as singularidades dos distintos poetas - ao fim, os
protagonistas do enredo são matizados enquanto etnicamente mortos ou em vias “de”. Em
outros momentos, de forma assimétrica, ganham o espaço de colaboradores sanguíneos da nova
nação que teleologicamente projetava-se branca e europeia. No decurso da tese veremos como
esse índio, literária e politicamente construído, serviu aos interesses da elite intelectual e
política do Império desejosa por fundar uma história pacífica de integração e homogeneização
de suas diferenças.
Assim como na literatura indianista, o campo histórico/científico1 também apresenta
forte vinculação com o debate indigenista. Seguindo a mesma tradição de pensamento
nacionalista, os campos literário, científico e do indigenismo se retroalimentam e igualmente
invocam a integração do nativo do território brasileiro à sociedade nacional dominante. Afinal,
como sublinha Monteiro, neste momento, a emergente literatura patriótica e fundacional que se
1 Consideramos como científicos os produtos históricos produzidos a partir do paradigma historicista que, no
século XIX, estava umbilicalmente associado à formação dos Estados-Nacionais. Conforme Barros, o “historiador
científico” buscava na história “as singularidades, as diversidades, a especificidade de cada sociedade ou processo
histórico”. Distanciando-se da perspectiva universalista dos Iluministas do século XVIII e dos Positivistas no XIX,
os historicistas oitocentistas desenvolvem uma perspectiva historiográfica particularizante que valorizava a
singularidade das localidades e povos específicos. “Neste aspecto em particular, há grandes afinidades entre os
Românticos e os Historicistas”. Como alerta Barros, o que os diferencia é o método: “Se o historicismo iria
desenvolver um rigoroso método de crítica da documentação histórica como base para trazer cientificidade às
reconstituições históricas, os românticos preconizavam um método baseado na empatia e na intuição”. Ao longo
da tese essa afinidade entre os métodos será empiricamente relevada. Para mais informações ver:
BARROS, José D’ Assunção., Teoria da História, vol. II.
13
desenhava, como o romantismo, caminhava de mãos dadas com o conhecimento etnográfico
que se desenvolvia: “assim, poetas e romancistas ancoravam sua obra indianista numa
familiaridade com a etnografia, ao mesmo tempo em que ecoavam as percepções e temas
aprofundados por historiadores e outros estudiosos”.2 O que Monteiro quer nos alertar é que
parte da elite intelectual do Império transitava com tranquilidade entre as narrativas
romântico/indianistas, científicas e, igualmente, participava do debate indigenista imperial. Ao
longo da tese, destacaremos esse trânsito. Entre eles, encontra-se Gonçalves Dias que, ao
mesmo tempo em que se notabiliza na poesia romântica, ganha notoriedade pelos trabalhos
científicos que desenvolve. Os trabalhos etnográficos que realiza, principalmente com os povos
indígenas da Amazônia, alimentam seu indianismo e sedimentam sua obra historicista Brasil e
Oceania, que será analisada em nosso segundo capítulo. O pai do romantismo Brasileiro,
Gonçalves de Magalhães, além de eminente literato romântico, se destaca no Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (IHGB) por seus trabalhos no campo científico, de crítica documental
e do indigenismo. Entre outros, destaquemos ainda o historiador Francisco Adolfo de
Varnhagen que, além de proeminente cientista e autor da primeira grande obra em português
sobre a história do país, História Geral do Brasil (1854), se notabiliza por inúmeros trabalhos
no campo do indigenismo, como seu projeto de reforma estrutural e indigenista dedicado à
nação brasileira, Memorial Orgânico, que será alvo de análise em nosso quarto capítulo.
Como demonstraremos, assim, intimamente imbricados, de distintas formas, a literatura
indianista, a ciência histórica e o debate indigenista oitocentista “celebram” o futuro
desaparecimento étnico do indígena, tornando-se comum entre os intelectuais do Império a
crença de que o alvorecer da história da nova nação sinalizava a extinção da população nativa
que ainda habitava o território brasileiro. Embora a obra História Geral do Brasil de Varnhagen
não inaugure esse pessimismo que atravessa o pensamento intelectual oitocentista, ela ratifica,
fortalece e consolida a teoria fatalista e pessimista aos índios contida no trabalho monográfico
Como se deve escrever a História do Brasil, do alemão Carl Friedrich von Martius. Neste
vitorioso ensaio de 1845, produzido para o concurso historiográfico promovido pelo Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), o cientista bávaro sedimenta as pessimistas e
decadentistas teorias setecentistas3 quando afirma que, em um tempo muito breve, a nação
brasileira não mais contaria, em sua composição étnica, com a presença dos nativos americanos.
Lembremos que a defesa dessa teoria é racionalizada por Martius anos antes, quando, ao
2 MONTEIRO, J. M., Tupis, tapuias e historiadores, p.171. 3 Em nosso terceiro capítulo, apresentamos uma digressão à genealogia dessas teorias fatalistas/pessimistas.
14
regressar à Alemanha após o trabalho etnográfico que realiza no Brasil entre 1817 e 1820, passa
a defendê-la em congressos e artigos científicos, como em O estado de Direito entre os
autóctones do Brasil (1832) e A etnografia da América (1838). Não é à toa que em sua obra
História Geral do Brasil, ao referir-se aos índios, o filho de pai alemão Francisco Adolfo de
Varnhagen, adepto da teoria pessimista do cientista bávaro, notabiliza sua clássica proposição
de que, para tais povos na infância, não há história: há só etnografia.
Para Monteiro, se o isolamento dos índios no pensamento brasileiro já teria se iniciado
com os primeiros escritores coloniais, começou a ganhar contornos mais efetivos com a
construção de uma historiografia nacional, em meados do século XIX. O autor lembra ainda
que, embora a vertente pessimista não fosse a única, foi a que preponderou entre os intelectuais
e políticos do Império, com fortes desdobramentos na política indigenista deste período.4 Na
esteira da proposição de Monteiro e através dos autores e obras que analisaremos,
demonstraremos como essa falta de futuro atravessou, concomitantemente, a literatura, a
ciência histórica, as discussões indigenistas e, em boa medida, procurou coroar o processo
colonial português e a nova ordem civilizatória que se “plantava” no território americano com
a independência.
Entre outras, as obras gonçalvinas e a alencariana que apresentaremos serão elucidativas
a esse respeito. Como veremos, enquanto no indianismo de Gonçalves Dias o nobre nativo do
território brasileiro fora vilipendiado e destruído durante o processo de colonização europeia,
nas composições científicas do autor, como em Brasil e Oceania, essa decadência já teria se
iniciado no período pré-cabralino. Nesta obra, de forma racionalizada, o autor submete o nativo
a um “natural” processo de decadência, acelerado posteriormente pela nova ordem colonial,
mas não desencadeado por esta e, assim, o autor consolida a dominação portuguesa do território
americano. Embora apresente um indianismo diametralmente oposto a Gonçalves Dias, o
romance histórico de José de Alencar O Guarani, igualmente laureou a vitória da colonização
portuguesa, finalizada com o ato da independência e, principalmente, com a conciliação das
diferenças étnicas e raciais da nova nação. Através destes e outros intelectuais do Império,
mostraremos que a ciência histórica, a literatura e, por associação, o indigenismo, abraçaram
uma variedade de respostas, mas, em diversos momentos, complementaram-se.
Finalmente, destacamos que, ao longo de nosso texto, veremos como parte considerável
dos intelectuais responsáveis pela invenção de uma tradição histórica e literária ao Brasil,
procurou conciliar a origem americana do país, representada pela cultura Tupi, com a nova
4 MONTEIRO, J. M., Tupis, tapuias e historiadores, p. 2.
15
orientação civilizatória ocidental herdada da ex-metrópole portuguesa. A solução encontrada
pelos literatos para esse intento foi colocar o indígena no passado de nossa história. Na prática
política dessa atividade, esses intelectuais procuravam enobrecer o nativo americano,
colocando-o enquanto representante histórico de uma ex-colônia que buscava o status de
civilizada. Logo, o país encontrava-se em uma contraditória e difícil posição pois, ao mesmo
tempo em que demandava um nobre passado indígena, no presente, eliminava a presença nativa
para, forçosamente, abrir novas fronteiras à civilização.
Se “parte considerável” da elite intelectual do Império adotou essa prática literária, outra
parte, numericamente inferior, obviamente, a contrariou e a contestou, pois, como já
destacamos, o debate indigenista neste período abraçou uma variedade de respostas. Assim,
densos e acalorados debates sobre a gênese da nacionalidade brasileira e os mecanismos de
integração dos indígenas à nação, atravessaram a vida intelectual do Império. Defensores de
métodos brandos, intermediários e agressivos, ou até mesmo do extermínio indígena, ocupam
as páginas da Revista do IHGB, das revistas científicas e literárias, entre outros periódicos onde
defendem suas posições ou atacam oponentes no campo intelectual e do indigenismo. Entre
eles, encontram-se as críticas ácidas de Varnhagen ao texto historiográfico e de crítica
documental de Gonçalves Dias, História Pátria, publicado na Revista Guanabara, onde o
indianista defende a cultura Tupi enquanto representativa da nova nação que se esboçava nos
trópicos. No decurso da tese analisaremos ainda as acirradas contendas entre Varnhagen e o
indianista e cientista Gonçalves de Magalhães. Em seu artigo Os indígenas do Brasil perante a
história, o pai do indianismo tece duras críticas às proposições anti-indígenas e historiográficas
defendidas por Varnhagen em seu livro História Geral do Brasil. A estes, soma-se Henrique de
Beaurepaire Rohan que, em seu projeto civilizatório e de ocupação das fronteiras em que
defende métodos brandos de conquista, catequese e civilização dos indígenas, tece duras críticas
às propostas indigenistas agressivas, quando não de extermínio, defendidas por Varnhagen em
seu projeto de modernização nacional Memorial Orgânico. Como veremos, de único nestas
contendas, encontrava-se somente o desejo comum de participar da formação, organização e
modernização do recém fundado Estado Nacional brasileiro.
É esse debate nevrálgico sobre o lugar do índio no passado e no futuro da nova “nação”
brasileira que atravessou a literatura, a ciência histórica e a discussão indigenista de meados do
século XIX que pretendemos descortinar na presente tese. Instância significativa do imaginário
nacional, essa discussão espraiou-se e rompeu as fronteiras dos gabinetes políticos do Império
e contou com a participação de figuras de menor envergadura política e social. Indigenistas,
16
sertanistas e políticos de províncias periféricas envolveram-se no “grande” debate, antes ou
após a promulgação da política indigenista do Regulamento de 1845. Em seu artigo Entre o
Gabinete e o Sertão, John Manuel Monteiro sinaliza esse debate e destaca que mesmo após o
ano de 1845, “persistiria ainda por muito mais tempo a cisão entre aqueles que defendiam
políticas filantrópicas e outros que subscreviam a práticas agressivas e intolerantes”.
Conclusivamente, o autor afirma que encontrava-se filantropos no sertão, assim como existiam
patrocinadores de chacinas nas cidades ou ocupando os mais altos postos políticos do Império.5
Para ilustrar sua proposição, Monteiro destaca a defesa da filantropia indigenista realizada pelo
sertanista norte-americano John Henrique Elliott em seu ensaio da década de 1840 Resumo do
Itinerário de uma Viagem Exploradora. Como destaca, além da defesa da filantropia, o Resumo
apresenta a percepção da humanidade e diversidade dos índios e “sublinha a distância entre os
retratos usuais da fereza indígena e o comportamento dócil dos índios diante de tratos
humanitários e decentes.6 Assim como o Resumo do sertanista interessou ao propósito de
Monteiro, o caminho trilhado por Elliott no campo minado da literatura interessou ao nosso.
Referimo-nos ao romance indianista de sua autoria Aricó e Caocochee que caminhou de mãos
dadas com a filantropia indigenista defendida pelo sertanista norte-americano que se aventurou
em um gênero narrativo dominado pelos grandes expoentes da literatura nacional. À filantropia
do sertanista Elliott, contrapõe-se o pessimismo indigenista do “homem de gabinete” Candido
Batista de Oliveira que, na releitura do romance histórico do cronista Rui Díaz de Guzmán,
Lucía de Miranda, demonstra forte pessimismo com a filantropia e, principalmente, com a
política indigenista do Regulamento. Como veremos, estes e outros homens de menor
proeminência social e política envolveram-se no debate romântico/nacionalista que agremiava
a intelectualidade do Império e destilaram suas convicções indigenistas em uma literatura que,
em nossa tese, denominamos de periférica.
********
Embora não seja a única, a principal fonte de pesquisa utilizada nesta tese para fomentar
as discussões anteriormente destacadas será a Guanabara: revista mensal, artística, científica
e literária (1849-1856), criada pelos literatos Manoel de Araújo Porto-Alegre, Antonio
Gonçalves Dias e Joaquim Manoel de Macedo. Em seu primeiro volume, em dezembro de 1849,
5 MONTEIRO, J. M., Tupis, tapuias e historiadores, p.142. 6 MONTEIRO, J. M., Tupis, tapuias e historiadores, p.144-145.
17
o Conselho Editorial afirma tratar-se de um espaço em que seus leitores encontrarão uma
amostra “do estado intelectual da época, e com ele as tendências do pensamento da atualidade”.
Para isso, atribui à geração que nasceu junto com o país, o encargo de “tomar posse da alta
administração” para deixar à nova geração “as balizas da estrada do futuro” que seria alcançada
através de um sistema planejado com vistas à grandeza e à prosperidade.7 Explicita ainda a
vocação nacionalista, romântica e politicamente engajada da revista e a filiação ideológica do
periódico herdada de outras publicações congêneres já extintas que apresentaram semelhante
desejo.
Assim, o Conselho Editorial insere a Revista Guanabara na linha de sucessão de outras
revistas científicas e literárias que na primeira metade do século XIX, principalmente no
período pós-independência, alimentaram a vida política do Império e, sobretudo, tornaram-se
veículos de difusão de um intenso “estado intelectual” patriótico e nacionalista. Entre elas,
encontra-se a Revista da Sociedade Filomática que nasceu através da iniciativa dos estudantes
da Academia de estudos jurídicos da Faculdade de São Paulo em 1833 e a Niterói-revista
brasiliense, criada em Paris no ano de 1836 por Manuel de Araújo Porto-Alegre, Domingos
José Gonçalves de Magalhães e Francisco Sales Torres-Homem. Além de conclamar por uma
literatura utilitária que promova o amor e a glória do país, a Niterói estava imbuída do propósito
de lutar contra o desnivelamento cultural entre a jovem e as “velhas” nações. Com semelhante
proposito, surgem outros periódicos científicos e literários de vida efêmera como a gazeta O
cronista (1836-1839), criada por Justiniano José da Rocha, a Revista nacional e estrangeira
(1839-1840), a revista de ciências, letras e artes Minerva brasiliense (1843-1845), a Nova
Minerva (1845-1846), dedicada às ciências, às artes, à literatura e aos costumes, a Revista Iris
(1848-1849), dedicada à religião, belas-artes, ciências, letras, poesia e romance, a revista Museu
Pitoresco (1848) e ainda, O beija-flor (1849-1850).
De maior longevidade, a Revista Guanabara foi criada em dezembro de 1849 e encerra
momentaneamente o seu primeiro tomo em seu décimo segundo número nos primeiros meses
do ano de 1852. Após longa interrupção, em março de 1854, tem início o segundo tomo da
revista, agora sem a presença do sócio-fundador Antônio Gonçalves Dias. De forma
ininterrupta, Manuel de Araújo Porto-Alegre, Joaquim Manoel de Macedo e o mais novo sócio
da revista, Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, somam doze novos números ao periódico. Seu
terceiro tomo tem início em março de 1855 e encerra-se definitivamente em fevereiro de 1856.
7 Conselho Editorial., Guanabara (Introdução), p. 1-2.
18
Como destaca Lopes, não fosse “a mão aberta de Pedro II”, a Revista Guanabara não teria ido
tão longe.8
É este espaço destinado às atividades científicas e literárias criado pela elite intelectual
do Império que tomamos como nossa principal fonte de pesquisa. A partir dele, propomo-nos
a investigar a intensidade e o teor dos debates travados por seus colaboradores sobre a presença
do índio na história oficial e no futuro da composição populacional da nação brasileira que se
pretendia homogênea, mas que, em sua constituição racial, apresentava-se étnica e socialmente
heterogênea. À luz do contexto histórico de formação e consolidação política do Império,
procuramos identificar as principais imagens, representações e variações polissêmicas
atribuídas aos indígenas que habitavam o território brasileiro através da exegese das publicações
realizadas por intelectuais de distintas filiações literárias: românticos e indianistas, estadistas,
cientistas, historiadores, entre outros. Através destas, procuramos, sobretudo, o discurso
político de seus enunciadores e sua vocação pragmática a fim de se identificar a cisão entre
aqueles que defendiam práticas indigenistas filantrópicas e outros que subscreviam práticas
agressivas e intolerantes, ou ainda, entre aqueles que pretendiam atrair ou repelir, “civilizar” ou
exterminar os indígenas.
Alertamos que a proeminência do gênero literário contido na Revista Guanabara,
principalmente nos anos iniciais, quando Gonçalves Dias ainda participava de seu corpo
editorial, não exclui a presença de outros “gêneros” narrativos, como o histórico/científico e o
debate indigenista. Para Lopes, o fato de a Guanabara e as demais revistas científicas e
literárias não se dedicarem à publicação de maior volume de trabalhos de sentido histórico,
pode ser explicado pela dileção que os pesquisadores de história do Brasil tinham pela Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB), criada em 1839, como espaço
preferencial para estas publicações. Como salienta o autor, além de se dedicar a publicações
que criassem uma memória histórica ao Brasil, a maioria dos colaboradores dos periódicos
literários eram intelectualmente filiados ao Instituto histórico.9 De posse dessa informação,
sinalizamos que, com o propósito de preencher possíveis lacunas, estabelecemos um frequente
diálogo com algumas publicações contidas na RIHGB, principalmente as de caráter histórico,
como Brasil e Oceania, entre outras, não obstante o protagonismo da Revista Guanabara na
presente tese.
8 LOPES, H., A divisão das águas, p. 62. 9 LOPES, H., A divisão das águas, p. 119-120.
19
Mesmo assim, veremos que a ciência histórica não passou despercebida nas páginas da
Revista Guanabara. Encontramos reflexos desse interesse em textos como História Pátria:
reflexões sobre os anais históricos do Maranhão, do cientista/indianista Antônio Gonçalves
Dias. Na análise crítico/documental que realiza ao texto setecentista do administrador colonial
português Bernardo Pereira de Berredo, Dias denuncia a parcialidade escriturária do escritor e,
principalmente, o seu lugar de fala. Em suas documentadas críticas, grita o antilusitanismo do
cientista que, além de denunciar o derramamento de sangue indígena provocado pelo processo
colonial português, se preocupou em posicionar o nativo enquanto representante histórico da
nacionalidade e da história brasileira.
Na agitada luta pela sobrevivência da Revista Guanabara, a defesa de uma literatura
autenticamente nacional – o que justifica a proeminência deste gênero narrativo no periódico -
evidencia o desejo de seus criadores em dar vida e materialidade às cores do país e em tentar
promover uma literatura que sedimente uma memória nacional. Adiante, veremos que essa
sensibilidade romântico/nacionalista estava diretamente permeada pelos acontecimentos
políticos da época e, por isso, em sua análise, esses textos literários foram compreendidos
enquanto produtos históricos. Assim, receberam tratamento analítico, histórico e hermenêutico
e foram interpretados a partir da relação direta de seus autores com o contexto de formação e
afirmação do Estado Nacional brasileiro.
Finalmente, salientamos que é preciso considerar que, neste momento, o contexto
histórico de afirmação dos Estados Nacionais e, em nosso caso, do Estado Nacional brasileiro,
só trará benefícios à ciência histórica. Afinal, a elite intelectual do Império interessada no
fomento de nossa memória, estava ávida por construir uma história nacional particular que,
além da exegese e da crítica documental, incorporou à sua prática escriturária o reconhecimento
da subjetividade do historiador, colocando em xeque o próprio desejo da absoluta neutralidade
por parte dos “arquitetos” da história. O mesmo raciocínio pode e deve ser aplicado à literatura
nacionalista que se desenvolveu neste momento, pois, o interesse pelo particular alimentou e
proporcionou ampla liberdade estética às composições poéticas e nacionalistas produzidas
pelos literatos românticos. Como destaca José d’Assunção Barros, o ponto de desencontro entre
o discurso romântico/literário e o historicista é que, enquanto o primeiro preconiza um método
intuitivo para a construção do conhecimento, o segundo, de inspiração alemã, se utiliza “do
rigoroso método de crítica documental”.10
10 BARROS, J.D’. A., Teoria da História, vol. II, p. 127.
20
Essa aproximação ideológica entre os distintos gêneros narrativos, somado ao debate
indigenista, explica, em parte, a visão teleológica fatalista e pessimista que apresentaram à
presença do índio na futura composição étnico/racial da nova nação que se formava nos trópicos
da América. Assim, admitindo as especificidades e perspectivas civilizatórias dos diferentes
literatos e historicistas, o lugar que se destinava aos povos indígenas era um só: o
desaparecimento étnico através de sua diluição e miscigenação no corpo social do país. Para a
compreensão desta assertiva que norteia a presente tese, os textos literários, histórico/científicos
e indigenistas que serão analisados no conjunto desta obra, foram ordenados nos quatro
capítulos da tese e distribuídos conforme apresentação a seguir.
No primeiro, intitulado Literatura e Nacionalismo: séculos XVIII e XIX, discute-se a
participação ideológica das letras na procura por uma literatura que “cante” as cores nacionais,
ou, uma literatura patriótica, conforme expressão utilizada por Manuel de Araújo Porto-Alegre.
Neste capítulo, dialogamos com os literatos que, na Revista Guanabara, defendem o
rompimento com o estilo literário clássico europeu, principalmente o português, e advogam
uma literatura política, nacionalista e utilitária ao desenvolvimento moral e intelectual da nação
brasileira. Ideológica e pragmaticamente, o sentimento nacionalista que se amplifica a partir da
independência, adquire contornos no mundo das letras que reverberam na matização das cores
e belezas nacionais, como sua natureza, seus rios, seu clima e, finalmente, seus primeiros
habitantes. Logo, os indígenas, em grande medida, deveriam ser alçados ao posto de
representantes históricos do novo país que procurava realçar seu particularismo identitário
frente às demais nações. Assim, ao longo deste capítulo, procuramos apresentar o engajamento
político dos representantes das letras neste movimento de afirmação nacional que, para
fortalecer-se, retirou do ostracismo os épicos setecentistas O Uraguai e Caramuru e os
transportou para o século XIX, elevando-os ao status de representantes originais de uma
literatura autenticamente nacional. Comparando-os com o romance histórico oitocentista O
Guarani, de José de Alencar, procuramos, ainda, demonstrar as costuras ideológicas que ligam
os épicos “indianistas” dos distintos séculos.
Em O indianismo de Gonçalves Dias, nosso segundo capítulo, dialogamos com a versão
poético/indianista e científico/historicista do intelectual maranhense. Na breve biografia que
fora desenhada na introdução do capítulo, procuramos destacar os estímulos sociais, históricos,
o talento pessoal e, ainda, as experiências etnográficas que realiza, fatores que, somados,
elevaram Gonçalves Dias ao status de maior representante do indianismo brasileiro. Como
veremos ao longo do texto, as duas versões literárias que compõem as composições do
21
indianista, não se repelem, antes, complementam-se e dialogam. Este diálogo pode ser
encontrado no épico indianista O Gigante de Pedra e no tratado histórico Reflexões sobre os
anais históricos do Maranhão. Em ambos, prevalece a postura antilusitana do autor e a
apresentação de um índio vilipendiado pelo processo colonial português. No entanto, mesmo
que em suas composições o maranhense tenha se apoiado predominantemente na história
quinhentista e seiscentista para denunciar a história da opressão colonial portuguesa aos nativos,
não lhe cabe o estigma de indianista omisso às condições sociais do indígena contemporâneo.
Se, em pequena medida, Gonçalves Dias traz o nativo contemporâneo em seu texto Reflexões,
o faz em grande medida em sua prosa poética Meditação, texto que singulariza o poeta e seu
indianismo. Neste, Gonçalves Dias apresenta um indianismo politicamente engajado em
questões que tensionavam o seu tempo: as convulsões sociais nas províncias e a formação de
uma sociedade brasileira elitista e excludente a índios e negros. Por último, para a melhor
compreensão do pensamento intelectual gonçalvino, utilizamo-nos ainda de seu trabalho
monográfico Brasil e Oceania, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (RHIGB) no ano de 1852. Servimo-nos deste trabalho como texto complementar por
considerá-lo imprescindível para a compreensão das concepções indianistas e, principalmente,
científicas, defendidas pelo poeta maranhense.
Em grande medida, no indianismo literário, seja nos poemas épicos ou nos romances
históricos, assistimos a uma lenta e gradual aproximação da “espessa” linha que separa os povos
indígenas da sociedade ocidental. Após duros conflitos, “bárbaros” e “civilizados” tornam-se
comunicáveis entre si, até o derradeiro momento do completo desaparecimento desta distância
que acontece através da travessia cultural realizada pelos primeiros ao mundo dos segundos.
Em nosso primeiro capítulo, apresentamos essa “quase regra” no protoindianismo dos épicos
setecentistas O Uraguai e Caramuru e, ainda, no romance oitocentista O Guarani. Também
encontramos essa “quase regra” no épico indianista Itaé: idílio americano, de autoria de
Antonio Joaquim de Melo e no romance histórico Aricó e Caocochee, do sertanista e indianista
João Henrique Elliott. Ambos serão analisados em nosso terceiro capítulo de título Literatura
“periférica” na revista Guanabara e o processo civilizatório e, como veremos, encontravam-
se alinhados às propostas integracionistas defendidas pela política indigenista do Regulamento,
oficialmente decretada pelo Império no ano de 1845. Através desta, o Estado Nacional
brasileiro define as diretrizes gerais do Império para o governo geral dos índios aldeados e,
principalmente, para a transição completa dos “bárbaros” ao espaço dos “civilizados”, ao
mundo do trabalho e à sujeição dos indígenas a leis extrínsecas à sua cultura. Neste capítulo
22
veremos, ainda, os principais mecanismos e diretrizes gerais definidos pelo Estado para essa
sujeição. Utilizamos a expressão “quase regra” pois, na última seção deste capítulo,
apresentamos o romance histórico Lucia de Miranda, adaptado por Cândido Batista de Oliveira
do original Anales del Descubrimiento, Población y Conquista del Río de la Plata, escrito em
1612 por Ruy Díaz de Guzmán. Nesta adaptação, o pretenso indianista brasileiro apresenta um
gradual distanciamento da linha barbárie/civilização, tornando-a intransponível e
incomunicável. Como procuramos demonstrar em nossa análise, a naturalização da barbárie
indígena pelo autor, não somente torna apreensível o ceticismo do “indianista” com as diretrizes
indigenistas adotadas pelo Estado, como também demonstra a incredulidade do autor quanto à
capacidade de integração e adaptação do índio ao espaço dos “civilizados”.
Finalmente, em nosso quarto e último capítulo, O índio de carne e osso: conquista e
civilização no Brasil oitocentista, procuramos dar relevo às propostas indigenistas,
civilizatórias e integracionistas desenvolvidas pelos intelectuais Francisco Adolfo de
Varnhagen em seu Memorial Orgânico e Henrique de Beaurepaire Rohan em seu artigo
Considerações acerca da conquista, catequese e civilização dos selvagens do Brasil. A opção
pela expressão que dá nome ao título, acontece para destacar a distância entre o índio matizado
pelo olhar dos cientistas/historicistas e o índio literário. Enquanto no segundo caso, o olhar do
indianista está voltado para as qualidades intrínsecas de um indígena idealizado, o bom
selvagem, no primeiro, o olhar do cientista está voltado para o índio real, sócio-antropológico,
àquele que em meados do século XIX era apontado como obstáculo ao progresso civilizatório
do país e à efetiva ocupação do território nacional. Além de demonstrar os antagônicos debates
indigenistas neste momento, polarizados entre a integração agressiva ou amistosa dos índios à
ordem civilizatória ocidental, este capítulo nos permite, ainda, refletir sobre a rejeição destes
intelectuais à política do Regulamento de 1845, pois ambas as propostas aqui analisadas foram
publicadas após a promulgação da política indigenista oficial do Império.
Por último, salientamos que ao longo dos quatro capítulos, procuramos ressaltar as
condições históricas indispensáveis à atividade intelectual que ocorre de forma simultânea à
formação de espaços científicos e literários que comportem essas discussões. Assim, autores e
suas obras, ganham relevo, esforço descritivo e analítico compreensivo nesta tese atenta à
formação de uma nacionalidade intencionalmente dirigida pela elite intelectual do Império no
século que vislumbra a autoafirmação nacional, com destaque à definição de uma identidade
especificamente brasileira.
23
CAPÍTULO 1: LITERATURA E NACIONALISMO: SÉCULOS XVIII E XIX.
1.1. Literatura patriótica e nacionalismo no século XIX.
Foi de modo geral, incalculável, em todos os sentidos, a influência da corte real no
Brasil. A presença do chefe supremo do Estado iria animar todos os brasileiros com
um sentimento de patriotismo, que até aqui lhes era desconhecido, pois, como colônia,
haviam sido governados por delegados do rei. O Brasil assumiu, para todos, nova
dignidade; como tivesse aqui o rei e encetasse negociações diplomáticas além-mar, de
certo modo entrava no concerto das nações europeias. O próprio soberano aprendeu a
conhecer, sempre melhor, tanto as vantagens do país, como as imperfeições do
governo; serviu-se das primeiras e com isso assegurou a estabilidade de todas as
instituições civis e da propriedade. O Crédito particular cresceu; o que era incerto,
partidário e dependente na administração, deu lugar à ordem autônoma das coisas e
despertou vigoroso impulso em todas as atividades oficiais. 11
O “vigoroso impulso” gerado pela influência da corte real portuguesa no Brasil,
sugerido pelos viajantes bávaros Spix e Martius, aconteceu após a transferência da família real
portuguesa, de sua corte e dos funcionários do Estado português para o Brasil no ano de 1808.
Segundo a historiografia corrente, a transferência da administração colonial para o Brasil
encetou novos arranjos à estrutura política, econômica, social e também intelectual da colônia.
Enquanto sede da Monarquia e elevado à categoria de Reino Unido de Portugal e Algarves no
ano de 1815, o Brasil começou a viver um lento processo de independência que se efetivou em
1822, um ano após o retorno do Rei D. João VI a Lisboa.
Esse incipiente sentimento patriótico descrito pelos cientistas bávaros na narrativa de
viagem, fora vivenciado in loco durante a permanência dos mesmos no Brasil entre os anos de
1817 a 1820. Conforme Candido, esse sentimento pôde ser percebido, inicialmente, através da
participação dos intelectuais ligados ao campo literário, principalmente com o advento de novas
formas narrativas, como a poesia patriótica, o ensaio político e o sermão nacionalista. Segundo
o autor, a fase “(...) entre o fim do século XVIII e o advento do Romantismo, nos anos de 1830”
é “(...) um momento de intensa participação ideológica das letras” e nesse ínterim, a literatura
“(...) assume conotação francamente patriótica” e nativista. Com a independência desenvolveu-
se a percepção de que a “literatura brasileira era ou devia ser diferente da portuguesa, pois o
critério da nacionalidade ganhou no mundo contemporâneo uma importância que superou as
considerações estéticas”.12
11 SPIX, J. B; MARTIUS, C. F. P., Viagem pelo Brasil: 1817-1820, p. 46, grifo nosso. 12 CANDIDO, A., Iniciação à literatura brasileira, p. 36.
24
Somente com a transferência da família real portuguesa e seu séquito de funcionários
começou no Brasil a era da tipografia, através do decreto de 8 de maio de 1808 que criou a
imprensa régia. Livros e periódicos passam a ser impressos e publicados por associações laicas,
em detrimento da hegemonia cultural e intelectual que até então era monopolizada pelos
conventos e ordens religiosas. Lopes nos lembra que, após tantos anos impedido de ter o seu
jornal, sucedeu-se no Brasil “uma verdadeira pletora de periódicos nos quais a ciência, a
história, a política e a literatura andavam de mãos dadas no afã de espalhar a cultura e
conquistar, no mais breve tempo possível, os anos perdidos”.13 Paralelamente, com a permissão
Real para a visita de diversas missões científicas de alemães, ingleses, russos, franceses, entre
outras nacionalidades que passaram a descrever nossa sociedade e suas adversidades sociais e
étnicas, além de nossa diversidade natural, o Brasil passou a ganhar visibilidade e se tornar
conhecido no cenário internacional.14
Essa “participação ideológica das letras”, conforme terminologia empregada por
Antonio Candido, fora advogada pelo francês Ferdinand Denis, “autor do primeiro escrito onde
se reconhece uma literatura brasileira distinta”. Em seu Résumé de l’Histoire Littéraire du
Brésil, de 1825, o francês manifestou o ponto de vista nacionalista de que “um país
independente possui uma literatura independente”. Em sua concepção, esta literatura deveria
conter elementos que descrevessem “a natureza específica dos trópicos e os temas indígenas”.
Este apelo fora ouvido anos depois, em 1836, por um grupo de jovens que realizavam seus
estudos na França, onde criaram a Revista Niterói. Em seu primeiro número foi estampado o
manifesto fundador, de autoria de Gonçalves de Magalhães, onde o autor advoga “o abandono
da mitologia clássica e dos modelos portugueses” e propõe “o índio como tema nacional, o
sentimento religioso como critério e o sentimentalismo como tonalidade”.15 Para Sodré, o
indígena brasileiro se apresentou aos literatos e à sua “mente revoltada contra a hegemonia
literária portuguesa” como um recurso natural de reação espiritual nacionalista desencadeado
pelo estímulo político da independência “que originou aqui o indianismo romântico e o
generalizou”.16
Além de símbolo da independência política e intelectual, a fundação de uma revista
romântica brasileira, fundada na França e que advoga a presença do indígena enquanto símbolo
da nacionalidade do Brasil, pode ser explicada pela redução gradativa do número de brasileiros
13 LÓPES, H., A divisão das águas, p. 9. 14 CANDIDO, A., Iniciação à literatura brasileira, p. 35. 15 CANDIDO, A., Iniciação à literatura brasileira, p. 37. 16 SODRÉ, N. W., História da literatura brasileira, p. 277.
25
que iam estudar em Coimbra, principalmente após o rompimento com a ex-metrópole. Segundo
Sodré, além das academias francesas atraírem os nossos estudantes ricos, a literatura deste país
avassalava a inteligência dos brasileiros “porque punha de lado, varria a literatura do reino de
Portugal” e desenvolvia-se, paralelamente à guerra ao passado, à imitação irrestrita de Paris”.17
No fim do segundo decênio oitocentista, o consumo de obras literárias francesas já fora
destacado pelos viajantes bávaros Spix e Martius. Em sua permanência no Brasil, constatam
que a literatura francesa conquistou a camada mais ilustrada de sua população, “que lê
especialmente as obras de Voltaire e de Rousseau” e fez aumentar consideravelmente a
importação destas e de outras literaturas daquela nacionalidade.18 Lembremos que os viajantes
bávaros aqui aportaram em 1817, um ano após a chegada dos artistas que compunham a Missão
Artística Francesa e alguns anos após a instauração de uma organização de poder dada pela
presença do Estado monárquico luso em terras brasileiras, ao que se seguiria um projeto cultural
complementar ao político.
Assim, o gradual desenvolvimento de um espírito intelectual que defendia o
rompimento com o estilo literário clássico europeu no pós-independência, principalmente o
português, e o desejo da elite intelectual do Império de produzir uma literatura nacional que
diferenciasse o país e o identificasse, foi ganhando distintos contornos no movimento literário
romântico do Brasil. Para Candido, em terras brasileiras este movimento “se confundiu em
grande parte com nacionalismo” e, assim, “deveria levar em conta a capacidade poética do
índio” em seu meio natural, atribuindo-lhe um lugar especial em uma literatura que
apresentasse, de forma mais aparente do que real, sua singularidade, sua heroicidade e sua
constante luta pela liberdade.19
Para Sodré, essa singularidade e esse lugar especial que atribuiu-se ao indígena no
romantismo literário não é tão novo assim e não encerra nenhuma originalidade que tenha
surgido apenas no século XIX. Antes, foi construído ao longo do tempo e trata-se, no fundo,
“do conceito que se esmerava em ver no índio o homem bom por natureza, bom por origem,
dotado da bondade natural que tanto seduziu os Enciclopedistas”. Além destes, o historiador da
literatura lembra o pensamento de homens como Las Casas, Caminha, Vespúcio e de Paulmier
de Gonneville que afirmou que “os habitantes do Brasil eram gente simples, que não pretendiam
senão levar a vida alegre, sem grande trabalho”. Assinala ainda inúmeros outros visitantes da
América e do Brasil que não deixaram de reafirmar as qualidades humanas e edenizadoras dos
17 SODRÉ, N. W., História da literatura brasileira, p. 274. 18 SPIX, J. B; MARTIUS, C. F. P., Viagem pelo Brasil, p. 50. 19 CANDIDO, A., O Romantismo no Brasil, p. 23-28.
26
indígenas, como Hans Staden, Schmidel, além de Thevet e Léry, que honram a bravura, a
honestidade e a inocência dos nativos.20
Certamente, bastaria um exame superficial nas narrativas destes e de outros viajantes
europeus para capturarmos o olhar de estranhamento e de espanto destes autores sobre o “outro”
que encontraram em território americano, quando não de detração e de lamento de seus
costumes. Afinal, lembremos que entre representações que aliavam fantasia e realidade, este
“novo homem” passa a ser descrito, sentenciado e definido pelos viajantes e cronistas do Velho
e “civilizado” Mundo. No entanto, se na pena dos representantes do movimento romântico
brasileiro prevaleceu a imagem edenizadora do indígena americano, é no “esquecimento” das
imagens detratoras dos nativos que encontraremos respostas para este “lapso de memória” dos
literatos. A compreensão deste “esquecimento” pode ser encontrada no próprio movimento
literário oitocentista. Isoladamente, a novidade do século XIX não é o lugar do índio na nova
nação dos trópicos, nem sua “bondade natural”, mas a articulação destes elementos em um
movimento literário, político e principalmente, nacionalista.
Referimo-nos à proposital apropriação pelos indianistas brasileiros das imagens e
representações laudatórias do homem americano que foram vulgarizadas através dos séculos
que se sucederam à colonização europeia das terras americanas. Entre elas, encontra-se às de
Michel de Montaigne (1533-1592) que põe em destaque as qualidades do índio e louva o bom
selvagem. Lembremos o relato do filósofo francês quinhentista e as marcas que o indígena de
Os Canibais deixou ao conceito do bom selvagem de Rousseau séculos depois. De sua pena
abundam imagens de nosso continente e alusões aos costumes de seus selvagens habitantes.
Influenciado por cronistas como André Thevet e Jean de Léry, Montaigne discorre sobre os
Tupinambás “brasileiros”, suas guerras e visualiza a possibilidade de uma nova humanidade.
Com destaque, Arinos pontua a importante influência do calvinista Léry nos escritos de
Montaigne, como “a referência ao vigor físico dos índios, conservada mesmo na velhice”, e o
questionamento da noção etnocêntrica de “bárbaros”, arbitrariamente aplicada aos indígenas da
América.21 Ainda sobre esta influência intelectual, Arinos destaca:
Nada mais arbitrário, diz o calvinista, do que o conceito da barbárie atirado aos
selvagens pelos franceses por causa da sua antropofagia, quando eles franceses, nas
suas lutas religiosas, assistiram compatriotas se assarem, uns aos outros, vivos, e
atirarem corpos ainda palpitantes à sanha dos animais. Todos esses conceitos, às
vezes, com repetição das mesmas palavras, se encontram no ensaio de Montaigne. 22
20 SODRE, N. W., História da literatura brasileira, p. 257-258. 21 FRANCO, A.A.de M., O índio brasileiro e a Revolução Francesa, p. 102-107. 22 FRANCO, A.A.de M., O índio brasileiro e a Revolução Francesa, p. 116.
27
Schwarcz lembra que, ciente das guerras religiosas que assolavam o território europeu,
Montaigne “realiza um exercício de relatividade” e encontra mais lógica na maneira como os
Tupinambás realizavam a guerra do que nas práticas e hábitos de guerra de seus conterrâneos:
“mas, voltando ao assunto, não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos;
e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não pratica em sua terra”.23 O componente
político desse exercício de relatividade lembrado por Schwarcz pode ser melhor compreendido
através da obra de Afonso Arinos O índio brasileiro e a Revolução Francesa. Nesta obra, o
autor afirma que a descoberta do novo continente e sua população indígena forneceu o alimento
necessário para os filósofos quinhentistas disfarçarem as críticas às instituições políticas de sua
própria sociedade. Diante da acirrada vigilância da Igreja e do Estado sobre a produção
intelectual da época e da consequente impossibilidade de crítica, a descrição de comunidades
consideradas ideais, como as indígenas da América, torna-se central a uma literatura que
procurava criticar suas próprias instituições, sem fazê-lo de forma categórica. 24
Ao nosso propósito, interessa ainda a influência que as reflexões de Montaigne e de
outros viajantes e filósofos europeus exerceram em espíritos que os sucederam em séculos,
como no setecentista Rousseau. Sobre a influência do primeiro, Arinos afirma que “Rousseau
leu constantemente Montaigne, e desde o início da sua vida. Nas Confissões a ele se refere como
um dos autores preferidos da sua meninice, e, na sua primeira obra impressa, já demonstra o
apego que teve pelos escritos do filósofo do século XVI”.25 Apresenta, ainda, a influência que
os escritos de viajantes como Pero Vaz de Caminha, Jean de Léry e o Padre Thevet exerceram
na construção da teoria do estado natural do homem. A estes, soma Erasmo, Rabelais, Thomas
Morus entre outros. No entanto, salienta: “enquanto os outros formam, por assim dizer, o meio
favorável, o terreno propício, Montaigne foi, em certa época, a própria semente ideológica, foi
o principal animador das conjecturas de Rousseau sobre o homem natural (...)”. 26
Embora não faça parte de nosso propósito apresentar a maturação intelectual da teoria
do homem natural e sua bondade ao longo da trajetória literária de Rousseau, uma vez que ela
encontra-se diluída em seus escritos, é em seu Discurso sobre a origem e o fundamento da
desigualdade entre os homens (1775) que ela ganha corpo e contornos mais definidos. Embora
a ideia da “oposição irredutível entre natureza e civilização” não seja originalmente
23 Montaigne Apud SCHWARCZ, L.M., Nem preto nem Branco, p. 15. 24 FRANCO, A.A.de M., O índio brasileiro e a Revolução Francesa, p. 119. 25 FRANCO, A.A.de M., O índio brasileiro e a Revolução Francesa, p. 122. 26 FRANCO, A.A.de M., O índio brasileiro e a Revolução Francesa, p. 182-183.
28
rousseauniana, é através dela que o genebrês defende sua máxima de que o homem é
naturalmente bom, mas o “hábito da civilização é que veio corrompê-lo”.27 Assim, em
Rousseau, o bom selvagem é representante de uma humanidade ainda não manchada pela
civilização, pura em sua essência e positivada em suas qualidades naturais. De acordo com
Arinos, no Discurso, “além de figurar o primeiro fundamento doutrinário da teoria da bondade
natural, (...) se encontra, também, a primeira descrição verdadeiramente pejorativa (quase que
se poderia dizer agressiva) da sociedade francesa”.28 Conforme Schwarcz, “tal qual uma
idealização por contraposição, o nativo americano (e em especial sul-americano) surgia no
Discurso como um modelo melhor para pensar a civilização ocidental do que sua própria
natureza”.29
Pergunto qual das duas - a vida civil ou a natural - é mais suscetível de tornar-se
insuportável. À nossa volta vemos quase somente pessoas que se lamentam de sua
existência, inúmeras até que dela se privam assim que podem. Pergunto se algum dia
se ouviu dizer que um selvagem em liberdade pensa em lamentar-se da vida e querer
morrer. Que se julgue pois, com menos orgulho, de que lado está a verdadeira
miséria.30
Como vemos, é com Rousseau que este surto de indianismo se amplifica às últimas
consequências e, com ele, o mito do bom selvagem. Assim, se em seu Discurso setecentista o
mito se solidifica, em nossa literatura patriótica e nacionalista de meados do século XIX ganha
nova roupagem. Se com Montaigne e Rousseau o índio americano fora politicamente utilizado
como recurso de contraposição à sociedade europeia, no caso brasileiro fora politicamente
utilizado para exaltar as qualidades da nova nação que se formava nos trópicos sobre as ruínas
de elementos nobres, como os indígenas. Afinal, no passado e, em menor medida, no
caldeamento étnico da nova nação que se formava, o indígena também teria seu lugar e, assim,
suas qualidades, como a liberdade e a “bondade natural”, careciam de relevo literário. A este
recurso literário de edenização do índio em seu estado natural, Bosi lembra a expressão de
Antonio Candido: “surto de indianismo franco-brasileiro”, que para o autor “contribuiu para
modelar uma imagem idealizada do índio e da natureza brasileira nas décadas iniciais de nosso
romantismo”.31
Ao longo desta tese veremos que, nesse clima político/literário patriótico e nacionalista,
o “bom” e o “mau” selvagem conviviam lado a lado. Há, de um lado, o “bom selvagem”, livre
27 FRANCO, A.A de M., O índio brasileiro e a Revolução Francesa, p. 187. 28 FRANCO, A.A de M., O índio brasileiro e a Revolução Francesa, p. 191. 29 SCHWARCZ, L.M., Nem preto nem Branco, p. 16 30 ROUSSEAU, J-J., Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 54. 31 BOSI, A., Cultura, p. 227-228.
29
de todos os vícios, herói e dotado de todas as “virtudes primitivas”. De outro, o “mau
selvagem”, rebelde, canibal e pagão. A este, na “melhor” das hipóteses, tentar-se-ia a integração
forçada aos nacionais através de práticas indigenistas dirigidas pelo Estado, e, se relutante, o
extermínio realizado através de massacres brutais. Essa “estranha” convivência pode ser
explicada pelo contexto histórico oitocentista. As qualidades intrínsecas e o sangue do primeiro
grupo, laudatoriamente desenhado, contribuiria à história oficial do país e à composição
étnico/racial da futura nação que se desejava branca e europeia. Com algumas exceções,
representava mais o índio matizado na pena dos autores europeus do que o indígena real, de
carne e osso que “ainda” habitava o território brasileiro. Enquanto este grupo fora idealizado e
enobrecido pelos representantes das letras do Brasil, o segundo era visto e pensado por
considerável parcela da elite intelectual e política do Império como um obstáculo à civilização
da nação e, a este, só restaria a subjugação.
Na sequência, destacaremos a voz de alguns ilustres literatos colaboradores da Revista
Guanabara que estavam umbilicalmente ligados à discussão nacionalista e patriótica de meados
do século XIX. Com a independência colonial e a nova organização política que se configurava,
a elite intelectual do Império defendia e aspirava a independência literária do país e,
principalmente, refletia sobre as possibilidades estéticas e as atitudes literárias que conceberiam
uma literatura autenticamente nacional. Contemporâneos e filiados ao movimento romântico
brasileiro, argumentavam sobre a necessidade de uma literatura patriótica, pragmática, utilitária
e contributiva à história social do Brasil que se desenhava. Como veremos, com os olhos
voltados à afirmação nacional brasileira, os literatos de meados do século defendem a
necessidade de uma literatura que marcasse nossas diferenças em relação à ex-metrópole
portuguesa e, ainda, que reconhecesse nossa unidade e identidade histórica através de nossas
singularidades, como a nossa natureza e “nossos” primitivos habitantes.
1.2. Em defesa e em busca de uma literatura patriótica.
Conforme destacamos na introdução deste trabalho, a Revista Científica e Literária
Guanabara (1849-1856), cronologicamente, estava inserida dentro de uma tradição intelectual
que a ligava a outras revistas e periódicos congêneres. Essa tradição é inaugurada com a criação
da Imprensa Régia em 1808, ano que abre o caminho às publicações científicas e literárias em
periódicos, jornais e revistas. Nestes espaços, literatura, política, ciência e história encontraram
um espaço fértil de debates e à propagação de novas ideias. Ideologicamente, estas revistas,
30
geralmente de vida efêmera, estavam costuradas pelo desejo de aquecer e manter aceso o fogo
de uma literatura patriótica que elevasse as “coisas” nacionais, dignificasse as glórias do Brasil
e propagasse a imagem de um país com uma identidade linguística que pudesse ser chamada de
nossa.
Essa discussão atravessa a primeira metade do século XIX e chega à Revista Guanabara
eivada por forte substrato patriótico e nacionalista. Esse substrato alimentou debates que
apresentaram distintas posições sobre os caminhos que deveriam ser trilhados pelo país para se
consolidar uma literatura que se propõe nacional. Se semelhante debate encontrou espaço fértil
para se efetivar é porque, em geral, em meio à intelectualidade brasileira existia um interesse
comum em romper com a linha harmônica que ligava o passado colonial com o presente do
país, agora independente. Assim, essa intelectualidade procurava criar um sentimento de
descontinuidade histórica com o passado para sinalizar um presente singular e, principalmente,
destacar um futuro glorioso à nova nação que se formava. Não obstante o objetivo literário
comum de alimentar a consciência nacional, as vozes que advogaram uma literatura
nacionalista, muitas vezes se mostraram dissonantes e desarmônicas entre si. Assim, nesta
seção, procuraremos dar relevo às variações de algumas dessas vozes que defenderam a
construção do cenário social e político brasileiro em linguagem literária, nacionalista e
patriótica, conforme a seguir:
“Canta, menino, canta, e improvisa sempre, dizia um célebre músico a um dos seus
discípulos, porque no momento em que achares uma ideia nova, uma frase não ouvida,
já fizeste um passo, e já fizeste subir a arte a mais um ponto de perfeição”. Assim
dizemos nós a todos os moços: - Cantemos a nossa bela pátria, que, no momento em
que formos brasileiros, teremos as bases de uma nova literatura, e com ela todos os
prodígios e primores das belas artes. 32
No excerto acima, o autor de Os Hinos da Minha Alma, nos revela uma nação ainda em
construção e à procura de sua identidade através de uma literatura que imprimisse um caráter
de afirmação nacional ao Brasil, a qual qualifica de “literatura patriótica”. Afinal, para Manuel
de Araújo Porto-Alegre, além de ser um predicado que eleva e faz o poeta “dar passos
agigantados”, o patriotismo contribuiu a “toda a glória de Camões, e toda a superioridade de
Santa Rita Durão”. Afirma ainda que o mais novo dos continentes, a América, já teria
contribuído ao “progresso humanitário” e “pago uma grande parte da dívida civilizadora”.
Afinal, em sua concepção, este é o local em que Bernardin de Saint-Pierre e Chateaubriand
32 PORTO-ALEGRE, M. de A., Os Hinos da minha alma, p. 45.
31
“acharam (...) a chave da nova literatura de que se tornaram chefes, e antes deles já o nosso
Durão havia criado o - Caramuru-, e Basílio da Gama – Os amores de Lindoia e de Cacambo-
” em O Uraguai. 33
Sobre o movimento romântico brasileiro, Porto-Alegre o qualifica como dono de uma
nova “partitura métrica”. Afirma haver nele “alguma coisa do instinto brasileiro, (...) um sinal
evidente de independência, mas há também muita escravidão”, pois não teríamos ainda “(...)
braços para abarcar um tronco milenário”.34 Adiante, veremos não haver unanimidade entre os
contemporâneos do romantismo quanto à “escravidão” ou não da literatura pós-independência
aos ditames literários europeus. Para o autor de Os Hinos da Minha Alma, o governo de D.
Pedro I, “destinado a criar uma nova época”, nada trouxe de novo e de notável à literatura
brasileira além dos versos oficiais, “que eram benignamente acolhidos” pelo imperador. Assim,
considera os dois primeiros decênios do século como desprovidos de valor literário, e
principalmente, qualifica a produção literária deste período como alienada aos preceitos
estéticos da ex-metrópole portuguesa. Bosi lembra que “Candido chama as obras publicadas no
primeiro reinado de ‘poesia a reboque’, sublinhando o caráter instrumental de uma literatura
que visava a convencer o leitor da excelência de certos valores patrióticos, morais ou religiosos
vazando-os em uma linguagem de convenção”. Por fim, associa a mediocridade da produção
literária dessa época à falta de grandes personalidades poéticas no período. 35
Porto-Alegre afirma que a “segunda época do Império”, ou período da “minoridade”,
como chama a década lembrada pelos fortes conflitos provinciais, foi salvo por um “milagre da
providência” com o surgimento dos Suspiros Poéticos (1836), de Gonçalves de Magalhães.
Sobre este poeta, define-o como “o fundador da nova escola” literária no Brasil. Após lembrar
o surgimento de “aparições brilhantes” na década de 1840, como Joaquim Norberto de Sousa e
sua Balata e Antônio Gonçalves Teixeira e Souza e seu poema Três Dias de um Noivado, se
rende “aos grandiosos painéis do maravilhoso Snr. Gonçalves Dias”. Entusiasticamente, afirma
que “a época atual parece ser a do nascimento da nossa literatura”. Justifica sua constatação
porque acredita ser esta uma época “em que se labora em vários poemas”. Entre eles cita A
confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães; Os Timbiras, de Gonçalves Dias e,
por último, de sua própria autoria, Colombo.36
33 PORTO-ALEGRE, M. de A., Os Hinos da minha alma, p. 41-46. 34 PORTO-ALEGRE, M. de A., Os Hinos da minha alma, p. 41. 35 BOSI, A., Cultura, p. 227. 36 PORTO-ALEGRE, M. de A., Os Hinos da minha alma, p. 42-43.
32
Ao defender uma literatura patriótica que cante as coisas nacionais e suas “glórias”,
Porto-Alegre concentra sua atenção na busca consciente da identidade nacional. Assim, não
segrega o desenvolvimento da literatura nacional e a história social do Brasil, tornando-a
política, pragmática e necessária para o desenvolvimento da nação, afinal como afirma:
Os antigos já diziam que a arte que não instrui, corrompe; e é um grande erro o
acreditar-se que a poesia, que nasceu no santuário e no meio das dores, seja uma arte
de mero recreio, ou uma espécie de confeitos dourados, (...). A arte tem um ponto de
apoio no céu, e outro na glória nacional. 37
Assim, Porto-Alegre demonstra estar alinhado ao debate intelectual pós-independência
que concentra parte de sua atenção à difusão de ideias estéticas e atitudes literárias de caráter
político. Desta forma, defende a poesia como arte de expressão nacional e atribui a esta um
caráter utilitário e pragmático que eduque seus cidadãos ao patriotismo através da liberdade
poética e literária nacionais. Suas considerações nos incitam aos seguintes questionamentos:
quais os pontos de encontro e desencontro marcaram as discussões fomentadas pela procura de
uma literatura nacionalista/patriótica entre os colaboradores da Revista Guanabara e, ainda, de
forma geral, qual o status que estes letrados atribuíram às belas artes, à arte dramática e à
literatura?
Para o Conselho editorial da Revista Guanabara de 1851, além da literatura, os demais
elementos artísticos como a arte dramática, plásticas e a música também apresentam o status de
sustentáculo do projeto imperial de construção do Estado Nacional brasileiro. Lembra que todos
os povos antes de se coroarem, elevaram estátuas aos seus gênios e heróis e “protegeram as
artes úteis e instrutivas com igualdade, para que elas se elevassem conjuntamente, e
conjuntamente espalhassem o seu benigno insuflo”. Elevados aos status de elementos
“civilizadores da pátria”, o Conselho editorial tece duras críticas aos “operários da nossa
organização social” pelo desinteresse que manifestam nos investimentos estéticos:
(...) aqueles que tem por dever cuidar no desenvolvimento de todos os elementos
civilizadores, estão atados ao jugo de uma ambição sem glória nacional(...). Quando
se lhes fala em artes, respondem, que, já temos uma academia de Belas Artes, um
conservatório dramático, outro de música, e duas casas para representações;
respondem mais que se dá dinheiro a esses estabelecimentos, e que eles pouco fazem,
sem se lembrarem que todos esses fetos precisam de uma placenta que deve estar na
madre comum, que é a pátria, representada por aqueles que nos governam. 38
37 PORTO-ALEGRE, M. de A., Os Hinos da minha alma, p. 44. 38 CONSELHO EDITORIAL., O nosso teatro dramático, p. 97-98.
33
No ano seguinte, o mesmo Conselho Editorial reitera essa perspectiva em Teatro
Provisório. Neste artigo, defende-se a igualdade de condições a ser dispensada pelas
autoridades públicas à atividade estética, artística e literária comparativamente a outros
elementos civilizadores, como os investimentos de ordem estrutural que o Barão de Mauá
(Irineu Evangelista de Sousa) promovia na capital do Império. Para o conselho, ambas as
atividades, estéticas e de ordem estrutural, apresentam funções utilitárias e pragmáticas ao país
e por isso: “aqueles que consideram todos os fatos nacionais como letras do grande alfabeto
civilizador, estão do nosso lado; porque eles sabem traduzir um Irineu e um Magalhães como
dois versos dessa época progressiva, que narra a vida gloriosa das nações”. No entanto,
demonstram pessimismo com os incentivos às atividades estéticas e literárias, e indagam:
“Quereis poetas? E o que tendes para dar ao poeta que embeleza o que vê, e imortaliza o que
canta? (...). Quereis uma literatura? O que tendes feito para animá-la, e o que preparais para os
literatos? ” Assertivamente, respondem não vislumbrar um futuro promissor. 39
Futuro diametralmente oposto fora o vislumbrado pelo poeta Dr. Castro Lopes em seu
artigo O Mundo e o Progresso. Nele, o poeta se mostra otimista com o caminho civilizatório
que trilhava o Brasil do século XIX. Argumenta que o país tem o “direito a um posto elevado
entre as nações civilizadas”, pois, ao contrário da tendência de seu século de privilegiar as ideias
utilitárias e progressistas em detrimento das ideias do espírito, o Brasil estava sendo governado
por um imperador que compreendia e equilibrava o progresso material com o espiritual e
harmonizava com “animadora direção” as “instituições científicas e literárias do país”. 40
Castro Lopes apresenta-se como defensor da colonização portuguesa, de sua coroa e
dos valores europeus. Dono de uma visão histórica pró-lusitana, o poeta brasileiro canta as
especificidades e glórias nacionais herdadas pelo país do processo colonial português e de sua
ilustrada administração. Em seu julgamento eurocêntrico, o poeta destaca que a América fora
“descoberta” a partir dos triunfos materiais historicamente conquistados pelo velho continente.
Afirma, ainda, que “o novo continente engrossou também as fileiras dos cruzados; e a guerra
do progresso, a luta contra as trevas do espírito humano, que até o décimo quinto século jamais
tivera tréguas”.41 Assim, argumenta que as novas descobertas marítimas de fins do século XV
representaram para as terras americanas e à sua população nativa, o ingresso da luz, da razão e
da ilustração dos conquistadores ao território e aos povos americanos conquistados. Segundo
39 CONSELHO EDITORIAL., Teatro Provisório, p.154. 40 LOPES, C., O mundo e o progresso, p. 321. 41 LOPES, C., O mundo e o progresso, p. 314.
34
o poeta, tudo se justifica em nome de um “estandarte glorioso com a legenda – Cristianismo e
Civilização”.
O adiantamento das nações, a ilustração dos povos são a soma dos numerosos triunfos
alcançados sobre a barbárie e a ignorância. (...).
O velho continente, testemunha da antiga civilização, assiste ao espetáculo da queda
de assombrosos potentados; vê erguer-se nas vastas solidões de infecundos desertos
mais de um império florescente (...): ora uma, ora outra de suas nações figura por seu
turno como vencedora nesta arena sem limites, até que um gênio portentoso
compreendendo que a obra divina estaria imperfeita a não existir um complemento
para o mundo então conhecido, arrostando a zombaria de insensatos, correndo os
perigos de inóspitos mares, cheio de fé e de ciência descobre a América! 42
Logo, o poeta compreende a “descoberta” do novo mundo enquanto um “complemento”
ao mundo conhecido e como resultado das conquistas materiais e científicas da Europa. Desta
forma, não causa estranheza que defenda a bandeira do progresso na qual a Europa marcharia
na vanguarda. Em sua concepção, em nome do progresso e de uma “lei invariável” que regeria
todos os contingentes humanos, no qual a Europa e seus valores civilizatórios serviriam de
exemplo e ânimo, tudo se justificaria.
Enquanto o poeta Castro Lopes defende a criação literária brasileira com os olhos
voltados à Europa, outros intelectuais defendem a sua completa independência em relação ao
Velho Mundo. Nestes, o nativismo transforma-se em nacionalismo e expressa-se através de
manifesta posição antilusitana e exaltação patriótica através da defesa de uma literatura e
identidade linguística nacionais. Assim, assumem o nacionalismo literário como dever
patriótico de seus representantes. Podemos encontrar tal posicionamento no poeta e intelectual
Joaquim Norberto de Souza Silva. Entusiasta defensor da autonomia linguística brasileira e da
literatura nacional, no ano de 1855, propunha que a língua falada no Brasil fosse chamada de
língua brasileira, língua que dá nome ao seu artigo: “ora, o que se tem dado com a literatura é
o que ainda se não deu com a língua, porque ninguém se lembrou que não é ela perfeitamente
a língua portuguesa, e que estando no mesmo caso que a nossa literatura, erro é chamá-la ainda
portuguesa”. Aos que afirmam que o Brasil não tem sua própria literatura porque não tem sua
própria língua, assim se pronuncia:
Ficou porém provado a toda luz que a literatura de povo é a voz de sua inteligência, e
que da influência do nosso clima, da configuração do nosso terreno, da fisionomia de
nossos vegetais, do aspecto da natureza do nosso país, ou risonha ou selvagem, e de
nossos usos e costumes, tudo tão dissemelhante de Portugal, devia resultar uma tal ou
qual modificação nessa literatura, embora portuguesa mas produzida pelos brasileiros:
42 LOPES, C., O mundo e o progresso, p. 314.
35
e consentisse então que essa modificação se chamasse sem improbidade alguma
literatura brasileira. 43
Joaquim Norberto não somente assume e defende os valores de um nacionalismo
literário que cante as glórias e belezas nacionais, mas também defende uma identidade
linguística específica ao Brasil, criada nos trópicos do sul da América, logo, nacional e nossa.
Entusiasta da língua do além-mar, se pronuncia: “para mim tenho que, quando disser língua
portuguesa, entenderão por tal o idioma de que se usa na velha metrópole, e quando disser
língua brasileira, tomarão por tal a que falamos, (...), mas com muitas mudanças”. Coadunado
com os valores defendidos por seu contemporâneo e amigo Gonçalves de Magalhães, fundador
da Revista Niterói (1836), “Tudo pelo Brasil e para o Brasil”, Joaquim Norberto lembra a fala
de seu também contemporâneo, o Sr. José Silvestre Ribeiro. Este, afirma que quando a língua
portuguesa fora “transportada ao Brasil, modificou tanto a sua índole por efeito da poderosa
influência do clima, (...) da mistura das raças”, que não se pode desconsiderar a introdução “de
um grande número de vocábulos e costumes dos indígenas ou mesmo dos colonos no ultramar,
que sucessivamente foram passados ao Brasil”. E acrescenta o poeta: “claro é que temos uma
língua e uma língua brasileira, (...). A língua portuguesa tem taful e paul, e a língua brasileira
não tem Paraguaçu e tatu? ”.44
Semelhantes proposições apresenta o escritor, diplomata e político espanhol Juan Valera
(1824-1905) que residiu oficialmente na capital brasileira durante os anos de 1851 a 1853.
Correspondente da Revista Guanabara, no ano de 1855 publicou um artigo intitulado Da poesia
brasileira. Neste, traça um brilhante histórico sobre os acréscimos linguísticos à língua
portuguesa em solo brasileiro, às influências estilísticas europeias sobre a poesia nacional e o
surgimento de uma maior liberdade poética criada em solo americano. Sobre o primeiro item,
afirma:
(...) os brasileiros não têm deixado de enriquecer a língua, a que chamam de nacional
para não denominá-la de portuguesa, e que já era riquíssima com grande número de
palavras novas, tomadas nos dialetos americanos, e ainda atrevo-me a afirmar que lhe
tem adicionado também palavras da língua africana.45
Referindo-se a meados do século XIX, momento em que a literatura romântica
procurava definir-se enquanto nacional e independente, Valera afirma admirar-se com a
fecundidade e o engenho dos brasileiros na poesia daquele momento. Igualmente, admira-se
43 SILVA, J. N. de S., A língua brasileira, p. 99. 44 SILVA, J. N. de S., A língua brasileira, p. 99-102. 45 VALERA, J., Da Poesia Brasileira, p. 198.
36
com a permanência do português clássico na retórica e nos diálogos na corte brasileira. Ao
traçar um histórico da poesia nacional, o espanhol identifica três momentos que marcaram e
caracterizaram nossa poesia. Afirma que, em um primeiro momento, os portugueses que vêm
para o Brasil e os filhos aqui nascidos “jamais quiseram se desprender das reminiscências da
mãe-pátria, deixavam de cantar a formosura da natureza americana”. Antes, mostravam-se
indiferentes a ela e preferiam se transportar para as margens do Tejo do que o Amazonas, não
sendo a poesia brasileira “mais do que um pálido reflexo da portuguesa”.46
Em um segundo momento, afirma que a poesia brasileira fora contaminada pela
influência da literatura francesa, que, na primeira metade do século XIX predominava entre os
literatos brasileiros. No entanto, Valera não percebe essa influência com objeção, pois acredita
que “ainda que destruísse a originalidade (...), restabelecia o bom gosto que estava perdido”.
Por último, o espanhol historiciza a origem da moderna poesia brasileira de meados do século
XIX. Neste momento, enxerga uma força nativista, que vivenciou in loco, que teria dado um
caráter próprio à poesia e à literatura nacional e a “esperança de outros, melhores e mais ricos”
poemas. Sobre este gênero literário, assim se pronuncia o espanhol:
Os brasileiros têm um inesgotável manancial de poesia na virgem natureza que os
rodeia, e onde encontram mil belos e magníficos objetos nunca até agora descritos,
mil novas imagens para revestir os seus pensamentos, mil novas impressões não
sentidas pelos poetas da Europa. Não têm uma história da conquista tão romanesca,
como a do Peru e do México (...). No Brasil não há memória de que jamais existisse
civilização indígena, como a dos Incas ou dos Astecas(...), porém não faltam tradições
brasílicas nem legendas de que se possa apoderar a poesia, e de que já se vão servindo
os poetas americanos. 47
Com originalidade, Valera historiciza as origens do movimento nativista que, em sua
concepção, estaria na raiz do movimento literário nacionalista e patriótico de meados do século
XIX. Para isso, destaca os valores internos e as tradições literárias com assento em nosso
passado que exaltaram as raízes americanas. Assim, para o espanhol, a originalidade da poesia
indianista e romântica brasileira de meados do século XIX teve sua origem no século XVIII
com os poemas épicos Uraguai (1769), de Basílio da Gama e Caramuru (1781), do Frei Santa
Rita Durão. Em seu argumento, estes poetas seriam os verdadeiros construtores da poesia
nacional, pois, “separando-se mais do que os líricos da imitação dos da Europa, abriram novas
veredas aos engenhos americanos e deram origem à moderna poesia brasileira” pós
46 VALERA, J., Da Poesia Brasileira, p. 199. 47 VALERA, J., Da Poesia Brasileira, p. 200-201.
37
independência.48 Destaquemos que esta constatação genealógica da poesia indianista fora
apontada por um poeta e político contemporâneo ao movimento literário romântico brasileiro e
continua sendo reafirmada por pesquisadores atuais, com o acréscimo do poema épico
Muhuraida ou o Triunfo da fé, escrito na Amazônia no ano de 1785 por Henrique João
Wilckens.
Para Amoroso e Sàez, os três épicos do século XVIII colocam “o indianismo como tema
inaugural das letras nacionais”. Na constatação dos autores, “o índio produzido pelo imaginário
colonial setecentista (...), retorna ao século XIX, recuperado pelo romantismo, como
representante da raça nativa que formou a nação brasileira (...)”.49 Já para Treece e sua leitura
mais política sobre o movimento indianista, os três épicos setecentistas teriam registrado as
ambivalências ideológicas entre a Igreja, o Estado e as populações indígenas e voltam ao século
XIX porque “sugerem um crescente interesse, para não dizer simpatia, pelos índios, sua cultura
e seu papel, por vezes, trágico e formador na história da Colônia”. Ainda segundo o autor, esta
característica levou “alguns observadores a concluírem que esses épicos equivaleriam a um
movimento indianista menor, antecipando em forma embrionária e criptonacionalista o
movimento romântico do século seguinte, logo após a independência”. 50
Em alguma medida, Treece pode estar se referindo ao francês Ferdinand Denis. Em seu
Résumé de l’Histoire Littéraire du Brésil (1825), o literato já designa o Caramuru como o
primeiro poema épico brasileiro, “que havia conseguido, embora com restrições, aliar a
descrição das cenas da natureza a um episódio grandioso da História”.51 Helena Rouanet lembra
que em seu Résumé, Denis empreende o estabelecimento de uma tradição literária ao Brasil,
partindo da visão sumária de alguns poemas épicos do século XVII e XVIII, com especial
atenção aos setecentistas Caramuru e O Uraguai. Com maior destaque ao primeiro, Denis
salienta os méritos do épico, como a presença da temática americana “aliada à narração de um
‘glorioso episódio’ do passado”. Seu lamento, concentra-se no estilo da obra, definido como “à
moda de Portugal”.52 Assim, embora Denis compreenda a obra de Santa Rita Durão como ponta
de partida nos esforços de uma produção literária efetivamente brasileira, enxerga com reservas
a originalidade do poema. Como lembra Rouanet, na concepção de Denis, aos poetas do século
XIX restava apenas “corrigir os erros cometidos pelos seus predecessores cujo estilo geralmente
48 VALERA, J., Da Poesia Brasileira, p.199. 49 AMOROSO, M. R; SÀEZ, O. C., Filhos do Norte, p. 237-239. 50 TREECE, D., Exilados, aliados, rebeldes, p. 67. 51 ROUANET, M. H., Eternamente em berço esplêndido, p. 259. 52 ROUANET, M. H., Eternamente em berço esplêndido, p. 235-236.
38
não correspondia – em virtude de sua europeização – à pintura a ser feita desta realidade
americana”. 53
Sem dúvida, é Antonio Candido quem melhor nos explica essa abundância de
referências a Durão e a Basílio da Gama como os verdadeiros construtores da poesia nacional
e como poetas fundadores da tendência indianista. O autor considera curioso o fato de
Caramuru, de Santa Rita Durão, ter “sido pouco apreciado no seu tempo, indo ter, quase meio
século depois de publicado, um papel eminente na definição do caráter nacional da nossa
literatura”. Para o pesquisador, isto se explica ao se lembrar que a procura por uma literatura
brasileira, diversa da portuguesa, adquire consciência da sua realidade depois da independência.
Isto ocorreu, a princípio, mais de um desejo, ou mesmo de um ato consciente da vontade do que
de um movimento autônomo. Como afirma o autor: “era preciso mostrar que tínhamos uma
literatura, exprimindo características que se julgavam nacionais; e para lhe dar validade era
preciso provar que o meio já a vinha destilando antes, (...)”. 54
É com o Romantismo que se desenvolve a preocupação intelectual de retomar uma
tradição literária colonial inspirada nos valores e raízes americanas. Assim, além do indianismo
surgir como tom de brasilidade, seus integrantes partem, desde logo, a uma busca retrospectiva,
“procurando sondar o passado para nele localizar os verdadeiros predecessores”, que já a
tempos haviam rompido com a “carapaça da convenção portuguesa (clássica) ”. A esta ânsia de
ter raízes, de encontrar heranças, Candido chama de tendência genealógica. E é assim, através
dessa tendência que Caramuru, principalmente, saiu do ostracismo e desempenhou grande
papel, “graças às suas características, que permitiram submetê-lo a um duplo aproveitamento,
estético e ideológico, no sentido das tendências nacionalistas e românticas. 55
Conforme Lopes, “na tumultuada vida de nossas revistas literárias dos primeiros
cinquenta anos do século XIX, revela-se a persistente vontade de estabelecer próximo contato
com os poetas do século XVIII”, como Basílio da Gama e Santa Rita Durão. Diante da
disposição nacionalista e patriótica de então, somada aos acontecimentos políticos, encontrou-
se nesses poetas “a têmpera que daria unidade à literatura pátria”. Por último, sabiamente
salienta o autor: “(...) o colorido romântico transparente em suas obras contribuiu para neles se
ver os representantes maiores de nossa literatura autenticamente brasileira e neles se fixarem
nossos foros de emancipação literária de Portugal”.56
53 ROUANET, M. H., Eternamente em berço esplêndido, p. 260 54 CANDIDO, A., Literatura e sociedade, p. 175. 55 CANDIDO, A., Literatura e sociedade, p. 176-177. 56 LOPES, H., A divisão das águas, p. 171.
39
1.3. A imagem do índio setecentista em O Uraguai e em Caramuru.
Como já destacamos, as reformas políticas e culturais promovidas por D. João VI e a
independência política de 1822 abriram o caminho para o debate sobre a necessidade de o Brasil
assegurar a sua independência literária frente às demais nações, principalmente as europeias.
Esta manifestação cultural e política ganhou contornos mais sistematizados no ano de 1836 na
pena do romântico literário Gonçalves de Magalhães, “espécie de patriarca da independência
romântica do Brasil”.57 Com o fim das revoltas provinciais que eclodiram nos anos de 1830 e,
assegurada a unidade política do país em meados do século XIX, os literatos nacionais
proclamam e defendem uma liberdade poética e literária que eduque os cidadãos brasileiros ao
patriotismo. Para isto, não economizaram tinta na defesa de uma arte literária, dramática e
plástica que “cante” e dê cores às “coisas” autenticamente nacionais, como nossa natureza e
seus primitivos habitantes. Certamente, o olhar partidário não exclui o dissenso, o que não
obscurece a riqueza do debate, tão livre quanto o desejado: a nossa independência poética e
literária.
Politicamente, o movimento romântico e sua busca genealógica por raízes mais
profundas retirou do ostracismo alguns épicos setecentistas, principalmente O Uraguai e
Caramuru. Transportou-os para o século XIX com nova roupagem: a de primeiros
representantes de uma literatura autenticamente nacional e de ruptura com os princípios
literários estabelecidos pelo colonizador. Diante disto, nos indagamos: afinal, quais são os
elementos constitutivos no movimento literário romântico do século XIX que justificam essa
aproximação com os épicos setecentistas de Basílio da Gama e Santa Rita Durão? Distantes no
tempo, o que os costurou ideologicamente?
Apressadamente podemos responder: os protagonistas de seus épicos, os indígenas. E
dizemos apressadamente pois não estamos problematizando, ainda, de que índio tratam os
épicos de ambos os séculos; questão que procuraremos esclarecer ao longo deste capítulo. Por
ora, podemos adiantar que o índio e sua imagem de redimível, compreendido aqui como o
nativo dotado de uma iminente capacidade transformadora rumo à civilização, tornou-se central
à literatura e aos poetas de ambos os séculos. Empiricamente, para que possamos sustentar essa
proposição, nos utilizaremos, a seguir, dos poemas setecentistas de Basílio da Gama e Santa
Rita Durão, para finalmente compará-los a um dos romances de maior representatividade do
indianismo brasileiro de meados do século XIX: O Guarani, de José de Alencar. Posteriormente
57 CASTELLO, J.A., A literatura brasileira, p. 161.
40
avaliaremos as costuras ideológicas que interligam essas narrativas literárias separadas por
aproximadamente setenta anos.
1.4. O índio redimível em O Uraguai.
Como nos lembra Moreira Neto, “a partir de meados do século XVIII, a administração
pombalina desenvolve eficaz política diplomática e militar, destinada a consolidar e a legalizar
a ocupação portuguesa em áreas disputadas à Espanha, principalmente na Bacia da Prata, no
extremo oeste e norte do Brasil”. O corolário exigido pela nova e oficial política de integração
do indígena à sociedade colonial foi a expulsão dos jesuítas das regiões em que mantinham suas
missões religiosas em áreas sob domínio português ou espanhol. Em algumas áreas, como no
território das missões (Bacia do Uruguai), a consolidação do domínio através da ratificação de
tratados diplomáticos entre as coroas ibéricas só aconteceu através de soluções militares.
“Longa e custosa guerra, que envolve tropas portuguesas e espanholas aliadas contra os Guarani
‘missioneiros’, foi necessária para fixar definitivamente as fronteiras na Bacia da Prata”.58
É sobre esse contexto histórico e esta guerra de consolidação da ocupação colonial
portuguesa no extremo sul do Brasil que Basílio da Gama trata e narra em seu épico setecentista
O Uraguai (1769). Subvertendo as alianças de outrora, o épico apresenta a associação entre as
coroas portuguesa e espanhola contra os religiosos da Companhia de Jesus e suas missões pelo
domínio do território, do “corpo” e da “alma” do Guarani missioneiro dos sete povos das
missões, na atual região oeste do estado do Rio Grande do Sul. Em O Uraguai, Basílio da Gama
retrata um indígena que se impunha como fator de impedimento à ocupação portuguesa de seu
território, tomada territorial que se daria através de um Tratado acordado entre as nações
ibéricas. Em desacordo, resistente e resiliente a este acordo, o índio é matizado por Gama como
uma vítima dos clérigos que sucumbe em seu habitat onde encontrava-se sob a vigilância dos
verdadeiros inimigos da colônia: a ordem jesuítica.
Em Da poesia brasileira, de 1856, o já mencionado diplomata espanhol Juan Valera
procura definir, didaticamente, as circunstâncias históricas que deram origem ao épico de
Basílio da Gama:
O primeiro poema brasileiro, tanto na ordem da publicação, como na correção, é o
Uruguai de Basílio da Gama; não obstante ser o seu assunto, que mais parece um
libelo contra os jesuítas, de pouco interesse. Em 171059 Portugal cedeu à Espanha a
colônia de Sacramento em troca das sete missões do Uruguai, que deviam ser
incorporadas ao Brasil. Os índios, que estavam contentíssimos debaixo do domínio
58 MOREIRA NETO, C. de A., Os índios e a ordem imperial, p. 231. 59 A data correta é 1750.
41
dos jesuítas não quiseram obedecer à esta determinação, e daqui se originou uma
guerra, na qual, depois de uma obstinada resistência, os índios foram vencidos e
subjugados. Os jesuítas neste poema são maltratados e caluniados horrivelmente. Os
capitães portugueses e espanhóis que os vencem inspiram-nos também pouquíssimo
interesse, e todas as simpatias do leitor são para com os pobres índios, que, posto que,
segundo o poeta, defendem uma má causa enganados, e alucinados pelos padres,
defendem-na, não obstante com maravilhosa heroicidade. 60
Em sua exposição, Valera auxilia os literatos de seu tempo na construção de uma
tradição literária mais profunda e antiga à poesia autenticamente brasileira. Assim, tributa ao
épico setecentista o caráter de “primeiro poema brasileiro”. Não obstante enumerar as
qualidades, a correção e a beleza dos episódios narrados, o espanhol tivera a preocupação de
relevar o seu descontentamento com o autor do poema. Acusa-o de “ingrato” para aqueles que
lhe proporcionaram a educação, os algozes da colônia naquele momento: a ordem jesuítica. Na
avaliação de Juan Valera sobre O Uraguai e seu autor, “é sabido que os incrédulos vergonhosos,
que não se atrevem a atacar diretamente a religião católica, se desafogam insultando aos
jesuítas”. Em sua concepção, a Companhia de Jesus:
(...) é uma corporação de homens honestos e ilustrados, posto que algum tanto
ambiciosos, sendo esta a causa da cruenta guerra que lhe move o vulgo Basílio da
Gama, ingrato para com eles, pois lhes devia sua educação, posição e tudo o que era,
seguiu nisto as ideias vulgares, apesar das suas luzes. Quanto aos mais, é poeta, senão
grande, aos menos estimável e digno da imortalidade (...). 61
Na compreensão de Valera, a Guerra Guaranítica promovida pelos exércitos ibéricos
contra os indígenas missioneiros e a ordem jesuítica, na voz de Basílio da Gama, transformou-
se em uma guerra cruel do ingrato poeta brasileiro contra a ordem religiosa. Certamente, o
diplomata espanhol não se atentou ao caráter político e partidário da obra épica de Gama. Na
luta da “civilização” contra a “barbárie”, o poeta brasileiro estava coadunado com a política
pombalina de seu tempo. Partidariamente, defende a política indigenista laica e eminentemente
promovida pela ação do Estado luso e sem a participação de qualquer ordem religiosa em sua
consecução. Se, como pretendemos mostrar, a literatura indianista oitocentista se reveste de um
forte apelo político, a setecentista não foge a esta característica e, certamente, serve de
sustentação ideológica e ponto de apoio à literatura também política do século XIX.
Em sua interpretação do épico, Valera se posiciona, partidário e ideologicamente, em
um campo diametralmente oposto ao poeta Basílio da Gama. Ao descrever o poema e as
60 VALERA, J., Da Poesia Brasileira, p. 311. 61 VALERA, J., Da Poesia Brasileira, p. 316-317.
42
passagens que cantam as atrocidades da Companhia de Jesus, como o quinto e último canto,
assim se manifesta o espanhol:
O quinto e último canto do poema nos descreve, pintadas nas abóbadas do templo
principal das missões, todas as maldades da Companhia de Jesus. Deixo de falar
acerca delas, porque assaz se tem falado e escrito à tal respeito nestes últimos tempos.
(...). Em compensação, as admiráveis histórias, escritas em maravilhoso estilo, que
sobre St. Ignácio e S. Francisco de Xavier compuseram Rivadeneira e Lucena, jazem
no pó, e ninguém se anima a consultá-las. 62
Na compreensão de Treece, as circunstâncias imediatas de produção de O Uraguai, em
1769, podem ser explicadas para além da simpatia do autor para com a causa indígena e sua
oposição aos jesuítas. Segundo o pesquisador, durante uma visita a Portugal, Basílio da Gama:
(...) foi preso e condenado a ser deportado para Angola, sob suspeita de permanecer
secretamente leal à Companhia de Jesus. Apenas após pleitear sua inocência, e
escrever um “Epithalamium” para o noivado da filha de Pombal ele foi poupado. O
Uraguai foi composto no mesmo ano e foi pessoalmente dedicado a Pombal, que
apreciou a lealdade inabalável de Gama mesmo após a sua própria derrocada política. 63
Independentemente de ter sido produzido por convicção ideológica ou por pressão
política, o épico de Basílio da Gama e sua “canção” da vitória da civilização ibérica sobre a
barbárie missioneira, deve ser compreendido à luz do novo projeto indigenista do Estado
português que, neste momento, redefinia o paradigma civilizatório catequético e jesuítico pelo
modelo laico e nacionalista do Diretório Pombalino. Assim, se outrora a Companhia de Jesus
auxiliou como braço aliado da coroa espanhola e portuguesa à expansão e à efetiva conquista
do território sul-americano, neste momento, representava um obstáculo aos projetos dos países
ibéricos de instituir novos meios de civilização do indígena e à implantação dos limites
coloniais concordados por meio do Tratado de Limites assinado entre Portugal e Espanha no
ano 1750. Através dele, Portugal entregava a Colônia do Sacramento para a Espanha em troca
das Sete Missões da margem oriental do Rio Uruguai. Como afirma Langer, para o Guarani dos
Sete Povos, este tratado “estabelecia nada menos que a entrega das terras dos povoados
edificados ao longo de décadas aos seus derradeiros inimigos”, os colonos portugueses,
personagens que “no imaginário guarani-missioneiro”, se tornaram “a própria personificação
do infortúnio”.64 Dito isto, voltemo-nos ao indígena matizado no épico que alçou Basílio da
62 VALERA, J., Da Poesia Brasileira, p. 316. 63 TREECE, D., Exilados, aliados, rebeldes, p. 79. 64 LANGER, P. P., Os Guarani-Missioneiros, p. 82,65.
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Gama à categoria de romântico e indianista e colocou O Uraguai no rol de primeiro poema
eminentemente nacional no século XIX.
Cacambo é o herói indígena do poema. É ele que procura argumentar com o
representante da Coroa portuguesa, o general Gomes Freire de Andrade. Em seus argumentos,
procura evitar o avanço colonial português sobre suas terras e benfeitorias e, assim, garantir a
independência do espaço territorial que representava sua identidade étnica missioneira. Em tom
imperativo, Cacambo declara abertamente sua oposição à ocupação que suscitava o Tratado de
Limites.
(...). Se o rei de Espanha
Ao teu rei quer dar terras com mão larga
Que lhe dê Buenos Aires, e Correntes
E outras, que tem por estes vastos climas;
Porém não pode dar-lhes os nossos povos.
Aos argumentos de Cacambo, que versa sobre a falta de equidade na relação de troca
entre os reinos ibéricos, com marcados prejuízos ao reino de Portugal, Gama também apresenta
os argumentos do general português Gomes Freire de Andrade em sua tentativa de persuadir os
indígenas ao rendimento. Em seus argumentos, o general atenta-se à inocência indígena e para
a má causa que defendiam em nome dos padres que, como afirma, os enganavam e exploravam.
Recriando um indígena despojado de capacidade de agência, argumenta o general:
(...). Esse absoluto
Império ilimitado, que exercitam
Em vós os padres, como vós, vassalos,
É império tirânico, que usurpam.
Nem são senhores, nem vós sois escravos.
O rei é vosso pai: quer-vos felizes.
Sois livres, como eu sou; e sereis livres,
Não sendo aqui, em outra qualquer parte.
Mas deveis entregar-nos estas terras.
Ao bem público cede o bem privado.
O sossego de Europa assim o pede.
Assim o manda o rei. Vós sois rebeldes,
Se não obedeceis; mas os rebeldes,
Eu sei que não sois vós, são os bons padres,
Que vos dizem a todos que sois livres,
E se servem de vós como de escravos.
Armados de orações vos põem no campo
Contra o fero trovão da artilharia,
Que os muros arrebatam; e se contentam
De ver de longe a guerra: sacrificam,
44
Avarentos do seu, o vosso sangue.
Conforme Treece “a linguagem de paternalismo, com o trocadilho em torno às falsas
reinvindicações de paternidade dos padres jesuítas, é um instrumento chave para legitimar essa
‘libertação’ dos índios e sua incorporação à economia e à sociedade ‘livres’ do império
português”.65 No mesmo diálogo, o general português procura dissuadir os indígenas de sua
vida errante, nômade e contrária às estruturas sociais, políticas e econômicas avessas ao
domínio do Estado. Em sua fala, fica explícita sua coerente observância com as propostas
integracionistas da legislação indigenista de Pombal de 1758, fora da qual, para o general, não
há sociedade possível.
Fez-vos livres o céu, mas se o ser livres
Era viver errantes e dispersos,
Sem companheiros, sem amigos, sempre
Com as armas na mão em dura guerra,
Ter por justiça a força, e pelos bosques
Viver do acaso, eu julgo que inda fora
Melhor a escravidão que a liberdade.
Sem efeito, momentos após o diálogo, o que era iminente se concretizou em prejuízo do exército
indígena. Logo em seu início, no primeiro dos cinco cantos do poema, Gama antecipa a imagem
da guerra colonial. Atribui responsabilidade ao desolador retrato de sangue e morte no local em
que ocorrera a batalha aos vilões do épico: os jesuítas, sua afronta e sua “ambição de império”
que tivera como resultado um campo coberto de sangue:
Fumam ainda nas desertas praias
Lagos de sangue tépidos e impuros
Em que ondeiam cadáveres despidos
Pasto de corvos. Dura inda nos vales
O rouco som da irada artilharia.
O fracassado e antagônico diálogo entre o guerreiro Cacambo e o general Gomes Freire
nos revela dois universos distintos e não comunicáveis entre si. Se, de um lado, “a segregação
em relação à sociedade colonial e a soberania sobre o espaço reducional constituíam
imperativos fundamentais à formação da identidade étnica do guarani missioneiro”, de outro,
65 TREECE, D., Exilados, aliados, rebeldes, p. 84.
45
esses fundamentos se mostraram “incompatíveis com o universo mental e prático do sistema
colonial”,66 o que evidentemente, serviu de estopim à inevitável guerra.
Se Basílio da Gama tivera interesse em apresentar um indígena movido por uma causa
alheia, desprovido de capacidade de agência, cego e alucinado pela causa dos padres, como
interpreta Juan Valera, certamente seu intento não foi atingido. Gama nos apresenta um
indígena que, na figura de seus personagens, resguarda e luta por seus interesses com grande
heroicidade, como quando o valoroso amigo de Cacambo, Sepé, morto em batalha, aparece em
sonho e demove o herói do poema da passividade do refúgio na margem oposta do rio Uruguai.
Certamente, um dos mais belos episódios do épico:
Foge, foge, Cacambo. E tu descansas,
Tendo tão perto os inimigos? Torna,
(...)
Que descuidados da outra parte dormem.
Envolve em fogo e fumo o campo, e paguem
O teu sangue e o meu sangue (...).
Em um ato de protagonismo, assim fez Cacambo. Mesmo diante da correnteza do rio
que separava os dois acampamentos, de forma autônoma, vence as barreiras naturais e usando
seus conhecimentos tradicionais, roça dois lenhos entre si e desperta a chama que se propaga
com a ajuda do vento nas instalações do acampamento inimigo.
Treece também defende semelhante perspectiva. Em sua compreensão, Gama permite
que “seus protagonistas índios alcancem uma estatura épica que ultrapassa, de longe, seu papel
como vítimas passivas e como que infantis da manipulação (...)”. Para fortalecer seu argumento,
salienta as diversas cenas autônomas de heroísmo militar dos índios guerreiros, como “a missão
de Cacambo de pôr fogo no campo inimigo, a separação de sua amante Lindóia e sua morte nas
mãos dos jesuítas corruptos”; momentos que o autor considera como um “espaço poético
especial, exclusivo do índio”.67
Porém, se a intenção de Gama fora a de criar um líder religioso torpe e engenhoso,
certamente atingiu êxito. O padre jesuíta Balda, atendendo a seus interesses pessoais, envenena
o herói do enredo e deixa viúva a linda e formosa Lindóia. Ao padre, interessava a união
matrimonial de seu sobrinho Baldeta ao sangue real da viúva e a autoridade que esta exercia
nos seus pares. No entanto, em outro espaço poético exclusivo do índio, após ter certeza do
66 LANGER, P. P., Os Guarani-Missioneiros, p. 79. 67 TREECE, D., Exilados, aliados, rebeldes, p. 85.
46
breve colapso da “república” dos jesuítas, vingada e em um nítido ato de resistência, a jovem
viúva põe fim à sua própria vida e aos planos do infame padre que, subitamente vislumbra a
breve chegada dos exércitos ibéricos sob a chefia do general Gomes Freire de Andrade.
Em seu último canto, Gama salienta a ganância dos padres da Companhia de Jesus,
descritos como um “lobo voraz que vai na sombra escura meditando traições ao manso gado”.
Finalmente, canta o momento em que os ex-missionados descobrem no general do exército
português e em sua tropa os verdadeiros amigos, ávidos por alentar os inocentes indígenas
através da sua integração à vida social ao molde ocidental.
Entra no povo e ao templo se encaminha
O invicto Andrade; e generoso, entanto,
Reprime a militar licença, e a todos
Com a grande sombra ampara: alegre e brando
No meio da vitória. Em roda o cercam
(Nem se enganaram) procurando abrigo
Chorosas mães, e filhos inocentes,
E curvos pais e tímidas donzelas.
Sossegado o tumulto e conhecidas
As vis astúcias de Tedeu e Balda,
Cai a infame República por terra.
Aos pés do General as toscas armas
Já tem deposto o rude Americano,
Que reconhece as ordens e se humilha,
E a imagem do seu rei prostrado adora.
Como canta o poeta Basílio da Gama, “deposto o rude americano” caberia ao general
Gomes Freire de Andrade cooptar os índios, agora subjugados e prostrados, aos interesses
integracionistas da coroa portuguesa. Na estrofe acima, o poeta narra a vitória da civilização e
o início da nova ordem civilizatória na qual as diferenças étnicas seriam dirimidas, com
prejuízos aos “bárbaros”. Mais do que a vitória do exército ibérico e da política indigenista de
Pombal, a queda da “República dos jesuítas” apresentada por Gama, representa uma astuta
política de “aliciamento” dos indígenas missioneiros à comunhão colonial. Em seu épico, o
poeta encerra o antigo sonho, iniciado pragmaticamente pelos jesuítas, de integrar esse “outro”
etnicamente distinto ao conjunto da população dominante. Representa ainda “o primeiro passo
rumo a uma sociedade mestiçada (tida por ideal) pois, na concepção dos teóricos da política
pombalina, era possível absorver o contingente humano nativo sem comprometer o etos da
nação lusitana”.68
68 LANGER, P. P., Os Guarani-Missioneiros, p. 142.
47
Portanto, para além da possibilidade poético/literária que a chamada Guerra Guaranítica
forneceu a Basílio da Gama, de seu caráter político em que procura legitimar as novas diretrizes
reformistas e ilustradas de Pombal, de seu alinhamento colonial e, ainda, da propaganda
anticlerical que efetua, Basílio da Gama, através dos personagens Cacambo, Lindóia e Sepé, dá
início, já no século XVIII, aos fundamentos de uma literatura composta por personagens índios
heroicizados que, submetidos e aliados, contribuirão para a defesa e a integridade territorial da
colônia portuguesa. Morta a tríade de heróis índios, sobram seus pares para compor o sangue
da sociedade etnicamente homogênea e branca almejada no programa indigenista de Pombal,
sonho que se perpetua no século XIX, como tão bem demonstra a literatura indianista deste
século.
1.5. O índio redimível em Caramuru.
Assim como O Uraguai, o épico Caramuru, publicado em Portugal no ano de 1781 pelo
poeta brasileiro Frei José de Santa Rita Durão, também é representativo de uma literatura que
fornece raízes mais profundas ao romantismo oitocentista, concedendo ao movimento
artístico/literário ares de uma tradição mais respeitável. O índio idealizado pelo Frei na
literatura colonial do século XVIII volta à cena no XIX, vivificado pelos literatos do
romantismo e se torna representante do nativo americano que participa, juntamente com o
branco, da formação da nova nação dos trópicos que estava se desenhando. Como lembra
Castello, no épico que narra a história do português Diogo Álvares Correia, “surpreendido entre
índios antropófagos e guerreiros”, o índio é visto “como objeto da história e da etnografia:
contatos e conflitos com o colonizador, descrição de hábitos e costumes, espírito guerreiro, em
suma, os aspectos de sua vida e organização, à maneira dos cronistas”. 69
Comparando Caramuru com o seu contemporâneo O Uraguai, o espanhol Juan Valera
considera o primeiro “de mais interessante e variado argumento, de maiores dimensões, e com
mais entusiasmo”.70 Certamente, a apologia à conversão religiosa do indígena de que trata o
épico agradou o defensor da ordem jesuítica. Sobre o contexto histórico que alimentou o poema,
o correspondente espanhol da Revista Guanabara assim o apresenta:
Já estava descoberta grande parte do vasto Brasil quando Diogo Correa foi colonizá-
lo com outros portugueses. Uma horrorosa tormenta destroçou a embarcação em que
iam e os arrojou em uma terra incógnita. Os selvagens antropófagos, que a habitavam,
69 CASTELLO, J. A., A Literatura Brasileira, p. 150. 70 VALERA, J., Da Poesia Brasileira, p. 317.
48
rodeiam aos náufragos, se apoderam facilmente deles, e encerrando-os em uma
obscura caverna, destinaram-nos para o seu sustento. E como uns morressem deste
modo, e se salvassem outros pela fuga internando-se pelos bosques, veio Diogo, que
estava muito doente, a ficar só, porque não pode fugir com os seus companheiros e
vivo, porque não quiseram os selvagens comê-lo até que engordasse. Com este intuito
o deixaram em certa liberdade, e aproveitando-se dela, teve ele um dia a aventura de
achar entre os restos da embarcação, que as ondas haviam depositado na areia, um
arcabuz, alguma pólvora e outros objetos utilíssimos naquelas circunstâncias e própria
para despertar nos índios a admiração e o respeito para com sua pessoa. Por isso, e
por ser homem de muito espírito e consciência tranquila não só se libertou da morte
como até chegou a ser temido como um Deus entre aquela gente rude, que atemorizada
e submissa o chamou Caramuru, vocábulo que na língua brasileira quer dizer monstro
marinho, e segundo Durão, posto que contra o parecer de doutos filólogos, filho do
trovão. 71
Urdido de substância ideológica, Durão tece um personagem cristão e catequizador,
avesso aos cultos pagãos dos Tupinambás, a quem passa a difundir os seus valores culturais e
religiosos, proibindo-lhes a antropofagia e suas práticas tradicionais. Ao apresentar o poema,
Hernani Cidade assim define o proselitista Diogo Caramuru: “o herói faz a guerra defensiva
que lhe é imposta, e é pela superioridade da cultura, pelo ardor da fé, pela dureza dos costumes,
pela irradiante simpatia humana, mais do que pelas façanhas que a posse exclusiva do arcabuz
lhe facilita, que vai conquistando uma posição (...).72 Como veremos, entre as ambições de
Santa Rita Durão, estava a de descrever e enaltecer os feitos do colonizador português no Brasil.
Além da astúcia de Diogo, é certo que a superioridade tecnológica arregimentou o
emboaba à conquista espiritual dos americanos. Perseguido pelos Tupinambás que pretendiam
banqueteá-lo, o lusitano se utiliza de sua espingarda e acovarda a todos com a sua chama e seu
estampido. Segundo o poeta, após o tiro, “Fica o bárbaro ao golpe estremecido, / E cai por terra,
no tremendo abalo / Da chama, do fracasso e do estampido”. Após o disparo que emite um som
semelhante ao hórrido trovão com raio e estalo, Gupeva, o grande chefe dos Tupinambás,
acreditou formada “no arcabuz do Diogo uma trovoada” (II, 44). Prostrados, a turba de índios
repete: “Tupã Caramuru! – Temendo um raio” (II, 45).
Desde esse dia, é fama que por nome
Do grão Caramuru foi celebrado
O forte Diogo; e que escutado, dome
Este apelido o bárbaro espantado.
(...). (II, 46)
71 VALERA, J., Da Poesia Brasileira, p. 318. 72 CIDADE, H., Caramuru, p. 14.
49
Certamente, as duas maiores substâncias ideológicas apregoadas pelo poeta mineiro são
a colonização portuguesa e a catequese religiosa, defendidas em nome de um projeto
humanitário e salvacionista aos bárbaros e antropófagos Tupinambás. Logo na introdução do
épico, dedicado ao rei de Portugal D. José I, Durão as justifica:
Devora-se a infeliz, mísera gente;
(...)
Olhai, Senhor, com reflexão clemente
Para tantos mortais que a brenha encerra,
E que, livrando desse abismo fundo,
Vireis a ser monarca de outro mundo. (I, 5)
Conforme Antonio Candido, embora o principal interesse de Durão seja o de celebrar
através da epopeia e do personagem Diogo a colonização portuguesa no Brasil, o ponto de vista
celebratório era o de exaltar “a obra colonizadora principalmente na medida em que era uma
empresa religiosa, uma incorporação do gentio ao universo da fé católica”. Ainda segundo o
autor, torna-se evidente que o personagem Diogo Caramuru foi matizado “como uma espécie
de missionário em embrião, que prepara os caminhos regulares da catequese”.73
Em suas relações interétnicas, Diogo Alvares não demora em identificar esse caminho,
como quando identifica o germe do cristianismo entre os nativos. Na narrativa épica, Diogo
Alvares os conduz ao interior da caverna e como o negro manto da noite já se espraiava, toma
seu férreo fuzil e ateia fogo em uma candeia. Assim, faz a todos crer que o fogo nascera de suas
mãos. Atentamente e sob a luz da lua, os Tupinambás avistam os objetos que Diogo trouxera
da nau, como as roupas, a pólvora, armas, ouro e prata e, neste momento, o poeta canta e louva
a falta de cobiça nos olhos dessa gente. Entre os objetos avistados, encontra-se um retrato da
Virgem, o qual Gupeva, extasiado com a beleza da imagem, identifica como esposa ou mãe de
Tupã. O lusitano surpreende-se com as adivinhações do guerreiro e, encontrando indícios da
presença do bom selvagem no chefe indígena, catequiza-o e ganha sua dedicação.
Em outro momento, Caramuru procura se informar das concepções religiosas dos índios
e surpreende-se com o que ouve acerca de Deus, do diabo e da vida pós-morte. Considera-as
tão elevadas, que acredita não ser possível terem sido inventadas. Pareciam mais reminiscências
de uma antiga revelação transmitida oralmente através das gerações ou antes, como afirma
Gupeva, da pregação do Santo emboaba Sumé, que teria missionado em terras americanas. O
chefe indígena lembra que é fama antiga, que o filho de Tupã, o santo Sumé, teria atravessado
73 CANDIDO, A., Literatura e sociedade, p.182,187.
50
o mar, a pé e sem afundar: “Branco de cor, e como tu, barbado, / Por esse vasto mar tinha
chegado; / Na santa doutrina que ensinava, / Ao caminho dos Céus todos chamava” (III, 81).
No entanto, lembra que: “Porque os nossos maiores, pouco crentes, / Achando-a de seus vícios
inimiga, / Recusaram guardá-la, mal contentes: / Mas da memória o tempo não acaba, / Que
pregara Sumé, santo emboaba” (III, 80).
Neste canto, o poeta Durão, na voz de Gupeva, eleva o messiânico Diogo ao posto de
filho de Tupã. Para Treece, identificando-o como filho do trovão, Durão estaria elevando Diogo
ao “status da figura de Cristo”, uma vez que esse era o “termo comumente utilizado pelos
missionários jesuítas para traduzir a noção de um Deus cristão onipotente em termos
compreensíveis aos índios”.74 Como cristão, o filho do trovão recusa o culto que os Tupinambás
lhe dedicam, mas utiliza-o a favor de seu messianismo. Fala do verdadeiro Deus, de quem se
diz filho, lhes impõe o fim das práticas antropofágicas e os faz reconhecer Gupeva como o
verdadeiro chefe, de quem ganha confiança. Hospedado em uma taba, é recebido com inauditas
e honoríficas solenidades, e ao avistá-lo, todos pronunciam: Mas mair ma apadu, que significa,
bem-vindo o estrangeiro. De acordo com a hospitalidade Tupinambá, recebe a visita de femínea
turba a oferecer-se aos seus desejos, mas, o jovem e casto cristão recusa-as. Porém, após avistar
a celestial Paraguaçu, filha de um principal das terras do contorno, apaixona-se perdidamente
pela princesa, e imediatamente, compara-a com as demais selvagens.
Paraguaçu gentil (tal nome teve),
Bem diversa de gente tão nojosa,
De cor tão alva como a branca neve,
E donde não é neve, era de rosa;
O nariz natural, boca mui breve,
Olhos de bela luz, testa espaçosa;
De algodão tudo o mais, com manto espesso,
Quanto honesta encobriu, fez ver-lhe o preço. (Canto II, 78)
O jovem Caramuru apaixona-se pela jovem e bela índia americana de traços europeus,
e o poeta, ao descrevê-la, purifica-a de qualquer comportamento étnico. Além da alvura da pele,
do nariz e da boca de pouco volume, descreve-a como totalmente coberta em seu pudor, ao
contrário de seus pares de raça e sexo. O domínio da língua lusitana só faz aumentar a admiração
de Caramuru por Paraguaçu, a quem deseja ardentemente; chama que precisa mitigar em nome
de sua razão cristã que faz a ardente paixão ceder à prudência. Como afirma Candido, “Durão
74 TREECE, D., Exilados, aliados, rebeldes, p. 92.
51
operou em Diogo um curioso trabalho de limpeza”. Inicialmente, o fez repelir os favores sexuais
postos à sua disposição pelas jovens índias e, prontamente, “fê-lo comprometer-se desde logo
com Paraguaçu, para, todavia, só efetuar a união depois dela ter sido batizada na França, e,
portanto, estar apta para o matrimônio cristão”.75 Correspondido em sua ardente paixão,
Paraguaçu diz ao seu amante:
Esposo, teu nome ignoro;
Mas não teu coração, que, no meu peito,
Desde o momento em que te vi, que o adoro
Não sei se era amor já, se era respeito;
Mas sei do que então vi, do que hoje exploro
Que de dois corações um só foi feito.
Quero o batismo teu, quero a tua igreja;
Meu povo seja o teu, teu Deus meu seja. (Canto II, 90).
Em uma sucessão de vitórias, o filho do trovão vence o exército inimigo dos
Tupinambás e as mais perigosas e belicosas nações indígenas se submetem ao português, que
estendeu seu domínio e influência ao interior do país. Desfrutando de copiosa credibilidade e
liderança entre diversas tribos, agora sujeitas às suas pregações cristãs, os mais afamados chefes
e guerreiros indígenas querem desposar suas filhas com o famoso Caramuru, mas este, em sua
fidelidade casta, só tem olhos para Paraguaçu.
Saudoso de sua pátria, Diogo Caramuru e sua amada Paraguaçu embarcam em uma nau
rumo à França. Neste momento, Rita Durão canta a cena mais clássica do épico. A turba feminil,
apaixonada pelo lusitano, dentre elas a mais famosa, Moema, nada desesperadamente atrás de
Diogo. Afoitas, as inúmeras índias nadam e clamam por Caramuru. A copiosa tripulação da nau
francesa, pasmada, corre para ver o espetáculo, e não deixa de perceber a mais irada; era a bela
Moema, “que de inveja geme, / e já vizinha à nau se apega ao leme” (VI, 37). A jovem índia
brada e se culpa por não ter domado aquele que ama, até que em derradeiro momento, diante
dos olhos de seu amor e de toda a tripulação:
Perde o lume dos olhos, pasma e treme,
Pálida a cor, o aspecto moribundo;
Com mão já sem vigor, soltando o leme,
Entre as salsas escumas desce ao fundo.
Mas na onda do mar, que, irado freme,
Tornando a aparecer desde o profundo,
75 CANDIDO, A., Literatura e sociedade, p. 181.
52
- Ah! Diogo cruel! – disse com mágoa, -
E sem mais vista ser, sorveu-se na água. (VI, 42)
Imagem 1- Moema (1866) de Victor Meirelles.
Fonte: https://masp.org.br/acervo/obra/moema
Treece lembra que enquanto Paraguaçu representa “um símbolo ideal da conversão
indígena e da incorporação da ética católica na família do mestiço colonial”, Moema é a
representante mais importante de uma noção de sexualidade ilícita, na qual o poeta “projeta a
sexualidade escura e perigosa da mulher índia (...) que se agarra desesperada à quilha do navio”.
76 Moema serve de contraponto à princesa indígena esposada por Diogo, e em seu épico, Durão:
(...) segue às duras penas para enfatizar a distância física e moral que separa Paraguaçu
das outras índias e sua consequente proximidade a Diogo. Ela é descrita como ‘certa
dama gentil brasiliana’ e como ‘donzela’, em vez de ‘índia’ ou ‘gentia’; exibe a
sensibilidade erótica de uma civilizada, e seu conhecimento de português,
convenientemente aprendido de um cativo da tribo, lhe dá uma intimidade
comunicativa especial com Diogo. 77
76 TREECE, D., Exilados, aliados, rebeldes, p. 93-94. 77 TREECE, D., Exilados, aliados, rebeldes, p. 95.
53
Cantando os feitos da colonização portuguesa em terras brasileiras, era de se esperar que
o triunfo da catequese e da integração do universo selvagem na cultura europeia acontecesse
em Lisboa. Porém, é em solo francês que o casamento do primeiro casal símbolo da
miscigenação portuguesa e indígena se concretizou. Também é na França que a jovem indígena
recebe o sacramento do batismo e o nome da madrinha, a rainha Catarina de Médici, que dá o
seu nome à Paraguaçu. Paralelamente, acontece o “seu ingresso na igreja pela aceitação da fé e
seu ingresso na civilização cristã pelos caminhos da fé”. Como salienta Lopes, enquanto o
domínio pelas armas pertence a Portugal, o domínio pela cultura pertence à França. 78
Embora tenhamo-nos preocupado mais com o substrato ideológico de Caramuru, não
podemos deixar de assinalar que o substrato estético e paisagístico do território brasileiro não
fora omitido por Durão. O poeta canta as belezas e as grandiosidades naturais do espaço
geográfico do território da Bahia. Hipertrofia as maravilhas das paisagens naturais a todo o
território do Brasil e descreve um país em vasto lugar ameno, com paisagens belas e deleitosas,
no conjunto do mundo.
Mil e cinquenta e seis léguas de costa,
De vales, e arvoredos revestida,
Tem a terra Brasílica composta
De montes de grandeza desmedida:
(...).
Na sequência da estrofe, na voz do personagem Diogo Caramuru, Rita Durão realiza
uma minuciosa descrição das maravilhas brasileiras. Apresenta seus principais rios, vales,
montanhas, pássaros, animais, plantas, flores entre outros elementos que compõem o rico e
diversificado ambiente natural brasileiro. Durão cobre o país de elementos estéticos de extrema
excepcionalidade; elementos tão ricos e necessários aos românticos literários do século XIX,
que os apropriam proveitosamente em seu movimento intelectual.
Assim como fez Basílio da Gama, Santa Rita Durão também cantou a vitória da
civilização sobre a barbárie, ainda que por caminhos distintos. Igualmente, “promoveu” o índio
americano, concedendo-lhe um novo status, o de redimível. A limpeza étnica que o autor realiza
em Paraguaçu e sua sobrevivência biológica, representada pela união/miscigenação com o
nobre Diogo Correia, é representativa desse status. Afinal, seus atributos podem se misturar aos
europeus e, assim, sobreviver e alimentar o sangue daqueles que dariam origem a uma nova
sociedade nas terras americanas. Já Moema e seu excesso étnico, é representativa de tudo que
não deve sobreviver e se perpetuar. Com seu perecimento físico, perece também a possibilidade
78 LOPES, H., A divisão das águas, p. 173.
54
da perpetuação biológica de suas características étnicas que só poderiam manchar o sangue da
nova sociedade que então se conformava nos trópicos da América. Bidimensional, ao mesmo
tempo que o épico Caramuru exalta a vida, faz o mesmo com a morte.
1.6. O Índio redimível em O Guarani.
José Martiniano de Alencar (1829-1877), nasceu em Messejana, no Ceará. Além de
Dramaturgo, advogado, jornalista e político, foi também romancista e um dos maiores
representantes da corrente literária indianista. Movido por sentimentos patrióticos, se aventura
na escrita de obras nacionalistas que versam sobre os mais variados temas e gêneros como o
romance, contos, teatro, poesias, crônicas, ensaios, escritos filológicos e políticos. Conforme
Mario da Silva, “sua infância passou-se num cenário que tinha como fundo a natureza, que mais
tarde lhe inspirará romances como Iracema e O guarani. 79
Alencar participou do movimento de renovação literária que agremiou parte da
intelectualidade brasileira de meados do século XIX. Destacou-se entre seus contemporâneos,
principalmente entre a elite intelectual do Império que neste momento discutia e planejava as
diferentes maneiras de consolidar e projetar a imagem da nova nação perante seus habitantes e
as demais nações “civilizadas”, com prevalências às europeias. Em meio a estas discussões,
contribuiu com suas ideias que alimentavam o debate sobre o desenvolvimento de uma
literatura patriótica que definisse uma identidade cultural e linguística particular à jovem nação
da América. Mario da Silva lembra a fala do romancista na qual afirma que “o Brasil não podia
ficar amarrado à língua falada em Portugal”, e confessa o empenho em renová-la: “A língua é
a nacionalidade do pensamento como a pátria é a nacionalidade do povo”. Em meios aos
dissensos propostos pelos intelectuais, envolveu-se em grandes polêmicas, como as críticas que
fez ao épico indianista A confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhaes. Para Alencar,
o gênero épico não caracterizava a literatura brasileira, por isso, escolheu a ficção e o romance
como gêneros preferidos.80 Como destaca Castello, em termos românticos, ao passar do estilo
épico para a narrativa em prosa, o crivo artístico do poeta “seria alimentado pela sensibilidade
e imaginação, pela sentimentalidade e visão da fusão do homem americano com o europeu, até
ao reconhecimento já avançado da nossa formação”.81
79 SILVA, F. M da., O Brasil retratado pela literatura, p. 326. 80 SILVA, F. M da., O Brasil retratado pela literatura, p. 326-327. 81 CASTELLO, J. A., A Literatura Brasileira, p. 269.
55
No ano de 1855 se torna gerente e redator-chefe do jornal carioca Diário do Rio. Neste
veículo de informação, publica seu primeiro romance: Cinco Minutos (1856). No ano seguinte,
começa a veicular, em forma de folhetim, seu primeiro de muitos romances indianistas que,
devido ao enorme sucesso, logo fora publicado em livro: O Guarani. Neste clássico da literatura
histórica brasileira, Alencar romanceia o contato entre os índios e os colonizadores portugueses
e procura “expor as raízes fundadoras e fundamentais do país”. Como lembra Paulo Graça, no
romance O Guarani, “o indígena primitivo, heroico e puro; sensual e sensível em sua versão
feminina, encontra-se com o europeu e dessa união deverá nascer uma nova pátria ocidental,
culta e vária, tendo a lhe sustentar os mais altos valores éticos”.82 Neste primeiro clássico do
romântico indianista, o autor eterniza seu não menos clássico personagem, o abnegado indígena
guarani, Peri. Realizada esta breve apresentação biográfica do autor e da obra, atentemo-nos a
seguir ao romance e aos seus personagens centrais.
“Um cavaleiro português no corpo de um selvagem! ”. Assim o fidalgo e colonizador
português D. Antonio de Mariz define o caráter do abnegado guerreiro guarani, Peri. Abnegado
pois, de forma incondicional, o índio alencariano dedica a sua vida e o seu tempo a velar pela
segurança e felicidade da família do português, principalmente de sua filha Cecilia. Em nome
de uma escravidão voluntária à jovem, a quem passa a devotar sua existência, Peri se entrega
de corpo e alma. Priva-se de sua origem índia, de sua vida tribal e da liderança que exercia em
sua guerreira nação Goitacá. Os riscos mortais que imputa à própria vida em sua dedicação cega
à sua senhora, como chama a jovem, comovem o pai: “É para mim uma das coisas mais
admiráveis que tenho visto nesta terra, o caráter desse índio. Desde o primeiro dia que aqui
entrou, salvando minha filha, a sua vida tem sido um só ato de abnegação e heroísmo”.83
Nem mesmo o apelo da mãe do príncipe Peri, filho do chefe e guerreiro Ararê, o demove
de sua cega abnegação:
- Teu campo te espera!
- Peri fica, mãe! disse ele com a voz comovida.
- Por quê?
- A senhora mandou.
A pobre mãe recebeu esta palavra como uma sentença irrevogável; sabia do império
que exercia sobre a alma de Peri a imagem de Nossa Senhora, que ele tinha visto no
meio de um combate e havia personificado em Cecília. Sentiu que ia perder o filho,
orgulho de sua velhice, como Ararê tinha sido o orgulho de sua mocidade. Uma
lágrima deslizou pela sua face cor de cobre.84
82 GRAÇA, A. P., Uma poética do Genocídio, p. 33. 83 ALENCAR, J de., O Guarani, p. 49. 84 ALENCAR, J de., O Guarani, p. 117.
56
Mesmo diante do desespero e das lágrimas da velha índia, resolutamente, Peri pronuncia
poeticamente o seu desejo: “O fruto que cai da árvore, não torna mais a ela; a folha que se
despega do ramo, murcha, seca e morre; o vento a leva. Peri é a folha; tu és a árvore, mãe. Peri
não voltará ao teu seio”.85 Em detrimento dos seus, Peri escolhe o colonizador português,
apresentado por Alencar como dotado de uma excepcional força de atração. No diálogo com
sua mãe, Peri vislumbra e aceita sem hesitar, o sofrimento e a morte étnica que o “não voltar”
representa, tudo em nome desta força de atração que leva o devotado índio a atitudes de
completa entrega e devoção ao conquistador. Ao analisar o romance, Bosi afirma não saber “de
outra formação nacional egressa do antigo sistema colonial onde o nativismo tenha perdido
(para o bem e para o mal) tanto da sua identidade e da sua consistência”.86 Ainda segundo autor:
O que importa é ver como a figura do índio belo, forte e livre se modelou em um
regime de combinação com a franca apologia com o colonizador. Essa conciliação,
dada como espontânea por Alencar, viola abertamente a história da ocupação
portuguesa no primeiro século (é só ler a crônica da maioria das capitânias para saber
o que aconteceu), toca o inverossímil no caso de Peri, enfim é pesadamente ideológica
como interpretação do processo colonial. 87
Para Bosi, “é próprio da imaginação histórica edificar mitos que, muitas vezes, ajudam
a compreender antes o tempo que os forjou do que o universo remoto para o qual foram
inventados”. Entre estes mitos, encontra-se o bom selvagem alencariano. O autor lembra ainda
que ao compor um índio em íntima comunhão com o português, voluntariamente servil a este
e literalmente, um escravo de Ceci, a quem idolatra como sua senhora, “na sua representação
da sociedade colonial dos séculos XVI e XVII, Alencar submete os polos nativo-invasor a um
tratamento antidialético pelo qual se neutralizam as oposições reais”.88
À espontânea conciliação Bom Selvagem/Bom Português, relação que “toca o
inverossímil”, conforme defendido por Bosi, acrescentaríamos outra inverossimilhança
alencariana que transcende esta: a conciliação espontânea índio/bandeirante, atividade da qual
provinha a renda do fidalgo D. Antônio de Mariz. Omitindo a atividade de caça aos índios,
Alencar define as bandeiras como “(...) caravanas de aventureiros que se entranhavam pelos
sertões do Brasil, à busca de ouro, os brilhantes e esmeraldas, ou à descoberta de rios e terras
ainda desconhecidos”. Esta atividade é desenvolvida pelos “aventureiros pobres desejosos de
fazer fortuna rápida” que recebem asilo no fundo do solar do fidalgo, em dois grandes armazéns
85 ALENCAR, J de., O Guarani, p. 117. 86 BOSI, A., Dialética da colonização, p. 181. 87 BOSI, A., Dialética da colonização, p. 179. 88 BOSI, A., Dialética da colonização, p. 180.
57
completamente separados da habitação do abastado português. Impondo rigorosa disciplina aos
aventureiros que acolhe, D. Antônio é a lei e retém metade dos lucros auferidos com as
atividades bandeirantistas de seus “súditos”.
O fidalgo colonizador é matizado por Alencar como um nobre e “suserano” português,
mediador dos conflitos que perpassam seus familiares e “vassalos” sob sua responsabilidade e
proteção. Ao longo do romance, Alencar preocupa-se em apresentar a nobreza do cavaleiro
medieval em D. Antonio. Repetidamente, descreve seu senso de justiça, honradez e respeito
com que trata e é tratado pelos seus. Sobre os índios inimigos dos colonizadores, o fidalgo
afirma: “para mim, os índios quando nos atacam são inimigos que devemos combater; quando
nos respeitam são vassalos de uma terra que conquistamos, mas são homens! ”.89 Em sua
composição familiar, o fidalgo está rodeado por sua esposa D. Lauriana, seu filho D. Diogo,
sua filha Cecília e a “sobrinha” D. Isabel, fruto do “relacionamento” do colonizador com uma
índia cativada em uma das expedições de “seus” bandeirantes.
Neste ambiente, nada é motivo suficiente para dissuadir o guarani Peri de seu propósito
de vida: proteger e salvar sua senhora dos perigos que a rodeiam. Nada o demove de sua
ocupação diária de zelar pela vida e pela segurança da filha do colonizador. Com nobreza, Peri
enfrenta a animosidade de D. Lauriana, que demonstra forte preconceito racial e procura toda
sorte de subterfúgios para convencer D. Antônio a afastar o “selvagem” da presença de sua
família. Com frieza é tratado por D. Isabel que, possivelmente, ao olhar para o “selvagem” tinha
à memória a sua origem índia, que lutava para esquecer.
Em sua defesa, Peri conta com a jovem e bela Ceci. No romance, a filha de D. Antonio
ganha contornos de uma doce e meiga mediadora, sempre prestes a defendê-lo das
animosidades de sua mãe e de sua “irmã”. Proselitista, a sempre doce e meiga Ceci procura
domar os instintos mais rebeldes de seu “escravo”, sempre em seu benefício.
— Que queres que Peri faça de sua vida, senhora?
— Quero que estime sua senhora e lhe obedeça, e aprenda o que ela lhe ensinar, para
ser um cavalheiro como meu irmão D. Diogo e o Sr. Álvaro.
Peri abanou a cabeça.
— Olha, continuou a menina; Ceci vai te ensinar a conhecer o Senhor do Céu, e a
rezar também e ler bonitas histórias. Quando souberes tudo isto, ela bordará um manto
de seda para ti; terá uma espada, e uma cruz no peito. Sim? 90
89 ALENCAR, J de., O Guarani, p. 41. 90 ALENCAR, J de., O Guarani, p. 175.
58
Ceci sabia que a gentilidade do “selvagem” era um dos motivos pelos quais sua mãe
rejeitava a presença do índio. Na tentativa de elevá-lo e torná-lo digno de estima, procura
transformá-lo culturalmente, aos seus e aos olhos de todos. Educada nos princípios religiosos
cristãos, “Cecília (...) se afligia com a ideia de que Peri, a quem votava uma amizade profunda,
não salvasse a sua alma e não conhecesse o Deus bom e compassivo a quem ela dirigia suas
preces”.91
Para demonstrar a capacidade civilizatória do Goitacá e sua gradual integração à
sociedade colonial cristã, processo que se inicia com a entrega espontânea do índio à comunhão
familiar do colonizador, Alencar apresenta um diálogo entre Peri e Ceci em que o índio
demonstra já ter amplo conhecimento dos valores e princípios religiosos da família que o
“acolheu”. Entre esses princípios, destaca-se o conhecimento do primeiro e do quinto
mandamentos, “amar a Deus sobre todas as coisas” e “não matarás”. Certamente, os valores
cristãos foram transmitidos ao Goitacá por sua “senhora” em sua tarefa proselitista:
— Tu não entendeste Peri, senhora; Peri te pediu que o deixasses na vida em que
nasceu, porque precisa desta vida para servir-te.
— Como? .... Não te entendo!
— Peri, selvagem, é o primeiro dos seus; só tem uma lei, uma religião, é sua senhora;
Peri, cristão, será o último dos teus; será um escravo, e não poderá defender-te.
— Um escravo! .... Não! Serás um amigo. Eu te juro! Exclamou a menina com
vivacidade.
O índio sorriu:
— Se Peri fosse cristão, e um homem quisesse te ofender, ele não poderia matá-lo,
porque o teu Deus manda que um homem não mate outro. Peri selvagem não respeita
ninguém; quem ofende sua senhora é seu inimigo, e, morre!
Cioso pela estima de sua “senhora”, o bom selvagem alencariano ratifica constantemente
o seu propósito de abandonar definitivamente a sua identidade étnica para adotar a do
colonizador, em um futuro breve, como no diálogo a seguir:
— Peri te desobedeceu por ti somente; quando já não correres perigo, ele virá ajoelhar
a teus pés, e beijar a cruz que tu lhe deste.
— Eu sabia que tu não me negarias o que te pedi; assim não exijo mais; espero.
Lembra-te somente que no dia em que tu fores cristão, tua senhora te estimará ainda
mais.
A dialética colonial que Alencar apresenta, vislumbra uma nova síntese, na qual
colonizador e colonizado, Ceci e Peri respectivamente, dariam origem a uma nova e
91 ALENCAR, J de., O Guarani, p. 184.
59
miscigenada sociedade. Através de seus personagens, Alencar desenha uma nova sociedade
brasileira, etnicamente conciliada e teleologicamente distinta, constituída através do sangue
“europeu” de Ceci com o do nobre indígena Peri, com prevalência do primeiro, obviamente.
Para que esta nova síntese aconteça, torna-se imperativo que a antiga ordem colonial seja
destruída, criando espaço para o surgimento de uma nova que a substitua. Assim se pronuncia
Treece sobre a antiga ordem e sua destruição, que acontece ao final do romance com o
sepultamento do solar de D. Antônio, sua família e os “aventureiros”, com exceção de Ceci e
Peri:
Assim, a natureza obsoleta dos valores patriarcais e medievalistas de Dom Antônio e
sua ligação permanente com Portugal fazem necessário a destruição de seu regime
para que uma nova geração, a de Cecília, possa criar uma sociedade moderna e
democraticamente independente. 92
Assim, a estrutura narrativa do romance está alojada sobre alicerces movediços, prestes
a ruir. Ao longo do romance, a aparente estabilidade é constantemente ameaçada por eventos
que perturbam o estado de ordem. Entre eles está o iminente ataque dos Aimorés e a revolta
dos bandeirantes, ambos interessados na destruição do solar do fidalgo. Estes e outros eventos,
demonstram a instabilidade e a transitoriedade do regime colonial estabelecido pelo fidalgo
português à margem do Paquequer.
Peri é o legítimo representante daquele que está preparado para realizar a travessia entre
os dois mundos que se configuram no poema alencariano: o antigo e o novo. O primeiro é regido
pelo fidalgo português e por seus valores cavaleirescos apoiados na tradição hierárquica da
suserania senhorial e da vassalagem. Trata-se do mundo colonial estabelecido pelos valores da
cultura dominante do colonizador racialmente “antidemocrático”. Já o segundo, estava se
abrindo com a derrocada daqueles que representavam a antiga ordem, como o próprio D.
Antônio, sua família, com exceção de Ceci, e ainda, seu séquito de “aventureiros”. No entanto,
antes de penetrar em uma nova ordem, Peri teria que derrotar aqueles que representavam um
obstáculo ao novo que se apresentava. Trata-se dos temidos e ferozes índios Aimorés, os
Tapuia, pois a vitória destes significaria a permanência do antigo no novo. Nos novos tempos
do pós-independência, não há mais lugar para o antigo, representado no romance pelos índios
bravos do sertão. Estes deveriam ser destruídos, assim como deveria sê-lo os “aventureiros”
bandeirantes, que não teriam mais lugar e espaço na nova sociedade que se apresentava como
racialmente “democrática” e miscigenada.
92 TREECE, D., Exilados, aliados, rebeldes, p. 247.
60
Em O Guarani, a entrega de Peri ao “branco é incondicional, faz-se de corpo e alma,
implicando sacrifício e abandono da sua pertença à tribo de origem”.93 Conforme Treece, o
personagem índio de Alencar “se apoia no estereótipo cuja tradição, (...) tem suas raízes no
contato mais primordial entre missionários e índios – o estereótipo do Tupi receptivo e
civilizado e do Tapuia intratável e selvagem”.94 Enquanto aliado e representante do índio
civilizável e apto a integrar-se à comunhão nacional, Peri é desenhado como dono de um corpo
de talhe delgado e esbelto, e suas qualidades especiais o tornam “pronto para ser integrado na
sociedade mestiça de Alencar”.95
Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor do cobre, brilhava com reflexos
dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos
exteriores erguidos para a fronte; a pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte, mas
bem modelada e guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto pouco oval a beleza
inculta da graça, da força e da inteligência.96
No contraponto de Peri, encontra-se o indígena inimigo. Intratáveis e violentos por
natureza, os Aimorés são matizados como donos de características físicas e psíquicas que os
aproximam de animais selvagens. Enquanto se preparavam para atacar a fortaleza do fidalgo,
Alencar afirma que “um prazer feroz animava todas essas fisionomias sinistras, nas quais a
braveza, a ignorância e os instintos carniceiros tinham quase de todo apagado o cunho da raça
humana”.97 Sua descrição física em tudo se diferencia da de Peri. Enquanto neste a humanidade
e a inteligência ganham destaque, nos Aimorés destaca-se sua quase animalidade:
Os lábios decompostos, arregaçados por uma contração dos músculos faciais,
tinham perdido a expressão suave e doce que imprimem o sorriso e a palavra; de lábios
de homem se haviam transformado em mandíbulas de fera afeitas ao grito e ao
bramido.
Os dentes agudos como a presa do jaguar, já não tinham o esmalte que a
natureza lhes dera; armas ao mesmo tempo que instrumento da alimentação, o sangue
os tingira da cor amarelenta que têm os dentes dos animais carniceiros.
As grandes unhas negras e retorcidas que cresciam nos dedos, a pele áspera e
calosa, faziam de suas mãos, antes garras temíveis, do que a parte destinada a servir
ao homem e dar ao aspecto a nobreza do gesto.
Grandes peles de animais cobriam o corpo agigantado desses filhos das
brenhas, que a não ser o porte ereto se julgaria alguma raça de quadrúmanos indígenas
do novo mundo.98
93 BOSI, A., Dialética da colonização, p. 178-179. 94 TREECE, D., Exilados, aliados, rebeldes, p. 253. 95 TREECE, D., Exilados, aliados, rebeldes, p. 253. 96 ALENCAR, J de., O Guarani, p. 29. 97 ALENCAR, J de., O Guarani, p. 240. 98 ALENCAR, J de., O Guarani, p. 241.
61
Sempre infatigável quando se trata de sua “senhora” e antecipando-se à iminente derrota
do pequeno exército do fidalgo, que já não resistia às lanças de fogo dos ferozes inimigos
Aimorés, Peri já havia colocado em prática um plano para salvar a filha do português. Colocara
uma canoa na descida do rio Paquequer para que D. Antônio levasse Cecilia até a tribo dos
Goitacás, em detrimento da morte dos demais, inclusive de Peri. O velho fidalgo nega, mas
investe o índio dos atributos necessários para que Peri pudesse fugir com Ceci.
— Se tu fosses cristão, Peri! ...
O índio voltou-se extremamente admirado daquelas palavras.
— Por quê? ... perguntou ele.
— Por quê? ... disse lentamente o fidalgo. Porque se tu fosses cristão, eu te confiaria
a salvação de minha Cecília, (...).
O rosto do selvagem iluminou-se; seu peito arquejou de felicidade; seus lábios
trêmulos mal podiam articular o turbilhão de palavras que lhe vinham do intimo da
alma.
— Peri quer ser cristão! Exclamou ele.99
Neste momento, Peri faz a definitiva passagem: da selvageria à civilização e, assim, se
torna digno de salvar Cecília da morte pelas ações dos inimigos Aimorés. Com o batismo
realizado às pressas por D. Antônio, Alencar oficializa a integração cultural e religiosa do “ex-
Goitacá” à sociedade branca, conforme desejo já aludido anteriormente por sua “senhora”.
Ajoelhado aos pés do nobre português, o índio recebe o nome do fidalgo. O “novo” D. Antônio
promete ao futuro sogro que nenhum inimigo tocará em Cecília, “ainda que para isso seja
preciso queimar uma floresta inteira”.100 Para Alencar fechar o ciclo da antiga ordem, só
necessita ainda eliminar tudo aquilo que a representava, como o solar do fidalgo português, sua
família, com exceção de Cecília, os bandeirantes, e ainda, sinalizar com a destruição dos
Tapuia: os Aimorés. Assim, tudo o que colocava em risco a conciliação da “nova” ordem,
estaria definitivamente eliminado. Findou o antigo regime colonial do português D. Antônio e
eis o surgimento da nova ordem.
Em fuga e em meio à natureza, Alencar realiza uma operação na relação do jovem índio
e sua “senhora”. Bosi lembra que nesse momento, na solidão da mata e da canoa que desliza
nas águas do Paraíba, a relação que antes era de índio-branca, escravo-senhora, franqueia-se,
expande-se para a relação homem-mulher, invertendo “o intervalo de raça e de status que se
mantivera constante ao longo da História”.101 Semelhante conclusão apresenta Treece, que toma
essa ruptura com o passado como decisiva na mutação da relação senhora-índio. Para o autor,
99 ALENCAR, J de., O Guarani, p. 296. 100 ALENCAR, J de., O Guarani, p. 296. 101 BOSI, A., Dialética da colonização, p. 192.
62
desfeitas “as estruturas físicas e sociais da comunidade patriarcal que até ali alienara Cecília da
floresta, a barreira entre os dois personagens vai se desfazendo”, assim como se desfaz a relação
“definida pelas hierarquias de classe e raça”.102 Para justificar essa ruptura que a natureza opera
em Cecília e em sua relação com Peri, ambos os autores lembram os parágrafos a seguir:
No meio de homens civilizados, era um índio ignorante, nascido de uma raça bárbara,
a quem a civilização repelia e marcava o lugar de cativo. Embora para Cecília e D.
Antônio fosse um amigo, era apenas um amigo escravo.
Aqui, porém, todas as distinções desapareciam; o filho das matas, voltando ao seio de
sua mãe, recobrava a liberdade; era o rei do deserto, o senhor das florestas, dominando
pelo direito da força e da coragem.103
No entanto, para criar um cenário que representasse o nascimento de uma nova ordem
social, Alencar teria ainda que destruir, ou pelo menos insinuar a destruição, mais uma vez, de
tudo o que simbolizasse a velha e antiga sociedade. Não bastava a permanência de Ceci com
Peri na natureza; tornava-se necessário também abrir “a história para um espaço
indeterminado”.104
Para isto, Alencar recria o mito do dilúvio e através dos sobreviventes Peri e Ceci,
repovoa a terra. Após a jovem menina decidir permanecer ao lado do índio - agora cristianizado,
os dois são surpreendidos por uma grande enchente que dissipou montanhas e florestas,
transformando tudo o que se via em água e céu. O jovem casal sobrevive graças à cúpula de
uma palmeira, “as palmas que se abriam formavam no centro um berço mimoso” e graças a
determinação de Peri, que diante da resignação de Ceci à morte, afirma: “Tu não podes morrer”.
Peri relata o mito do dilúvio na versão indígena, que “foi longe, bem longe dos tempos de agora”
e no qual os dois únicos sobreviventes da terra foram o indígena Tamandaré e sua esposa. Após
um beijo na face de Ceci, Peri libera a cúpula da palmeira que lhes dava abrigo e some no
horizonte,105 abrindo “a história para um espaço indeterminado”, conforme Bosi.
Finalizemos esta seção com o pertinente comentário de Treece sobre a obra alencariana,
de que ao contrário de seus predecessores indianistas, José de Alencar:
Se propôs a mergulhar no universo tribal, para identificar não as fontes de
antagonismo entre o índio e o branco, em particular a história militar genocida da
colônia, mas aqueles elementos da cultura e da psicologia tribal que haviam sido
102 TREECE, D., Exilados, aliados, rebeldes, p. 257. 103 ALENCAR, J de., O Guarani, p. 307. 104 BOSI, A., Dialética da colonização, p. 193. 105 ALENCAR, J de., O Guarani, p. 321-324.
63
assimilados pela sociedade brasileira e que poderiam, portanto, fomentar o processo
de conciliação nacional. 106
Este propósito conciliador explica, em boa medida, a grande recepção da obra
alencariana em seu tempo, pois se coaduna perfeitamente aos interesses da elite intelectual do
Império. Além da espontânea sujeição do índio à cultura do colonizador, Alencar matiza uma
“nova” sociedade, que preserva uma atitude política de sujeição do índio, com inequívocos
prejuízos étnicos e culturais ao “outro” a ser integrado. Assim, assegura ao país e aos herdeiros
da colônia a permanência e a prevalência da cultura do colonizador em detrimento da cultura
do nativo. Nos “novos” tempos, a este “outro” só resta o passado.
Finalmente, ao destacar o nacionalismo romântico da obra alencariana, Castello lembra
que, em relação à própria obra, Alencar a reconheceu nos seguintes termos: trata-se do
“consórcio do povo invasor com a terra americana, marcado pela assimilação mútua de
conquistador e conquistado, de maneira a alimentar o processo da gestação lenta do povo
americano que devia sair da estirpe lusa, para continuar no Novo Mundo as gloriosas tradições
de seu progenitor”.107 Assim, destacamos que o que Alencar se propunha realizar é o registro
de duas culturas a se unirem com o propósito de apresentar o surgimento de uma nova
civilização, branca e europeia, que se origina com a completa “destruição” dos autóctones
americanos.
1.7. A remissão do “pecado da gentilidade” em O Uraguai, Caramuru e O Guarani.
Aos interesses político/literários dos representantes das letras do Brasil oitocentista, o
passado remoto do país apresentava-se desprovido daqueles elementos que alimentaram e
deram vida ao romantismo europeu. Não tínhamos velhos e imponentes castelos medievais,
grandes fortificações, majestosas catedrais ou tradições cavaleirescas. Não tínhamos trovas
medievais, nem relações de suserania e vassalagem “tradicionalmente” transmitidas de geração
em geração para recorrer-se ao passado e, assim, construir nosso presente identitário. Entre
outros, esses elementos de agregação social e cultural deram sustentação e “longos braços” ao
romantismo europeu de finais do século XVIII. Neste continente, esse movimento literário,
cultural e, principalmente, político, desempenhou o determinante papel de apresentar as
particularidades de cada nação. Singularizou identidades nacionais e, sobretudo, diferenciou-
106 TREECE, D., Exilados, aliados, rebeldes, p. 222. 107 CASTELLO, J. A., A Literatura Brasileira, p. 263.
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as. Para isso, os representantes das letras do Estados Nacionais europeus lançaram mão de
temáticas que distinguissem a tradição, a história, o povo e a natureza de seus países.
E quanto ao Brasil de meados do século XIX? Desconhecia, como ainda desconhece a
sua história pré-colonial, o que encurtava o alcance histórico e poético a ser “cantado” pelos
intelectuais do Império. No entanto, o país tinha um passado colonial conhecido, uma natureza
“paradisíaca” e, em seu interior, o indígena, pleno de poesia e passível de exaltação, com
destaque à sua tradição, seus costumes tribais e relações de honra e parentesco. Assim, desde
as primeiras manifestações do movimento romântico no Brasil, em meados dos anos de 1830,
os representantes deste movimento literário elegeram “como temáticas fundamentais para
definir o que seria a particularidade nacional, o tema da natureza, aliando a ele o tema do homem
natural, aquele que expressaria a pureza e a autenticidade da natureza humana ainda não
corrompida pela civilização”, representada pela figura dos históricos e primitivos habitantes de
seu território. Quem melhor do que Peri para ilustrar esta afirmativa? Como destaca
Albuquerque Júnior, “o índio de Alencar, contraditoriamente, aparece como uma força
civilizadora”. Está longe do estereótipo de “selvagem” ou “bárbaro” e expressa os valores
humanos considerados mais elevados. Sobre os personagens índios matizados pela literatura
oitocentista, define o autor: “a pureza, a autenticidade, a valentia, o sentido da honra, a coragem,
a bravura, o heroísmo, caracterizam estes homens, distantes da corrupção trazida pelo mundo
moderno, pelas cidades”.108
No entanto, como apresentamos, a arte literária não esperou o século XIX para cantar
em prosa e verso o homem americano e seus atributos. Extemporâneos ao romantismo, na
segunda metade do século XVIII os poetas mineiros Basílio da Gama e Frei José de Santa Rita
Durão já criaram narrativas épicas que colocavam em evidencia o tema do bom selvagem que
habitava o território brasileiro. Em um contexto político e literário diferente do oitocentista e
sob os auspícios da política indigenista da coroa portuguesa, ou porque não de Pombal, os
poetas criaram épicos que colocavam o nativo americano como personagem central de suas
obras, igualmente políticas, diga-se de passagem. Assim, se o nacionalismo romântico
oitocentista e sua vertente indianista transformou-se em um movimento literário/político que
sustentou o projeto imperial de fundação do Estado Nacional brasileiro e contribuiu à
construção de uma identidade nacional a ser chamada de nossa, os épicos setecentistas o fazem
em medidas semelhantes em seu tempo. Desta forma, em ambos os séculos, mesmo que o índio
108 ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M., Preconceito contra a origem geográfica e de lugar, p. 55.
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seja elevado à categoria de protagonista de enredos literários, onde foi celebrado como herói,
aliado ou resistente, só um final lhe restou: o fatalismo do aniquilamento étnico. Na sequência,
faremos alguns comparativos entre as obras citadas e seus personagens.
Em seus distintos séculos, contextos históricos e papeis sociais, Basílio da Gama, Santa
Rita Durão e José de Alencar deram vida e heroicidade a seus personagens índios Cacambo,
Paraguaçu e Peri, respectivamente. Além de vida e cor às narrativas que desenvolveram, esses
personagens também expressam e apresentam as concepções político/ideológicas de seus
autores sobre o “lugar” destinado ao índio no conjunto da sociedade colonial (Gama e Durão)
e nacional brasileira (Alencar). Através de suas obras, os autores expressam o desejo consciente
e dirigido de submeter os povos de tradição cultural indígena aos ditames do Estado, segundo
os interesses, modos de organização e valores político/culturais da sociedade em que viviam e
representavam. Logo, a cultura nativa que edulcorou o indianismo destes autores, deveria
desaparecer, seja a partir de uma educação proselitista, como em Caramuru e O Guarani ou da
repressão e em nome da consolidação das fronteiras coloniais e da ocupação territorial, como
em O Uraguai.
Em Caramuru, Frei José de Santa Rita Durão apresenta um nativo dotado de todos os
caracteres necessários para torná-lo apto e passível à civilização cristã. Como lembra Lopes,
neste épico encontramos respostas ao Diálogo da conversão do gentio, de Manuel da Nóbrega,
e ao consequente trabalho de catequização dos índios pelos jesuítas. Acrescenta ainda que, nele,
“cristianização e expansão econômico-geográfica se confundem num interesse comum”.109
Compreensão semelhante apresenta Candido. Em sua interpretação, Durão quis mostrar “que a
civilização se identificava ao catolicismo e era devida ao catequizador, — em particular ao
jesuíta” e que nossa história civilizatória se explicava a partir da progressiva incorporação do
aborígine a esta “ordem de crenças e práticas”.110 Certamente, em alguma medida, a
composição do Frei Santa Rita Durão fora uma resposta ao épico O Uraguai, de Basílio da
Gama, que também louva e canta a integração do índio à ordem colonial e a efetiva ocupação
de seu território, desde que realizada sem a participação do clérigo regular, logo, de forma
dirigida unicamente pelo Estado.
Para Basílio da Gama, o guarani-missioneiro apresenta o caráter do bom selvagem,
embora corrompido pela prática civilizatória catequética empreendida pela “república” dos
jesuítas, estes sim, retratados como os inimigos da colônia. Pragmaticamente, embora o índio
109 LOPES, H., A divisão das Águas, p. 172. 110 CANDIDO, A., Literatura e sociedade, p. 183.
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missioneiro esteja na linha de frente na batalha contra os exércitos ibéricos, não é ele o inimigo
a ser derrotado. Afinal, o indígena se ajustava aos planos do Império português. Além da
segurança das fronteiras, à metrópole portuguesa interessava integrar o missioneiro ao seio da
economia e da população colonial rio-grandense, transformando-o em força de trabalho
economicamente ativa à província. A batalha ideológica de O Uraguai acontece entre a força
das armas e da cruz, do Império português e da ordem jesuíta respectivamente. E o índio,
apresentado enquanto alheio a estes interesses, torna-se uma vítima a ser libertada do jugo dos
exploradores de saia e, assim, poder adentrar às portas da civilização ocidental. Como afirma
Lopes, o épico de Gama “encerra a linha quinhentista de nossa formação histórica: a tomada do
território ao povo rude”.111 Este coroamento acontece no momento em que Durão canta o
triunfo do colonizador português e a prostração do guarani em prantos aos pés do general
Gomes Freire de Andrade, representante da coroa ibérica. Neste momento, não é mais o índio
corrompido que ganha voz, mas o índio redimido, o bom selvagem que, humildemente, pede a
acolhida do rei de Portugal e o acesso ao seu Império.
Por último, distante por aproximadamente setenta anos dos épicos setecentistas,
encontra-se o romance alencariano O Guarani e seu protagonista Peri, edulcorado por Alencar
com caracteres quase “civilizados”. Aguerrido, guerreiro e dotado dos mais nobres valores. Ao
longo do romance Peri luta pela estabilidade e pela permanência da ordem colonial,
representada pelo solar do português D. Antônio de Mariz. Na percepção de Alencar, o índio
representado pela figura de Peri, torna-se a expressão do verdadeiro homem brasileiro, aquele
que está em meio à natureza e é capaz de domar a sua força por conhecer seus mistérios.
Literalmente situado na fronteira que separa o “mundo” da natureza e da civilização, Alencar
apresenta as mutações que acontecem no corpo e na alma do bom selvagem sempre prestes a
fazer a travessia para o mundo do colonizador. No entanto, enquanto essa travessia não se
realiza, Peri é retratado em sua pureza, coragem, heroísmo e, principalmente, subserviência ao
colonizador português. Anacrônico em sua constituição histórica por elidir os conflitos
interétnicos do contexto colonial, Bosi acusa o poeta de aplicar um tratamento antidialético ao
contexto histórico da ocupação colonial portuguesa na América, que passaria por um “processo
de atenuação e sublimação”. Para o pesquisador, este fenômeno pode ser explicado pela
formação intelectual de Alencar que aconteceu no “período que vai da maioridade precoce de
Pedro II (de que seu pai fora um hábil articulador) à conciliação partidária dos anos 50”. Para
Bosi, isso particulariza o seu nacionalismo não voltado para a destruição das tribos Tupi, como
111 LOPES, H., A divisão das Águas, p. 173.
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em Gonçalves Dias, mas antes, para a construção ideal de uma nacionalidade que emerge do
contexto colonial e com a participação dos “nobres” nativos do território brasileiro.112
Nobres entre seus pares étnicos, a princesa Paraguaçu e o príncipe Peri, entre outros,
são representativos da pureza e da valentia do índio redimível e incorporável à comunhão
colonial e nacional, respectivamente. Sobre o mito da nobreza do índio literário do século
XVIII, com especial atenção para a nobreza de Paraguaçu, Candido lembra que esta e outras
publicações que aspiravam celebrar a pujança da terra e, principalmente, a limpeza das estirpes
em um país que desde sempre se constituiu sobre o princípio da mestiçagem étnica, serviu de
remissão à esta mancha. Assim, “chamou-se de princesas às filhas dos caciques, incorporadas
à família do branco a título de companheiras ou esposas”, além de procurar disfarçar a
poligamia indígena, com que os colonizadores tão facilmente se “ajustaram” desde o princípio
da conquista.113 Se não fosse a prematura morte por envenenamento de Cacambo pelo vil e
traiçoeiro jesuíta Balda, certamente o protagonista de Basílio da Gama também participaria do
rol de índios de descendência nobre que deram, literariamente, seu sangue ilustre à constituição
étnica do Brasil, assim como aconteceu com Paraguaçu e Peri, filho do chefe tribal Arerê.
O tipo de literatura que apresentamos, não somente transmite e cristaliza a ideia da
existência de uma cultura superior, como também advoga contra qualquer tipo de tradição
cultural que não se acomode a esta, que se pretende colonizadora e homogênea. Historicamente,
os povos de tradição cultural indígena foram e são percebidos como uma ameaça à identidade
e à unidade nacional e, assim, justifica-se a adoção de medidas que eliminem as arestas
contrastantes. Estas medidas podem se concretizar através da “educação”, da violência, ou da
adoção de políticas indigenistas consideradas “apropriadas”, justificadas em nome de uma obra
civilizatória indispensável a uma população definida como incapaz de realizá-lo por conta
própria ou, incapaz de sair de seu estado de natureza rumo ao estado de civilização sem a
colaboração de povos de tradição cultural “superiores”. Essas considerações nos auxiliam para
percebermos que, se nas literaturas apresentadas seus autores exaltam o índio e suas qualidades,
o fazem com os olhos no passado. Exaltam o índio, porém, não o índio de carne e osso, mas
sim o índio civilizável, “meio” branco, o bom selvagem que está na fronteira do
desaparecimento, como o índio de Basílio da Gama, do Frei Santa Rita Durão ou de José de
Alencar, ou ainda, o já morto, como o índio de Gonçalves Dias que veremos no próximo
capítulo.
112 BOSI, A., Dialética da colonização, p. 186. 113 CANDIDO, A., Literatura e sociedade, p. 178-180.
68
Afinal, os literatos romântico/indianistas não se interessavam pelo indígena sócio-
antropológico, aquele que existe. Definitivamente, tratavam do índio imaginário que atendeu
ao desejo não menos imaginário de construir uma unidade étnico/racial no território americano.
Por isso, de forma indistinta, cantaram a vitória da civilização sobre a barbárie. Como lembra
Paulo Graça, “o romance é uma forma literária da cultural ocidental”. Segundo o autor, quando
o romancista elege o índio como protagonista de sua narrativa, opera em seu personagem uma
fusão estética, “pois a inserção de tal personagem há de necessariamente impor estratégias,
modos e meios de elaborar o romance”.114 De alguma forma isso explica a unicidade
fatalista/pessimista das obras literárias analisadas. Todos apresentaram indígenas que se
encontravam na fronteira cultural entre a “barbárie” e a “civilização” até que, finalmente,
realizam a travessia com destino à última. Igualmente, todos fazem essa travessia pelas mãos
do colonizador compassivo. Foi assim com os guarani-missioneiros derrotados pela força das
armas, prostrados aos pés do general e da imagem da coroa portuguesa. Com Paraguaçu, pelas
mãos do proselitista português Diogo Caramuru e por último, com Peri, certamente, o mais
subalterno de todos os protagonistas analisados. Assim, carregados pelas mãos dos
colonizadores, o índio de Basílio da Gama, de Santa Rita Durão e de José de Alencar parte para
uma travessia sem retorno rumo à cultura do colonizar, pelo menos na literatura. Eis a costura
ideológica entre os épicos setecentistas e o romance histórico oitocentista: trata-se de um
suposto encontro entre duas culturas, a do adventício e do autóctone em comunhão com a
natureza que, em dado momento, se fundem e, simbolicamente, originam uma “nova”
civilização, construída sobre os escombros da cultura do colonizado, relegado ao passado da
nova ordem civilizatória que se planta nas terras americanas.
114 GRAÇA, A. P., Uma poética do genocídio, p. 16.
69
CAPÍTULO 2: O INDIANISMO E A CIÊNCIA HISTÓRIACA DE GONÇALVES DIAS.
2.1. Gonçalves Dias: uma breve biografia.
Assim definem Alfredo Bosi e Antonio Candido, nesta ordem, as qualidades literárias e
poéticas daquele que consideram como o maior “cantor dos índios” do Brasil de meados do
século XIX: “Antonio Gonçalves Dias foi o primeiro poeta autêntico a emergir em nosso
romantismo”.1 “Mas na perspectiva de hoje o primeiro poeta romântico de valor é Gonçalves
Dias, que é também o único indianista de interesse de nossa poesia”.2 Entendamos suas
assertivas.
Para Candido, “os primeiro poetas brasileiros considerados românticos são medíocres”.
Ao “fastidioso” poema A confederação dos Tamoios, como adjetiva o épico do proclamado
“fundador da literatura verdadeiramente nacional”, Gonçalves de Magalhães, Candido
contrapõe I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias. Sobre este poema, que narra a história de um
prisioneiro que vai ser sacrificado ritualmente por uma tribo inimiga, qualifica-o como de “rara
maestria”, tanto nos movimentos quanto nas emoções. Além das qualidades literárias de Dias,
o pesquisador também enumera suas qualidades de etnógrafo da língua indígena e, por último,
de teatrólogo.3
Para Bosi, para que possamos compreender o “juízo consensual” que enumera as várias
qualidades literárias que alçam Gonçalves Dias à primeira posição do movimento indianista,
devemos evitar posições de análise extremadas, como as que, ou sucumbem às determinações
das forças sociais e culturais que envolveram o criador, ou sucumbem ao seu talento individual.
Para o historiador das letras, nem somente o meio e nem somente o talento individual moldaram
o poeta, antes, ambos os fatores convergiram para a genialidade do “cantor do indígena”. Assim,
além de ter sido “produto do meio, da classe, da ideologia, do momento histórico, do
movimento literário a que pertenceu, existiria seu talento artístico individual que somou às
determinações sociais”.4 Segundo o autor, “para a criação artística de alto nível a presença de
correntes culturais favoráveis é necessária, mas não suficiente”, e finaliza:
Cantor do indígena, Gonçalves Dias parece retomar o caminho trilhado pelos
iniciadores do romantismo entre nós. Mas é com outra perspectiva e outro vigor
1 BOSI, A., Cultura, p. 234. 2 CANDIDO, A., Iniciação à literatura brasileira, p. 41. 3 CANDIDO, A., Iniciação à literatura brasileira, p. 41 4 BOSI, A., Cultura, p. 234.
70
poético que o faz. Há nele uma consciência dramática, senão trágica, de que a
colonização extinguiu populações inteiras de silvícolas. I- Juca Pirama não é tão
somente “aquele que deve morrer” quando vencido pela tribo inimiga. É também
aquele que acabaria morrendo às mãos dos conquistadores brancos que vieram do
além-mar. No “Canto do Piaga”, um dos seus primeiros “poemas americanos”, sobe
ao primeiro plano a visão horrífica dos invasores que virão de repente “matar vossos
bravos guerreiros” e “roubar-vos a filha e mulher”. 5
Vejamos inicialmente o meio social e cultural que alimentou a imaginação do indianista
ainda em sua tenra idade. Durante toda a sua vida, Antonio Gonçalves Dias teve laços estreitos
com a cultura indígena circunvizinha à vila de Caxias, na província do Maranhão, local onde
nasceu no ano de 1823. Em sua breve biografia sobre o indianista, Ana Miranda lembra a
referência feito pelo botânico Martius e pelo zoólogo Spix em sua obra Viagem pelo Brasil
(1817-1820) à frequência com que os índios chegavam à vila onde alguns anos depois nascerá
Gonçalves Dias. Os viajantes descrevem a corriqueira visita dos índios à vila “para obter dos
habitantes peças de vestuário, machados, facas e toda espécie de ninharia, dando em troca
presentes como grandes bolas de cera, plumas de belos coloridos e arcos e flechas
delicadamente esculpidos”. Segundo a biógrafa, as cenas testemunhadas e descritas pelos
naturalistas alemães, como a indumentária dos índios, suas incisões corporais e as apresentações
de danças que realizavam, fizeram parte e se repetiram durante a infância do menino. Por fim,
deduz que “a chegada dos índios à vila devia ser cercada de apreensão por parte dos moradores,
quiçá algum medo ou agressividade. No entanto, ao assistir àquelas danças o menino decerto
não tinha a mesma sensação de um aspecto de horrorosa selvageria”, ou uma “cena do inferno”,
como descrevem os naturalistas. 6
O também biógrafo de Gonçalves Dias, Manuel Bandeira, assim narra a influência que
o contato com os indígenas, ainda na infância, teria exercido à imaginação do indianista:
Muito devia impressionar-lhe a imaginação infantil, onde certamente teria lançado os
primeiros germes da inspiração indianista, os bandos de índios mansos que de tempos
em tempos desciam à vila para trocar por utilidades da civilização as suas grandes
bolas de cera, as suas plumas de variegados coloridos, as suas armas de combate e
caça, arcos e flechas delicadamente trançados. Índios como os que vira Martius alguns
anos antes, airosos e robustos, com brilhantes cilindros de resina ou alabastro no furo
dos lábios, com grandes botoques de pau cobrindo a cancha das orelhas, executando
as suas danças selvagens ao rouco trombetear dos borés, ao estrépito dos maracás.7
5 BOSI, A., Cultura, p. 235. 6 MIRANDA, A., O Cantor dos guerreiros, p. 8-11. 7 BANDEIRA, M., Vida e Obra do Poeta, p. 15.
71
Na avaliação de Coutinho, este contato real que transcende o contato puramente literário
com o indígena, estaria na origem do indianismo brasileiro, específico e não importado de
Gonçalves Dias. O autor defende que Gonçalves Dias não poderia importar “o que já pertencia
ao seu sangue” e para justificar sua assertiva de que assim como seus poemas de amor o
indianismo gonçalvino era “autobiográfico”, afirma:
Viajasse pelo rio Negro ou residisse em Paris, ou em Coimbra, ou em Dresden, o índio
residia dentro dele; em seu sentimento, na sua imaginação poética. Não lhe vinha de
torna-viagem, como para outros indianistas do seu tempo, que o antecederam ou o
sucederam; estava-lhe no corpo, alimentava-lhe a personalidade. Era uma força
secreta, em estado de legítima defesa. O seu índio dos poemas líricos ou épicos seria
índio mesmo, e não índio de cartão postal. Era o índio que havia nele e era o índio que
ele conheceu, desde menino, e reconheceu no rio Negro; que ele compreendeu e
defendeu. 8
Para Coutinho, o indianismo de Gonçalves Dias “nada tem que ver com o Romantismo
europeu. Embora o nosso índio figure nas origens do movimento, transformado em mito do
bom selvagem”, o seu indianismo não está ligado ao do mito; uma vez que “substitui a ideologia
pela realidade humana do índio”. Assertivamente, afirma: “além do mais, com sangue índio no
coração, não deixa de falar em causa própria”.9 O autor elenca três motivos centrais que
elevariam o indianismo gonçalvino à categoria de “autêntico”, onde o índio “é a substância
mesma dos poemas – substância poética sem a qual não se compreenderia a sua obra”.
Inicialmente, pelo sangue, afirmando ser Gonçalves Dias filho de uma Guajajara (cafuza) com
um português. Depois, pelo conhecimento que teria dos indígenas, com os quais conviveu
quando menino em suas excursões pela Amazônia e, finalmente, pelos estudos etnográficos que
realizou.10
Sobre a origem indígena de Gonçalves Dias, Manuel Bandeira se limita a informar que
sua mãe, Vicência “(...) era mestiça. Difícil, porém, será já agora apurar a natureza ou as
proporções de sua mestiçagem”. Ao fazer referência a outro biógrafo do poeta, Antonio
Henriques Leal, Bandeira afirma que este limitou-se a dizer que Vicência era “mulher de cor
acobreada”, e sobre as características de Gonçalves Dias, descreve-o como fisicamente mestiço:
asas do nariz arregaçado, cabelos raros, castanhos e os beiços grossos.11
Gonçalves Dias foi separado de sua mãe ainda criança, quando seu pai João Manuel
Gonçalves Dias, proprietário de um pequeno comércio, separou-se para casar com a Sra.
8 COUTINHO, A; COUTINHO, E. de F., A literatura no Brasil, p. 77. 9 COUTINHO, A; COUTINHO, E. de F., A literatura no Brasil, p. 79. 10 COUTINHO, A; COUTINHO, E. de F., A literatura no Brasil, p. 79. 11 BANDEIRA, M., Vida e Obra do Poeta, p. 15.
72
Adelaide Ramos de Almeida. Iniciou seu letramento aos sete anos de idade e demonstrou
interesse pelas letras muito cedo. “Esse gosto pelas coisas do espírito, acabou impressionando
o pai (...)” que “em junho de 1835 tirou-o do balcão para fazê-lo frequentar as aulas de latim,
francês e filosofia (...)”.12 Após o falecimento de seu pai, com o auxílio de amigos e de sua
madrasta, com quem mantinha uma relação de animosidade, com muita dificuldade foi estudar
Direito em Coimbra, onde terminou o curso em 1844.
De volta ao Brasil, trabalhou como professor de latim no Liceu de Niterói e como
jornalista. No ano de 1846, o intelectual Manuel de Araújo Porto-Alegre apresentou-o ao seleto
grupo de letrados do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), e a partir deste mesmo
ano, frequentou assiduamente as reuniões do Instituto, “lendo trabalhos, dando pareceres,
discutindo com a sua habitual vivacidade”. No ano de 1851, viajou em comissão de estudos ao
Amazonas e um ano após, o poeta/cientista escreveu sua monografia Brasil e Oceania, “que
apresentou ao Instituto em nove sessões de leitura oral, na presença de sócios, realizadas entre
agosto de 1852 e junho do ano seguinte”.13 Desta obra nos ocuparemos de forma detida adiante.
No ano de 1855, parte em missão oficial para a Europa por indicação do imperador D.
Pedro II. Neste continente, dedica-se ao estudo dos métodos de instrução pública aí praticados
e, ainda, recupera documentos relativos à história do Brasil em arquivos públicos. Retorna ao
Brasil em 1859 e assume a chefia da Seção de Etnografia da Comissão Científica de Exploração
(CCE), criada pelos membros do IHGB. Durante três anos (1859-1861), dirige os estudos sobre
os aspectos físico, moral e social dos indígenas do Brasil e, com esse interesse, parte em trabalho
etnográfico à província do Ceará. No entanto, conforme Bandeira, Gonçalves Dias chega a esta
província e não encontra índios puros, “senão um diminuto caldeamento de chocós perto de
Milagres”.14 Resolve então “seguir para o Amazonas, onde teria elementos de sobra para
cumprir as instruções do programa da seção de Etnografia”.15 Ali permanece até o ano de 1861,
quando retorna ao Rio de Janeiro. Com a saúde bastante debilitada e em busca de recursos
12 BANDEIRA, M., Vida e Obra do Poeta, p. 16-17. 13 MIRANDA, A., O Cantor dos guerreiros, p. 27. 14 Sobre o diminuto número de indígenas localizados por Gonçalves Dias na província do Ceará, acreditamos que
o ocorrido pode ser explicado pelo crescente número de aldeamentos indígenas extintos a partir da política
indigenista oficial implantada em 1845. Conforme Moreira Neto, em 1856 “a subordinação da política indigenista
ao setor de controle e venda de terras públicas abre caminho para a adoção de uma política geral de extinção das
comunidades indígenas, enquanto possuidoras de patrimônio territorial”. Sobre a liquidação do patrimônio
indígena no Ceará, o mesmo autor afirma que já no ano de 1856, as antigas aldeais da Província, como em
Mecejana, Soure e Arrouche, encontravam-se já extintas. Este fato, “propiciava obviamente um processamento
mais rápido e fácil de transferência dessas terras, a título definitivo, para o poder de agricultores e proprietários da
região”. Para mais informações ver: MOREIRA NETO, Carlos de Araújo, Os índios e a ordem imperial, p. 270-
271. 15 BANDEIRA, M., Vida e Obra do Poeta, p. 46-47.
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médicos, parte em 1862 para a Europa e, em seu regresso ao Brasil em 1864, ainda mais
debilitado, faleceu em um naufrágio próximo à costa de seu estado natal.
Certamente, se explicarmos o conjunto da obra gonçalvina somente a partir dos
estímulos sociais e históricos de sua infância ou ainda, a partir de seu talento pessoal, estaremos
incorrendo no grave erro de essencializar sua farta e peculiar produção literária e científica. A
larga experiência do cientista Gonçalves Dias, como suas inúmeras pesquisas etnográficas
realizadas junto aos índios de “carne e osso”, contribuíram para diferenciar e particularizar sua
produção, seja na pena do indianista ou do cientista, uma vez que, como veremos, em suas
obras, ambos se misturam. Para não sucumbirmos na indevida essencialização de sua produção
literária, além da análise das narrativas poéticas e dos ensaios políticos apresentados por
Gonçalves Dias na Revista Guanabara, somaremos à analise a sua clássica obra científica
produzida a partir de sua experiência de etnógrafo Brasil e Oceania, destinada ao Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Como veremos, esse conjunto de textos permite que
compreendamos o poeta, o ensaísta político e o cientista que transformou seu indianismo em
teoria social. 16
2.2. O indianismo de Gonçalves Dias na Revista Guanabara: O Gigante de Pedra.
O dia estava encantadoramente claro e límpido, e o vento favorável nos levou além
do alto cabo. Não tardou a patentear-se aos nossos olhos, embora ainda distante, a
grandiosa entrada do porto do Rio de Janeiro. À direita e à esquerda, elevam-se, como
portões da baía, escarpados rochedos, banhados pelas vagas do mar; o que domina ao
sul, o Pão de Açúcar, é um conhecido marco para os navios afastados. Depois do
meio-dia alcançamos, aproximando-nos cada vez mais do mágico panorama, os
colossais portões de rocha, e finalmente por eles entramos no vasto anfiteatro, onde o
espelho do mar reluzia como sossegado lago; onde espalhadas em labirinto, ilhas
olorosas verdejavam, limitadas no fundo por uma serra coberta de matas, como jardim
paradisíaco de exuberância e magnificência. Do forte de Santa Cruz, pelo qual a nossa
chegada foi anunciada à cidade, trouxeram-nos uns oficiais da marinha a licença para
nos adiantarmos. Enquanto se tratava desses pormenores, todos se deleitavam na
contemplação do país, cuja doçura, cuja variedade encantadora e cujo esplendor
superam muito todas as belezas naturais, que jamais havíamos visto. 17
16 O leitor notará que, ao longo do capítulo, o maranhense será apresentado de distintas formas: poeta, indianista,
ensaísta político e cientista. Embora todos os gêneros literários do autor adentrem no grande debate nacionalista
de meados do século XIX, a última classificação se justifica por entendermos que a prática historiográfica que
Gonçalves Dias utiliza nas composições História Pátria e Brasil e Oceania, que serão analisadas adiante, recruta
elementos próprios do paradigma historicista. Entre eles, citemos o ímpeto relativista e a crítica documental. No
primeiro caso, ao procurar as bases de uma história eminentemente nacional e apresentar o indígena enquanto
representante histórico da nacionalidade brasileira, destaca as particularidades na nova nação que se formava nos
trópicos em detrimentos de uma história universalista. Aproveitou, ainda, as técnicas de crítica documental para
justificar suas proposições em que destila críticas ácidas aos desafetos intelectuais. A estes fatores, soma-se a
prática etnográfica que fundamenta seus trabalhos, principalmente Brasil e Oceania, a crítica historiográfica e o
potencial interpretativo que apresenta em suas composições de caráter poético e científico 17 SPIX, J. B; MARTIUS, K. F. P., Viagem pelo Brasil: 1817-1820, p. 37.
74
A descrição acima fora realizada pelos naturalistas, expedicionários e cientistas alemães
Spix e Martius quando chegaram ao Rio de Janeiro, pelo contorno da Baía da Guanabara, a
bordo da fragata Áustria no dia 14 de julho de 1817. Ao descrever os imponentes rochedos que
avistaram pela primeira vez, entre eles o corolário dos viajantes, o Pão de Açúcar, afirmaram
admirados levantar-se aos seus olhos “audaciosos rochedos de formas imponentes, cujas
encostas ostentam em toda a plenitude a uberdade da floresta tropical”.18 A sensível descrição
dos cientistas alemães demonstra a emoção que os observadores sentiram ao avistar o cenário
natural que se apresentava aos seus olhos envoltos por forte sentimento de maravilhosa
perplexidade e poética contemplação.
A expedição realizada pelos alemães Spix e Martius, motivada por razões científicas –
um estilo de viagem que se estende por todo o século XIX –, tem como principal produto o
relato de viagem de título Viagem pelo Brasil, produzido na Alemanha nas décadas de 1820 e
1830. No conjunto da obra, os naturalistas apresentam uma redação que, em grande parte,
manifesta enorme fascínio e encantamento com a natureza que procuram apreender
cientificamente – redação poético/científica que se manifestou, praticamente, em todos os
viajantes que nesse período perscrutaram a natureza do território brasileiro. Essa estética
literária de Spix e Martius na qual poesia e ciência se misturam, é explicada por Karen Lisboa
através de três elementos principais. Inicialmente, a autora destaca o “enorme encantamento”
com a natureza física apreendida pelos viajantes como “fonte de emoções” que atuava “sobre a
sensibilidade do observador”. Em segundo lugar, destaca a filiação literária dos cientistas ao
Romantismo alemão, que tem a “natureza” como uma das “questões centrais” e não somente
serviu como fonte de emoção, “mas também um meio para compreender, interpretar e criar uma
imagem de Brasil”.19 Finalmente, aponta as principais heranças intelectuais recebidas por Spix
e Martius, como o “pensamento naturalista de Goethe e Humboldt e à Naturphilosophie
(filosofia da natureza) de Schelling”.20 Sobre essas influências, afirma que teriam dado origem
a uma escrita “respaldada numa racionalidade herdada da ilustração”, comprometida com a
“verdade” e ancorada pela história natural na qual o inventário dos lugares, dos tipos humanos
e os costumes descritos não “escapavam da linguagem poética”,21 como se observa no relato
18 SPIX, J. B; MARTIUS, K. F. P., Viagem pelo Brasil: 1817-1820, p. 37. 19 LISBOA, K. M., A nova Atlântida de Spix e Martius, p. 23. 20 LISBOA, K. M., A nova Atlântida de Spix e Martius, p. 25. 21 LISBOA, K. M., A nova Atlântida de Spix e Martius, p. 46. Em sua obra, Karen Lisboa realiza uma análise
minuciosa sobre a influência do Romantismo alemão e alguns de seus representantes, como Goethe, Humboldt e
Schelling, na narrativa estético-científica de Spix e Martius. Sobre a influência do último, destaca a importância
do conceito de Naturphilosophie (filosofia da natureza) que se contrapõe “à interpretação mecanicista e fixista da
natureza”. Segundo esse conceito, a relação dos autores com a natureza não se encerra na aplicação do método
75
que deu vida e poesia à Baia da Guanabara e seu imponente Pão de Açúcar apresentado na
citação acima.
Anos após, a mesma paisagem e, mais especificamente, o mesmo rochedo, o
“imponente” Pão de Açúcar, torna-se objeto de sensível apreensão poética na pena do indianista
brasileiro Gonçalves Dias em seu poema O Gigante de Pedra, publicado na Revista Guanabara
no ano de 1850. Embora tomem a mesma paisagem por objeto, as duas descrições, a dos
naturalistas e a do indianista, contrastam em seus objetivos. Enquanto os viajantes alemães,
movidos por razões científicas, prendem-se à descrição da natureza brasileira com o objetivo
de estabelecer um permanente diálogo com o público leitor europeu, Gonçalves Dias se utiliza
do rochedo e seu entorno para denunciar a violência provocada pela invasão, conquista e
colonização europeia das terras e dos povos americanos e, assim, delatar o rompimento de uma
ordem natural e autóctone por uma nova ordem, alienígena e extrínseca ao território e aos povos
conquistados.
No poema, que exalta a natureza do território brasileiro, o imenso rochedo foi definido
como um gigante de pedra adormecido que, embora “num leito de pedra a dormir”, está envolto
por belas e vivas paisagens. Estas, anunciam as belezas do local, suas peculiaridades e
singularidades que acolhem o granito, como na estrofe a seguir:
Gigante orgulhoso de fero semblante
Num leito de pedra lá jaz a dormir!
Em duro granito repousa o gigante
Que os raios somente poderão fundir.
Com os braços no peito cruzados nervosos,
Mais alto que as nuvens, os céus a encarar,
Seu corpo se estende por montes fragosos,
Seus pés sobranceiros se arrojam do mar!
À estabilidade que representa o granito, elemento da paisagem que se encontra
dormindo e em sono profundo, soma-se uma natureza cíclica em que seus elementos naturais
ganham vida e dinâmica no poema.
Vem a noite após o dia,
Vem o silêncio, o frescor,
E a brisa leve e macia
Que lhe suspira ao redor;
classificatório lineano, antes, estende-se através da aplicação dos demais sentidos, com primazia da visão, como
forma de compreender a organicidade da natureza e sua essência poética que seria limitada pela razão.
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E da noite entre os negrores
Das estrelas os fulgores
Brilham na face do mar;
Brilha a lua cintilante,
E sempre mudo o gigante,
Imóvel, sem acordar!
No poema, dividido em cinco partes, o nacionalismo gonçalvino ecoa na exaltação à
natureza viva e às suas cores locais. No entanto, é a partir da quarta parte que o poeta apresenta
o conjunto natureza-índio e, principalmente, a relação orgânica que ambos os elementos
estabelecem entre si. Histórica e politicamente situado, é com Candido que podemos entender
o Gigante de Pedra:
No Romantismo predomina a dimensão mais localista, com o esforço de ser diferente,
afirmar a peculiaridade, criar uma expressão nova e se possível única, para manifestar
a singularidade do país e do Eu. Daí o desenvolvimento da confissão e do pitoresco,
bem como a transformação do tema indígena em símbolo nacional, considerado
conditio sine qua para definir o caráter brasileiro e, portanto, legítimo do texto.22
A partir deste momento, toda a capacidade poética do índio em seu meio natural, a
floresta, é cantada e evidenciada pelo poeta. É neste meio que o gigante de granito, testemunha
ocular da antiguidade do índio nas terras brasileiras, assiste às relações tribais e intertribais que
estabelecem os verdadeiros donos deste território:
Viu primeiro os íncolas
Robustos das florestas,
Batendo os arcos rígidos,
Traçando homéreas festas,
À luz dos fogos rutilos,
Aos sons do murmuré,
Cadenciado pelo boré, espécie de flauta feita de bambu, o indígena de O Gigante de
Pedra canta seus feitos heroicos em meio à natureza, domina os rios e a natureza com o auxílio
de suas canoas côncavas e de sua habilidade de caça, leda e rápida e é apresentado como herói
e dono do meio em que vive. Em meio à floresta, trava lutas orgânicas provocadas pelo germe
da discórdia, que cresce em duras brigas que ceifam os brios de tribos antes amigas, sempre sob
o olhar atento do gigante de granito.
22 CANDIDO, A., Iniciação à literatura brasileira, p. 38.
77
Na quarta parte da composição, Gonçalves Dias apresenta a ruptura da relação orgânica
índio/natureza, momento em que entram em cena os conquistadores europeus - portugueses e
franceses (gaulês) - que rivalizam pela posse do território e do homem americano. Pressentindo
o tenebroso futuro que aguarda os naturais da terra, o gigante de granito, imóvel, nada pode
fazer a não ser assistir ao espetáculo dos conquistadores que se digladiavam pela posse do
território.
O gigante de granito:
Com soberba indiferença
Sente extinta a antiga crença
Dos tamoios, dos pajés;
Nem vê que duras desgraças,
Que lutas de novas raças
Se lhe atropelam aos pés.
Para Treece, o Gigante de Pedra “reconta as fases sucessivas da história dos índios, a
emergência da desunião interna, o conflito mutuamente mortífero e sua eventual derrocada nas
mãos dos portugueses”.23 Sigamos a cronologia do poema. Inicialmente, Gonçalves Dias
apresenta a exuberância do território com todos os elementos que lhe dão vida, como o dia, a
noite, o sol, a brisa, entre outros. A estes elementos naturais e seu território, o indianista soma
a presença daquele que considera como o primeiro habitante, o natural da terra e logo, seu dono:
o índio. Por último, apresenta a luta pela conquista e colonização do território brasileiro pelas
nações europeias e, por fim, com a vitória portuguesa, a definitiva conquista do território e a
subjugação de sua população nativa:
Depois em náos flammivomas
Um troço ardido e forte,
Cobrindo os campos úmidos
De fumo e sangue e morte,
Traz dos reparos hórridos
De altíssimo pavez;
E do sangrento pelago
Em míseras ruinas
Surgir galhardas, límpidas,
As portuguesas quinas,
Murchos os lises cândidos
Do impávido gaulês!
23 TREECE, D., Exilados, aliados, rebeldes, p. 176.
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A efetiva ocupação do território brasileiro pelos portugueses acarreta a também efetiva
mudança da paisagem natural de outrora, e a única estabilidade que ainda se vislumbra é O
Gigante de Pedra, que dá nome à composição.
Mudaram-se os tempos e a face da terra!
Cidades alastram o antigo paul;
Mai ainda o gigante que dorme na serra
Se abraça ao imenso cruzeiro do sul.
Em seu poema, Gonçalves Dias nos apresenta uma história linear, testemunhada em
suas várias etapas pelo olhar “indiferente” do gigante de pedra adormecido. Este, acompanha a
evolução geológica, étnica e política do Brasil e, em meio às transformações que assiste, resiste
enquanto elo entre o passado e o presente transformado por forças externas. Para Treece, o
gigante “oferece o único foco de estabilidade e continuidade” da narrativa poética. E acrescenta:
“como a imagem do morro do Pão de Açúcar a abraçar o Cruzeiro do Sul, o gigante simboliza
aquela identidade de crenças – nacionalidade e religião – que deve sobreviver e transcender os
conflitos disruptivos da história do país.24
Muito mais do que um nativo vilipendiado e injustiçado pela invasão estrangeira e pelo
processo colonial português, o índio de O Gigante de Pedra é apresentado como natural da
terra, e principalmente, apontado como proprietário histórico do continente americano,
avidamente dominado e colonizado pelo elemento adventício. Assim, além do forte teor
antilusista, Gonçalves Dias exprime sua preocupação em reconhecer as raízes autóctones e as
tradições indígenas do território brasileiro corrompidas pelo processo colonial. Desta forma,
lembra aos seus contemporâneos que a nova nação que se formava nos trópicos da América
estava ganhando vida e contornos europeus sobre os destroços dos proprietários de outrora,
violentamente excluídos desse processo. Diferenciando-se do indianista e contemporâneo José
de Alencar, que apresenta um nacionalismo romântico aberto e receptivo ao nativo americano,
Gonçalves Dias desenvolve um indianismo socialmente crítico em que denuncia a formação de
uma nação socialmente fechada e excludente ao “outro”, seja ao nativo americano, ou, como
veremos adiante em Meditação, ao elemento servil do continente africano.
Finalmente, salientamos que, se ao longo da composição o indianista apresenta o gigante
de pedra como único elemento de estabilidade e continuidade, em sua última estrofe, em uma
evidente postura crítica ao destrutivo processo colonial português, Gonçalves Dias profetiza
24 TREECE, D., Exilados, aliados, rebeldes, p. 177.
79
uma possível força apocalíptica que pode varrer esta estabilidade e tirar o gigante de seu sono
profundo e instável. Como narra na poesia, o gigante de pedra encontra-se adormecido e em
sono conturbado, com os braços no peito cruzados e nervosos. Só Deus poderá, rebelde, lançá-
lo dos montes erguidos e, então, em atitude de reação, o gigante poderá finalmente acordar e
reagir ao que viu e demonstrar que não é indiferente à história. Todavia, esse desfecho
apocalíptico e fatalista, característico em alguns poemas épicos e também em alguns ensaios
políticos do indianista, será interpretado algumas páginas a seguir. Continuemos com a
apresentação do ensaio político História Pátria no qual o mesmo desfecho apocalíptico e
fatalista também se faz presente para que assim, possamos apreender a coerência interna
presente nas composições poéticas ou científicas, e sempre políticas de Gonçalves Dias.
2.3. O indianismo gonçalvino em História Pátria: reflexões sobre os anais Históricos do
Maranhão por Bernardo Pereira de Berredo.
O português Bernardo Pereira de Berredo (1660-1748) assumiu o comando político do
Maranhão entre os anos de 1718 e 1722. O experiente militar pertencia a uma família de fidalgos
da Casa Real que há muitas gerações prestava serviços aos monarcas portugueses. Antes de
chegar ao Maranhão, já apresentava experiência em relevantes cargos de comando na Ilha da
Madeira e também na África. Além de governador, Berredo também foi historiador. Sua obra
póstuma Os Anais Históricos do Estado do Maranhão, de 1749, é considerada obra de
referência sobre os primeiros cem anos de ocupação portuguesa na região.
Nesta seção, não nos ocuparemos da análise da obra de Berredo, a não ser de forma
indireta, através das considerações do maranhense Gonçalves Dias, que se ocupa justamente
desta tarefa em seu ensaio de crítica histórica História Pátria: reflexões sobre os anais
históricos do Maranhão, publicado no ano de 1849 na Revista Guanabara. Neste ensaio, além
de realizar duras críticas ao administrador colonial e historiador português, Dias apresenta um
profícuo caldeamento de ideias que atendem ao nosso objetivo de tentar dar luz ao indígena
representado pelo maranhense em suas publicações científicas e poéticas, em grande medida,
não contrastantes entre si. Sobre o índio matizado por Berredo, assim se manifesta:
Não digamos, como diz Berredo, que era um povo bruto e feroz, nem os apreciemos
pelos que hoje conhecemos. Não degeneraram ao contato da civilização, porque esta
não pode envilecer; mas embruteceram a força do servir, perderam a dignidade, o
caráter próprio, e o heroísmo selvagem, que tantos prodígios cometeu e perfez. Vede
o que fizeram, e dizei se não há grandeza e magnanimidade nessa luta que sustentam
80
há mais de três séculos, opondo a flecha à bala, e o tacape sem grume à espada de aço
refinada. 25
No excerto acima o olhar retrospectivo de Gonçalves Dias coloca em relevo um nativo
que não existe mais, pois, o indígena oitocentista que descreve, em sua concepção, não seria
mais representativo do que já fora um dia: digno e herói da floresta. Embora acredite que o
processo de decadência do homem americano tenha se iniciado no período pré-colombiano –
crença compactuada por outros contemporâneos seus – 26 com o olhar voltado à colonização e
crítico a ela, admite o embrutecimento do índio provocado pela servidão e pela luta que travou
ao longo de três séculos em defesa própria e de seu território contra os invasores portugueses.
Assim, se os “índios” contemporâneos não seriam mais representativos do que já foram outrora,
para que não se esqueça os indígenas do passado, representados pela cultura Tupi, o indianista
defende que “o primeiro tópico de que havemos de tratar na história do Brasil é o dos índios”,27
por reconhecer nos autóctones deste período as raízes de nossas tradições e valores
verdadeiramente nacionais. Torna-se inegável o caráter político da proposição do “estadista”
que, neste momento, procurava criar uma ligação entre o caráter nobre do já extinto nativo
americano, com o incipiente Estado-nação que se formava sobre esses nobres alicerces e se
projetava no caminho de uma “nova” civilização.
Não obstante o apelo nostálgico pelo índio pretérito, nobre e representante de nossas
raízes mais profundas, Gonçalves Dias não deixa de criar uma ponte com os nativos
contemporâneos que, em sua concepção, encontravam-se vilipendiados e embrutecidos pela
opressão colonial e pela resistência que realizaram nos três séculos de colonização. Sobre estes
“resíduos” de uma história ultrapassada, afirma que “pertencem tanto a esta terra como os seus
rios, como os seus montes, e como as suas árvores”.28 Contraditoriamente, o indianista faculta
a posse do território brasileiro e sua natureza aos remanescentes da colônia que considera
decaídos e embrutecidos?
Para Treece, a geração dos primeiros indianistas se apoiou “predominantemente nos
relatos quinhentistas e seiscentistas da cultura e história indígenas para retratar as consequências
trágicas da opressão colonial”, não obstante muitos terem “presenciado em primeira mão, a
evidência da desintegração tribal em seu próprio solo”. No entanto, a omissão da realidade
25 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 28. 26 Sobre esse processo de decadência “natural” defendido por Gonçalves Dias, principalmente em seu artigo Brasil
e Oceania, faremos uma detida análise ao longo deste capítulo. 27 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 28. 28 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 28.
81
social do índio contemporânea aos literatos indianistas, não deve ser compreendida como um
“mero evasionismo romântico”, nem mesmo uma preferência “pela imagem rousseauniana
idealizada do Homem Natural a viver em uma idade áurea mítica”. Como lembra o autor,
devemos superar a imagem de um indianismo indiferente “às condições mais imediatas da
população indígena”, pois alguns indianistas, como Gonçalves Dias, tinham a preocupação de
“articular um sentimento de solidariedade entre os ‘exilados’ do Império, tanto os do passado
com os do presente, e aqueles setores da sociedade contemporânea brasileira que permaneciam
discriminados, excluídos e desprovidos dos direitos de cidadania”. Conclusivamente, afirma:
O problema era que, assim como o argumento nacionalista, o debate pós-
independência sobre a política indigenista oficial não dava espaço para categorias
sociais ambíguas como o tapuio, nem poderia contemplar quaisquer reinvindicações
e interesses de tais grupos independentemente do Estado Imperial. 29
No futuro da sociedade brasileira que se desenhava, não havia espaço para espectros
incompatíveis com o que se desejava: uma sociedade etnicamente branca e homogênea. Por
isso a “preferencia” dos indianistas com o índio do passado. Assim, embora Gonçalves Dias
apresente um breve surto de solidariedade com os indígenas remanescentes de seu século, em
História Pátria e nos diversos textos e poesias do indianista, prevalece o índio vilipendiado
pela colonização, se não morto, decaído, converso. Sua inglória resistência se torna central em
seu indianismo, movido pela dialética colonização/civilização x resistência/embrutecimento,
sempre com destacados prejuízos aos segundos. Eis os choques entre Berredo e Dias. Enquanto
o primeiro canta as glórias da colonização portuguesa, o indianista/cientista canta a ruína étnica
e física do índio causada por ela. Ora, olhavam o mesmo, o processo colonial português, mas
através de diferentes perspectivas e lentes.
Por isso, para Gonçalves Dias, o principal defeito do agente colonial Bernardo Pereira
de Berredo era o de que “só escrevia para portugueses: não escrevia a história do Maranhão,
escrevia uma página da conquista de Portugal” provido de parcialidades. Embora afirme que na
crônica a exposição das informações é “quase sempre verdadeira, as numerações são exatas, as
classificações justas”, qualifica-a como sem cor, sem movimento e vida. Classifica- a como
“fastidiosa” e escrita não por um verdadeiro historiador e sim por um simples cronista que não
explica, mas somente expõe os fatos, enumerando-os e classificando-os pelas datas.30
29 TREECE, D. Exilados, aliados, rebeldes, p. 30 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p.25.
82
Ao lusitanismo de Berredo, grita o antilusitanismo de Gonçalves Dias. Na história
narrada pelo português, o indianista só vê uma história da conquista colonial sem importância.
Também considera sem importância os objetos de estudo destacados por Berredo, como as
classes sociais, as representações da câmara do senado, as exigências dos colonos, os resgates
de índios, entre outros, que chama de insignificantes. Sobre a compreensão histórica do lusitano
afirma: “O que é Português é grande e nobre; o que é de índios é selvático e irracional; o que é
de estrangeiro é vil e infame”. Por fim, acusa Berredo de estar contaminado pelo fanatismo:
(...) nos índios só vê bárbaros, nos franceses piratas, nos holandeses heréticos e
sacrílegos: é tudo um misto de patriotismo exclusivo e de cego fanatismo, porque
Berredo é o órgão dos colonos portugueses com todas as suas crenças, com todos os
seus prejuízos, porque ele não enxerga senão o presente, não escuta senão o que diz o
povo”.31
Em seu ensaio, o indianista destaca aquilo que qualifica de “avaliações parciais” feitas
pelo agente colonial e historiador português. Entre elas, cita as “análises suspeitas e partidárias”
sobre as invasões do território luso da América empreendidas por holandeses e franceses.
Atentemo-nos ao fato de que, para retratar as trágicas consequências da opressão colonial
portuguesa aos indígenas do Brasil, além da postura antilusitana, Gonçalves Dias adota uma
postura tão parcial quanto Pereira de Berredo. Vejamos sua análise.
O indianista afirma que quando os holandeses invadiram o Brasil, “estavam em todo o
seu esplendor e prosperidade, (...) o que lhes assegurava quase todo o comércio da África e das
Índias”. Portugal, ao contrário, “caminhava a passos largos para a sua decadência” após o
domínio espanhol que os arruinou e os fez perder “muitas das suas possessões da Ásia, e quase
todas as da África, e não podiam socorrer as suas colônias do Brasil”. Diante deste cenário,
pergunta-se o indianista: “Por que então não puderam os holandeses estabelecerem-se no
Brasil? Por que não puderam fundar colônias, quando as fundavam em domínios mais bem
defendidos que estes? Por que foram vencidos pelos portugueses (...)? ” Enfático, responde:
“porque erraram”:
Se eles se ligassem aos indígenas, se os soubessem chamar ao seu partido, se
compreendessem o que eram estes, em relação ao país que pretendiam avassalar,
seriam vencedores; porque da escravidão à revolta o que há? Um passo quando muito.
Ora, os Indígenas, com o seu amor ardente de liberdade, como de todos os povos
semibárbaros, mal sofriam os portugueses a quem tinham oferecido hospitalidade, e
que em troca os despojavam de suas terras, dos seus meios de subsistência, de suas
famílias, da sua independência, que eles mais que tudo prezavam. 32
31 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 26. 32 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 27.
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Para Gonçalves Dias, os indígenas estavam ansiosos pelo desejoso de vingança contra a
invasora e opressora nação lusa. Assim, reconhecendo que eram mais fracos que o inimigo e,
principalmente, passíveis de derrota, aceitariam facilmente o auxílio de outros, mesmo de
estranhos que mais tarde pudessem se converter igualmente em tiranos. Em sua interpretação,
o erro logístico dos holandeses em desprezar os indígenas causou a derrota e a expulsão desta
nação europeia do território brasileiro.
Quanto aos franceses, Gonçalves Dias se pergunta por que foram tão bem recebidos
onde quer que desembarcassem e por que encontraram tanto apoio nos indígenas? Ele mesmo
responde: “Eis toda a sua diplomacia com os índios”. Credita a receptividade indígena aos
franceses “não só porque o seu caráter simpatiza facilmente com o de todos os outros povos,
mas porque tratavam com os indígenas, como de iguais para iguais”, querendo antes amigos
que escravos e comerciar antes de escravizar.33 Como afirma, este “caráter” imanente do francês
o fez obter alianças entre os nativos do território brasileiro. Ao que parece, o espírito de partido
de Gonçalves Dias o fez omitir a história da opressão colonial francesa na América, como no
Haiti, ou na África, que ganhava contornos imperiais e também opressivos na primeira metade
do século XIX.
Na contramão desta receptividade aos franceses, afirma que o contrário aconteceu com
os portugueses deportados e aventureiros que se dirigiram para as terras brasileiras. Argumenta
que “para a Ásia e a África mandava Portugal a flor da sua nobreza, para o Brasil vinha o rebute
de sua população”. Neste momento, o indianista transfere os malefícios da colonização e o seu
“caráter” intrinsicamente opressor e hostil, ao perfil do colonizador que para cá veio. As
atrocidades cometidas pela colonização portuguesa nas terras americanas são imputadas aos
homens que para cá se dirigiram e, assim, Gonçalves Dias cria uma clivagem: o bom e o mau
colonizador português. Em suas conjecturas antilusitanas, a mesma clivagem hierárquica pode
ser sentida, ainda, às diferentes nações europeias: o bom colonizador francês ou holandês e o
mau colonizador português. Sobre este, afirma que a cobiça explica porque as “primeiras
páginas da história do Brasil estão alastradas de sangue, mas de sangue inocente, vilmente
derramado” pelos portugueses. Se perguntados porque “tantos riscos correram, porque se
afrontaram tantos perigos, porque se subiram tantos montes, porque se exploraram tantos rios,
porque se descobriram tantas terras, porque se avassalaram tantas tribos (...), dizei-o e não
mentireis: - foi por cobiça”. Imputa o mesmo “pecado” aos missionários, ao afirmar que “era
por cobiça” que eles “deixavam a frisa e a orla das roupetas nestas florestas sem caminho,
33 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 27.
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porque tantas privações passavam, porque sofreram tantos martírios”. Em tom irônico, lembra
a fala de um missionário ao Rei D. Afonso VI: “assim que, Senhor, vamos tomando conta destas
terras por Deus e para Deus”.34
Em História Pátria, o crítico literário, o cientista e o poeta convivem tranquilamente,
sem que um reduza o outro. Em concordância com o movimento literário a que se filia, o
indianista edeniza os habitantes nativos e o ambiente geográfico em que habita: “e por ventura
não foi sem motivo que Deus os constituiu tão distintos em índole e feições de todos os outros
povos, como é distinto este clima de todo e qualquer outro clima do universo”. Em um momento
em que a intelectualidade brasileira discutia a história/memória do Estado Nacional brasileiro
em formação e procurava criar uma identidade à jovem “nação”, o indígena é lembrado por
Gonçalves Dias como útil e glorioso ao futuro do país, assim como foi no passado. Como
afirma, “(...) deram a base para o nosso caráter nacional, ainda mal desenvolvido, e será a coroa
da nossa prosperidade o dia de sua inteira reabilitação”.35 Na compreensão do indianista, essa
reabilitação dos indígenas remanescentes da colônia aconteceria a partir da diluição étnica do
nativo em meio aos nacionais e, consequentemente, de seu “renascimento”. Assim, aos
herdeiros da colonização portuguesa, Dias imputa a altruística e abnegada tarefa de guiar os
“selvagens” pelas mãos com destino à civilização. Logo, do sangue do civilizado colonizador
europeu, somado às qualidades intrínsecas e positivas do índio “brasileiro”, surgiria, em um
futuro breve, uma população americana singular, miscigenada, concentrada no coração da nova
nação que se formava nos trópicos. Isso explica a tônica positiva que Gonçalves Dias atribui às
práticas indígenas que historicamente foram matizadas como negativas. Entre elas, cita suas
festas de sangue e seu canto de morte que, agora, elevam o indígena ao status de verdadeiros
heróis, ou ainda, sua resignação diante da civilização que agora o associa ao espírito de
liberdade, assim como é o Brasil, agora independente. Na nova sociedade brasileira que surgia,
não havia espaço para o índio étnico, vestido em trajes nativos. Neste momento, ao país,
interessam as qualidades nativas que pudessem somar à imagem da nação que se constituía
como etnicamente mestiça. Com tantas qualidades, Gonçalves Dias lembra as vantagens de sua
integração ao caráter da nação brasileira:
Se, porém, a esses homens, tão descuidados, tão resignados, tão improvidentes, podeis
dar um motivo de ação, um incentivo qualquer, se nessas almas, que tão facilmente se
afinam, se inflamam, se eletrizam, transbordando os mais generosos sentimentos,
podeis derramar uma faísca de entusiasmo, vereis o que são, o que fazem, de que são
34 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 28. 35 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 28-29.
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capazes: serão corajosos e infatigáveis, pertinazes no seu propósito, atilados na sua
execução, quase sempre poetas, heróis algumas vezes. Tudo isso é índio, tudo isso é
nosso; (...).36
A assertiva de Gonçalves Dias se assemelha a do cientista bávaro von Martius que, em
sua monografia Como se deve escrever a História do Brasil, apresentada ao Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro no de 1843 já escrevia: “cada uma das particularidades físicas e morais,
que distinguem as diversas raças, oferece a este respeito um motor especial; e tanto maior será
a sua influência para o desenvolvimento comum, quanto maior for a energia, número e
dignidade da sociedade de cada uma dessas raças”.37 A linguagem do indianista maranhense se
coaduna com a do cientista bávaro. Ambos estavam preocupados com o lugar que o índio –
nobre e passível de reabilitação - ocuparia na nação brasileira. Certamente, essa preocupação
aglutinava uma série de intelectuais angustiados com a integração dos nativos ainda “dispersos”
pelo território nacional. Assim, se perfectíveis, logo, civilizáveis, caberia aos poetas nacionais,
segundo Dias, a tarefa de encontrar um passado mítico e heroico ao índio e, assim, enaltecer e
enobrecer o sangue daquele que em breve iria colorir o sangue nacional.
Convinha também que nos descrevesse os seus costumes (dos índios), que nos
instruísse nos seus usos e na sua religião, que nos reconstruísse todo esse mundo
perdido, que nos iniciasse nos mistérios do passado como caminho para o futuro, para
que saibamos donde viemos e para onde vamos: convinha enfim que o poeta se
lembrasse de tudo isto, porque tudo isto é poesia; e a poesia é a vida do povo; como a
política é a vida do povo. 38
Em um futuro breve, mais precisamente no ano de 1852, essa tarefa seria realizada por
Gonçalves Dias em uma densa pesquisa destinada ao IHGB de título Brasil e Oceania, obra da
qual nos ocuparemos adiante. Por ora, é importante ressaltar que nela, o poeta em roupagem
científica, procura responder a indagações que levanta anos antes em História Pátria, como a
origem dos povos indígenas, seus costumes e religião, entre outras. Sobre a primeira indagação,
se antecipa e afirma que “o seu berço devia ser um local de clima tropical, qual convinha a
homens que não andavam vestidos; devia ser abundante de caça e pesca, como para homens
que careciam de toda a indústria; devia por fim ser coberto de árvores que lhes servissem de
abrigo”. Por fim, responde: “será ainda preciso que indiquemos o Amazonas? ”. Em sua
concepção, o Amazonas fora o centro de dispersão dos indígenas pelo território brasileiro, de
norte para o sul do país, e para justificar sua hipótese, a veia poética de Dias ganha voz:
36 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 28,29. 37 MARTIUS, K. F. P., Como se deve escrever a história do Brasil, p. 381-403. 38 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 28.
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Mas que os Tupis são filhos do Norte prova-o a sua linguagem doce e harmoniosa,
toda intercalada de vogais, e exprimindo musicalmente todas as afeições agradáveis,
prova-o a sua imaginação ardente e colorida, e as suas crenças todas poesia, toda do
coração.39
Para o indianista, a amenidade do clima amazônico fez crescer rapidamente a população
na região norte e, como consequência, houve uma grande cisão. “Eis os Tupinambás e os
Tupiniquins, conservando no seu nome a raiz Tupi, que aparecem bem longe do Amazonas.
Eles ressurgem em Pernambuco, caminhando para o sul”. Margeando o litoral, ou por aventura,
ou por novas cisões, caminhavam mais para o sul e aí fundavam suas tabas e “aparecem já no
Rio de Janeiro”, como os Tamoios que carregam o Tupi no seu nome; indicativo de que
pertencem ao tronco do Norte.
Em sua tentativa de definir os motivos pré-coloniais que geraram o êxodo dos índios
das terras do Norte, seu fluxo migratório, sua cisão e distribuição ao longo do litoral brasileiro,
Gonçalves Dias assinala os índios do litoral - como chama os Tupi - como aqueles que poderiam
simbolizar a “nação” brasileira. Em contraponto a estes, também define aqueles que não
poderiam simbolizá-la. Estes seriam, segundo o poeta, as nações descidas dos Andes que aqui
vinham se estabelecer fugindo ao domínio dos Incas:
(...) testemunhas da civilização nascente do Peru, admiradores, malgrado seu, do
progresso que lá tinha feito a civilização, com saudades das terras onde tinham
nascido, e donde só a força os tinha desalojado, vem deles sem dúvida a tradição
indiana de que o paraíso ficava além dos Andes. São esses os Goitacazes, cujo nome
tanto vale como se disséssemos - homens que vem da floresta. Encontrados com os
Tamoios, e talvez já então com os Tupinambás, foram recalcados para a floresta, e daí
vem que nunca perderam o nome: homens que vem da floresta ou que vivem nas
florestas, isto é, longe das praias. 40
“Eis pois as raças do Brasil, segundo o indianista: Tupis, Tamoios, Tupinambás, Tupiniquins,
Timbiras, Tobajaras, etc., descendem todos do mesmo tronco, falavam dialetos da mesma
língua – e viviam à beira-mar”, enquanto os:
Goitacazes, Aimorés, Cramecrans ou Botocudos – e talvez outras tantas raças, vieram
do Peru e habitavam os sertões. Goitacazes já sabemos o que exprime, - os Aimorés
tinham medo d’água, o que prova quão pouco afeitos estavam à vista do mar. Os
Cramecrans são duros, asselvajados e como que envilecidos por continuados
revezes.41
39 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 30. 40 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 58. 41 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 59.
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Em sua História Pátria, Gonçalves Dias reitera, intencionalmente, a imagem
historicamente construída no período colonial que permanece no imaginário oitocentista, da
existência de duas categorias de índios no território brasileiro: o Tupi e o Tapuia, ou, os Tupi e
os Guarani, representantes do primeiro grupo e o Botocudo, representante do segundo. O
primeiro é o índio bom, originário e amigo do colonizador. O segundo, é o índio mau, inimigo
do português, invasor, de fala incompreensível e selvagem. O primeiro é o índio literário que
surge como representante histórico da incipiente nação; aquele que fundamenta as bases da
nacionalidade e que somou sua energia e seu sangue ao desenvolvimento comum da nação
recém-independente. “Já estão virtualmente ou extintos ou supostamente assimilados, que
figuram por excelência na autoimagem que o Brasil faz de si mesmo”. É ele que surge nos
monumentos, sobrenomes, alegorias e pinturas e também, é ele o índio da literatura romântica
em sua vertente indianista. Como afirma Cunha, “é o índio bom e convenientemente, é o índio
morto”. A segunda categoria, o Botocudo, “é aquele contra quem se guerreia por excelência nas
primeiras décadas do século: sua reputação é de indomável ferocidade”, é o “contraponto e
inimigo dos Tupis na história do início da colônia”.42
Aos primeiros, passíveis de representar a jovem “nação” que se configurava, Gonçalves
Dias atribui caracteres especiais, como a pureza racial. Lembra que, mesmo diante de todos os
revezes históricos, como a dispersão a que se obrigaram em função de seu crescimento
demográfico, a posterior chegada dos colonizadores portugueses no século XVI e as constantes
peregrinações por esse território, o que não permitiu que vivessem como uma grande nação,
“tinham conservado a língua primitiva em toda a sua pureza, eram o depósito das suas tradições,
dos seus ritos, da sua religião, eram por assim dizer poetas por nascimento”.43
Poetas que, para o indianista, lutaram bravamente contra todas as vicissitudes. Entre
elas, cita a letal chegada dos colonizadores portugueses que, quando “quiseram assentar na
Bahia a cabeça do novo Estado”, provocaram uma nova cisão entre os Tupi, “cortados
violentamente em duas partes”:
Os que ficaram ao sul da Bahia recuaram ainda mais para o sul, até que por fim, com
a criação de novas capitanias, houveram de se embrenhar também como os
Goitacazes, e foram pleitear com esses povos os sertões de que tantos anos tinham
posse. Os que ficaram para o outro lado foram recuando ainda mais para o norte em
procura daquelas selvas do Maranhão e Amazonas, de que lhes teria ficado a tradição.
Ali tinham maior cópia de alimentos, sítios mais defensáveis, mais segurança de vida.
Foram todos indistintamente, porque para ali os guiava o instinto da conservação, e
42 CUNHA, M. C da., História dos índios no Brasil, p. 136. 43 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 59.
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estabeleceram-se onde foi depois o estado do Maranhã, então desocupado de
Portugueses e inculto muitos anos depois. 44
“No Estado do Maranhão, que então compreendia Ceará, Maranhão, Pará e Piauí, foi
onde se reuniram os fragmentos de todas as tribos dispersas – e foi este o lugar das suas últimas
trincheiras”.45 O literato lembra que, com a ampliação das fronteiras coloniais sobre o território
do Brasil, principalmente no Norte, “tudo isso se destruiu e se aniquilou”. Assim, o
antilusitanismo e a luta pela sobrevivência étnica do grupo Tupi no contexto colonial marcam
o texto gonçalvino que, mesmo se pretendendo científico, revela o romântico literário que o
narra. Ao longo do texto, Dias demonstra forte preocupação em reconhecer e identificar a
origem Tupi da nação brasileira, grupo étnico lembrado por sua pureza e heroicidade que,
historicamente, foi vilipendiado e destruído pelo adventício colonizador, segundo o autor. Com
os olhos voltados ao passado colonial do país, realiza forte defesa histórica do índio Tupi e
concilia nossa “nobre” origem americana ao processo civilizatório que guiava a nova nação que
se projetava, teleologicamente, racialmente branca e culturalmente herdeira dos valores
europeus. Igualmente, justifica o contemporâneo e violento processo de integração do grupo
étnico que não representava o Brasil e, principalmente, colocava em suspensão o projeto
civilizatório ocidentalizante: o Tapuia.
No entanto, Gonçalves Dias não responsabiliza somente o colonizador português pelo
extermínio indígena. Atribui também parcela de culpa aos aliados da colonização: os
missionários jesuítas. Sem deixar de destacar as diferentes formas de resistência à colonização,
principalmente entre os Tobajara e os Nheengayba, da ilha do Marajó, afirma:
Todos foram vencidos, desbaratados, escravizados: quando o não podiam com as
armas, mandavam-lhes um padre da Companhia com um crucifixo e palavras de paz,
que os traziam sujeitos e cativos para definhar e morrer nas nossas plantações; quando
faltavam escravos, levantavam bandeira, juntavam homens e iam ao que chamavam
resgate, em escárnio de todas as leis divinas e humanas. 46
O indianista realiza duras críticas à lei de resgate como forma de escravização dos
indígenas, prática que, como afirma, foi inicialmente autorizada “porque se supunha que só se
resgatariam os índios condenados à morte”. No entanto, lembra que os colonizadores souberam
violar a lei, resgatando índios por um “ferro qualquer, por uma fita encarnada ou por um fio de
missanga”, o que lhes garantia a escravidão indígena por toda a vida, “não havendo prisioneiros
44 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 59. 45 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 59. 46 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 59-60.
89
que lhes bastasse”. Sobre a participação de religiosos neste processo de violação da lei, e sobre
a prática de escravização indígena, assim se pronuncia:
Se pois, na vizinhança de um estabelecimento agrícola havia alguma tribo fácil de ser
apreendida, embora aliada, embora descansasse na fé portuguesa, os colonos, com ou
sem licença dos governadores (...) levantavam gente e saiam ao resgate. Como já se
não podia dizer que resgatavam prisioneiros da morte, os padres, que sempre tiveram
sutilezas para tudo, diziam que eram resgatados do inferno.
Ia esta força com todo o maior silêncio; paravam nas circunvizinhanças das tribos que
procuravam, e alta noite assaltavam as aldeias descuidadas (...), e com quanto maior
estrepito que podiam para que aterrassem antes de os vencer. Punham os índios em
cerco, incendiavam-lhes as palhoças, matavam quantos lhes resistiam e aprisionavam
o resto. Velhos decrépitos, mulheres inofensivas, meninos e crianças antes da idade
de conceberem o mal, - nada lhes escapava. Voltavam triunfantes, planejando novas
crueldades de novos assaltos. 47
Gonçalves Dias está se referindo à lei inicialmente outorgada em 1587, retomada no
Regimento de 1603, reiterada em 1611, no alvará de 1688 e em outros momentos. Através
destas leis, os colonos portugueses poderiam resgatar indivíduos cativos dos índios que fossem
comprados ou “resgatados” para serem salvos. Como declara o regimento de 1624, “só poderão
ser escravizados os que estiveram em cordas”, ou seja, “são assim resgatados indivíduos que
seriam comidos, para que lhes salve a vida, e a alma”. Desta forma, instituiu-se uma maneira
de escravização lícita e legal. Como afirma Perrone-Moisés, “esses indivíduos presos à corda,
são cativos legítimos” e “aqueles que os resgatam podem servir-se deles contanto que os
convertam e civilizem, e os tratem bem”.
O cativeiro decorrente de resgate não é, aliás, ilimitado: uma vez pago em trabalho o
preço do resgate, o cativo será livre, a não ser em alguns momentos em que se
considera que tenha sido pago um preço acima do estipulado, o comprador possa
valer-se dos serviços do resgatado pelo resto de sua vida. (...). O Resgate é
estabelecido pela salvação da vida dos prisioneiros dos índios e o cativeiro permitido
porque, como dizem claramente certos documentos, se os moradores não encontrarem
nisso nenhuma vantagem não hão de querer pagar pelos cativos dos índios, que não
poderão ser salvos. 48
As críticas feitas por Gonçalves Dias às transgressões à lei de resgate e à escravização
indígena, cometidas pelos portugueses no norte do país, mais especificamente para a região do
Maranhão, são corroboradas por Perrone-Moisés, que afirma que as transgressões a essas
disposições legais são muitas: “(...) só no ano de 1707 o rei envia duas Cartas Régias ao
47 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 61. 48 PERRONE-MOISÉS, B., Índios livres e índios escravos (...), p.127-128.
90
governador do Maranhão sobre punição de excessos cometidos por tropas de resgate”.49
Gonçalves Dias classifica essa lei de bárbara, pois, mesmo que justificada “em benefício dos
índios”, para que eles não fossem injustamente escravizados por seus pares, acabou gerando
outra forma de escravização, movida pelos colonizadores. Além disso, condena o não direito
de resistência aos indígenas, pois se o fizesse, a lei permitia ao colono o direito de vingar-se
por conta própria, nos pais, nos filhos, nos netos ou em toda a descendência. Logo, como afirma,
“as ofensas traziam as represálias e as represálias eram motivos para novas ofensas”. “Por este
meio, as nações foram vencidas, as tribos dispersas, e os indivíduos escravizados”.50
Como forma de fortalecer suas críticas à escravização e ao extermínio indígena no
Maranhão colonial, Gonçalves Dias cita um depoimento do Padre Antonio Vieira (1608-1697),
voz que, segundo o indianista, os portugueses “não recusarão por suspeita”:
Sendo o Maranhão conquistado no ano de 1615, havendo achado os portugueses desta
cidade de São Luiz até ao Curupá mais de quinhentas povoações de índios, todas
muito numerosas, e algumas delas tanto que deitavam quatro e cinco mil arcos,
quando eu cheguei ao Maranhão, que foi no ano de 1652, tudo isto estava despovoado,
consumido e reduzido a poucas aldeotas, de todas as quais não pôde André Vidal
juntar oitocentos índios de armas; e toda aquela imensidade de gente se acabou ou nós
a acabamos em pouco mais de trinta anos, sendo constante estimação dos mesmos
conquistadores, que depois de sua entrada até aquele tempo eram mortos dos ditos
índios mais de dois milhões de almas; donde se deve notar muito duas coisas. A
primeira, que todos estes índios eram naturais daquelas mesmas terras, onde os
achamos, com que se não pode atribuir tanta mortandade à mudança e diferença de
clima, senão ao excessivo e desacostumado trabalho, e à opressão com que eram
tratados. A segunda que foram infinitos os cativos, e tudo se consumiu em tão poucos
anos! 51
Sabiamente, Gonçalves Dias afinou seu antilusitanismo oitocentista às críticas e
denúncias seiscentistas realizadas pelo missionário jesuíta Antonio Vieira. Deste, o indianista
extraiu os elementos indispensáveis, como o extermínio indígena na região do Maranhão, a
veleidade dos colonizadores portugueses e dos aliados jesuítas, para dar maior robustez e
fortalecer seu indianismo político.
Seja a última máxima (o cativeiro dos índios) a causa única de toda essa destruição e
miséria, a qual não foi nem é outra que a insaciável cobiça e impiedade daqueles
moradores, e dos que lá vão governar, e ainda de muitos eclesiásticos que sem ciência
nem consciência ou julgam lícitas estas tiranias ou as executam como se o fossem não
valendo a muitos dos tristes índios o serem já cristãos ou vassalos do mesmo rei para
não assaltarem as suas aldeais, e os trazerem inteiramente cativos, (...). 52
49 PERRONE-MOISÉS, B., Índios livres e índios escravos (...), p.128. 50 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p. 61. 51 VIEIRA, Pe. A Apud DIAS, A.G., História Pátria: Reflexões (...), p. 61-62. 52 VIEIRA, Pe. A Apud DIAS, A.G., História Pátria: Reflexões (...), p. 62.
91
Para Dias, a cobiça dos colonos do Maranhão atingiu tais níveis de injustiça com os
nativos em proveito de tão poucos, que “ali nem podia haver ou a propagação da fé ou a
comunicação das gentes, ou administração das justiças, ou agricultura ou comércio, ou coisa
que fosse útil à religião, ao reino” ou ainda “à conservação da humanidade daqueles infelizes
vassalos da coroa”.53 Embora trate da história do Maranhão do século XVII e XVIII, certamente
sua escrita fora fortemente influenciada por sua infância, quando presenciou in loco, na vila de
Caxias, as veleidades cometidas pelos descendentes de portugueses aos índios remanescentes
do Maranhão do século XIX. Assim, destacamos que, mais uma vez, o indianista concentra sua
atenção em apresentar o surgimento de uma nação brasileira que nasce sobre as ruínas de uma
“nobre” população nativa que teve o seu sangue vilmente derramado pela opressão colonial
portuguesa.
Finalmente, gostaríamos de salientar que as duas composições acima apresentadas, O
Gigante de Pedra e História Pátria, poesia e ciência histórica respectivamente, foram assim
dispostas de forma proposital para que pudéssemos realizar algumas analogias entre ambas.
Embora estilisticamente distintas, apresentam reflexões que as relacionam e transmitem
mensagens ideológicas próprias de seu tempo. Entre elas, a incondicional transferência e
responsabilização do extermínio físico e cultural do indígena ao período colonial português.
Embora em algum momento de História Pátria o poeta tenha realizado uma “contraditória”
ponte entre o índio nobre e morto do período colonial e o “índio” remanescente de seu tempo,
certamente, em ambos os estilos textuais, seu interesse fora o de apresentar a veleidade colonial
portuguesa em terras americanas e sua trágica consequência: o extermínio indígena. Seu
interesse retrospectivo sobre a história colonial e indígena, que olha e transfere a memória
nativa ao passado, se justifica se pensarmos que a preocupação de seu tempo e dos valores que
sustentam o romantismo, como o nacionalismo, precisava marcar a diferença entre o antes e o
depois, entre o colonial e o imperial. A proposital omissão de Gonçalves Dias às veleidades do
Império com os povos indígenas, justifica-se se considerarmos que o poeta desejava marcar
esse período como um momento de paz, de prosperidade, de civilização e estabilidade
institucional. Não obstante a diferença estilística entre as composições, ideologicamente, o
literato estava interessado em marcar a descontinuidade dos tempos, do antes e do depois, e
assim, acentuar o novo, construído sobre as ruínas do antigo, que havia reduzido e transformado
em cinzas o “bom selvagem”.
53 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...), p.63.
92
A “bondade” dos novos tempos, deveria ser marcada através da “maldade” do velho e
superado período colonial. Gonçalves Dias realiza esse exercício com maestria em ambos os
textos e, para esse propósito, a crítica que realiza ao texto de Bernardo Pereira de Berredo lhe
foi providencial. Em o Gigante de Pedra, destaca poeticamente a vitória militar da colonização
portuguesa sobre a francesa. A este evento, sucedeu-se a conquista territorial portuguesa e o
extermínio físico e cultural do indígena atônito pela transformação da paisagem: a cidade em
detrimento da floresta; seu antigo habitat onde ao som do boré cantava seus feitos heroicos. Em
História Pátria, se pergunta: afinal, porque o francês, mais amigo e afeito à diferença do
“outro”, não atingiu êxito em seu interesse colonial nas terras brasileiras? Esta pergunta, com o
acréscimo dos holandeses, o indianista levanta em uma nítida intenção de afirmar o quão mais
felizes seriamos se outro fosse o conquistador do território brasileiro. Assim, Gonçalves Dias
não reputa a violência da dominação colonial como intrínseca ao caráter colonial e ocupacional
do estrangeiro em terras do além-mar, mas à nacionalidade dos invasores. Não nos enganemos:
atendendo aos interesses ideológicos do movimento político do nacionalismo romântico
oitocentista, se a nacionalidade vitoriosa fosse outra, como a francesa ou a holandesa,
Gonçalves Dias inverteria os papeis e se perguntaria: por que afinal não fomos colonizados
pelos portugueses? Certamente, além de seu talento individual, acrescentaríamos o talento
político do indianista, alçado ao topo do movimento romântico brasileiro. Sobre estas questões,
voltaremos adiante.
2.4. História Pátria reverberou: Resposta à Religião.
Sabem muito bem os ilustres redatores que não são os mais religiosos aqueles que
sempre trazem sobre os lábios palavras cheias de unção, que não são os mais bem
morigerados aqueles que de contínuo dissertam sobre a moral; e que os jesuítas,
reprovando a cobiça portuguesa, podiam ser tanto ou mais cobiçosos que eles. 54
Como acabamos de ver, em seu ensaio História Pátria, o cientista e indianista Antonio
Gonçalves Dias apresenta uma perspectiva política e ideológica de forte oposição ao processo
de colonização portuguesa do território americano e realiza duras críticas ao desmedido
extermínio dos indígenas que aqui habitavam. Não deixa também de advogar boa dose de culpa
a outros agentes coloniais que aponta como igualmente responsáveis pela legitimação deste
processo, como os missionários jesuítas, a quem acusa de estarem contaminados, tal qual os
portugueses, pelo pecado da cobiça. A enunciação e o forte teor acusatório das proposições do
54 DIAS, A. G., Resposta à Religião, p. 152.
93
indianista provocaram a ira dos religiosos que, prontamente, declararam que suas acusações
não poderiam passar “sem censura em uma cidade onde existe um periódico religioso”. Assim,
ofendidos, os responsáveis pelo periódico se sentiram no dever de refutar o que aos seus “pios
ouvidos” lhes pareceu errôneo e ofensivo. 55
Declarando-se “incompreendido”, resolutamente e em tom de escárnio, Gonçalves Dias
publica uma carta-resposta na Revista Guanabara de 1850. Sob o título Resposta à Religião,
afirma que a censura religiosa “não passaria sem reparo em uma cidade onde existem tantos
periódicos literários”, e acusa: “e Deus nos livre de escrevermos sorrindo e zombando sobre
fatos de tão tristes consequências como foi a censura, a censura dos frades, a censura religiosa”.
Lembra que a censura religiosa, historicamente, aconteceu em todas as matérias, como em
milhares de situações em que condenou a opinião livre. Entre elas, cita o caso de Galileu, “que
por baixo dos membros desconjuntados pelo cavalete da censura eclesiástica sentia o
movimento da terra, de que naquele tempo, como de tudo, se fez uma questão de teologia”. Cita
ainda os inúmeros literatos esclarecidos, “bons engenhos portugueses, esterilizados,
martirizados” pela censura da igreja e as inúmeras obras literárias que para serem publicadas
“sofriam não uma senão muitas censuras, não de uma ordem senão de muitas”.56 Em seu
julgamento sentenciador, afirma que “Deus haverá de ter acolhido aqueles bentos padres na sua
santa glória, enquanto que sobre eles continua a pesar o juízo dos homens, mais severo que o
juízo de Deus”. Sobre as históricas censuras religiosas, Dias afirma tratar-se de “inventos dos
homens” e não de Deus e, sem reconhecer o dom da infalibilidade aos religiosos, reprova-as, e
aplaude “a sua extinção com os homens do século em que felizmente vive”. 57
Declarando-se religioso, afirma não confundir a palavra de Deus com os inventos dos
homens, sempre prontos a adotar “princípios menos consentâneos com o fim das suas
instituições e aplicações perigosas de tais princípios”. Sobre o argumento dos padres de que os
jesuítas vieram ao Brasil sem “causa comum com nenhum de seus compatriotas que cá
encontravam”, e que vinham sacrificar nas brenhas brasileiras “as suas comodidades”, responde
o indianista:
Não somos estranhos a história dos jesuítas a ponto de não sabermos que de nem uma
outra regra se contam exemplos de uma abnegação mais completa, de uma obediência
55 DIAS, A. G., Resposta à Religião, p. 147. 56 Entre esses literatos esclarecidos cita: “Garção, morto em uma enxovia por ter escrito uma carta em inglês, -
Antonio José queimado em vida, menos por ser judeu que por escarnecer dos frades, e Filinto Elysio, expatriado
por haver traduzido uma comédia de Molier e, obrigado a refugiar-se na mesma terra onde aos restos do grande
cômico se negou jazigo em lugar sagrado; porque o seu clero, esquecido dos princípios da caridade cristã, em vez
de consultar o livro por excelência, abriu o digesto das leis romanas e ali achou que os mímicos eram pessoas
infames, indignas portanto de jazerem em terra bendita”. DIAS, A. G., Resposta à Religião, p. 148-149. 57 DIAS, A. G., Resposta à Religião, p. 148-149.
94
mais perfeita; os sujeitos desta ordem (...) eram, nas mãos dos seus superiores, o
cadáver nas mãos do coveiro, o bordão nas mãos dos viandantes: ficaram sendo os
tipos da obediência cega, passiva e ilimitada. Os indivíduos nada queriam para si,
porém a ordem queria tudo (...) cobiça de aumentar o poder da companhia, cobiça de
pôr um pé na América, como já o tinham posto na Índia, cobiça de infiltrar-se na
população nascente com o leito da sua doutrina, cobiça enfim de conquistar um
mundo. – Não era pouco. 58
Em sua avaliação, a ordem religiosa serviu aos interesses dos portugueses que teriam
logrado êxito em sua empreitada colonial graças à influência dos jesuítas. Esta influência
responde a indagação que levanta em História Pátria sobre os motivos pelos quais “os
portugueses, mais fracos (que os franceses e os holandeses), repelidos com mais força pelos
índios, lograram, todavia, os seus desejos”. Não obstante admita que os missionários foram
aqueles que mais se interessaram pela sorte dos indígenas, também os considera, de forma
indireta, como a “causa mais poderosa da sua total ruína”, ao qual conclui:
(...) foram os jesuítas o piedoso instrumento da Providência para que sobre os
cadáveres de tal raça, decimada pela fome e pelos trabalhos, envilecida pelo cativeiro
e pelas injúrias, deteriorada pelos padecimentos físicos e morais, se erguesse outra
raça mais nova, mais forte, mais bela, mais própria para receber as luzes da civilização
moderna, mais suscetível de emparelhar com a Europa em menos tempo, mais
chegada enfim ao culto do verdadeiro Deus, e com a inteligência mais preparada para
compreender os mistérios sublimes da nossa religião. 59
Neste momento, a cobiça e a veleidade promovidas pelo processo de colonização do
território americano é justificada em nome da nova civilização que surge. Assim, a ideologia
civilizatória branca e europeia ganha cores vivas nas palavras do indianista e, mais uma vez, a
memória indígena é transferida ao passado e justificada em nome de uma “nova” ordem
civilizatória construída sobre as ruínas da “antiga”. Em suas palavras, o índio é basicamente um
ente do passado e não mais um ser contemporâneo. Não obstante as acusações de cobiça,
Gonçalves Dias exime os jesuítas da responsabilidade direta sobre a “má sorte” dos índios. Em
sua compreensão, o interesse missionário dos padres e suas missões serviram de ponto
estratégico para a captura de mão de obra indígena. Com a extinção das missões e a expulsão
dos padres da então colônia portuguesa, a situação teria se agravado, quando, finalmente, as
suas populosas missões ficaram inteiramente em poder dos colonos. Por fim, conclui com um
inexorável processo de decadência dos povos indígenas:
58 DIAS, A. G., Resposta à Religião, p. 150. 59 DIAS, A. G., Resposta à Religião, p. 151.
95
(...) dobrada razão teremos para avançar que eles foram, não a arma dos portugueses
para acabar com o caráter do índio americano, que este já estava acabado, havia muito;
mas instrumento de Deus para extinguir a raça que talvez contrariava os seus altos
desígnios.60
Embora a assertiva de Gonçalves Dias possa parecer contraditória, acreditamos que
possa ser aclarada quando comparada à proposição pessimista que levanta em Brasil e Oceania
dois anos após Resposta à Religião, quando afirma:
Com a vênia devida a tão altos engenhos, nem me parece que os americanos
estivessem ainda por tentar os primeiros passos no caminho da civilização, nem por
outro lado os reputo decaídos de um alto grau de cultura intelectual. Tinham tal qual
civilização, essa mesma já fora maior do que era, mas caminhavam precípites para a
sua completa decadência. 61
Façamos uma oportuna e breve digressão a partir das duas últimas proposições
pessimistas. Na primeira, temos um Gonçalves Dias que procura em suas convicções teológicas
explicar aquilo que, certamente, já havia gestado há tempos: a decadência indígena
desencadeada por desígnios divinos. Neste momento em que atribui a extinção dos índios a
eventos sobrenaturais, seus preceitos religiosos suplantam a versão científica do indianista. Esta
versão surge de forma mais concreta em Brasil e Oceania. Nesta obra, produzida a partir de
pesquisas etnográficas e da leitura de relatos de viajantes, naturalistas, cientistas e
consequentemente, do cruzamento destas obras, o indianista defende a teoria da natural
decadência do nativo brasileiro que teria se iniciado ainda no período pré-cabralino. Se fora ou
não o amadurecimento intelectual de Gonçalves Dias que inverteu sua linguagem, de teológica
para científica, embora ambas concordem entre si, não teríamos como responder. No entanto,
o lugar de fala de Gonçalves Dias, certamente exerceu influência em sua perspectiva. Enquanto
a segunda, de caráter científico, destinava-se ao IHGB e a pedido do imperador D. Pedro II, a
primeira fora escrita em uma revista literária, dirigida e fundada pelo próprio enunciador e,
principalmente, destinada a um leitor alvo e com um objetivo concreto que aparece já em seu
título: aos religiosos:
Nem sempre, nem em todos os acontecimentos descobrimos a mão da Providência;
mas quando um povo se retira da comunhão dos homens, quando desaparece da face
da terra, não podemos deixar de levantar os olhos ao céu, e de reconhecer a
onipotência Divina, curvando-nos aos seus decretos sem, todavia, adorar o flagelo que
nos manda, nem o instrumento de que se serve para a obra da regeneração. 62
60 DIAS, A. G., Resposta à Religião, p. 151. 61 DIAS, A. G., Brasil e Oceania, p. 193. 62 DIAS, A. G., Resposta à Religião, p. 151.
96
Para Gonçalves Dias, o índio já estava morto e acabado. Como diz: “extinguiram-se os
índios”. Morto, mas passível de poesia. Antes de encerrar as suas controversas argumentações,
levanta outra: quem foram os primeiros que souberam achar poesia na natureza americana?
Refuta os jesuítas que, segundo diz, identificaram-se como os primeiros. Acusa-os de omissão
e esquecimento. Antes destes, diz estar as cartas de Colombo, as relações de Vespúcio, e os
discursos de Las Casas, que “tinham feito compreender a natureza americana”. Cita ainda
“Abeville, Léry e Hans Staden, que, todavia, não eram jesuítas e tinham traçado algumas
páginas se não tão belas no estilo, mais ricas de imagens, e mais cheias de entusiasmo e de
poesia”.63 A lembrança entusiasmada dos autores demonstra que estes foram alguns dos
viajantes que certamente alimentaram o indianismo gonçalvino e deram vida ao seu Bom
Selvagem.
Finalmente, alertamos que, se o literato destaca o literal desaparecimento do índio, seja
através de uma vertente teológica ou científica, não deixa de profetizar um desfecho
apocalíptico àqueles que aceleraram este processo. Entre outros, este desfecho pode ser
encontrado na finalização do ensaio História Pátria, quando, após historiar a opressão colonial
perpetrada pelos portugueses aos índios, o indianista rende-se a uma forma de punição divina
fatalista/pessimista que coloca em xeque os ganhos esperados pelos colonizadores e seus
herdeiros:
Depois, pesando os nossos sucessos, veríamos qual tem sido o nosso infortúnio, (...)
que nenhum passo temos dado que não seja novo infortúnio e nova miséria. Veríamos
como de Estado passamos a capitania secundária, e como de capitania secundária
fomos reduzidos a ínfima província: veríamos como todos estes factos se tem
encadeado - o naufrágio do armamento de João de Barros, que afundou tantos
recursos, a expulsão dos franceses que levou consigo tantas esperanças, e a invasão
dos Holandeses que estragou tantas fortunas. Assistimos à criação do estanco, ao
monopólio do comércio de importação e de exportação, a introdução de Africanos ou
ao tráfico da carne humana e a expulsão dos Jesuítas ou a proscrição de todos os
sentimentos religiosos; e diremos então como o grande pregador do século XVII que
também foi um grande político: não é possível que o castigo de um Estado fundado
em tanto sangue inocente pare só na presente miséria.64
O teor da profecia apocalíptica enunciada pelo literato, pode ser comparado ao
pronunciamento do religioso e missionário Pe. Antonio Vieira, a quem Gonçalves Dias chama,
na citação acima, de “o grande pregador do século XVII”. Em sua Carta ao Rei, o religioso e
missionário denuncia as injustiças e tiranias que estavam sendo cometidas pelos colonizadores
aos indígenas do Maranhão, como as escravizações e os assassinatos. Afirma ser heresia a
justificativa dos colonos de “que destes cativeiros, na forma em que se fazia, depende a
63 DIAS, A. G., Resposta à Religião, p. 152. 64 DIAS, A. G., História Pátria: Reflexões (...) p. 63.
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conservação e aumento do Estado do Maranhão”. Finalmente, o religioso sustenta que “sobre
os fundamentos da injustiça nenhuma coisa é segura nem permanente” e pronuncia uma
assertiva fatalista e apocalíptica dos ganhos materiais conquistados através do sangue dos
pobres, “que está sempre clamando ao céu”:
(...) e a experiência o tem mostrado neste mesmo estado do Maranhão, em que muitos
governadores adquiriram grandes riquezas, e nenhum deles as logrou e nem eles a
lograrão, nem há coisa adquirida nesta terra que permaneça, como os moradores dela
confessam, nem ainda que vá por diante, nem negócio que aproveite, nem navio que
aqui se faça que tenha bom fim”. 65
Treece afirma que, em muitos dos apontamentos e poesias de Gonçalves Dias, o
indianista “responde a essa visão de opressão social e econômica renovada com um desespero
irracional apocalíptico, rendendo-se à inevitabilidade de alguma forma de retribuição divina ou
punição cósmica pelos erros acumulados da humanidade”.66 O autor identifica essa punição
cósmica nos poemas gonçalvinos O Gigante de Pedra e Os Timbiras, o qual o autor chama de
“recurso à ideia de nêmese” ou vingança. Neles, o indianista rende-se à ideia de uma inevitável
punição divina ocasionada pela opressão e pelos crimes efetuados pelos colonizadores aos
nativos do território brasileiro, antes e depois da independência.
Em O Gigante de Pedra, o imenso rochedo personifica um elemento de estabilidade, se
não o único, que se encontra em um tenso estado de dormência em meio às transformações
ocasionadas pela ocupação do território brasileiro. Em duro granito repousa, mas pode acordar
a qualquer momento para “desencadear forças de vingança longamente reprimidas”. Chegará
um momento em que a unidade da pátria “será abandonada e substituída pelo caos e pela
dúvida”,67 como sugere Gonçalves Dias em duas estrofes distintas do poema:
De lavas ardentes seus membros fundidos
Avultam imensos: só Deus poderá
Rebelde lançá-lo dos montes erguidos
Curvados ao peso que sobre lhe está.
Porém se algum dia fortuna inconstante
Poder-nos a crença e a pátria acabar,
Arroja-te às ondas, ó duro gigante,
Inunda estes montes, desloca este mar!
65 VIEIRA, Pe. A Apud DIAS, A.G., História Pátria: Reflexões (...), p. 63. 66 TREECE, D., Exilados, Aliados, Rebeldes, p. 173. 67 TREECE, D., Exilados, Aliados, Rebeldes, p. 177.
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No épico Os Timbiras, mais uma vez Gonçalves Dias rende-se à inevitável punição divina
ocasionada pela opressão e pelos crimes efetuados aos nativos do território brasileiro, mesmo
no período que sucede a independência da colônia.
Aos crimes das nações Deus não perdoa:
Do pai aos filhos e do filho aos netos,
Por que um deles de todo apague a culpa,
Virá correndo a maldição – contínua,
Como fuzis de uma cadeia eterna.
Virão nas nossas festas mais solenes
Miríade de sombras miserandas,
Escarnecendo, secar o nosso orgulho
De nação; mas nação que tem por base
Os frios ossos da nação senhora,
E por cimento a cinza profanada
Dos mortos, amassada aos pés de escravos.
Não me deslumbra a luz da velha Europa;
Há de apagar-se, mas que a inunde agora;
E nós? ... sugamos leite mau na infância,
Foi corrompido o ar que respiramos,
Havemos de acabar talvez primeiro.
Como vemos, a iminente instabilidade do Estado Nacional brasileiro povoa o imaginário
de Gonçalves Dias, assim como o faz com os demais letrados da elite intelectual e política do
Império. Todas as “luzes” historicamente construídas ao longo dos séculos poderiam, em um
momento próximo, se “apagar”, e o substrato que alimenta esse temor pode ser encontrado no
contexto histórico pós-independência. Conforme Treece, esse recurso à ideia de nêmese
expressa de um lado, “o ultraje do poeta face à pura extensão dos horrores desencadeados pela
colonização e à compreensão das iniquidades históricas da conquista e às injustiças
contemporâneas do Império”. Por outro, representa a inquietação de um Império envolto em
“violentas sublevações políticas de sua própria época”68 que colocam em xeque a própria
unidade da incipiente nação. A prosa Meditação, apresentada a seguir, tornar-se-á elucidativa
a esse respeito e colocará em evidencia os reais motivos que alimentavam os temores que
assombravam o indianista e seus pares face a uma sociedade que se construía sobre alicerces
pouco seguros e movediços.
2.5. Meditação
68 TREECE, D., Exilados, Aliados, Rebeldes, p.174.
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Contemporâneo da escravidão negra e indígena, em sua prosa Meditação, Gonçalves
Dias inaugura uma crítica social que o posiciona, dentro do romantismo brasileiro, como o
precursor, senão o único, a realizar críticas à permanência das antigas estruturas de poder que
marcaram o Brasil colonial em seu pós-independência. Suas críticas se desenvolvem a partir do
diálogo entre dois personagens centrais, um ancião e um jovem patriota, que discorrem sobre
temas próprios de seu tempo, como a escravidão, sobretudo a negra, a desigualdade social, a
estrutura de poder classista baseada na cor da pele e, finalmente, os motivos pelos quais os
caminhos do progresso não seriam atingidos pela jovem e incipiente “nação”. Escrito em 1845
e publicado na Revista Guanabara no ano de 1850, além da crítica e da denúncia social que
realiza, Meditação exclui o poeta do estigma intelectual de ter omitido a escravidão negra no
interior do movimento romântico brasileiro.
Segundo Sodré, alguns motivos teriam contribuído à marginalização da figura do negro
e escravo no romantismo brasileiro. Inicialmente, lembra que, de forma geral, enquanto os
indianistas pretendiam fazer do índio um assunto, um herói, símbolo da liberdade e da
independência, não tiveram nenhuma preocupação em trazer o negro ao plano da criação
literária e, por isso, pouco interesse mereceu dos literatos. A isso, acrescenta a falta de afinidade
da temática com o mundo dos leitores, em grande parte escravocratas ou herdeiros diretos
destes, classe social onde geralmente se recrutava os seus escritores. Finalmente, e não menos
importante, lembra que na hierarquia social do Império, o negro estava na última camada e era
marcado pelo estigma daquele que só podia “oferecer” à sociedade brasileira a sua mão de obra.
69 Esse estigma social já fora destacado por Sérgio Buarque de Holanda em sua obra Raízes do
Brasil, onde o autor afirma:
Longe de condenar os casamentos mistos de indígenas e brancos, o governo português
tratou, em mais de uma ocasião, de estimulá-los, e é conhecido o alvará de 1755,
determinando que os cônjuges, nesses casos, “não fiquem com infâmia alguma, antes
muito hábeis para os cargos dos lugares onde residirem não menos que seus filhos e
descendentes, os quais até terão preferência para qualquer emprego, honra ou
dignidade, sem dependência de dispensa alguma, ficando outrossim proibido, sob
pena de procedimento, dar sê-lhes o nome de caboclos, ou outros semelhantes, que se
possam reputar injuriosos” . Os pretos e descendentes de pretos, esses continuavam
relegados, ao menos em certos textos oficiais, a trabalhos de baixa reputação, os
negros Jobs, que tanto degradam o indivíduo que os exerce, como sua geração. Assim
é que, em portaria de 6 de agosto de 1771, o vice-rei do Brasil mandou dar baixa do
posto de capitão-mor a um índio, porque “se mostrara de tão baixos sentimentos que
casou com uma preta, manchando o seu sangue com esta aliança, e tornando-se assim
indigno de exercer o referido posto”.70
69 SODRE, N. W., História da Literatura Brasileira, p. 262- 264. 70 HOLANDA, S. B. de., Raízes do Brasil, p. 56.
100
Conforme Molina, quando Gonçalves Dias redigiu sua prosa Meditação, “já sabia o
‘arriscado’ que poderia ser a publicação do fragmento, pelas críticas, por momentos ferozes ao
sistema escravista que contaminava a sociedade brasileira como um todo”. Quando os primeiros
fragmentos do texto, originalmente escritos no Maranhão, foram encaminhados ao seu amigo
Teófilo Leal ao Rio de Janeiro para publicação na Revista Guanabara, Gonçalves Dias remete
junto uma carta onde afirma: “No vapor que daqui partiu antes deste, te remeti o 2º capítulo da
minha ‘Meditação’ – eu te irei mandando os outros capítulos; cortem sem dó – o que julgarem
mau – ou arriscado de se imprimir”. Mesmo exercendo atividade no serviço público como
professor do Liceu de Niterói e sendo membro do IHGB (cargos conquistados no ano de 1847),
logo, ciente dos riscos que corria, “ele publica a Meditação numa revista financiada por D.
Pedro II”, em três capítulos nos cinco primeiros números da revista. 71
Em sua prosa, Gonçalves Dias denuncia a permanência das antigas estruturas coloniais
no país recém-independente e os seus prejuízos. Demonstra também seu ceticismo com o futuro
da jovem nação, e uma profusão de ideias pessimistas e apocalípticas ao país. Assim Molina
define a prosa gonçalvina:
Trata-se da História do Brasil, seu passado, o presente elástico da epifania-de-olhos-
fechados e uma série de proféticas visões sobre um futuro nada alentador; tudo no
marco maior que poderíamos chamar, sem estridências na época, de História da civili-
zação. Trata-se, então, de entrever as glórias, mas também os perigos que ameaçam a
Nação.72
A prosa tem início através do diálogo entre um jovem patriota e um sábio ancião que,
após tocar as pálpebras de seu interlocutor, o coloca em estado de epifania e transe. Ao toque,
revelações de uma sociedade incompreendida e desconhecida pelo jovem surgem diante de seus
olhos, colocando-o em estado de nítido incômodo, rubor e meditação diante do que vê e narra.
Incitado a olhar ao seu redor e descrever o que via, o jovem relata a paisagem natural e sua
“prodigiosa extensão”, suas “árvores robustas e frondosas”, além de outros elementos que dão
cor ao conjunto paisagístico, como o céu azul, os pássaros, suas flores e o perfume que exalam.
Em meio à descrição da paisagem natural, eis que surge na voz do jovem interlocutor o elemento
humano, suas diferenças raciais, físicas e, ainda, a primeira descrição do sistema escravagista:
“(...) vejo milhares de homens de fisionomia discordes, de cor vária e de caracteres diferentes.
E esses homens formam círculos concêntricos, como os que forma a pedra, caindo no meio das
71 MOLINA, D.A., A Meditação de Gonçalves Dias, p. 235-252. 72 MOLINA, D.A., A Meditação de Gonçalves Dias, p. 237.
101
águas plácidas de um lago”. Relata que na parte externa do círculo, estão os “de cor preta”,
amarrados por correntes de ferro que os ligam. Descreve-os como de maneira submissa e
respeitosa diante daqueles que se encontram no centro, os brancos, “um punhado de gente” de
comportamento senhoril e arrogante. 73
O jovem visualiza o ato do açoitamento da face de um homem de cor por um “mancebo”
branco e imberbe. Em reação, “os elos da corrente que manietava os homens de cor preta
soltaram um som áspero e discorde, como o rugido de uma pantera”, insinuando uma tentativa
de desligamento de suas amarras. O ato de resistência dos oprimidos, configurado em suas
expressões de ira e frenética raiva, faz correr o sangue de seus pulsos sobre suas pesadas
algemas que, embora resistentes, “cerceava o ferro como o enxofre incendido”.74 Além de
apresentar as veleidades do modo de produção baseado no domínio do branco sobre o negro, a
prosa dá relevo ao esforço dos oprimidos em sua luta pela liberdade. Dotando-os de capacidade
de resistência coletiva frente à violência sofrida pelo regime de produção escravagista -
resistência que colocava em risco a sobrevivência da jovem nação-, o autor deixa claro o receio
da elite de seu tempo com uma possível e exitosa revolta dos negros escravizados. Lembremos
que este receio povoava o imaginário oitocentista de escravocratas e da elite política brasileira
e era alimentado por dois movimentos recentes de resistência à escravidão. O primeiro, a
Revolução Haitiana que rasgou a travessia do século XVIII para o XIX (1791-1804) e deixou
cunhada a expressão haitianismo, “referência à violenta revolta dos escravos da colônia
francesa de Santo Domingo”75 que teve como consequência a eliminação da escravidão e a
independência da colônia francesa. A segunda, muito mais recente, próxima e contemporânea
ao indianista, aconteceu em Salvador, no ano de 1835, quando eclodiu a Revolta dos Malês.
Além da humanidade díspare e variada em meio à paisagem, o jovem descreve ao ancião
as vilas e as aldeias, as construções e obras arquitetônicas até onde sua visão alcança, e qualifica
o que via como sem pompa, sem grandeza e sem dignidade. “E as suas ruas eram tortuosas,
estreitas e mal calçadas, como obra da incúria, e as suas casas baixas, feias e sem elegância não
rivalizavam com a habitação dos castores”. Em meio às ruas que cortam as cidades, o jovem
afirma somente enxergar os escravos e conclui: “por isso o estrangeiro que chega a algum porto
do vasto império, consulta de novo a sua derrota, e observa atentamente os astros, porque julga
que um vento inimigo o levou às costas da África”.76 Neste momento, a voz do jovem se
73 DIAS, A. G., Meditação, p. 102-103. 74 DIAS, A. G., Meditação, p. 103. 75 CARVALHO, J. M. de., A construção da ordem, p. 18. 76 DIAS, A. G., Meditação, p. 103-104.
102
aproxima das considerações dos cientistas bávaros Spix e Martius quando, em 1817, aportaram
no porto do Rio de Janeiro e descreveram sua primeira impressão sobre a cidade:
O que, entretanto, logo lembra ao viajante que ele se acha num estranho continente do
mundo, é sobretudo a turba variegada de negros e mulatos, a classe operária com que
ele topa por toda parte, assim que põe o pé em terra. Esse aspecto foi-nos mais de
surpresa do que de agrado. A natureza inferior, bruta, desses homens importunos,
seminus, fere a sensibilidade do europeu que acaba de deixar os costumes delicados e
as fórmulas obsequiosas da sua pátria. 77
Destaquemos que a proximidade descritiva do personagem de Gonçalves Dias às
considerações realizadas pelos cientistas bávaros Spix e Martius não pode ser considerada pura
casualidade. Em boa medida, o imaginário dos intelectuais brasileiros do século XIX e, por
consequência, suas obras científicas e literárias, eram alimentadas pelos relatos de viagens dos
cientistas e viajantes europeus que desde o início do século perscrutavam o território do Brasil.
Encontraremos semelhante permeabilidade de ideias no texto científico Brasil e Oceania, obra
gonçalvina, da qual nos ocuparemos na próxima seção.
À falta de pompa e grandeza da arquitetura da cidade, pergunta o ancião: “E tu sabes,
porque as vossas ruas são estreitas, tortuosas e mal calçadas, e porque as vossas casas são
baixas, feias e sem elegância? (...) e porque se ri o estrangeiro que aporta ao Brasil? ”. Na
sequência, o próprio ancião responde: “É porque o belo e o grande é filho do pensamento, e o
pensamento do belo e do grande é incompatível com o sentir do escravo”. Para o ancião,
somente o pensamento livre pode engrandecer, ao passo que o trabalho escravo não se coaduna
com esse princípio: “e o escravo não pode ser arquiteto, porque a escravidão é mesquinha, e
porque a arquitetura é filha do pensamento, e o pensamento é livre como o vento que varre a
terra”. Assim, sempre realizando analogias entre o pensamento livre e a condição servil do
escravo, o ancião justifica a negligência inerte do escravo, “que não aproveitará o suor do seu
rosto, porque a sua obra não será a recompensa do seu trabalho, (...), e porque ele não tem o
amor da glória”. 78
Meditação encontra-se em profunda desarmonia política e ideológica com o poema O
Gigante de Pedra e o ensaio crítico/histórico História Pátria. Se nas últimas composições
Gonçalves Dias procura marcar uma descontinuidade histórica entre o Brasil contemporâneo e
o seu passado colonial, na primeira, expressa todo seu inconformismo com a nação que, em sua
compreensão, não fez sua “lição de casa”. Nesta prosa, o indianista procura demonstrar a
77 SPIX, J. B; MARTIUS, K. F.P., Viagem pelo Brasil: 1817-1820, p. 42. 78 DIAS, A. G., Meditação, p. 104,105.
103
permanência das ultrapassadas estruturas coloniais que colocam o futuro da jovem nação em
permanente estado de risco. Assim, o autor percorre as sucessivas fases da história do Brasil,
da colônia ao Império, para demonstrar que a frágil nação que se formava não rompeu com as
antigas estruturas de poder para, assim, passar “da idade da força à idade da razão; do reinado
das armas ao reinado da inteligência”, para depois adormecer sobre o fruto do seu trabalho. Sob
a poderosa influência do sol dos trópicos, surge o país, “com todos os vícios de uma nação
decadente”, o “prelúdio de vida, um feto gigante” que, se já nasceu gigante, não provou as
amargas lições da experiência “que as nações colhem durante a sua existência política”.79
Enquanto o ancião falava, os olhos do jovem patriota seguiam uma cena definida como “de um
grande infortúnio”:
(...) no meio de uma habitação que arde, o homem louco e delirante agarra-se às traves
em brasa meio-consumidas pelo incêndio, e não sente a dor do fogo, que lhe rói as
carnes dos membros. Os homens que sofriam reuniram-se como um só homem, e
soltaram um grito – horríssono, como seria o desabar dos mundos. (...) eles se
transformavam em unidade (...) e cujos pés se enterravam em uma sepultura imensa e
profunda como um abismo. 80
Através da visão do jovem, em tom profético e apocalíptico, Gonçalves Dias apresenta
seu estado de espírito com o futuro da nação brasileira. “E a vítima era um povo inteiro; eram
os filhos de uma numerosa família levados ao sacrifício por seus pais, como Abraão levou Isaac,
seu filho. E como Isaac, as vítimas deste sacrifício tinham cortado a lenha para a sua fogueira”.
Fogueira que ardia e era visualizada pelo jovem enquanto o ancião profetizava o pior dos
mundos ao país que ainda sentia o cheiro das revoltas separatistas que colocaram em xeque a
unidade territorial do país, só conquistada através da violência e da subjugação. Subjugação de
uma “nação” de negros que colocava os opressores em estado de alerta diante da iminência do
rompimento de suas pesadas correntes. Na visão de Dias, a nação brasileira fora construída
sobre as lenhas da fogueira; só faltava o estopim para gerar a labareda. Compreendendo o
sofrimento do jovem com sua visão profética, o ancião tira as mãos de sobre as pálpebras do
jovem, que imediatamente abre os olhos e “cai de face contra a terra com a inércia de um corpo
sem vida”.81
Sofrendo e relutante em acreditar na profecia da morte da “nação” que ardia em brasas
diante de seus olhos, o jovem cerceia as palavras do ancião e afirma que seu pessimismo e suas
“palavras são como o vinagre que se misturou com o fel” e assertivamente diz: “folgo de crer
79 DIAS, A. G., Meditação, p. 106. 80 DIAS, A. G., Meditação, p. 107. 81 DIAS, A. G., Meditação, p. 106-107.
104
que será mentido o teu vaticínio como fantasmas criados por um espírito exaltado no ardor da
febre que o devora”. Por fim, atribui aos jovens da nação, “ardidos de inteligência, o caminho
do progresso a passos de gigante”, ao qual retribui o ancião: “e eles vão no caminho do
progresso à passo de gigante! – Quem vos disse? ” E novamente, através da voz do ancião,
Gonçalves Dias realiza duras críticas ao caminho trilhado pelo Brasil no pós-independência e à
permanência da estrutura política e social herdada pelo país da ex-metrópole:
Por ventura basta sobrepormos um dia a outro, um ano a outro ano, e um século a
outro século, para avançarmos em civilização? (...) como chamais grande ou
progressista ao povo que só imita: ao povo que a esmo adota dos estranhos – usos –
leis e costumes, às vezes do pior que há entre eles (...). A nacionalidade que é dela? O
característico de um povo, que é dele? 82
E novamente, o próprio autor, na voz do ancião e em tom de chamada para o novo, para
a inovação e para o abandono da cópia, do velho e ultrapassado é quem responde: “Se quiseres
plantar utilmente, adubai os vossos campos (...); se quereis fundar um edifício, cavai-lhe os
alicerces na razão da sua altura. Porque não haveis de plantar em solo indomado, nem haveis
de colher frutos temporãos, nem edificar sobre os areais”.83 Em sua compreensão, assim Molina
define a prosa de Gonçalves Dias:
Sacrificar o sistema de produção, o favor, e outras mesquinhezes coloniais que
persistem no presente em nome da verdadeira liberdade, é isso que parece reclamar a
Meditação. E para tal, apresentam-se um pensamento, uma direção e um caminho na
contracorrente da ideologia dominante, num embate contraideológico que só será
superado pelo ímpeto abolicionista de Joaquim Nabuco, quatro décadas depois.84
As analogias pronunciadas pelo ancião, demonstram a preocupação do autor de
Meditação com os rumos que tomava o Império. Mesmo independente, mantinha a histórica
estrutura social excludente, concentradora e economicamente dependente da mão de obra
escrava. Sobre este rumo e seus iminentes perigos, profetiza o dia em que o povo lançará no
prato da balança todos os vícios da sociedade e conclui: “(...) no dia em que reinar a soberania
do povo, eles interporão a lâmina de sua espada, e ai do que ousar ir contra a força, porque ela
é soberana! ”. Mais enfaticamente diz:
E os que julgavam dominar por todo o tempo da sua vida, serão os primeiros
ludibriados, escarnecidos, e martirizados, porque eles se lembrarão que obedeceram
passivamente, e ser-lhes-á grato saborear a vingança do escravo feito senhor. Ser-lhes-
82 DIAS, A. G., Meditação, p. 128. 83 DIAS, A. G., Meditação, p. 130. 84 MOLINA, D.A. A., Meditação de Gonçalves Dias, p. 242, grifos do autor.
105
á doce a vingança e a crueldade, porque ambos são instintos da fera, e como fera é o
povo que despedaça a obediência, como um tigre da sua gaiola. 85
Excludente e construída sobre os alicerces da coação e da violência, assim Gonçalves
Dias compreende o Brasil de seu tempo. Sobre aquele que, em seu cego interesse pessoal, crê
na força da espada para coagir os interesses contrários, como a força da população, o ancião
pergunta se este pode ter convicção de que esta mesma espada não se empregara no seu próprio
corpo, tingida por seu próprio sangue. “Porque o senhor disse: e se algum de vós quiser dominar
sobre os seus irmãos, tornar-se-á o último dentre eles”. Enquanto uma obra política, Meditação
se coaduna com as discussões sociais e políticas que aconteciam naquele momento, como a
escravidão, a exclusão social, as sublevações provinciais e, ainda, o fomento da nacionalidade
brasileira. Embora as amargas profecias do ancião despertem “pensamentos dolorosos” na alma
de seu interlocutor, nada demove o jovem patriota de seu otimismo com os rumos da nação, e
questiona: como pode o ancião “aventar o futuro, que é mais imperscrutável que o seio da terra
e mais opaco que o cortiço da abelha? ” 86
Ao pessimismo do ancião, contrapõe-se o otimismo do jovem, entusiasta do país que
vira nascer. Esse estado de tensão entre o antigo e o novo, instabilidade e estabilidade, torna-se
constante na prosa que aveluda um cenário inconciliável entre os interlocutores. O jovem
acredita que o país tem uma força que o ampara e lhe sustenta. Um centro de gravidade
representado pelo patriotismo, mais forte que qualquer sublevação, mais eficiente que a força
das armas. Amor à pátria que estava se espraiando em toda a sociedade, “nos homens que
mandam, e nos que obedecem”:
(...) essa força se tem ramificado por todas as nossas grandes divisões políticas, por
todas as classes e por todas as famílias. (...) avigora todos os indivíduos, porque mais
que as nossas instituições civis e políticas, a que ainda não nos afizemos, o nervo da
nossa sociedade é patriotismo. (...). Encontrá-lo-ás em todos e em toda a parte, como
em cada milha quadrada das províncias do Sul encontras um penhasco, e em cada
braça quadrada das províncias do Norte encontras uma palmeira. 87
No entanto, em nenhum outro momento da prosa, a filiação romântica e indianista de
Gonçalves Dias transparece com maior acuidade, e por que não dizer, com maior lealdade ao
movimento literário, do que em seu terceiro capítulo. Nele, o ancião demonstra ceticismo e
tristeza com o presente do país, que o afeta profundamente, e encontra nas cenas da natureza e
85 DIAS, A. G., Meditação, p.130-131. 86 DIAS, A. G., Meditação, p. 132. 87 DIAS, A. G., Meditação, p. 133.
106
no passado das sociedades primitivas, “lições de moral sublime”, que se perderam: “vi que uma
geração numerosa e não corrompida cobria a extensão do vasto Império”.88 Envolto pela névoa
do pessimismo e sempre desenvolvendo implícitas analogias com o Império, o ancião enumera
as inúmeras qualidades intrínsecas dos “extintos” nativos que habitavam o território brasileiro.
Neste momento, o Bom Selvagem rousseauniano, em roupagem gonçalvina, surge no diálogo e
adquire sua incumbência primária de, por contraposição, questionar os arraigados valores da
sociedade brasileira oitocentista construída sobre o sangue dos nobres nativos.
Saudoso de um passado perdido, através da voz do ancião Gonçalves Dias repudia a
sociedade em que vivia. Vislumbra no “homem natural” e em seu meio, a poesia que não pode
ser encontrada entre seus contemporâneos: “assim eu também, com a triste experiência do
presente, encontrei nas cenas da natureza e da sociedade em seu começo quadros belíssimos de
poesia e lições de moral sublime, que são como inerentes à natureza do homem”, e continua:
E eles estimavam em mais a vida do valente, que morria no meio dos combates, do
que a vida dos covardes, que era entre eles um aborto, ou antes como feitura de um
gênio escarnecedor. E eles adoravam a mão do Senhor no fulgir do raio, no rouquejar
do trovão e no bramir das tempestades. E ouviam a voz de seus pais nos ventos que
açoitavam as folhas dos bosques (...). E cantavam as suas façanhas aos sons
retumbantes do boré, e festejavam a vitória com jogos de guerreiros. E o seu amor era
a independência, a sua esperança a glória, a sua vida o trabalho, e o seu pensamento
forte e livre como as vagas do oceano. E os seus filhos obedientes e respeitosos
aprendiam de seus pais que no deserto do mundo a hospitalidade é a primeira e a mais
bela das virtudes. (...). E aí dele, porque a terra é dos valentes, e o covarde depois de
morto não tem ingresso no banquete dos céus, onde os velhos contam as suas proezas
e folgam de avistar densas florestas, onde pula a onça mosqueada e o tigre reluzente. 89
Assim como Rousseau, o ancião só visualiza a bondade natural e os valores mais sublimes nos
já “extintos” homens da floresta. Nos “civilizados”, só visualiza a cobiça, o desprezo pela
humanidade ainda não corrompida e a opressão que exerce face a riqueza que vislumbra.
Não eram homens crentes que por amor da religião viessem propô-las aos idólatras,
nem argonautas sedentos de glória em busca de renome. Eram homens sordidamente
cobiçosos, que procuravam um pouco de ouro, pregando a religião de Cristo com
armas ensanguentadas. Eram homens que se cobriam com o verniz da glória,
destroçando uma multidão inerme a bárbara, opondo a bala a flecha, e a espada ao
tacape sem gume. Eram homens que pregavam a igualdade evangélica tratando os
indígenas como brutos, envilecendo-os com a escravidão, e açoitando-os com varas
de ferro. E o país tornou-se a sentina impura de um povo, que para ali reservava os
seus proscritos, os seus malfeitores e as fezes de sua população. Então começou a luta
sanguinolenta dos homens dominadores contra os homens que não queriam ser
dominados, - dos fortes contra os fracos, - dos cultos contra os bárbaros. (...). Ouvia-
88 DIAS, A. G., Meditação, p. 171. 89 DIAS, A. G., Meditação, p. 171-172.
107
se de instante a instante o som profundo, cavernoso e agonizante de uma raça que
desaparecia de sobre a face da terra. (...). E os indivíduos eram perseguidos por toda
a parte, acossados como feras e assassinados impiedosamente. 90
Como narra o ancião, a luta durou muitos anos, até que, de forma ignominiosa, sucumbe
o indígena americano diante dos aplausos da nação marítima e guerreira que através do oceano
fundava um novo império em um novo mundo, “viciando-lhe o princípio com o cancro da
escravatura, e transmitindo-lhe o amor do ouro sem o amor do trabalho”. À coerente análise
histórica e política do processo de colonização que Gonçalves Dias realiza em Meditação,
soma-se, novamente, uma dimensão religiosa e apocalíptica. Para o ancião, a mão divina não
perdoaria os crimes cometidos pelos conquistadores, como o extermínio do índio e a
escravização do negro, ao qual:
Viu Deus que a nação conquistadora se tinha perdido, e marcou-lhe o último período
da sua grandeza. E deu-lhe uma longa série de anos para que ela lastimasse a sua
decadência, e conhecesse a justiça inexorável do Todo-poderoso. Ela tornar-se-ia
fraca, porque tinha escravizado o fraco; incrédula, porque tinha abusado da religião;
e pobre, porque sobre maneira tinha cobiçado a riqueza. E todas as nações do mundo
passariam por diante dela, comparando a sua grandeza de outros tempos com a sua
miséria de então.91
Na prosa, o rompimento do laço colonial marca o início do processo de decadência da
opressora metrópole portuguesa. Já, no Brasil, os gritos de contentamento que ecoaram com a
independência representavam a expectativa dos “gênios” da nascente nação que, agora,
poderiam “ousar fitar a luz do sol” de acordo com seus interesses de classe. E assim, o ancião
finaliza seu diálogo em tom de advertência e de denúncia à permanência dos nocivos valores
de outrora.
E os homens que se haviam congregado para perfazerem a obra da redenção,
dividiram-se depois da lide em massas poderosas, não segundo a diversidade das
opiniões, porém segundo a variedade das cores. E estas grandes divisões formavam o
concilio do povo, que discutia os seus interesses. E os homens que costumam a
raciocinar sobre as coisas como são, e não como devem ser, levantaram-se e disseram:
os homens de cor preta devem servir, porque eles estão acostumados à servidão de
tempos muito remotos, e o costume é também lei.92
Segundo o ancião, a jovem nação brasileira nascera política e socialmente herdeira da
antiga metrópole. Viciada, não estava disposta a abandonar sua velha e arcaica estrutura jurídica
baseada no direito consuetudinário onde os privilégios baseados no costume se transformaram
90 DIAS, A. G., Meditação, p. 173. 91 DIAS, A. G., Meditação, p. 174. 92 DIAS, A. G., Meditação, p. 176.
108
em lei. Sob a conivência e direção daqueles que congregaram a obra independentista, como a
inteligência, os grandes proprietários e os políticos do Império, o ancião denúncia o conluio:
Os homens de cor preta devem servir, porque eles estão acostumados à servidão de
tempos muito remotos, e o costume é também lei.
E os filósofos disseram: os homens de cor preta devem servir, porque são os mais
fracos, e é lei da natureza que o mais fraco sirva o mais forte.
E os proprietários disseram: os homens de cor preta devem servir, porque são o melhor
das nossas fortunas, e nós não havemos de as desbaratar. 93
As proposições de Gonçalves Dias na voz do ancião demonstram como a elite política
e econômica do Império procurava criar argumentos que justificassem a formação de uma nação
inclusiva aos herdeiros de uma cultura branca e europeia e excludente aos negros e indígenas.
Contemporaneamente, podemos traduzir a angustia do indianista através da categoria
conceitual habilmente definida por Pablo González Casanova: colonialismo interno. Em seu
Colonialismo interno (uma redefinição), o pesquisador afirma que esta categoria foi
originalmente aplicada “(...) a fenômenos de conquista, em que as populações de nativos não
são exterminadas e formam parte, primeiro do Estado colonizador e depois do Estado que
adquire uma independência formal”.94 Sem alterações estruturais, o Estado-nação que surge,
renova e fortalece muitas das estruturas coloniais internas que já existiam durante o domínio
colonial. Além dos nativos, se ampliarmos esse conceito aos negros escravos, libertos, mulatos
e pobres do Império, compreenderemos bem como esta categoria de análise se adapta
perfeitamente à realidade histórica desta população no momento pós-independência. Todos
encontravam-se em situação de desigualdade, inicialmente na colônia portuguesa e,
posteriormente, no Estado-nação brasileiro. Em ambos os momentos, encontravam-se em
relações não equitativas frente à elite agrária e política dominantes, sob responsabilidade
jurídica e política administrada, além de não participar dos mais altos cargos políticos e
militares do governo. Por último, enquanto etnicamente distintos da etnia que dominava o
governo central, encontravam-se em situação econômica, política, social e cultural reguladas e
impostas pelo governo central.95 Vejamos alguns dos argumentos classistas apontados pelo
ancião de Meditação:
E os homens de cor branca também se levantaram e disseram: nós constituímos a
maioria da nação e somos de entre todos os mais ricos.
93 DIAS, A. G., Meditação, p. 176. 94 CASANOVA, P. G., Colonialismo Interno, p. 432. 95 CASANOVA, P. G., Colonialismo Interno, p. 432.
109
Fomos nós os autores da regeneração política, e a inteligência é o nosso apanágio.
Ora, é lei da natureza que a alma governe o corpo, e que a sabedoria governe a
ignorância.
Nós então ficaremos com o poder, porque somos os mais ricos e os mais inteligentes.
E os homens da mesma classe disseram que tinham bem falado seus irmãos, e que sua
pretensão era justa e devia ser atendida. 96
Em Meditação, Gonçalves Dias apresenta conclusões perturbadoras aos seus
contemporâneos. Inicialmente, aos pares de profissão que desenhavam um indianismo
socialmente harmônico e conciliador, como Gonçalves de Magalhães, José de Alencar, entre
outros. Posteriormente, ao público leitor da revista, em grande parte herdeiros da colonização
portuguesa e escravocratas. Ao apresentar as históricas perversidades cometidas aos povos
indígenas, negros e escravos - os últimos excluídos de qualquer intenção literária - e relevar a
discussão classista que se desenhava na conformação da nação em debate, da qual Gonçalves
Dias participava, criou um indianismo pessoal, próprio e crítico às injustiças sociais. Essa
singularidade posiciona o indianista, no mínimo, enquanto empático com os mais oprimidos e
marginalizados da sociedade. Como afirma Treece, o maranhense deu vida a um indianismo no
qual os fatos históricos foram determinantes ao movimento literário, o que singulariza o seu
indianismo em que abandona a plenitude histórica e a harmonia social e racial enquanto
característica de um país pós-independente. 97
2.6. Brasil e Oceania: contexto histórico de produção do ensaio gonçalvino.
Em outro momento, já destacamos que a partir das primeiras décadas do século XIX, a
matização das cores nacionais e a exaltação das particularidades locais frente às universais
ganharam contorno e materialidade em um movimento político/literário de expressão
nacionalista e patriótico que tencionava fomentar a formação identitária da jovem e recém
fundada nação brasileira. Após a independência política conquistada em 1822, precisávamos
anunciar nossa autonomia intelectual e cultural e, assim, criar fundamentos históricos que
respondessem a questões como, quem somos e de onde viemos.
No entanto, a discussão político/ideológica, nacionalista e patriótica que agremiava os
literatos românticos em diversos espaços de divulgação, como as revistas científicas e literárias
que ascenderam durante a primeira metade do século XIX, espraiou-se e ganhou um novo
96 DIAS, A. G., Meditação, p. 176. 97 TREECE, D., Exilados, Aliados, Rebeldes, p. 23.
110
espaço de excelência entre os intelectuais oitocentistas a partir de 1838. Neste ano, sob os
auspícios e o patrocínio do Estado Nacional, consubstanciado na presença de sua Majestade
Imperial D. Pedro II, criou-se o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Este círculo
oficial de intelectuais agremiava literatos como Gonçalves de Magalhães, Manuel de Araújo
Porto-Alegre, Joaquim Norberto de Souza Silva, Joaquim Manuel de Macedo, Gonçalves Dias,
Francisco Adolfo de Varnhagen, entre outros. Conforme Schwarcz, estes nomes “formavam o
grupo imediatamente vinculado ao imperador”, e são eles “que passarão a frequentar o IHGB a
partir de 1840, tendo na revista do Instituto – que começa a ser editada em 1839 – um órgão
dileto de divulgação de suas ideias”. Ainda segundo a autora, caberia à “boa elite” da corte e
de alguns literatos selecionados a “fundação da própria nacionalidade” brasileira através da
criação de uma historiografia que imprimisse um “nítido caráter nacional à nossa cultura”. 98
Além da construção de uma história oficial que personificasse personagens de grande
vulto e heroicidade nacional, o “mecenas” D. Pedro II e seus signatários se preocupavam com
a consolidação de um projeto romântico que esboçasse um rosto e uma personalidade identitária
particular à incipiente nação, sendo esta uma questão quase estratégica para a consolidação do
projeto monárquico. Assim, precisava-se construir um imaginário nacional que evocasse o
passado através de elementos que identificassem o país e, principalmente, que tornasse a nação
brasileira diferente das demais. Conforme José D’ Assunção Barros, o financiamento público
de projetos historiográficos durante o século XIX, principiado na Europa, mas com
desdobramentos nas Américas, deve “ser entendido em sua relação direta com o contexto dos
Estados Nacionais do século XIX”. Como lembra, essa História deveria contemplar e
compreender a singularidade de cada nação e ser especificamente nacional, portanto, não
universalista.99 Encadeado com este objetivo, D.Pedro II patrocinava projetos de pesquisa de
documentos relevantes à história do Brasil, no país e no estrangeiro, além de se interessar por
pesquisas de etnografia e linguística americana. O próprio imperador fora um estudioso do tupi
e guarani e proponente da criação de dicionários na língua indígena.100
Ciosos por construir a história pátria para consolidar o ideal nacional, sem dispor de um
passado medieval para “chamar de nosso”, muitos destes letrados, em suas discussões e
pesquisas, recorreram à temática indígena. Como lembra Arno Wehling, essas pesquisas
entrelaçaram, com bastante espontaneidade, romantismo e nacionalismo e cristalizaram uma
versão nacionalista da história brasileira. O autor salienta que, de posse desse ideal, “são
98 SCHWARCZ, L. M., As Barbas do Imperador, p. 131. 99 BARROS, J. D´A., Teoria da história, p. 107. 100 SCHWARCZ, L. M., As Barbas do Imperador, p. 127-128.
111
estudados guaicurus, tupinambás e outras tribos na perspectiva etnográfica ou na de sua
incorporação ao processo civilizatório”.101 Afinal, no caminho da construção de uma futura
comunidade brasileira étnica e racialmente homogênea, encontrava-se os povos indígenas ainda
dispersos pelos sertões do Brasil, e precisava-se conhecer esses elementos que colocavam em
risco o projeto de “suavização” das diferenças étnicas da população brasileira através de
políticas indigenistas consideradas apropriadas.
Com este objetivo, os pesquisadores/cientistas do Instituto miraram seus holofotes ao
estudo do passado e do presente dos diferentes povos indígenas que habitavam o território do
então Estado brasileiro. Neste momento, conforme lembra Guimarães, “literatura, de um lado,
e história, de outro, argumentarão sobre a viabilidade da nacionalidade brasileira estar
representada pelo indígena”.102 Ambas as vertentes, mesmo que através de diferentes
perspectivas e caminhos - caso contrário o debate seria desnecessário - comungavam de
semelhante perspectiva teleológica aos indígenas: o iminente desaparecimento étnico dos
“fósseis vivos” que habitavam o território do Brasil. Dentre esses caminhos que “conduziram”
ou conduziriam o indígena ao inevitável desaparecimento, encontram-se letrados que destacam
um processo de decadência natural – que teria se iniciado ainda no período pré-colombiano.
Outros que defendem a integração forçada dos nativos à comunhão nacional; a miscigenação
lenta e gradual do indígena em meio à composição étnico/racial da população brasileira ou
ainda, o extermínio, como em Varnhagen; entre outras perspectivas. A partir destes diferentes
caminhos, todos procuravam explicar os possíveis processos que conduziriam o nativo ao
desaparecimento e, consequentemente, à consolidação de uma futura nação mais homogênea
em sua constituição racial, construída sobre os escombros dos povos americanos que habitavam
o território brasileiro, relegados ao passado e à história oficial da nova nação.
Representante do primeiro caminho destacado, encontra-se nosso ilustre indianista
Gonçalves Dias que, em seu estudo científico destinado ao IHGB Brasil e Oceania, reveste sua
argumentação científica com uma tonalidade fatalista e pessimista em relação aos indígenas da
América, com especial atenção aos do território brasileiro. Anteriormente, já fizemos alusão à
proposição gonçalvina em que o indianista defende a tese de que a humanidade americana
estaria em um histórico e linear processo de degenerescência ou de decadência. Sobre o nativo
contemporâneo, afirma que quase “nada mais resta do tipo que o homem sem dúvida recebeu
ao sair das mãos do Criador; e há já tempo, segundo parece, o só e puro instinto animal é o que
101 WEHLING, A., Estado, história, memória, p. 36 102 GUIMARÃES, M. L. S., Nação e civilização nos trópicos, p. 11.
112
o tem guiado de um passado obscuro a um presente não menos sombrio”.103 Essa conclusão
surge em seu estudo científico Brasil e Oceania que apresentou aos sócios do IHGB em nove
sessões de leitura oral, realizadas entre agosto de 1852 e junho do ano seguinte. Neste trabalho,
submete as relações sociais e morais dos indígenas a regularidades que, em sua compreensão,
poderiam ser traduzidas cognitivamente para explicar o movimento temporal das culturas ou,
conforme a concepção do próprio: “nos conduzir à probabilidade histórica” que provaria a
infalibilidade de sua tese. Em sua probabilidade fatalista, chega à sentença de que os indígenas
caminhavam, naturalmente, de forma precípite para a sua completa decadência. Assim, Brasil
e Oceania alinha-se de forma deliberada com o pensamento oficial do Império que procurava
destacar a imagem de uma nova nação, contemporaneamente sustentada por alicerces
étnico/raciais não conflitantes e herdeira dos valores europeus.
Os instrumentos teórico-metodológicos de que dispõe para demonstrar sua tese foram
os estudos monográficos de viajantes estrangeiros, principalmente do século XVI, crônicas da
América e da Oceania, tratados de naturalistas e etnógrafos europeus. Além desse consumo
literário de autores europeu, utilizado de forma original ao projeto nacionalista do Brasil, se
utiliza ainda de suas pesquisas etnográficas realizadas sob os auspícios do IHGB. Desta forma
nos deixou sua obra de caráter científico, histórico e etnográfico sobre os “selvagens” que foi
publicada postumamente na Revista do Instituto em 1867. Por tudo isso, mais do que o
romantismo, no plano ideológico, foi o cientificismo histórico que sedimentou o trabalho do
indianista.
Em seu estudo científico, identificamos uma evidente influência metodológica e
conclusiva com as apresentadas pelo cientista bávaro von Martius nos ensaios O estado de
direito entre os autóctones do Brasil e A etnografia da América. A estes, soma-se seu trabalho
monográfico Como se deve escrever a História do Brasil. Neste, o naturalista bávaro apresenta
seu plano de trabalho destinado a qualquer etnógrafo brasileiro que for encarregado “da tarefa
de investigar minuciosamente a vida e a história do desenvolvimento dos aborígenes
americanos”. Nesta obra, igualmente oferecida aos sócios do IHGB anos antes de Brasil e
Oceania, o bávaro já apresenta sua proposição fatalista de que “o triste e penível quadro, que
nos oferece o atual indígena brasileiro, não é senão o residuum de uma muito antiga, posto que
perdida história”, que caminhou para o “atual estado de degradação e dissolução”. 104
103 DIAS, A. G., Brasil e Oceania, p. 190. 104 MARTIUS, K. F. P., Como se deve escrever a história do Brasil, p. 382.
113
Diante dessa evidente influência intelectual, antes de apresentarmos a obra gonçalvina
e as regularidades históricas nela desenvolvidas para comprovar a tese decadentista defendida
pelo autor, abriremos um parêntese - através de uma nova seção - onde destacaremos os
fundamentos teóricos igualmente decadentistas apontados pelo cientista bávaro von Martius
nos ensaios acima destacados. Esta digressão se faz necessária por acreditarmos que o
pensamento da elite intelectual do Império era permeável às teses dos ideólogos europeus que
defendiam a supremacia cultural de seu continente em nome de uma pretensa e imaginária
“ocidentalização da humanidade”. Certamente, Gonçalves Dias não esteve imune a essas teorias
e teve contato com essas e outras obras de semelhante teor em suas corriqueiras e frequentes
viagens que realizou pelo Velho Mundo.
2.7. Martius e a Decadência Indígena.
“A descoberta da América talvez tenha sido o feito mais espantoso da história dos
homens: abria as portas de um novo tempo, diferente de todos os outros”, afirma Laura de Mello
e Souza. Diante do novo, nada mais natural do que conciliar o imaginário e o conhecimento
acumulado na tentativa exasperada de compreender o diferente que se encontrara em terras do
além-mar.105 Assim, nos séculos que se seguiram à descoberta, entre representações que
aliavam fantasia e realidade, entre concepções edenizadoras e detratoras, diferentes descrições
e sentenças foram proferidas por viajantes europeus sobre os homens e à natureza Americana.
Por ora, eximir-nos-emos da construção de um acurado relato destas representações. No
entanto, para que possamos compreender a trajetória da tese fatalista/pessimista do homem
americano contida na obra Brasil e Oceania, que será analisada na próxima seção, faremos uma
oportuna e “breve” digressão às imagens e representações que defenderam a debilidade, a
imaturidade e a inferioridade do continente e do homem americano. Como veremos, essa tese
desemboca no século XIX – com ares de cientificidade – na pena do cientista bávaro von
Martius e outros cientistas nacionais, como Gonçalves Dias, eivada por um forte substrato
pessimista aos nativos do continente.
Encontramos no naturalista e matemático francês Georges-Louis Leclerc (1707-1788),
mais conhecido como conde de Buffon, um dos representantes dessa postura pessimista. Em
1749 vem a lume sua tese Histoire Naturelle, Génerale et Particulière na qual o naturalista
105 MELLO E SOUZA, L de., O Diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 33-34.
114
defende a debilidade ou a imaturidade do continente americano. Sua argumentação parte do
princípio de que a natureza viva da América é bem menos ativa, variada e forte que a do Velho
Mundo. Para comprovar sua tese, Buffon quantifica as espécies de quadrúpedes existentes nos
dois continentes, com destacada desvantagem numérica ao Novo Mundo. O porte dos animais
é utilizado pelo naturalista para comprovar a debilidade da natureza americana. Em sua
concepção, os animais domésticos introduzidos pelos europeus na América degeneraram e se
apequenaram. Reduziram-se a anões, assemelhando-se a caricaturas em miniatura de seus
protótipos.106
Se, em sua concepção, a natureza americana é hostil ao desenvolvimento dos animais,
também o é para o desenvolvimento do homem americano. Sobre este, estende seu juízo
negativo: “a natureza, ao recusar-lhe as potências do amor, maltratou-o e apequenou-o mais
que a qualquer um dos animais”. Poucos e débeis, “ao invés de colaborar para o
desenvolvimento das espécies animais e o aperfeiçoamento das raças domésticas, o próprio
homem permaneceu submisso ao controle da natureza, manteve-se como um elemento passivo
da natureza, um animal como os outros”.107 E é assim que Buffon explica a existência de tão
grandes répteis, tão avultados insetos, tão pequenos quadrúpedes e homens tão frios no Novo
Mundo. No entanto, se Buffon se refere ao continente como imaturo, existe um componente
redentor em sua concepção. Conforme Gerbi, para o naturalista francês, tudo parece indicar que
“dentro de alguns séculos, quando se tiverem arroteado as terras, abatido as florestas,
regularizado os rios e contido as águas, esta mesma terra será a mais fecunda, a mais sã, a mais
rica de todas, como (...) em todas as partes onde o homem a trabalhou”. 108
Em 1768, o abade alemão Cornelius de Pauw (1739-1799), eleva a tese de Buffon às
últimas consequências: defende que a natureza do Novo Mundo, assim como a sua humanidade,
é decadente e decaída e que tudo nela era degenerado ou monstruoso.109 Em sua obra
Recherches philosophiques sur les Americais, De Pauw reúne uma “firme e cândida crença no
progresso e uma ausência completa de fé na bondade natural do homem”. Defende que o
aperfeiçoamento do homem só acontece em sociedade, a quem tudo deve, e julga que o homem
em estado natural é um bruto incapaz de progresso. Sobre a humanidade americana e seu estado,
que considera aviltado, afirma que assim como as espécies animais, os indígenas se
106 GERBI, A., O Novo Mundo: história de uma polêmica, p. 20. 107 Buffon apud GERBI, A., O Novo Mundo: história de uma polêmica, p. 21. 108 GERBI, A., O Novo Mundo: história de uma polêmica, p. 27. 109 MELLO E SOUZA, L de., O Diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 70.
115
degeneraram em um clima tão impróprio e hostil ao gênero humano: “a totalidade da espécie
humana encontra-se indubitavelmente debilitada e degenerada no novo continente”. 110
Se com Buffon a América é definida como um continente inacabado e imaturo, ainda
em fase de organização, com De Pauw ganha a imagem de continente degradado, composto de
“bestas decaídas” distantes de qualquer potencial civilizatório. Gerbi lembra que em De Pauw,
a impotência da natureza “é manejada como um argumento” em oposição à tese da imaturidade
do continente e que, para isso, em todo o texto o detrator reitera exaustivamente que “a natureza
é fraca e corrompida na América, fraca porque corrompida, inferior porque degenerada”. O
mesmo raciocínio aplica à sua humanidade, reiteradamente definida como pior “que os animais.
(...) possuem menos sensibilidade, menos humanidade, menos gosto e menos instinto (...) numa
palavra, menos tudo. São como bebês raquíticos, irreparavelmente indolentes e incapazes de
qualquer progresso mental”. 111
Em Hegel, as polêmicas teses buffon-depauwnianas ganham nova proeminência. No
início do século XIX o alemão defende a ideia de que “ao distanciar-se da condição natural, o
homem se eleva e se aperfeiçoa”, enquanto o homem em estado natural não se distingue de uma
besta. Segundo o filósofo, nada de bom se pode esperar dos aborígenes americanos e “suas
civilizações rudimentares deviam necessariamente desaparecer com a chegada da incomparável
civilização europeia”, e assim, justifica: “Mataste um homem morto”. Sobre a violência da
conquista colonial e o genocídio do homem americano, conclui que “os aborígenes nada valiam
e, portanto, deviam desaparecer”. Indubitavelmente, para Hegel, ao contato com uma cultura
“superior”, o homem americano naturalmente perece: “depois que os europeus desembarcaram
na América, os indígenas pereceram pouco a pouco sob o influxo da atividade europeia”. 112
No ano da morte de Cornelius De Pauw, outro cientista europeu iça velas na costa da
Espanha com destino às regiões equinociais do Novo Mundo. Com a farta literatura produzida
após os cinco anos de viagem pelo continente americano (1799-1804), o naturalista alemão
Alexander von Humboldt (1769-1859) restitui uma imagem positiva à natureza americana e,
em parte, opõe-se às teses detratoras de sua humanidade. Conforme Gerbi, “em suas descrições,
volta a acender-se o entusiasmo dos primeiros escritores” europeus pelo continente. Em sua
expedição científica, Humboldt coleta plantas e fósseis, analisa o ar, realiza observações
astronômicas e sucumbe à natureza do continente: “como me sinto feliz nesta parte do mundo,
a cujo clima já me acostumei de tal forma que é como se eu jamais houvesse morado na
110 De Pauw apud GERBI, A., O Novo Mundo: história de uma polêmica, p. 57. 111 GERBI, A., O Novo Mundo: história de uma polêmica, p. 58. 112 Hegel apud GERBI, A., O Novo Mundo: história de uma polêmica, p. 327-329.
116
Europa”. O céu cintilante, o colorido das plantas, dos animais e da vegetação ganham conotação
edênica em suas anotações. No entanto, em seu entusiasmo pela natureza dos trópicos, acolhe
e repete assertivas depauwnianas, como a suposta decadência dos povos indígenas da América:
“quase todas as hordas que chamamos selvagens descendem provavelmente de povos que
tiveram outrora um grau bem mais elevado de civilização”. 113
A viagem de Humboldt foi de 1799 a 1804, mas as publicações científicas sobre a
expedição prolongaram-se ao longo da primeira metade do século XIX. Essas publicações,
somadas às de seus predecessores, foram distintamente apropriadas e ganharam maior
racionalidade científica entre os idealizadores do projeto de nação brasileira, como em Martius,
tema do qual nos ocuparemos a seguir.
O alvorecer do século XIX é acompanhado pelo desenvolvimento de “um intenso
interesse intelectual pela natureza e caráter do mundo extra europeu”. Interessados nos mais
variados setores do saber, cientistas estrangeiros “percorreram as últimas fronteiras
inexploradas das Américas, da África, da Ásia e da Oceania, (..) no esforço de coletar,
classificar e descrever espécimes novos e exóticos de coisas, seres vivos, e povos tribais”.114 O
território brasileiro não passa incólume a esse interesse e torna-se palco de investigações
científicas realizadas por diversos expoentes da ciência europeia das mais variadas
nacionalidades que dedicam especial atenção à natureza e aos povos indígenas que aqui
encontraram.
Na esteira deste interesse e por incentivo do rei Maximilian Joseph I da Baviera, o
zoólogo J. Baptiste von Spix e o botânico Carl Friedrich P. von Martius, ao lado de outros
naturalistas que compunham a comitiva da então Arquiduquesa Leopoldina, zarparam do porto
de Trieste a bordo da fragata Áustria, em abril de 1817, com destino ao Brasil. Entre os anos de
1817 a 1820, com o auxílio de tropeiros e guias locais, realizaram incursões científicas pelo
interior do território brasileiro e palmilharam mais de 10.000 km. Tendo o Pará como destino,
saíram do Rio de Janeiro, onde realizaram incursões de experiência e ambientação e passaram
por São Paulo e Minas Gerais. Seguiram sentido norte, penetrando mais ainda pelo interior do
país. Após transpor as margens do Rios São Francisco, voltaram ao litoral, quando cruzaram a
província baiana. Visitaram Salvador e, por mar, viajaram a Ilhéus, realizando pesquisas em
seus arredores. Após cruzar o sertão das províncias de Pernambuco, Piauí e Maranhão,
navegaram a Belém, de onde realizaram incursões pelo rio Amazonas, Solimões, Negro e
113 Humboldt apud GERBI, A., O Novo Mundo: história de uma polêmica, p. 313. 114 MOREIRA NETO, C. de A., Os índios e a ordem imperial, p. 20.
117
Japurá, tocando a fronteira da atual Colômbia. Após seu retorno a Belém, no ano de 1820,
partem para a Europa, levando uma grande coleção de artefatos etnográficos, zoobotânicos e
minerais.115
De volta à Alemanha em dezembro de 1820, os excursionistas dedicam-se à organização
do relato de suas experiências em terras brasileiras. No ano de 1823 publicam o primeiro de
três volumes da coletânea Viagem pelo Brasil, finalizada no ano de 1831. Da pena de von
Martius surgem outros subprodutos como O estado do direito entre os autóctones do Brasil
(1832) e A Etnografia da América: especialmente do Brasil, o passado e o presente do homem
americano, de 1838.116 Os dois últimos ensaios evidenciam que, além da história natural do
Brasil, a história dos seus primitivos habitantes ou, as causas de sua decadência, também
ocupavam as preocupações do cientista bávaro.
(...) como e de que parte iniciou-se e desenvolveu-se a marcha contrária que, lenta,
mas de modo seguro, substituiu este estado superior e fez decair o continente inteiro,
transformando-o numa terra de desumanos horrores e de degeneração completa? Estas
e outras muitas interrogações semelhantes acodem-nos ao espírito quando
contemplamos os tristíssimos quadros da humanidade americana.117
Como já destacamos anteriormente, o período pós-independência, com especial atenção
ao Segundo Reinado, é caracterizado pela construção da imagem e identificação da nação
brasileira enquanto herdeira dos valores civilizatórios europeus, como a cultura, a organização
política e a homogeneidade étnico-racial. Assim, em um contexto em que inúmeros, distintos e
desconhecidos povos indígenas espalhados pelo território brasileiro impediam a imagem de
país civilizado, ou pelo menos de um país capaz de superar seu atraso frente às nações
europeias, mapear e conhecer o destino destas “nações” índias tornava-se tarefa fundamental
aos letrados oitocentistas.118 E é nessa conjuntura que as proposições teleológicas e pessimistas
sobre o nativo americano proferidas por von Martius, atenderam aos interesses imediatos dos
115 LISBOA, K. M., A nova Atlântida de Spix e Martius, p. 21-22. 116 Ambos foram publicados na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (RIHGSP) nos anos de
1906 e 1904, respectivamente. 117 MARTIUS, K. F., A etnografia da América (...), p. 557. 118 Neste parágrafo, utilizamo-nos de dois sentidos diferentes para o conceito de nação e, para a compreensão de
sua distinção, utilizamo-nos das definições utilizadas por Chiaramonte: a expressão “nação brasileira” fora
conjugada em sua acepção política, com destaque ao seu programa nacionalista de estabelecimento de Estados-
nações para conjuntos definidos, tais como língua comum, religião, memória histórica comum, entre outros.
Diversamente, a expressão “nações índias”, fora utilizada em sua acepção étnica: “um conceito que definia as
nações (insistamos, não a nação-Estado) como conjuntos humanos unidos por uma origem e cultura comuns e que
permanecia vigente – contemporaneamente ao novo conceito político -, nos séculos XVIII e XIX. É o sentido pelo
qual na América, por exemplo, ainda no século XIX, distinguiam-se os grupos de escravos africanos por “nações”:
a “nação da Guiné”, a “nação do Congo”, assim como também era aplicada às diversas “nações” indígenas”. Para
mais: CHIARAMONTE, J. C., Metamorfoses do conceito de nação durante os séculos XVII e XVIII, p. 61-91.
118
ideólogos da nova nação, como sua assertiva em que afirma: “(...) não há dúvida: o americano
está prestes a desaparecer. Outros povos viverão quando aqueles infelizes do Novo Mundo já
dormirem o sono eterno”.119 Além de “coroar” a nova nação e vaticinar o surgimento de uma
nova ordem civilizatória”, a proposição pessimista, em boa medida, forneceu os subsídios
interpretativos e basilares que conduziriam os estudos e as pesquisas etnográficas, dentro e fora
do IHGB, sobre o futuro dos povos indígenas na conformação étnica da nação que se desenhava
nos trópicos. O Estado de Direito entre os autóctones do Brasil e A Etnografia da América
certamente serão elucidativos para a compreensão desta assertiva que alimentou a pena e o
imaginário de distintos intelectuais do Império, como Gonçalves Dias.
Nestes textos, von Martius defende a tese de que, em um tempo remoto, as condições
ou o estado da “raça vermelha” eram inteiramente diferentes do que fora encontrado e descrito
pela primeira vez pelos conquistadores espanhóis e portugueses. Defende ainda que, “no
decurso de séculos ignorados, diversas catástrofes sobrevindas os reduziram ao estado atual, a
este singular atrofiamento e degeneração intelectual”. Assim como em Humboldt, na concepção
de Martius, o indígena americano do século XIX seria o resto de uma grande e florescente
civilização anterior que caminhava rapidamente para um desaparecimento inevitável. Este
fenômeno teria acontecido tal qual “um edifício antiquíssimo e vasto que forças demoníacas
tivessem demolido e espalhado por áreas imensas”. À sociedade brasileira, só restaria os
escombros de povos autóctones com “costumes e estados sociais desmoronados e de tudo isso
nenhuma história”.120 Lembremos que alguns anos após, em sua História Geral do Brasil, de
1854, Varnhagen eterniza sua clássica proposição de que os índios não tinham história, só
etnografia, visão que em boa medida, atravessou o século XIX e se mantém nos dias
contemporâneos.
Essa é a ideia central que Martius defende no ensaio O estado do Direito entre os
autóctones do Brasil, de 1832. Neste, o bávaro apresenta sua concepção de que os povos
indígenas da América não seriam primitivos e, sim, representantes de um “estado secundário,
degenerado”. Através da exposição do “estado do direito” dos povos indígenas investigados em
sua incursão exploratória pelo território do Brasil e pelo que pôde “saber pela narrativa de
outros”,121 procura provar que as “instituições jurídicas” dos povos americanos oitocentistas,
assim como sua população, eram reminiscências de um pretérito mais elevado. Em sua
exposição, dedica-se a elementos como o sistema de trocas e comércio entre os índios, relações
119 MARTIUS, K. F. von., O estado do direito entre os autóctones do Brasil, p. 65. 120 MARTIUS, K. F., A etnografia da América (...), p. 534-541. 121 MARTIUS, K. F., O estado do direito entre os autóctones do Brasil, p. 21.
119
matrimoniais e papeis sociais dos cônjuges, proibições ao matrimônio, fidelidade, divórcio,
rituais de iniciação, hierarquias e declarações de guerra, vingança, regime de propriedade
individual e coletiva, furtos e suas implicações jurídicas, entre outros. Em sua avaliação, o
estado de direito que presenciou in loco e suas implicações sociais entre os autóctones, “é uma
degeneração, um abaixamento”, pois, “muito além e separado por uma obscuridade de milênios,
está um passado mais nobre e que escassíssimos restos ainda permitem adivinhar. 122
Sobre a capacidade de superação “deste estado decaído e de progressivo
desaparecimento”, afirma que, dadas as condições intelectuais em que se encontra o indígena,
“(...) toda a população primitiva da América, (...) jaz numa pobreza intelectual monótona e dura,
como se nem as comoções internas, nem os impulsos do exterior tivessem tido a força
necessária de lhes acordar desta letargia moral ou modificá-la”.123 Como vemos, a máxima
sentenciadora de De Pauw de que o homem em estado de natureza é um bruto incapaz de
progresso ecoa nas proposições do cientista bávaro.
Assim, acredita que o “estado de ruína em que se encontram os autóctones do
continente” prova que os americanos devem ter sido vítimas de uma sorte que jamais atingiu a
outros. Pergunta-se se há milênios esta população teria sido acometida por um grande terremoto
que convulsionou a terra e o mar ou que tenha desprendido gazes mortíferos que asfixiaram a
sua população. “Terão os sobreviventes talvez sofrido tal terror que, transmitido de geração em
geração, obstruiu a inteligência e empedernido o coração, segregando aquela gente em fuga
constante de todos os benefícios da sociabilidade? ” Um grande incêndio ou grandes inundações
também compõem o conjunto de elementos que poderiam ter gerado um período de muita fome
entre a população americana, “armando-a com o sentimento de inimizade brutal para que,
perdendo-se na horrorosa prática da antropofagia, decaísse do seu destino divino até a miséria
atual”. Para o bávaro, a resposta a estas questões colocaria luz à “fragmentação enigmática dos
povos numa variedade quase incalculável de maiores e menores grupos humanos; a reclusão e
repulsão recíproca quase total em que esta humanidade nos aparece na forma de uma imensa
ruína”, estado que afirma não ser possível encontrar em outros povos da terra. 124
Outro fator de dissolução e acelerador do desaparecimento étnico da humidade
americana destacado, “é a inclinação inata do índio para a guerra, o sentimento vingativo e a
força da ambição que facilmente unem toda uma comunidade a uma expedição armada”. Em
sua avaliação, o espírito de vingança é o único motor capaz de arrancar o índio e “sua alma
122 MARTIUS, K. F., O estado do direito entre os autóctones do Brasil, p. 61. 123 MARTIUS, K. F., O estado do direito entre os autóctones do Brasil, p. 60. 124 MARTIUS, K. F., O estado do direito entre os autóctones do Brasil, p. 63-64.
120
embotada de seu entorpecimento indolente”. Como exemplo, cita o caso dos Muras que habitam
às margens do Madeira e do Solimões. Afirma que, perseguidos por outras tribos, representam
os “(...) restos de um povo outrora forte e poderoso” que, em decorrência de guerras, perdeu o
domínio fixo de seu território e se fragmentou.125
Assim, fatores como o fracionamento étnico e linguístico, a instituição das guerras de
vingança, a intelectualidade deprimida e ainda, a “maldição da esterilidade”, seriam para
Martius alguns dos elementos que explicariam a origem do estado de decadência do homem
americano oitocentista. Atestariam também que a “humanidade deste chamado Continente
Novo, de modo algum se compõe de povos novos”.126 Se se trata de restos de uma humanidade
decaída, antes que desapareça definitivamente e com ela a possibilidade de decifração de sua
evolução histórica, o bávaro incita o historiógrafo à pesquisa. Afirma que, assim como o
naturalista “investiga a idade e a sucessão das formações geológicas pelos restos dos
organismos desaparecidos”, o historiógrafo “recebe indicações preciosas sobre a essência e o
estado da humanidade anterior pela língua e vários costumes e hábitos que, de um passado
remoto, (...) tem se transmitido na vida de povos posteriores”. 127
Seis anos após O Estado de Direito, von Martius publica um novo texto em que reitera
e aprimora de forma mais detida antigas proposições e acrescenta novas considerações que
fortalecem sua tese da antiguidade do continente americano e da decadência de seus habitantes.
Em sua Etnografia da América: especialmente do Brasil, dedica especial atenção ao passado e
ao futuro do homem americano. De olho no seu passado, se pergunta: “Quais as razões físicas
e morais que se admitem para explicar o rápido desaparecimento da raça americana? ”. Assim
como em De Pauw, para Martius, a antiguidade do continente americano prova a não
primitividade de seus habitantes, que se encontram longe das condições paradisíacas definidas
pelas escrituras, mas sim em condições decaídas de um estado anterior mais elevado.
Na assertiva a seguir, depreende-se seu estado de ânimo com a teoria rousseauniana do
estado natural e da inocência paradisíaca dos indígenas, a qual define como “tão falsa quanto
encantadora”: “Também eu cheguei à América com semelhantes ideias preconcebidas e por
muito tempo vivi entre homens vermelhos antes de poder libertar-me de uns tantos erros que,
na Europa, nos sãos enxertados desde a infância”. 128 Como vemos, a prática etnográfica de von
Martius entre os indígenas do território brasileiro transformou o cientista. Da crença na
125 MARTIUS, K. F., O estado do direito entre os autóctones do Brasil, p. 27-28. 126 MARTIUS, K. F., O estado do direito entre os autóctones do Brasil, p. 61. 127 MARTIUS, K. F., O estado do direito entre os autóctones do Brasil, p. 63. 128 MARTIUS, K. F., A etnografia da América (...), p. 534-536.
121
inocência paradisíaca e nas teorias de Jean Jaques Rousseau à crença de que “os americanos
não representam uma raça selvagem, representam antes uma raça degenerada que se tornou
selvagem”.
O vaticínio pessimista não se restringe à sua área de observação in loco, estende-se a
toda a população indígena da América. Ao referir-se às grandes edificações e monumentos
encontrados pelos espanhóis na região do Peru e no México, nega que tenham sido construídas
pelas sociedades Incas e Astecas. Afirma que a propagação da ideia da existência de grandes
civilizações na América atendia aos interesses europeus de dar maior brilho à conquista e aos
conquistadores. No intuito de colocar luz à questão, afirma se debruçar a tempos ao exame desta
questão através dos escritores da época. Conclui que, dada as dimensões dos edifícios, com as
dificuldades mecânicas e artísticas que seria necessário vencer na construção, “de modo algum,
podem ser atribuídos a aqueles povos, mas sim a povos anteriores, envoltos na nébula das lendas
e para nós inteiramente desconhecidos”. Assim sendo, afirma:
Como admitir que tribos de um tal caráter, (...) de tal bruteza e em tão pequeno
número, pudessem edificar cidades tão grandes, lugares tão fortificados, pirâmides tão
colossais e tantos palácios de aspecto sombrio e majestoso ao mesmo tempo, e
produzir estátuas de certa perfeição e acabamento artístico num estilo especialmente
fantástico e selvagem e isso na rocha mais dura como aquelas estátuas encontradas no
México. (...). 129
Em sua concepção, a origem comum da língua dos povos indígenas e sua gradativa
fragmentação provam que todos os americanos, independentemente de sua localização
geográfica, tanto no sentido físico como no moral, estão intimamente ligados. Assim, lembra
que mesmo em regiões com civilizações mais avançadas à época do descobrimento, como no
México, os registros dos missionários já davam conta de mais de vinte dialetos na região, “e
hoje falam-se ali umas cinquenta línguas”. 130
Além da desintegração da língua e das sociedades indígenas, outros elementos provam
ao pesquisador bávaro a decadência da humanidade americana. Entre eles, cita os restos de
alguns elementos teocráticos que atravessam a vida do índio, os restos hierárquicos e
monárquicos que podem ser encontrados na maioria dos povos americanos e ainda, o resto do
que em um tempo pretérito, fora um estado de direito mais elevado. Sobre o primeiro elemento,
afirma ser comum a todos os índios uma “crença em um agente espiritual desconhecido que
domina a vida e o bem-estar deles”. No entanto, a bruteza, a indolência e a atrofia intelectual
129 MARTIUS, K. F., A etnografia da América (...), p. 537. 130 MARTIUS, K. F., A etnografia da América (...), p. 544.
122
dos indígenas teria contribuído para que indivíduos de maior ambição e astúcia usurpassem as
rédeas da autoridade e exercessem atividades semelhantes às do clero, “mas que perderam
completamente toda significação superior. Já não é mais um clero, é antes bruxaria, sortilégio,
curandeiria e a mais grosseira demagogia da superstição”. Assim, mesmo que o elemento
teocrático faça parte da vida do índio, “o poder do espírito religioso primitivo, assim como o
culto e seus símbolos já desapareceram”. 131
Ao ponderar que a pré-história é muito mais longeva que a história registrada dos povos
americanos, questiona sobre a origem do que considera como restos de graduações hierárquicas
e monárquicas observáveis entre os indígenas:
(...) de onde se originaram então os restos hierárquicos e monárquicos que em muitos,
talvez na maioria dos povos americanos se encontram, ora distintamente patentes, ora
quase que completamente apagados, como por exemplo entre as tribos selvagens do
Brasil? (...) encontramos entre todos os selvagens brasileiros numerosas regras de
direito, símbolos, e outros vestígios de uma antiga civilização social de espécie
superior. 132
Por último, sobre os resquícios do que outrora fora um elevado estado de direito entre
os americanos, assim se manifesta o bávaro:
Entre os selvagens brasileiros observei vários indícios de direito, por exemplo, em
relação à propriedade das pessoas ou da tribo, em relação à escolha de um chefe para
a guerra, à educação dos filhos, à emancipação das filhas, dotes, direitos matrimoniais
etc., que, apesar da reconhecida bruteza e pouco cultivo destas tribos, representam,
contudo, os restos de um estado social superior que se perdeu. 133
Em sua incursão exploratória pelo território brasileiro, o cientista bávaro só enxergou
restos do que outrora fora uma civilização mais elevada, mais imponente e desenvolvida e,
assertivamente, não poupou esforços em prognosticar o desaparecimento destes
“remanescentes”. Galgou os escombros não menos pessimistas de filósofos e viajantes que o
precederam e desenvolveu argumentos mais “sólidos” na tentativa de provar a antiguidade do
Novo Mundo e, principalmente, a marcha contrária ao progresso em que caminhava esta
humanidade. Assim, se a alteridade contida na obra de Montaigne no século XVI e em Rousseau
no XVIII enxergaram a diferença da humanidade americana para criticar a sociedade de seus
respectivos séculos, Martius no XIX o fez em sentido contrário. Seu olhar etnocêntrico e de
131 MARTIUS, K. F., A etnografia da América (...), p. 538. 132 MARTIUS, K. F., A etnografia da América (...), p. 539. 133 MARTIUS, K. F., A etnografia da América (...), p. 540
123
estranhamento em relação aos costumes do “outro” que aqui encontrou, só visualizou a falta, a
ausência e, implicitamente, deu relevo às glórias do estado de direito, à humanidade e ao
progresso material do continente europeu.
Conforme Schwarcz, a humanidade da América “parecia representar algo por demais
diverso para que a percepção europeia” dos viajante e filósofos encontrasse no Novo Mundo
um lugar humanizado e por isso a maior disposição em “apontar o exótico do que dar lugar à
alteridade”. Logo, a América não era somente imperfeita nesses olhares, “mas também decaída,
e assim estava dado o arranque para que a tese da inferioridade do continente, e de seus homens,
viesse a se afirmar a partir do século XIX”.134 Na esteira das considerações de Schwarcz,
podemos compreender a aceitação da tese fatalista/pessimista entre a intelectualidade brasileira
oitocentista. Afinal, sobre os escombros destes restos, o bávaro sugere o nascimento de uma
nova humanidade, permeada pelo ideal do progresso e pelos valores civilizatórios europeus,
conforme o desejo e prognóstico da elite intelectual do Império.
Uma humanidade inteira a morrer diante dos olhos do mundo compassivo; nenhum
brado dos principais da filosofia, do cristianismo é capaz de arredar a sua obstinada
marcha para a dissolução certa e geral. E das suas ruinas eleva-se em mistura
variegada uma raça nova e leviana, ávida a desapegar da nova pátria conquistada o
seu primitivo dono, o mais depressa e o mais possível. 135
Assim, poucos séculos passarão e o último americano deitar-se-á para morrer. Toda a
população primitiva do continente definha e outra raça, que relativamente pouco
sangue americano traz nas veias, empolgará o domínio daquela bela e fértil porção da
terra onde os indígenas há bem pouco tempo dominavam exclusivamente. Duas coisas
a humanidade sempre legou aos pósteros: sangue e espírito. De ambas a América
legará apenas vestígios insignificantes. Por isso, pode-se dizer: a humanidade
americana já não tem mais futuro e diante dos nossos olhos ela terá desaparecido.136
Como vemos, a ciência profética e teleológica do botânico bávaro anuncia o
desaparecimento de uma humanidade e o surgimento de outra que, embora miscigenada, pouco
deverá a esta. Afinal “o que ela foi já está perdido para o resto da humanidade e o que dela
existe parece destinado a representar apenas um grande papel de desagregação e decadência, de
estagnação e decomposição intelectual, enfim, de morte geral”.137 Como já sugerimos e como
veremos a seguir, não consideramos incorreto afirmar que em sua obra Brasil e Oceania,
Gonçalves Dias realiza empréstimos teóricos e metodológicos dos principais ideólogos
europeus que defenderam a tese da natural e espontânea decadência indígena, principalmente
134 SCHWARCZ, L. M., Nem preto nem Branco, p. 18. 135 MARTIUS, K. F., O estado do direito entre os autóctones do Brasil, p. 65. 136 MARTIUS, K. F., A etnografia da América (...), p. 560-561. 137 MARTIUS, K. F., A etnografia da América (...), p. 560-561.
124
de Martius. Assim como este, em seu trabalho científico destinado ao IHGB, o indianista
racionaliza hipóteses que fortalecem a tese da decadência indígena. Assim, decreta a dissolução
e a morte étnica da humanidade americana e o surgimento de outra pautada pela ideia do
progresso e principalmente, que não permitia a sobrevivência de “espectros” conflitantes como
os “remanescentes” indígenas.
2.8. A racionalização da decadência indígena em Brasil e Oceania.
Em Brasil e Oceania, Gonçalves Dias se ocupou da tarefa de “comparar o estado dos
indígenas da quinta parte do mundo com os do Brasil, considerados uns e outros na época da
respectiva descoberta, e deduzir quais ofereciam maiores probabilidades à empresa da
civilização”. Para Miranda, Brasil e Oceania:
É obra considerada de caráter científico, embora se possa sentir na linguagem e
mesmo na visão, o toque do poeta. Gonçalves Dias leu criteriosamente um grande
número de relatos de antigos viajantes, naturalistas, cientistas; analisou-os, comparou-
os, e compôs seu próprio painel, buscando responder à questão proposta pelo
imperador.138
Semelhante compreensão apresenta Kodama. Para a autora, o conhecimento dos índios
“brasileiros” lidos pela ótica da ciência, não entra em contradição com o índio retratado pelo
poeta indianista, antes, “a ‘ferramenta’ etnográfica de que dispunha, mais do que contradizê-lo,
poderia reforçar seus personagens poéticos”.139 A erudição de Gonçalves Dias transporta o
leitor ao mundo dos povos indígenas do passado, já que os contemporâneos já não seriam, em
sua concepção, representativos do que já foram um dia. Assim, isolando-os em um tempo
remoto na história fundacional que elabora e, suprimindo a sua presença no contemporâneo
brasileiro, logo, no futuro da composição étnica da população da nova nação que se formava,
concentra especial atenção às migrações indígenas, êxodos e ocupação espacial dos nativos no
período pré-cabralino. Mais contemporaneamente, se dedica às transformações culturais que
sofreram com a chegada dos colonizadores portugueses sedentos pela riqueza do território
americano. Cosmologias, línguas, crenças, ritos, religiões e costumes fazem parte do conjunto
da obra onde procura descrever “o estado físico, moral e intelectual dos indígenas do Brasil, no
tempo em que pela primeira vez se achavam em contato com os seus descobridores, e ver que
138 MIRANDA, A., O Cantor dos guerreiros, p. 28. 139 KODAMA, K., O tupi e o Sabiá, p. 6.
125
probabilidade ou facilidade ofereciam nessa época à empresa da catequese ou da
colonização”.140Amparado pela ciência histórica e pela etnografia, deveria encarregar-se da
tarefa de investigar a vida e a história do desenvolvimento dos indígenas brasileiros para além
da conquista, e descortinar que povos eram aqueles que foram contatados pelos portugueses
quando de sua invasão ao território americano, ou ainda, qual a origem da população Tupi que
habitava esse território, atividade que abre sua obra.
Em Brasil e Oceania, Gonçalves Dias reitera a proposição levantada em História Pátria
de que o movimento migratório da população indígena no Brasil fora efetuado da região norte
para o sul do país. Acredita que em função dos crescentes conflitos intertribais provocados pelo
grande crescimento populacional na região amazônica, onde antes encontrava tudo para sua
sobrevivência, teria se espalhado, gradativamente, pelo litoral brasileiro. Em sua interpretação,
a região norte da América do Sul, representada pelas férteis margens do Amazonas e os países
que ficam entre esse rio e o Orenoco, era o local que mais vantagens oferecia “a homens quase
sem morada, sem artes, sem agricultura e sem vestidos”. No entanto, o cientista afirma estar
convicto “de que a raça tupi – longe de ser autóctone – era a última ou a única raça
conquistadora”, logo, a mais bem aquinhoada. Sobre sua origem, lembra que em suas tradições,
falam de um “grande cataclisma”, que pode ser a invasão de seu antigo território por outros
povos bárbaros ou ainda um dilúvio, após o qual teriam se estabelecido nas paragens do norte
do Brasil. Como lembra, “talvez usassem dessa linguagem figurada para exprimir uma grande
revolução, ou emigração”.141 Ponto controverso, não obstante a origem adventícia dos Tupi,
“representavam os brasileiros mais autênticos e originais, apesar da circulação de teorias sobre
migrações intercontinentais que teriam ocorrido num passado tão distante quanto nebuloso”. 142
Após confrontar diversos posicionamentos, como o do padre jesuíta Simão de
Vasconcelos em sua Crônica da Companhia de Jesus, de 1672, e do naturalista francês Alcide
d’Orbigny (1802-1857), para quem os “brasilio-guaranienses se distribuíram na costa brasileira
no sentido sul-norte”, afirma haver provas suficientes de que “saíram do istmo mexicano e
caminharam para o meio-dia”. Sustenta haver conformidade nos costumes dos Tupi “com os
dos hurons e iroqueses”, como suas tabas semelhantes, os mesmos meios de defesa, entre outros
costumes que considera próximos. Para comprovar sua constatação, se diz amparado pela
história:
Conquanto imperfeitos, os anais mexicanos merecem ser consultados – como os que
unicamente podem derramar luz sobre a importante questão de raças e emigrações dos
140 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 33. 141 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 40-42. 142 MONTEIRO, J. M., Tupis, Tapuias e Historiadores, p, 33.
126
indígenas da América. Esses anais, ainda que não conservem lembrança da passagem
de povos bárbaros através de seu velho império, fazem menção, contudo, de uma peste
que durante cem anos, e em um tempo que parece corresponder ao XI século da nossa
era, tinha convertido o país em um vasto deserto; e que a população se havia renovado
por um enxame de guerreiros, que vinham do Norte. 143
Prestigiado membro do IHGB, Gonçalves Dias pertencia a um conjunto de intelectuais
e estadistas encarregados do difícil e ambicioso projeto de fundar uma tradição histórica
nacional. Com destacada primazia no estudo dos “Tupi da Costa”, esses intelectuais
procuravam “conciliar as origens americanas com os princípios civilizadores que guiavam os
estados-nação do século XIX”.144 Com esse objetivo, o indianista posiciona o nobre, valente e
“extinto” grupo Tupi no centro de sua narrativa. Assim, reproduz a tradicional classificação
colonial/jesuítica que categoriza os povos indígenas que habitavam o território brasileiro em
duas “raças” distintas em índole e moral e aprofunda a distinção dicotômica Tupi/Tapuia.
Afirma que a primeira, encerrava entre si “a mesma língua, fisionomia, armas e costumes”.
Considera que todas as tribos dessa família “eram designadas por vocábulos tirados da mesma
língua, o que tende a estabelecer certa identidade de origem entre elas” e indicam o parentesco
que as aproximava e as unia. “Tupi, formado da palavra tupá – era a tribo mãe. Tamuya ou
tamoio – avô – tupiminós – netos – tobajaras – cunhados; e alguns outros mais”. Mais numerosa,
apresentava no seu aspecto alguma coisa dos ramos “menos nobres da raça caucásica” e era a
que se achava de posse das praias – “das matas mais abundantes, e das margens dos rios mais
piscosos”.145
À segunda “raça” indígena, a Tapuia, descreve-a como fracionada e sempre em luta no
interior das florestas do Brasil. Pela cor da sua pele, apresentava no seu aspecto traços
fisionómicos da raça mongol, logo, menos nobres. Ao Tupi, corrobora a tradicional designação
de índio manso e ao Tapuia, de índio bravo, como fora defendida pelo frei da ordem de São
Francisco, Antônio de Jaboatão (1695-1779). Este, chamava de mansos “aqueles que com
algum modo de república, ainda que tosca, eram mais tratáveis, e se domesticavam melhor” e
de bravos “aos que viviam sem modo algum de república, intratáveis, e que com dificuldade se
deixam instruir e domesticar”.146 Assim como neste, na trama histórica de Gonçalves Dias o
nobre Tupi cresceu em estatura e ganhou contornos de aliado. Relegado ao passado, é lembrado
como um valente “domesticável” que cedeu seu território a uma nova e renovada ordem
143 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 52. 144 MONTEIRO, J. M., Tupis, Tapuias e Historiadores, p, 26. 145 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 44. 146 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 44-45.
127
civilizatória. No polo oposto, encontra-se o grupo Tapuia, desenhado como inimigo da
colonização, de traços físicos menos nobres e, principalmente, inimigo e obstáculo à civilização
das terras do Novo Mundo. No entanto, embora reitere essa classificação, Gonçalves Dias a
relativiza e a considera “descuidadosa” em seus critérios de observação de dessemelhanças
físicas e de “diversidade de índole e caráter que entre estes homens se apresenta”. Além disso,
o autor destaca o erro geográfico desta classificação: “assim que – nem todas as tribos do litoral
eram Tupis – nem todas as do interior – Tapuias. Nem todas, portanto, eram no mesmo grau
domesticáveis; e os meios que se empregassem para a civilização e catequese de uns, não seriam
talvez igualmente aplicáveis a todos”.147 Essa distinção de meios deveria ser aplicada em função
das distinções físicas e morais entre as diferentes “raças” indígenas.
Mesmo sem poder remontar a sua origem, é certo para Dias que “foram os tapuias os
primeiros povoadores do país”. Também foram estes que, durante o processo de colonização
ofereceram incomparavelmente maiores obstáculos à empresa da civilização, “sendo uns e
outros indomesticáveis, nada agrícolas, nômades sempre, e caçadores por excelência”. De
grande ferocidade, sem qualquer nobreza, sem ideia alguma de religião, mais ferozes que os
indígenas invasores (Tupi), gulosos de carne humana sem a observância de qualquer solenidade,
entre outros caracteres distintivos.148 Logo, se moralmente distintos, distintas deveriam ser as
políticas civilizatórias a ambos. Aos ferozes e fracionados Tapuia, “era preciso achar algum
modo de se unirem – de viverem em lugares aldeados sob tal ou qual forma de sociedade e de
disciplina”. À “raça” Tupi, afirma que “era preciso fazer-lhes perder o amor às lutas carniceiras,
e aos sanguinolentos triunfos, em que faziam consistir toda a sua glória”.149
Para o indianista, as constantes guerras de conquista que o grupo Tupi travava pela posse
territorial “excitavam novos ódios, e a vingança ia rapidamente dizimando populações que com
grande dificuldade se multiplicam”. Considera que estas guerras aconteciam tanto entre
diferentes “raças”, entre Tupi e Tapuia, como entre iguais, de forma intestina entre os Tupi. No
primeiro caso, a origem estaria na conquista da costa litorânea pelos invasores e a consequente
expulsão e interiorização do grupo Tapuia que há muito tempo habitava o litoral. “Vencedores
e vencidos, uns por orgulho da conquista, outros por vingança ou por ressentimento, e ambos
pela dessemelhança na linguagem e costumes que entre eles havia, nunca se puderam unir nem
coligar”, logo, guerreavam-se mutuamente. No segundo caso, tribos de mesma origem
147 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 44,67. 148 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 69,77. 149 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 67.
128
disputavam com os seus o seu quinhão territorial na costa brasileira, o que os enfraquecia
gradativamente. Sobre o movimento das guerras tribais, assim se manifesta:
Outras tribos da mesma origem, obrigadas pelas mesmas causas, e seguindo o mesmo
rumo, vieram disputar com as primeiras o lugar para sua residência (...); mas já então
não era tão difícil o entrelaçamento, tendo de efetuar-se entre homens que tinham a
mesma origem, e ainda, conservavam os seus costumes. Por isso algumas das tribos
antigas se refundiam nas novas, enquanto outras procuravam o sertão. Ali, porém,
encontravam os tapuias entrincheirados nas florestas, e poucos dispostos a lhes
cederem o terreno; aquelas tribos pois que não tinham forças para os combater, ou se
não puderam acomodar com a vida das florestas, retrocederam, dando alimento à
revolução que desde eras remotas abalava está grande porção do novo hemisfério. Os
homens da floresta – os caetés – resto das tribos tupis refugiados no interior, vieram
postar-se no campo de batalha e, combatendo os da sua origem, puderam romper em
alguns pontos a linha litoral e encravar-se entre os tobajaras e tupinambás. 150
O rompimento da linha litorânea que, segundo Gonçalves Dias era formada
majoritariamente por tribos de origem Tupi, foi cuidadosamente apresentado pelo indianista
como recurso para alicerçar sua tese da inevitável decadência do nativo do território brasileiro.
Em síntese, demonstra o enfraquecimento e o perecimento daqueles que outrora dominaram e
conquistaram toda a costa litorânea do Brasil. Em sua análise, algumas das tribos Tapuia, no
passado expulsas para o sertão brasileiro, não contentes com a posse do interior, “caíram sobre
o litoral pouco tempo antes do descobrimento do Brasil, e os portugueses as encontraram, ainda,
formidáveis, disputando com os invasores tupis a sua primitiva habitação”. Considera que não
seria possível determinar o princípio das invasões dos Tupi à costa brasileira, no entanto, as
constantes guerras de conquista demonstram que quando os europeus os encontraram,
representavam “restos de uma civilização desconhecida, e de um povo mais desconhecido
ainda”, que já se encontrava em processo de decadência. 151
Em muitos momentos de Brasil e Oceania, o poeta romântico e o cientista se
confundem. O Tupi do litoral que no indianismo de Gonçalves Dias é heroicizado e matizado
enquanto representante histórico da nação brasileira, teria, no cientificismo do pesquisador do
IHGB o “poder” de redimir o Tapuia do sertão. Características como a suavidade da língua, a
inteligência e a compleição física robusta, além de provarem a superioridade genética do grupo
invasor, quando cruzadas com os índios do sertão, melhorariam, em sua compreensão, os
atributos físicos e morais destes. Assim, defende que as relações interétnicas entre ambas as
“raças” teriam produzido uma “sub-raça indígena”, “de certo modo diferente de ambas”, mas
150 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 65-66. 151 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 73.
129
em linhas gerais, suavizada pelos caracteres positivos dos primeiros. O pesquisador admite essa
ideia a partir das guerras de reconquista promovidas pelos índios goitacazes (Tapuia) contra os
índios invasores. Da subjugação dos primeiros e da mistura de ambos, surge uma raça que, no
tempo da descoberta do Brasil já se diferenciava dos seus antepassados, tendo muito aprendido
com os índios do litoral, no meio dos quais moravam:
Já iam apresentando alguma indústria, faziam algumas plantações, e enterravam os
seus mortos do mesmo modo que aqueles – usavam de ornatos parecidos (com os
tupis) (...) e sujeitos a condições mais favoráveis de existência haviam perdido a
rudeza e a ferocidade, que distinguiam os de sua tribo. 152
Logo, a leitura científica de Gonçalves Dias sobre os índios do território nacional não
dispensa um conhecimento lido através da literatura, assim como lança mão de farto
conhecimento histórico e etnográfico para criar o índio de sua poesia romântica. Esta conexão
entre ciência e poesia, antes de sinalizar uma contradição, acentua a filiação romântica e
nacionalista do autor. Lembremos que em ambos os gêneros literários, o olhar do
indianista/cientista estava direcionado para o índio do passado, já morto ou em vias “de”. Em
ambos, igualmente, submete a história indígena a regularidades históricas para, assim, viabilizar
o indígena e sua imagem de representante histórico da nação brasileira que se formava sobre os
alicerces dos antigos e nobres homens americanos. Assim, eleva os indígenas invasores e
representantes da nação ao status de portadores de valores morais superiores e donos de um
passado mítico elevado.
Não esqueçamos que esses valores e seu passado, com o acréscimo dos traços
fisionômicos e culturais superiores ganham espaço singular na história do Brasil que então se
desenhava. Sobre a compleição física do Tupi, ou, “quanto às formas gerais”, como diz,
contesta as proposições de inferioridade do nativo americano proferidas pelo abade Corneille
de Pauw (1739-1799) e acusa-o de ser um “detrator gratuito dos primitivos americanos”. Eleva
os caracteres físicos inerentes à raça, como a compleição robusta de sua forma, seu tronco largo,
peito arqueado, os membros musculosos dos homens e das mulheres acostumadas à vida livre
em que exercem atividades físicas “desde a infância sem nenhum obstáculo ao desenvolvimento
de suas forças e de seus membros”. Sobre sua capacidade intelectiva, contesta seus
contemporâneos anatomistas e fisiólogos e sua classificação baseada na forma do crâneo,
considerando-o como um método inseguro e errôneo por sua generalização. Salienta as
considerações do psiquiatra francês Parchappe de Vinay (1800-1848) para quem “não só a
152 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 82.
130
forma do crâneo é pouco importante para as faculdades, como também que o seu volume nada
influi sobre elas”.153
O indianista considera a “raça” Tupi como dona de um permanente estado de perfeição,
orgânica à tribo e no qual a força e a saúde de uma geração eram a garantia da saúde e da força
das que lhe seguiam: “nasciam robustos e conservavam por toda a vida a robustez; enquanto
por outro lado os seus trabalhos os impediam de cair em obesidade”.154 Conforme Kodama:
A busca de não romper com uma possível ideia de tradição para a poesia nacional
teria seu correspondente para a História do Brasil com a visão dos índios como uma
nação de guerreiros, e esta visão é comum à geração do autor, a ponto de ser parte dos
programas do IHGB a busca de se solucionar, através da etnografia, o passado
“misterioso” do Brasil, a que se referia Martius.155
Assim, enquanto um povo guerreiro, é para isto educado e “a guerra era sua vida – e só
os feitos de armas e os atos de coragem os podiam enobrecer”. A nobreza do Tupi fora descrita
em sua capacidade de saber vencer e também de padecer. No segundo caso, sabiam “afrontar
os sofrimentos e mostrar-se tão impávido no terreiro do inimigo, como destemidos no campo
da batalha. (...) Convinha que o guerreiro soubesse suportar a dor com calma e não demudar o
semblante”. Em resumo:
(...) o tupi era sadio, robusto, hábil no fabrico de armas, destro em manejá-las, e com
sentidos de extrema delicadeza. A sua vida toda guerreira, e de guerra selvática,
começava pelo exercício de todos os sentidos, e rematava com o desenvolvimento de
todas as qualidades que era mister ao guerreiro. 156
No entanto, se em sua leitura poética Gonçalves Dias identifica bravura e heroicidade
na instituição da guerra que o Tupi movia - seja na vitória ou no padecimento no terreiro do
inimigo - em sua leitura científica e teleológica vislumbra o padecimento étnico do grupo a
partir da mesma instituição. Para o autor, o permanente estado de guerra em que vivia o
Tupi o fracionava em tribos hostis espalhadas pelo território brasileiro, situação esta já
encontrada pelos portugueses no tempo da conquista colonial. Em sua compreensão, isso
explicaria a dissolução das forças religiosas que uniam o grupo em um tempo pretérito à
descoberta. Neste tempo, o grande grupo estaria unido em torno da figura de uma divindade
grande e majestosa, que “colocava no ápice dos seus mitos um ser necessariamente bom”. Este
153 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 103-104. 154 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 107. 155 KODAMA, K., O tupi e o Sabiá, p.12-13. 156 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 109.
131
seria um tempo em que o Tupi apresentava um “admirável” desenvolvimento metafísico e
religioso e reconhecia “a existência de um ser grande e poderoso” representado pela excelência
superior de tupã. 157
Assim, conclui que já no tempo das descobertas os elementos espirituais dos Tupi
estavam tão abafados por grande número de superstições, que os colonizadores não
reconheceram qualquer princípio religioso nos índios. Dominados que estavam por feitiços e
pelo culto dos manitós que “tinham quebrado o último elo que os prendia uns aos outros –
tinham acabado de destruir a religião que só poderia unir tribos contrárias ainda que
descendentes da mesma raça”. E assim, sem comunhão de interesses, “os deuses privativos de
cada taba, de cada família, de cada indivíduo, tendiam a separá-los cada vez mais uns dos
outros” e, consequentemente, “a sociedade não podia prosperar nem ainda subsistir por muito
tempo”, envolta em guerras que estava. 158
Em suas festas religiosas regidas pela figura dos sacerdotes, recordavam-se das injúrias
recebidas, dos combates fracassados e sentiam reviver os antigos ódios e procuravam os
contrários para apagarem a lembrança das ofensas. “Vinham, pois, as guerras após as guerras,
os prisioneiros após os prisioneiros, as represálias das outras tribos, e assim por diante”. 159
Gonçalves Dias retrata com acuidade e relevo os pormenores da instituição da guerra que,
segundo o autor, explica “o fracionamento em que achamos as diferentes tribos, e demonstram
que o seu estado social ia sendo cada vez mais desesperado”. Desenhada enquanto motor da
decadência, desintegração e destruição do grande grupo Tupi, o indianista matiza os combates
e a guerra intertribal como intestina ao grupo. “Era essa a maior e a mais enérgica de suas
paixões, porque ia nela a vingança; e entre tribos em estado de hostilidade permanente, qualquer
leve ocorrência era pretexto de guerras encarniçadas”, tornando-os irreconciliáveis entre si, “ao
passo que facilmente rompiam suas alianças. 160
Assim, pois, tudo nos tupis respirava guerra: o nascimento, a educação, o casamento
e a morte, os seus hábitos, as suas ideias, e a sua religião. Se a mãe chorava com as
dores da maternidade, aquelas lágrimas podiam cair sobre o coração do menino, e
torná-lo covarde: convinha, portanto, matá-lo. Apenas nascidos, eram pintados com
as cores da guerra, o urucu e o jenipapo, como se o negro e o vermelho daquelas tintas
simbolizassem o sangue e o luto, a seu lado depositavam um arco e frechas, que os
acompanharão meninos, jovens, adultos, guerreiros e depois de velhos, e depois de
mortos. (...). Cresciam no meio de exercícios físicos que lhes desenvolviam todas as
forças do corpo; tornavam-se homens no meio de fadigas, e só eram recebidos
guerreiros à força de martírios (...). Um cântico de guerra os acompanhava do berço à
157 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 111-113. 158 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 117-119. 159 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 141. 160 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 150.
132
sepultura, e fabricavam suas armas ao som de cantigas que narravam os agravos
recebidos pelos seus em tempos anteriores (...). 161
Se em Brasil e Oceania Gonçalves Dias se propunha à compreensão das facilidades que
os indígenas ofereciam à empresa da catequese e da colonização no tempo da “descoberta”,
caberia ao cientista avaliar, também, a capacidade intelectual dos diferentes povos americanos
encontrados pelos portugueses. Em sua compreensão, os indígenas do território brasileiro
encontravam-se em um estágio de desenvolvimento racional inegavelmente inferior quanto ao
desenvolvimento das faculdades intelectuais dos homens brancos. Assim como adjetiva os
indígenas de indolentes e preguiçosos em função da abundância alimentar encontrada nas
florestas, em parte, justifica sua inferioridade intelectiva pela não oferta na floresta brasileira:
(...) daqueles animais domésticos sobre os quais pesam os mais duros encargos da
vida do homem, ou que em todas as circunstâncias lhes asseguram a subsistência: o
boi, o cavalo, o asno, o camelo, o elefante, não vieram compartilhar os seus trabalhos;
nem mesmo o lhama, ou a alpaca desceu dos Andes trazendo consigo a semente donde
brotara a civilização dos incas. Era lhes inútil o galinheiro e o pombal; e nem
pastoravam a ovelha, a cabra, nem o porco. O que, pois, poderiam sujeitar ao seu
domínio? – A família numerosa dos papagaios, do que só alguma distração resultava. 162
Gonçalves Dias se utiliza, ainda, de outros critérios para avaliar a capacidade intelectiva
dos indígenas encontrados pelos colonizadores portugueses. Entre eles, cita a arquitetura de
suas “aldeias e casas estrategicamente posicionadas de modo que resistissem às surpresas dos
contrários”, a confecção de redes e tecidos de algodão, de armas de madeira, vasos, canoas e o
desenvolvimento da produção agrícola. Para o cientista, estes elementos da cultura material
Tupi posicionam o grupo em posição superior aos Tapuia que “viviam quase exclusivamente
da caça e pesca”, logo, intelectual e racionalmente inferiores. No entanto, em seu critério de
avaliação intelectiva, nenhum outro elemento ganha tanta importância hierárquica quanto a
língua: “(...) com preferência a qualquer outra coisa, é a linguagem de qualquer povo o que nos
dá melhor o quilate da rudeza em que se acha, ou do progresso que tenha feito” uma
comunidade.163
Ao que parece, seguiu a tese linguística do filólogo alemão Friedrich Wilhelm Humboldt
(1767-1835), irmão do naturalista Alexander von Humboldt. Para o linguista, “a estrutura de
um idioma é um reflexo da mentalidade de seus utentes, e as diferenças entre as línguas são
161 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 164-165. 162 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 180. 163 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 174-181.
133
resultado de diferenças na estrutura mental”, tese que o filósofo desenvolveu depois de uma
viagem à Espanha que resultou num estudo sobre a língua Basca.164 Segue, ainda, as
considerações do naturalista francês d’Orbigny, que refuta o suposto de que “as línguas
americanas eram pouco extensas, grosseiras, e que careciam absolutamente de termos para
exprimir um pensamento, uma ideia delicada, ou mesmo a paixão”. Em suas proposições, o
naturalista francês refuta a ideia de que por estarem embrenhados e isolados no meio das matas
e florestas, os indígenas americanos estivessem privados de formas elegantes, ricas e variadas
de linguagem, e se pergunta: “de que se haveria de compor entre os guarayos esses hinos
religiosos e alegóricos tão ricos de figura? ” Para o mesmo autor, se a língua americana, como
o guarani, quíchua, o chiquito entre outras, fosse tão estudada quanto o grego e latim, nos
convenceríamos e reconheceríamos sua riqueza e abundância, proposições igualmente seguidas
por Gonçalves Dias.165
É através da pena dos padres José de Anchieta (1534-1597), Figueira (1574-1643), entre
outros entusiastas da língua Tupi, que o maranhense afirma que “não podemos conhecer a
língua geral pela que hoje se fala”. Reitera as proposições dos jesuítas de que, além de suave e
copiosa, a língua geral apresentava perfeição em sua gramática, não devendo nada aos gregos
e latinos. Cita ainda a assertiva do naturalista Virey (1775) de que “é entre os selvagens que
havemos de buscar a verdadeira eloquência e a alta poesia. Mais uma vez, com os olhos voltados
ao passado da língua Tupi, a versão científica e romântica de Gonçalves Dias se confunde,
como a seguir:
E de fato entre os tupis era tudo música e poesia, o nascimento e a morte – a guerra e
as festas – o amor e a religião – a linguagem e a vida – tudo era poesia. Eram prezados
por bons cantores, as mulheres mesmo sabiam improvisar, e as águas do Carioca
passavam por ter o condão de dar maviosidade ao canto dos tamoios. (...). Na sua
linguagem harmoniosa e quase toda labial, travada e intercalada de vogais – imitavam
o ciciar da brisa a correr sobre as ondas espelhadas do oceano, a agitar levemente a
igara derivando à tona d’água, e a enredar-se pelas folhas dos bosques que aromatizam
o litoral. 166
No entanto, é sua versão cientifica que prevalece em suas considerações
fatalistas/pessimistas sobre o futuro do homem americano ou, o que ainda restava dele. Finaliza
sua argumentação de que os indígenas do território brasileiro “caminhavam precípites para a
sua completa decadência”, justificando-a a partir dos componentes linguísticos, religiosos, de
governo e de seus hábitos guerreiros. Quanto ao primeiro componente afirma:
164 MIRANDA, A., Glossário biográfico (...), p. 369. 165 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 182. 166 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 183-184.
134
A língua tupi, chamada vulgarmente língua geral, tinha uma gramática que pelo bem
ordenado de cada uma de suas partes mereceu ser comparada à grega e à latina:
demonstra mais hábito de reflexão do que o que encontramos no povo que a falava:
abunda, como bem nota Martins, em expressões que indicam certa familiaridade com
as considerações metafísicas, concepções abstratas, a ponto de bastar para exprimir e
explicar as verdades e os mistérios da mais espiritual de todas as religiões do
cristianismo; e reina em toda ela tal ordem, tal método que alguém já disse que os
tupis não estavam em estado de a ter formado. 167
E conclui: “se não o estavam, e já o tinham feito, a consequência é que depois disso haviam
decaído”. 168
Em relação à religião e à hierarquia social das tribos Tupi, destaca a transformação de
seus componentes religiosos em superstições e às suas formas de governo em anarquia, o que
desculparia os primeiros cronistas e colonizadores “que neles não reconheceram nem uma nem
outra coisa”.
(...) eles se haviam esquecido em todo ou em parte das graciosas ficções de sua
mitologia: os autores mencionam apenas uma ou outra, ou poucas que lembravam às
tribos de quem bebiam tais notícias: já não reverenciavam a Tupã, não lhe cantavam
aqueles hinos de que os guarayos, descendentes dos guaranis, chegados em último
lugar, ainda se lembravam.
À gradativa desorganização provocada pela perda dos códigos sócio/culturais que
garantiam a coalização do grande grupo Tupi - como a religião que afirma haver se convertido
“em ritos e práticas cada vez mais bárbaras” ou a desunião grupal provocada por formas de
governo que ocasionavam “desordens cada vez mais funestas” - o indianista soma outra que
afirma provar que os indígenas “realmente decaíam de um estado de perfeição relativa”. Trata-
se das “guerras intestinas” que para Dias corroíam “os elementos que os retinha em sociedade,
desfazendo-a e enfraquecendo-a até a definitiva decadência do espírito militar”. Em sua
concepção, a presença dos Tapuia em meio ao cordão que os guerreiros Tupi haviam
estabelecido no litoral do Brasil era prova inconteste de que já eram “poucos e fracos no
combate contra os tapuias”. Assim, se militarmente enfraquecidos, conclui: “(...) os tupis, pela
invasão e pelo estado decadente em que foram achados, se prestavam maravilhosamente a
qualquer plano de catequese ou de colonização”, pois, por ocupar o litoral e partilhar dos
mesmos costumes e uma linguagem comum, bastaria estudar “uma tribo” e, assim, seria fácil
pregar o evangelho a todas as outras.169
167 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 193-194. 168 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 193-194. 169 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 196-197.
135
Em grande medida, em Brasil e Oceania o autor racionaliza o processo de decadência
do índio brasileiro lançando mão de uma argumentação científica para justificá-lo e explicá-lo.
No entanto, não deixa de culpabilizar a aceleração desse “inevitável” processo ao modelo de
colonização predatório praticado pelo Império português nas terras americanas. Assim, a
narrativa justapôs um cenário de decadência pré-colonial, sucedido por um destrutivo processo
de desagregação pós-conquista. Logo, se o indígena caminhava precípite para a decadência, sua
ruína final teria se acelerado pelas mãos do colonizador através de práticas deletérias às
comunidades indígenas. Afirma que, aos indígenas em luta com os europeus, só restou a
alternativa de se retirarem do “mar para as florestas”, ocasionando a desagregação de sua
unidade tribal em unidades menores, quando não em indivíduos isolados e perdidos em meio à
mata. Neste ambiente, além da maior precarização de sua vida, sua cultura material também
teria se esfacelado, como sua habitação que, em contato com as tribos do interior, “resumiram-
se e estreitaram-se até tomarem a forma das dos tapuias”. 170
Assim, defender a tese de que as sociedades indígenas do território brasileiro já
estivessem envoltas em um inevitável processo de desmoronamento quando o “acaso” dilatou
os domínios do reino de Portugal ao território americano, não eximiu o indianista de apresentar
a dialética colonial. Pautado na predatória relação colonizador/colonizado, com audíveis
prejuízos aos segundos, denunciou os excessos coloniais como a escravidão, os maus tratos e a
penúria sofrida pelos nativos nos trabalhos forçados que os levavam à morte. Afirma que os
que não puderam fugir, não escaparam da morte ou do cativeiro abastecido pela prática colonial
de “inflamar a animosidade de umas hordas contra outras”. Além disto, o pesquisador apresenta
ainda as frentes de resistência indígena à ocupação portuguesa. Como mostra, estas frentes e
sublevações se manifestaram por todo o litoral e “causaram grandes males, até a total destruição
de muitas capitanias e ruína de seus donatários”.171 No entanto, mesmo no movimento de
resistência, prevalece, em sua versão histórica, uma imagem desfavorável aos indígenas, como
a ruína étnica, o cativeiro, as carnificinas a que foram submetidos, a completa destruição e/ou
sujeição aos bandeirantes, e ainda, as alianças colonizador/colonizado que aceleraram a
decadência dos povos indígenas. Essa postura justifica-se se compreendermos que o objetivo
do discursivo histórico do autor fora o de justificar a colonização portuguesa do território
brasileiro para, assim, laurear a vitória da nova e “civilizada” nação que ganhara vida nos
trópicos da América.
170 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 176. 171 DIAS, A.G., Brasil e Oceania, p. 211.
136
Assim, na compreensão de Gonçalves Dias, à teleologia fatalista/pessimista pré-
colonial, sucedeu-se a “relação” não menos fatalista colonizador/colonizado. Em meio a
explicações mais científicas ou mais românticas, a linha condutora do indianista/cientista
permanece a mesma: a inevitável decadência do indígena pré-colonial acelerada pelo processo
de ocupação portuguesa do território americano. Logo, assim como em Martius, o nativo na
pena de Dias, fora retratado “como o final de um processo cultural, o último elo de um processo
civilizatório que entrara em decadência séculos antes”.172 Como destaca Monteiro ao referir-se
à história do Império e à história que sucede este regime, “para a maioria dos historiadores
brasileiros, tornou-se corriqueiro o pressuposto de que o início da história do Brasil significava
o fim dos índios”. 173
Com isso, na pena de Gonçalves Dias, a história dos povos indígenas que ocupavam o
território brasileiro se eternizou no passado do novo país que se formava. Com os olhos voltados
ao passado, se o indígena já não estava extinto, estava em vias “de”. O corolário racional de
uma perspectiva histórica – a transformação das instituições e dos homens no tempo - não
escapou às considerações do indianista/cientista que, compadecido com o derradeiro
movimento de decadência do índio brasileiro, epistemologicamente, coroou o processo colonial
civilizatório dos portugueses em terras americanas e anunciou o desaparecimento de sua
população nativa e o surgimento de uma nova ordem civilizatória construída sobre as ruínas
dos históricos “índios-mortos”.
172 WEHLING, A., Estado, história, memória (...), p.38 173 MONTEIRO, J. M., Tupis, Tapuias e Historiadores, p, 34.
137
CAPÍTULO 3: LITERATURA “PERIFÉRICA” NA REVISTA GUANABARA E O
PROCESSO CIVILIZATÓRIO.
3.1- Regulamento acerca das missões de catequese e civilização dos índios de 1845.
Ao processo do extermínio biológico ou cultural das populações indígenas submetidas
à “situação colonial” soma-se um sistema de obliteração de sua presença na ideologia
oficial. A ausência, pura e simples, do índio nas preocupações políticas e
administrativas da sociedade nacional completa-se como forma mais elaborada e
insidiosa de exclusão da memória indígena, por sua transferência ao passado. Hoje,
como ontem, nos textos que exprimem a ideologia dominante no país, o índio é,
essencialmente um ser pretérito, não contemporâneo. É possível que esta sistemática
referência do índio ao passado se origina das mesmas raízes que deram berço às
hipóteses dos primitivos contemporâneos como fósseis vivos, estranhos sobreviventes
de um mundo pré-histórico, incapazes de adaptação ao mundo atual, e vítimas
necessárias do progresso e da civilização. A visão do índio como ser pretérito presta-
se admiravelmente à justificativa de sua degradação atual. A própria literatura
indianista do Império, a exemplo de Gonçalves Dias e José de Alencar, encarrega-se
de estabelecer distância intransponível entre o “noble sauvage”, convenientemente
situado no passado histórico nacional mais remoto, e o índio atual, produto de
inexorável decadência. 1
Como lembra Moreira Neto, no século XIX, as classes dominantes do Brasil
independente, desenvolvem, face às minorias, como os negros, índios e mestiços, uma “atitude
configuradamente colonialista e utilitária, subordinando todas as considerações sobre pretensos
direitos e necessidades desses grupos aos propósitos da civilização, do progresso ou do interesse
nacional”. Aos grupos tribais “remanescentes”, operou-se a mão forte do Estado através da
implantação de efetivas políticas de dominação, subordinação e integração dos povos indígenas
aos ditames da pretensa sociedade que se desenhava. Todos estes esforços eram subordinados
aos contínuos discursos sobre a rusticidade, a miséria e a selvageria dos povos da floresta e,
ainda, à superação deste estado através da redenção do silvícola pelas mãos do Estado, guiado
pelo interesse maior de utilização da mão de obra “dócil” e barata do indígena. Moreira lembra
ainda que “isso será buscado tanto nas tentativas de reforma pombalina quanto no Regimento
de 1845, ou nos projetos indigenistas de Ottoni (1858) no Vale do Mucuri, ou de Couto de
Magalhães (1875), no Araguaia”.2
Certamente, o século XIX e a figura política do independente Estado brasileiro não
inaugurou nenhuma grande novidade em seu interesse de dominar e subjugar os “fosseis vivos”
que habitavam o seu território. Através de “distintas” práticas indigenistas, encontramos, em
1 MOREIRA NETO, C. de A., Os índios e a ordem imperial, p. 264. 2 MOREIRA NETO, C. de A., Os índios e a ordem imperial, p. 267.
138
todos os períodos de nossa história, da colônia à república, a ação oficial de nossos governantes
interessados na liquidação desses grupos autônomos “dispersos” pelo território nacional.
Seguiremos o conceito de indigenismo como fora tratado por Moreira Neto, que o define como:
(...) o conjunto geral de valores, normas e modos de ação prática adotados pelo
governo em relação aos grupos indígenas, através das quais operava uma intervenção
deliberada em todos os níveis da vida dessas comunidades, com o propósito de
disciplinar as relações e o comportamento desses grupos, segundo os interesses e
valores da sociedade nacional dominante. 3
Vetor de mão dupla, ao longo da história desta relação colonizador/colonizado e desta
intervenção prática e concreta do Estado na estrutura política e social das comunidades
indígenas, assistimos a diferentes estratégias de resistência engendradas pelos povos
“assistidos”. Assim, o (in)sucesso da ação indigenista oficial depende dos efetivos rearranjos e
adaptações da prática indigenista oficial ao longo dos tempos, face às efetivas ações/reações
traçadas pelos grupos a que se destina a ação do Estado e aos efetivos interesses da sociedade
nacional dominante, muitas vezes conflitantes. Sobre estes interesses conflitantes e as diferentes
formas de resistência engendradas pelos grupos indígenas, dispensáveis ao nosso propósito, nos
absteremos, assim como o faremos às mais variadas práticas indigenistas adotadas pelo Estado
ao longo de nossa história. Por ora, ateremo-nos à política indigenista adotada pelo Império
brasileiro em meados do século XIX, com especial atenção aos seus interesses
pragmático/ideológicos direcionados à efetiva desintegração tribal e gradual integração dos
“Tapuios” destribalizados à ordem civil e econômica daquele período. Essa atenção se justifica
à melhor compreensão dos romances indianistas “periféricos” apresentados na sequência deste
capítulo que serão analisados à luz da política indigenista imperial.
Promulgada através do decreto n.426 de 24 de julho de 1845, o Regulamento acerca das
Missões de catequese e civilização dos índios estabelece as diretrizes gerais do Império para o
governo dos índios aldeados. Único documento indigenista geral no século XIX, o Regulamento
“prolonga o sistema de aldeamentos e explicitamente o entende como uma transição para a
assimilação completa dos índios”.4 Assim como nos séculos anteriores, neste também se
defendia que a civilização dos índios dependia de sua sedentarização e sujeição a leis
extrínsecas à cultura indígena. Através desta sedentarização e transformação cultural no espaço
do aldeamento, objetiva-se a gradual incorporação do aldeado ao conjunto da população
3 MOREIRA NETO, C. de A., Os índios e a ordem imperial, p. 19. 4 CUNHA, M. C. da., Índios no Brasil, p. 68.
139
nacional e sua sujeição ao mundo do trabalho como assalariado. Carneiro da Cunha aponta as
várias conveniências do aldeamento: “não só se os tirava ou confinava em parcelas de regiões
disputadas por frentes pastoris ou agrícolas, mas se os levava também para onde se achava
seriam úteis”.5 A mesma autora apresenta um roteiro que elucida os objetivos da política
indigenista imperial e as ações do Estado para a consecução destes interesses:
(...)começa-se por concentrar em aldeamentos as chamadas "hordas selvagens",
liberando-se vastas áreas, sobre as quais seus títulos eram incontestes, e trocando-as
por limitadas terras de aldeias; ao mesmo tempo, encoraja-se o estabelecimento de
estranhos em sua vizinhança; concedem-se terras inalienáveis às aldeias, mas aforam-
se áreas dentro delas para o seu sustento; deportam-se aldeias e concentram-se grupos
distintos; a seguir, extinguem-se aldeias a pretexto de que os índios se acham
"confundidos com a massa da população"; ignora-se o dispositivo de lei que atribui
aos índios a propriedade da terra das aldeias extintas e concedem-se-lhes apenas lotes
dentro delas; revertem-se as áreas restantes ao Império e depois às províncias, que as
repassam aos municípios para que as vendam aos foreiros ou as utilizem para a criação
de novos centros de população. Cada passo é uma pequena burla, e o produto final,
resultante desses passos mesquinhos, é uma expropriação total. 6
Na avaliação de Moreira Neto, o indigenismo imperial atendia aos “interesses básicos
dos grandes proprietários de terras que constituíam indiscutivelmente a classe dominante do
país”,7 o que inviabiliza qualquer tentativa de dissociar a legislação geral de 1845 da questão
de terras. Legalmente, baseado no princípio do direito originário, fica reconhecido o direito das
populações indígenas às terras que ocupam, não obstante as frequentes práticas de esbulho
realizadas com a anuência da própria legislação indigenista, como a permissão para
arrendamentos, a presença de colonos e a concessão de aforamentos no espaço dos aldeamentos.
A estas práticas, soma-se a incumbência dos Diretores de Índios, responsáveis diretos pela
administração das aldeias, de abastecer as fazendas próximas com mão de obra indígena, com
remuneração abaixo dos trabalhadores regionais não índios.
A utilização da mão de obra indígena como trabalhador assalariado já era discutida entre
os integrantes do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) nos anos que precedem o
decreto que cria o Regulamento em 1845. Em seu clássico artigo Se a introdução do trabalho
africano embaraça a civilização dos nossos indígenas, de 1839, o secretário do Instituto
Januário da Cunha Barbosa, já afirma que:
5 CUNHA, M. C. da., Índios no Brasil, p. 76. 6 CUNHA, M. C. da., Índios no Brasil, p. 81-82. 7 MOREIRA NETO, C. de A., Os índios e a ordem imperial, p. 247.
140
Lembramos este fato para provarmos que eles não são tão avessos ao trabalho, como
os pretende pintar os patronos da escravidão africana, e para que se veja que se forem
removidas certas causas de horror e desconfiança, se forem bem tratados cumprindo-
se fielmente as convenções que com eles fizerem (...) teremos ao menos em seus filhos
e em seus netos, uma classe trabalhadora, que nos dispense a dos Africanos. 8
Assim, além de sua intrínseca relação com a política de terras, a política indigenista do
Império estava umbilicalmente associada a uma política de trabalho e, por isso, os colonos
desejavam a implantação dos aldeamentos o mais próximo possível de suas fazendas, onde se
abasteceriam da mão de obra dos índios aldeados. Na análise de Moreira Neto, “a política
indigenista brasileira durante o Império é formulada em torno de critérios estritos de dominação
e subordinação”, e acrescenta que:
Nada define melhor o caráter colonial destas relações polares que se estabelecem entre
a sociedade nacional e os índios brasileiros que as várias tentativas de utilizar o
trabalho indígena em substituição ao do negro escravo, no período que se estende
entre a independência do Brasil e a abolição final da escravidão. Vários defensores
desta opção colonial consideram ser ela a única adequada às duras condições de
trabalho e de vida das Províncias centrais e setentrionais que, dificilmente,
ofereceriam algum apelo a colonos europeus livres. 9
Cinco anos após o Regulamento, com a promulgação da Lei de Terras em 1850, reafirma-se “a
conveniência de se assentarem hordas selvagens”. Com esta lei, as terras destinadas para o
assentamento indígena serão transformadas em terras devolutas e com ela o Estado inaugura
uma nova e agressiva política de expropriação destes espaços. Torna-se prática comum a
desintegração de aldeamentos e a entrega destas terras a nacionais com o argumento de que os
índios “vivem dispersos e confundidos na massa da população civilizada”.10
Para Marta Amoroso, o indigenismo imperial representa uma radical descontinuidade
na longa era da catequese indígena no Brasil, principalmente se comparado ao modelo de
missionação da Companhia de Jesus. A autora lembra que o modelo jesuítico era fechado e
constantemente acusado de manter os indígenas sem contato com os colonos e militares, além
de exercer total controle sobre a força de trabalho dos índios. Em sua avaliação, o novo formato
dos aldeamentos definido pelo programa de catequese e civilização do Império, de forte
inspiração nas ideias de José Bonifácio de Andrada e Silva, aproximava-se das ideias
apregoadas pelo Diretório Pombalino de 1775 “no que dizia respeito à enfática orientação em
8 BARBOSA, J. da. C., Se a introdução do trabalho africano embaraça a civilização (...), p. 123. 9 MOREIRA NETO, C. de A., Os índios e a ordem imperial, p. 267. 10 CUNHA, M. C. da., Índios no Brasil, p. 79.
141
prol da mistura dos índios com os demais habitantes das vilas e povoados, ao estímulo à
imigração de colonos para as regiões habitadas tradicionalmente pelos índios e ao agenciamento
de deslocamentos forçados dos índios”. Embora defina os seus métodos como “de orientação
pombalina”, classifica o indigenismo oitocentista como contrarreformado “já que chamava os
frades mendicantes italianos da Ordem Menor dos Capuchinhos para administrar e mesmo
dirigir aldeamentos indígenas (...)”. 11
Como já alertamos, nestes aldeamentos, de forma institucionalizada e como instrumento
civilizador, promovia-se a aproximação e a miscigenação entre índios e colonos pobres no
interesse de transformar os “selvagens” em trabalhadores nacionais, pobres e cristãos, ao qual
se seguiria a remoção de sua população do aldeamento e a expropriação legal de suas terras. Na
compreensão de Moreira Neto, embora a lei indigenista preconize a remoção de forma não
violenta, “a violência maior está na admissão do esbulho das terras indígenas por quaisquer
razões que ocorram à mente do Diretor Geral”. Sobre a Lei de Terras de 1850, o mesmo autor
lembra o art. 14 que autoriza o governo a vender as terras devolutas em hasta pública ou fora
dela, “quando julgar mais conveniente”, atendida a exigência prévia de medição, divisão e
demarcação das terras colocadas à venda. Para o autor:
A combinação destes dois dispositivos foi funesta para grande número de aldeamentos
indígenas existentes em áreas próximas a centros desenvolvidos e em Províncias mais
densamente ocupadas, como as do Nordeste, por exemplo. Nestas Províncias a
liquidação das propriedades indígenas foi consideravelmente acentuada após a
aprovação da Lei de Terras, de 1850. 12
Como lembra Carneiro da Cunha, o detalhado Regulamento das Missões “é mais um
documento administrativo do que um plano político”13 De fato, nos onze artigos e dezenas de
parágrafos da lei indigenista de 1845 são definidas as devidas competências legais e
administrativas cabíveis aos diferentes interlocutores envolvidos no processo de civilização dos
índios aldeados. Assim, o documento define as atribuições e incumbências administrativas
cabíveis ao Diretor Geral de Índios, ao Diretor de aldeia, ao tesoureiro, ao almoxarife, ao
cirurgião, aos missionários capuchinhos. Define ainda as regras para o arrendamento e
aforamento de terras aos colonos e as regras para a remoção e/ou reunião de aldeias. Sobre estas
regras administrativas, eximir-nos-emos de apresentá-las, pois, como visto acima, ao longo do
11 AMOROSO, M., Terra de Índio, p. 74-75. 12 MOREIRA NETO, C. de A., Os índios e a ordem imperial, p. 257. 13 CUNHA, M. C. da., Índios no Brasil, p. 68.
142
texto atentamo-nos mais detidamente aos interesses político/ideológicos do Estado brasileiro
através da figura jurídica do Regulamento. Assim, pôde-se vislumbrar o projeto imperial
destinado aos índios, considerados como verdadeiros obstáculos humanos aos interesses mais
imediatos do Estado Nacional que se conformava nos trópicos da América.
Se no plano prático o Estado brasileiro procurava sedentarizar os distintos povos
indígenas em um território diminuto para transformá-los em trabalhadores nacionais, confundi-
los e misturá-los aos colonos regionais e, assim, negar a sua identidade étnica e seu direito à
terra, no horizonte ideológico acreditava na obliteração de sua presença, na ausência pura e
simples dos índios na composição étnica da população brasileira e nas preocupações políticas
do Império. Alinhado com a ideologia do Estado Imperial, encontramos semelhante perspectiva
no campo literário que, amiúde, projetou uma perspectiva de integração e desaparecimento
étnico dos “fósseis vivos” através de sua dissolução em meio à população local. A seguir,
veremos que, em paralelo a uma literatura indianista clássica, como a de José de Alencar,
Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães, Manuel de Araújo Porto-Alegre, entre outros, havia
uma literatura indianista “menor” ou “periférica”, como definiremos algumas obras que surgem
de forma marginal ao grande movimento romântico.
Entre elas, atentaremo-nos à poesia épica do político pernambucano Antonio Joaquim
de Melo, Itaé: idílio Americano, ao romance histórico Aricó e Caocochee, do sertanista
americano João Henrique Elliott e, finalmente, à obra não autoral do engenheiro-militar
Cândido Batista de Oliveira, Lucia de Miranda. Estilisticamente distintos e sem a grandeza
literária dos grandes expoentes do romantismo, esses autores se aventuram literariamente pela
discussão romântica e nacionalista que circundava a elite intelectual e política do país. Instância
significativa do imaginário nacional, essa discussão espraiou-se e rompeu as fronteiras dos
gabinetes políticos do Império e contou com a participação de figuras de menor envergadura
política e social. Marginais ao grande movimento literário, transitam em sua órbita sem a
correção poética dos clássicos e, em alguns momentos, apresentam uma estrutura literária
irregular e inconsistente. Embora “periféricos”, os dois primeiros inovam e contribuem de
forma autoral ao debate nacionalista de seu tempo. O mesmo não pode ser dito sobre o último.
Apesar de transitar pelo debate, Batista de Oliveira replica, em seus próprios termos e
interesses, o romance histórico do cronista hispano-americano Ruy Díaz de Guzmán, Lucía de
Miranda. Assim, caminhando na linha do improviso literário, as composições dos autores
citados, e os distintos espaços de fala que representam, permitem que reflitamos sobre o
posicionamento político e ideológico dos autores e a dimensão dos debates. Como veremos,
143
assim como nos clássicos, nestes também há um esforço deliberado e consciente em posicionar-
se no que respeita à conflitante linha barbárie/civilização e em alinhar-se, ou não, aos princípios
e práticas indigenistas defendidas pela política do Regulamento de 1845. Salientamos ainda
que, além de refletir o posicionamento indigenista de seus autores, os romances apresentados
outorgam a assertiva de Monteiro de que “encontrava-se filantropos no sertão (...), do mesmo
modo que se encontrava patrocinadores de chacinas nas cidades, às vezes ocupando o mais alto
posto da província”. 14
3.2. Itaé: idílio americano e a moral civilizadora.
Antilusitanismo e nacionalismo são duas caraterísticas que ganham relevo na poesia
romântica Itaé: Idílio Americano,15 do escritor pernambucano Antonio Joaquim de Melo (1794-
1873). Político e homem das letras em sua cidade natal, Recife, exerceu atividades de escrivão,
vereador, presidente da província da Paraíba, deputado geral pela província de Pernambuco,
conselheiro do governo, juiz de paz, entre outras funções públicas. No entanto, como muitos
outros de seu tempo, sonhava alcançar o cargo de Senador do Império, tendo o seu nome
sufragado para a função por cinco vezes, sem que nunca tenha sido escolhido por D. Pedro II
para a atividade vitalícia. Talvez esse desejo justifique a dedicatória contida no poema Itaé,
escrito no ano de 1845 e publicado na Revista Guanabara no ano de 1850: “Ao muito alto e
muito poderoso Senhor D. Pedro II”, entregue em versão manuscrita ao imperador do Brasil.
No campo literário, Joaquim de Melo deixou inúmeras obras biográficas, como a de Frei Caneca
e de diversos homens ilustres de sua província. Conforme Ferreira:
Além das biografias dos pernambucanos ilustres, há transcrições de poemas, de trovas
populares, de antigos documentos importantes para a história de Pernambuco, como
a troca de cartas entre “El Rei” e o “governador da província de Pernambuco”, entre
1703 e 1704, petições diversas assinadas por religiosos, textos de resoluções das
cortes, a transcrição de textos cartoriais e do poema A Festa do Baldo de Álvaro
Teixeira de Macedo, em verão completa. 16
Na poesia, Joaquim de Melo ganhou destaque com as obras indianistas Os Caetés e Itaé:
idílio americano, considerada sua maior contribuição neste segmento da literatura romântica.
No dicionário online de português, o verbete Idílio, palavra que compõe o título do poema, é
14 MONTEIRO. J. M., Tupis, Tapuias e Historiadores, p.142. 15 MELO, A. J. de., Itaé: idílio americano, p. 157. 16 FERREIRA, L. G., Escritores pernambucanos do século XIX, n/p.
144
definido como: amor que está repleto de ternura e delicadeza; amor suave e puro. Certamente,
esta definição caracteriza bem o amor entre os Tupi Itaé e Potiguar, ambientado pelo poeta em
meio às particularidades da floresta brasileira já corrompida e esmaecida pela presença do
alienígena europeu. Em meio a este cenário florestal, o diálogo entre os indígenas Aônio e
Frondélio, saudosos dos tempos de outrora, traz a lume a estória de amor que fora corrompida
pela presença portuguesa. Em sua interlocução, os indígenas rememoram o amor visceral vivido
pelo casal e, principalmente, as angústias da sofrida guerreira Itaé, que dá nome ao poema.
Em conformidade com as características do romantismo literário, logo no princípio do
poema, na voz dos indígenas, o colonizador é descrito como um bárbaro, aquele que deixou
funestas heranças aos nativos do Brasil. Entre elas, a destruição de seu habitat natural outrora
abundante e fértil. Neste ambiente depravado pela presença do adventício europeu, encontram-
se agora isolados e fogem à sorte dos pares já vencidos. Aônio e Frondélio representam o índio
exilado, saudosos dos tempos de outrora. No presente já corrompido, só lhes resta rememorar
o tempo em que podiam, em doces cantilenas, modular a graça de suas campinas e a bravura de
seus guerreiros que desinfestavam seus campos da presença dos inimigos de raça. O que antes
podia ser cantado em toda a sua graça, como a fecundidade do seu território, tão fértil e querido,
encontrava-se agora corrompido e usurpado. Aônio, o mais pessimista dos interlocutores, se diz
impossibilitado de cantar as glórias do passado, pois:
(...) só pode cantar um peito livre
Em sossego feliz. A liberdade
Eu perdi desditoso! E neste agreste
Amanho, e grossas peles disfarçado,
Fujo à sorte funesta do vencido;
Diametralmente oposto ao pessimismo de Aônio, Frondélio se mostra mais otimista
quanto ao futuro, quando afirma:
Mal por nós! mas talvez no triste inverno,
Abrindo o sol flamante um riso d´ouro,
Enche a terra enojosa de alegria.
Em sua interpretação do poema, Colla lembra que a “a palavra ‘talvez’ carrega um
sentido muito mais próximo de um sentimento de esperança do que de dúvida” e que a metáfora
do sol na estação mais fria do ano significa para Frondélio que, “mesmo que a devastação
145
causada pelos ‘inimigos soberbos’ pareça irreversível, há uma possibilidade, mesmo que
pequena, de retorno à condição passada”,17 quando preponderava a liberdade.
Possibilidade que se anuncia aos interlocutores nativos com a emancipação das terras
brasileiras da opressão portuguesa, quando Frondélio ouve o festim que ecoa da cidade
anunciando a boa nova que acalma e abranda a sua alma:
Lá da cidade barulhosa cantam
Menestréis altos, que a inocência folga,
E sorri brando amor nos livres campos.
Oh! Bem-vindas! Mimoso lenitivo,
Com os soltos cabelos já nos brincam
Na leitura de Colla, o barulho na cidade que fora relatado por Frondélio anuncia a
emancipação do país e sua independência política do reino de Portugal. Aos indígenas, anuncia
também o fim da subjugação aos malfeitores portugueses e “disso brota a expectativa de
Frondélio em relação ao futuro”.18 Neste momento, o poeta Joaquim de Mello anuncia a ruptura
das amarras que ligavam o Brasil ao jugo colonial português e esta descontinuidade dos tempos
simboliza, na voz dos interlocutores, o otimismo do literato com o futuro da incipiente nação
brasileira. Em um surto de esperança com o devir, o otimista Frondélio, contemplativo e de
saudades ternas, lembra e rememora da conterrânea Itaé, representante maior da independência
e da liberdade índia em meio à mata nos tempos de outrora. Destaca que esta, ao contrário de
Potiguar, seu grande amor, resistiu bravamente, até quando pôde, à cooptação civilizatória dos
algozes portugueses. Sentindo-se em recreio e feliz com o novo e indeterminado tempo,
Frondélio pede a Aônio para que cante as glórias de Itaé.
Canta, hóspede amado, aqueles versos
De Itaé, nossa bela conterrânea:
Parece-me que a vejo... o talhe, o modo
Entre rudo e gentil.... solto o cabelo
Comprido e negro nas espaduas nuas....
Todas saudades, toda independência.
Quem deixará de amar teu pátrio canto?
Tomando a frente da narrativa, Aônio rememora o amor do casal Itaé e Potiguar que
fora corrompido pela presença dos invasores portugueses. Antes destes, Potiguar, ansioso e
17 COLLA, B., Poesia Lírica na Revista Guanabara, p. 47. 18 COLLA, B., Poesia Lírica na Revista Guanabara, p. 47-48.
146
veloz, corria de forma ardente ao encontro dos braços de sua amada em meio a um bosque ainda
não profanado pela presença estrangeira. O amor de Itaé e Potiguar é narrado por Aônio como
forma de rememorar o “tempo perdido”. Tempo em que sua tribo vivia feliz em meio ao bosque
e com o qual mantinha uma relação visceral de reciprocidade. Através da aliança indígena com
a floresta, seu povo recebia seus frutos maduros, como os frutos do jambeiro. De seu regato
recebiam a fresca água que bebiam. Além de alimentar a tribo, seus frutos alimentavam seu
espírito através do perfume que exalavam, e seus ramos que se fechavam lhes forneciam um
teto.
No centro escuro de um espesso bosque,
Não profanado de estrangeira planta,
Alçava-se um jambeiro: o pardo tronco
Lhe beija quase um límpido regato:
E de seus lindos frutos que amaduram,
Dourados cachos mil deliciosos
Recendiam de rosas o perfume.
Com seus ramos, lascivos, enredados
Os ramos de um tenaz coroazeiro,
Sombroso teto vegetal fechavam.
No entanto, esta ordem natural é profanada no derradeiro dia em que a floresta fora
invadida pela presença portuguesa, metaforicamente representada no poema como uma “planta
estrangeira”. Em meio ao refúgio descrito, onde vivia a inocência selvagem, agora perseguida,
ainda é possível visualizar as gigantes gameleiras, os cedros e oiticicas de onde a tribo retira a
dois passos, as frutas e a apetitosa caça. Embebida neste cenário, com a luz da lua lhe fitando à
vista, sentada, Itaé chama e suspira:
Potiguar! Potiguar! No céu a lua
Quase cheia resplende: e a mim não corres?
De Itaé te esqueceste, que te adora?
(...)
A bel prazer em músicas e danças
Fui outrora feliz, tive alegria.
Divagava senhora, e sem cautelas,
A guerreira lamenta a cegueira do amado por não perceber as “manhas estrangeiras”
que o aliciaram a “fazer Brasil” (extração do pau brasil para o comércio). Profanado pela
presença estrangeira, o ambiente descrito não mais pode proporcionar a felicidade dos tempos
de outrora e Itaé chora pelo que perdeu, a presença de Potiguar. Na voz de Itaé, esse amor
147
representava a liberdade, a independência que o nativo perdeu de circular livremente, sem
cautela, pelo espaço em que divagava como senhor absoluto destas terras. Ao território que Itaé
descrevia em sua graciosidade, agora maculado, descreve-o como “de penosas lembranças e
tristura”, e poetisa:
Quantas vezes,
Potiguar, apertando-te em meus braços,
Quantas vezes, prevista e lacrimosa,
Que fugíssemos longe te rogava?
Mas tu, cego das manhas estrangeiras,
Bem que aflito e abalado, te amarravas
Em vivermos em meio de Emboabas.
(...)
Potiguar! Potiguar! Quantos enganos!
Amizade não há, nem fé procuremos
Nesses que a terra abandonando sua,
Grossos mares transpondo aventureiros,
As alheias desolam e cativam.
Desolada, Itaé rememora as funestas consequências da ocupação portuguesa consumada
através da superioridade bélica do europeu que, entre fogos e trovões, realiza duros cercos a seu
povo e a fez perder seu “velho pai” que, em seu forte ânimo de liberdade caiu transpassado
pelas armas portuguesas e a deixou sozinha:
Na terra eu já ninguém tenho que possa
Consolar-me e valer-me; pai não tenho,
Nem mãe; não tenho irmãos, não tenho esposo,
Que bem do coração me queira e ame,
E a quem eu dê o coração e a vida.
Magoada, Itaé lembra de sua pequena irmã, a quem exercia papel de mãe e a quem doava
seu tempo, amor e carinho antes de ser levada pelos “vindiços agressores”. Refletindo sobre as
inúmeras setas que já transpassaram suas entranhas, sofre com a desagregação tribal que a
colonização trouxera a seu povo, a quem só sobrou ruinas e opróbrios, e atribui todos os males
à cobiça portuguesa:
Ouro! Ouro! Que é ouro? Que farejam,
Potiguar, esses nossos opressores,
Femençados cavando a terra a esmo?
Risíveis loucos! Lá da terra em baixo
Não sei que possa haver que preste a vida.
148
Sobre os três personagens que compõem o poema, Colla afirma que:
Nota-se, portanto, uma profunda e clara oposição aos portugueses e ao próprio
processo predador da colonização, por meio de três vozes mais complementares do
que dissonantes. Embora Aônio seja mais pessimista no tocante ao retorno do paraíso
idílico, é fato que tanto ele quanto seus companheiros Frondélio e Itaé são unânimes
acerca da ambição do povo lusitano. Enquanto os indígenas masculinos tecem
comentários basicamente sobre a destruição da natureza, a índia marim lamenta a
corrupção ideológica. Em todos os casos, o antilusitanismo demonstra uma resistência
ao processo colonial e a dificuldade em eliminar seus vestígios mesmo diante da nova
conjuntura.19
Em certo momento, Itaé proclama o rompimento dos males provocados pela presença
colonial portuguesa, como a destruição da vida tribal dos seus pares. Um ímpeto sentimento de
resistência toma conta da revoltada Itaé, mesmo que somente em rompante pensamento. Em
meio aos seus lamentos, pode-se ouvir a voz de Itaé clamar por justiça em um tempo em que
“não soa o bosque o nosso hino”, quando então a guerreira sugere a confederação de várias
tribos contra o usurpador colonizador:
A Tupã graças mil! A terra é nossa,
Crescei filhinhos, nossa terra é livre.
(...)
Busquemos antes, Caeté valente,
Nessas longes montanhas nossas tribos,
E desçamos com elas a vingar-nos.
Fatal desejo louco de melhoras!
(...)
Que se dantes pescavas, e arriscado
O caititu, e a onça com teus braços
Nervudos escachavas, tão somente
Para ti o fazias; mas agora
Para estranhos em lidas te consomes!
Embora Antonio Candido acredite ser enfadonho traçar um paralelo puro e simples entre
o desenvolvimento da literatura brasileira e a história social do Brasil, “como se os fatos
históricos fossem determinantes dos fatos literários”, o mesmo autor afirma ainda que na
medida em que a criação literária “é um sistema de produtos que são também instrumentos de
comunicação entre os homens, possui tantas ligações com a vida social, que vale a pena estudar
19 COLLA, B., Poesia Lírica na Revista Guanabara, p. 47-48.
149
a correspondência e a interação entre ambas”. 20 Do ângulo político, Candido encara a literatura
brasileira como peça eficiente do processo colonizador:
Levando a questão às últimas consequências, vê-se que no Brasil a literatura foi de tal
modo expressão da cultura do colonizador, e depois do colono europeizado, herdeiro
dos seus valores e candidato à sua posição de domínio, que serviu às vezes
violentamente para impor tais valores, contra as solicitações a princípio poderosas das
culturas primitivas que os cercavam de todos os lados. 21
Vejamos como essa “expressão da cultura do colonizador” e a imposição de seus valores
aos colonizados aparece no poema Itaé na voz de sua protagonista. Após clamar por Potiguar,
sem resposta, Itaé sente sua liberdade e sua independência de outrora se esvair. Um profundo
pessimismo toma conta de sua alma após receber a visita do mensageiro colibri,22 que pressagia
um futuro pouco alentador:
Do outro mundo o colibri mensageiro
Junto a mim revoou neste esconderijo,
Saudoso gemendo a tarde inteira.
Vá de mim longe o seu funesto agouro.
Sentindo-se em um “esconderijo” em seu próprio mundo, Itaé verte lágrimas de sangue
e não quer acreditar no futuro pressagiado pelo pássaro mensageiro à sua tribo. A guerreira sabe
que se for ao encontro de seu amor, não voltará mais e, enfaticamente, lança um desafio a
Potiguar:
Amor! És livre lá? Vem, vem buscar-me;
Serei livre ao teu lado, e bem-ditosa;
Ainda que em duro cativeiro eu gema.
Itaé sente-se prisioneira em seu próprio mundo e sabe que só encontrará sua felicidade
ao lado de Potiguar. Em seu dilema, sabe também que se for ao encontro de seu amor e
atravessar a tênue fronteira que os separa, perderá por completo os últimos rastilhos de
liberdade e de vida independente que ainda lhe resta:
Livre ainda aqui sou; mas...desastrada!
Sem o meu Potiguar, por quem esta alma
Se lacera em cuidados e martírios.
20 CANDIDO, A., Literatura de dois gumes, p.1. 21 CANDIDO, A., Literatura de dois gumes, p.1. 22 Para o autor do poema, os indígenas acreditavam que o Colibri era o mensageiro de notícias do outro mundo.
150
Livre eu digo? Oh! Que não! Como assim livre?
Onde existes eu sei, almejo ir ver-te.
E contigo gemer; esta saudade
(...)
Sepulcro meu, de minhas esperanças,
Sem mais resistir, Itaé prepara seus pertences e com esmero, tece dois cestos de timbó,
enchendo-os com baunilha e mel para o seu amado, além de presentes aos forasteiros. Sentindo-
se tal qual “uma rolinha perdida no deserto”, a guerreira caminha em direção a Potiguar e à
sociedade não índia, onde o encontraria e por fim, ao lado de seu amor, etnicamente morreria.
Morreu a luz, o pássaro calou-se;
E Itaé já tornada ao seu recosto,
De vez em quando suspirando manso
Potiguar! Potiguar! Adormecia.
Itaé: Idílio Americano foi produzido no ano de 1845 e apresenta forte correspondência
e interação com a vida política e social que circundava seu autor Antonio Joaquim de Melo e
os demais letrados contemporâneos a ele. Fora escrito no período pós-independência, momento
em que a discussão em torno da nacionalidade brasileira e sua heterogeneidade étnica aquecia
o debate em diferentes agremiações de intelectuais, como entre os colaboradores da Revista
Guanabara, onde o poema foi publicado em 1850. No entanto, mesmo que o movimento
literário romântico apresente pontos que o agremie, na voz de seus séquitos, tornou-se um
movimento politicamente repleto de singularidades.
Oportunamente, podemos traçar alguns paralelos entre o indianismo de Joaquim de
Mello e de Gonçalves Dias. As criações literárias de ambos estão relacionadas ao contexto
social e político brasileiro em que se discutia os rumos da nacionalidade do país recém-
independente. Recheados de teor romântico e nacionalista, ambos denunciam a brutalidade do
sistema colonial aos nativos americanos, assim como, por caminhos diversos, discutem o grau
de participação do indígena na constituição étnica da nova nação, debate que ganhava holofotes
entre a intelectualidade oitocentista. No entanto, as similaridades param por aí.
Em seu indianismo, Gonçalves Dias não somente denuncia as práticas de extermínio do
indígena americano. O maranhense canta a morte física e étnica do índio e abandona qualquer
pretensão de criar uma literatura que dê relevo a uma sociedade brasileira socialmente
harmônica, aberta e desejosa pela inclusão do indígena em seu meio social, como faz o criador
de Itaé. Lembremos da ácida crítica pós-colonial de Meditação em que realiza duras críticas à
151
condução política da sociedade brasileira que se configurava no seu pós-independência, agora,
nas mãos dos herdeiros dos colonizadores portugueses, desejosos pela manutenção da desigual
estrutura de poder classista de outrora.
Contrariamente, em Itaé, Joaquim de Melo vislumbra uma nação teleologicamente
branca e herdeira da colonização portuguesa que, pacificamente, integraria e dissolveria seus
nativos em meio à nação enquanto trabalhadores nacionais. Em tom de denúncia, o autor
apresenta as profundas tensões e o processo de desorganização da vida indígena decorrentes da
presença do elemento “alienígena” à cultura tribal e ao recrutamento dos índios para o trabalho.
Finaliza com a naturalização da aceitação de Itaé a um regime de trabalho em condições servis,
pois, como vimos, à entrega de Potiguar, sucedeu-se a de Itaé. A integração é tida como pacífica,
sem lutas ou resistências, salvo a resistência emocional da protagonista do poema. Em seu
conflito, Itaé tinha ciência que ao se integrar e deixar os seus, exerceria o mesmo papel social
que Potiguar, a de trabalhadora nacional:
Te serei na derruba, se me outorgas
Exercer o machado por seu turno.
Como tu, rude filha destas brenhas
Bem o sabes, sou lesta e vigor tenho.
Na pena de Joaquim de Melo, Potiguar, o índio cooptado para o corte do pau-brasil,
tornou-se representativo da integração pacífica do nativo que não mais voltaria ao seu habitat
de outrora. Nem mesmo os incessantes e inglórios apelos de sua amada Itaé demovem o índio
conciliado com o colonizador. Finalmente cooptada para o mundo do amado, simbolicamente,
ambos atravessam, sem volta, as “fronteiras culturais”. Tornam-se entes que somente existem,
ainda, na memória de seus pares étnicos Aônio e Frondélio. Assim, nas entrelinhas do poema,
o autor recheia seu enredo com um forte apelo civilizatório e redentor aos índios em estado de
selvageria. Afinal, o que restaria aos interlocutores do poema a não ser se guiarem rumo à
liberdade dos novos tempos?
Como já vimos, o indianismo não pode ser conceituado como um movimento literário
e cultural descolado do momento político pós-independência. Longe de apresentar uma
sociedade harmônica e resolvida diante de sua diversidade étnica, o indianismo também se
tornara palco, teatro de batalha de uma discussão maior que pretendia definir o lugar que caberia
ao índio na nação brasileira que se definia. Refletia, ainda, o posicionamento político/ideológico
dos literatos que participavam de um debate maior que englobava políticos, historiadores e
intelectuais que, direta ou indiretamente interferiram nos rumos da política indigenista oficial,
152
como a que fora promulgada no ano de 1845. Certamente, com Itaé, Antonio Joaquim de Melo
apresenta sua concepção indigenista condicionada e modulada segundo os interesses agrário-
expansionistas daquele momento e, assim, rompe com a já tênue linha barbárie/civilização, com
a vitória da segunda em detrimento da primeira. O ceticismo de Frondélio e Aônio com o seu
futuro denota que as fronteiras étnicas estavam desaparecendo e que sua tribo encontrava-se
cada vez mais próxima dos colonizadores, pois já podiam ouvi-los.
“Lá da cidade barulhosa cantam”
Joaquim de Melo apresenta um movimento de expansão territorial no qual a sociedade
colonial, com destino à nacional, vai destruindo o espaço das comunidades indígenas e
construindo o seu próprio, de modo acelerado. Neste movimento, enquanto Itaé mantinha-se,
ainda, sentimentalmente ligada a seu território tradicional e às relações sociais que estabelecia
neste espaço com os seus pares, Potiguar é representativo do índio aliado e que já se desprendeu
de sua unidade social. Enquanto Itaé lamenta a corrupção de seu território sagrado, Potiguar
caminha em outra direção. Se alia aos valores do colonizador que transforma esse espaço e suas
árvores em mercadoria. Como vemos, a figura de Potiguar representa a figura ideológica de seu
mentor intelectual que descreve e representa um indígena redimível, ou seja, aquele que vai
para não mais voltar, mesmo diante do clamor da amada, que cede ao destino do amado e não
mais retorna ao seus.
Por último, sobre os narradores da estória de amor, Aônio e Frondélio, o que sabemos?
Enquanto Itaé e Potiguar são representativos do índio pretérito, não contemporâneo e que só
existe ainda na memória dos seus, logo, o índio morto, Aônio e Frondélio são representativos
do índio que caminha no sentido do seu renascimento, representado pela integração à “nova”
sociedade que se desenhava e ao seu seio. Matizados enquanto “sobreviventes” da colônia, os
agora fósseis vivos do Império exprimem a ideologia dominante da elite intelectual do país de
eliminar as desigualdades raciais em nome da pretensa uniformidade étnica de sua população,
afinal, de onde estavam, já podiam ouvir a barulhosa cidade que afrontava o seu território.
Certamente, ambos tinham ciência do destino que os aguardava.
3.3. Aricó e Caocochee: uma voz no deserto e seu contexto histórico.
Gestado a partir dos debates e práticas indigenistas que se travavam em meados do
século XIX, o romance histórico Aricó e Caocochee. Uma voz no deserto, fora dedicado por
153
seu autor João Henrique Elliott a João da Silva Machado, mais conhecido, a partir de 1843,
como Barão de Antonina.23 Redigido no ano de 1844 e publicado pela primeira vez na Revista
Guanabara em 1851, o romance indianista fora ambientado na região sul do Brasil, mais
precisamente no território dos atuais estados do Paraná e Santa Catarina. A narrativa do
romance apresenta como pano de fundo o conflituoso contexto de expansão colonial sobre as
imemoriais terras indígenas dos Campos de Palmas nas décadas de 1830 e 1840. Conforme
Barbosa, além da crítica e da denúncia às violências que os colonizadores empregavam contra
os indígenas desta região, o pequeno livro de Elliott, “que conjuga a ficção com os dados
históricos”, revela que o “explorador norte-americano” possuía “certa empatia e sensibilidade
em relação aos índios e à calorosa questão indígena que alimentou muita discussão durante todo
o Segundo Reinado”. 24
Embora o romance de Elliott tome por ambiente um espaço geográfico específico, o
enredo de Aricó e Caocochee é representativo de um cenário histórico maior e, certamente, se
enquadra no contexto oitocentista de acelerado e agressivo avanço populacional sobre novas
regiões – onde grupos indígenas ainda se mantinham de forma independente – para a formação
de novos núcleos coloniais e agrícolas. Assim, mesmo que a denúncia do romance histórico se
restrinja ao espaço geográfico do sul do Brasil, seu autor, um sertanista norte-americano a
serviço de projetos indigenistas, demonstra, em sua obra, grande conhecimento e sensibilidade
sobre a “questão indígena” brasileira de seu próprio século.
Aliando ficção e realidade, Elliott narra a estória de amor entre os indígenas coroados –
atualmente denominados Kaingang – Aricó e Caocochee. Esse amor tem como cenário o real
enfrentamento entre distintas “civilizações” na região dos Campos de Palmas – região situada
a sudoeste de Guarapuava, no limite oeste dos atuais estados do Paraná e Santa Catarina, em
meados do século XIX. Neste momento, essa região tornou-se palco de fortes tensões e conflitos
entre novos colonizadores e indígenas. Antes de introduzir seu romance histórico, Elliott
apresenta o contexto histórico, geográfico e político dessa região que serviu como pano de
fundo ao seu romance. Assim, demonstra ser grande conhecedor dos motivos que
23 Foi neste ano que, através do decreto n.11.9, João da Silva Machado (1782-1875), natural de Taquari (RS), foi
agraciado com o título imperial de Barão de Antonina. O futuro Barão começou a trabalhar muito cedo como
condutor de gado entre o Rio Grande do Sul e a cidade de Sorocaba e dedicou boa parte de sua vida à exploração
e à abertura de novas vias comerciais e de criação. Conforme Barbosa, não se sabe ao certo quando Silva Machado
se dirigiu para os Campos Gerais de Curitiba, na época comarca de São Paulo. Nesta região fez fortuna e assumiu
cargos políticos e militares como deputado (1835-1843) e comandante de uma seção da Guarda Nacional da
comarca de Curitiba. Nas décadas de 1840 e 1850 se engaja no projeto de abertura de uma nova rota de ligação
entre o litoral atlântico e o Rio Paraguai através do Vale do Paranapanema, quando funda colônias militares e
indígenas ao longo deste trajeto. BARBOSA, P.A., La Tierra sin mal, p. 46-49. 24 BARBOSA, P. A., A “terra sem mal” de Curt Nimuendajú (...), p.148.
154
desencadearam uma verdadeira chacina de indígenas neste local no ano de 1843. Conforme
informa Elliott na introdução de seu romance, para que o leitor compreenda “os sinistros
acontecimentos que vou narrar” e para que o romance “seja mais suficientemente entendido, é
necessário dar ao leitor uma sucinta descrição dos campos de Palmas”.25
Antes de introduzir este contexto histórico narrado por Elliott, ateremo-nos brevemente
à trajetória de vida de seu autor, o sertanista norte-americano com intenções de romântico
literário que, em suas expedições aos sertões do Brasil, esteve articulado, até onde sabemos, a
“projetos políticos mais amplos, especialmente aos planos de intercomunicação do território
nacional, aos sonhos de incremento da navegação fluvial e à problemática premente de
colonização e catequese dos índios que, somados, efetivariam a ocupação das regiões do
interior” do território brasileiro. 26
Sob a chefia e orientação imediata de João da Silva Machado, o Barão de Antonina, o
norte-americano João Henrique Elliot compôs a comitiva que estava sendo dirigida pelo
sertanista mineiro Joaquim Francisco Lopes.27 Juntos, “percorreram os rios Verde, Tibagi e
Paranapanema, na então província de São Paulo, navegaram trechos do ‘Grande Paraná’, e
através de seus afluentes da margem direita, Ivinhema, Iguatemi, Brilhante e Dourados,
penetraram na região sul do Mato Grosso”.28 Nas diversas expedições realizadas entre os anos
de 1844 a 1858, além de estabelecer a comunicação fluvial entre as comarcas de Curitiba e
Cuiabá, interligando as grandes bacias dos rios Paraná e Paraguai, os sertanistas também:
(...) entraram em contato com as populações indígenas que dominavam esses
“territórios desconhecidos”; mantiveram tratados de amizade com as lideranças
guarani existentes no sul do Mato Grosso e puderam, posteriormente, deslocar
parcelas dessas tribos para os aldeamentos indígenas criados na época. Finalmente,
em diversos pontos da rota fluvial Curitiba-Cuiabá, sobretudo nas regiões de campos
e pastos, marcaram imensas posses territoriais para seu mandatário, um pouco antes
da efetivação da lei de terras de 1850. 29
É no mínimo curioso e instigante imaginar as reais motivações que levariam um jovem
norte-americano a aventurar-se nos sertões brasileiros – cooptado pelo interesse maior de um
25 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p.158. 26 WISSENBACH, M. C. C., Desbravamento e catequese (...), p.139. 27 Mineiro da região do triângulo, Joaquim Francisco Lopes (1805-1884) foi na década de 1830 um dos primeiros
sertanistas a percorrer e abrir novos caminho na região centro-sul de Mato Grosso. Oriundo de família de
sertanistas, migrou ainda jovem para a cidade de Franca onde manter-se-á ligado a atividades de abertura de novas
estradas e caminhos dos sertões e de pacificação de indígenas aos governos da província do Mato Grosso e Paraná.
Além de contribuir à fundação da colônia militar de Jataí e do aldeamento indígena São Pedro de Alcântara,
administrou o aldeamento de São Jerônimo entre os anos de 1860 e 1867. 28 WISSENBACH, M. C. C., Desbravamento e catequese (...), p.137-138. 29 WISSENBACH, M. C. C., Desbravamento e catequese (...), p.138.
155
Barão posseiro que procurava se projetar política e economicamente na ordem imperial – e
posteriormente, traduzir sua experiência de sertanista, quer seja em relatos de viagem,
publicados na Revista do IHGB, quer seja em forma de romance indianista, como Aricó e
Caocochee. Como afirma Wissenbach:
(...) não se sabe com exatidão os motivos de sua conversão aos empreendimentos do
interior brasileiro. Segundo narrou numa conversa que teve com o engenheiro inglês
Bigg-Wither, na década de 1870, foi motivado por simples curiosidade, “para dar uma
olhada no que havia por detrás da grande cordilheira marítima do sul do país”, que
avistava a bordo de seu navio. Estabelecendo-se em Curitiba por volta de 1840, foi
arregimentado pelo Barão de Antonina provavelmente por suas habilidades nos
aparelhos de viagem e de navegação, tornando-se o principal anotador das expedições,
em mapas, relatos e aquarelas. 30
Semelhante compreensão fora destacada por Pablo Antunha Barbosa. Segundo o
antropólogo, as múltiplas habilidades técnicas de Elliott, como de desenhista de mapas e
aquarelas, conhecimentos cartográficos e habilidades literárias, eram de grande importância aos
projetos de colonização do Barão de Antonina e promoveram a aproximação entre ambos.
Como afirma, “a diferencia de Joaquim Francisco Lopes, Elliott era un hombre erudito y
letrado. Él será el encargado de llevar los diarios de las expediciones dirigidas por el barón de
Antonina, redactar los informes, pintar acuarelas y realizar los mapas”. Além do mais, em Aricó
e Caocochee, Elliott havia criticado publicamente as ações violentas de Siqueira Cortez durante
o processo de colonização da região dos campos de Palmas. Assim, demonstra compartilhar a
mesma opinião que o Barão sobre a candente “questão indígena”, que deveria ser estabelecida
através de uma política de catequese e civilização supostamente pacífica, branda, logo,
filantrópica e com a participação efetiva dos indígenas. 31
A defesa da filantropia no processo de catequese e civilização dos indígenas está
estampada na introdução de seu romance. Neste momento o autor desenha um panorama
político e histórico à região dos Campos de Palmas de meados do século XIX e se posiciona de
forma crítica à chacina de índios que aconteceu no ano de 1843 a mando do capitão Pedro de
Siqueira Cortez.32 No entanto, como podemos inferir na citação a seguir, não é sua vocação
humanitária que fala mais alto, mas sua experiência de sertanista conhecedor das “mazelas”
necessárias no “trato” com os indígenas ao futuro da nação:
30 WISSENBACH, M. C. C., Desbravamento e catequese (...), p.141. 31 BARBOSA, P. A., La tierra sin mal, p. 44-45. 32 Bandeirante curitibano que em fins da década de 1830 buscava se apossar de vasta região dos Campos de Palmas,
sertão habitado pelos temidos Kaingang. Em 1840 a contenda territorial na região dos Campos entre Joaquim
Ferreira dos Santos e Pedro Siqueira Cortez foi arbitrada por “juízes” de Curitiba que decidiram pela seguinte
divisão: as terras de Siqueira Cortez ficaram a oeste do rio Caldeiras e as de Ferreira dos Santos a leste.
156
Deixando essas ações anti-filantrópicas confundidas com seus indignos autores, direi
somente, que o tempo mostrará se este repreensível procedimento trará alguma
ventura para a localidade, onde tão cruéis , como escandalosos assassinatos foram
cometidos, ou se, pelo contrário, aquele espírito de vingança, tão natural à esta gente,
não os impelirá um dia a perpetrarem atos que comprometam seriamente a sua
tranquilidade e dos moradores de Palmas; e privar o país, por muitos anos, de gozar
daquelas vantagens que a beleza de seu clima, a fertilidade de seu terreno e sua posição
geográfica dava-lhe todo o direito de esperar. 33
Além de sua posição crítica aos métodos hostis de “civilização” indígena, a proposição
de Elliott também revela sua filiação literária romântica, como quando descreve a geografia
local. Aliás, a paisagem do espaço natural e a “exuberância” da região dos Campos Gerais não
passam despercebidas pela “lente” do sertanista acostumado aos recônditos e inóspitos sertões
do território brasileiro. Ao descrever a região, apresenta-a como de magníficas florestas e
pitorescas campinas vantajosamente posicionados entre dois grandes rios, o Iguaçu e o Uruguai,
que “oferecem por todos os lados uma perspectiva continuadamente variada, e sempre
interessante”. Com esmero e detalhes cartográficos, apresenta a riqueza de suas planícies e os
contrastes da paisagem natural que a circunda; detalhes e variações que não escapam ao olhar
de um experiente e hábil sertanista e “romântico” literário.
Na introdução de Aricó e Caocochee, além de apresentar o cenário geográfico que
ambienta seu romance histórico – a região dos Campos de Palmas – Elliott apresenta também
os indígenas que aí habitavam quando os primeiros colonizadores se estabeleceram nesta
região. Em meio às descrições geográficas e étnicas, denuncia e apresenta sua versão sobre os
motivos que desencadearam a chacina de um agrupamento indígena nesta região no ano de
1843. Vejamos sua versão, complementando-a com informações adicionais que amplifiquem o
seu entendimento.
Quando os primeiros povoadores se estabeleceram nestes campos, os únicos indígenas
que os habitavam, eram os da Tribo de Condá, e estes pelo zelo, e perseverança do
capitão Hermógenes Carneiro Lobo Ferreira, primeiro comandante da nascente
povoação, foram, em pouco tempo, reduzidos e aldeados perto do abarracamento dos
permanentes, formando-se por semelhante maneira, com esta gente, um forte baluarte
contra agressões dos índios bravos (no caso que tentassem estes qualquer hostilidade)
os quais então habitavam, em grande número, o lado meridional do Goioen (Rio
Uruguai). 34
Os indígenas da tribo de Condá a que Elliott faz referência, na época eram conhecidos
como Coroados (hoje, Kaingang). Na região descrita, os fazendeiros, em grande parte oriundos
de Guarapuava, procuravam novas pastagens ao sul do rio Iguaçu, voltando sua atenção para
33 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p. 160. 34 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p. 158.
157
esses Campos, refúgio dos Coroados. Conforme Mota, “os brancos estavam dispostos a ocupar
novas extensões de terra”, mesmo diante dos perigos nos territórios. Com a fundação do
povoado de Palmas, inicia-se “o processo de ocupação das pastagens e o surgimento das
fazendas de gado”. Estrategicamente, “firmam-se acordos com alguns grupos Kaingang
aldeados na região, convertendo-os e pondo-os a serviço da sociedade envolvente”. 35 Entre
esses grupos, encontram-se os liderados pelos afamados caciques Vitorino Condá e Viri. No
entanto, muitos outros grupos resistem e passam a fazer frente e representar uma forte ameaça
à ocupação de seu território. Sobre os índios aliados e sua participação no processo de ocupação
territorial pelos colonos nos Campos de Palmas, assim se manifesta Mota:
Graças aos índios convertidos, os brancos tomavam conhecimento dos territórios
ocupados pelos Kaingang resistentes. Pouco a pouco seus refúgios, seus campos de
caça e de coleta de pinhões foram sendo revelados e ocupados. Progressivamente seus
espaços diminuíam, assim como suas possibilidades de viver. Daí sua reação violenta,
principalmente contra os grupos indígenas que tinham outras estratégias de
sobrevivência diante do avanço da frente pastoril nos interflúvios dos rios Iguaçu e
Uruguai.36
Em 1841, o capitão Hermógenes pede demissão de seu cargo, sendo indicado para
sucedê-lo o capitão Pedro de Siqueira Cortez. Embora soubesse da necessidade de manter os
coroados como aliados, a animosidade entre o novo capitão e o cacique Condá não tarda a
surgir. Conforme informa Souza e Bernaski, no ano de 1843, Vitorino Condá e seu povo deixam
os campos de Palmas, deslocando-se para os Campos do Chopim, a oito léguas de Palmas. Para
os autores, além do crescimento de novas frentes de expansão colonial sobre as terras dos índios
e do não alinhamento com o novo comandante do povoado, a ascensão do cacique Viri nos
Campos de Palmas explicam essa retirada do cacique Vitorino Condá desta região. 37
Como vemos, a história das relações interétnicas nos Campos de Palmas não se reduz à
polaridade índios x brancos. Certamente, havia um contexto maior de enfrentamentos entre
índios e fazendeiros gerado pela ocupação dos Campos. No entanto, atendendo aos objetivos
mais imediatos de cada agente em particular, este cenário alimentou alianças e rivalidades nem
sempre imediatamente compreensíveis. Condá, era aliado do capitão Hermógenes Carneiro e
inimigo de Siqueira Cortez, logo, Condá e Viri encontravam-se em lados opostos, embora
ambos fossem agentes na luta pela sobrevivência étnica de seus grupos.
35 MOTA, L.T., A guerra dos índios Kaingang, p. 163-165. 36 MOTA, L.T., A guerra dos índios Kaingang, p. 166. 37 SOUZA, A. A. de; BERNASKI, J., O capitão comandante dos índios, p. 101-102.
158
Em sua obra As guerras dos Índios Kaingang, Lúcio Tadeu Mota nos apresenta alguns
relatos que podem, em parte, explicar a rivalidade entre o cacique Condá e Siqueira Cortez.
Como afirma, “muitas histórias foram contadas pelos primeiros habitantes de Palmas sobre o
cacique Vitorino Condá”. O autor lembra o relato de Arthur M. Franco sobre o ataque sofrido
pela comitiva de Siqueira Cortez na estrada para o Rio Grande do Sul pelo cacique. Após uma
luta violenta que teve como resultado uma coronhada na testa do chefe indígena, “Condá jurou
vingar-se do branco que o marcara”. Em represália, Cortez organiza uma expedição ao
alojamento de Condá e mata sua mãe.38 Talvez, estrategicamente, Vitorino Condá tenha se
aproximado de Hermógenes para combater seu inimigo ou tenha perdido seus parentes no
massacre de 1843, mesmo ano em que se retira dos Campos de Palmas com destino aos Campos
do Chopim.
Para Elliott, o deslocamento de Condá está associado “por sentimentos de gratidão e
amizade ao seu primeiro benfeitor”, o capitão Hermógenes, o que o fez acompanhar para sua
fazenda do Chopim.39 O sertanista afirma que no mesmo ano de 1843, Hermógenes solicita
ajuda de Condá para resgatar algumas crianças portuguesas que estariam sequestradas e em
poder dos índios bravos de Goioen, região situada no sul dos campos de Palmas, próximo ao
rio Uruguai, hoje em território catarinense. Com a ajuda de alguns presentes, Hermógenes
acredita ser fácil tal empreitada e envia “Condá com alguns mais da sua tribo, carregados dos
objetos mais apreciados pelos indígenas para a remissão dos presos”.40 Em seu texto, Souza e
Bernaski confirmam o pedido de Hermógenes a Condá, mas afirmam que a empreitada seria
para resgatar o tropeiro e capitão José de Sá Soutto-Maior que, no ano de 1832, teve sua
comitiva atacada e destruída e, possivelmente, encontrava-se cativo dos índios durante todos
esses anos. 41
Fato é que, como informa Elliott, “Condá cumpriu satisfatoriamente sua espinhosa
missão, trazendo consigo, além de várias crianças brasileiras de ambos os sexos, duas tribos de
índios com suas mulheres e crianças que tinham deliberado deixar a vida errante e aldear-se
juntamente com os mais”, nos campos de Palmas. 42 Semelhante informação fora apresentada
por Souza e Bernaski, que afirmam que Vitorino Condá desempenhou parte de sua comissão,
38 MOTA, L.T., A guerra dos índios Kaingang, p. 250-251. 39 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p. 158. 40 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p.158-159. 41 SOUZA, A. A. de; BERNASKI, J., O capitão comandante dos índios, p.102. 42 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p.159.
159
trazendo para os Campos de Palmas sete crianças brancas que estavam em poder dos índios e
ainda, uma comitiva de índios dispostos a habitar próximo ao povoamento. 43
Em sua narrativa, Elliot descreve com detalhes os motivos que desencadearam a chacina
dos indígenas cooptados por Condá aos Campos de Palmas. Segundo o sertanista, a boa
recepção “foi curta”:
Os índios foram apresentados ao novo comandante, que os recebeu com agrado, distribuindo
por entre eles ferramentas, fazendas, etc., mas como eram numerosos, e muitos deles não se
acostumavam com os novos víveres, e passadio, pediram licença para caçar nos matos
vizinhos, o qual lhes foi prontamente concedida pelo comandante. Até aqui tudo concorria
para que se esperasse bom resultado da aliança com os índios, que já reduzidos, e em
harmonia com os moradores, franqueavam os campos de Goioen, e davam lugar a novas
explorações, e descobertas neste rio. A humanidade ficou satisfeita e o filantropo
contemplava com prazer o lisonjeiro quadro que o futuro apresentava. Mas quanto foi curta
a sua admiração! O interesse, o sórdido interesse, aquele grande móvel de todas as ações
humanas, abriu uma nova boceta de Pandora sobre esta nascente povoação! Ateou-se o facho
da discórdia. 44
O texto de Elliott permite que vislumbremos o desenvolvimento de contra estratégias
indígenas que objetivavam criar espaços de sobrevivência étnica no interior da nova ordem
cultural, social e colonial a que estavam submetidos, como quando afirma que os índios “já
reduzidos”, pedem licença para caçar nos matos vizinhos. Mais “livres” nas florestas e longe
do olhar disciplinador do aldeamento, certamente poderiam desenvolver formas de
independência mais dignas e humanas frente à nova estrutura de poder a que estavam
subjugados no acampamento.
Nas florestas dos campos, alojados nas sombras e nos espaços pouco “iluminados” e por
isso mesmo não tão sujeitos a qualquer ação extirpatória do aldeamento, começam a surgir
boatos de que “(...) os indígenas premeditavam um ataque contra a povoação”. Estes boatos
levam o comandante Siqueira Cortez a solicitar auxílio de uma força armada para organizar
uma escolta “sob o pretexto de ir ao mato buscar os índios que se entretinham em suas inocentes
caçadas, e os conduzir para a povoação”. Elliott afirma que Cortez, em sua “fixa intenção” de
assassinar os indígenas, entregou essa missão para um “ignorante e brutal fanático conhecido
por sua ferocidade”, não sendo necessário “ser profeta para antecipar as consequências e prever
o desastroso futuro que estava iminente”.45 Chegada a escolta ao lugar onde estavam os índios
abarracados, lhes foi intimada a ordem do comandante para retornarem à povoação.
43 SOUZA, A. A. de; BERNASKI, J., O capitão comandante dos índios, p.102. 44 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p.159. 45 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p.159.
160
Os selvagens obedeceram submissamente, nunca suspeitando a infernal trama, que
estava contra eles urdida. Marcharam, pois, seguindo a escolta, e no segundo dia de
viagem, na saída de uma pequena campina (tendo sido já de antemão concertado o
plano de massacre), por um sinal dado, os índios foram de súbito acometidos, e
ferozmente assassinados, sem que até então tivessem dado indício algum da mais
pequena insubordinação. Uma segunda escolta foi então mandada em busca de
algumas famílias que andavam dispersas do grosso da indiada, e, como era de esperar,
a mesma tragédia foi repetida, e as mesmas atrocidades perpetradas. 46
Depois do feito, “as mulheres e crianças que tinham escapado da carnificina foram
conduzidas, como em triunfo, para a povoação; as chinas, e alguns de seus filhos ainda
pequenos, entregues aos índios aldeados, e os mais vendidos, como escravos, àqueles que mais
ofereceram”.47 Como nos informa Souza e Bernaski, em retaliação à chacina, os índios atacaram
o povoado de Palmas e mataram três pessoas. Os boatos de que os guerreiros coroados
preparavam nova invasão provocou o abandono de muitas fazendas. Para conter os ânimos,
além de criar uma Subdelegacia de Polícia, o governo da província de São Paulo demitiu Pedro
de Siqueira Cortez e nomeou novamente Hermógenes Carneiro como comandante dos
Permanentes e o coroado Vitorino Condá como comandante dos Índios. Nos anos seguintes,
Condá e seu séquito foram se estabelecer definitivamente nas proximidades do Rio Chapecó,
nos campos e campinas do Irani, morrendo no ano de 1870 aos 65 anos.48
Esta é a região e o cenário histórico em que João Henrique Elliott se inspirou para
ambientar seu romance histórico Aricó e Caocochee, publicado na revista Guanabara no ano
de 1851. Em seu romance, além de encontrarmos o pragmático sertanista que queria estabelecer
uma política pacífica de catequese e civilização dos povos indígenas, encontramos também o
historiador e romântico indianista crente em uma nação brasileira constituída a partir da efetiva
participação de seus indígenas. Sem mais delongas, na próxima seção atentaremo-nos ao
romance histórico de Elliott.
3.4. Aricó e Caocochee: uma voz no deserto e sua moral civilizatória.
Tanto quanto se “sobressai a açucena sobre as demais flores”, a jovem e bela Aricó,
filha do cacique coroado Nonohai, distinguia-se entre as demais de sua tribo, assim como, entre
todos os “mancebos intrépidos e assinalados pela sua destreza no arco, coragem na guerra, e
perícia nas caçadas”, o mais insigne era o jovem Caocochee.
46 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p.159-160. 47 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p.160. 48 SOUZA, A. A. de; BERNASKI, J., O capitão comandante dos índios, p.103.
161
Estes dois jovens selvagens amavam-se reciprocamente; o amor tanto nos desertos,
como nas cidades, mostrava-se por mil pequenas circunstância e atenções; e por isso,
quando Caocochee triunfava no feroz ming (onça) matando-o, a sua pintada pele era
destinada e oferecida para a cama de sua amante, e quando com suas felpudas flechas
matava o gigantesco Inhoron (anta) os seus melhores pedaços eram reservados para o
cesto de Aricó: esta, pela sua parte ajuntava frutas, preparava o mel, e guardava para
seu amante em pintadas cuias as odoríficas águas de botiá (palmito). 49
O jovem e apaixonado casal era habitante das tribos ao sul dos Campos de Palmas, no
lado meridional do Rio Uruguai, região onde, segundo Elliott, “viviam várias tribos de índios
ainda livres e independentes, (...) vivendo no estado de natureza: subsistindo de peixe, caça e
frutas” que o rio e as grande florestas lhes forneciam em abundância. Foi no tempo da safra do
pinhão, entretidos com a coleta e com a caça em meio à floresta, que os dois “filhos da natureza
anoiteceram nas sombrias e magníficas florestas que margeiam o grande rio”. Em meio a uma
noite “calma e serena”, sem que nada perturbasse “o silêncio que reinava neste umbroso bosque,
suspirando”, Caocochee diz a sua amada:
A indizível dificuldade que eu acho em deixar esses lugares, onde descansam os ossos
de meus pais, a ideia de separar-me deste fértil e delicioso vale, rico em frutas e caça,
deste majestoso rio abundante em peixe, de tudo enfim quanto a natureza aos seus
filhos oferece, acabrunha na realidade, contrista o meu coração; mas este encontra
muitos maiores sacrifícios em apartar-te de ti, oh! Amada e agradável Aricó. 50
Desfeita em lágrimas e sem nada entender, Aricó pergunta ao seu amado interlocutor:
“E para que vós haveis de apartar de mim, por ventura tenho perdido de vosso amor tanto que
vos aborreça a minha presença? ”. Negativamente, o jovem Caocochee afirma amar Aricó cada
dia mais e lhe explica que seu tio, “o temível Condá”, que vive em paz com os brancos nos
Campos de Palmas, mandado por estes, veio contratar uma aliança com as tribos do sul dos
Campos e que no prazo de um mês ele voltaria e levaria aos seus consigo. Lamentosamente
afirma: “vossa gente talvez não o queira acompanhar, consequentemente não consentirão que
vás comigo”. Após trocarem juras de amor eterno, o jovem casal dirige “seus passos pela
margem do rio com destino às suas cabanas”.51
Sob as ordens de seu comandante Hermógenes Carneiro, Vitorino Condá, o coroado
aliado dos brancos, viria para cooptar seus irmãos de mata a se aldearem em alojamentos nas
imediações da vila de Palmas, próximo à vila dos Permanentes, limpando assim a região dos
Campos da presença indígena e facilitando seu processo de colonização. Uma das instruções
49 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p.161. 50 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p.161. 51 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p.162.
162
dadas pelo capitão Hermógenes ao líder indígena era a de apresentar as benesses materiais e as
facilidades alimentares que o deslocamento e a sedentarização no local determinado traria aos
povos coroados. Para tanto, as diversas tribos que habitavam a mata da região dos Campos
fariam no alojamento de Nonohai um grande conselho ou assembleia onde deliberariam acerca
das medidas propostas por Condá, o aliado dos brancos.
No dia marcado, “tudo era confusão e rumor no alojamento” onde se preparava o grande
conselho regado a muita comida e dança. Gradualmente, numerosas comitivas de índios
lideradas por seus guerreiros chegavam ao seu destino, sendo o último a chegar o cacique
Yopaia, cujo alojamento existe nas serras do sul. “Inimigo dos brancos e terror dos viajantes
que transitam pela estrada de Missões: a sua gente mais numerosa que as areias da praia, era
mais feroz do que os tigres, que quando entra o gelado inverno, descem das montanhas e
devastam os campos de Curramburg”. Após a chegada de todos e, devidamente conduzidos aos
alojamentos, formam todos um grande círculo, onde um abundante banquete foi servido. Findo
o rito inicial, os caciques, anciões e guerreiros retiram-se, vestiram os “pintados Curús, tingiram
os corpos e cingindo as cabeças com capacetes de plumas, foram reunir-se no lugar destinado
para o trabalho”. 52
“Condá e seus companheiros traziam os cabelos compridos; e estando meio vestidos,
segundo o costume dos brancos, contrastavam com os mais”. Inicialmente, em uma atitude
aliciadora, Condá mostra os presentes que o comandante Hermógenes mandara entregar aos
coroados. Entre eles, encontravam-se ferramentas e facas para os homens e fazendas, lenços e
miçangas para as mulheres. Após a devida apresentação dos objetos, toma a palavra e seguindo
as instruções do capitão Hermógenes, discursa e procura convencer os coroados de envolverem-
se nos projetos do Capitão: “os moradores de Curramburg positivamente me enviam para
solicitar um tratado de interesse e aliança com as tribos de Goioen, e para provarem sua
sinceridade, mandam-vos estes presentes”. Após relembrar aos irmãos coroados as dificuldades
que enfrentavam em meio à floresta, Condá procurou mostrar-lhes “a abundância que reinava
nas habitações dos brancos” como “os campos cobertos de criações, os paióis recheados de
mantimentos, sem que nunca sofram fome (...)”. Por último, conclama “a união entre os filhos
da floresta e habitantes do campo” e convida a todos para acompanhá-lo para a vila de Palmas,
“onde receberão mais presentes” e onde o grande chefe garantiria a segurança de todos.53
52 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p. 162-163. 53 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p. 163-164.
163
Após o discurso de Condá, entre sinais de aprovação de alguns chefes guerreiros e um
profundo silêncio dos velhos, eis que o chefe Yopaia toma a palavra. Afirma não existir “liga
entre o tigre e o veado, entre o gavião e a pomba, entre o lobo e o cordeiro”. Finalmente,
pergunta aos seus se já haviam esquecido os massacres que já sofreram anteriormente,
declarando-se contrário ao convite:
As florestas abundam em caça, o rio em peixe, e os pinheiros todos os anos
prodigalizam-nos os seus saborosos frutos; precisamos por ventura mais do que
necessitavam nossos avós? Essas fazendas serão melhores para cobrir nossas famílias,
do que os Curús tecidos e fabricados pelas suas próprias mãos? Não nos iludamos,
pois, com doces e meigas palavras, com fantásticas promessas: prefiramos os
incômodos e perigos, os riscos e privações; prefiramos enfim a mesma morte a
qualquer aliança e relação com os brancos, que nos querem privar de nossas
liberdades. 54
Em seu último pronunciamento profetiza o agoureiro:
Eles, impacientes, vos esperam para imolar-vos; eu vos antevejo estendidos,
estrangulados e mortos nos campos; observo cadáveres arrastados pelas feras, sem
que mão nenhuma junte os vossos ossos para depositar no sepulcro de vossos
antepassados; vejo as vossas mulheres e filhos conduzidos para o cativeiro. (...) tudo
isso por acreditardes nas promessas desses traidores e sanguinolentos brancos. (...).
Ide, que em breve sereis o alvo das balas, e vos vereis sacrificados no altar da mais
sanguinolenta e terrível carnificina. 55
Elliot afirma que a profecia de Yopaia causou um grande choque entre os coroados que,
em reação, demonstraram forte aversão e horror à proposta de Condá. Foi necessário que este
“esgotasse toda a sua dialética e empregasse todos os meios de persuasão, e lançasse mão de
sua retórica diplomática” para convencer os demais a acompanhá-lo à vila de Palmas. Os maus
presságios do cacique atingiram o coração de Aricó e de Caocochee, que em meio à festa
promovida após o conselho dos índios, “procuravam um lugar solitário e silencioso, e
assentados debaixo de uma árvore de Botiá conversavam em seus amores, e na partida de
Caocochee”. Com o rosto encostado no peito de seu amante, Aricó vertia suas lágrimas e
demonstrava a dor que transpassava seu coração. Indagada pelo jovem apaixonado, Aricó
respondeu não ser sua ausência que a afligia, mas os terríveis prognósticos do agoureiro que
ainda ressoavam em seus ouvidos, fazendo-a temer por uma possível e eterna separação.
Caocochee procura tranquilizar o coração da amante, prometendo que, na companhia de Condá,
em duas luas voltaria para buscá-la, para nunca mais se separarem. 56
54 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p. 164-165. 55 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p. 165. 56 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p. 166-167.
164
Chegou o dia da partida. Tendo que se separar de seu amado, Aricó arranjou uma nova
corda para o arco do jovem guerreiro e arrumou as penas das suas flechas. Na despedida, a
jovem donzela subiu ao alto de uma colina onde pôde acompanhar com os olhos a comprida
fila que atravessava o campo: “(...) procurava a figura de Caocochee que facilmente se
divulgava pela sua alta e engraçada estatura”, até que o perdeu de vista. Passadas mais de duas
luas, sem notícia alguma, o “triste coração de Aricó atormentado de saudades” estava aflito
pelos funestos presságios do agoureiro. “A extremosa índia acordava sobressaltada por estas
visões, e banhada em lágrimas procura em vão a fantástica e fugitiva sombra”.57
Um dia, voltando para sua cabana, Aricó ouviu de longe, na direção do alojamento,
“gritos furiosos e descompassados dos homens e lúgubres prantos das mulheres”. Pressagiando
algum funesto acontecimento, acelerou os passos e avistou os guerreiros preparando suas armas
para a guerra. “Logo observou sentado a um lado, com semblante triste e abatido, o Guerrerão,
que tinha acompanhado Condá para os campos de Curramburg”. Indagado por Aricó sobre o
destino dos demais índios, responde o guerreiro: “ficaram mortos, e estendidos no campo, e só
eu escapei para contar a perfídia, traição e má fé dos malvados brancos, e para excitar as tribos
de Goioen à vingança do sangue dos seus irmãos”. O sobrevivente informa ainda que no
derradeiro momento, Condá havia acompanhado o comandante Hermógenes à grande povoação
e que Caocochee havia ficado atrás do grupo chacinado “derrubando umas pinhas”, sem, no
entanto, saber informar se no derradeiro momento já se encontrava no meio do grupo. As
palavras do sobrevivente encheram o coração de Aricó de esperança e de temor ao imaginar
que seu amado poderia estar ferido, errante e em perigo em algum lugar da floresta.
Atormentada com a imagem agonizante de Caocochee, Aricó resolve procura-lo vivo ou morto,
contando sua deliberação ao seu irmão Coré, que sem conseguir dissuadi-la, resolveu
acompanhá-la nas “extensas e lúgubres montanhas”.58
Com intrepidez, Aricó e seu irmão caminham dia e noite através de densas e perigosas
florestas e enfrentam “a sombria solidão do deserto” e a “canseira da viagem”. Em certo
momento, do alto de um comprido pinheiro, Coré avistou ao longe o vislumbrado destino dos
Campos, aliviando desta forma o apertado coração de sua irmã. Repentinamente, avistam “a
desfalecida figura de um índio estendido no chão, jazendo no leito da morte”, evidenciando
estar em seus últimos suspiros, porém ainda em condições de relatar o acontecido: “quando
nossa gente foi acometida pelos infames brancos, eu estava sentado um pouco retirado dos mais,
57 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p. 167-168. 58 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p. 168-169.
165
levantei-me para correr, e neste instante fui alvo de um tiro, cai e fingi-me de morto; vi minha
mulher e meus filhos conduzidos para o cativeiro”, sem nada poder fazer. O jovem sobrevivente
afirma ainda que não vira Caocochee, mas o local do ocorrido era próximo, bastando passar o
rio Chapecó e logo avistariam os brancos “na povoação cantando a vitória, vendendo nossos
caros filhinhos, maltratando nossas mulheres (...)”. O índio acabou de falar e os dois irmãos,
depois de repartirem com ele seus víveres, seguiram seu destino com os olhos fitos no lugar
descrito; local que neste momento encontrava-se repleto de abutres ciosos pelos cadáveres dos
mortos. 59
Foi o voo dos abutres que guiou os passos de Aricó e Coré até o derradeiro local onde
os cães que acompanhavam os coroados, “ainda fiéis aos seus amos”, espantavam as aves de
rapina ávidas por seus cadáveres. Um triste e horrível espetáculo apresentava-se aos seus olhos:
(...) selvagens aqui transpassados por bala, ali mutilados com ferro, acolá
estrangulados e banhados de sangue cobriam a horrorosa campina; homens, mulheres,
crianças, velhos promiscuamente estendidos, mostravam que os autores deste
massacre não tinham respeitado idade nem sexo. 60
À procura do cadáver de Caocochee, os dois jovens índios percorrem este cenário de
carnagem, sem obter qualquer êxito, ao que Coré se pronuncia: “saiamos desta hedionda
morada cercada de horror, povoada pelas sombras da morte, e entre vivos procuraremos o nosso
Caocochee”. Assim, decidem procurar pela morada de Condá e de Hermógenes, onde Coré
acredita poder encontrar a felicidade de Aricó: “apressemos os nossos passos, e antes de se pôr
o sol terei a felicidade de juntar-vos com o vosso amado e repousares em seus braços”.
Consolada com estas palavras, Aricó criou novo ânimo e nova expectativa de avistar o seu
amante, fazendo com que esquecesse a fadiga dos dias de percurso. Após um dia de caminhada,
avistam três índios sentados às margens de um regato rodeados dos despojos de uma anta,
dialogando sobre os sucessos de sua caçada. Aproximando-se, percebem tratar-se de
Yoceguem, um coroado que havia acompanhado Condá em seu deslocamento, que logo lhes
indaga: “Que vinde vós fazer a estes lugares? Vireis acaso procurar também a morte? ” Depois
de os escutar com admiração, disse-lhes:
Sossegai vossos corações, e congratulai-vos pelos prazeres e felicidades que vos estão
iminentes, e vós vão por mim ser patenteados. Caocochee ainda existe, livre de todos
os perigos, em casa de Pahi-Cufá, que amanhã deve chegar da grande povoação.
59 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p. 169-170. 60 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p. 171.
166
Vamos Aricó, alegrar com tua presença o consternado coração do teu amante, que não
tinha esperanças de tão depressa te abraçar. 61
De fato, no dia seguinte encontraram-se os dois amantes e contaram reciprocamente as
suas aventuras.
Repentinamente, de narrador e autor do romance histórico, João Henrique Elliott se
apresenta enquanto partícipe e agente de sua criação literária. Afirma que poucos meses depois
da chacina indígena, “em um dia abrasador” do mês de dezembro, teve a ocasião de viajar pelos
Campos de Palmas, quando atravessou as planícies do rio Chapecó. Convidado pela fresca
sombra de um pequeno bosque e pelo som de um pequeno rio, o sertanista dirige seu cavalo
para aquele lado, onde resolve “descansar um pouco neste romântico e agradável retiro”.
Deitado sobre a verde relva, lembra-se que em local pouco distante, há pouco tempo “um grande
número de selvagens, tendo sido convidados, havia-se apresentado às autoridades locais, por
cujas ordens, logo depois foram cruel e perfidamente assassinados”. “Tocado de compaixão”,
Elliott afirma sentir seu “coração oprimido de dor”, recordando do que “havia lido sobre a
horrorosa carnificina”. Pergunta-se se os males que devoravam os descendentes dos
colonizadores da América espanhola e portuguesa, “que degolavam os índios com mais sangue
frio do que se degolassem uma galinha”, não seria uma “consequência da desapiedada carnagem
praticada com os legítimos filhos do solo americano! e que cada nação que o habita, terá de
pagar a cota que lhe pertence de sangue, com sangue”.62
De repente, os pensamentos de Elliot foram interrompidos por um forte estampido e,
olhando para a direção dos campos, viu tratar-se de um corvo branco transpassado por uma
flecha que caiu quase aos seus pés. Assustado e acreditando estar na presença dos índios bravios
que habitavam esta região, foi velozmente montar seu cavalo disposto a fugir. Porém, sem
demora, seu medo foi desvanecido quando viu sair de um capão próximo quatro índios,
“vestidos à portuguesa”. Percebe assim que nada tinha a recear e resolve esperá-los: “era o
Condá e sua mulher, de quem era eu pessoalmente conhecido, e dois jovens selvagens, a quem
nunca tinha visto”. 63
Aliviado, Elliott afirma a Condá que sua caçada lhe causou algum susto por acreditar
tratar-se dos índios do Goioen, ao qual responde o interlocutor: “não devias duvidar, eles
sempre atravessam por aqui e por isso não se deve entranhar muito no sertão; é necessário
61 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p. 171-172. 62 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p. 172-173. 63 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p. 173.
167
limitar nossos passeios por esses capões”. Perguntado sobre o casal de índios desconhecido que
acompanhava Condá, o coroado responde: “(...) este mancebo é Caocochee, meu sobrinho, e
esta outra é Aricó, sua mulher, de quem vós tereis ouvido falar tanto”. E diante da estranheza
de Elliott, continua Condá:
Ao princípio houve bastante dificuldade em persuadi-los que entre os brancos havia
gente humana e benfazeja; mas a constante bondade e carinho com que foram tratados
pelo Snr. Hermógenes e sua gente, fez com que tais escrúpulos fossem desvanecidos,
e acabou de convencê-los que era melhor associarem-se conosco do que seguirem a
vida errante de seus antepassados. 64
Após o diálogo com o líder Vitorino Condá, Elliott, convidado pelo sol que neste
momento lançava “seus raios com mais brandura”, despede-se dos índios que regressaram para
o mato, e refletindo sobre tudo o que tinha visto e ouvido, continua sua viagem.
Pode chamar a atenção do leitor do romance histórico Aricó e Caocochee, o “paradoxo”
de que, mesmo diante de todas as agruras sofridas por seus protagonistas com o genocídio de
seus pares, os personagens centrais do enredo tenham se rendido ao proselitismo do líder
indígena Vitorino Condá. Afinal, conciliaram-se quase espontaneamente com os algozes
conquistadores que provocaram a chacina dos seus, o que contrasta gritantemente com a prática
indigenista agressiva que vivenciaram nos Campos de Palmas. No entanto, se a história “real”
da ocupação colonial dos Campos de Palmas fora regida por forte resistência dos naturais desta
terra, o romance de Elliott, que utiliza este contexto para construir seu enredo, não deixa de
apresentar esse movimento de resistência e luta, mesmo que nos limites de suas possibilidades
literárias.
Na narrativa de Elliott, ao lado do cacique aliado Vitorino Condá, subsiste e resiste o
cacique Yopaia. Em assembleia, o agoureiro lembra aos seus pares étnicos sobre os inimigos
dos índios sempre ávidos por suas terras e alerta sobre a iminência de uma possível chacina.
Traz à memória do grupo a liberdade que os campos e as florestas do sul de Palmas lhes
proporcionam, onde vivem isolados e em segurança, mesmo diante da “insegurança” alimentar,
argumento tão amplamente destacado por Condá. Movido por sua memória, Yopaia destaca a
importância do isolamento e a necessidade de resistir à ocupação de suas terras. Contrariamente,
Condá apresenta outra estratégia de sobrevivência étnica diante do avanço da frente
agropastoril. Como argumenta, o espaço da aldeia, mesmo que próximo à vila dos Permanentes,
64 ELLIOTT, J. H., Aricó e Caocochee, p. 173.
168
apresenta-se como alternativa à gradativa redução do espaço territorial e alimentar de outrora.
É onde poderiam conseguir alimentos mais facilmente, teriam acesso aos paiois e a animais
domésticos. Logo, o aldeamento fora vislumbrado por Condá como alternativa à vida selvática
e à segurança física e alimentar. Além de alimentos, neste espaço teriam acesso a armas de
fogo, metais e ferramentas que garantiriam sua defesa contra outras tribos ou contra os brancos.
Como vemos, através de distintas formas, cada um dos caciques apresentou seu modo
particular de resistir à ocupação de seu espaço territorial e, principalmente, de preservar sua
autonomia e identidade étnica. Assim, em seu romance, Elliott supera a tradicional história
baseada na oposição colonizador/colonizado. Apresenta uma história índia autônoma e interna
aos Kaingang que selou o destino de grupos distintos que, ou permaneceram em seu habitat
natural, como o grupo liderado por Yopaia ou que preferiram a “aliança” com os colonizadores,
como o grupo de Vitorino Condá. Além desta história índia, Elliott narra uma história de
relações interétnicas baseada na aliança entre “diferentes”, como a que fora estabelecida entre
Condá e Hermógenes e, finalmente, a possibilidade de conciliação entre opressor e oprimido,
ou de não-conciliação, como entre Condá e Pedro de Siqueira Cortez. Como lembra Mota,
“essas diferentes formas de resistência nada mais são do que fatos políticos bem estruturados,
fruto de uma sociedade que se empenha em preservar sua autonomia”, não havendo
“necessidade de complexas estruturas institucionais para que os mecanismos de ação política
se manifestem”. 65
Em sua narrativa romântico-literária, Elliot reconstitui o que pode ter acontecido e
reconstrói, para efeitos práticos, uma realidade não vivenciada diretamente pelo sertanista.
Certamente, essa reconstrução de uma realidade não vivida, não condiz com o “real”, muito
mais complexa do que o apresentado, o que não reduz a meritória capacidade de apreensão e
de ordenação destes eventos, apresentados conforme a compreensão e “conveniências ” do
autor. O discurso narrativo de Elliot e sua ordenação fica muito mais evidente e compreensível
se situarmos o romance indianista Aricó e Caocochee e os personagens fictícios que o autor
apresenta, dentro da tradição nacionalista do Brasil de meados do século XIX. Lembremos que
esta tradição nacionalista oitocentista invocou, após séculos de ações destrutivas dos povos
indígenas, a assimilação dos nativos dispersos pelo território brasileiro na sociedade nacional
como essência de uma história amistosa e pacífica de integração destes grupos na ordem
política, social e econômica do pós-independência.
65 MOTA, L. T., A guerra dos índios Kaingang, p. 228.
169
Se, como afirma João Pacheco de Oliveira, na política do Diretório de Pombal “o fim
do indígena era o abandono de sua condição de pagão e infiel, não uma morte, mas um
renascimento”, o mesmo preceito vale para o Regulamento de 1845, respeitadas as
especificidades do cenário político do Império. 66 Neste, como naquele, o destino da população
indígena, tal como foi “imaginado” o caldo étnico que comporia a população nacional nestes
distintos momentos, era fundir-se e diluir-se em meio à população, dando origem, assim, aos
nacionais que habitariam seu solo. Não seria esse o destino de Aricó e Caocochee que fora
imaginado por Elliot quando celebra o nascimento de uma nova aliança do casal com os
nacionais e, assim, celebra também o nascimento de uma nova ordem civilizatória aos nativos?
Após séculos de práticas indigenistas que desencadearam a dispersão grupal, o
genocídio e, consequentemente, a desintegração étnica dos povos indígenas, eis que o
surgimento do movimento nacionalista de fins do século XVIII e praticamente todo o século
XIX, na figura de seus artistas, escritores e intelectuais, inaugura o movimento indianista,
expressão literária mais representativa do movimento romântico brasileiro. Ironicamente, este
movimento que sublinha o protagonismo heroico do indígena em “inúmeros romances, poemas,
peças teatrais, pinturas e estudos etnográficos, lamentado ou celebrado, como exilado, aliado,
ou rebelde”, também corporifica um nacionalismo que se empenhava em levar a cabo a própria
aniquilação do indígena.67
Embora apresente algumas particularidades que destacaremos a seguir, podemos situar
o romance histórico Aricó e Caocochee nesta perspectiva. Não obstante esteja baseado em fatos
reais, a criação literária de João Henrique Elliott, em seu propósito, além se coadunar com uma
cultura política e literária conciliatória, própria de seu tempo, também se coaduna com as
expectativas do sertanista que, neste momento, exercia a atividade de indigenista. Como já
destacamos, Elliott participava da comitiva de Joaquim Francisco Lopes que procurava
consolidar, a mando e interesse do Barão de Antonina, uma política de aldeamento e de
deslocamento dos povos Guarani do então território sul de Mato Grosso para o leste do rio
Paraná, de forma pacífica, conciliatória e com objetivos ocupacionais e integracionistas. Na
narrativa de Elliot, os fatos históricos que se tornaram dignos de enunciação literária, celebram
o nascimento de uma nova aliança e, certamente, de uma nova ordem e de um “novo homem”.
66 Segundo o autor: “A emancipação política trazia um novo olhar sobre as populações autóctones, que não eram
mais vistas como pagãs que se converteriam em possíveis súditos da Coroa portuguesa, mas como os originais e
legítimos donos daquela terra, aqueles que precederam os portugueses. De certo modo, poderiam ser considerados
os primeiros brasileiros”. OLIVEIRA, J. P. de., O nascimento do Brasil (...), p. 83. 67 TREECE, D., Exilados, Aliados, Rebeldes, p.13-14.
170
Logo, o romance de Elliott - enquanto representativo do movimento cultural indianista
e também do movimento político/pragmático integracionista - enquadra-se dentro de uma
perspectiva sociopolítica maior, que vislumbra a gradativa dissolução do indígena e seu futuro
desaparecimento étnico através de sua integração à comunhão nacional. Em seu romance,
Elliott transita tranquilamente através da arena sociopolítica e da cultura literária de seu tempo,
e ambos dialogam perfeitamente. Esse diálogo fora advertido por Treece. Segundo o autor, “o
fato até agora quase despercebido, de que o indianismo foi ao mesmo tempo uma arena de
debate sociopolítico além de ser um movimento artístico, nos adverte do equívoco de
considerarmos a cultura e a política como esferas separadas de atividades no Brasil
oitocentista”.68
Algumas características diferenciam ou particularizam o indianismo de Elliott. Além de
sua denúncia às práticas indigenistas de extermínio indígena na região dos campos de Palmas,
o romancista toma como “objeto” de análise o indígena contemporâneo, ou seja, de meados do
século XIX. Amoroso e Sàez nos adverte que “os poetas românticos revelaram pouca empatia
pelas populações indígenas do século XIX” e preferiram buscar o verdadeiro indígena, “(...)o
puro e o legítimo no tupi e no tapuia das páginas dos cronistas dos primeiros tempos coloniais,
e chorar sua extinção”.69 Já Elliott, buscou inspiração na realidade indígena de seu tempo e
possivelmente, em sua crença de que a nacionalidade é fruto do amálgama e da conciliação dos
diferentes elementos étnicos que a constituem.
3.5. Lucia de Miranda: o combate entre a barbárie e a civilização.
A história de Lucía Miranda, uma mulher espanhola tornada cativa de indígenas,
aparece pela primeira vez em Argentina. Historia del Descubrimiento y Conquista del Río de
la Plata, obra também conhecida como La Argentina manuscrita escrita em 1612 por Ruy Díaz
de Guzmán.70 Conforme Rossi Elgue:
El microrrelato de la cautiva se incluye dentro del relato mayor sobre la expedición
de Sebastián Caboto al Río de la Plata (1526-1529) y, específicamente, sobre la
destrucción del fuerte Sancti Spíritus en septiembre de 1529. A pesar de que no se
conocen documentos que acrediten la presencia de mujeres en la armada de Caboto,
68 TREECE, D., Exilados, Aliados, Rebeldes, p. 14. 69 AMOROSO, M. R; SÀEZ, O. C., Filhos do Norte (...), p. 243. 70 O escritor mestiço Rui Díaz de Guzmán, filho do conquistador Alonso Riquelme de Guzmán y Tirsula
de Irala —filha de Domingo de Irala e da índia guarani Leonor, é considerado o primeiro mestiço (hispano-guarani)
a registrar a história da conquista da região da Prata. Sua crônica está dividida em três livros em que narra a história
da conquista e da colonização da região rio-platense.
171
las versiones posteriores sobre los hechos ocurridos en el fuerte tuvieron como
referente la crónica de Ruy Díaz, por lo que respaldaron la existencia de Lucía
Miranda (...).71
Para Remedios Mataix:
La cuestión de la historicidad o ficcionalidad de la figura de Lucía Miranda es aún
objeto de controvérsia entre la crítica, que, en general, se divide en dos opiniones
contrarias: la que considera real el personaje e históricas sus peripecias — un elemento
más de la historicidad de la crónica de Díaz de Guzmán—, que no tuvieron más
tradición oral que la de los propios espectadores de los hechos; y la que ve en Lucía
Miranda un personaje legendario, cuya supuesta existencia se debería a la imaginación
novelesca del cronista, y la transmisión de su historia, con múltiples versiones, a la
tradición oral colectiva.72
Fato é que o relato que deu origem à personagem Lucía Miranda surge no capítulo VII
do livro I de La Argentina Manuscrita e, ao longo dos séculos fora continuamente ratificado
através de sua reescritura, tanto pela historiografia quanto pela literatura da região. Conforme
Rossi Elgue, a sucessiva repetição e reprodução do relato lhe concedeu significação e valor de
verdade. Para o autor, a prova mais cabal deste processo é o lugar privilegiado que o texto
ocupou na primeira grande compilação de documentos rio-platenses que fora realizada por
Pedro de Angelis entre os anos de 1835 e 1839. Nesta compilação, o texto de Guzmán é o
primeiro dos aproximadamente três mil documentos e crônicas que, em seis tomos, compõem
a coleção de obras e documentos relativos à história antiga e moderna das províncias do Rio da
Prata. Para o autor, a literatura também ratificou o mito de Lucía Miranda através de numerosas
reescrituras em gêneros distintos como a crônica, o teatro e a poesia. Como exemplo, cita a
peça teatral Siripo (1789) de Lavardén, os romances históricos de Eduarda Mansilla e Rosa
Guerra, ambos intituladas Lucía Miranda e igualmente publicados em 1860, o romance de
Hugo Wast de 1929 e, por último, a ópera Siripo do compositor Felipe Boero composta em
1924 e estreada em 1937. 73
Na crônica de Guzmán, o cacique Mangoré, aliado do capitão espanhol Sebastián
Gaboto e do responsável pelo forte Sancti Spíritus don Nunõ de Lara, se apaixona pela
espanhola Lucía Miranda, casada com Sebastián Hurtado. Lucía não corresponde ao amor do
cacique que, traiçoeiramente, elabora um plano de sequestro de seu objeto de desejo com a
ajuda de seu irmão Siripo. Rompem a aliança com os espanhóis e atacam o forte em uma
emboscada, durante a qual se dá a morte do cacique Mangoré e do espanhol Nunõ de Lara. A
espanhola é tomada como mulher pelo irmão do cacique morto, Siripo, de quem se torna cativa.
71 ROSSI ELGUE, C. A., Lucía Miranda, p. 40. 72 Mataix, R., Romanticismo, feminidad e imaginarios nacionales, n/p. 73 ROSSI ELGUE, C. A., Lucía Miranda, p. 40.
172
Sebastián Hurtado decide resgatar sua esposa e se torna igualmente cativo. Fiel e irredutível aos
seus sentimentos matrimoniais, Lucía é morta na fogueira a mando de Siripo e seu marido morto
a flechadas. Conforme Elgue, “el ajusticiamiento de los esposos introduce en la tragedia la
evocación de los mártires cristianos, ya que Lucía es sacrificada en la hoguera como en la
narración hagiográfica de Santa Lucía, mientras Sebastián es asaetado como el mártir
Sebastián”. Na compreensão do autor, Díaz quis encenar o choque cultural entre as distintas
culturas e estabelecer os limites entre o universo normalizado e cristão do conquistador e o
mundo selvagem e bárbaro do indígena. Para justificar sua assertiva, lembra que o motivo
central que leva à destruição do forte e à morte do casal pelos bárbaros é a disputa por Lucía
entre Sebastián, o marido, e Siripo, o cacique indígena. Enquanto o matrimônio de Lucía
Miranda e Sebastián Hurtado é caracterizado pela fidelidade, passividade e cristianismo, o
cacique é apresentado como representante da selvageria e da desordem e seu amor pela
espanhola católica é desenhado como desordenado e proibitivo. 74
Na leitura de Remedios Mataix, as frequentes releituras (do século XVII até o XX) do
mito da mulher cativa e do derradeiro e infeliz final provocado pelos índios ao casal,
contribuíram para aprofundar a imagem da intransponibilidade da fronteira
civilização/barbárie. Além de formar um manto de candidez ao etnocídio indígena, bestializa
os selvagens e sacraliza o colonizador, anulando e justificando as atrocidades cometidas por
estes. Sobre as releituras do mito no século XIX, afirma ainda que:
Esa lectura del mito convenía en la época para reforzar la idea del salvajismo indígena
como amenaza al proyecto civilizador, blanco y burgués de expansión territorial que
culminaría con el llamado ‘Holocausto de Artigas’ sobre los Charrúas en Uruguay
(1831-1832) y con la Campaña del Desierto de Roca (1878-1879) en Argentina, dos
operaciones de ‘limpieza’ contra los indios por las que los rioplatenses alcanzarían el
dudoso privilegio de ser los países más blancos de toda la América hispânica.75
Para Mataix, as consecutivas releituras do episódio mítico da cativa branca funcionaram
como argumento justificador à conquista e à extirpação do indígena do tecido social. Serviu
ainda para projetar dúvidas sobre questões palpitantes do contexto mais imediato de sua
reescrita, como os métodos que perseguia a civilização rioplatense no caminho da eliminação
da barbárie. 76 Defendemos semelhante argumento à releitura realizada por Cândido Batista de
Oliveira no romance histórico Lucia de Miranda, publicado na Revista Guanabara no ano de
74 ROSSI ELGUE, C. A., Lucía Miranda, p. 42-43. 75 Mataix, R., Romanticismo, feminidad e imaginarios nacionales, n/p. 76 Mataix, R., Romanticismo, feminidad e imaginarios nacionales, n/p.
173
1851.77 Através desta publicação, Batista de Oliveira reforça a estrutura binária barbárie x
civilização, tão impregnada no imaginário de seu tempo, no sentido de sua intransponibilidade,
justamente no momento em que o Brasil contava com a política indigenista do Regulamento.
Seguindo o roteiro do romance histórico de Guzmán e possivelmente de suas releituras, Oliveira
reforça a imagem de oposição e incompatibilidade entre as “duas humanidades” constantes no
romance. Aos colonizadores espanhóis, cabe o espaço da civilização e, aos colonizados, o da
barbárie. Para entendermos essa imagem dicotômica reiterada por Batista de Oliveira em sua
releitura da obra de Guzmán, passemos inicialmente ao relato apresentado pelo literato
brasileiro que, indistintamente do original, se utiliza dos mesmos personagens, eventos e
localização geográfica – a embocadura do Rio da Prata na América meridional, ocupada pelo
governo espanhol, onde apresenta um indígena traiçoeiro, pouco confiável e não redimível à
civilização.
Através da figura de sua protagonista Lucia de Miranda, o autor desenvolve um tenso
cenário relacional entre os colonizadores espanhóis e os índios Timbú nos anos 1530. Neste
momento, expedições espanholas eram encarregadas de plantar nesta região do Rio da Prata os
primeiros postos de efetiva ocupação europeia. Após reconhecer o local, o capitão espanhol
resolve implantar um forte de madeira em uma área portuária localizada à margem direita da
foz do Rio da Prata, ao qual dá o nome de forte do Espírito Santo. Guarnece-o com um efetivo
que julgou necessário para defender a expedição em caso de necessidade contra os possíveis
ataques indígenas, “com quem aliás, procurou estabelecer relações de amizade. ” 78
Para informar as boas novas ao Rei espanhol, o comandante da expedição Sebastião
Caboto retornou ao seu país e deixou o forte do Espírito Santo sob comando do capitão D. Nuno
de Lara. Cento e dez soldados e alguns aventureiros, como os recém-casados Sebastião Furtado
77 Natural de Porto Alegre, Cândido Batista de Oliveira (1801-1865) ingressou no ano de 1817 no Seminário São
José no Rio de Janeiro onde concluiu o curso de humanidades e estudou, com notório reconhecimento, Matemática
e Filosofia em Coimbra. Em sua vida pública, foi catedrático de mecânica racional na Academia Militar onde
adquiriu o posto de capitão-engenheiro. No final dos anos 20 filia-se ao Partido Liberal e é eleito deputado por sua
província entre os anos de 1830 a 1833. “Entre 1834 e 1837, exerceu o cargo de ministro residente em Turim. Foi
encarregado da missão diplomática de São Petersburgo, em 1840, e em Viena, em 1843. Retornou ao Brasil em
1844. Exerceu ainda as seguintes atividades: ministro da Fazenda e, interinamente, dos negócios estrangeiros
(1839); ministro da Marinha (1847-1848); senador (eleito em dezembro de 1848); presidente do Banco do Brasil
e conselheiro do Estado (1859-1865); diretor do Jardim Botânico (1851-1859). Foi também membro do conselho
do Imperador, veador da Casa Imperial, comendador da Ordem da Rosa e da Ordem de Cristo, grã-cruz da Ordem
de Santo Stanislaw e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do qual foi primeiro vice-presidente”.
Sua extensa produção bibliográfica denota um interesse bastante variado e “estende-se de escritos econômicos a
trabalhos matemáticos e astronômicos, passando por manuais e tabelas sobre o sistema métrico decimal e pela
defesa contida da extinção da escravatura”, com notório interesse pelas ciências pragmáticas. Para informações
adicionais ver: Ildeu de Castro Moreira e Luisa Massarani. Cândido Batista de Oliveira e seu papel na implantação
do sistema métrico decimal no Brasil. 78 OLIVEIRA, C.B de., Lucia de Miranda, p. 320.
174
e Lucia de Miranda, compunham a comitiva do capitão responsável pela proteção do forte
espanhol. Conforme Batista de Oliveira, neste primeiro estabelecimento da conquista espanhola
aconteceu um evento extraordinário. “Tal foi o caso triste e miserando” de Lucia de Miranda,
dama espanhola que protagoniza o romance histórico em que se torna “vítima lastimável do
amor feroz de um chefe selvagem, e ao mesmo tempo a causa inocente da destruição do forte
do Espírito Santo e de toda a gente que o defendia”. 79
Lembremos que o romance fora ambientado em princípios do século XVI, em uma
perigosa expedição de conquista e colonização onde, geralmente, se aventuravam, em sua
grande maioria, os homens. Se havia mulheres, provavelmente essa presença fora omitida pela
produção historiográfica oficial. No entanto, na reelaboração literária apresentada por Batista
de Oliveira, o autor sinaliza que, além de Lucia de Miranda, a expedição fora composta pela
presença de outras mulheres europeias que teriam participado da expedição de reconhecimento
e conquista das terras sul-americanas no início do século XVI. Em dado momento, afirma que:
“entre as mulheres que existiam no forte fazia-se mais notável Lucia de Miranda pela sua
formosura e graciosas maneiras”.80 Em sua produção monográfica Cativas, degredadas e
aventureiras: mulheres na colonização latino-americana, Bruna Otani destaca a participação
feminina no processo de colonização das terras americanas:
Inúmeras mulheres que viviam no continente europeu durante o fim do século XV e
início do século XVI, enfastiadas de estarem submetidas a convenções sociais, o que
implicava serem submissas ao marido, à religião, ou arcar com as consequências de
uma vida na ilegalidade, enquanto prostitutas ou feiticeiras, aventuram-se a viver no
“Novo Mundo”, ora por opção própria, ora por imposição. O fato é que, embora
existam poucos registros históricos que mencionem a participação de mulheres no
período de colonização e conquista dos solos americanos, elas estiveram presentes
aqui, deixando contribuições para a formação da sociedade latino-americana. 81
Se, conforme Otani, a literatura ficcional desempenha um importante papel enquanto espaço de
questionamento do “quase completo apagamento da figura feminina efetuado pelo discurso da
história positivista” e ainda, enquanto “espaço para a representação de figuras femininas” que
“aventuraram-se a viver no Novo Mundo”,82 a obra de Guzmán e suas releituras, como a de
79 OLIVEIRA, C.B de., Lucia de Miranda, p. 321. 80 OLIVEIRA, C.B de., Lucia de Miranda, p. 321. Certamente, Cândido Batista de Oliveira fora influenciado pela
obra original que já sinaliza essa presença feminina na expedição de colonização. Na narrativa de Guzmán, essas
personagens surgem logo após a morte do capitão Nuno de Lara: “y así con la muerte de este capitán fue luego
ganada la fuerza, y toda ella destruida sin dejar hombre a vida, excepto cinco mujeres que allí había, con la muy
cara Lucía de Miranda y algunos tres o cuatro muchachos, que por serlo no los mataron, y fueron presos y cautivos
(...). Ruy Diáz de Guzmán, La Argentina Manuscrita. 81 RIBEIRO, B. O., Cativas, degredadas e aventureiras, p. 46. 82 RIBEIRO, B. O., Cativas, degredadas e aventureiras, p. 46.
175
Cândido Batista de Oliveira, certamente exerceram esse importante papel. Ao dar destaque a
uma personagem feminina no papel de protagonista de uma expedição de conquista das terras
do Novo Mundo, Batista de Oliveira contraria o discurso historiográfico corrente, algo pouco
usual para o momento de sua produção.
O romance histórico de Oliveira está dividido em sete partes. Inicialmente, apresenta os
objetivos que motivaram a expedição exploratória e colonizatória dos espanhóis. Em seu
segundo momento, o autor relata os motivos iniciais que motivaram as aproximações
“interessadas” entre os espanhóis e os indígenas. Os primeiros estavam interessados nos
serviços e favores que os nativos poderiam prestar aos europeus, entre eles, o autor destaca o
recebimento de víveres à comitiva. Já os indígenas, representados no romance pela figura de
seu cacique Mangoré, estava interessado em “avistar-se com a bela Lucia, cuja presença na
primeira vez que a vira, inspirou-lhe tal inclinação”, que a forte simpatia que sentira pela dama,
“logo cedeu o lugar ao mais pronunciado sentimento de fervoroso amor”. Temporariamente, as
frequentes visitas dos indígenas ao forte e as relações de reciprocidade e amizade que se
estabeleceram entre os nativos e os espanhóis, ocasionaram o rompimento da barreira cultural
barbárie/civilização. No entanto, em sua versão do romance, o literato brasileiro estava
interessado em apresentar os “pérfidos” interesses que motivavam o cacique Mangoré, que
procurava “ver-se correspondido nos desvelos de seu amor”. 83
Reiterados foram os convites de Mangoré para que Lucia e seu marido Sebastião
Furtado visitassem a povoação dos índios, onde o cacique oferecera sua cabana e todas “as
comodidades e regalos que dependessem de sua boa vontade”. Receoso das verdadeiras
motivações do cacique, Furtado evita aceitar o convite de Mangoré, “sempre com pretextos
plausíveis”. Diante das constantes negativas do casal, (...) “socorrendo-se à astúcia que
caracteriza um chefe selvagem”, o cacique concebe um plano de “completa destruição do forte
e de toda a sua guarnição”, pretendendo que somente sua amada Lucia se salvasse. Como
vemos, através das frequentes negativas do marido, receoso em arriscar sua própria vida e “a
segurança de sua adorada Lucia”, o autor releva as pérfidas intenções e o espírito traiçoeiro dos
anfitriões indígenas e amplifica a impossibilidade de qualquer relação amistosa entre a barbárie
e a civilização, entre os colonizadores espanhóis e os futuros colonizados. 84
83 OLIVEIRA, C. B. de., Lucia de Miranda, p. 321. 84 OLIVEIRA, C. B. de., Lucia de Miranda, p. 322.
176
Para realizar o seu intento, o cacique procura obter ajuda de seu irmão Seripó,85 com
quem dividia a liderança tribal. Após convencê-lo, Seripó promete ao irmão a sua inteira e leal
cooperação para levar a efeito o terrível projeto de que Mangoré lhe dera conhecimento. A
oportunidade para o embate foi avistada por Mangoré quando D. Nuno expediu uma
embarcação de aproximadamente quarenta espanhóis, a quem caberia procurar rio acima, em
alguma outra nação ribeirinha, “os víveres que pudessem obter a troco de objetos da indústria
europeia”, fazendo parte desta expedição o marido de Lucia, Sebastião Furtado. 86
Em sua quarta parte, de forma implícita, percebe-se em diversos momentos a ideologia
do autor do texto, que procurava aviltar o caráter do indígena na figura dos caciques,
apresentando-os como intrinsicamente traiçoeiros. Além de quebrar o tácito “acordo” de
reciprocidade que tinham com os espanhóis, os irmãos e caciques Mangoré e Seripó também
se atraiçoavam entre si, pois ambos se encontravam apaixonados pela mesma dama espanhola.
Os irmãos planejam, com o favor da noite e na companhia de quatro mil de seus melhores
guerreiros, uma feroz emboscada no forte.
Na manhã seguinte, apresentando-se ao forte na companhia de vinte índios de sua
escolha, o Cacique Mangoré presenteia D. Nuno com grande quantidade de alimentos e ali
passou o resto do dia. Aproximando-se a noite, os espanhóis convidam Mangoré e seu séquito
para pernoitar no forte, quando então aconteceria o derradeiro ataque em que Lucia, “a dama
espanhola”, tornar-se-á “a Helena dessa nova Tróia do deserto! ” Quase ao amanhecer, quando
todos os espanhóis dormiam, Mangoré acorda os índios e manda que se abra o portão, por onde
entrou o grande exército dirigido por Seripó. Despertados de seu sono, os espanhóis são
atacados de surpresa e “receberam os mais avançados morte pronta, aos golpes certeiros dos
índios, que apercebidos os esperavam”. 87
Foram poucos os espanhóis que restaram com vida e, entre eles encontrava-se D. Nuno
que procura avistar o inimigo Mangoré. Furioso, o comandante “arremete para onde divisara o
cacique, o qual por sua parte lhe sai ao encontro com galhardia”. Trocados os primeiros golpes
“com a energia do desespero, cai Mangoré mortalmente ferido e sobre seu corpo se arroja D.
Nuno também já exangue; e ambos expiram juntamente”. 88 Diante da morte do irmão, Seripó
corre ao aposento de Lucia, “afim de tomar sob sua proteção aquela que fora tão cara ao coração
85 No texto original de Ruy Díaz de Guzmán o irmão do cacique Mangoré é nominado de Siripo. No entanto, no
texto de Cândido Batista de Oliveira o autor utiliza a grafia Seripó, por isso, a depender do autor, ao longo da
análise faremos uso das duas formas. 86 OLIVEIRA, C. B. de., Lucia de Miranda, p. 322. 87 OLIVEIRA, C. B. de., Lucia de Miranda, p. 323-324. 88 OLIVEIRA, C. B. de., Lucia de Miranda, p. 325.
177
de Mangoré”, tomando-a como esposa: “minha cara Lucia, cessa de prantear a tua sorte, não
serás minha escrava, mas senhora de quanto é meu”. 89 Feita escrava do cacique Seripó, a partir
deste momento até o derradeiro dia de sua morte, Lucia passa a viver entre o inconciliável
mundo da barbárie e da civilização, como denota a narrativa de Batista de Oliveira.
No dia seguinte ao ocorrido, regressou a expedição da qual participava o marido de
Lucia de Miranda. De longe seus integrantes avistaram a “destruição que ofereciam a seus olhos
as ruinas do forte”. Em meio às ruinas e aos corpos, realizaram uma diligencia de
reconhecimento e não encontrando o cadáver de Lucia, seu marido brada com alegria: “não está
aqui, ela não morreu”. Esperançoso, Furtado toma a desesperada e difícil decisão de entranhar-
se na floresta e entregar-se aos indígenas como prisioneiro, julgando poder assim obter
informações sobre sua esposa. Assim, preso pelos índios Timbú, é levado à presença do cacique
Seripó onde reencontra sua esposa Lucia que agora encontra-se cativa do cacique. Prostrada
aos pés de Seripó, a dama espanhola suplica pela vida do marido e afirma que “ambos viveriam
contentes na humilde condição de seus fiéis escravos! ao qual responde Seripó: “não morrerá
Furtado: mas com a condição de esquecer-se ele para sempre de Lucia, que vai ser minha
mulher! Dar-lhe-ei outra mulher, que seja de seu gosto; e o tratarei não como cativo, mas como
amigo”. No interesse de salvaguardar a vida de ambos, a proposta foi aceita. 90
Seripó empreendeu dura vigilância sobre o comportamento dos “cativos”, não tardando
em surpreender o casal em um de seus rompantes encontros. Tomado de furor e de forte
sentimento de vingança, “mandou manietar os dois e conduzi-los assim à praça pública para
serem logo executados como réus de morte”. Como castigo, ordena que Furtado seja amarrado
e veja sua esposa ser lançada viva à fogueira. Sabatinada sobre seu crime, “sem mudar de
postura e sem alterar a serenidade do semblante, guarda silêncio como uma estátua”. Emotivo,
proclama o cacique: “tu mesma serás a executora da punição destinada ao teu enorme crime!
Marcharas espontaneamente a lançar-te naquelas chamas que já se elevam bem alto”. Dito isto,
Lucia, apenas teve livres os seus braços, cai instintivamente sobre os joelhos:
levantando ao céu as mãos e os formosos olhos, como quem invoca o supremo auxílio,
na hora extrema! Lança, ainda nessa postura um olhar de saudoso adeus ao seu querido
Furtado! E arrebatadamente se levanta. Tomando então a atitude nobre que convinha
à sua situação; e encarando fixamente a Seripó, com um riso de heroico desprezo, lhe
diz com voz enérgica: ‘Já viste, bárbaro, que nem as tuas ameaças, nem o aparato de
terror, de que me rodeastes, puderam arrancar-me o segredo de meu coração! Eu, pois,
em paga do último momento de liberdade que me concedeste, te declaro que nunca
deixei de amar o meu verdadeiro esposo que ainda o amo agora mais que nunca! Mais
89 OLIVEIRA, C. B. de., Lucia de Miranda, p. 325. 90 OLIVEIRA, C. B. de., Lucia de Miranda, p. 327.
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que a mesma vida! E sabe mais, tirano, que aquelas chamas a que me condenaste, me
serão mais gratas que os afagos de teu amor brutal! ’.91
Em meio aos gritos de horror da multidão, Lucia de Miranda se arroja à fogueira. Já
Sebastião Furtado, tem seu destino alojado no espaço do imaginário do leitor, no indeterminado,
pois o literato brasileiro não sinaliza o seu fim. Certamente, a recriação da trama e dos
personagens seiscentistas de Guzmán no século XIX por Cândido Batista de Oliveira, explica
muito mais o século de sua recriação do que o contexto histórico que alimenta e dá vida à
narrativa. A notável cativa Lucia de Miranda, vítima de sequestro e assassinato pelos traiçoeiros
índios Timbú, outrora aliados dos espanhóis, auxiliou como personagem perfeita para Batista
de Oliveira adentrar publicamente no debate indigenista que então se travava sobre a presença
do índio na composição étnica da nação brasileira. Não por acaso o literato brasileiro reitera
através do romance a dualidade fundamental barbárie X civilização e sua incompatibilidade. A
oposição e a impermeabilidade dessa dualidade no romance – debate que tão fortemente marcou
o imaginário político, cultural e literário do século XIX no Brasil - deve ser lida a partir do
debate intelectual de seu tempo. Lido assim, entendemos que, ideologicamente, ou Batista de
Oliveira pretendia demonstrar seu não-alinhamento com os métodos civilizatórios filantrópicos
estabelecidos pela política indigenista do Regulamento de 1845, colocando em dúvida a eficácia
de seus meios, ou compreende a política indigenista oficial como um desacato aos aspectos
institucionalizados da relação entre o “nós” e o “outro”, entre o colonizador e o colonizado e
defende uma separação rígida entre o mundo da civilização e o da barbárie. Em ambas as
situações se opõe à oficial política indigenista do Império.
De forma indistinta, em ambas as situações Batista de Oliveira impõe um discurso
dominante sobre a cultura minoritária e, de maneira muito ativa, apresenta um significativo
apelo simbólico destinado a manter intocados os aspectos institucionalizados, como os espaços
e lugares destinados a índios e brancos no futuro da nação. O rompimento da aliança com os
índios Timbú, concretizada pela traição dos nativos e o derradeiro final do romance, com
prejuízos aos espanhóis, além de representar a impossibilidade de conciliação entre as distintas
culturas, demonstra também a impossibilidade de um Estado-nação harmonioso, onde conflitos
de classe, raça e ideologia possam ser absorvidos em um futuro estado de equilíbrio. Na análise
de Silvia Tieffemberg, sobre o texto original de Guzmán La Argentina manuscrita, no romance:
91 OLIVEIRA, C. B. de., Lucia de Miranda, p. 329.
179
(...) el movimento colonizador de la expansión sobre América se invierte: son los
indígenas los que irrumpen a sangre y fuego en el espacio blanco, traicionando a los
ingênuos españoles, y son los blancos, Lucía y Sebastián - esposo de Lucía -, quienes
se convierten en esclavos y mueren, sin oponer resistência. 92
Para Rossi Elgue, o relato de Lucía Miranda se apresenta como um mito que reafirma a
supremacia branca e cristã sobre o indígena por meio de uma proposital inversão. Se,
historicamente, o conquistador era quem usurpava, saqueava e violava as mulheres indígenas,
no relato esse protagonismo fica reservado aos nativos e esta inversão se orienta claramente a
justificar e legitimar a submissão ou a destruição dos índios. Além desta inversão histórica
justificar uma ação extirpatória sobre os “selvagens” promovida pelos “civilizados”, tanto a
narrativa original quanto as suas releituras, como a realizada por Batista de Oliveira, não
admitem a ideia de uma descendência entre Lucia e Siripo, como se esta relação subvertesse as
relações de domínio e humilhasse a cultura do conquistador.93 Nesta linha, observamos que em
Batista de Oliveira, ficção e realidade, debate literário e político, caminham juntos e em
paralelo. Logo, partimos do pressuposto de que, ao representar o passado, o autor esteja
interessado no contexto mais imediato de sua escrita. Ao dar relevo às tensões que atravessaram
o processo de conquista e colonização do território americano nas primeiras décadas do século
XVI, Batista de Oliveira debate questões ideológicas pertinentes ao contexto de sua época, ou
seja, revisa o passado à luz do presente. Em sua narrativa, condensa questões que tensionam
discussões entre os intelectuais oitocentistas, como uma (im)possível harmonia social entre
brancos e índios, civilizados e bárbaros. Destarte, essa releitura do mito de Lucía Miranda na
época, além de naturalizar e reforçar sobremaneira a ideia da inata “selvageria” do índio,
concebendo-o como inconciliável com a sociedade branca, reforça a imagem do nativo como
uma ameaça ao projeto civilizatório pretendido pela elite intelectual, política e econômica do
Império do Brasil.
Ao que parece, na percepção de Cândido Batista de Oliveira, as contradições nacionais,
como as étnicas, não poderiam ser facilmente acomodadas e, possivelmente, justificam a
exclusão de setores da população do território nacional, como a indígena, do conjunto da
sociedade brasileira. Assim, seu indianismo o coloca em posição diametralmente oposta a
Gonçalves Dias, que utiliza o movimento literário para denunciar a formação de uma nação
desigual e excludente em que predominavam políticas e discursos elitistas que pretendiam a
92 TIEFFEMBERG apud ROSSI ELGUE, C.A., Lucia Miranda, p.43. 93 ROSSI ELGUE, C.A., Lucia Miranda, p. 43-44.
180
permanência de um colonialismo interno pós-independência. Antes, aproxima-o de seu
contemporâneo e também sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Francisco
Adolfo de Varnhagen, autor que analisaremos no próximo capítulo.
181
CAPÍTULO 4: O ÍNDIO DE CARNE E OSSO: CONQUISTA E CIVILIZAÇÃO NO
BRASIL OITOCENTISTA
4.1. Apagamento étnico, catequese e civilização dos índios no Império do Brasil.
A mata, povoada por índios, cortada por um rio enigmático quanto a seu curso exato
e sua navegabilidade, apresentava-se como um espaço liso, aberto e indefinido. Por
ela movimentam-se populações nômades, ociosas, consideradas pelo viés das faltas a
elas atribuídas (falta de Estado, de moral, de trabalho, de boas maneiras, de religião,
etc.) e em sua antítese a todos os valores enaltecidos pela concepção de civilização,
calcada no sedentarismo e no estriamento dos espaços. Ganharia força, na sociedade
oitocentista, a ânsia por projetos delimitados, seguros e previsíveis, configurados
como elos entre pontos bem definidos. Para tanto, multiplicaram-se os esforços para
conhecer esses espaços, ocupá-los, preenchê-los com o estilo de vida instituído a partir
dos signos civilizatórios. 1
A citação acima define bem o contexto histórico oitocentista brasileiro. À integração de
territórios ainda não ocupados economicamente à nação, tornava-se primordial a eliminação
dos óbices que obstruíam o caminho deste projeto. Assim, o controle sobre a natureza e sua
população autônoma é apresentado como um recurso indispensável ao êxito do interesse
civilizatório ocidentalizante que ganhava voz e contornos políticos e pragmáticos em meio à
elite intelectual e política responsável pela formação do Estado Nacional brasileiro. Assim, as
inquietações e energias destes intelectuais, permeáveis ao particularismo histórico dos
românticos do século XVIII e os historicistas do XIX,2 mas, inseridas no século que carrega a
marca indelével do “triunfo da ideologia do progresso”,3 estavam direcionadas, quase
exclusivamente, às questões do progresso, à ocupação dos espaços considerados
demograficamente vazios e ao “necessário” aperfeiçoamento étnico/racial da população
brasileira. Com esse interesse, o conjunto formado pela “natureza e sua gente” deveria ser
subordinado àqueles que, invariavelmente, tomaram para si a tarefa de gerenciar este projeto
de transmutar estes elementos afim de transformá-los e “enobrecê-los”.
Assim, os herdeiros da colonização portuguesa das terras americanas atribuíram para si
a tarefa de, “pelas mãos”, conduzir o nativo americano ao “mundo” da civilização, julgando-os
1 DUARTE, R.H., Conquista e civilização nas Minas oitocentistas, p, 19. 2 Conforme José D’ Assunção Barros, os primeiros românticos do século XVIII e os historicistas do século XIX,
buscavam uma história que apresentasse “as singularidades, as diversidades, a especificidade de cada sociedade
ou processo histórico”. Essa perspectiva historiográfica “particularizante”, opunha-se às “grandes generalizações
que permitissem compreender a história como um desenvolvimento único e sob a perspectiva de uma
universalidade que abarcasse toda a humanidade” como almejado pelos iluministas do século XVIII e os
positivistas do XIX. Para mais, ver: BARROS, José D’ Assunção., Teoria da História, p. 54. 3 LE GOFF, J., História e memória, p. 260.
182
enquanto incapazes de dominar e transformar a natureza, de conduzir-se e autodeterminar-se
historicamente. Logo, na imaginada sociedade que se desenhava, não havia espaço para os
“primitivos contemporâneos”. A estes indesejáveis “fósseis vivos”, só restaria a subjugação e,
se resistentes, a eliminação. No curso e na dianteira do modelo civilizatório que a
intelectualidade brasileira defendia e vislumbrava, estava o europeu e seus valores culturais,
políticos e sociais. Afinal, na concepção dos “arquitetos da nação”, “o Brasil é a continuidade
da civilização europeia, que aos poucos está galgando seus degraus na história evolutiva da
humanidade”.4 Tomado como parâmetro, esse modelo civilizatório eurocêntrico e,
consequentemente, excludentes às diferenças do “outro”, baliza os debates que desejam apagar
as diferenças raciais e culturais existentes na composição étnica da população brasileira. Assim,
inspirados por esse conceito de civilização que, como lembra o sociólogo alemão Norbert Elias
“expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo”, e se constitui de elementos que
orgulham o europeu ocidental, como o nível de sua tecnologia, as suas maneiras e habitações,
o desenvolvimento científico alcançado, as ideias religiosas, os costumes civis entre outros,5
toma-se a cultura europeia como parâmetro de julgamento do “outro”, principalmente a partir
de suas “faltas” culturais, com a finalidade de propor meios de civilizá-lo e integrá-lo ao
conjunto da nação.
Este conceito de civilização que resume “tudo em que a sociedade ocidental dos últimos
dois ou três séculos se julga superior às sociedades mais antigas ou sociedades contemporâneas
‘mais primitivas’”6 nos auxilia na compreensão da valoração que o alemão von Martius atribui
a cada uma das raças – “a de cor de cobre ou americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta
ou etiópica – 7 que, em sua concepção, miscigenadas, dariam forma e unicidade à futura
população brasileira. Em seu premiado tratado historiográfico destinado ao IHGB Como se deve
escrever a história do Brasil, de 1843, ao refletir sobre as particularidades físicas e morais que
distinguem as três raças e a influência destas para o desenvolvimento comum do país, Martius
atribui “maior energia, número e dignidade” ao europeu, e mais especificamente ao português.
Afinal, como afirma, foi ele que, como “descobridor, conquistador e senhor”, poderosamente
interfere no desenvolvimento da nova nação. Foi ele “que deu as condições e garantias morais
e físicas para um reino independente” e “se apresenta como o mais poderoso e essencial motor”
ao desenvolvimento da jovem nação. Finalmente, em sua concepção, será o sangue do
4 LISBOA, K. M., A nova Atlântida de Spix e Martius, p. 168. 5 ELIAS, N., O processo civilizador, p. 23. 6 ELIAS, N., O processo civilizador, p. 23-24. 7 MARTIUS, K. F. P., Como se deve escrever a História do Brasil, p. 382.
183
português que “em um poderoso rio deverá absorver os pequenos confluentes das raças índia e
etiópica”8 e assim, eliminá-los. Como lembra Lisboa, ciente de que a maioria da população
brasileira não era branca, “compreender os negros e índios como ‘pequenos confluentes’ era
quase uma força de expressão para justificar o processo de ‘branqueamento’ da população,
desejado por Martius” 9e pela elite intelectual e política do país.
Como já vimos, nos ensaios O estado do Direito entre os autóctones do Brasil e A
etnografia da América, de 1832 e 1838 respectivamente, Martius nega a capacidade de
perfectibilidade10 aos nativos do continente americano. Nestes trabalhos, detalha sua tese
decadentista em que defende que os índios do século XIX seriam o resto de uma grande e
florescente civilização anterior que caminhou rapidamente para o inevitável desaparecimento.
Embora reitere essa tese em seu tratado historiográfico Como se deve escrever a história do
Brasil, descrevendo-os como “ruinas de povos” e “residuum de uma muito antiga, posto que
perdida história”,11 neste momento os índios ganham uma valoração positiva no caldeamento
étnico da população brasileira. “Conduzidos” à civilização através de forças extrínsecas à sua
“natureza”, são dotados de potencial civilizatório e, consequentemente, da potência da
perfectibilidade humana. Certamente, isso se explica se pensarmos na motivação do trabalho
que fora destinado ao IHGB e aos seus intelectuais preocupados em demonstrar a viabilidade
da nação que se construía sob o pejo da mistura racial.12 Como afirma Martius em seu tratado:
Portanto devia ser um ponto capital para o historiador reflexivo mostrar como no
desenvolvimento sucessivo do Brasil se acham estabelecidas as condições para o
aperfeiçoamento de três raças humanas, que nesse país são colocadas uma ao lado da
outra, de uma maneira desconhecida na história antiga, e que devem servir-se
mutuamente de meio a este fim. 13
Em seu tratado historiográfico, Martius defende uma especificidade racial ao novo país
que, de diferentes formas, alimentaria a pena de muitos intelectuais brasileiros, principalmente
dentro do Instituto Histórico: “a ideia de o Brasil ter sua própria história, cuja particularidade é
8 MARTIUS, K. F. P., Como se deve escrever a História do Brasil, p. 382-383. 9 LISBOA, K. M., A nova Atlântida de Spix e Martius, p. 179. 10 Na utilização do conceito rousseauniano, ao negar a capacidade de aperfeiçoamento aos nativos da América,
Martius desvirtua seu sentido original, utilizando-o a partir de uma ótica evolucionista, típica do século XIX. Como
lembra Lilia Moritz Schwarcz, o conceito de Rousseau resumia uma “especificidade propriamente humana” de
aperfeiçoar-se, mas o conceito não supunha, porém, “o acesso obrigatório ao estado de civilização e à virtude”. De
posse de sua intrínseca liberdade, o homem primitivo poderia “resistir aos ditames da natureza ou acordar neles”.
Para mais, ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das raças, 1993, p. 44. 11 MARTIUS, K. F. P., Como se deve escrever a História do Brasil, p. 385. 12 LISBOA, K. M., A nova Atlântida de Spix e Martius, p. 180. 13 MARTIUS, K. F. P., Como se deve escrever a História do Brasil, p. 384.
184
a mistura das raças”. Como salienta Lisboa, “Martius aprofundou o tema da miscigenação como
uma alavanca para a civilização, desde que conduzida pelo português, por este pertencer (...) a
raça caucásica” e desfrutar de uma “superioridade psíquica e somática sobre as outras raças”.14
Como veremos à frente, essa particularidade histórica não será vista e compreendida
sem dissenso pelos “arquitetos” da nova nação, dentro ou fora do IHGB. No entanto, é
Francisco Adolfo de Varnhagen quem melhor assume o papel de dar materialidade e vida às
propostas historiográficas de von Martius em sua obra História Geral do Brasil (HGB),
publicada em dois volumes nos anos de 1854 e 1857. Neste trabalho historiográfico e
político/ideológico, Varnhagen dedica especial atenção às principais heranças políticas e
culturais que o Brasil independente herdara de Portugal. Assim, procura destacar elos entre o
passado colonial e o novo país para construir uma história civilizatória que pudesse ser chamada
de nossa. Essa postura político/ideológica fica transparente em seu Discurso Preliminar: os
índios na nacionalidade brasileira, seção introdutória que alimenta a primeira edição do
segundo volume de História Geral do Brasil, de 1857. Nesta seção, elidida das edições
posteriores em função da imagem negativa criada pela postura anti-indianista de Varnhagen,
afirma o autor:
Claro está que, se o elemento europeu é o que essencialmente constitui a nacionalidade
atual, e com mais razão (pela vinda de novos colonos da Europa) constituirá a futura,
é com esse elemento cristão e civilizador que principalmente devem andar abraçadas
as antigas glórias da pátria, e por conseguinte a história nacional.15
De acordo com Varnhagen, a história do Brasil e de sua “civilização” deve ser narrada
a partir das contribuições político/culturais que o país herdou do elemento europeu, como a
religião, a forma de governo, a língua, as leis e “todas as heranças da civilização de mais de três
séculos”. Assim, se já somos herdeiros de valores culturais provenientes de um passado colonial
civilizado, defende a permanência e a dissipação desses valores através da vinda de novos
colonos do Velho e “superior” continente. Em seu Discurso preliminar, Varnhagen adota uma
postura contrária aos literatos românticos que defendem a memória do indígena como
fundamento da história nacional. Certamente, essa postura de ataque aos indianistas acontece
em defesa própria pois, em sua HGB, este fundamento da história nacional fora diretamente
creditado ao colonizador europeu. Em defesa de sua obra historiográfica e dos valores que nela
defende, afirma que qualquer “história geral da civilização do Brasil” que deixe de simpatizar
14 LISBOA, K. M., A nova Atlântida de Spix e Martius, p. 181-183. 15 VARNHAGEN, F. A de., Discurso Preliminar, p. XXV.
185
com o principal elemento civilizador, e abrace a história do cativeiro africano ou a história
antropofágica dos índios, desmerece esse título.16
Assim como Martius faz em seu tratado historiográfico, em seu Discurso preliminar
Varnhagen eleva o português ao status de principal elemento civilizador da nacionalidade
brasileira sem negar o “cunho especial” de sua população, proveniente da mistura das raças
branca, negra e índia. Aos últimos, só os dota de perfectibilidade quando influenciados por
elementos culturais exógenos e superiores à sua cultura e afirma que o estado social destes “sem
o influxo externo, não tendia a melhorar-se”. O influxo externo que defende é o uso da guerra,
da escravidão e subordinação forçada dos índios. Em sua argumentação, afirma que estes seriam
os primeiros passos para a civilização dos índios, para o bem da pátria e, principalmente, “em
benefício desses mesmos infelizes”. Convicto de seu argumento, Varnhagen afirma não ter
dúvida de que “em geral”, a guerra “foi entre os homens um grande meio civilizador. (...) da
mesma forma a tremenda necessidade da guerra efetua a mescla das raças, e concorre para
melhorar a sua própria condição”.17 O historiador de HGB tinha ciência das críticas que suas
propostas causariam em meio à intelectualidade do Império e para justificá-las, afirma que o
estado de barbárie e degradação dos índios “ilhados em meio dos bosques dos tributários do
Amazonas sucedido há mais de três séculos”,18 prova a necessidade do uso da força como meio
de redução e civilização dos índios remanescentes da colônia ao seio da comunhão nacional.
Capturados e reduzidos, defende sua civilização através do “mais imediato contato,
distribuindo-os como clientes, pelas casas dos cidadãos honestos das grandes povoações”. 19
Assim, destacamos que, se no plano político o século XIX possibilitou a independência
do Brasil, no ideológico, o amarrou definitivamente a esse mesmo passado. Assim como em
Martius, na História Geral do Brasil, de Varnhagen, esse passado deveria ser enaltecido e
agraciado para dar liga e sustentação ao projeto que pretendia transformar, de forma ficcional,
uma sociedade amorfa, heterogênea e indefinida em uma massa monolítica. Como salienta
Odalia, coube à camada dirigente do país a tarefa de forjar a nação, necessitando-se para isso,
“esquadrinhar o passado, peneirá-lo, resolvê-lo, buscar em suas cinzas ainda fumegantes (...)
os minúsculos acontecimentos em que se inserem os primeiros gestos ainda tímidos de
identidade, os primeiros acenos de união, os primeiros sonhos de uma pátria livre”.20
Pragmaticamente, nessa atividade política, “a etnia do vencedor se impõe à vencida”,
16 VARNHAGEN, F. A de., Discurso Preliminar, p. XXV. 17 VARNHAGEN, F. A de., Discurso Preliminar, p. XVII. 18 VARNHAGEN, F. A de., Discurso Preliminar, p. XVIII. 19 VARNHAGEN, F. A de., Discurso Preliminar, p. XVII. 20 ODALIA, N., As formas do mesmo, p. 34.
186
oferecendo à esta última a chance de redimir-se pela assimilação ao vencedor. “A Nação assim
se define por uma etnia – a do grupo vencedor. O grupo vencido participa da história pela única
porta que se lhes deixa aberta, a miscigenação”, da qual em um período de tempo indeterminado
“deve surgir o novo Homem Brasileiro que formará, um dia, o povo brasileiro”.21 Como bem
lembra Odalia, na obra História Geral do Brasil, de Varnhagen, “a miscigenação passa a ser
entendida como a ponte que liga a anarquia racial do período colonial ao homem branco
brasileiro – estágio final que representa menos o fato biológico, a fusão racial, do que a
predominância de uma civilização e de uma cultura”. 22
Antes ou após a oficialização da política do Regulamento de 1845, diversas foram as
propostas que procuravam institucionalizar, ratificar ou retificar a ação efetiva do Estado face
aos grupos indígenas do território brasileiro. Certamente, o IHGB tornou-se uma instituição
oficial privilegiada nesta discussão que atendia diretamente aos anseios da sociedade nacional
dominante. Além dos interesses econômicos, o Instituto promovia a autoimagem do país como
“nação essencialmente europeia por origem, cultura, organização político-institucional e, acima
de tudo, por vocação e por destino”.23 Desse desejo deliberado e consciente em dar maior
harmonia e materialidade à “europeização” do Brasil, respeitadas as suas particularidades e
divergências historiográficas, surgem as discussões travadas em meio à intelectualidade do país
ansiosa pela eliminação dos aspectos incompatíveis com o desejado, como os indígenas
remanescentes do período colonial. Diante deste interesse, certamente não havia lugar para os
distintos povos indígenas que habitavam o território do país, a não ser como figura marginal
aos interesses nacionais e que, indubitavelmente, deveria ser apagado através de sua integração
à nação enquanto trabalhador nacional.
Para uma melhor compreensão da polarização e proporção que essa discussão tomou
em meados do século XIX, tomemos as divergências historiográficas entre o estadista Francisco
Adolfo de Varnhagen e o indianista/cientista Domingos José Gonçalves de Magalhães,
principalmente no que respeita ao lugar que o indígena deveria ocupar na História oficial do
Brasil. No ensaio Os indígenas do Brasil perante a história, publicado na Revista do IHGB no
ano de 1860, o indianista objetiva reabilitar “aos olhos da filosofia e da história”, a importância
do elemento indígena na população, colonização e prosperidade do Brasil. Para isso, acusa o
autor de História Geral do Brasil de estar contaminado de “espírito de partido” e “seduzido por
teorias a priori”. Sobre o apagamento do índio na formação da nacionalidade brasileira, acusa
21 ODALIA, N., As formas do mesmo, p. 39,42. 22 ODALIA, N., As formas do mesmo, p. 97. 23 MOREIRA NETO, C. de. A., Os índios e a ordem Imperial, p. 21.
187
Varnhagen de parcialidade, principalmente por apresentar uma história construída a partir de
fontes produzidas de forma interessada pelos conquistadores, que, segundo sua compreensão,
estão sempre empenhados em glorificar os seus mais “justos atos”. Assim, afirma: “mas não
nos esqueçamos que os vencedores querem ter toda a razão do seu lado, mesmo quando
levantam fogueiras; e o historiador é um juiz reto, e não o panegirista da vitória a todo custo”.24
Em suas críticas às considerações anti-indígenas proferidas por Varnhagen em HGB, coloca em
suspeição as proposições defendidas pelo autor e se pergunta: “Que cega confiança nos hão de
inspirar essas pinturas de um povo estranho, feitas pelos seus opressores? ”.25
Na tentativa de demonstrar sua mais “reta” e imparcial intenção de criticar a obra
historiográfica de Varnhagen, Magalhães procura se desfiliar de sua origem indianista e
rousseauniana e se autodefine como “filho da civilização”: “nem por pensamento, nem por
zombaria pretendo imitar o filósofo de Genebra, nesse seu discurso em favor do estado
selvagem, verdadeiro brinco de uma imaginação caprichosa, como o elogio da loucura feito por
Erasmo”.26 Em seu texto de crítica historiográfica em que procura reabilitar a presença indígena
na história e na constituição étnica da população brasileira, contraria inúmeras acusações
levantadas por Varnhagen, entre elas a de que os indígenas não passariam de “vindiços
alienígenas”. Na acepção do indianista, os mais conhecidos vindiços vieram depois de Cabral
providos do espírito de destruição. Assim, acusa-os de aniquilar os impérios existentes na
América, como o Inca e o Asteca e de roubarem “as melhores páginas que nos poderiam guiar
na pesquisa da antiguidade americana”. 27
Para Vânia Moreira, o texto de Gonçalves de Magalhães foi “uma das respostas mais
sistematizadas e contundentes” aos principais axiomas anti-indígenas defendidos pelo autor de
História Geral do Brasil. Segundo a autora, o indianista “enfrentou, por exemplo, teorias e
axiomas caros a Varnhagen e que, via de regra, também eram mobilizados pelo discurso político
para justificar uma série de ações abertamente contrárias aos direitos de liberdade, propriedade
e cidadania dos índios”. Entre esses axiomas, enfrentou aqueles que afirmavam que o homem
americano vivia em estado natural, não tinham nenhuma ideia de Deus ou religião, de ordem
social, formas de governo e de justiça, entre outros. 28 Se Rousseau dotou o homem americano
em estado natural do gérmen da perfectibilidade, Gonçalves de Magalhães utilizou esse
conceito a seu favor e interesse. Em seu ensaio político em que contraria as ideias anti-indígenas
24 MAGALHÃES, D. J. G de., Os indígenas do Brasil perante a história, p.4 25 MAGALHÃES, D. J. G de., Os indígenas do Brasil perante a história, p.5. 26 MAGALHÃES, D. J. G de., Os indígenas do Brasil perante a história, p.31. 27 MAGALHÃES, D. J. G de., Os indígenas do Brasil perante a história, p.11. 28 MOREIRA, V., O oficio do historiador e os índios, p. 63.
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de Varnhagen, desenhou um indígena que foi capaz de subverter a natureza amorfa e desprovida
de vida social organizada e a transformou: “consignemos, pois, como uma primeira verdade,
que os indígenas viviam em um regular estado social”.29 Assim, conclui que os verdadeiros
representantes da nacionalidade brasileira tinham ideias de justiça, de religião, formas de
governo hierarquicamente estabelecidas e, finalmente, de ordem social.
De forma ousada e fundamentada em documentos, muitos dos quais já pesquisados pelo
historiador detrator dos índios, desconstrói muitos dos axiomas anti-indígenas defendidos por
Varnhagen e polemiza abertamente com seu desafeto intelectual. Eleva o caráter do índio e
apresenta-o em estágio social ainda imperfeito, porém, virtuoso nas artes, na indústria, nos
conhecimentos médicos, astrológicos e botânicos. Salienta sua convicção pelo monogenismo e
defende a explicação bíblica à origem da humanidade, justificando-a em função da dificuldade
da ciência em explicar a unidade ou a pluralidade do gênero humano. Sobre a catequese e a
civilização dos índios, reprova de forma veemente os métodos agressivos defendidos por
Varnhagen que, para Magalhães, só podem revoltar a “razão e a sensibilidade dos” oprimidos.
Em sua concepção, a história do contato já teria apresentado os sinais de que somente através
de métodos brandos e persuasórios se poderia elevar o índio e integrá-lo à sociedade brasileira,
afinal, se perfectíveis, apresentavam uma tendência natural à civilização. O devido “tratamento”
de alguns eventos históricos do Brasil colônia são utilizados para provar que, se bem tratados,
os índios facilmente se ligavam aos portugueses, assim como teriam se ligado aos jesuítas. Além
da defesa dos métodos brandos no trato com os indígenas, ao longo do texto apresenta o caráter
dócil do nativo, sempre propenso ao aperfeiçoamento e à causa da civilização. Como afirma,
através dos métodos brandos como os aplicados pelos missionários, “vimos selvagens apenas
saídos dos nossos matos, vestidos em um dia à nossa maneira, afazerem-se de repente aos
nossos costumes; e à exceção da língua ninguém os tomaria por filhos dos bosques”.30
Embora Gonçalves de Magalhães polemize abertamente contra os preceitos anti-
indígenas defendidos por Varnhagen, como os métodos de integração e sobre a presença e a
importância do índio na História Oficial do Brasil, procurando assim, fazê-lo sobreviver no
passado da nova nação que tomava a Europa como modelo civilizatório, o destino final do
“objeto” de discussão, “ao fim e ao cabo”, tem a mesma direção: dilui-lo em meio aos nacionais.
Em geral os nossos índios são dotados de grande instinto de observação e de imitação;
com facilidade aprendem todas as artes; são muito afeiçoados, e tendem sempre a
29 MAGALHÃES, D. J. G de., Os indígenas do Brasil perante a história, p.15. 30 MAGALHÃES, D. J. G de., Os indígenas do Brasil perante a história, p.65.
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ligar-se conosco; e sem a perseguição a ferro e fogo que os afugenta dos centros
civilizados, estariam logo todos fundidos na nossa população. 31
A discussão antivarnhageniana levantada pelo indianista Gonçalves de Magalhães nas
páginas da Revista do IHGB fortalece o enunciado de Mota de que as discussões indigenistas
travadas pelos sócios do Instituto Histórico em meados do século XIX tinham por objetivo final,
“a integração, enquadramento e sujeição das populações indígenas ao Estado nacional” e sua
fusão ao “povo brasileiro”. No entanto, como salienta o pesquisador, embora os proponentes
apresentassem os mesmos interesses, havia um “tenso debate existente entre a elite formadora
de opinião sobre a forma dessa integração”.32
Além de dificultar a autoimagem “europeia” que o país pretendia construir, o índio
também tornou-se obstáculo à expansão de novas frentes agrícolas em meados do século XIX.
Como destaca Moreira Neto, ao se tratar da problemática indígena neste momento:
(...) é indispensável correlacionar os valores e interesses dominantes da estrutura
agrária do país, que então começa a se desenvolver, segundo o seu caráter atual, em
grandes fazendas privadas para a produção de café e outros gêneros de exportação
(...), com a presença de índios em várias regiões, impedindo ou dificultando a
expansão dessas empresas agrárias. 33
Para Mota, “a integração das comunidades indígenas nos recém-criados Estados latino
americanos passava pela incorporação de seus territórios e a apropriação de suas terras estava
no centro da questão nacional”. Além da ocupação dos territórios indígenas, o autor salienta
que “a modernização e as ideias de europeização foram práticas que marcaram a sociedade
nacional no século XIX” e dessa forma, “as populações indígenas tornavam-se um obstáculo
para a consolidação desse Estado em expansão”. Ao pesquisar as principais propostas
indigenistas defendidas pelos integrantes do IHGB da segunda metade do século XIX, Mota as
classifica e ordena de acordo com as aproximações propostas, como “a integração via catequese
religiosa”, “a integração através do branqueamento”, “pela guerra” e, finalmente, a “integração
pelo trabalho”. Como conclui, neste “tenso debate” ou os índios “seriam conquistados pelas
ideias, ou seriam submetidos pela tecnologia militar dos conquistadores”.34
31 MAGALHÃES, D. J. G de., Os indígenas do Brasil perante a história, p.65, grifo nosso. 32 MOTA, L. T., O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e as propostas de integração das comunidades
indígenas no Estado nacional, p. 149-175. 33 MOREIRA NETO, C. de A., Os índios e a ordem Imperial, p. 22. 34 MOTA, L. T., O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e as propostas de integração das comunidades
indígenas no Estado nacional, p. 149-175.
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Nas linhas introdutórias do artigo do cônego Januário da Cunha Barbosa, Qual seria o
melhor sistema de colonizar os índios, podemos evidenciar a primazia do interesse econômico
do Estado brasileiro em detrimento dos indígenas: “O ponto de que hoje nos ocupamos é de
certo interesse à prosperidade do Brasil, e assim também à de outros Estados, em cujas matas
vagam milhares de nações indígenas privadas dos cômodos da civilização”.35 Embora ao longo
de seu texto o cônego saliente os benefícios morais e religiosos que a civilização traria aos
indígenas, o excerto introdutório já denuncia a prevalência dos interesses econômicos dos
nacionais aos dos indígenas, compreendidos como obstáculos ao progresso e à prosperidade do
país, necessitando-se, assim, de uma intervenção direta do Estado. Como nos alerta Moreira
Neto, qualquer que seja a “atividade indigenista” adotada pelo Estado “é necessariamente um
modo deliberado e consciente de intervenção na vida de povos de tradição cultural indígena,
segundo os interesses, modos de organização e valores da sociedade nacional”. Logo, o
termômetro para se medir o sucesso ou não desta ação deliberada de intervenção é estimado
através dos propósitos conquistados pela sociedade nacional em detrimento dos interesses
diretos dos grupos assistidos pela ação indigenista.36
No caso do cônego Cunha Barbosa, esta intervenção caminhava pelas trilhas dos
métodos pacíficos da catequese, coerente com sua posição de religioso: “sou de opinião que a
catequese é o meio mais eficaz, e talvez o único, de trazer os índios da barbaridade de suas
brenhas aos cômodos da sociabilidade”.37 A clássica proposição do cônego resume o interesse
da sociedade nacional em eliminar a nódoa que os povos indígenas representavam ao vetor que
alimentava o interesse nacional: a civilização e o progresso. Para isso, o religioso elabora um
breve receituário indigenista que aliava a atividade catequética acompanhado de um didático
plano de trabalho aos índios aldeados. Assim como Gonçalves de Magalhães, Cunha Barbosa
também condena os métodos não humanitários no trato da sociedade nacional com os indígenas,
indicando-os como “historicamente ineficientes”. Além da catequese religiosa, o cônego
defende um maior desvelo na educação para o trabalho das crianças indígenas. Destas, afirma
poder-se esperar maior propensão ao “adiantamento da sua civilização”. No entanto, é na
miscigenação que, para o cônego, aconteceria a derradeira morte étnica do índio. Para isso,
propõe que os oficiais de oficinas (professores dos indígenas) se casem com as índias e os índios
com as filhas desses oficiais, ou com mulheres das povoações mais próximas. Como afirma, “o
35 BARBOSA, J. da. C., Qual seria o melhor sistema de colonizar os índios, p. 3. 36 MOREIRA NETO, C. de. A., Os índios e a ordem Imperial, p. 20. 37 BARBOSA, J. da. C., Qual seria o melhor sistema de colonizar os índios, p. 3-4.
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casamento das índias com homens de nossa associação tem produzido vantagens preciosíssimas
à civilização dos indígenas”. 38
Como já destacamos em outro momento, a morte étnica do índio via miscigenação já
ganhara contornos oficiais em meados do século XVIII com o Diretório dos Índios. Além de
centralizar a política indigenista nas mãos do Estado, retirando-a do controle do clero regular,
o Diretório inaugurou outra novidade no contexto indigenista colonial: introduziu o uso do
verbo “civilizar” e o substantivo “civilidade”, “deixando em segundo plano as noções de
‘catequese’, ‘conversão’ e ‘cristianização’ dos povos nativos”.39 Como afirma Lyrio Santos,
embora não fosse desconhecida, a palavra “civilização” é introduzida no “vocabulário político
referente aos índios e à colonização do Brasil na segunda metade do século XVIII” e foi neste
período que a palavra é utilizada pela primeira vez em um projeto indigenista no Brasil. O autor
refere-se ao Plano para a civilização dos índios, redigido no ano de 1788 pelo militar Domingos
Alves Branco Muniz Barreto.40 Assim, para a melhor compreensão do contexto histórico
colonial que acarretou essa mudança lexical e disseminou o uso do termo “civilização” nos
séculos seguintes, utilizaremo-nos deste projeto.
Em seu Plano Sobre a civilização dos índios do Brasil, publicado postumamente na
Revista do IHGB em 1856, o militar propõe a transformação das antigas aldeias, compostas por
índios “mansos”,41 em Vilas, abolindo-se toda a jurisdição espiritual exercida pelos
missionários do clero regular. Para Barreto, esta atribuição deve ser delegada a párocos sem
qualquer atribuição civil e militar. Sobre a diluição étnica do índio em meio aos nacionais,
assim se manifesta:
(...) que entre eles se possam estabelecer portugueses, não só para fazerem recíprocas
as utilidades de uns e outros, e para que o trabalho manual dos portugueses sirva de
exemplo aos índios, mas para se poderem promover o casamento de índios com
brancas, e de brancos com índias, sem que por isso se lhe siga infâmia alguma. 42
Está claro que o Plano civilizatório de Domingos Barreto, dedicado “ao sereníssimo Sr.
D. João, Príncipe do Brasil”, se coaduna perfeitamente à política indigenista do Diretório então
em vigor. No entanto, cético com sua aplicabilidade, principalmente na capitania da Bahia,
38 BARBOSA, J. da. C., Qual seria o melhor sistema de colonizar os índios, p. 17. 39 SANTOS, F. L., Da catequese à civilização, p. 10. 40 SANTOS, F. L., Da catequese à civilização, p. 256. 41 No início de seu Plano, Barreto separa os índios em dois grupos: mansos e bravos. Define os primeiros como
mais tratáveis e dóceis, povoam a costa do Brasil e falam a língua geral composta pelos Jesuítas. Além dos bons
costumes, abraçam a monogamia e não comem carne humana. O Bravos são apresentados como descendentes dos
temidos Aimorés, embrenhados no mato, sem governo, incomunicáveis, amigos da carne humana e por isso, sem
lealdade alguma aos que lhes são vizinhos. 42 BARRETO, D. A. B. M., Plano sobre a civilização dos índios do Brasil, p.79.
192
onde nasceu, propõe reformas ao projeto indigenista. Entre outras, defende uma maior
centralização e controle do Estado em sua gestão e, para isso, investe especial atenção em um
ofensivo ataque antijesuítico em que se manifesta crítico aos métodos adotados pela Ordem
Religiosa em seu intento catequético de conquista dos povos indígenas. Desta forma, se utiliza
da história como fornecedora de exemplos e lições para justificar uma maior intervenção da
metrópole portuguesa na empreitada civilizatória.
O Plano de Domingos Barreto está divido em três partes. Inicialmente, apresenta o
estado dos indígenas na época da descoberta do Brasil, o princípio das missões entre os índios
e os excessos cometidos pelos jesuítas em sua empreitada. Para o militar, os missionários
abusaram de suas funções ao estenderem suas atribuições espirituais ao governo econômico e
temporal dos aldeados, sempre em interesse próprio. Formação e apropriação de grandes
fazendas e engenhos, “a que chamaram naquele tempo patrimônio de Jesus”, utilização indevida
do trabalho dos índios reduzidos, escravização de sua mão de obra, insubordinação às leis da
colônia e interesse na formação de uma República independente são algumas das acusações
levantadas por Barreto aos missionários. Por fim conclui que, como os jesuítas só cuidavam de
seus interesses particulares, “não lhes restava tempo algum para cuidarem, como deveriam, da
conversão dos índios, (...) que deles se tinham confiado para os educar e lhes pregar a verdadeira
fé, de cujo fim se valeram para fazer o degrau de sua opulência”. 43
Na segunda parte de seu Plano, Domingos Barreto se dedica a apresentar o estado dos
índios aldeados pela política do Diretório na Bahia que se encontravam sob administração
temporal dos Diretores de índios e espiritual do clero secular (paroquial). Os últimos são
qualificados por Barreto como homens dotados de “falta de fé” e frouxos na aplicação da
doutrina cristã. Sobre os Diretores, afirma tratar-se de homens “que nem os primeiros
rudimentos de ler, escrever e contar sabiam com perfeição”. Sobre suas práticas indigenistas,
acusa-os de demasia preocupação em se afazendar de terras próximas aos aldeamentos e de
servirem-se dos índios para os trabalhos das suas lavouras. Considera-os indigentes e afirma
que procuram manter os índios contentes, “e consentem por isso na prática dos seus vícios”.
Para o militar, o estado de “miséria e desgraça” em que vivem os índios, inibe a tarefa
civilizacional do Diretório, afinal, o estado de miséria de suas palhoças e igrejas “que se lhes
fabricou há tantos anos para a celebração do culto divino”, em nada se diferencia de suas
choupanas das matas. 44
43 BARRETO, D. A. B. M., Plano sobre a civilização dos índios do Brasil, p.64. 44 BARRETO, D. A. B. M., Plano sobre a civilização dos índios do Brasil, p.68-69.
193
O “reformismo” indigenista de Domingos Barreto é apresentado na terceira e última
parte de seu Plano, momento em que afirma apresentar “o melhor método” para a instrução dos
índios à religião e de “os tornar ao mesmo tempo cidadãos úteis ao estado”. Como já alertamos,
os métodos indigenistas apresentados pelo militar se coadunavam com os já institucionalizados
pelo Diretório. Assim, Barreto reitera a imperiosa necessidade da promoção de um indigenismo
conduzido pela ação forte do Estado metropolitano português. Sobre o aldeamento, se manifesta
favorável à ação efetiva de tropas para a redução dos nativos ao espaço da aldeia administrada
por Diretores leigos. Em sua concepção, os índios bravos do sertão, devem ser subjugados nas
suas próprias habitações uma vez que eles inibem a presença de moradores “portugueses que
queiram habitar aquela região”. Esta subjugação seria realizada pelo “corpo de tropa”
denominado “gentio Bárbaro”, já existente na Bahia para este fim. Está legião deveria ser
composta por aproximadamente oitocentos homens sob a liderança de homens brancos uma vez
que a maior parte dos soldados “são índios mansos ou mestiços”. Na companhia da legião se
faria necessário a presença de missionários para convertê-los ao cristianismo. Subjugados, os
índios “bravos” devem ser finalmente aldeados sob a liderança de um diretor e de religiosos
seculares probos e, finalmente, iniciados na vida civil. 45 Finalizemos com a apresentação do
excerto que melhor revela as intenções do Plano de subjugação dos índios aos ditames do então
Brasil-colônia.
Conseguida esta tão necessária e importante reforma entre os índios bravos e índios
mansos, não só virão eles a ser felizes pelo bem espiritual da religião, mas ainda pelo
temporal, na vassalagem e proteção de um soberano, em que resplandecem tantas
virtudes, e gozarão, à sombra das leis, da liberdade civil e política que permite a nossa
constituição; ficando ao mesmo tempo, por uma parte aberto o caminho para as
vantagens e opulência do comércio e agricultura; e por outra, sem obstáculos para o
nosso uso e proveito as estradas para as Minas, e outros sertões, nas quais tantas vezes
tem sido acometidos e mortos inumeráveis viajantes; poder-se-ão agriculturar os
terrenos de que se acham de posse estes gentios, assim como da riqueza que neles se
acha depositada, o que virá a servir de vantajosa remuneração de mais algum
dispêndio e trabalho que é necessário se faça, nos primeiros anos, enquanto se
consegue o principal fim, que deve ser; primeiro: o aumento da religião; segundo:
civilização de tantos homens. 46
No excerto de Domingos Barreto, ganha destaque a intrínseca relação entre seu Plano
civilizatório e a ocupação colonial de regiões ainda não exploradas. A demanda pela posse de
novos territórios, por onde se disseminaria a autoridade e o controle, incluía a subordinação, a
coerção e a anulação cultural dos povos indígenas autônomos que habitavam estas regiões. A
necessidade de garantir a ocupação do território colonial, tornando-o seguro à circulação de
45 BARRETO, D. A. B. M., Plano sobre a civilização dos índios do Brasil, p.83-86. 46 BARRETO, D. A. B. M., Plano sobre a civilização dos índios do Brasil, p.91.
194
pessoas, mercadorias e riquezas que aumentassem a produção econômica regional,
demandavam a eliminação dos obstáculos humanos que os indígenas representavam. Este fator,
somado à defesa da maior centralidade política do Estado na condução da política indigenista
e, ainda, às inúmeras considerações do militar contrárias ao modelo jesuítico de catequese,
temas que alimentavam as discussões oitocentistas, colocam o Plano de Barreto em sintonia
com as discussões travadas pelos intelectuais do IHGB e, certamente, explicam sua publicação
na Revista do Instituto décadas após sua redação. Como destaca Salgado Guimarães em seu
clássico Nação e civilização nos trópicos, “o estudo sobre as experiências jesuíticas no trabalho
com os indígenas ganharão prioridade na Revista (RIHGB) com o objetivo de valer-se dessa
experiência histórica para a implementação de um processo de civilização capaz de englobar
também as referidas populações”.47
Como já destacamos, o Plano de Domingos Barreto inova por ser o primeiro projeto
indigenista a introduzir a palavra “civilização” no contexto da segunda metade do século XVIII.
Utilizemos as considerações de Lyrio Santos para compreender o uso deste termo e sua
reverberação nos séculos seguintes. Como destaca, “no século XVIII, ‘catequizar’ e ‘civilizar’
são expressões que traduzem visões distintas a respeito da colonização e das ações destinadas
aos povos indígenas”.48 O título de seu trabalho, Da catequese à civilização já nos indica uma
mudança paradigmática nos métodos de intervenção indigenista da metrópole portuguesa junto
às comunidades indígenas do Brasil. Enquanto a primeira estava a cargo do poder espiritual dos
Jesuítas, a segunda é introduzida no contexto de “afirmação do poder régio e à perda de
centralidade da ação da Igreja e da própria catequese como princípio organizador da
colonização”.49
Em meados do século XVIII, o debate em torno da intervenção indigenista apresentava-
se polarizado em torno da oposição entre os dois métodos que se enfrentavam: o dos jesuítas,
representado pela catequese e pelas aldeias, e o da civilização, estabelecido nos termos da
legislação pombalina.50 O primeiro método, vigente desde o princípio da colonização e sob
controle direto do clero regular, principalmente dos missionários jesuítas, “colocava a
conversão ao cristianismo como principal propósito da colonização lusitana além-mar”. Já o
segundo, que retira a centralidade da catequese na ação indigenista, inova através da introdução
de “um verbo presente nas leis da década de 1750 e em diversos documentos da segunda metade
47 GUIMARÃES, M. L. S., Nação e civilização nos trópicos, p. 20 48 SANTOS, F. L., Da catequese à civilização, p. 32. 49 SANTOS, F. L., Da catequese à civilização, p. 36. 50 SANTOS, F.L., Da catequese à civilização, p. 226.
195
do século XVIII: civilizar”.51 Como destaca Lyrio Santos, o Diretório dos Índios, promulgado
em 1757 e tornado lei no ano seguinte, foi “o primeiro documento oficial no âmbito luso-
brasileiro que tratou da questão indígena especificamente” sob o prisma da “civilidade”.52 Ou
seja, a introdução desta palavra e seu uso frequente no tocante “à questão dos índios e da
colonização consolida a mudança em relação ao modelo anterior, ancorado na cristianização
dos povos gentios por meio da catequese.53 Assim, através do novo modelo “civilizatório” do
Diretório, que delegava um maior controle e centralidade régia à nova política indigenista,
pretendia-se transformar os índios em membros da sociedade civil, tirando-os de suas aldeias
para civilizá-los e transformá-los em braços úteis à sociedade luso-brasileira. Finalmente, para
o nosso propósito, é importante lembrar a fala de Lyrio Santos quando afirma que:
É interessante notar que a civilização não era vista como algo que estivesse em
contradição com a religião, ou seja, com a conversão e a catequese, pelo contrário, ela
era entendida como o meio mais adequado para atrair os povos ao grêmio da Igreja.
Por outro lado, a catequese, por si mesma, era vista como ineficaz ou insuficiente para
os propósitos da colonização. Sem a devida “civilização” – ou seja, o aprendizado
civil, a dedicação ao trabalho e à produção econômica – os índios não abandonariam
efetivamente seus hábitos e o modo de vida gentílico. 54
Essa não contradição entre a civilização e a catequese nos ajuda a compreender melhor
as propostas indigenistas defendidas por José Bonifácio em seu texto Apontamentos para a
civilização dos índios bravos do Império do Brasil, apresentado à Assembleia Constituinte do
Brasil em 1823. Embora o aprendizado à vida civil esteja estampado no título do documento,
Bonifácio não descarta o objetivo catequético como essencial ao propósito civilizatório que
defende: “Vou tratar do modo de catequisar, e aldear os índios bravos do Brasil”.55 Em seus
Apontamentos, a catequese religiosa fora destacada como um caminho necessário à
“civilização” dos índios e ambos são indissociáveis: “Daqui fica claro que sem novas
providências, e estabelecimentos fundados em justiça, e sã política, nunca poderemos conseguir
a catequização e civilização desses selvagens”.56 Assim, para o último dos objetivos, propõe a
imitação e o aperfeiçoamento dos métodos de conversão utilizados pelos jesuítas, sem, no
entanto, deixar de tecer críticas aos métodos particulares que os religiosos imprimiram em sua
51 SANTOS, F. L., Da catequese à civilização, p. 34. 52 SANTOS, F. L., Da catequese à civilização, p. 247. 53 SANTOS, F. L., Da catequese à civilização, p. 226. 54 SANTOS, F. L., Da catequese à civilização, p. 246. 55 SILVA, J. B. de. A. e., Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil, p. 47. 56 SILVA, J. B. de. A. e., Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil, p. 52.
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empreitada, como o de separar os índios da comunicação com os colonos “e de os governar por
uma teocracia absurda e interessada. 57
O projeto civilizatório de Bonifácio antecipa as calorosas discussões que ganham maior
materialidade entre os intelectuais do IHGB aproximadamente duas décadas depois. O
propósito do ilustrado articulador da independência é o de viabilizar a nação e criar a imagem
de país civilizado na América, seguindo o modelo europeu. Para isso defende a eliminação do
principal entrave à consecução deste objetivo: a pluralidade étnica da população brasileira
composta de brancos, mestiços, índios “mansos” e “bravos”, negros escravos ou libertos e sua
transformação em uma massa étnica e culturalmente homogênea. Como lembra Dolhnikoff,
nesta perspectiva, “Bonifácio pregava o fim da escravidão, a integração dos índios à sociedade
nacional e a mestiçagem, de onde deveria surgir uma nova ‘raça’, tão brasileira quanto
integrada: a miscigenação era o caminho pelo qual se chegaria também à homogeneidade
cultural”.58 Em seu projeto indigenista, destaca a importância e a necessidade de se favorecer
por todos os meios possíveis o matrimônio entre índios, brancos e mulatos morigerados que
deverão se estabelecer nas aldeais “para misturar as raças, ligar os interesses recíprocos dos
índios com a nossa gente, e fazer deles todos um só corpo da nação, mais forte, instruída e
empreendedora”.59
Defensor da perfectibilidade indígena, Bonifácio condena os contemporâneos que só
veem figura humana e não humanidade nos autóctones. Às ações hostis dos índios “bravos”
contra a sociedade branca, justifica-as como “desculpáveis” por serem alimentadas pelas
“injustiças e crueldades” provocadas pelos colonizadores no interesse de transformá-los em
bons-cristãos. Se perfectíveis e dotados do “lume natural da razão”, Bonifácio acredita que com
métodos brandos e com a devida aplicação da justiça, do comércio, de dádivas, educação,
trabalho e casamentos mistos, são plenamente capazes de civilização e integração à ordem civil.
Para a aplicação destes métodos, defende a criação de novos aldeamentos ou a reativação de
antigos administrados por missionários a quem caberá a jurisdição eclesiástica e de polícia civil.
Para fortalecer seus argumentos, Bonifácio lembra a experiência jesuítica e as palavras do
missionário Manuel da Nobrega proferidas por Vieira de que “com música e harmonia de vozes
se atrevia a trazer a si todos os gentios da América”. No item 12 dos 44 apontamentos para a
civilização, afirma o indigenista: “Destas primeiras aldeias deverão sair progressivamente
índios mansos; que com alguns sertanistas e um missionário, (...), vão continuamente ao mato
57 SILVA, J. B. de. A. e., Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil, p. 52. 58 DOLHNIKOFF, M., José Bonifácio de Andrada e Silva, p. 8. 59 SILVA, J. B. de. A. e., Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil, p. 61.
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buscar novos colonos, ou para aumentar as aldeias já estabelecidas, ou para formar com outros
já mansos outras novas”.60 Se em um primeiro momento encontramos nos Apontamentos de
Bonifácio uma forte herança do modelo civilizacional jesuítico, a superação deste modelo pode
ser encontrada em sua finalização, quando encontramos fortes traços do indigenismo ilustrado
e reformado de Pombal. Neste momento, Bonifácio defende o caráter transitório das aldeias e
sua gradativa transformação em Vilas e, por fim, a “equiparação política e jurídica dos índios e
seus descendentes aos demais vassalos do rei (“nacionalização”).61 Como destaca Moreira:
Embora esses dois grandes modelos civilizacionais tivessem muito em comum, eram
vistos como antagônicos, pois desde as campanhas pombalinas contra a Companhia
de Jesus, propagandeou-se a existência de uma oposição de interesses entre os jesuítas
e o Estado, como se este quisesse a integração do índio à ordem social colonial,
enquanto aqueles procuravam isolá-los nas aldeias, onde supostamente vigorava uma
“teocracia”. Diante desse quadro, os “Apontamentos” de Bonifácio ficam a meio
caminho, procurando combinar, de forma conciliatória, algumas ideias centrais de
Nóbrega e Pombal. Assim, Bonifácio recupera a importância da criação de
aldeamentos como espaços de educação, civilização e catequese, mas também insiste
na miscigenação e na “nacionalização” dos índios. Propõe uma espécie de segregação
parcial e temporária dos índios nos aldeamentos, frisando ser a meta o fim das
diferenças étnicas, sociais e políticas entre os “índios” e a “nação”.62
Ainda segundo Moreira, embora “as ideias de Bonifácio sobre os índios, seus direitos e
deveres” não possam ser consideradas novas ou revolucionárias, “eram avançadas o suficiente
para desagradar a elite agrária, ansiosa para ampliar os seus negócios e lucros mediantes a
apropriação territorial sem limites e restrições”.63 Lembremos que no primeiro apontamento do
projeto indigenista, Justiça, Bonifácio defende o não esbulho das terras que ainda restam aos
índios e lhes titula como “legítimos senhores” pois as teriam recebido de Deus. Em suas
elucubrações iniciais, além de condenar a submissão do índio ao cativeiro, o desprezo com que
sempre foram tratados, os serviços mal remunerados entre outros, Bonifácio condena
abertamente “o roubo contínuo das suas melhores terras”. Certamente, o desencontro entre as
ideias propostas por Bonifácio e os interesses territoriais da elite agrária, explicam a rejeição
de suas propostas na Constituição de 1824 e o isolamento político de seu proponente.
Como nos lembra Manuela Carneiro da Cunha, não obstante a rejeição de seu projeto
indigenista, as ideias centrais defendidas por Bonifácio, como “a recomendação de se usarem
‘meios brandos e persuasivos’ no trato com os índios”, são incorporados pelo discurso oficial
no Império. Conforme a autora, isso não significa a inexistência de “vozes dissonantes dentro
60 SILVA, J. B. de. A. e., Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil, p. 54. 61 MOREIRA, V. M. L., De índio à guarda nacional, p.129. 62 MOREIRA, V. M. L., De índio à guarda nacional, p.129. 63 MOREIRA, V. M. L., De índio à guarda nacional, p.129.
198
e fora do governo”. Entre elas, lembra a do ministro da Guerra que estimula o presidente de
Goiás a organizar expedições ofensivas contra os índios Canoeiros entre 1835 e 1836 e, ainda,
as propostas indigenistas de Varnhagen que, em várias publicações, defende abertamente o uso
da força contra os índios hostis.64
Na sequência, daremos relevo a duas vozes contemporâneas e discordantes que
alimentaram as discussões indigenistas travadas durante o Império. Enquanto a primeira ganhou
destaque em sua época e reverberou nas seguintes por apresentar-se como diametralmente
oposta aos preceitos indigenistas defendidos pela maioria da elite intelectual e política do
Império, a segunda, pouco se destacou por apresentar-se alinhada aos preceitos defendidos por
essa mesma elite. Referimo-nos aos intelectuais e políticos do Império Francisco Adolfo de
Varnhagen e Henrique de Beaurepaire Rohan.
Sobre o primeiro, atentar-nos-emos com pormenor atenção à sua proposta de
reorganização do Estado brasileiro de meados do século XIX Memorial Orgânico. Neste ensaio
político, Varnhagen dedica especial atenção à defesa de uma “nova, oficial e agressiva” política
indigenista aos índios “bravos” do Império do Brasil. Na sequência, enquanto representante da
vertente que discorda de Varnhagen e defende o uso de métodos “brandos e persuasórios” de
integração dos povos indígenas à nação, faremos uso do projeto civilizatório de Henrique de
Beaurepaire Rohan. Lembremos que ambos os projetos indigenistas foram publicados na
revista científica e literária Guanabara. Como vemos, embora o IHGB por meio de sua revista
trimestral seja o espaço de excelência à publicação de projetos que versem sobre os métodos de
integração dos índios à sociedade brasileira, outros segmentos científicos e literários também
travaram estas polarizadas discussões. Como nos lembra Doriguello Júnior:
As polêmicas envolvendo Varnhagen e suas posições truculentas, de um lado, e os
defensores da brandura, de outro, extrapolam as páginas do trimensário do Instituto e
ganharam as páginas dos jornais da capital. Réplicas e tréplicas encarniçadas entre o
autor de HGB (História Geral do Brasil) e personalidades como Manuel A. de
Almeida, Henrique de Beaurepaire Rohan e João Francisco de Lisboa se prolongaram
ao longo da década de 1850. 65
4.2. Francisco Adolfo de Varnhagen e sua concepção de Estado.
64 CUNHA, M. C. da., A política indigenista no século XIX, p. 137. 65 DORIGUELLO JÚNIOR, C. A., Os indígenas nas páginas da Revista do IHGB, p. 117.
199
“Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) é considerado o ‘Heródoto brasileiro’,
portanto, o fundador da história do Brasil”. Assim José Carlos Reis titula o filho de um oficial
alemão, engenheiro metalúrgico que trabalhara no Brasil, e de uma portuguesa. O mesmo autor
lembra que, mesmo que antes dele, Pero de Magalhães Gândavo, frei Vicente de Salvador,
Sebastião da Rocha Pita, Robert Southey, entre outros, escrevessem suas histórias sobre o
Brasil, “foi somente nos anos 1850, com Varnhagen, que surgiu a obra de história do Brasil
independente mais completa, confiável, documentada, crítica, com posições explicitas: a
História geral do Brasil”, que superou as obras dos autores mencionados, sem, no entanto,
torná-las descartáveis. 66
Em sua HGB, Varnhagen fez acompanhar o seu nome de batismo do título honorífico
visconde do Porto Seguro. Natural de Sorocaba, o paulista pouco morou no Brasil. Aos seis
anos viajou para Portugal onde completou sua formação militar e técnica em Lisboa, embora
tenha se dedicado também à paleografia, diplomática e economia política. Reis lembra que
Varnhagen “apreciava frequentar os arquivos dos lugares por onde passava, os arquivos
públicos”, novidades do século XIX. Foi nos arquivos estrangeiros onde “encontrou e elaborou
inúmeros documentos relativos ao Brasil” que, posteriormente, deram corpo ao seu livro e às
suas composições históricas67 em que apresenta preocupação com a exegese documental e
demonstra a influência que Ranke exerceu em suas pesquisas:
A influência alemã sobre o seu pensamento deve ser forte também em virtude de sua
origem paterna. Ele estava bem adaptado à produção histórica de sua época. Não só
estava atualizado com o que se fazia na Europa, como foi um dos pioneiros da
pesquisa arquivística e do método crítico que o século XIX redescobriu e aprimorou.
Tanto quanto Ranke, Varnhagen é um historiador típico do século XIX. 68
Adotou a nacionalidade brasileira somente no ano de 1841, logo após a assinatura de
um decreto imperial por D. Pedro II, por quem nutria muita simpatia, querendo assessorá-lo na
construção da imagem e identidade do novo país. Como cidadão brasileiro, recebeu o cargo de
diplomata do Brasil em Portugal e na Espanha e foi convidado a integrar o seleto grupo de
letrados do IHGB, onde apresentou inúmeros e polêmicos trabalhos. Em sua farta produção
bibliográfica, apresenta uma concepção de história que associa a identidade do Brasil
independente aos valores herdados da ex-metrópole, logo, “à moda portuguesa”. Assim,
66 REIS, J. C., As identidades do Brasil, p. 23. 67 REIS, J. C., As identidades do Brasil, p. 24. 68 REIS, J. C., As identidades do Brasil, p. 24.
200
concebendo a colonização portuguesa como um grande feito civilizatório ao território
americano, torna-se um incansável defensor da imagem de uma ruptura colonial livre de
traumas e do nascimento de uma nação concebida enquanto herdeira dos legados políticos e
culturais deixados pelos colonizadores, em detrimento das contribuições culturais dos índios e
negros. Ao procurar apontar os ideais filosóficos que moviam Varnhagen em sua escrita, assim
o define Wehling.
O Estado forte, maior que a sociedade, criador da nação e aperfeiçoador pedagógico
e étnico do povo – eis o ideal de Varnhagen. Tudo o mais – representação, funções
estatais, relações internacionais, formas de governo – cede o passo ao objetivo maior
de um Estado regenerador. Tudo o que destoa desse padrão unitário, ou que o ameaça,
é condenado: os indígenas que, no interior, não se submetem à lei do Estado; o tráfico,
porque introduz uma população estranha à comunidade luso-brasileira (a condenação
não se faz em nome de direitos civis, filantropia ou do pragmatismo dos economistas);
o poder político da grande propriedade, aqueles a que se referia como os “mandões”
do interior, porque diluíam a autoridade central; a liberdade da igreja, porque
comprometia o regalismo. 69
Logo, na concepção de Varnhagen, as ações violentas promovidas pelo Estado em nome
de seu fortalecimento, são sempre justificáveis. Assim, legitima qualquer ação hostil fomentada
pelo governo do Império contra agentes internos que rivalizem com o poder central, como o
clero e os potentados locais, ou ainda, contra grupos sociais que coloquem em risco a segurança
territorial do país como os povos indígenas, negros, caboclos, mamelucos, mulatos e pobres. O
Memorial Orgânico, texto varnhageniano do qual nos ocuparemos adiante, é representativo
desta concepção. Neste projeto dedicado à nação, Varnhagen apresenta “um diagnóstico e uma
proposta de reorganização nacional a partir do Estado, uma vez que os problemas não se
resolverão por si mesmos, fazendo-se necessário o exercício de uma vontade política”.70 Nele,
indistintamente, todas as propostas defendidas passam necessariamente pela participação direta
do Estado: redefinição das fronteiras internas e externas, maior equidade provincial, mudança
da capital administrativa e, ainda, a intervenção política do executivo na composição étnica da
população do país.
José Carlos Reis define Varnhagen como “um historiador oficial”, um adulador dos
poderosos e um juiz severo dos movimentos e revoltas populares. Sua história oficial é feita de
grandes homens e famílias reais, como a “Casa de Bragança” que para o diplomata e historiador
“construiu o Brasil íntegro, uno, independente”. Seu olhar sobre a história do Brasil é, portanto,
contada a partir do olhar do colonizador português. Por fim, conclui o autor:
69 WEHLING, A., Estado, história, memória, p. 91. 70 WEHLING, A., Estado, história, memória, p. 95.
201
Os brancos são portadores de tudo aquilo que uma nação precisa para se constituir
soberanamente. Aos vencidos, resta a exclusão, a escravidão, a repressão e a
assimilação pela miscigenação, isto é, pelo branqueamento racial e cultural. A
conquista portuguesa foi feita com guerra e sangue. Então, vitoriosos os portugueses,
as terras indígenas serão legitimamente portuguesas. 71
A partir desta concepção de economia política, podemos compreender a lógica interna
que compõe as obras de Varnhagen. Entre outras, destaquemos a “necessária” violência
promovida pelo Estado para evitar a fragmentação territorial da nação, assim como acontecera
com os países da América-hispânica; a reiterada repetição de eventos que sinalizam a
superioridade cultural e política dos colonizadores portugueses e a consequente expansão do
modelo civilizatório europeu ao território americano. Para isso, submete, propositadamente, a
história ao esquecimento, sempre com o objetivo maior de destacar o coroamento do processo
colonial: o surgimento da nova e civilizada nação que se formava nos trópicos. Vejamos abaixo
esta concepção de Estado de Francisco Adolfo de Varnhagen em seu ensaio político “dedicado
à nação”: Memorial Orgânico.
4.3. O Memorial orgânico
Do ponto de vista político, assim Francisco Adolfo de Varnhagen define o Brasil de sua
época em seu ensaio político Memorial Orgânico, publicado na Revista Guanabara no ano de
1851:
O Brasil é um Estado cujas raias com os vizinhos estão por assinar; um império cujo
centro governativo não é o mais conveniente, e cujo sistema de comunicações
internas, se o há, não é filho de um plano combinado; um país enfim, cuja subdivisão
em províncias é desigual, monstruosa, não subordinada a miras governativas, e
procedendo ainda no fundo (na beira mar ao menos) das primeiras doações arbitrárias
feitas, há mais de três séculos, pelos reis portugueses. Ainda mais: assim como não há
plano de comunicações internas que fomentem o comércio e a agricultura, também
não consta havê-lo de defesa do território afim de prevenir, (...) qualquer futura
tentativa inimiga. 72
Sobre a população que compõe a sociedade brasileira, assim se pronuncia o historiador:
E que é nossa população? Para tão vasto país como uma gota de água no caudaloso
Amazonas. Mas pior é a sua heterogeneidade que o seu pequeno número. Temos
cidadãos brasileiros; temos escravos africanos e ladinos, que produzem trabalho,
temos índios bravos completamente inúteis ou antes prejudiciais, e temos
pouquíssimos colonos europeus. 73
71 REIS, J. C., As identidades do Brasil, p. 34. 72 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p.357. 73 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p.357.
202
Na primeira publicação do Memorial Orgânico, feita em Madri no ano de 1849,
Varnhagen dedica seu tratado político, como o preferimos chamar, a um público específico: às
Assembleias Gerais e provinciais do Império, e o faz de forma anônima. Assim o fez por julgar
mais conveniente que suas ideias fossem ajuizadas segundo o seu valor, sem qualquer
interferência de seu nome. Segundo diz, sob pressão de seus amigos, republica o Memorial na
Revista Guanabara no ano de 1851, agora de forma resumida e principalmente, nominada, e
desta vez “oferecido à nação”. Fala agora o patriota, ciente das críticas e dos embates teóricos
que por ventura venha a sofrer: “por esse lado sentir-me-ia eu com abnegação bastante, e com
energia para arrostar com balas de papel, e espero não me dar por morto moralmente, enquanto
tiver alento de vida”. Estrategicamente, lembra da importância das suas ideias, capazes de
retirar o país do “ramerrão” que se encontrava, mesmo que para isso sofra censura.74
Estrategicamente pois, as reservas que faz acerca da receptividade de seu tratado nos meios
intelectualizados do Império, ao qual pertencia, demonstram a ciência que tinha acerca das caras
e polêmicas ideias que defende, principalmente àquelas destinadas à população indígena do
território brasileiro. Além de referendar propostas agressivas que contrariavam a política
indigenista do Regulamento de 1845, contrariava ainda a perspectiva quase majoritária entre os
intelectuais do Império: um indigenismo filantrópico.75 Como lembra Doriguello Júnior, “ao
contrário dos outros sócios, que afiançavam que os indígenas recalcitrantes resultavam da longa
história de violência perpetrada pelo colonizador”, encontrava-se Varnhagen e sua crítica aos
métodos morosos e filantrópicos utilizados pelos jesuítas em sua pratica indigenista.76
Em seu tratado, demonstra profundo conhecimento acerca dos principais problemas que,
em sua compreensão, atrasavam a formação de uma grande nação brasileira, com destaque a
questões centrais como: fronteiras externas indefinidas, segurança nacional ineficiente e
inapropriada, centro governativo geograficamente inconveniente, falta de comunicações
internas, relações territoriais e políticas não equitativas entre as províncias e, finalmente,
heterogeneidade racial. Segundo Varnhagen, enfrentar estas proposições com adulações ou sem
a devida verdade seria um crime para com a pátria e “longe de fomentar o patriotismo,
ocasionam a incúria e o desleixo”. Sobre o país de seu tempo, afirma sentir uma profunda dor
74 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p.357. 75 Em sua dissertação de mestrado, principalmente em seu terceiro capítulo, Doriguello Júnior realiza uma
minuciosa análise sobre essa percepção indigenista filantrópica que imperou no IHGB e nos principais grêmios
literários e científicos durante o império. DORIGUELLO JÚNIOR, C.A., Os indígenas nas páginas da RIHGB. 76 DORIGUELLO JÚNIOR, C. A., Os indígenas nas páginas da RIHGB, p. 115.
203
quando ouve elogios à prosperidade do Império, “vendo o que ele é, e o que podia, - o que devia
ser”.77
Sobre as propostas que defende, acredita tratar-se de sugestões que, se devidamente
aplicadas, projetariam o jovem e independente país, de forma mais rápida, rumo à entidade
desejada, ou seja, a uma grande nação. Para Varnhagen, as amarras coloniais, principalmente
as antigas práticas políticas e econômicas, inibiam e obstruíam o desenvolvimento do país. Para
tanto, se mostra cético a qualquer paradigma que lembre um passado colonial, pois assim ainda
considera o país: “o Brasil declarou-se independente; proclamou o Império; e depois de um
quarto de século acha-se quase na mesma; e com mais ar de colônia, ou antes de muitas colônias
juntas que de nação compacta”. Corrobora seu argumento justificando que, assim como antes,
sua estrutura econômica continuava dependente do comércio exterior e como colônia,
continuava a se sustentar. Àquilo que julga como vicioso, promete não adular, colocando “o
dedo em várias chagas do país para acusar delas a existência”, como seu sistema político, que
qualifica como afeito à “falta de coragem política” para realizar mudanças que “poderiam
prejudicar as eleições da seguinte legislatura”.78 Como vemos, Varnhagen adota uma postura
que, certamente, contrariava a classe política e a elite agrária do país, afeita a seus históricos
privilégios e, isso explica, provavelmente, o anonimato da publicação da primeira versão do
seu Memorial.
Em sua projeção da nação brasileira, Varnhagen se mostra estranho a qualquer pacto
com a preservação de sua natureza, elemento que, em sua concepção, não se coaduna com
civilização. Em tom agressivo, critica as vozes que anunciam a grandiosa natureza do país,
possivelmente fazendo implícita referência aos românticos literários, com quem também não
se coaduna:
Ora! O país é grande: temos muitos recursos: no futuro seremos e aconteceremos, etc.
– Desgraçados! E que havemos de ser, se não pomos de nossa parte os meios? Quereis
natureza tão fecunda como a nossa? Aí tendes toda a Guiné, aí tendes a maior parte
da Ásia... E que valem esses países? Nada, quanto seus habitantes nada para isso
concorrem. Por ventura a natureza portentosa do Brasil já não era a mesma na época
do descobrimento? 79
Quanto aos nativos que viviam em meio à natureza brasileira quando de seu
“descobrimento”, pergunta: “e o que era o Brasil com seus indígenas? ” E ele mesmo responde:
“o mesmo que seria daqui a três séculos se desde hoje nos votássemos todos ao abandono”.80
77 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p.358. 78 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p.358. 79 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p.357-358. 80 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p.358.
204
Varnhagen sustenta a incapacidade dos habitantes americanos em transformar a natureza e titula
esse direito e tarefa aos colonizadores e seus herdeiros. Wehling nos lembra sobre os duros
embates entre Varnhagen e os representantes do romantismo literário brasileiro. Em 1852,
enquanto diplomata do Brasil em Madri, em uma de suas correspondências com o Imperador,
encaminha-lhe memória sobre como se deveria entender a nacionalidade brasileira. A carta
seria uma crítica a Gonçalves Dias que publica na Revista Guanabara um artigo sobre a
memória da população indígena Tupi enquanto fundamento da história da “nação” que nascia
nos trópicos. Sobre este assunto, ocupou inúmeras páginas onde travou embates ao longo da
década de 1850/1860, principalmente com Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa e, ainda, o
também diplomata e poeta romântico Domingos José Gonçalves de Magalhaes. O papel do
indígena na nacionalidade brasileira volta a ganhar críticas em 1857 na publicação de História
Geral do Brasil e em artigos posteriores. 81
Varnhagen define seu receituário prescritivo como necessário para que, com “convicção
profunda, amor de pátria, caráter firme e enérgico, coragem e dedicação”, o país seja salvo.
Com vistas à ilustração do país e de suas instituições afirma:
O primeiro soberano que veio à América franqueou os portos do Brasil e elevou-o a
categoria de reino. O segundo emancipou-o com uma coroa imperial. Qual deve ser a
missão do terceiro? Do primeiro soberano nascido no novo mundo? Não será a de
organizar fundamentalmente e assegurar para sempre o seu vasto império? 82
E é assim, com os olhos no futuro e “sem adulações que vexem a modesta pátria”, que
o estadista oferece o seu receituário prescritivo à nação brasileira. Em sua concepção, “ou se
adotem os meios que propomos ou se adotem outros, o essencial é tratarem-se radicalmente os
males apontados”.83 Para Varnhagen, não encarar os problemas de frente neste momento,
colocaria em risco o futuro do Estado brasileiro que, em sua concepção, não apresenta os
fundamentos necessários que sustentam qualquer país que se pretenda tornar uma grande nação.
É por isso que, em seu tratado político, com os olhos nos países europeus e no futuro do Brasil,
o estadista destaca as faltas estruturais que, em sua compreensão, retardam o progresso do país
e o seu ingresso no conjunto das nações civilizadas. As presenças, lhe são dispensáveis.
Pragmático, releva aquilo que não temos e aponta caminhos e soluções que contribuam ao
desenvolvimento e ao futuro da nação, ao contrário dos românticos, que destacam o que temos,
81 WEHLING, A., Integridade e integração nacional, p. 51. 82 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 359. 83 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p.358.
205
o que nos dá cor e fundamenta o nosso passado, como os indígenas. Eis as diferenças e a origem
dos embates entre Varnhagen e seus oponentes indianistas. Enquanto o historiador do Memorial
Orgânico e da História Geral do Brasil apresenta uma visão prospectiva da história e busca
projetar a nação perante as outras nações, principalmente as europeias, a qualquer custo, seus
oponentes indianistas apregoam um olhar retrospectivo à nossa história e procuram no passado
valores que possam nos representar e nos definir no tempo presente e nos sustentar no futuro.
Prospectivo, Varnhagen vislumbra uma nação que ainda não vê, mas que se adotar o receituário
por ele proposto, tem todas as chances de tornar-se uma grande nação nos trópicos da América
do Sul. Vejamos as faltas destacadas e as propostas corretivas defendidas por Francisco Adolfo
de Varnhagen em seu Memorial Orgânico.
4.4. Unidade territorial e integração nacional.
No prefácio do livro Varnhagen (1816-1878), Moreira Lima afirma que com propósitos
que levassem o Brasil à grandeza nacional, “o patrono da historiografia brasileira teve o mérito,
como diplomata e homem público, de pensar o Brasil de uma perspectiva geopolítica e
geoestratégica”.84 Já destacamos acima as principais questões destacadas pelo estadista que, em
sua concepção, atravancavam o caminho do progresso e a prosperidade do Estado Nacional
brasileiro. Entre elas, destaca a indefinição dos limites geográficos do Brasil com os países
limítrofes, haja vista que o Império só estava devidamente limitado pelo oceano, como afirma.
No entanto, para o diplomata, esta é uma questão de fácil resolução. Em sua compreensão, o
entendimento mútuo e “concorde” entre as nações envolvidas sobre a necessidade de definir-se
os limites territoriais, afastaria os interesses particulares do palco de negociações. Como
alternativa, salienta a necessidade de realizar-se acordos bilaterais com os países limítrofes ao
Brasil através do amparo de farta documentação, conhecimento histórico, geográfico e jurídico
da região em litígio. Assim, coloca-se contra a convocação de um congresso sul-americano que
intencionasse discutir e negociar a definição dos limites de forma conjunta. Para Varnhagen, a
justiça dos acordos bilaterais dependeria de estarmos “bem inteirados de nossos direitos e da
história e segredos de negociações anteriores”.85
Para o diplomata, a resolução e a definição das fronteiras nacionais era de interesse
comum aos países latino-americanos pois, neste momento, praticamente todos os países da
84 MOREIRA LIMA, S.E., Prefácio, p. 14. 85 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 364.
206
região encontravam-se em processo de formação e consolidação nacional. Com a França,
Varnhagen acredita poder utilizar-se a convenção de Paris de 1817.86 Com a Inglaterra, afirma
que a separação “deve fixar-se pela corrente das águas, e se há lugar onde estas não correm,
dividir por meio esse território neutro”. Com as repúblicas Hispano-americanas, acredita no uso
do direito de posse e, em caso de desacordo, nos históricos tratados de Madri e Santo Ildefonso,
de 1750 e 1777 respectivamente. Considera como mais problemáticas e nevrálgicas as
fronteiras do Prata e acredita ser oportuno esperar a definição do território Uruguaio e, em caso
de desacordos, afirma rogar a Deus para que abençoe as armas brasileiras. 87 De qualquer forma,
prevalece o otimismo do diplomática que acredita no poder da história como força
argumentativa para a definitiva definição das fronteiras nacionais.
Coerente com sua preocupação geopolítica de salvaguardar a integridade territorial do
país e com o propósito de segurança nacional, Varnhagen engajou-se em uma polêmica
discussão. Propõe a transferência da capital do Império para o interior do país, ideia que
idealizou e defendeu até sua morte. Como afirma Moreira Lima, em 1877, um ano antes de sua
morte, enquanto ainda era “representante do Brasil na Áustria de Francisco I, realizou
expedição pioneira ao Planalto Central para identificar a exata localização geográfica de uma
futura capital”. Além de um novo centro governativo ao Império brasileiro, esta mesma
expedição que seguiu o roteiro Rio de Janeiro-Formosa/GO, situada a 75 quilômetros da atual
cidade de Brasília, “visava também ao reconhecimento de regiões propícias à participação
europeia no esforço de povoamento e desenvolvimento do Centro-Oeste do país”.88 Sobre suas
proposições em que defende o branqueamento da população brasileira através do incentivo à
imigração de colonos europeus, discutiremos adiante.
São vários os argumentos levantados por Varnhagen para justificar a interiorização da
capital do Império do Brasil; no entanto, toma o quesito “segurança e inviolabilidade nacional”
como principal alegação. Ao referir-se à Bahia, antiga capital e à capital contemporânea do
Brasil, o Rio de Janeiro, afirma que “nem uma nem outra oferecem à nação, apesar de suas
aparentes fortificações, as garantias de segurança e de inviolabilidade que ela exige”. Para
justificar sua proposta, percorre o catálogo das nações europeias e da América do Norte para
demonstrar como as primeiras e principais potências marítimas “não tem suas capitais junto ao
86 Através desta convenção, o Brasil restituiu a cidade de Caiena, na Guiana Francesa, à França de Luís XVIII. O
território francês na América do Sul fora ocupado pelo governo de dom João VI, já no Brasil, quando declarou
guerra ao Império francês no ano de 1808. Pelo acordo assinado, o Reino de Portugal devolveria o território
ocupado até o rio Oiapoque. 87 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 364- 365. 88 LIMA, S. E. M., Prefácio, p. 14-15.
207
mar, como se a política ou instinto da própria defesa lhes dissesse que estavam, como estão,
assim mais seguras”. Argumenta ainda que as vantagens de termos a capital sobre o mar não
compensam a fraqueza e o comprometimento a que fica exposta a nação, principalmente em
um momento em que “graças à invenção dos caminhos de ferro, podemos fazer em algumas
horas comunicar com a beira-mar qualquer ponto do sertão”.89 Além da segurança, outro
argumento que justifica a interiorização da capital era de caráter econômico. Varnhagen afirma
que como a capital “é o centro do luxo”, sua interiorização estimularia a riqueza no sertão do
país e, envolvida que seria por “focos de civilização”, esta região abandonaria o estado quase
natural em que permanecia. São conhecidos os dissabores do estadista com a preservação de
áreas naturais intocadas e, para Varnhagen, a nova capital poderia, ainda, irradiar sua riqueza e
civilidade em diferentes raios através da instalação de “certa indústria fabril e manufatureira”
em suas imediações. 90
A ideia de Varnhagen, ao propor a interiorização da capital brasileira, se coaduna com
duas outras propostas que realiza em seu Memorial: um plano de comunicações internas que
fomente o comércio e a agricultura e uma redivisão territorial do país que reduza as relações
políticas e produtivas não equitativas entre as províncias do Império, ambas atreladas a sua
intenção maior de fomentar a unidade nacional. À primeira proposta, Varnhagen afirma desejar
ver no Brasil uma profusão de estradas de ferro como na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos,
mas, de forma pragmática, reconhece os problemas financeiros do país para esta empreitada.
No entanto, sugere que ao menos uma de tais estradas não possa ser dispensada de seus planos:
a estrada de ferro que faria a ligação entre a nova capital com algum porto do litoral. O estadista
afirma estar certo de que no fim de alguns anos esta ligação haveria de indenizar o seu custo.
No entanto, enquanto a capital não fosse efetivamente transferida para o interior, o proponente
sugere que se faça uma comunicação, “o quanto antes”, por estrada de ferro, entre o “empório
de Minas, isto é, a bacia do Rio São Francisco com o mar”, sem que se pense em seu custo
financeiro. De forma logística e pensando em um futuro próximo, sugere que os trabalhos
gráficos para a malha ferroviária “devem ser feitos desde logo, considerando-o na totalidade, e
não por partes”.91
O projeto ferroviário de Varnhagen estava interligado a um projeto de comunicação
interno maior: a ligação ferroviária, combinada com a plena utilização do sistema hidroviário
nacional, interligado ainda por uma grande estrada de rodagem. Argumenta que, com a “estrada
89 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 366. 90 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 365-366. 91 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 370, 429.
208
de ferro até o S. Francisco, passaria este rio a ser navegado a vapor; do que resultaria ficar o
Império desde logo comunicado de norte a sul (...), isto é, aos fundos da província de
Pernambuco”, e logo que os vapores fossem se entranhando pelos afluentes do S. Francisco, a
comunicação seria estendida para as águas do Piauí, do Tocantins e do Paraná. Por último,
argumenta sobre a necessidade da construção de uma grande estrada de rodagem que cortaria a
capital de norte a sul do país, chegando até Bagé, no Rio Grande do Sul.92
Mais do que interligar e facilitar o acesso e os meios de transporte entre as províncias,
Varnhagen também propõe uma redivisão territorial do país. Sobre a configuração das
províncias argumenta que “todos temos olhos para ver em qualquer mapa as suas desigualdades;
isto é, a monstruosidade de umas e a quase nulidade de outras”, e complementa:
(...) as estrelas do Império para o seu uniforme regime e movimento devem constituir
uma constelação regular. E isto quando as diferentes peças da monarquia brasileira
para que esta se mantenha em equilíbrio devem ser, quando possível, de igual força e
resistência, à maneira das pedras de uma abóbada de volta inteira, que sustentando-se
e apoiando-se umas nas outras, conseguem sustentar o edifício todo. 93
A citação acima demonstra a preocupação de Varnhagen com a ameaça que as inúmeras
insurreições provinciais que assolavam o Império nos últimos vinte anos representavam à
unidade e à integridade territorial do Brasil. Respeitadas as particularidades e as demandas
específicas de cada uma destas insurreições, estes movimentos provinciais colocaram em
evidencia a desigual estrutura de poder e de representatividade política e financeira das
províncias frente ao Império, o que serviu de substrato ideológico a muitas destas revoltas.
Sobre essa preocupação, Wehling afirma que, “considerando-se o acúmulo de manifestações
regionais no país em menos de duas décadas que precederam o Memorial orgânico, fossem ou
não secessionistas, não é razoável supor que a intenção de Varnhagen fosse tão somente tornar
mais eficaz a administração pública”.94 Antes, pretendia eliminar ou evitar possíveis focos de
revoltas localizadas que colocavam em risco a integridade e a unidade do Império.
Pensando nisso, Varnhagen defende a eliminação das “muitas anomalias" existentes na
divisão do território brasileiro, e por isso, considera vergonhoso que não se tenha pensado a
respeito da maior equidade territorial entre as províncias.95 Defende a urgência de
“proporcionar-se às províncias mais harmonia, mais igualdade, e fazer que a ação governativa
92 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 367. 93 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 362. 94 WEHLING, A., Integridade e integração nacional, p. 47. 95 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 362.
209
não seja mais eficaz em umas que em outras”. Lamenta a falta de informações cartográficas e
estatísticas mais precisas sobre o território brasileiro, o que evitaria dúvidas e controvérsias
quanto à demarcação territorial mais equilibrada entre as províncias, mas, na falta destas, sugere
que se tome por linhas divisórias os limites naturais como rios e serras.96 Assim, de forma
pragmática, sugere que se titule um território proporcional a todas as províncias, com
“suficiente população e riqueza, para que gozem de igual importância” e de capitais suficientes
para que possam empreender grandes obras. Além disso, reflete sobre o necessário
desenvolvimento autônomo de cada província e em sua integração econômica à região a que
pertence. Para isso, propõe uma redivisão territorial que ofereça a cada unidade representativa
do Estado nacional um ou dois portos de mar ou rios para a melhor distribuição e escoamento
de sua produção.97
Varnhagen defende a criação de mecanismos políticos que integrem as distintas
geografias locais, principalmente as mais afastadas do centro governativo, em torno de uma
unidade identitária nacional. Por isso se propõe a pensar em um conjunto de propostas político-
administrativas que, além de “civilizar” o Brasil, evitassem sua fragmentação e o rompimento
da unidade e integridade política da ainda frágil e incipiente nação. Assim, defende a atuação
firme e forte do Estado como gestor de políticas que atendam a esse fim. Como nos informa
Wehling, no Memorial de Varnhagen “o Estado apresenta-se como ponto culminante e questão
central da organização da sociedade”, e a preocupação com o enfraquecimento da unidade
nacional foi uma constante do autor. Wehling define o estadista como antifederalista e lembra
que chegou a defender mecanismos políticos que pretendiam esvaziar as identidades
provinciais”.98 Ratificamos que a preocupação de Varnhagen e, de forma geral, da elite política
e intelectual do Império, justificava-se se pensarmos no contexto mais imediato em que
prolongadas agitações, separatistas ou não, assolaram distintas regiões do território brasileiro.
Lembremos que essas agitações regionais colocavam o país em um paralelo histórico próximo
ao das ex-colônias espanholas da América que, em seu pós-independência, fragmentaram-se
em inúmeras e distintas unidades politicamente frágeis. Na sequência, veremos que, às
propostas geopolíticas e geoestratégicas destinadas ao fortalecimento da unidade e à integridade
territorial do Brasil, somam-se outras que atendiam ao desejo do proponente e da elite política
e intelectual do Império de, em um futuro “próximo”, erradicar a “nódoa” da diversidade étnico/
racial da composição populacional brasileira.
96 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 386. 97 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 386. 98 WEHLING, A., Estado, história, memória, p. 86-88.
210
4.5. A intervenção do Estado na transformação da composição étnica da população
brasileira na concepção de Varnhagen.
Conforme Goes Filho, Varnhagen, o filho de um alemão e de uma portuguesa, casado
com uma chilena (e com descendentes chilenos), amava o Brasil. No entanto, “o país que ele
amava era o das elites portuguesas e brasileiras, o da Coroa unificadora, o da civilização
europeia; não muito (para ser eufêmico) o dos negros, dos índios ou das revoltas regionais”.99
Assim, em seu projeto nacionalista, Varnhagen procurava explorar cientificamente nosso
espaço físico, político e econômico e, ainda, adentrar no espaço étnico/racial com propostas que
viessem a “civilizar o Brasil”. No primeiro aspecto, como já destacamos, defende a unificação
de nossas instituições político/administravas com o interesse de integrar as distintas províncias
do país sob o mesmo acorde e, assim, harmonizar suas instituições e diferenças regionais. No
segundo, se aplicava àqueles elementos humanos que atravancavam o surgimento do tipo de
sociedade que vislumbrava. Neste momento, os esforços de seu programa ilustrado irão se
concentrar à eliminação da diversidade étnico/racial brasileira, principalmente aos negros e
índios. Lacônico aos primeiros e prolixo aos segundos, o programa de Varnhagen defende a
subjugação de ambos aos ditames e interesses do Estado com vistas à homogeneização racial
da futura nação que se esmerava no paradigma racial europeu como meta a ser atingida em um
horizonte breve.
Como nos lembra Pacheco de Oliveira, “a unidade de análise social que chamamos de
nação, com todos os bens culturais que a exaltam e dignificam, está assentada em processos
violentos de submissão das diferenças e na erradicação, sistemática e rotineira, de
heterogeneidades e autonomias”.100 O projeto de Varnhagen é representativo deste axioma. Em
seu Memorial Orgânico, apresenta um interesse prospectivo em que defende a submissão das
diferenças étnicas e, para isso, desenha um projeto de políticas públicas com vistas à pretensa
homogeneidade racial do país. Seu principal alvo eram os povos indígenas, negros e, por último,
coerente com seu projeto de branqueamento nacional, os imigrantes europeus. Como afirma
Wehling, para o diplomata, “tudo o que sublinhava a diferença e que, mesmo remotamente,
pudesse ameaçar a integridade do país, aparecia-lhe como um crime de lesa-pátria”.101 Ainda
segundo o autor, para Varnhagen:
99 GOES FILHO, S. S., A geração de Varnhagen (...), p. 95. 100 OLIVEIRA, J. P. de., O nascimento do Brasil e outros ensaios, p.75. 101 WEHLING, A., Integridade e integração nacional, p.40.
211
A intervenção para alterar qualitativamente a composição étnica do povo brasileiro
era, em sua opinião, medida indispensável para se obter, em um ou dois séculos, uma
uniformidade na população, sendo esta um meio de se evitar a guerra civil que
certamente ocorreria se persistisse a proporção de brancos, negros e índios da
época.102
À diversidade étnica do território brasileiro, Varnhagen interpôs seu nacionalismo
homogeneizante em nome de uma nação branca e europeia e proclamou o seu fim em um futuro
breve. Assim, não somente vislumbrou um país determinado à unidade política, mas também,
étnica e culturalmente homogêneo. Vejamos as polêmicas sugestões defendidas pelo estadista
em seu Memorial Orgânico às diferentes identidades raciais; propostas que o colocava em
permanente “embate” com muitos de seus contemporâneos.
Sobre a presença do elemento negro no Brasil e aos defensores da permanência do
tráfico negreiro em nome da cultura da cana e do café, clama por mais patriotismo e
comprometimento com o porvir da nação. Acusa-os de estarem “preparando um vulcão” e de
comprometerem o futuro do país, questionando-os: “quereis, pois, ver o vosso Brasil daqui a
séculos igual ao continente d’África fronteiro, e vossos netos reduzidos talvez a condição de
servos dos netos dos africanos? ”. 103 Para Varnhagen, “a escravatura dos africanos tornava o
país escravo de si próprio” e, assim, afirma: “é urgentíssimo impedir-se que entrem mais; e
antes pedirmos todos amanhã esmolas e andarmos descalços que ver o belo e risonho Brasil, a
nossa pátria, convertida numa catinguenta Guiné”.104 O receio de Varnhagen tem sua origem
no considerável crescimento absoluto de escravos importados nos anos que precedem a
publicação da primeira edição de seu Memorial, em 1849. Vejamos os números:
TABELA 1
Importação de Escravos (1840-1853).
Ano Número Ano Número Ano Número
1840 20.796 1846 50.324 1852 800
1841 13.804 1847 56.172 1853 -
1842 17.435 1848 60.000
1843 19.095 1849 54.061
1844 22.849 1850 22.856
1845 19.453 1851 3.287
Fonte: CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial: Teatro de sombras: a
política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 301.
102 WEHLING, A., Estado, História, Memória, p. 99. 103 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 391. 104 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p.363.
212
Embora não haja notícias de revoltas por essa época, em 1849 a cidade do Rio de Janeiro
contava com 41% de sua população composta por escravos, sem considerar os negros libertos.
Certamente, esses números causavam apreensão entre os opressores escravocratas e à elite
política e intelectual do Império. Murilo de Carvalho afirma que, neste momento, quase todos
os políticos reconheciam a obrigação moral e legal de interromper o tráfico de escravos, mas
não se posicionavam abertamente a favor de sua extinção temendo as consequências
econômicas da medida.105 Na contramão de seus contemporâneos, Varnhagen defende a
interrupção do tráfico negreiro em nome de uma futura pátria racialmente branca, mesmo em
detrimento dos efeitos econômicos que isso poderia causar, como a falta de mão de obra. Além
da preocupação com o retardamento do branqueamento racial da população brasileira, o
crescimento absoluto da população negra também preocupava o estadista por questões de
segurança, assim como preocupava os seus contemporâneos. Como lembra Murilo de Carvalho,
as turbulências regenciais causaram preocupações, como uma possível “guerra de raças, ou
como se dizia, com o haitianismo”. Para explicar esse receio, o autor lembra a assertiva do
liberal Evaristo da Veiga que disse que “o tráfico acumulava escravos como se acumulam barris
de pólvora todos os dias ajuntados à mina”.106 De forma análoga a Evaristo, Varnhagen compara
o crescimento do tráfico a um vulcão, pronto para irromper em um futuro muito breve.
Varnhagen não defende o fim do tráfico negreiro por filantropia. Afirma fazê-lo por
patriotismo. Aos que defendem a permanência do tráfico, acusa-os: “egoístas insensatos! E
sacrificas assim o futuro do vosso país a um conto de réis de menos ou de mais para as
alfândegas”.107 Clama aos seus contemporâneos por mais patriotismo. Como vemos, sua análise
ampara-se em sua posição de estadista que defende um projeto claro de intervenção direta do
Estado no principal cancro que ameaça o êxito de seu projeto em que desenha um futuro
etnicamente mais alentador ao Brasil e também, ameaçava o topo da pirâmide social daquele
período. Varnhagen só considera a escravidão como lícita em uma situação: “conforme o
Evangelho (...) quando necessária para a segurança do Estado e melhor governo dos cativos”,
condições que não se atendiam no Brasil de então. Caso contrário, afirma ser “cegueira ou
perversidade proteger a entrada de mais africanos”. Sugere que “a mais essencial providência
a tomar é que não entre um só mais, para o que baste que se declare roubo à fazenda a posse de
um escravo que não se prove que já estava no Brasil na ocasião da publicação da lei que cumpre
105 CARVALHO, J. M. de., A construção da ordem, p. 300-302. 106 CARVALHO, J. M. de., A construção da ordem, p. 295. 107 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 391.
213
promulgar”.108 Além do mais, afirma estar convencido que a presença negra inibe a emigração
espontânea do branco para o Brasil. Como alternativa, sugere que se ofereça ao trabalhador
europeu, assim como acontecia nos Estados Unidos, “algum distrito sem escravatura”, pois “o
trabalhador europeu não se atreve sem vexame a pegar na enxada ao lado do escravo”, antes
pedem a seus amos para voltar à Europa. 109
No entanto, Varnhagen tinha ciência da impossibilidade da imediata substituição da mão
de obra escrava pelo imigrante europeu e para suprir seus braços, recomenda que se cumpra
“providências acerca dos indígenas” pois considera:
(...) sem razão estarmos deixando os índios bravos a guerrearem-se por tantos sertões
nossos e deles, devorando-se uns aos outros; porque em África guardam os cativos;
mas os botocudos assam-os e comem-os. Porque motivo em lugar de irmos buscar
africanos além dos mares para os escravizar, não havemos antes, dentro do Brasil,
prender à força os índios bravos para os desbravar e civilizar? Teríamos com eles um
aumento de braços menos perigosos que os dos negros, porque daqui a pouco estariam
misturados conosco em cor e em tudo; e então teríamos em todas as províncias-povo-
classe social que algumas não possuem. 110
Anteriormente, apresentamos uma proposição em que Varnhagen afirmou ser a
população brasileira “como uma gota de água no caudaloso Amazonas”, mas que “pior é a sua
heterogeneidade que o seu pequeno número”. Lembremos que o Memorial Orgânico fora
idealizado por um intelectual que procurava deixar sua contribuição à construção da nova nação
que se desenhava nos trópicos e, como tal, seu autor precisava adotar uma postura otimista em
relação ao país e à sua população. Logo, tornava-se imperioso que em seu projeto de nação, a
mistura das raças fosse considerada viável e contributiva ao futuro do país. Por isso, Varnhagen
demonstra otimismo em relação à miscigenação, principalmente à indígena, e através desta
vislumbra um futuro mais alentador ao Brasil, densamente povoado e, principalmente,
etnicamente branco, como evidencia-se na citação acima. Em seu Memorial, fica implícito que
a miscigenação, o gradativo branqueamento e a integração dos indígenas enquanto “braços”
úteis à nação brasileira, fora compreendida por Varnhagen a partir de uma ótica evolucionista,
como um aperfeiçoamento racial, tão necessário à nação que se almejava.
Também já afirmamos anteriormente que, em seu Memorial Orgânico, Varnhagen adota
uma postura lacônica em relação ao elemento negro. Posiciona-se contrário à permanência do
tráfico de escravos, mas não mensura qual o grau de participação do negro na futura sociedade
108 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 391-392. 109 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 391. 110 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 392.
214
miscigenada que anuncia. Assim, não se preocupa em apresentar os métodos de integração
destes à sociedade nacional, como faz em relação aos índios, antes, se omite. Para compreender
essa postura, tomemos as considerações proferidas por Nilo Odalia quando analisa a obra
História Geral do Brasil, momento em que Varnhagen adota uma postura semelhante. Para
Odalia, “não é destituído de significação o fato de Varnhagen traçar uma nítida diferença de
tratamento entre o índio e o negro”, com evidente prejuízo ao último. O pesquisador avalia essa
postura a partir da ideologia proposta por Varnhagen em viabilizar a sociedade branca que tanto
defende. Odalia afirma que para o estadista:
Brancos e índios possuem uma origem étnica comum, enquanto nada existe que una
brancos e negros; nenhuma origem comum que possa justificar a fusão das duas raças.
Se a fusão racial — brancos e negros — deve processar-se, o que vai justificá-la é tão-
somente a necessidade do branqueamento da população e a obrigação de se reparar o
erro histórico da escravidão negra. Nada mais.111
Em grande medida, a defesa de uma sociedade miscigenada em Varnhagen, se coaduna
com as propostas do botânico e viajante bávaro Martius apresentadas em sua monografia Como
se Deve Escrever a História do Brasil. Ao iniciá-la, o bávaro afirma que a particularidade da
nação brasileira viria da miscigenação das três raças: do branco, do índio e do negro. No entanto,
a força moral de cada raça seria diferenciada para estabelecer sua hierarquia e supremacia.
Jamais nos será permitido duvidar que a vontade da providência predestinou ao Brasil
esta mescla. O sangue português, em um poderoso rio deverá absorver os pequenos
confluentes das raças índia e etiópica. Na classe baixa tem lugar esta mescla, e como
em todos os países se formam as classes superiores dos elementos das inferiores, e
por meio delas se vivificam e fortalecem, assim se prepara atualmente na última classe
da população brasileira essa mescla de raças (...).112
Tanto quanto Martius, Varnhagen também apresenta a heterogeneidade racial do Brasil como
uma nódoa e, igualmente, apresenta a miscigenação como alternativa à superação deste
demérito. Ambos sublinham e naturalizam a sobreposição hierárquica do colonizador português
e seus herdeiros brancos sobre as demais raças e sublinham as qualidades físicas e morais do
“descobridor, conquistador e senhor” que “deu as condições e garantias morais e físicas para
um reino independente”, afinal é ele que fora apresentado “como o mais poderoso e essencial
motor” à jovem nação.113 Logo, ao apresentar as desigualdades biológicas entre as raças e
111 ODALIA, N., As formas do mesmo, p. 93-94. 112 MARTIUS, K. F. P.,Como se deve escrever a História do Brasil, p.383. 113 MARTIUS, K. F. P., Como se deve escrever a História do Brasil, p.382.
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posteriormente, suas considerações evolucionistas, ambos procuravam justificar a manutenção
do domínio hierárquico do branco sobre os índios e negros.
Enquanto Martius lembra os atributos físicos e morais dos portugueses, Varnhagen, por
seu turno, lembra da incapacidade moral dos índios perante a constituição. Se juridicamente
incapazes, advoga que o direito civil não pode “ver neles mais que uma gente estranha ao pacto
social, que abusa da piedade que com eles se tem”. Em sua compreensão, os indígenas
representavam uma barreira “humana” à efetiva ocupação do território brasileiro “por estarem
nos matos e impossibilitarem que estes se transitem e se cultivem”, e pelos cruéis assaltos que,
segundo afirma, praticavam “às nossas fazendas suas vizinhas”, que se “tem visto obrigadas a
ceder-lhes os campos até hoje”.114
Lembremos que o Memorial fora escrito no ano de 1849, momento de acalorados
debates sobre a Lei de Terras, promulgada no ano seguinte. Em meados do século XIX, novas
frentes de expansão demográfica passaram a ocupar “as últimas faixas da floresta atlântica onde
grupos indígenas se mantinham independentes” e onde os últimos bolsões florestais seriam
rasgados por novas frentes agrícolas, por estradas de ferro e redes telegráficas que viriam a ligar
regiões até então formadas por arquipélagos humanos. Assim, para a conquista destes espaços,
interessava a eliminação de estilos arcaicos e tradicionais de vida, como dos indígenas e
sertanejos que representavam “um sério obstáculo à integração de seu território na economia
nacional”.115
Neste momento, o vetor da economia nacional apresentava curva ascendente,
impulsionado principalmente pelo aumento da produção do café. A região sudeste apresentava
considerável multiplicação de fazendas cafeeiras e, em paralelo a este crescimento, aconteciam
os estímulos aos projetos de colonização europeia no sul do Brasil. A pressão ocupacional dos
últimos bolsões de terras ainda sob domínio de índios nestas regiões e os constantes ataques e
enfrentamentos entre os indígenas e as novas frentes agrícolas e colonizatórias ganham destaque
nos jornais nacionais e internacionais. Logo, havia um contexto histórico oitocentista que
alimentava e acirrava os debates em torno do indígena, sem, no entanto, se apresentar
homogêneo, como fica evidente no pronunciamento de Varnhagen. Ao apresentar os métodos
e práticas que, em sua concepção, deveriam ser empregados à sociabilidade do indígena à
nação, o estadista demonstra desconforto e constrangimento para com seus pares:
114 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 393. 115 RIBEIRO, D., Os índios e a civilização, p. 92-93.
216
Há hoje em dia uma tal praga de falsos filantropos, graças a Rousseau, ou a Voltaire,
ou a não sei quem, que a gente em matéria de índios não pode dizer palavra, sem que
lhe caiam em cima os franchinotes, com estas e aquela sediças teorias pseudo-
filantrópicas. 116
Defensivamente, antes de expor os métodos indigenistas e as práticas civilizatórias que
defende, Varnhagen justificou seus argumentos e atacou seu objeto de ação indigenista, o índio,
e posteriormente, seus filantropos defensores. Sobre estes, chama-os de “philo-tapuias e
ignorantes” e, agressivamente, questiona: “não sabeis que essa gente era e é nômade, e sem
assento fixo; e que só aproveita do território enquanto nele acha caça? E não sabeis também
que essa raça, pela maior parte botocuda e canibal, não era indígena, mas sim invasora, e intrusa
nesse território? ”.117 Acusa-os de não serem cidadãos brasileiros pois “não cumprem nenhuma
das obrigações das leis, e andam vadiando e com as orelhas e beiços furados, em vez de serem
guardas nacionais e vestir uniforme”.118 Logo, para Varnhagen, enquanto essas comunidades
étnicas autônomas não se submetessem aos ditames da nação que então se formava e se
consolidava, estariam destituídos de qualquer direito histórico ou civil.
O pronunciamento de Varnhagen em que nega o direito de cidadania aos índios do
território brasileiro, não inaugura nenhum debate novo entre os políticos e intelectuais
responsáveis pelo processo de formação e consolidação do Estado Nacional. Como nos mostra
Fernanda Sposito, esta mesma pauta já estava em discussão entre os deputados responsáveis
pela promulgação da primeira constituição do Brasil em 1823. A autora destaca o vulto tomado
pela discussão parlamentar que procurava acomodar a heterogênea população que habitava o
território nacional nas categorias de “cidadãos” e “brasileiros”. Enquanto os herdeiros da
colonização, brindados com os direitos civis, enquadravam-se nas duas categorias, os filhos dos
negros, crioulos e cativos nascidos no território do Brasil, enquadravam-se na categoria de
brasileiros, “mas estavam longe de figurarem como cidadãos”. Quanto aos indígenas, nem
cidadãos, nem brasileiros seriam, “pois, além de não pertencerem à sociedade civil, não
compartilhavam nem mesmo os valores da cultura ocidental”. 119
Nem cidadãos, nem brasileiros, e ainda responsáveis pelo atraso econômico de muitas
províncias, assim Varnhagen enxerga os povos indígenas remanescentes da colônia no Império.
Em seu Memorial, responsabiliza o atraso de certas províncias, como o Pará, Mato Grosso e
Goiás à presença indígena e considera uma vergonha que um país civilizado tenha que aturar
116VARNHAGEN, F.A. de., Memorial Orgânico, p. 392. 117VARNHAGEN, F.A. de., Memorial Orgânico, p. 393. 118 VARNHAGEN, F.A. de., Memorial Orgânico, p. 393. 119 SPOSITO, F., Nem cidadãos, nem brasileiros, p. 18-19.
217
canibais que “gostam de comer carne de negros, aos quais chamam de macacos do chão”. Aos
philo-tapuias que alegam que os índios são os verdadeiros donos da terra, retruca: “pois então
arranjemos nossas trouxas e toca a marchar; que somos uns criminosos que estamos de posse
do que é de outrem”.120 Certo de um possível rechaço, Varnhagen se posiciona na defensiva,
atacando antes que o façam seus contemporâneos “philo-tapuias”. A estratégia defensiva
sinaliza a intensidade dos debates etnográficos que se travavam naquele momento entre os
intelectuais e políticos responsáveis pela formação do Estado nacional brasileiro.
Certamente, em parte, isso explica o anonimato do Memorial Orgânico em sua primeira
publicação, em 1849. Explica também o temor do autor quando, ao republicá-lo na Revista
Guanabara, em 1851, anuncia seu receio com possíveis críticas que poderia sofrer. Tal postura
defensiva justifica-se se pensarmos na variedade de espaços em que os letrados oitocentistas
discutiam sobre o “lugar” do índio na configuração da imaginada e almejada nação dos trópicos.
Entre eles podemos citar o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), ao qual
Varnhagen estava intelectualmente associado, aos jornais de ciências e letras, as revistas
científicas e literárias dirigidas por românticos literários e indianistas, como a Revista
Guanabara, e ainda, na Câmara de Deputados e no Senado do Império.
Wehling afirma que nos estudos históricos de Varnhagen, Estado é sinônimo de
civilização, havendo uma profunda antinomia em suas proposições: “o Estado representa a
civilização, a lei e a ordem” e “sua ausência, a selvageria, o predomínio da força e a
desarticulação social”.121 Em seu empenho civilizatório, Varnhagen defende a presença forte e
centralizadora do Estado, a quem caberia submeter a barbárie e a selvageria à civilização. A
proposição a seguir, exemplifica bem a assertiva de Wehling sobre o estadista: “nós
proclamamos para o Império, (compreendendo o território de que os bugres estão senhores) o
nosso chefe e a nossa lei. Todo o que não obedece a uma e ao outro rebela-se e é criminoso. E
para o crime não vale em direito a alegação de ignorância (...).” 122 Em outro momento, se
pronuncia:
Precisamos civilizar o Império, fazer todos em toda a sua extensão obedecer ao pacto
proclamado, e a experiência de mais de meio século tem provado a insuficiência dos
meios brandos que são justamente os mais gravosos para o Estado. Se necessitamos,
pois, seguir a conquista, que quer dizer ir-se consolar os rebelados levando-lhes
presentes de facas e machados? Tem-se visto com sua paciência converter esses ferros
em pontas de setas, que no ano seguinte despendem contra os seus benfeitores. Que
mais jus tem eles para, só por sua incapacidade moral, estarem excluídos do código
penal? Não constituem eles uma rebelião armada dentro do Império? 123
120 VARNHAGEN, F.A.de., Memorial Orgânico, p. 393. 121 WEHLING, A., Estudo, história, memória, p.86. 122 VARNHAGEN, F.A. de., Memorial Orgânico, p.394. 123 VARNHAGEN, F.A. de., Memorial Orgânico, p.394.
218
Nem cidadãos, nem brasileiros, mas suscetíveis à mão forte do Estado. Para Varnhagen,
na configuração do novo Estado Nacional brasileiro, não havia espaço para acomodar as
diferenças étnicas. Qualquer autonomia que representasse uma distância em relação às
instituições que então se configuravam deveria ser pulverizada e eliminada. Se, historicamente
a persuasão não se mostrou eficiente, defende o uso da violência. O pacto proclamado tinha
força de lei. Para justificar seus violentos métodos de sujeição e integração dos indígenas, o
estadista os define como moralmente incapazes e rebeldes. Além disso, afirma que colocavam
em suspensão o projeto de formação da nacionalidade brasileira. Em sua compreensão, no ritmo
em curso, os indígenas fariam o Brasil esperar por séculos por sua espontânea civilização. Como
afirma, não há outro meio “do que o de declarar guerra aos que não se resolvam a submeter-se,
e ocupar pela força essas terras pingues que estão roubando à civilização”. 124
Varnhagen conclama por uma ação conjunta dos cidadãos brasileiros e guardas
nacionais para que empreguem suas forças e organizem “bandeiras ou companhias, com
determinado número de seus escravos africanos”. Estas bandeiras deveriam estar organizadas
em número de pelo menos cem pessoas e seus chefes, devidamente munidos de autorizações
presidenciais. Para justificar o retorno das bandeiras, afirma que desta maneira o Brasil havia
conquistado todo o sertão e suas minas, “que foram trabalhadas pelos braços dos índios, e se
deu quase cabo do indômito caiapó”. Demonstrando pessimismo com os métodos “brandos” de
civilização contidos no Regulamento de 1845, o estadista anuncia: “desenganemo-nos, as raças
bravias, que se declararam inimigas de morte de nossos antepassados, serão até os últimos
descendentes bravios, nossas inimigas de morte”. Logo, “para conservar os terrenos assim
conquistados” dos bárbaros, “é necessário fazer prisioneiros seus habitantes”. 125
Varnhagen afirma não existir outro recurso do que o de declarar guerra aos que não
querem se submeter e mostra-se desejoso de um país “coberto de bandeiras”. Assim, afirma que
foram as bandeiras que, nos séculos anteriores, movidas por forte “espírito guerreiro e
empreendedor”, civilizaram o interior do país. Em sua concepção, o retorno da prática de caça
aos índios no século XIX é justificável pois, além da “limpeza” e civilização dos sertões,
serviria como uma alternativa à imediata substituição da mão de obra negra e escrava “e
acabaria de uma vez radicalmente com o trato africano”. Além disso, postula que as bandeiras
colocariam o Brasil na legalidade com os tratados assinados com a Inglaterra, que já nos
124 VARNHAGEN, F.A. de., Memorial Orgânico, p.394. 125 VARNHAGEN, F.A. de., Memorial Orgânico, p.394.
219
rechaçava com ameaças. Para estimular as bandeiras, propõe que se recompense os serviços
dos empreendedores:
(...) concedendo-lhes a tutoria e protetorado por quinze anos sobre seus prisioneiros,
obrigando-se a tratá-los bem, a doutriná-los na nossa religião, etc., etc., com a
condição que estes em retribuição os sirvam durante esses quinze anos, devendo para
tudo ser legítimo lavrar-se auto perante a municipalidade, ou a competente autoridade
departamental. 126
Ou seja, o “receituário” de Varnhagen no trato com os indígenas prevê a substituição da mão
de obra negra e escrava pela indígena e em condições análogas à escravidão africana.
Lembremos que, em sua compreensão, o indígena era considerado como exógeno ao território
do Brasil e, enquanto invasor, alienígena e resistente ao pacto social civilizatório, era passível
e justificável sua conquista e escravização, sempre em nome de sua própria “civilização”. O
caráter das propostas repressivas contra os povos indígenas em muito se assemelha às Cartas
Régias assinadas por D. João VI no ano de 1808, logo após a transferência da família Real
portuguesa para o Brasil neste mesmo ano. Através destas, o Príncipe Regente autoriza que se
faça guerra de extermínio e aprisionamento dos índios “bravos” do sertão do Brasil e concede
autorização para a utilização da mão de obra indígena capturada pelos “bandeirantes” por tempo
determinado e em troca de sua civilização. Na Carta Régia de 13 de maio de 1808, autoriza-se
a guerra e a sujeição dos Botocudo de Minas Gerais e a entrega dos prisioneiros de guerra ao
comandante para seus serviços por um período de dez anos. No ano seguinte, uma nova Carta
Régia reitera essa autorização e retifica o tempo de escravidão indígena para quinze anos. Em
1808, também se autoriza guerra de extermínio de igual teor contra os índios Kaingang da
região de Guarapuava, na então província de São Paulo e autoriza-se o uso da mão de obra do
prisioneiro de guerra por um período de quinze anos. Como lembra Moreira Neto, com as
determinações do Príncipe Regente, “o trabalho indígena passa a ser utilizado muito livremente
por setores oficias ou particulares, e a população masculina apta é quase toda absorvida nesse
gênero de atividade”.127 Revogadas no ano de 1831, logo após à abdicação de D. Pedro I, não
causa estranheza que o teor das Cartas Régias retorne sob a forma de proposta duas décadas
após na pena daquele que pretendia civilizar o país.
Em defesa própria, o diplomata defende a humanidade e a brandura de suas propostas
indigenistas quando comparadas com o agressivo indigenismo norte-americano. Afirma que
nos Estados Unidos aplica-se o sistema da “bordoada nos seus índios quando não fazem o que
126 VARNHAGEN, F.A. de., Memorial Orgânico, p. 394. 127 MOREIRA NETO, C. de. A., Os índios e a ordem imperial, p. 239.
220
se lhes manda”. Àqueles a quem acusa de “danosa hipocrisia da pseudo filantropia”, lembra de
se esquecerem que lá aplica-se a “crueldade de exterminarem a raça vermelha” por não
disporem de “um sistema de guerra análogo ao nosso, em que é do interesse do conquistador a
conservação do maior número de vida deles”.128 Assim, na medida em que conserva suas vidas
e os retira de sua “miserável condição”, posiciona sua proposta indigenista como filantrópica e,
dirigindo-se aos românticos indianistas que declararam os índios bravos como “pupilos da
nação”, lhes pergunta:
Pois é por ventura verdadeira filantropia consentirmos que tantos filhos do abençoado
território de Santa Cruz se esteja devorando uns aos outros nos matos, e agredindo,
quando podem, os cidadãos civilizados do império? E isso quando há um meio simples
(e cobiçado por todos os habitantes das províncias do sertão) de os arrancar em poucos
dias dessa miserável condição que vexa o país, e degrada até a humanidade? 129
Para Varnhagen, o “meio simples” de arrancar os índios de sua “miserável condição”
deveria ser administrado pelo governo. Caberia a este a tarefa de determinar os distritos em que
as bandeiras deveriam se dirigir, “e só passar-se a outro quando esse estivesse inteiramente
sujeitado”. Interessado em acelerar o processo de captura, propõe que somente se autorize o
“protetorado indígena” — ou seja, o uso do trabalho do indígena capturado em guerra —, em
cidades ou províncias onde se acabe definitivamente com os escravos africanos. Considerados
exímios navegadores, aos indígenas do norte do país sugere que se “recrute-os” nas águas do
Amazonas e Tocantins para que sejam disciplinados ao serviço da marinha de guerra. Para isso,
considera necessário fazer-se “na Ilha de Fernando um depósito de levas de indígenas para
marinheiros”. Varnhagen acredita que assim, “separados de seus matos e rios, se acostumariam
ao isolamento dos navios, sem tanta nostalgia”.130 Também aqui o estadista não inaugura nada
de tão novo. Como lembra Carneiro da Cunha, era opinião generalizada desde o começo do
século XIX que os índios apresentavam aptidão natural para a navegação. Assim, uma série de
avisos e circulares determinava o recrutamento de indígenas para a marinha. A autora lembra
que no ano de 1827, uma circular determinava o recrutamento de índios pelas províncias e o
seu envio para o Arsenal de Marinha na Corte.131 Moreira Neto também recorda que o mesmo
recrutamento coercitivo e compulsório já fora autorizado no ano de 1825 para o serviço do
Arsenal da Marinha do Maranhão e dos navios da Armada. Como afirma, também eram
empregados “na navegação fluvial dos vários rios da Amazônia e do Maranhão”. 132
128 VARNHAGEN, F.A. de., Memorial Orgânico, p.395. 129 VARNHAGEN, F.A. de., Memorial Orgânico, p.395. 130 VARNHAGEN, F.A. de., Memorial Orgânico, p.395. 131 CUNHA, M. C. da., Política indigenista no século XIX, p. 150. 132 MOREIRA NETO, C. de. A., Os índios e a ordem imperial, p. 249.
221
Para a administração e a organização da atividade bandeirantista, Varnhagen defende a
criação de um ministério responsável pela missão de captura indígena com sólidos princípios
de jurisprudência. Crítico do Regulamento, acredita que, assim, logo o Estado “se convencerá
de que pode até livremente fazer todo o bem sem dependência de nova legislação”, como a que
estava em vigor, considerada branda demais pelo estadista. Caberia a este ministério estatal a
função de distribuir os índios capturados, desde que “não houvesse bastante trabalho de obras
públicas em que ocupá-los”. “A distribuição a troco de recompensa às bandeiras pelas despesas
de guerra, só deveria ser feita uma vez; de modo que os índios capturados não conhecessem por
tutores mais que a primeira família que os adotasse”. Em todo caso, sugere que o próprio
governo deveria empreender um grande sistema de captura e, posteriormente, criar “diretorias
tutelares” onde os particulares fossem, mediante certos tributos que seriam reaplicados em
novas capturas, “buscar os indivíduos que necessitassem para seu serviço doméstico (...)”.133
Para fortalecer seus argumentos, lembra brevemente o depoimento do Senador Nicolau
Pereira de Campos Vergueiro (1778-1859), realizado no ano de 1850, em que o legislador se
pronuncia como favorável ao “sistema da tutela forçada” dos índios, desde que seja exercida
pelo Estado. Segundo Varnhagen, em sua juventude, Vergueiro teria presenciado e
testemunhado este sistema, já durante a sua “decadência”. Destaca que em seu pronunciamento
no senado na sessão de 5 de agosto, o senador posiciona-se como favorável ao seu retorno, e
declara que “é necessário renovar e restabelecer o antigo sistema”134 Para aclarar a informação
de Varnhagen, procuramos nas Atas do Senado daquele ano o contexto político em que o
legislador defende o retorno da “tutela forçada”. Através destes documentos constatamos que a
referida defesa acontecia em meio às discussões que se travavam no Senado sobre a elevação
da comarca do Rio Negro à categoria de província.
Vamos ao contexto. Defensores ou não procuravam trazer argumentos que viessem a
corroborar ou colocar por terra a proposta de criação da nova província do Alto-Amazonas. Em
sessão de 24 de julho de 1850, o Senador Paula Souza, um de seus defensores, procurando
encontrar fundadas razões ao seu propósito, afirma encontrar-se aquela comarca muito longe
da capital da província do Pará e, “não havendo ainda navegação por vapor; a comunicação da
capital do Pará a esse lugar é demasiadamente retardada”, podendo levar meses. Sobre sua
posição geográfica, considera-a estratégica por fazer fronteira com diversos Estados
estrangeiros. Assim, afirma ser útil a criação de uma autoridade nesta região “para evitar
133 VARNHAGEN, F.A. de., Memorial Orgânico, p.396. 134 VARNHAGEN, F.A. de., Memorial Orgânico, p.396.
222
contestações possíveis” e para “uma ação mais enérgica do governo local”135 em caso de
premente necessidade, como a segurança das fronteiras.
Semelhante justificativa trouxe o Senador Carneiro Leão, que também se mostrou
favorável à criação da província do Alto-Amazonas. Alega que a distância da comarca à capital
do Pará, tem feito “com que pouco se atenda às necessidades daquela comarca”. Lembra dos
interesses territoriais das Repúblicas fronteiriças, cabendo a necessidade de uma administração
local para guarnecer militarmente essa região e, assim, evitar as tentativas de usurpação de
nossas linhas. Sobre a população e colonização desta região, majoritariamente indígena, o
Senador rememora que antigas e florescentes povoações faziam desaparecer os indígenas que,
ou desertavam para a Guiana Inglesa ou para “o interior das matas, barbarizando-se”. Assim,
acredita que uma administração local nesta região onde “há uma imensidade de índios em
hordas selvagens” poderia empenhar-se na catequese desses índios, levando a nova província à
breve florescência. 136
Em outro pronunciamento favorável à criação da nova província do Alto-Amazonas, o
Senador Visconde de Abrantes informa que, no ano de 1850, sua população é de
aproximadamente 150.000 habitantes, dos quais 23.000 são civilizados e os demais são
indígenas de diversas e diferentes tribos. Para o legislador, todos são pacíficos e propensos ao
estado de civilização. Coerente com seu propósito, faz referência aos tempos em que a comarca
apresentava 46 freguesias, “vilas, e algumas florescentes” e que hoje estariam “quase desertas”.
Finalmente, defende que com o estabelecimento de um governo central na comarca do Rio
Negro, esta região haveria de “renascer, de voltar ao seu antigo estado de prosperidade”. Para
o Senador, um dos motivos da referida decadência foi a dissolução das antigas aldeias onde os
indígenas, “ainda não civilizados”, se mantinham tutelados pela figura de seu Diretor. Afirma
que após a dissolução desta figura, os indígenas teriam voltado para as brenhas, para os matos,
trazendo “não pequeno transtorno àquela comarca e ao país”. Por fim, defende a criação da
província do Alto-amazonas, afirmando não ser “impossível que os índios sejam ali novamente
aldeados, mas, para que isso se consiga, é necessário que o Rio Negro tenha governo seu, que
trate dos seus negócios”. 137
135 Sessão de 24 de julho de 1850. Anais do Senado do Império do Brasil. Livro 5, 1850, Rio de Janeiro,
Tipografia Nacional, 1978, p. 444. 136 Sessão de 24 de julho de 1850. Anais do Senado do Império do Brasil. Livro 5, 1850, Rio de Janeiro,
Tipografia Nacional, 1978, p. 447-448. 137 Sessão de 5 de agosto de 1850. Anais do Senado do Império do Brasil. Livro 6, 1850, Rio de Janeiro,
Tipografia Nacional, 1978, p. 85-93.
223
Por seu turno, o Senador Campos Vergueiro, em pronunciamento no dia 5 de agosto de
1850 se posicionou terminantemente contra a criação da nova província no Alto-amazonas, em
seus termos. Acredita que, inicialmente, deve-se criar uma província por meio de um governo
local subalterno, submisso à capital do Pará, “como preparo para a criação de uma província”.
Ao perguntar aos seus interlocutores sobre que “urgência há em se criar instantaneamente esta
província sem preparar o povo para se governar como província? ”, responde: “não vejo essa
necessidade urgente”.138 Ao defender a necessidade de preparar o seu povo para o novo
governo, o Senador Campos Vergueiro está fazendo referência direta à grande e majoritária
população indígena do Rio Negro. Assim, relega o desenvolvimento da região ao impedimento
antes que se civilize a sua população nativa através do regime da tutela forçada exercida pelo
Estado Nacional:
E remedeia-se isso com a criação de uma presidência no Rio Negro independente da
do Pará? Creio que não. Os índios, como disse, não têm suficiente capacidade para se
regerem na sociedade, não estão ainda habilitados para isso, necessitam de uma tutela
se se quer tirar algum partido deles; entregues a si, não são coisa nenhuma. Um
presidente ali não pode exercer as funções que exerciam os imediatos diretores das
aldeias; não há de constrange-los a trabalhar para o seu sustento, a terem uma certa
regularidade de vida; um presidente não pode fazer isso. 139
O Senador Campos Vergueiro se mostra favorável ao antigo sistema de tutela, e afirma
que quando extinto em São Paulo, a população das aldeias, regidas por seus Diretores,
“aniquilou-se, entregando-se ao deboche, à embriaguez e a todos os vícios da ociosidade, de
maneira que não aparece em parte nenhuma”. Argumenta que se a província de São Paulo não
apresentou decadência maior que a província do Rio Negro com a extinção da tutela, “foi
porque a população das aldeias não predominava; a outra população era muito superior; mas no
Rio Negro, onde essa população predominava, ou formava a massa geral, havia de
necessariamente aparecer um resultado muito visível”, como os resultados negativos que foram
apresentados pelo senador visconde de Abrantes. Para o Senador, antes de se elevar a comarca
do Rio Negro à província, deve-se restabelecer a tutela forçada dos índios ao Estado, pois não
acredita que o Rio Negro tenha “gente, renda, e a civilização necessária para se elevar à
província. 140
138 Sessão de 5 de agosto de 1850. Anais do Senado do Império do Brasil. Livro 6, 1850, Rio de Janeiro,
Tipografia Nacional, 1978, p. 100-107. 139 Sessão de 5 de agosto de 1850. Anais do Senado do Império do Brasil. Livro 6, 1850, Rio de Janeiro,
Tipografia Nacional, 1978, p. 101. 140 Sessão de 5 de agosto de 1850. Anais do Senado do Império do Brasil. Livro 6, 1850, Rio de Janeiro,
Tipografia Nacional, 1978, p. 100-107.
224
Em seu pronunciamento ao Senado, Vergueiro apresenta os indígenas como fator de
impedimento à civilização e ao desenvolvimento do país e de suas províncias. Ao falar da
província do Espírito Santo, assegura que esta caminhava em “uma decadência visível”, que
em parte “proveio dessa liberdade que se deu aos índios, que muito ali abundavam”. Relata que
em sua visita à província em 1842, pensou encontrar algum progresso, o que não aconteceu,
pois com a forte presença indígena, as 44 mil almas brancas só teriam diminuído.141A mesma
decadência que o Senador imputa à província do Espírito Santo, o faz às demais províncias
onde a maior parte da população é indígena, como no rio Negro ou nas províncias afetadas pelo
desmonte do sistema de aldeamento e tutela forçada exercido pelo Estado, como em São Paulo:
Em São Paulo eu ainda conheci aldeias muito populosas, e grande número delas, que
hoje estão desertas, desamparadas inteiramente. Mas qual foi a razão por que isto
aconteceu? Por que lhes tiraram os diretores? É necessário reconhecermos que a raça
índia não tem a capacidade necessária para reger-se. Ou porque, por sua natureza,
tenha menos aptidão para a civilização, ou porque está ainda muito longe disso, o que
observo é que netos e bisnetos dos índios aldeados não dão de si coisa alguma, não
adiantam nada. Portanto, em consequência desta incapacidade, ou dificuldade para
chegarem à civilização, resulta a necessidade de uma tutela: não podem reger-se por
si, não tem suficiência para isso, não podem estar independentes; e essa tutela tinham-
na as aldeias nos seus diretores. Eu falo particularmente das aldeias da província de
São Paulo, que são aquelas que conheço, e observei a marcha da sua decadência.
Tinham um diretor, dizia-se que este diretor lhes causava alguma opressão, que os
obrigava a trabalhar para seu interesse pessoal .... Não duvido; mas obrigava-os
também a trabalhar para si, obrigava-os a plantar o necessário para a sustentação da
família, e eles viviam na abundância. Quando se queria um número de trabalhadores
para qualquer serviço pedia-se ao diretor, e ele mandava-os; trabalhavam, mas
ordinariamente não aproveitavam porque quando voltavam para as aldeias tinham
bebido tudo em cachaça. O serviço, porém, ficava feito, embora dessem eles má
aplicação ao fruto do seu trabalho. Eles mantinham-se, conservavam-se, e por isso
havia aldeias numerosas que prestavam grandes serviços. Não era pouco, quando se
precisava de 20, 30 ou 40 trabalhadores, achá-los ali: o mesmo governo muitas vezes
se servia deles. Enfim, houve tempo em que não era possível transitar a terra com
animais carregados, creio que até 1790, e como se faziam os transportes? Às costas
de índios; havia-os para isso. Hoje era impossível, se houvesse necessidade não se
podia fazer isso, porque essas aldeias desapareceram.142
O tempo em que era possível transitar com mercadorias às costas dos índios, o qual o
Senador Campos Vergueiro faz alusão e rememora como mais áureo e próspero, era o tempo
em que vigorou a política indigenista de Pombal: o Diretório dos Índios. Pensado inicialmente
para as povoações indígenas do Pará e do Maranhão e, posteriormente, estendido às demais
regiões do país, o estabelecimento do Diretório na segunda metade do século XVIII, mais
141 Sessão de 5 de agosto de 1850. Anais do Senado do Império do Brasil. Livro 6, 1850, Rio de Janeiro,
Tipografia Nacional, 1978, p. 101. 142 Sessão de 30 de julho de 1850. Anais do Senado do Império do Brasil. Livro 5, 1850, Rio de Janeiro,
Tipografia Nacional, 1978, p. 545-546.
225
precisamente de 1755 a 1798, dava continuidade ao projeto de integração das populações
indígenas à ordem colonial que se inicia no século XVI. Conforme Almeida, o regime de tutela
exercido pelos Diretores leigos substitui os padres superiores das aldeias, que passam a regular
todas as atividades dos índios aldeados. O Diretor de uma aldeia “tinha o direito a receber 6%”
sobre a produção realizada pelos tutelados, excetuando-se a de subsistência. Isso os incentivava
a abusos e irregularidades na repartição e exploração do trabalho indígena, ponto principal das
queixas e revoltas contra eles”,143 como indica o próprio senador. Ainda segundo Almeida, a
expulsão dos jesuítas complicou a situação dos índios, pois perderam um poderoso aliado em
sua defesa em seus enfrentamentos com os brancos. Como afirma, esta foi uma época de
“inúmeros conflitos e avanços dos moradores sobre as terras das aldeias que, embora
continuassem pertencendo aos índios, tornavam-se mais vulneráveis através de uma legislação
incentivadora da presença de não índios no seu interior”.144
Não por acaso, Varnhagen procura argumentos na história da tutela forçada, e nas
proposições indigenistas defendidas pelo Senador Campos Vergueiro, com quem se alinha
ideologicamente, para justificar a necessidade da captura e a criação de diretorias tutelares
exercidas pelo Estado. Tinha ciência que, além de varrer os “grupos assistidos” de seus
territórios imemoriais, o aldeamento e a tutela não reservavam nenhuma garantia legal aos
nativos sobre sua “nova” terra, a aldeia. Através deste método, poder-se-ia, em um tempo muito
breve, realizar um novo avanço e um novo esbulho de suas terras através da expulsão e da
forçada integração dos índios à sociedade nacional enquanto cidadãos de segunda classe. Esta
prática assimilacionista foi lançada pelo Diretório através da legalidade em se “transformar as
aldeias em vilas e lugares portugueses e os índios em vassalos dos reis”.145 No entanto,
identificando-se enquanto grupo étnico constituído no espaço da aldeia, o que se apresentou de
concreto foi um processo de resistência indígena à legislação indigenista, ao esbulho territorial
e ao projeto de assimilação.
Isso explica as sugestões interpostas por Varnhagen ao governo quanto ao trato que se
deveria dispensar aos indígenas resistentes à política “trator” promovida pelo Estado brasileiro
sobre suas terras. Se se mostrassem passivos e não resistentes, encaremos “esta questão pelo
lado mais simpático, pelo que mais fala ao sentimento; consideramo-los nossos irmãos, órfãos
desamparados e necessitados de tutela”. No entanto, se “estranhos ao pacto social (...) temos
todo o direito de conquistá-los, e não há direito de conquista mais justo que o da civilização
143 ALMEIDA, M. R. C. de., Política Indigenista de Pombal (...), p. 6. 144 ALMEIDA, M. R. C. de., Política Indigenista de Pombal (...), p. 2. 145 ALMEIDA, M. R. C. de., Política Indigenista de Pombal (...), p.6.
226
sobre a barbárie”. Diante das inúmeras resistências indígenas que enfrentava o Estado brasileiro
no processo de interiorização agrícola e de colonização de novos territórios em meados do
século XIX, certamente, Varnhagen já tinha tomado seu partido, como deixa claro em sua
proposição: “um povo bárbaro e que desconhece os deveres da humanidade e as leis da guerra,
diz o celebre jurisconsulto americano Bello, deve tratar-se como inimigo do gênero humano”.146
Embora se mostre reticente ao indigenismo norte-americano e à prática de extermínio
dos povos nativos que vinha se aplicando nos Estados Unidos, considerando seus métodos mais
agressivos e menos humanos que os aplicados no Brasil, Varnhagen não deixa de defendê-los
caso os indígenas se mostrem resistentes ou, como afirma, “nos agridam”. Neste caso, postula
que os indígenas “submetem-se espontaneamente à terrível sentença dada pelo publicista-
suíço” Emer de Vattel no século XVIII em sua obra O Direito das Gentes:
Aqueles que, habitando países férteis, descuidam a cultura da terra e preferem viver
de rapina, faltam a si próprios, injuriam seus vizinhos e merecem ser exterminados
como bestas feras e nocivas. O estabelecimento de colônias no continente da América
setentrional só se apresenta como legítimo, visto que as gentes dessas vastas paragens
as percorriam em vez de as habitar”. 147
Contraditoriamente, Varnhagen conclama para que “sejamos mais humanos que Vattel
e que os Estados Unidos”. Não obstante, afirma logo em seguida que “já basta de pagarmos tão
caro e sem nenhuma utilidade todos os ensaios feitos para atrair os índios bravos por meio de
brandura”. Como vemos, Varnhagen apresenta alto grau de dubiedade quando, em algum
momento defende o extermínio indígena e, em outro, conclama para que “eduquemo-los à força,
e quinze ou vinte anos depois, quando já eles não necessitam de tutela, façamos deles prestantes
cidadãos cristãos”. Sempre caminhando entre o extermínio e a civilização forçada, ao finalizar
a apresentação de suas propostas indigenistas no Memorial Orgânico, de forma prévia,
Varnhagen defende-se, apresentando-se enquanto um sujeito abnegado e ciente da “causa tão
pouco simpática” que defende.148
Ao longo de seu Memorial e de forma frequente, Varnhagen se mostra pouco
confortável com a polissemia de vozes dissonantes e discordantes à sua. Mesmo que essas vozes
sejam, em alguma medida, igualmente discordantes entre si, o eram, em maior medida,
discordantes com as ideias agressivas e violentas defendidas pelo estadista. Muitas delas
criticavam publicamente as práticas “civilizatórias” agressivas que Varnhagen defendia e, como
146 VARNHAGEN, F.A. de., Memorial Orgânico, p. 396-397. 147 VARNHAGEN, F.A. de., Memorial Orgânico, p. 397. 148 VARNHAGEN, F.A. de., Memorial Orgânico, p. 397.
227
já afirmamos, isso justifica, em parte, seu desconforto. Neste ínterim, podemos nos perguntar:
afinal, por que Varnhagen cria um conjunto de propostas indigenistas oferecido à nação que
caminha no sentido contrário à oficial política do Regulamento que vigora desde o ano de 1845?
Como já destacamos acima, Varnhagen se posiciona contrário e cético com os possíveis
resultados que essa política indigenista poderia alcançar, principalmente por discordar de seus
métodos, considerados muito “brandos” pelo estadista.
É com o Regulamento que se tem a retomada de um projeto indigenista nacional que
atendia aos interesses mais imediatos da elite agrária do país. Embora as Cartas Régias de 1808,
revogadas no ano de 1831, definissem os critérios para a declaração de guerra justa aos índios,
atendiam aos interesses da elite agrária das províncias de São Paulo e Minas Gerais. De forma
geral, desde a revogação do Diretório dos Índios em 1798, preponderou no país um indigenismo
local e distante de qualquer controle central. Com o Regulamento, o governo do Império
oficializou o modus operandi de intervenção do Estado nacional juntos às comunidades
indígenas e legitimou práticas já “consagradas” no indigenismo de Pombal, como o sistema de
aldeamento compreendido como um espaço de transição para a definitiva assimilação dos
índios à sociedade nacional. Não obstante se reconheça o direito originário das populações
nativas à terra que ocupam, o próprio Regulamento criava subterfúgios que “permitiam” as mais
diversas práticas de esbulho das terras dos índios. Entre elas, citemos a instalação de colonos
junto aos aldeamentos e a concessão de sesmarias em seu interior. À margem das grandes
fazendas ciosas de mão de obra, nas práxis do aldeamento, tenciona-se converter os índios
“assistidos” em futuros trabalhadores assalariados. Assim, caberia aos Diretores de Índios a
tarefa de administrar e abastecer as fazendas próximas com mão de obra indígena, com
remuneração abaixo dos trabalhadores regionais não índios. Frente aos regulares debates sobre
a administração leiga ou religiosa dos aldeamentos, a solução encontrada pelo Império foi a
primeira. No entanto, como lembra Carneiro da Cunha, embora o missionário apareça no
Regulamento como um assistente religioso e educacional do administrador leigo, tornou-se
muito frequente os aldeamentos em que capuchinhos italianos exerceram o cargo de Diretores
de Índios e preencheram boa parte dos postos de direção dos aldeamentos. 149
Assim como não se coaduna com os métodos “brandos” de integração do índio à ordem
imperial proposta pelo Regulamento, Varnhagen também se mostra crítico em relação à
participação dos religiosos na empreitada civilizatória, mesmo que na qualidade de assistentes.
No conjunto das propostas indigenistas do Memorial Orgânico, o proponente defende a
149 CUNHA, M. C. da., Índios no Brasil, p. 69.
228
integração forçada dos índios, sem o alicerce de qualquer componente que abrandasse a prática
civilizatória, como a presença dos religiosos. Com receio de que a história se repetisse,
Varnhagen rememora a atuação e os resultados pouco satisfatórios conquistados pelos clérigos
em sua atuação civilizatória nos séculos anteriores. Assim, acusa-os de trabalhar em interesse
próprio: “chama-se por missionários, e ignora-se que estes, ainda em épocas de uma fé viva,
nunca foram meios civilizadores em ponto grande, se não com o domínio quase feudal que
tinham os jesuítas”.150
No entanto, com o Regulamento, inicia-se a “importação” de religiosos italianos, os
capuchinhos, que por interesse direto do Estado imperial vêm ao Brasil para trabalhar em
missão oficial junto aos indígenas. Como nos informa Karsburg, os capuchinhos italianos foram
“o principal grupo de missionários a atuar no Brasil imperial”, ficando este período conhecido
como “o século dos capuchinhos” e sua “vinda esteve condicionada ao interesse do governo
brasileiro em integrar o índio à vida social e econômica do país”.151 Sobre a vinda da ordem
religiosa ao Brasil, assim se manifesta Varnhagen:
Se de Roma nos vierem barbadinhos ou jesuítas, não será em busca do martírio, será
com miras de se livrarem da obediência religiosa, e de passarem melhor vida; pois aos
claustros chegou o egoísmo do século XIX (...). E tendes a louca pretensão de
encontrar no nosso clero a abnegação dos Nóbregas e dos Vieiras? (...). Não sois
testemunhas de sua nenhuma abnegação, de sua ignorância, e, o que é ainda pior, de
sua desmoralização? 152
A presença de religiosos na empreitada civilizatória inibia as pretensões de Varnhagen
de limpar os sertões de forma breve e rápida através da declaração de guerra justa, da captura e
da escravização forçada dos índios. Cético com o Regulamento, otimista com o seu próprio
indigenismo e certo de ser “voto vencido”, ao estadista só restaria se eternizar na história: “e se
não mudarmos de sistema, e daqui a meio século ou mais os índios se acharem como hoje,
haverá quem diga em 1900 ou em 2000 que houve alguém que em 1850 apresentou no Brasil
uma jurisprudência capaz de produzir resultados”.153 A proposição de Varnhagen demonstra a
preocupação que tinha com o Brasil de seu tempo, com a unidade e a integração nacional e o
desenvolvimento do Estado imperial de forma imediata. Para isso, necessitava-se remover os
legados negativos deixados pela ex-metrópole à pretensa nação: limites territoriais externos
indefinidos, baixa integração entre as diferentes províncias e regiões do país e, ainda, uma
150 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 397. 151 KARSBURG, A. de. O., Os apóstolos dos sertões brasileiros, p. 53. 152 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 398. 153 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 397.
229
sociedade heterogênea, social e etnicamente incompatível. Varnhagen preocupa-se com a
construção de um “novo” homem brasileiro no interior de um projeto que procura integrar a
sociedade brasileira e seu território nacional, e para isso, defende a eliminação, com a maior
brevidade possível, do obstáculo humano que o indígena representava.
Como vemos, as propostas estruturais somadas às propostas indigenistas estavam
totalmente interligadas e se completavam. Na compreensão do estadista, a execução e o pleno
êxito das propostas estruturais que defende dependem de uma política indigenista apropriada e
promovida através da ação forte e rápida do Estado que atenda ao interesse de limpar os sertões
da presença dos habitantes que inibem e dificultam seu projeto de integração nacional. Se
realizada através da integração forçada dos índios ou através de seu extermínio, pouco
importava aos objetivos almejados por Varnhagen que deseja transformar a ex-colônia em uma
nação forte, territorialmente integrada, etnicamente homogênea e guiada pelos interesses de um
Brasil branco e europeu.
Finalmente, salientamos que, mesmo que oficialmente os indígenas estivessem
amparados pela legislação do Regulamento, a distância entre o indigenismo oficial e a prática
indigenista local vinha se afastando ao longo do século. Essa distância permitia uma maior
desenvoltura das práticas locais, principalmente em função do que Carneiro da Cunha chamou
de “encurtamento” ideológico “entre o poder central e o local”,154 ou seja, ambos apresentavam
interesses comuns. Na prática, esse encurtamento ideológico representou a omissão do Estado
frente às práticas indigenistas dos potentados locais que passam a adotar muitas das propostas
agressivas constantes no Memorial Orgânico de Varnhagen, sem que necessariamente as
conhecessem.
Para ilustrarmos, lembremos dos enfrentamentos entre os indígenas e os imigrantes
europeus nas províncias do Paraná e Santa Catarina. Após o Estado imperial destinar as
florestas de Araucária, na região dos planaltos, e a densa floresta atlântica, do Vale do Itajaí,
em que habitavam os Botocudo a colonizadores alemães, italianos e eslavos, em meados do
século XIX, iniciaram-se os embates e enfrentamentos entre os índios e os “imigrantes
empenhados em devassar a mata para se instalarem como pequenos proprietários”.155 Não
obstante a legislação indigenista oficial do Regulamento, a “questão indígena” nesta região
passa a ser resolvida através de parcerias entre autoridades públicas locais e particulares
(colonos europeus) através da contratação dos bugreiros profissionais pagos para o efetivo
154 CUNHA, M. C. da., História dos índios no Brasil, p.133. 155 RIBEIRO, D., Os índios e a civilização, p.107.
230
extermínio indígena. Para Ribeiro, em Santa Catarina, “os bugreiros profissionais alcançaram
tal eficiência em suas batidas que deixaram para trás, como meros amadores, os bandos de
celerados que caçavam índios em São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia”.156
A mesma prática localista acontece nas províncias do sudeste brasileiro, onde “a marcha
do café se tornou uma fronteira em contínua expansão”.157 Adentrou-se os territórios até então
ocupados pelos índios do tronco linguístico Jê, principalmente os Kaingang, também chamados
de Coroados, Guaianá, Bugres ou “Botocudos”, através da efetiva presença de bugreiros.
Semelhante processo aconteceu no sul da Bahia entre os Pataxó frente à expansão da cultura
cacaueira, a quem respondeu-se com ataques militares e, ao longo da ocupação, “os índios
caíram sob o jugo de fazendeiros que lhes tomaram as terras, a título de compra”.158 Limitar-
nos-emos a estes exemplos para demonstrar a desenvoltura dos potentados locais em suas
práticas indigenistas que contrariavam a legislação oficial, com a conivência do governo
imperial.
Para Varnhagen, a maior desenvoltura dos potentados locais serviria como estímulo à
colonização do sertão do Brasil feita por grandes grupos “que levem consigo todos os elementos
de vida, de força e energia” ao interior do país. Para isso, sugere a criação de empresas
colonizadoras particulares que estejam interessadas em financiar a vinda de europeus para o
Brasil. Caberia ao governo a incumbência de dar toda a proteção aos colonos que chegam, além
de aplicar em favor de melhorias materiais no país, como a construção de estradas para o
transporte de mercadorias ao sertão, construção de estradas de ferro e ainda, a promulgação de
leis protetoras às empresas colonizadoras. A independência jurídica e administrativa das novas
colônias de europeus deveria ser assegurada através de “um código simples, mas severo, e que
as governe um chefe que seja para tudo a autoridade, e que reúna dentro de certos limites, todas
as faculdades administrativas, fiscais e judiciais (...)”,159 ou seja, que governe de acordo com a
realidade e os interesses locais. Varnhagen acredita que assim procedendo-se, “veremos bem
depressa o país coberto destas tribos arregimentadas (europeus), as quais com admiração nossa
se organizarão dentro do mesmo território do Brasil, onde vagueiam muitos miseráveis sem
ocupação”.160 Como vemos, o estadista atribui à sua geração a tarefa civilizatória do Estado
brasileiro, da qual dependerá as gerações futuras “e a sorte desta grande porção da América”.
156 RIBEIRO, D., Os índios e a civilização, p.109. 157 RIBEIRO, D., Os índios e a civilização, p.101. 158 RIBEIRO, D., Os índios e a civilização, p.95-96. 159 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p.398. 160 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p 399-400.
231
A seguir, segue a prerrogativa de Varnhagen para integrar o Brasil ao conjunto das nações
civilizadas que, em sua concepção, é sinônimo de população branca e europeia:
Para civilizarmos o Brasil, e fazermos que haja povo brasileiro, necessitamos ir
paulatinamente acabando com a escravidão dos africanos, necessitamos prender e
avassalar temporariamente os índios bravos; e necessitamos, enfim, admitir no país
gente branca voluntariamente arregimentada em grupos. Se adotarmos já tal sistema
cujas disposições se poderão consignar em um código especial, fiquemos descansados
que havemos de vir a ter uma população compacta, logo que possamos sair dessa
situação forçada. 161
Varnhagen acredita que, tomadas as devidas providências, “cresceremos em forças, e
chegaremos à virilidade para desempenharmos a missão de que Deus nos julgue dignos”. No
entanto, “se em vez de madurar, apodrecemos roídos dos vermes, melhor fora acabarmos já de
existir, e não pensarmos a vir ocupar um lugar menos honroso na história das nações.162
Certamente, com seu Memorial Orgânico, Varnhagen sentiu que cumprira seu dever de
brasileiro patriótico:
Assim nos ensina a história da humanidade; da qual o autor deste escrito, movido pelo
patriotismo e auxiliado pela meditação, colheu as ideias que professa, e que graças à
imprensa serão a todo o tempo um protesto de que houve quem dissesse ao país, em
vez de adulá-lo, muitas verdades amargas; calando algumas que a discrição fez calar. 163
4.6. Estado, povos indígenas e o projeto civilizatório de Henrique de Beaurepaire Rohan.
Quando publicou a segunda edição de seu Memorial Orgânico, desta vez identificando-
se como autor, Varnhagen tinha ciência de que suas “verdades amargas”, como define suas
propostas indigenistas, não passariam incólumes à censura de alguns de seus contemporâneos,
a quem chama de philo-tapuias. Em alguma medida, preservando-se da fúria desses ataques,
afirma que algumas de suas ideias não seriam expostas por motivos de “discrição”. 164
Entre seus críticos e desafetos intelectuais, encontra-se o também membro do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e colaborador da Revista Guanabara, Henrique de
Beaurepaire Rohan. Em seu artigo de 1852 Considerações acerca da conquista, catequese e
civilização dos selvagens do Brasil, ao defender práticas indigenistas “brandas” de conquista
dos indígenas, assim se pronuncia sobre as propostas de Varnhagen:
161 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p.401. 162 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p.401. 163 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p.402. 164 VARNHAGEN, F. A. de., Memorial Orgânico, p. 402.
232
(...) e como se não bastassem os atos de barbaridade que diariamente se praticam
contra os infelizes selvagens, ainda nos vem o autor do Memorial Orgânico
aconselhar o emprego sanguinário das bandeiras contra uma povoação que,
identificada conosco pelo fato de uma origem comum, outro crime não tem senão o
de viver ainda na ignorância! Embora procure esse autor justificar seu modo de pensar
com a exposição dos roubos e assassinatos cometidos em geral pelos selvagens, suas
ideias não podem ser aceitas por quem quer que tenha sido educado nos princípios da
religião cristã. No seio de nossas povoações, no centro das nossas famílias, temos nós
selvagens muito mais perigosos que esses que vivem pela floresta. 165
Os contemporâneos Varnhagen e Rohan estavam ideologicamente “costurados” por um
ideal comum que movia os intelectuais de seu tempo: a organização e a modernização do recém
fundado Estado Nacional brasileiro. Neste momento, havia um esforço deliberado e consciente
no pensamento oficial e entre os intelectuais agremiados nos espaços de discussão científica e
literária, em desenhar um futuro mais promissor ao país. Este desenho, passava pela eliminação
dos “espectros” incompatíveis com o tão almejado modelo civilizatório europeu. Assim,
eliminar a presença do índio da composição étnica nacional tornava-se condição sine qua non
aos intelectuais envolvidos nesse processo. No entanto, a aproximação ideológica entre
Varnhagen e Rohan para por aí. Embora ambos defendam uma maior interiorização e integração
do território nacional e a implantação de uma cultura nacional homogênea aos moldes da cultura
branca e europeia, os métodos propostos para a erradicação das condições adversas, como as
culturas consideradas “estranhas” ao pacto nacional, em muito se distanciam.
O engenheiro militar Henrique de Beaurepaire Rohan nasceu em Niterói no ano de 1812.
De origem francesa, seus pais chegam ao Brasil no ano de 1808 com a comitiva que
acompanhou a família real à então colônia portuguesa. Sempre vinculado aos ideais
monarquistas, Rohan fez parte do seleto círculo intelectual e político do Império. Em sua vida
pública, exerceu cargos em diversas províncias. Além de presidente provincial e secretário de
obras públicas, foi também Conselheiro de Estado e Guerra e membro da comissão de trabalhos
geográficos do IHGB. Conforme Almeida de Sousa, em suas atividades de presidente
provincial, diretor de obras públicas ou na execução de trabalhos de infraestrutura, Rohan
“percorreu vastas áreas pelo interior do país” e, a partir destas experiências empíricas,
desenvolveu seu projeto civilizatório que surgiu em oposição às agressivas propostas
indigenistas defendidas por Varnhagen em seu Memorial Orgânico.166 Ainda segundo a autora,
seu ofício e sua aptidão às letras, foram de grande importância para que o engenheiro
“desenvolvesse um trabalho etnográfico relevante, fruto de suas andanças pelos sertões do
165 ROHAN, H. de. B., Considerações acerca da conquista (...), p. 193. 166 SOUSA, E. A. de., Os ideais de civilização na Amazônia imperial, p.140.
233
Brasil; o que lhe proporcionou um conhecimento ocular da realidade dos grupos que habitavam
o país, com destaque para as populações indígenas”. 167
O próprio autor identifica seu projeto indigenista como oriundo de suas experiências e,
assim, o legitima: “na província do Mato Grosso, tive ocasião de me convencer por mim mesmo
do incontestável merecimento dessa gente, e de estudar sua índole, para daí deduzir os meios
que deveria algum dia propor para utilizá-los”.168 Rohan confere legitimidade às suas ideias
indigenistas a partir de sua etnografia in loco, no campo e a partir do contato real com seu
“objeto” de estudo. Esse contato acontece nos anos de 1840 após ser promovido a major do
exército e ser enviado à província do Mato Grosso com a finalidade de explorar e estudar a
região, do que resultou seu elaborado projeto indigenista que apresentaremos a seguir. Nele,
além de defender seu “próprio” indigenismo, apresenta suas considerações sobre as qualidades
morais, a índole e a aptidão dos indígenas à integração à nação brasileira.
Defensor das práticas catequéticas empreendidas pelos jesuítas, Rohan julga que todos
os demais métodos que intentaram atrair os “selvagens” para a sociedade “civilizada”, somente
contribuíram ou para o seu extermínio ou para o seu abandono no meio de povoações brancas,
destinando-os ao mundo dos vícios ou à toda sorte de crimes. Segundo Rohan, quem observou
e conheceu os indígenas in loco, em “seus alojamentos selvagens”, como ele, que “teve ocasião
de estudar sua aptidão industrial, sua índole pacífica e sua natural propensão à vida social”,
reconhecerá, por certo, a apreciável importância do indígena para o futuro engrandecimento do
Brasil.169
Sobre o Regulamento de 1845, o considera nada mais “que uma compilação de todas as
antigas disposições legislativas” que regulavam as relações colonizador-colonizado. Embora
considere o seu “louvável interesse em prol dos selvagens, tanto aldeados como por aldear”,
qualifica-o de “uma ficção administrativa”. Em sua avaliação, após oito anos de publicação, o
Regulamento em nada melhorou “a sorte dos selvagens”. Filantropo, o militar e defensor dos
valores cristãos e ocidentais, clama por efetivas e “boas intenções acerca dos nossos selvagens”,
diante do dever moral de os “chamar para o grêmio da sociedade polida”. Lembra que “eles
formam uma população aproveitável” e que, caso não se coloque agora à disposição de agentes
encarregados os meios ideais de civilização indígena, “daqui a vinte anos” ainda não teremos
submetido e incrementado “a sorte dos aldeados”.170
167 SOUSA, E. A. de., Os ideais de civilização na Amazônia imperial, p. 66. 168 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.192. 169 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.192. 170 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p. 195.
234
Além de defender a importância do trabalho etnográfico como mecanismo fundamental
para se conhecer os povos indígenas e para a definição de políticas públicas apropriadas aos
nativos, julga como risível o que faz o governo imperial ao “brindar” os povos indígenas com
um “barbadinho” que, sem conhecer sua índole, prega “à essa gente simples o jejum e a
castidade.171 Sua crítica ácida aos missionários italianos se estende, de forma geral, à falta de
resultados concretos efetivamente alcançados pela ordem em sua política de contato e atração
dos nativos ao espaço do aldeamento onde seriam administrados e civilizados através dos
métodos determinados pelo Regulamento. Segundo seus cálculos, o Império contaria com a
presença de aproximadamente “um milhão de selvagens”, completamente segregados da
sociedade civil, sem que nada se faça para torná-los úteis”.172 De forma imperativa, Rohan
procura desqualificar a prática e a necessidade da participação dos missionários italianos no
indigenismo oficial do Brasil de meados do século XIX. Ironicamente, chama-os de “pobres
Barbudinhos” e de “jesuítas de agora”: “prescindamos, pois, dos jesuítas de agora, e procuremos
imitar os de outrora, trabalhando nós em proveito nosso, como eles o fizeram em proveito seu”.
Em sua avaliação, polarizada entre os missionários de “outrora” e os “atuais”, afirma que os
jesuítas de Loyola não se prestariam ao papel secundário de andar por aí “a ganhar a vida, à
sombra da credulidade pública”.173
Tomemos as considerações de Oliveira Karsburg para entendermos a acusação de
Rohan aos missionários italianos de abusar da “credulidade pública” dos fiéis. O autor afirma
que a vinda dos capuchinos italianos ao Brasil esteve “condicionada ao interesse do governo
brasileiro em integrar o índio à vida social e econômica do país. Em linhas gerais, o governo
investia em missionários estrangeiros para que atraíssem os índios às aldeias a fim de catequizá-
los e inseri-los no circuito de produção econômica”. No entanto, o método itinerante de
pregação que a ordem italiana exercia em meio à população nacional de norte a sul do território
brasileiro chama a atenção das comunidades locais. Estas comunidades passam a adaptar as
pregações e os discursos dos missionários às suas necessidades através da criação de
“fraternidades” que prescindiam da “intermediação do Estado e da igreja”. Além de não mais
batizarem seus filhos na igreja, preferindo “fazê-lo com os capuchinhos”, os fiéis, persuadidos
às práticas penitenciais determinadas pelos padres italianos, “reuniram-se em comunidade
procurando preservar o que os agentes do Evangelho haviam ensinado”, o que minava o poder
de autoridades e do clero locais e colocava as “fraternidades” em suspeição. Como afirma
171 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p. 192. 172 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p. 192. 173 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p. 192-193.
235
Karsburg, os frades capuchinhos transmutaram-se em “santos” que passam a atender “aos
anseios e expectativas da população”, que, empolgada com sua presença, abandonava seus
afazeres para segui-los com o objetivo de aprender maneiras de levar uma vida santa e salvar a
alma”. 174
Sobre a presença dos capuchinhos nos aldeamentos e suas práticas de catequese, assim
se pronuncia Rohan.
E nós, que em catequese, damos diariamente provas de uma falta de tino sem igual,
enviamos a essas tribos um barbadinho que, sem conhecer nem a primeira sílaba de
qualquer palavra brasílica, lhes vai explicar, em linguagem macarrônica, a metafísica
do evangelho! Destituídos em geral das qualidades que devem distinguir os
missionários, não servem os barbadinhos nem se quer para arremedar os padres da
companhia de Jesus. Muito maiores serviços têm prestado à catequese alguns
ilustrados membros do nosso clero nacional. Os nossos padres têm a inapreciável
vantagem de amarem de coração o seu país, e de serem religiosos sem superstição.
Não são eles que farão consistir o segredo da catequese em mandar decorar aos seus
catecúmenos orações ininteligíveis para espíritos incultos, como os selvagens. 175
Mesmo que se apresente enquanto um entusiasta dos serviços prestados pelos jesuítas
ao Brasil, Rohan não tem o propósito de sugerir o retorno dos membros da companhia de Jesus
ao país. O elogio que o proponente faz aos métodos brandos de catequese que foram utilizados
pelos jesuítas, servem ao propósito de Rohan de defender uma política indigenista
contemporânea baseada em métodos igualmente brandos e, principalmente, com a efetiva
participação dos membros do clero nacional. Para o militar, assim como os discípulos de Loyola
se dispuseram em proveito da companhia “os elementos de força que lhes oferecia a América”,
caberia aos representantes do clero nacional, a quem chama de “bem constituídos senhores”, a
empreitada civilizatória. 176
Em sua concepção, o uso dos métodos brandos e pacíficos de “conquista, catequese e
civilização” utilizados pelos jesuítas entre os índios apresentaram os “mais satisfatórios
resultados”, até que foram erroneamente interrompidos. Rohan lembra da ciência dos
missionários de que “o primeiro tiro disparado contra uma tribo lhes faria perder todo o
prestígio no conceito dos selvagens”. Como prova cabal dos resultados obtidos pela ordem, o
militar lembra a exitosa obra de atração feita pelo Vigário José da Silva Fraga junto aos
“ferozes” índios da nação dos Cabassás, na então província de Mato Grosso. Para o militar, o
êxito do vigário em transformar os Cabassás em amigos dos brancos, prova que, com “meios
174 KARSBURG, A. de O., Os apóstolos dos sertões brasileiros, p. 1-10. 175 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.194. 176 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.193.
236
brandos, com mimos apropriados aos seus usos, e com todos os demais sinais de confiança
capazes de cativar homens simples, poderíamos chegar ao mesmo resultado”.177
Rohan atribui uma origem comum entre brancos e índios, o que identificaria e
aproximaria ambos enquanto humanos. Em respeito ao direito natural do nativo ao espaço que
habita, o monogenista clama pela brandura durante o processo de conquista e civilização dos
índios por considerá-lo como o meio mais apropriado a “um povo ilustrado”. No entanto,
embora advogue pela tendência indigenista que preponderou durante o Segundo Reinado,
Rohan segue a única e possível tendência teleológica que alimentou o imaginário político e
intelectual dos responsáveis pela formação da nova nação que se desenhava: a sujeição e a
diluição étnica do índio no conjunto da nação e na formação do “novo homem brasileiro”. Logo,
embora distintos em seus métodos indigenistas, assim como Varnhagen, a quem Rohan
“oferece” seu texto em que o critica, a atividade indigenista de intervenção que defende,
também se propõe a apagar, de forma deliberada, a presença do indígena do território brasileiro.
No entanto, Rohan não defende a mesma ilustração aos negros e escravos, a quem
considera “muito mais perigosos que esses que vivem pela floresta”:
Os nossos escravos formam uma população, que pode futuramente causar sérios
receios. Não se passa um dia sem que, em um ou outro lugar, não se amotinem, não
assassinem seus senhores, não os envenenem, não os roubem; e, entretanto, ninguém
ainda se lembrou de os aniquilar a ferro e fogo; (...). 178
Assim como seus contemporâneos, Rohan também considera a população negra e
escrava como um fator de impedimento à civilização do país. Condena os defensores da
“emancipação lenta e gradual” dos negros, população que define como de “desgraçados”. Para
o militar, as energias do país deveriam ser gastas na lenta e gradual conquista e civilização dos
nossos aborígenes, em detrimento dos “alienígenas africanos”. Assim, os mesmos argumentos
utilizados por Varnhagen para justificar o emprego das bandeiras aos povos indígenas, são
utilizados por Rohan para justificar o extermínio dos escravos, vistos pelo militar como um
problema ao Brasil contemporâneo e ao seu futuro. Embora seus métodos violentos divirjam
quanto ao elemento humano, aos índios para Varnhagen e aos negros para Rohan, e apresentem
posições civilizatórias diametralmente opostas aos índios, encontramos objetivos iguais em
ambos: plantar a semente de uma sociedade cultural e etnicamente branca em um futuro breve.
177 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.193. 178 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.193.
237
A seguir, vejamos as principais propostas e métodos de “conquista, catequese e civilização”
dos indígenas efetivamente defendidas por Rohan em seu projeto civilizatório.
Rohan propõe que, antes de se iniciar a tarefa de catequese e civilização dos indígenas,
caberia ao governo a função de criar “uma administração especial para todo o território inculto”,
principalmente nas áreas de fronteira. Para isso, sugere a divisão dessas regiões em
“departamentos” indígenas, sem a necessidade de deslocar os nativos e a população cabocla de
suas terras de origem. Composta por uma população mista, cada departamento seria
administrado por um chefe privativo com autonomia administrativa independente da autoridade
do presidente da província. Sugere que este cargo seja exercido por “homens de ideias pacíficas,
que sejam casados, e que se resignem a viver com sua família no meio dos sertões”. O chefe do
departamento deveria ter um “título pomposo”, como de capitão ou de capitão-general, capitão-
mor ou outro semelhante que seja de bom-tom aos ouvidos dos selvagens. O militar considera
que, atendidas essas atividades administrativas, pode-se finalmente dar início à atividade de
“conquista, catequese e civilização dos aborígenes”, nesta ordem.179
À primeira etapa de contato com os povos indígenas, a Conquista e a “redução dos
selvagens”, propõe diversos métodos, todos indispensavelmente pacíficos. Destaca como
imprescindível se conhecer o estado de rivalidade entre as tribos, ou entre duas tribos e, assim,
fazer-se aliança com uma delas. O militar acredita que assim, a outra tribo, receando contra si
as consequências dessa aliança, se submeterá também”. Ilustra sua proposta citando o exemplo
“da nação Chané” que, segundo afirma, “cansada de sofrer o jugo dos Guaicurus”, teriam se
apresentado espontaneamente “às autoridades militares do Baixo-Paraguai em 1817 e, desde
então, ali vivem inteiramente submissas”.180 A tradicional entrega de presentes como método
de aproximação com os índios também compõe o cabedal de propostas defendidas pelo militar.
Acredita que alguns mimos como facas, missangas, utensílios e ornamentos, abririam portas “a
negociações mais estreitas” e mostraria aos indígenas “as nossas boas disposições”. No caso
de se aprisionar um ou mais selvagens, sugere “afagá-los e mimoseá-los, e soltá-los afim de
que transmitam a seus patrícios” informações que deponham a favor dos brancos.181
Para demonstrar os resultados maléficos que os métodos hostis causam à relação
colonizador-colonizado, o militar narra um acontecimento vivenciado in loco no ano de 1845
quando esteve na província do Mato Grosso. Lembra da existência, nas cabeceiras do São
Lourenço, de uma nação de indígenas Bororo, constantemente perseguida por um destacamento
179 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.196-197. 180 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.192-193. 181 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p. 197- 198.
238
militar estabelecido nesta imediação. “Não longe do posto, encontraram cinco desses selvagens,
que dormiam a sono solto”. Ao invés de “os prender, de os brindar e de os reenviar a seus
bosques, (...) tiveram a covardia de os degolar sem misericórdia; salgaram as cabeças e as
remeteram para Cuiabá”, como forma de presentear o presidente Gomes Jardim que,
posteriormente, ordena “uma bandeira para as mesmas partes”. Rohan narra essa Bandeira
como uma “comissão de sangue” que, depois de alguns dias de exploração, ao encontrar o
alojamento que procuravam, “caíram sobre ele pela madrugada”: 182
A mortandade foi horrível da parte dos selvagens; aqueles que não sucumbiram nessa
empresa brutal, ganharam atropeladamente o mato, deixando seus filhos expostos à
sanha do inimigo. Os da bandeira, apoderaram-se de treze crianças, com as quais se
puseram em marcha, como um troféu da vitória. Duas dessas crianças, que tinham
sido feridas choravam dia e noite; e vendo esses malvados que os pais, mães e parentes
seguiam pela batida, atraídos pelos gemidos que ouviam, resolveram se desfazer
desses entes importunos, atirando as inocentes enfermas a um córrego que
encontraram. Chegaram, enfim a Cuiabá, com onze crianças de ambos os sexos, uma
das quais tendo apenas poucas semanas de nascida, e privada de leite durante quinze
dias, não pode sobreviver a tamanho sofrimento. 183
Rohan rememora que, desde a empreitada militar e bandeirantista, diversos ataques
indígenas se realizaram aos brancos que cruzavam as estradas de Mato Grosso. Como revide,
respondeu-se novamente com diversas bandeiras, e “como se bem deve pensar, a carnificina foi
abundante”. Entre homens, mulheres e crianças, o militar contabiliza que “mais de duzentos
indivíduos foram espingardeados”. Sobre a prática do extermínio indígena, o militar manda um
novo recado a Varnhagen: “(...) concordará comigo o autor do Memorial Orgânico que, se em
muitos casos se distinguem os civilizados dos selvagens, é só pelo fato de terem mais
aperfeiçoados os instrumentos de destruição”.184 Em sua compreensão, os rotineiros e
agressivos métodos de extermínio indígena, como o que fora testemunha ocular, atravancavam
o processo de integração do indígena à ordem imperial e impossibilitava a ocupação das últimas
fronteiras do Estado nacional brasileiro.
Na percepção de Beaurepaire Rohan, a felicidade indígena estava intimamente
relacionada à subserviência e à integração do nativo ao modelo civilizatório ocidental. A não
empatia do militar com a vida selvática do índio, o faz acreditar que, após a redução e a
integração dos índios bravios à sociedade brasileira, pouco “restará a fazer para torná-los
completamente felizes”.185 Essa percepção parte de sua experiência etnográfica em que
182 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.198. 183 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.198. 184 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.199. 185 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p. 199.
239
qualifica os “anfitriões” como passíveis e hábeis ao espaço do trabalho. Ao narrar sobre a
“mansidão” dos índios “bravos” reduzidos no Mato Grosso, com quem conviveu no período
em que lá esteve em missão, afirma: “não obstante seus hábitos selvagens, vivem conosco; e
tenho reconhecido que, em lugar de nos prejudicarem, têm-se pelo contrário, tornado úteis
serviçais (...)”. Em outro momento, afirma que das crianças caçadas pelas bandeiras, lhe coube
“uma menina de onze anos chamada Upé”. Adotada por Rohan, a trouxe para o Rio de Janeiro.
Batizada com o nome de Henriqueta, o militar salienta que a filha fora “convenientemente
educada” e demonstrara “excelente índole e disposições serviçais”.186
A aplicação dos métodos brandos de atração e conquista dos indígenas do sertão que
foram propostos por Rohan, além de intimamente ligados à limpeza dos sertões, também
estavam intimamente relacionados à “educação” e à formação de mão de obra útil e de segunda
classe. Embora o monogenista Rohan compreenda a cultura sob uma ótica evolucionista,
mesmo que promovida por forças exógenas, e se mostre um entusiasta dos métodos pacíficos
como forma de conquista e como método de acelerar a emergência dos “selvagens” ao mundo
da civilização e do progresso, o militar vislumbrou uma sociedade hierarquicamente desigual.
No topo da pirâmide social, situa os herdeiros da colonização portuguesa como os portadores
da missão histórica de integrar os “selvagens” à base da pirâmide na condição de braços úteis
e enquanto sujeitos periféricos submetidos a uma estrutura social de dominação colonialista.
Como fica transparente na citação a seguir, entre os elementos que compõem a noção de
civilização para Rohan, o trabalho ocupa posição privilegiada:
Embora se tenham os selvagens, mansa e pacificamente, sujeito a nós; embora se
mostrem afeiçoados à nossa religião e identificados com os nossos costumes, não é
isso bastante para que os reputemos civilizados, como o pensam os reverendos
barbadinhos, nem é possível que a passagem de um para outro estado social se possa
efetuar tão de chofre. O que muito interessa é ir os acostumando aos nossos cômodos,
e fazer-lhes sentir que esses cômodos não se adquirem senão pelo trabalho. 187
Para o indigenista, “uma verdade que todos nós devemos sentir, é que nada moraliza um
povo como o trabalho”. Assim, infere que aqueles que tiverem a “importante missão” de
civilizar os indígenas, devem tomar alguns cuidados. Inicialmente, defende que o civilizador
não deve contrariar o “selvagem”. Antes, deve respeitar os seus hábitos tradicionais, como a
caça, a pesca, a colheita de frutas silvestres, enquanto se procede com a introdução de animais
domésticos e a cultura agrícola e sedentária dos vegetais alimentares, como as raízes, o feijão,
186 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.198- 199. 187 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.200.
240
o milho, a cana de açúcar e finalmente, as árvores frutíferas. Gradativamente, sugere que se
dote as aldeias com aparelhos de manufatura que entretenham os indígenas, como roda de fiar,
teares, uma ferraria, um curtume e engenho para a fabricação de melaço e açúcar. As crianças
devem ter uma atenção especial do Diretor da aldeia, habituando-as cedo ao trabalho, o que
acredita ser fácil, pois “há uma infinidade de operações que elas podem tomar parte”. No
entanto, o importante é que “as tarefas tenham ar de folguedo, e que se entretenham nelas o
espírito de cobiça, por meio de pequenas dádivas”. Rohan acredita que se as sugestões forem
criteriosamente seguidas, além do melhoramento moral e material das aldeais, as inovações
introduzidas irão diminuir as despesas e despertar a esperada vocação nos indígenas. 188
O militar lembra que os “selvagens” apresentam a característica de conciliar a
propriedade comum com a propriedade privada. Além da porção de terras que ocupam, a “caça,
a pesca, e tudo que não pode ser consumido por um só indivíduo” pertence ao primeiro caso.
No segundo, enquadra-se “as armas e os utensílios que cada um fabrica ou adquire por qualquer
título legítimo”. Segundo diz, nos aldeamentos fundados pelos jesuítas, proibiu-se o segundo
gênero de propriedade, o que considera um “erro grosseiro que condena um povo qualquer à
sorte do escravo”. Nos aldeamentos que propõe, defende que a recompensa dos indígenas, além
de privada, deve ser proporcional ao trabalho que efetivamente exerce. A prática do comércio
deve ser amplamente incentivada e as demandas dos aldeados serão pagas com um “jornal
diário” recebido pelo índio. Ainda, segundo Rohan, paralelo à pedagogia do trabalho, deverá
se introduzir a instrução mecânica, primeiras letras em língua portuguesa para as crianças de
ambos os sexos e, principalmente, “promover os casamentos entre os aborígenes e pessoas de
outras raças, de onde resulta uma raça mestiça de muito valor e inteligência”. 189
Ao propor a fundação de departamentos indígenas em “favor” dessa população, Rohan
sugere a prévia fundação de um departamento experimental e local, por onde se possa, em
algum tempo, conhecer as vantagens ou desvantagens do indigenismo que defende. Segundo
sua estimativa, três ou quatro anos seriam suficientes para se formar um juízo sobre a eficácia
dos métodos que propõe, “sem que o tesouro nacional tenha sido gravemente onerado”. Por sua
posição geográfica, defende que o primeiro departamento experimental deveria ser criado na
província de Mato Grosso. Dois interesses centrais movem o militar à escolha dessa província:
a efetiva ocupação e colonização da região que apresenta baixa densidade demográfica e ainda,
a segurança das fronteiras. No primeiro caso, acredita na integração de trinta e sete mil “almas
188 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.201.202. 189 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.202-203.
241
selvagens”, segundo sua estimativa, ao conjunto da nação e à região. Somados às quarenta e
cinco mil pessoas civilizadas que habitam o solo mato-grossense, mais de oitenta mil habitantes
úteis efetivariam a ocupação da província. Em sua concepção, para a efetiva ocupação do
território mato-grossense e na impossibilidade de se atraírem colonos europeus, torna-se
indispensável “chamar à civilização os selvagens que a povoam”. 190
Pensando na segurança da fronteira nacional, estrategicamente define a região do Baixo-
Paraguai como a mais apropriada para a implantação do primeiro departamento indígena. Em
sua concepção, alguns critérios seriam determinantes para a definição deste local: “clima
salubre, terrenos férteis, boas pastarias, muita caça, peixes e frutas, belas madeiras, minas de
pedra calcária em Corumbá, de ferro magnético no Morro-Grande”, além de outras qualidades
em prol do projeto”.191 Rohan se posiciona contrário à qualquer fortificação e militarização da
região do Baixo-Paraguai como recurso à manutenção da integridade da fronteira da província
mato-grossense. Em seu argumento, afirma que se o Estado deve dispender alguma soma em
benefício desta região, que o aplique no melhoramento moral dos indígenas, antes de fazê-lo na
“construção de inúteis muralhas”. Como vemos, dois interesses convergentes moviam o
indigenismo de Rohan. Inicialmente, pretendia tornar os índios mais “felizes”, levando-os pelas
mãos à sociedade civil e ao mundo do trabalho e, finalmente, salvaguardar as fronteiras
nacionais através da fundação de “grandes povoações, sem irmos a remotos climas recrutar
colonos”. Como afirma Almeida de Sousa:
Do ponto de vista territorial, Beaurepaire Rohan via nesses meios de assimilação
pacífica dos índios uma forma de ocupar o território e garantir a integridade das
fronteiras do Império. Assim, estimular a sedentarização e a incorporação de valores
civilizados, como os ofícios agrícolas, o comércio, a instrução e outros, seria uma
forma de fixar os indígenas na vida civil do Império a fim de atender duas finalidades:
a ocupação efetiva da fronteira e a conversão dos índios em elementos produtivos. Ou
seja, incorporar os nativos à sociedade significava, em certa medida, uma legitimação
do domínio sobre os sertões, pois os indígenas permaneceriam em seus aldeamentos,
sobretudo em fronteiras, para garantir a hegemonia sobre o território. 192
Para a efetivação destes interesses, Rohan afirma que basta que o governo “estenda seu
braço protetor sobre as quinze aldeias de aborígenes que, de há muito ali vivem mansos”. Torna-
se natural que, para defender e viabilizar suas propostas indigenistas na região do Baixo-
Paraguai, o militar ilustre e positive qualidades que considera como inerentes aos grupos nativos
que contatou em sua experiência etnográfica com os Guanás, Kinikinaus, Laianas e Terenas.
190 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.204-205. 191 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.204-205. 192 SOUSA, E. A. de., Os ideais de civilização na Amazônia imperial, p. 143.
242
Sobre estes grupos tribais, Rohan credita elogiosas qualidades como sua “disposição à vida
social”, sua generosidade e, principalmente, “seu aferrado amor ao trabalho”. Afirma tratar-se
“de gente notável por sua índole pacífica”. Para o militar, “faltaria pouco” para transformar
homens “de tão apreciáveis qualidades” em cidadãos úteis ao Estado brasileiro. Este “pouco”,
resumia-se à criação de um departamento indígena administrado por um Diretor que se
encarregue da educação dos índios assistidos, que os coloque ao abrigo da justiça, que os anime
na agricultura, no comércio e principalmente, “que os organizem militarmente, como convêm
a sua própria defesa e à da nossa fronteira”. 193
Finalizemos com os interesses explícitos assinalados pelo militar Henrique de
Beaurepaire Rohan em seu projeto indigenista. Como deixa claro, seus esforços intelectuais
estavam totalmente voltados aos interesses do Estado Nacional brasileiro.
Não é tanto no interesse dos aborígenes que falo: o preconceito existente contra a raça
americana inutilizaria meus esforços; mas, como a proteção prestada a esses filhos
primitivos do Brasil reverte toda a nosso favor, como ela contribuirá para tornar
inexpugnável a nossa fronteira, ricos os nossos celeiros, povoados os nossos desertos
por homens que já hoje substituem os escravos nos trabalhos da agricultura, da
navegação e das fábricas. 194
193 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p.204-205. 194 ROHAN, H. B., Considerações acerca da conquista (...), p. 205.
243
CONCLUSÃO
Para fecharmos nossa tese, faz-se necessário voltar ao seu ponto de partida, momento
no qual apresentamos a hipótese e os objetivos que guiaram esta pesquisa. Naquele espaço
introdutório, levantamos a hipótese de que, durante o contexto de formação do Estado Nacional
brasileiro, a discussão indigenista que atravessa a literatura romântico/indianista, a ciência
histórica e a política indigenista oficial compartilhava um desejo comum: o desaparecimento
étnico do índio. A partir desta inferência apresentamos o objetivo de diagnosticar o destino e o
estatuto atribuído aos indígenas no futuro da nova nação que estava sendo “desenhada” pela
elite política e intelectual do Império. Para isso, destacamos a necessidade de investigar o
caráter político e pragmático do debate indigenista contido nas narrativas literárias, científicas
e, ainda, nas propostas indigenistas discutidas pela intelectualidade oitocentista.
Não podemos deixar de ratificar o pensamento político e intelectual que permeou esse
debate. Como já destacamos, o mesmo século que assistiu a independência do Brasil, o amarrou
ideologicamente ao continente que por mais de trezentos anos impôs seu domínio político e
seus valores socioculturais às terras americanas. Assistiu ainda ao imaginário intelectual
eurocêntrico e colonizado dos letrados brasileiros que tomaram para si a tarefa de projetar um
futuro mais promissor ao independente Estado Nacional que ganhava forma nos trópicos da
América. Na corrente deste projeto e, quaisquer que tenham sido as nossas particularidades
históricas e nossas diferenças étnico/raciais, o que prevaleceu entre os intelectuais oitocentistas
foi a estoica determinação em trilhar um caminho que nos guiasse no sentido de uma futura
sociedade racialmente homogênea. Destarte, além da manutenção dos valores político/culturais
herdados da ex-metrópole portuguesa, como a forma de governo, a religião, a lei, entre outros,
caberia à elite política e intelectual do Império a tarefa de mover todos os esforços à construção
de uma nação que se projetava, teleologicamente, branca e europeia.
Logo, uma opção de sociedade havia sido feita pelos “herdeiros” do novo e incipiente
Estado Nacional e, assim, os “entraves” que obstruíam essa opção civilizatória, como os negros
e índios, deveriam, em um futuro próximo, ser eliminados. Objetivamente, é sobre essa
“estrutura racial” heterogênea e diversa que a atenção de parte dos intelectuais brasileiros
oitocentistas voltou-se, afinal, no futuro que matizavam não havia espaço para as diferenças.
Se essa discussão que “oferecia” um destino adverso aos elementos racialmente indesejados foi
extremamente lacônica aos negros, foi prolixa e demandou muita tinta, papel e energia aos
indígenas. Por isso, ao longo da tese, caminhamos pelos meandros dessa densa discussão que
244
apresentou distintos contornos e propostas na pena dos intelectuais que, em considerável
proporção, optaram pela diluição, via integração, dos elementos não condizentes ao projeto
civilizatório tomado como paradigma.
Localizada nos trópicos da América, região que muitas vezes fora definida como em
condições ambientais e populacionais adversas, caberia aos intelectuais do Império a difícil
tarefa de projetar um viável e promissor futuro à nova nação. Daí a necessidade de edenizar-se
a natureza americana e sua “gente” em um momento em que esses elementos, principalmente
os últimos, representavam um obstáculo ao projeto civilizatório desejado. Como vimos, esse
debate e seu substrato político e ideológico permeou as páginas de nossa principal fonte de
pesquisa: a Guanabara: revista mensal, artística, científica e literária. Através dela,
descortinamos, dentro de seus limites, o escopo dessa discussão com ênfase na imbricada
relação entre a literatura romântico/nacionalista e a ciência histórica com a discussão
indigenista integracionista de meados do século XIX. Como mostramos, qualquer que seja,
porém, a leitura feita sobre o índio na história e no futuro da nova nação, prevaleceu uma postura
pessimista, factível com a realidade civilizatória que se pretendia tornar visível e,
principalmente, coadunada com as preocupações dos intelectuais responsáveis pela tarefa de
tecer os fundamentos da nação e da nacionalidade brasileira.
No transcorrer da tese demonstramos que os nativos americanos foram objeto de
intensos debates entre os intelectuais do Império. Em perspectiva, duas polêmicas – uma sobre
o passado e outra sobre o futuro do indígena do território brasileiro. Em síntese, analisamos
esse debate que envolveu personalidades que, em muitos casos, transitavam livremente pelo
campo da literatura romântico/indianista, pelo espaço da ciência histórica e, ainda, participavam
do debate indigenista que atravessou e transcendeu o indigenismo oficial. Ao mesmo tempo em
que os textos literários, científicos e indigenistas analisados descortinaram as convicções
indigenistas e civilizatórias de seus autores, proporcionaram também parâmetros para que
vislumbrássemos uma tendência indigenista que concentrou maior peso entre os intelectuais
oitocentistas: a defesa da filantropia e dos métodos brandos de integração do indígena à
sociedade nacional. Tratava-se, no limite, de um desafio enfrentado pelos “arquitetos” da
incipiente nação: valorar o caráter indígena da nação, logo, da sociedade mestiça que surgia, ao
mesmo tempo em que se guerreava contra os nativos remanescentes no Império para, em um
breve futuro, elevar-se o país ao status de civilizado.
No entanto, lembremos que esse debate que atravessou o campo da literatura, da ciência
histórica e transcendeu o campo do indigenismo oficial de 1845 e envolveu distintos intelectuais
245
do Império, desencadeou opiniões e imagens conflitantes, quando não agressivas entre seus
interlocutores. Afinal, as reflexões e perspectivas históricas desses intelectuais suscitaram
distintas posições sobre a presença do índio na história nacional e, principalmente, sobre os
métodos de integração dessa população à nação brasileira. Em ambos os casos, ganham
destaque o binômio Tupi-Tapuia, os métodos indigenistas – brandos ou hostis -, a presença e o
papel dos missionários e do Estado no processo de integração, entre outros. Em jogo,
encontrava-se o processo de mestiçagem e o tipo de sociedade que se pretendia projetar às
outras sociedades. Como vimos, essas foram algumas das principais questões levantadas neste
trabalho.
Nesta pesquisa, destacamos o caráter político e engajado do movimento literário
romântico/indianista. Muito além de seu caráter cultural, o tratamos como um campo de debate
sociopolítico no interior da comunidade que o representa. Para entender esse aspecto situamos
a literatura poético/nacionalista em seu contexto político de formação do Estado Nacional
brasileiro. Assim, destacamos que, respeitadas as particularidades políticas de seus autores, um
dos objetivos discursivos deste movimento político/cultural foi exatamente o de exaltar,
literariamente, as qualidades, politicamente construídas, do bom selvagem que “habitou” o
território brasileiro. Afinal, se a nova nação dos trópicos nasce com o estigma de nação mestiça,
que seja a partir da soma de elementos nobres. Assim, inaugura-se uma tradição poético/literária
que transcende suas fronteiras e ganha efetivos contornos no campo histórico/científico. No
centro do palco, o desejo de conciliar a origem indígena Tupi da nova nação com a ordem
civilizatória europeia. Localizado no passado enquanto representante histórico da nação, o
nobre indígena, outrora “aliado” do colonizador, serve aos interesses da elite política e
intelectual do Império ciosa por fundar uma história pacífica de integração e suavização de suas
diferenças étnicas.
No entanto, essa pacifica relação com a diferença deve ser relativizada, pois, como
procuramos mostrar, mesmo que em grande medida os literatos românticos projetem o seu olhar
para o índio colonial, o nativo contemporâneo não fora completamente esquecido. Lembremos
que o maior expoente do movimento indianista, Gonçalves Dias, desenvolveu um indianismo
socialmente crítico. Em suas composições poéticas ou científicas, o autor maranhense denuncia
a formação de uma nova nação que se construía sobre os escombros dos naturais e legítimos
proprietários do território brasileiro. Aos indígenas contemporâneos, embora não os considere
mais representativos do que já teriam sido, não deixa de articular um sentimento de
246
solidariedade, assim como fez com os escravos africanos em seu instigante ensaio político
Meditação.
Desta forma, as composições gonçalvinas nos ajudaram a compreender o caráter
dinâmico, complexo e heterogêneo do romantismo. Se, de forma geral, o indianismo sedimenta
uma história pacífica de integração das diferenças étnicas e sociais, como afirmamos, com o
autor maranhense entendemos que essa assertiva esconde as dissidências ideológicas contidas
no interior do movimento literário. Não por acaso Gonçalves Dias encontra-se em posição
diametralmente oposta a outro grande expoente do indianismo, José de Alencar. Enquanto este
sedimenta a imagem contida na assertiva citada, e celebra a plenitude histórica e a harmonia
social e racial da nova nação americana, aquele denuncia as mazelas políticas que excluem e
marginalizam negros, escravos e índios da vida política e econômica da nação.
Ao longo da tese sublinhamos que o processo inicial de “invenção” do Brasil no campo
literário/romântico andou de mãos dadas com o discurso científico e com a produção de nossa
historiografia nacional. Entre outros, apresentamos essa imbricada relação nos trabalhos
História Pátria e Brasil e Oceania, ambos do indianista e cientista Gonçalves Dias. No último
ensaio, o autor envolveu-se na densa tarefa de tornar compreensível o “inevitável” processo de
decadência indígena que teria se iniciado no período pré-colonial, não obstante atribua
responsabilidade aos europeus pela promoção e aceleração da morte étnica do copioso
caleidoscópio de línguas e culturas tribais que até então habitava o continente americano. Neste
trabalho, Gonçalves Dias segue a proposição pessimista apresentada pelo alemão von Martius
anos antes em seu vitorioso trabalho apresentado ao IHGB sobre a escrita da história do Brasil.
Nesta proposta historiográfica o bávaro defende a tese de que os indígenas contemporâneos
seriam os últimos remanescentes de uma população outrora mais elevada que caminhava de
forma derradeira à sua completa decadência. Outras proposições historiográficas do alemão
marcaram presença e ganham distintos contornos nos trabalhos literários neste momento. Entre
elas, encontra-se a origem mestiça da nação brasileira que, segundo Martius, se concretizaria
através da absorção do sangue indígena e “etiópico” ao sangue daqueles que teriam dado as
garantias morais e físicas ao país recém-independente: os portugueses. Como demonstramos na
tese, de distintas formas, essa absorção sanguínea do indígena ao sangue do colonizador –
defendida pelo discurso científico – foi amplamente explorada pela literatura
romântico/indianista e serviu aos interesses dos políticos e intelectuais oitocentistas
responsáveis pela construção de uma imagem de Brasil mestiço, mas que caminhava no sentido
do branqueamento e, principalmente, destinado à civilização.
247
Em Varnhagen encontramos outro autor do espaço científico que alimentou as assertivas
pessimistas de von Martius sobre o destino adverso dos povos indígenas. Apresentamos esse
pessimismo em sua obra História Geral do Brasil, onde o estadista situa os nativos americanos
enquanto povos sem história, logo, sem futuro. Lembremos que esse pessimismo que se instalou
entre os intelectuais do Império reverberou e apresentou efetivos contornos na política
indigenista de 1845 e atravessou o século XIX. Varnhagen imprimiu esse pessimismo ao futuro
dos índios e principalmente, com a política indigenista oficial do Império em seu projeto
político e indigenista dedicado à nação Memorial Orgânico. Neste, o estadista caracteriza o
indígena como o avesso e, principalmente, como oponente do modelo civilizatório que se
projetava ao novo país dos trópicos, descrevendo-os sempre a partir de suas faltas e em termos
negativos. Além de celebrar as heranças civilizatórias herdadas pelo Brasil da ex-metrópole
portuguesa, na linha do horizonte que desenhava, encontravam-se os dois principais obstáculos,
os negros e os indígenas e, assim, ambos deveriam ser removidos. O conjunto de representações
e de expectativas sobre o “outro” produzido por Varnhagen passava pela reorientação do
indigenismo oficial, definido como “excessivamente” brando pelo autor. Podemos encontrar
esta mesma preocupação alguns anos após em História Geral do Brasil quando, novamente, o
estadista postula por métodos mais agressivos e imediatistas – como o retorno das bandeiras –
de integração dos indígenas do território brasileiro ao conjunto da nação.
No entanto, como destacamos em nosso último capítulo, as proposições indigenistas de
Varnhagen não passaram despercebidas entre os demais intelectuais que igualmente
participavam do processo de formação do Estado Nacional brasileiro e de definição de uma
historiografia oficial à nova nação. Neste quesito, Varnhagen encontrava-se em posição
diametralmente oposta àqueles que defendiam a presença dos indígenas Tupi como
representante mais autênticos e originais da nacionalidade brasileira, como Gonçalves Dias,
Gonçalves de Magalhães e muitos outros. No campo do indigenismo, Varnhagen também
encontrou forte oposição. Suas agressivas propostas de integração, quando não de extermínio,
criaram um campo fértil de debate e chocaram-se com propostas mais filantrópicas e
humanitárias. Esse debate que atravessou a política indigenista oficial passou longe de
encontrar um núcleo comum e dispendeu muita discussão, principalmente quanto aos métodos
de integração como: a tutela forçada ou não dos índios, a maior ou menor presença do Estado,
a presença de religiosos, o uso da mão de obra indígena em substituição a dos negros, entre
outros pontos de encontro e desencontro.
248
Alheios a esse debate, encontrava-se o nativo americano, permanente alvo das práticas
indigenistas que ganhavam corpo e força de lei a partir das discussões de gabinete e institutos
oficiais do Império. Assim, finalizaremos lembrando que, em se tratando de um debate
indigenista, logo, de intervenção direta do Estado na estrutura política, social e cultural das
comunidades indígenas do território nacional, qualquer que fosse o método adotado, mais
agressivo ou “filantrópico”, o destino atribuído aos indígenas pelos intelectuais e pelo Império
brasileiro foi um só: posicionar o índio no passado de nossa história e promover o seu definitivo
desaparecimento étnico no Brasil oitocentista. Afinal, como alertamos ao longo da tese, o desejo
de grande parte dos intelectuais oitocentistas foi o de conciliar a origem mestiça da população
brasileira com a imagem de um país que galgava os primeiros passos no caminho da civilização
ocidental.
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Autorizo a reprodução deste trabalho.
Dourados, 06 de dezembro de 2019.
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Almir Bauler