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Liturgia e o corpo
(Do livro Introdução ao Espírito da Liturgia, pag. 127-131.
Card. Joseph Ratzinger).
A participação activa
O Concilio Vaticano II indicou-nos, como uma idéia funda-tal para a
configuração da Liturgia, a palavra participatio actuosa - participação activa - de
todos no «Opus Dei», isto é, acontecimentos da missa. Com toda a razão, pois o
Catecis-ia Igreja Católica chama atenção para o significado da pala-que é serviço
comum, relacionando-se, portanto com todo o povo santo de Deus (CCC 1069).
Mas em que consiste essa participação activa? O que se faz aí? Infelizmente, o
sentido dessa palavra facilmente leva a equívocos, pensando-se que se trata de
acto geral e apenas exterior, como se todos tivessem de - quanto mais possível
tanto melhor - ver-se em acção. Contudo, a palavra «participação» (ou «ter
participação»), remete para uma participação principal, na qual todos devem
participar. Se quiser-descobrir de que acção se trata, então devemos indagar
primeiro o que é essa actio central, na qual todos os membros da unidade
deveriam participar. O estudo das fontes litúrgicas proporciona-nos uma resposta
que, embora a princípio nos possa parecer surpreendente, é evidente do ponto de
vista dos funda-tos bíblicos básicos considerados na primeira parte do livro, fontes,
entende-se sob actio da Liturgia a oração eucarística. A verdadeira acção litúrgica,
o verdadeiro acto litúrgico, é a oratio - a grande oração, a qual constitui o núcleo da
celebração eucarística, tendo sido, por essa razão, designada pelos Padres o
oratio. À partida, isso era correcto do ponto de vista do carater litúrgico, pois o
desempenho essencial da Liturgia acontece na oratio, a qual é o seu centro e a sua
forma fundamental. Posteriormente, tanto para os pagãos como para os
intelectuais interpeladores, a designação da Eucaristia como oratio representava
uma resposta fundamental, pois mediante ela dizia-se aos que estavam à procura:
agora são substituídos os vossos animais imolados como também todos os outros
sacrifícios vossos, que na realidade não satisfazem ninguém. O seu lugar foi
ocupado pelo sacrifício do Verbo. Nós somos a religião espiritual, na qual se
efectua, verdadeiramente, a Liturgia da Palavra, na qual já não se imolam nem
carneiros nem vitelos, onde a Palavra, como representante da nossa existência, é
dirigida a Deus, fundindo-se com a Palavra verídica, que é o Logos de Deus e que
nos envolve na verdadeira adoração. Talvez seja útil referir que o significado
original da palavra oratio não «oração» (para isso empregava-se a palavra prex),
mas sim «alocução do celebrante», a qual agora, dirigindo-se a Deus na
consciência de que dele promana e através dele se torna possível, alcança a sua
maior dignidade.
Mas até agora só aludimos ao essencial. Essa oratio - a oração eucarística,
o «cânone» - é certamente mais do que apenas uma alocução, ela é actio no
sentido mais elevado do termo. Pois aí acontece que a actio humana (até agora
exercida pelos sacerdotes das várias religiões) recua, deixando espaço à actio
divina, que é a acção de Deus. Nessa oratio, o sacerdote fala com a pessoa do
Senhor - «isto é o meu corpo», «isto é o meu sangue» - sabendo que já não é ele
que fala, tornando-se, em virtude do Sacramento recebido, voz de Deus, a qual
agora fala e age. Essa acção de Deus, que se realiza através do discurso humano,
é a «acção» verídica da qual toda a Criação está à espera: os elementos da Terra
serão transubstanciados, quase arrancados da sua origem e consolidação natural,
abrangidos no fundo mais fundo do seu ser e transformados no corpo e sangue do
Senhor. O céu e a terra novos serão antecipados. A verdadeira «acção» litúrgi-ca,
na qual todos queremos participar, é a acção do próprio Deus. A novidade e a
particularidade da Liturgia cristã é o facto de ser o próprio Deus quem age e
concretiza o essencial, elevando a Criação nova, fazendo-se acessível, de modo a
que seja possível comunicar com Ele pessoalmente - através das coisas terrestres
e dos nossos dons. Mas, como podemos participar nessa acção? Não são, Deus e
Homem, totalmente incomensuráveis? Pode o Homem, finito e pecador, cooperar
com Deus, infinito e Santo? Ora, ele pode, precisamente através da Encarnação de
Deus que se tornou corpo, aproximando-se aqui, sempre de novo, de nós que em
corpos vivemos. Todo o acontecimento da Encarnação, Cruz e Ressurreição e da
Parusia se torna presente pela forma como Deus envolve o Homem na cooperação
com Ele próprio.Como já vimos, na Liturgia isso manifesta-se pelas preces de
aceitação que fazem parte da oratio. Certamente, o sacrifício do Logos já foi aceite
para sempre. Mas nós temos de orar, a fim de ele se tornar o nosso sacrifício, a fim
de nós próprios nos tornarmos como dissemos, «conforme Logos» e, por
conseguinte, verdadeiro Corpo de Cristo: é esse o objectivo. E nós temos de
implora-lo. Essa imploração em si é um caminho, um percurso da existência rumo à
Encarnação e Ressurreição. Nessa própria »acção», nessa aproximação oratória
da participação, não há diferença entre sacerdotes e leigos. É certo que dirigir a
oratio em norne da Igreja ao Senhor, falando no núcleo da oração com a pessoa de
Jesus Cristo, só pode acontecer pelo poder do Sacramento. Mas a participação
naquilo que nenhum Homem, mas só o Senhor, pode fazer, é igual para todos.
Para nós todos, vale, segundo a palavra de 1Cor 6, 17, «Aquele, porém, que se
une ao Senhor constitui, com Ele, um só espírito». O objectivo é que no fim a seja
abolida a diferença entre a actio de Cristo e a nossa. Para que haja uma única
actio, que seja simultaneamente a sua e nossã - a nossa por nos termos tornado
«um corpo e um espírito» com Ele. A singularidade da Liturgia eucarística consiste
em ser o próprio Deus a agir, envolvendo-nos nos seus actos. Todo o resto
comparativamente com isto, secundário.
Também as acções exteriores - a leitura, o canto, a oferta dos dons - podem,
naturalmente, ser distribuídas duma maneira conveniente. Aí, há-de distinguir-se a
participação na Celebração da Palavra (leitura e canto) da própria celebração
sacramental. Aqui o papel secundário das acções exteriores deveria ser claramente
ressaltado. Aliás, quando vem o essencial - a oratio – a acção deve desaparecer
totalmente. Como também deve evidenciar-se que, somente a oratio é o essencial,
por ser só ela que proporciona espaço para a actio de Deus. Quem compreendeu
isto, entenderá facilmente que agora não se trata de olhar o sacerdote nem de ver
o que ele faz, mas sim olhar juntos para o Senhor e aproximar-se dele. Hoje,
alguns protagonistas, principalmente durante a preparação dos dons,
desempenham quase um espetáculo teatral, facto que simplesmente ignora o
essencial. Se cada acção exterior em si (no fundo são poucas, o que leva a serem
geradas artificialmente), passa a ser o essencial da Liturgia, de modo que essa se
torne uma acção geral, então o verdadeiro teodrama da Liturgia terá mesmo
falhado, para não dizer convertido numa paródia. A verdadeira educação litúrgica
não pode consistir em aprender a ensaiar actividades exteriores, mas sim em
conduzir para a verdadeira actio, que faz da Liturgia o que ela é; conduzir para o
poder transformador de Deus, o qual, através do acontecimento litúrgico, queria
transformar os Homens e o Mundo. Neste ponto, a actual educação litúrgica, tanto
dos sacerdotes como dos leigos, encontra-se num estado deficjtário preocupante -
aqui há muito por fazer.
Neste momento, a pergunta do leitor talvez seja a seguinte: e o corpo? Não
será que, com a idéia do sacrifício da palavra (ora-tio), tudo assente apenas no
Espírito? Isso poderia ser o caso na idéia pré-cristã da celebração segundo o
Logos, mas não na Liturgia da Palavra personificada, a qual se nos oferece no seu
corpo e no seu sangue, portanto, corporalmente, embora na forma do corpo novo
do ressuscitado, o qual, permanecendo sempre verdadeiro, se nos oferece através
dos sinais materiais do pão e do vinho. Isso significa que o nosso corpo,
precisamente na existência corporal do nosso quotidiano, é exigido do Logos e
para o Logos. Pois podendo ser a verdadeira «acção» litúrgica traduzida como acto
de Deus, consequentemente, a Liturgia da Fé excede sempre o acto cultuai,
atingindo o quotidiano, o qual se deveria tornar «litúrgico», isto é, a missão para a
transformação do mundo. Exige-se do corpo muito mais do que apenas carregar
aparelhos ou coisa semelhante. O quotidiano exige todo o seu empenho. Exige-se
dele que se torne apto a «ressuscitar», orientando-se para a ressurreição e para o
Reino de Deus, cuja abreviatura é a seguinte: a tua vontade se faça no céu e na
terra. Onde haja vontade divina, há céu, e a Terra torna-se céu. Entrar na acção de
Deus, a fim de estarmos em cooperação com Ele - é isso que deve começar na
Liturgia e continuar a evoluir para além dela. A Encarnação, através da cruz (a
transformação da nossa vontade para a comunhão da vontade comum com Deus),
deve sempre conduzir à ressurreição - para o domínio do amor, que é o Reino de
Deus. O corpo deve, por assim dizer, ser «exercitado» para a ressurreição.
Convém ter presente que a palavra «ascese», que já se encontra fora de moda,
significa em inglês simplesmente «exercício». Nos nossos tempos, treina-se muita
coisa com muito zelo, muita persistência e renúncias - porque não se há de treinar
para Deus e o seu Reino? «Castigo o meu corpo e mantenho-o em servidão», diz
Paulo (lCor 9, 27). Aliás, já naquela altura a disciplina dos desportistas servia-lhe
de exemplo para o próprio exercício. Tal treino deveria ser uma parte essencial
quotidiano, encontrando, contudo, o seu conteúdo interior dentro da Liturgia, na
sua «orientação» para Cristo ressuscitado, a dizer mais uma vez de outra maneira,
ele é o exercício para aceitar o outro na sua diferença, para chegar ao amor - o
exercício para aceitar aquele que é todo diferente, Deus, e admitir ser moldado e
utilizado por Ele. A inclusão do corpo, que é o objectivo da Liturgia da Palavra
personificada, manifesta-se na própria Liturgia através de uma certa disciplina
física, em gestos nasceram da imposição interior da Liturgia, evidenciando
corporalmente a sua natureza. Esses gestos podem variar em menor nas diversas
zonas culturais, mas as suas fôrmas essenciais pertencem à cultura da Fé que
nasceu do culto; em conseqüência, como linguagem de expressão, eles
transcendem as várias zonas culturais.