Liturgia Romana

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MRCIO ANTNIO DE ALMEIDA

MISTAGOGIA DA MSICA RITUAL CATLICA ROMANA: ESTUDO TERICO-METODOLGICO

SO PAULO 2009

MRCIO ANTNIO DE ALMEIDA

MISTAGOGIA DA MSICA RITUAL CATLICA ROMANA: ESTUDO TERICO-METODOLGICO

Dissertao para obteno do grau de Mestre em Msica no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquista Filho (IA-Unesp), Programa de PsGraduao em Msica, rea de Musicologia/Etnomusicologia. Orientadora: Profa. Dra. Dorota Machado Kerr

SO PAULO 2009

MRCIO ANTNIO DE ALMEIDA

MISTAGOGIA DA MSICA RITUAL CATLICA ROMANA: ESTUDO TERICO-METODOLGICO

Dissertao para obteno do grau de Mestre em Msica no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquista Filho (IA-Unesp), Programa de PsGraduao em Msica, rea de Musicologia/Etnomusicologia.

So Paulo, ______ de _____________________ de 2009.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________ Profa. Dra. Dorota Machado Kerr IA-Unesp orientadora

____________________________________________________ Profa. Dra. Maria Aparecida Bento Faculdade Santa Marcelina

____________________________________________________ Prof. Dr. Valeriano dos Santos Costa Teologia PUC-SP

Celebra, rede de animao litrgica. Aos membros da Equipe de Reflexo de Msica Litrgica da CEPL-CNBB. s irms da Associao Congregao de Santa Catarina V.M. Aos que se tem dedicado ao estudo da msica ritual ps-conciliar no Brasil. A quem exerce ministrios litrgico-musicais nas vrias igrejas.

Agradecimentos

Agradeo a Deus por ter-me imprimido o seu esprito e me impulsionado prtica mistaggica da msica litrgica. minha pequena famlia, Ana, Jos e Joo, ncleo, lugar e fonte do mistrio e do ministrio. minha grande famlia, especialmente Antnio e Carmen, meus pais, por conduzirem e alimentarem meu senso religioso e pelo impulso constante ao servio ministerial na igreja, por fora do Batismo. Agradeo Profa. Dra. Dorota Machado Kerr pela orientao madura e pela cumplicidade na concepo e prtica da msica congregacional. Profa. Dra. Maria Aparecida Bento pelas contribuies pertinentes continuidade do trabalho e pela coragem e docilidade no pensar a msica ritual em proximidade musicologia. Ao Prof. Dr. Pe. Valeriano dos Santos Costa pela leitura acurada do trabalho e pelas contribuies pertinentes do ponto de vista teolgico-litrgico. Ao Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel, membro da comisso julgadora do Exame Geral de Qualificao, pelo olhar contemplativo e maduro sobre a histria eclesistica e suas leituras possveis. Agradeo s irms Lia Gregorini e Rute Redighieri, da Congregao de Santa Catarina V.M., pelo apoio e confiana no exerccio do ministrio e no encontro com o mistrio pela msica. Aos membros da rede Celebra (So Paulo e Nacional), pelo incentivo e por colocarem constantemente prova a eficcia da proposta desta pesquisa nos momentos formativos. Aos ministros e ministras da msica de todo o Brasil, em especial, aos que acompanho mais diretamente, pela solicitude e zelo pela msica ritual dentro e fora das celebraes. Por fim, agradeo aos mestres que me ajudaram a enxergar intensa e criticamente os caminhos da msica e da liturgia dentro e fora da vida acadmica.

Resumo

Este estudo tem por finalidade descrever metodologicamente a prtica mistaggica dos sculos IV e V d.C. e discutir a recente sistematizao e aplicao do mtodo mistaggico formao dos ministrios litrgico-musicais da Igreja Catlica Romana. No ano de 1963, promulgava-se a Sacrosanctum Concilium (Constituio sobre a Sagrada Liturgia) do Conclio Ecumnico Vaticano II (1962-1965) que, sustentada pelo Movimento Litrgico, representava o retorno s fontes bblicas e patrsticas da fase de estruturao da liturgia por volta do sculo IV. Atualmente, a formao continua sendo um dos maiores desafios consolidao do processo de renovao litrgica desencadeado pela reforma do Vaticano II. A reforma teve implicaes sobre a liturgia e tambm sobre o modelo eclesial a ser assumido pelas novas geraes. Quanto ao uso do mtodo mistaggico, dois autores, Mazza (1996) e Buyst (2006), sero largamente focalizados devido especificidade de sua aproximao ao objeto de estudo. O primeiro expe a sistemtica catequtico-mistaggica dos sculos IV e V; e a segunda aplica o mtodo mistaggico ao estudo da msica ritual com escopo formativo mais evidenciado. O propsito da pesquisa foi sendo consolidado a partir da leitura, traduo e interpretao de variados autores para se avanar de rudimentos conceituais apropriao terica e metodolgica do termo e prtica da mistagogia. Deste modo, o percurso assumido procurou evidenciar o deslocamento do discurso normativo e prescritivo, prprio dos documentos eclesiais, ao discurso reflexivo e propositivo sobre o processo de renovao da msica ritual no Brasil a partir de produes litrgico-musicais ps-conciliares. Esta pesquisa, ao propor o mtodo mistaggico no estudo da msica ritual como estratgia que articula diferentes reas do conhecimento, procura identificar como a formao foi sendo teorizada e implementada ao longo do processo de renovao litrgica e que redundaram na elaborao e adaptao do mtodo.

Palavras-chave: Igreja Catlica, formao litrgica, msica ritual, mistagogia, mtodo mistaggico.

rea do Conhecimento: 80303005 Msica

Abstract

The purpose of this study is describe methodologically the mystagogic practice of 4th and 5th centuries, and discuss new approaches and application on mystagogic method related to liturgical musical formation of the ministries of Roman Catholic Church. In 1963 was promulgated the Constitution on the Sacred Liturgy (Sacrosanctum Concilium) of Second Vatican Council (1962-1965) that held on Liturgical Movement represented the return to biblical and patristic sources of the 4th century. Nowadays, formation continues being one of the main challenges to consolidation of the liturgical renewal process started at Second Vatican reformation. This reformation had effect on the liturgy and ecclesial model. Two authors Mazza (1996) and Buyst (2006) were focused on due to particular approach to mystagogic method. The first demonstrates the catechetical and mystagogic systematic from 4th and 5th; the second applies mystagogic method to the study of ritual music with a clearly formative scope. The purpose of this research was developed through reading, translation and interpretation of various authors to reach the concept and to get a theoretical and methodological understanding of terminology and practice of mystagogy. Therefore, the way assumed had revealed a changing from normative and prescriptive enunciation to a reflexive and rational enunciation related to renewal process of ritual music in Brazil and post-Second Vatican Council liturgical musical productions. This research proposes mystagogic method in the study of ritual music as a strategy that conjugates different areas of knowledge. Finally, also identify how the formation was theorized and performed in the liturgical renewal process to reach the method.

Keywords: Catholic Church, liturgical formation, ritual music, mystagogy and mystagogic method.

Sumrio

Introduo ............................................................................................................................. 9 1 Formao litrgica: significado e abrangncia ............................................................... 22 1.1 Formao litrgico-musical: proposta e resgate ............................................................... 29 1.1.1 Formao litrgico-musical ps conciliar no Brasil ...................................................... 30 2 A mistagogia na prxis litrgica crist da igreja primitiva ........................................... 36 2.1 Antecedentes ..................................................................................................................... 36 2.2 A mistagogia dos sculos IV e V: conceito e terminologia .............................................. 40 2.3 O mtodo mistaggico: do contexto especfico generalizao ...................................... 47 3 Mistagogia da msica ritual ............................................................................................. 53 3.1 Antecedentes ..................................................................................................................... 53 3.2 Uma mistagogia da msica na formao litrgico-musical ............................................. 56 3.2.1 Primeira etapa: Descrio e anlise da ao ritual ........................................................ 54 3.2.1.1 Sinal sensvel TEXTO ................................................................................................ 58 3.2.1.2 Sinal sensvel MSICA ............................................................................................. 61 3.2.1.3 Sinal sensvel CONTEXTO LITRGICO ................................................................. 64 3.2.2 Segunda etapa: Aprofundao do evento salvfico celebrado na ao ritual, e sua raiz bblica ............................................................................................................ 66 3.2.3 Terceira etapa: Experincia da salvao acontecendo hoje, na e a partir da ao ritual ............................................................................................. 67 4. Aplicao do mtodo mistaggico na formao litrgico-musical ............................... 68 4.1 Exemplo 1 O Senhor ressurgiu ..................................................................................... 69 4.1.1 Descrio e anlise da ao ritual: desvelando os sinais sensveis ................................ 71 4.1.1.1 Texto ........................................................................................................................... 71 4.1.1.2 Msica ........................................................................................................................ 74 4.1.1.3 Contexto ..................................................................................................................... 75 4.1.2 O sentido teolgico e a raiz bblica do acontecimento de salvao ............................... 75

4.1.3 O canto como fato de experincia ................................................................................. 77 4.2 Exemplo 2 Eis que de longe vem o Senhor .................................................................... 78 4.2.1 Descrio e anlise da ao ritual: desvelando os sinais sensveis ................................ 80 4.2.1.1 Texto ........................................................................................................................... 80 4.2.1.2 Msica ........................................................................................................................ 84 4.2.1.3 Contexto ..................................................................................................................... 85 4.2.2 O sentido teolgico e a raiz bblica do acontecimento de salvao ............................... 86 4.2.3 O canto como fato de experincia ................................................................................. 87 Consideraes finais ............................................................................................................. 89 Referncias bibliogrficas .................................................................................................... 96 Bibliografia .......................................................................................................................... 103

Introduo

O presente estudo contou com vrios pontos de partida situados em diferentes contextos histricos e eclesiais. Pelo menos um ponto de chegada dirigiu a sua ateno sem, entretanto, desprezar o caminho percorrido dentro do seu espectro temtico que englobou a discusso sobre a mentalidade formada a partir do Conclio Vaticano II e o consequente modelo de igreja assumido neste perodo; a reorganizao do rito a partir dessa nova mentalidade e a reviso dos vrios rituais da igreja, principalmente do ponto de vista bblico-teolgico; os avanos e retrocessos da msica sacra litrgica e suas implicaes para o pensar/fazer musical atual. No percurso da pesquisa, empenhou-se em ressaltar o aspecto propositivo em detrimento de outras verses que expunham um teor demasiado prescritivo. A principal razo dessa insistente prescritibilidade deveu-se a um olhar que ansiava a cientificidade nas reflexes, mas que ainda se encontrava mergulhado nos limites e possibilidades de seu objeto de estudo, sem o distanciamento prprio de um pesquisador. Neste sentido, fizeram-se perceber as vantagens e desvantagens de se estudar um dado fenmeno a partir de dentro, ou seja, o objeto de estudo era tambm o prprio objeto profissional. Este suposto ensimesmamento repetidas vezes havia caracterizado a pesquisa como endgena. primeira vista, tal afirmao causou assombro por assentir que o distanciamento do objeto, a msica ritual catlica, parecia favorvel ao seu estudo. Todavia, sob o peso da experincia prtico-vivencial e sem o filtro crtico necessrio, correu-se o risco de forjar os rumos da pesquisa. Graas a um processo franco e maduro de orientao, essa dificuldade foi sendo gradativamente canalizada e tornou possvel chegar ao trao de maturidade que ora se exprime ainda que com certo temor. O percurso referido provocou, tambm, um anseio de descatolicizar o olhar sobre um objeto catlico por natureza e ao mesmo tempo universal por natureza, a msica ritual1. No obstante o precoce estado de conscincia sobre essa necessidade, no foi empresa fcil, pois a literatura que servira de base pesquisa continuamente insistia na sua tendncia mais limitante: o carter prescritivo, ou seja, segundo Houaiss (2001), apresentar determinada

Entende-se por ritual ou litrgica a msica que acompanha ou constitui os vrios ritos de celebraes religiosas comunitrias. Neste caso, faz-se referncia msica crist catlica.

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10 forma como a nica aceitvel. Sobre descatolicizar o olhar, uma leitura global da pesquisa fez constatar a inexequibilidade de tal empenho, motivado por fatores ontolgicos. Sobre o embate propositivo versus prescritivo, percebeu-se que, na prtica pastoral litrgico-musical, a articulao de ambos os modos operacionais pode agregar proveito formativo e enriquec-la sobremaneira. Entretanto, o valor cientfico do prescritivo revelou-se qualitativa e quantitativamente nulo, uma vez que no se podem medir os efeitos da msica ritual sobre a assembleia durante um evento ritual, pois constitui uma totalidade em que as partes no esto destacadas do todo, ainda que em situao formativa seja possvel isolar elementos do rito para estud-los. Durante as aes celebrativas o que aparenta diversidade musical, para quem est alheio natureza da liturgia, tem representado um sem-nmero de limitaes iniciao ou mesmo continuidade da formao litrgico-musical. Nessas aes so exemplificados vrios aspectos de interesse no mbito da msica litrgica. Entre eles, percebem-se estilos musicais de diferentes contextos e tradies eclesiais, o retorno a formas tradicionais da liturgia romana como, por exemplo, o canto polifnico e o gregoriano, as formaes instrumentais em constante e insistente tutti, alm de experimentaes sem fundamento, seja musical, seja litrgico explcito. Toda essa variedade, legitimada pela prtica, tem coexistido com a msica ritual pensada e proposta segundo as orientaes do Conclio Vaticano II (1962-1965). Aquele modo de fazer msica durante a prtica ministerial, no obstante o talento associado, no tem convencido os fiis e ministros que constituem a assembleia litrgica e que participam ativa, plena, conscientemente das aes rituais. primeira vista, os ministros, sob o pretexto de transformar a liturgia numa ao emocional por excelncia, denotam um comportamento que refora uma vivncia religiosa apoiada no subjetivismo e no intimismo que per se reduz o mistrio celebrado aos limites circunstanciais do indivduo. As prprias escolhas musicais, neste sentido, partem de gostos e preferncias frequentemente distanciados dos critrios objetivos na escolha e criao de repertrio ritual. comum notar um ascenso do devocional e um descenso do simblico; destaques doutrinais em detrimento do rito que comunica o mistrio; uma prtica musical que tem eliminado o silncio das celebraes. Esses ministros e as pessoas que quase ingenuamente aderem ao modo personalista de cantar/tocar a liturgia desconhecem que seu fazer ministerial na ao celebrativa traduz uma vivncia comunitria da f. Sem menosprezar a f que professam, questionam-se os dados objetivos da f que parecem difusos tanto nos catlicos ditos praticantes, em termos quantitativos e no necessariamente qualitativos, quanto

11 em no-praticantes. Deste modo, frente passividade no celebrar e falta de compromisso eclesial de um catolicismo cuja histria revela a nfase no binmio clero-povo (leigos), geraes de fiis e ministros, inclusive da msica, foram privados de uma maior conscincia sobre quem celebra; o que, onde e como se celebra. A msica que se executa nas celebraes tende a atrair no necessariamente pelo seu contedo simblico, mas por atender a interesses e preferncias. Quem adentra o espao da celebrao litrgica tende a pressupor que questes relacionadas formao musical dos ministros e ao contedo bblico, teolgico e litrgico das composies estejam consolidadas. No bem assim. Basta um deslocamento entre comunidades crists catlicas para se defrontar no somente com uma variedade de estilos musicais e modos de execuo, mas tambm com a problemtica acerca do repertrio de msicas ditas rituais que parecem no alcanarem o propsito das aes rituais que constituem e integram. Crticas severas so dirigidas s orientaes da Santa S e da Conferncia episcopal do Brasil sobre uma suposta e improvvel uniformidade da igreja romana; outra recai sobre o repertrio sugerido pelos volumes do Hinrio Litrgico. As crticas, em geral, tendem parcialidade e no partem de estudos aprofundados sobre os documentos oficiais e sobre as produes litrgico-musicais. Por conseguinte, persiste a atitude partidria na escolha de repertrios inadvertidamente propostos por lderes eclesiais que se tm utilizado da eficincia dos meios de comunicao de massa para propagar novos traos de uniformidade. Obviamente, trata-se de outra uniformidade nesta crtica da crtica. Entretanto, como um fortuito contra-senso, aquilo que se rotula como uniformidade, parece ter origem em um tempo da igreja que pertence a um passado no plenamente superado e que alguns movimentos eclesiais tm assumido sob suspeita tendncia nostlgica, sem propsito para a eclesialidade contempornea. Essa nova interpretao tem inmeros reflexos sobre a msica ritual. real que o repertrio sugerido pela igreja no Brasil ou pela Comisso de Liturgia da CNBB tende a reforar a uniformidade? No estariam esses segmentos pondo em evidncia o carter unitrio da igreja presente nos textos e relatos do cristianismo primitivo, como o caso do smbolo niceno-constantinopolitano oriundo do sculo IV (creio na igreja uma, santa, catlica e apostlica)? Ou, por outro lado, revelando a densidade pastoral da igreja do Vaticano II, povo ministerial, a partir da constituio Lumen Gentium sobre a Igreja? Se a constituio Sacrosanctum Concilium (SC) sobre a liturgia fosse, de fato, to eivada de falhas notveis, bem provvel que no teria alcanado a

12 aprovao unnime dos bispos conciliares, a saber, mais de dois mil votos a favor e somente quatro votos contra. Terminado o Conclio, restava detalhar a execuo de cada um dos captulos da SC. Foi a instruo Musicam Sacram (MS) que tratou da execuo do captulo sexto sobre a msica. Testemunhas deste processo relatam o penoso caminho para se chegar ao texto final da instruo, pois havia, entre os peritos, diferentes concepes e prticas de msica sacra que dificilmente iriam constituir-se numa sntese para a continuidade. Por esta razo, uma leitura aprofundada dos documentos oficiais sobre a msica litrgica de antes e depois do Conclio, permite identificar um constante embate entre os esteticistas e os pastoralistas. s margens desse embate estavam aqueles que no punham em confronto os valores de ambas as tendncias, por considerarem-nos importantes para a permanncia da msica ritual no como um bem suportvel, mas como uma ao com significado para a expresso do mistrio. A maioria dos espaos celebrativos dispe de grupos musicais, aparato tcnico, diviso de funes. Naturalmente, as funes musicais, como regra, so ocupadas por pessoas de diferentes reas de atuao e o seu exerccio musical tem uma dimenso transcendente. As lideranas formadas somente em msica deparam-se, em geral, com dificuldades no exerccio imanente de sua funo transcendente, entretanto, o desconhecimento litrgico faz com que os atritos sejam paulatinamente atenuados para o bem da msica. Lideranas formadas em msica e em liturgia tm encontrado dificuldades em orientar os membros de equipes de msica no que se refere a ultrapassar, na prtica, a dimenso puramente esttica da msica ritual. Em geral, h uma preocupao concentrada na execuo final da pea musical no rito, sem uma percepo clara do percurso terico e metodolgico para alcanar esse fim. Via de regra, a preparao prvia existe. No entanto, pelo modo como executada a msica durante o rito, denota-se um processo fragmentado de conhecimentos e prticas. Neste sentido, podem-se supor trs momentos formativos: antes, durante, depois e um continuum formativo de durao indeterminada. O exerccio ministerial no somente uma apresentao artstica com foco dirigido ao fazer musical destacado do todo ritual; por ser rito repetio, mas no pura iterao, pois, ano aps ano, traz um significado novo, histrico, humano, na sucesso de solenidades, festas ou no comum das celebraes. Cantar e tocar bem so requisitos indispensveis. O conhecimento de causa d maior fluidez e preciso ao rito seja pelo encadeamento sistemtico de suas partes ou pelo adensamento de um projeto de igreja que responda s reais e vitais necessidades do mundo. A competncia para a msica ritual, em geral, no fecha perspectivas

13 para o dilogo ecumnico, pois se ocupa com a objetividade da ao ritual, com o louvor da criao e com a vivncia do sacerdcio batismal dos cristos. Por essa razo, as escolhas musicais no so aleatrias nem tampouco manipulatrias como se tem percebido com frequncia no interior de movimentos eclesiais ditos de vanguarda, que se utilizam da msica de culto como chamariz ou passagem transitiva para sequazes. Alguns discursos bem dirigidos tm sugerido e at orientado que as escolhas musicais se rendam ao rito. Em geral, estas afirmaes denotam um laicismo desmedido, pois insistem em pensar a msica de modo restritivo e limitado, uma vez que sob tal concepo a msica ritual parece assemelhar-se a um enxerto conveniente no interior do rito ao qual serve. Este modo de encarar a funo ministerial da msica tem implicaes sobre o exerccio ministerial de cantores e instrumentistas. Rito pelo rito, a msica fica reduzida quase que somente execuo oportuna e de certo modo estril em relao ao mistrio celebrado. fato que o rito ou a ao ritual determinante na escolha do repertrio de uma celebrao litrgica. Entretanto, pensar a msica ritual que se integra ao rito um constante exerccio de criar pontes para o mistrio celebrado. Essas pontes requerem uma arquitetura musical que contemple diferentes matizes meldico-harmnicos, diferentes dinmicas, andamentos, ritmos e formas entoativas e instrumentais. Requerem, igualmente, um domnio terico-prtico que se afine com o conhecimento litrgico. No necessariamente pela obra musical em si demasiado simplista mas pela traduo de valores e atitudes que exprimem um contexto sem necessariamente refor-lo ou imp-lo. De tudo isso, decorre a importncia de se conhecer a msica ritual que se formou no interior da histria da msica, da histria da igreja. O Vaticano II, na ponta desse processo, tem incitado as novas geraes de lderes eclesiais e todos os povos a reassumirem uma nova mentalidade, um novo projeto de igreja. A liturgia (fazer) que se celebra expresso sensvel de um modelo de igreja que pode ser inclusivo ou excludente, impressionvel ou indiferente, performativo e/ou integral, divino e/ou humano, clerical ou ministerial. Com o Conclio ressurge uma igreja ministerial na qual h espao e dignidade para todos. Apesar de mal-entendidos notveis, a msica, tesouro de inestimvel valor (SC n. 112), abriu possibilidades nunca vislumbradas em sua histria. No se tratava de romper com o passado musical da igreja, mas de integrar as novas formas e conceitos trazidos, principalmente, pelo canto em vernculo e pela variedade cultural. Antes do Conclio, o conceito de msica sacra era bastante unvoco em termos formais. No entanto, o conceito tornou-se difuso com o aparecimento de outros termos que

14 designavam, com pequenas variaes, a mesma coisa: msica de igreja, msica pastoral, msica litrgica, msica ritual, msica religiosa. Parece ter sido essa variabilidade que provocou grandes oscilaes na concepo e prtica musical. O termo msica sacra2, como sinnimo de msica ritual ou msica litrgica, caiu em desuso. Atualmente, um consenso entre organismos eclesiais que tratam desse assunto, prefere os termos msica litrgica ou msica ritual. Este em menor ocorrncia que aquele. Esta pesquisa tambm apresentou um foco na formao dos ministrios litrgicomusicais. Essa atividade abrange um suposto contingente de pessoas que se ocupam da msica ritual nas comunidades catlicas espalhadas pelo Brasil que desempenham amadoristicamente seu ministrio. Este amadorismo sugerido pela falta de conhecimento musical elementar e, especialmente, de conhecimento litrgico. Pde-se relacionar tal constatao tanto falta de investimento dos pastores eclesiais locais na formao de seus agentes de pastoral como tambm falta de condies de oferta e de interesse desses agentes em buscarem e/ou promoverem instncias formativas. H, neste contexto, dois pontos basilares que ajudaram a pensar a questo. O primeiro referiu-se reforma litrgica ps-conciliar no Brasil cujas exigncias relativas formao parecem no ter alcanado o grau desejado de implementao nos vrios nveis eclesiais, muito embora tenha havido esforo considervel nesta direo. A quantidade de desafios a serem respondidos neste contexto, de alguma forma, atuaram como impulso e freio do processo. O segundo ponto, concomitante ao primeiro e conjunturalmente mais genrico, referiu-se formao musical especfica que, a partir da dcada de 1960, no Brasil, veio sendo gradativamente reduzida. A igreja, centro de difuso da cultura musical do passado, no mais dispunha de recursos humanos e at materiais para compensar essa defasagem. Uma pr-anlise do ensino musical passvel de ser testada em segmentos eclesiais do protestantismo histrico pode sugerir que nesses meios ainda persiste uma tradio musical que contempla o futuro do servio musical de culto. Muito embora uma anlise de contexto possa evidenciar mudanas internas e externas igreja. No caso da Igreja Catlica no Brasil, sem demrito ao caminho trilhado, arriscou-se a afirmar que a precariedade de esforos sistemticos no incremento formao tem, de certo modo, estancado a renovao litrgica em geral, e musical, em particular.

O captulo sexto da Sacrosanctum Concilium (n. 112-121) e os documentos oficiais que o precedem ainda se utilizam da denominao msica sacra quando se referem msica litrgica.

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15 Durante a elaborao deste estudo, questionou-se largamente sobre a motriz das afirmaes e anseios que tendiam a considerar sua relevncia. O recurso literatura especializada quase sempre reforava o carter prescritivo, altamente rebatido; o recurso prtica pastoral era demasiado limitante e tendencioso; um estudo de campo atentava contra o aspecto temporal da pesquisa. A sugesto sobre um estudo de caso parecia ser a mais indicada, entretanto, havia a dificuldade operacional na escolha de casos representativos e na elaborao de recursos analticos sem um estudo terico e metodolgico prvio. Um dos nicos materiais de que se dispunha referia-se a um encontro de formao sobre A msica na liturgia, realizado em 2004 com agentes de pastoral de diferentes setores da Regio Episcopal Lapa, zona oeste da capital paulista, que teve como objetivo despertar o questionamento necessrio sobre a prtica pastoral e o consequente interesse pela formao continuada, alm de lanar possibilidades concretas de trocas de experincias significativas. Por meio de um formulrio diagnstico, os participantes relataram uma srie de defasagens relacionadas ao tema proposto. Para compor o relatrio que a Equipe Regional de Liturgia, posteriormente, apresentou ao bispo regional, as defasagens foram distribudas, de modo abrangente, nos diferentes ministrios litrgicos e/ou musicais. Em sntese, considerou-se a presidncia da celebrao, a assembleia, os compositores/letristas, cantores e animadores do canto, salmistas, corais e instrumentistas. Para todos os casos, por unanimidade, relatou-se a precariedade na formao litrgica dos ministrios que tem redundado em outras questes igualmente referidas: falta de investimento sistemtico em formao litrgico-musical e de recursos humanos para a pastoral; tendncia de movimentos eclesiais ao intimismo e subjetivismo no fazer litrgico; mau uso dos recursos tecnolgicos disponveis para os espaos celebrativos;

desconhecimentos dos subsdios dirigidos formao e prtica litrgico-musical; apatia e passividade da assembleia durante as aes rituais; rivalidade discursiva, tcnica e prtica entre equipes de celebrao, grupos musicais, lideranas eclesiais; entre outros. Na ressonncia dessas constataes repousa o esforo argumentativo desta dissertao. A sua insero no campo da musicologia representa uma deciso audaciosa por parte do pesquisador. Neste aspecto, o trabalho tem sido considerado indito por especialistas que se dedicaram ao estudo da msica litrgica a partir da teologia e que, nestes casos, tiveram que se deparar com lacunas inevitveis. A pesquisa concentrou-se na investigao terica e metodolgica sobre a msica ritual e a mistagogia. No processo de implementao, percebeu-se que o mtodo a que as obras se

16 referiam no havia sido aplicado msica ritual. Havia intuies publicadas em obras de cunho pastoral. Constatadas essas intuies, tratou-se de realizar leituras sistemticas dos processos e contextos em que estavam apoiadas, reportando-se, a autores consolidados que anterior ou contemporaneamente se punham a discutir e aprofundar a questo, a saber, a mistagogia e seu mtodo. Entretanto, que enlevo investigativo se lograria com um estudo terico e metodolgico de tal proporo sem levar em conta sua aplicabilidade operacional ou formativa? Deste modo, o conceito de formao e os exemplos de aplicao foram acrescentados no como um mero detalhe arquitetnico, mas como parte essencial de uma via metodolgica que confronta teoria e prtica, sem supor uma sntese. A proposta desta pesquisa no substitui nem se contrape s iniciativas, presentes e pregressas, empreendidas e cujas projees no foram numericamente detectadas. Pretendeuse discutir que na base e na ressonncia de um processo formativo est a busca de significado quanto aos aspectos terico-prticos da liturgia e da msica. Alm disso, apontouse a necessidade de maior clareza sobre a interseo desses fenmenos nas celebraes litrgicas. Alm de conhecer, identificar e expressar conscientemente as orientaes normativas dos documentos eclesiais acerca da msica faz-se necessria uma leitura de tais orientaes luz da histria, da teologia litrgica, da cultura local, da simbologia contida nas aes rituais, entre outros aspectos. neste sentido que a pesquisa dirigiu-se mistagogia3 dos sculos IV e V da Era Crist, mais especificamente, sobre o mtodo por meio do qual este conceito se exprimira, o mtodo mistaggico. Um desafio considervel foi justificar o contexto em que estava apoiada a pesquisa e, entre outras questes, tentar responder como uma modalidade de formao litrgica e catequtica num espao e tempo remotos poderia assegurar seu uso atual voltado para a formao dos ministrios litrgico-musicais. Por esta razo, vrias questes respondidas e a responder ocupam as pginas que seguem. No entanto, no houve a inteno de aprofundar a vida e obra dos Padres da Igreja que, em suma, compe o objeto de estudo da patrologia; muito menos, discorrer sobre os fundamentos patrsticos da concepo de liturgia e catequese. O texto limitou-se a citar concluses de estudiosos da mistagogia que, com base em autores da patrstica, detalharam o mtodo utilizado naquele contexto. O uso de um mtodo com larga distncia temporal tambm permitiu justificar como, ao longo do sculo XX, o Conclio Vaticano II foi sendo formulado. O retorno s fontes bblicas

O termo mistagogia que ser amplamente citado e discutido neste trabalho, refere-se, grosso modo a conduzir ao mistrio.

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17 e patrsticas tornou-se perceptvel e desejado. Os estudiosos do movimento litrgico promoveram pesquisas e discusses a respeito da histria da liturgia. Vrios manuscritos foram decifrados e novas descobertas foram empreendidas, inclusive, para a soluo de muitos mal-entendidos. Para desenvolver o projeto de igreja desejado pelo Conclio, seria necessrio conhecer e superar o grande desconhecimento histrico sobre as modificaes conceituais e prticas s quais a liturgia havia sido submetida. Sabe-se que, no obstante os retrocessos percebidos na contemporaneidade, seja por ingenuidade histrica ou por adeso partidria a este ou aquele modelo de igreja, ainda possvel perceber avanos e descompassos no caminho trilhado. A consulta s fontes patrsticas sobre a liturgia praticada nos primeiros sculos do cristianismo revelou uma liturgia que deixava transparecer a relao entre ministrios e comunidade. Durante a Idade Mdia, a liturgia foi alvo de deturpaes reformistas que nem mesmo o Conclio de Trento (1545-1563) conseguiu corrigir e/ou compensar seja por fora dos acontecimentos eclesiais do perodo ou devido falta de conhecimento das fontes. Para a mentalidade da poca, segundo historiadores da liturgia, pensava-se que as fontes seriam as mesmas que deram base s reformas de Gregrio VII (1073-1085) e Inocncio III (11981216) e, desta forma, manteve-se a estrutura romano-franco-germnica da liturgia idntica medieval e dava-se mais poder para o clero em detrimento da participao da assembleia na ao litrgica. Todo esse mapeamento das fontes patrsticas feito na vigncia do Movimento Litrgico formou uma gerao de pensadores e influenciou a sucesso de pontfices durante o sculo XX. Assim, no final da dcada de 1950, todo o mundo e, em particular, a Igreja Catlica, iria surpreender-se com a convocao do Conclio Vaticano II pelo papa Joo XVIII. Este acontecimento surtiu diferentes efeitos. O segmento mais conservador da igreja, partidrio da concentrao do poder nas mos do clero, no pde disfarar sua perplexidade. No iderio desse segmento, Joo XXIII, um papa de idade avanada e sade abalada, ocuparia o pontificado por um perodo suficiente para a preparao de seu sucessor e pouco haveria de ser feito em relao s mudanas que vinham sendo propostas nas entrelinhas pelos antecessores. Tudo parecia ter mudado. O segmento que ansiava por mudanas profundas dentro e fora da igreja no s acolheu o Conclio como ajudou a prepar-lo nos seus detalhes. Um desafio sem propores, uma vez que a contra-reforma do Conclio de Trento havia marcado toda a trajetria de quatrocentos anos que, de certo modo, assinalava a continuidade do modelo de igreja inserido no mundo

18 medieval. Fruto deste empenho, o primeiro documento conciliar, aprovado em 3 de dezembro de 1963, foi justamente o que tratava sobre a liturgia da igreja. Aprovou-se uma constituio de teor pastoral sobre a Sagrada Liturgia, que tinha, como pano de fundo, meio sculo de pesquisas consistentes acerca da liturgia dos sculos VI ao VIII, perodo designado, segundo Silva (2003) e Chupungco (2004), como a fase de estruturao plena da liturgia. Portanto, na atualidade, o discurso mistaggico dentro do processo de renovao litrgica ps-conciliar pode ser interpretado como um desvelamento progressivo das entrelinhas dos princpios da Sacrosanctum Concilium (SC) e seu anseio de retorno s fontes. Os estudos sobre a mistagogia do passado foram determinantes para a compreenso do esforo metodolgico de autores que recentemente pensaram o mtodo para o estudo e prtica da liturgia e da msica ritual. Sem o conhecimento de detalhes terminolgicos e dos relatos dos vrios autores no teria sido possvel pensar nem mesmo sugerir essa possibilidade formativa. Por outro lado, a descrio do mtodo e sua recente adaptao requereram uma ampla compreenso do que a msica representa para a liturgia que se celebra na Igreja Catlica. E no somente isso. Uma leitura atenta da produo documental permitiu detectar os limites que a prpria histria da renovao litrgico-musical evidencia e olhar criticamente as possibilidades mais de acordo com o ser desta pesquisa. O Brasil deu passos considerveis. Muito se produziu, em teoria, a partir do Conclio e muito se fez em termos prticos. Tal fato pode estar relacionado vivacidade do movimento litrgico que, a partir da dcada de 1930, promoveu discusses inovadoras sobre a teologia litrgica e a ainda recente cincia litrgica. O movimento litrgico brasileiro encontrou vrias resistncias no seu desenrolar antes e depois do Conclio. As resistncias podem ser atribudas a fatores de ordem hierrquica, originados a partir do modelo de colonizao e de consolidao do catolicismo no Brasil que, de certo modo, ajudaram a fortalecer os argumentos em favor da renovao litrgica, mas que, por outro lado, geraram oscilaes significativas na formao ministerial percebidas em nossos dias. Os documentos sobre a msica no culto cristo catlico, tradicionalmente, enfatizam a primazia do texto sobre a msica. Esta caracterstica tem questionado continuamente a insero do objeto e do objetivo desta pesquisa dentro de um programa de ps-graduao em msica. Todavia, a fim de formar um contra-argumento, recorreu-se a algumas constataes que, a despeito de no poderem ser generalizadas, referiram-se ao processo de renovao litrgico-musical da Igreja Catlica no Brasil iniciado no perodo imediatamente posterior ao Conclio.

19 Um olhar retrospectivo mostrou que, no obstante, o peso da tradio judaico-crist, o Magistrio da Igreja4 e os resultados de estudos da teologia e da cincia litrgica, uma parte significativa das composies no ps-conclio tem apresentado limitaes no contedo bblico, teolgico, litrgico e literrio (potico). Tais composies tm se esquivado da normatividade sem propor alternativas coerentes com a prtica celebrativa. Alguns autores sugerem que isso se deve a um desconhecimento da estrutura mnima do rito ao qual se vai propor um texto a ser musicado. Por outro lado, o apelo miditico e o fortalecimento da indstria cultural de massa dentro e fora da igreja, pareceram aliar-se caracterstica referida e desviar a ateno do essencial na ao litrgica: o mistrio celebrado. Um antigo adgio latino lex orandi, lex credendi (a norma da orao a norma da f e vice-versa) formula uma das premissas da prtica litrgico-musical. Os textos da msica ritual que, no ps-conclio, passaram para o vernculo, carregam elementos objetivos que expressam o rito e permitem a compreensibilidade do mistrio celebrado e, por conseguinte, promovem a participao ativa, consciente e plena de toda a assembleia litrgica. Antes da reforma litrgica, os cantos quando em vernculo, na maioria, eram no litrgicos e traduziam uma viso de aspectos teolgico-litrgicos e de conceitos prprios do segundo milnio5 da era crist (por exemplo, o devocionalismo e o clericalismo). A posio privilegiada do texto sobre a msica pode, tambm, ter tido efeito sobre a oferta e a procura de formao musical especfica para o exerccio do ministrio. Aps o Conclio e seus desdobramentos em direo reforma litrgica, ficou evidenciada uma sucesso de mal-entendidos do ponto de vista litrgico-musical. Suspeita-se que a definio de msica como a humilde serva6 da liturgia ou, diversamente, como a nobilssima serva7, ou ainda, o discurso sobre o carter funcional da msica trazido pela SC represente a raiz do quadro atual no qual se evidenciam variantes conceituais importantes. Ora, se o texto tem a primazia, qualquer msica que se faa para revesti-la assume um carter secundrio, uma vez que a exequibilidade desta visa a garantir a comunicabilidade daquela. Sob o peso deste fazer musical, amargou-se uma execuo vocal e instrumental baseada em no conhecimento prtico-musical assistemtico e desarticulado. As novas geraes de msicos que exercem funes litrgicas no tm procurado se apropriar dos fundamentos bblicos,Documentos produzidos pelos organismos centrais da Igreja Catlica com autoridade doutrinal, moral e intelectual. 5 SILVA (2003; 2005; 2008) divide a histria da liturgia crist catlica em trs momentos: O primeiro que vai do sculo I ao VIII; o segundo, do IX ao XX (pr-conclio); e o terceiro, no ps-conclio (1962-1965). 6 Expresso extrada do motu proprio Tra le sollecitudini do papa Pio XI, escrito em 1903. 7 Expresso extrada da encclica Musicae Sacrae disciplina do papa Pio XII, escrita em 1958.4

20 litrgicos e teolgicos do ministrio e seu exerccio; aparentemente, a preocupao tem se orientado para uma execuo estereotipada de formas musicais quase sempre muito semelhantes em termos meldico-harmnicos, com um relativo disfarce tcnico-operacional dado pela tecnologia de som; outrossim, os textos, alm de apresentarem uma superficialidade esttica, desviam a ateno sobre o essencial indo de uma erudio desmedida ao vazio de sentido. Um dos limites deste trabalho est no fato de que nossas referncias no partiram de um estudo aprofundado do estado da arte do servio ministerial neste campo. No entanto, partiuse do resultado da anlise dos dados de um questionrio aplicado pela Comisso Episcopal Pastoral para a Liturgia da Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), s dioceses brasileiras, durante a dcada de 1990. Os resultados foram analisados por um grupo de especialistas e publicados na srie Estudos da CNBB, n. 79, sob o ttulo A msica litrgica no Brasil (CNBB, 1998). O estudo apontou os principais avanos e lacunas que foram detectados tanto na formao quanto na prtica ministerial. Este estudo pode ser considerado, dentro do que se produziu nesta rea, um trabalho maduro. Sua elaborao leva em conta os vrios textos produzidos sobre a temtica desde a dcada de 1960: as concluses dos Encontros Nacionais de Msica Sacra (1965-1968); o documento da CNBB, n. 7, A pastoral da msica litrgica no Brasil de 1976; o estudo da CNBB, n. 12, Estudos sobre os cantos da missa de 1976; e o documento da CNBB, n. 43, Animao da vida litrgica no Brasil de 1989. Alm destes textos, no se pode deixar de fazer referncia SC e Instruo Musicam Sacram (MS) de 1967; e por ltimo, Instruo Geral sobre o Missal Romano8 (IGMR). Estruturada em quatro captulos, nesta pesquisa teve-se a inteno de explicitar a mistagogia como o nexo visvel e invisvel das discusses em torno da formao litrgicomusical. No primeiro captulo optou-se por delinear algumas implicaes conceituais para a compreenso do que trata a formao litrgica, a formao litrgico-musical e, no interior de ambas, a formao mistaggica. Foram tambm identificadas algumas iniciativas psconciliares em prol da formao litrgico-musical no Brasil, contudo, deteve-se em relacionlas, pois, para aprofundar de cada uma delas seria necessrio um estudo sistemtico de maiores propores. No captulo segundo descreveu-se o processo de expanso e consolidao do cristianismo at atingir os sculos IV e V, perodo em que a prxis mistaggica alcanou sua maior expresso dentro da histria da liturgia. Alm dos aspectos terminolgicos, discutiu-se8

A IGMR teve sua primeira edio em 1970; a segunda, em 1975; e a terceira, em 2000.

21 o mtodo utilizado pelos Pais da Igreja para a difuso e adaptao do cristianismo ao mundo greco-romano, e os recentes estudos sobre o emprego sistemtico do mtodo no contexto eclesial contemporneo. No terceiro captulo, em continuidade, aprofundou-se a recente adaptao do mtodo mistaggico ao estudo da msica ritual apoiado na compreenso da msica como parte integrante da ao ritual. Alm desse carter, props-se a necessidade de conhecer as razes bblicas que esto na base dessa ao simblica e adentrar no sentido teolgico que faz com que ela seja capaz de comunicar o mistrio. Deste modo, a prtica ministerial ressoar com maior fluidez a experincia de salvao que a liturgia celebra e atualiza mediante a assembleia reunida. No quarto captulo ilustrou-se, por meio de dois exemplos, a aplicao do mtodo mistaggico para o estudo da msica ritual conforme as indicaes do captulo terceiro e outras que surgiram como suporte s necessidades prticas durante as anlises. Estas pretenderam sugerir formas de aplicao do mtodo para amplificar as possibilidades formativas j existentes, bem como, propor indicaes mais pontuais para a ao em diferentes contextos. Em decorrncia do exposto, espera-se que esta pesquisa possa contribuir para a ampliao das possibilidades formativas no campo pastoral e cientfico da liturgia. Mais do que isso, espera-se fomentar a reflexo acadmica e pastoral de modo a garantir um proceder mais crtico perante as orientaes do Magistrio da Igreja sobre a liturgia. Essa criticidade ser determinante na superao de uma normatividade rubricista e de um ritualismo condicionado pelo conhecimento parcial sobre o fazer litrgico-musical nas celebraes da comunidade eclesial. Outrossim, chamar a ateno sobre a necessidade de investimento sistemtico na formao dos agentes de pastoral que se ocupam da msica na liturgia aos quais no pode ser negado um processo de iniciao crist, litrgica e musical.

Captulo I

1 Formao litrgica: significado e abrangncia

Este captulo pretende discutir as bases da formao litrgica que se pretende mistaggica. O percurso do conceito ter em vista elementos de antropologia litrgica e o olhar objetivo da cincia litrgica e da teologia litrgica. Formao, formao litrgica, formao litrgico-musical e formao mistaggica so unidades que compem o discurso da renovao da liturgia. Os esforos empreendidos nessa renovao tm consistido na promoo de frentes formativas consistentes e no pensar o modelo de igreja que melhor represente o retorno s fontes bblicas e patrsticas. Na prtica, a disperso notvel. Comumente, a palavra formao usada tanto para referir-se a uma ao formativa orientada para um determinado objetivo como para referir-se a um estado ou situao de formao alcanada em determinados nveis ou sob determinados aspectos. O termo, em sentido amplo, pode ser entendido como um conjunto de conhecimentos que se adquire mediante um processo de ensino e aprendizagem. Petrazzini1 (2004) considera a formao como uma ao orientada aquisio de capacidades tericas para agir e assumir determinados comportamentos em correspondncia a um projeto unitrio de vida. No caso da formao litrgica, Martn (1997, p. 299-300) considera que, para celebrar efetivamente e exercer um ministrio na liturgia preciso no s conhec-la teoricamente, mas experimentar o que significa a participao no mistrio que nela se celebra e se comunica eficazmente. O conhecimento terico provm do ensino da liturgia com seu arcabouo didtico-metodolgico. No entanto, o ensino da liturgia apenas parte de um processo mais amplo que a formao litrgica. A outra parte refere-se ao aspecto experiencial. A experincia fundamental do celebrar (comunitria, simblica, gestualcorporal) acontece dentro de todo um processo de formao e de aprofundamento do que se celebra. Esse processo denominado iniciao litrgica, isto , mais do que a teoria, a ao litrgica que faz entrar na lgica da celebrao e ajuda a assimilar de modo cada vez mais

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As citaes de Petrazzini foram retiradas do verbete FORMAO LITRGICA do Dicionrio de Liturgia.

23 pessoal e profundo tudo o que foi recebido na catequese litrgica, ou segundo Paludo (2004), ajuda a formar uma personalidade litrgica. Escritos patrsticos dos sculos IV e V da era crist testemunham que o mtodo de formao litrgica era de fato experiencial, global e progressivo. Por esta razo, conforme o Vaticano II, a formao litrgica entendida como uma das condies indispensveis para a renovao e a vivncia profunda da liturgia. Na formao litrgica, alm do conhecimento terico e da vivncia/experincia existencial, leva-se em conta tambm a atuao prtica. Por meio dela possvel mensurar a qualidade da formao ou o nvel de aprofundamento dos aspectos que compem a natureza da liturgia. A liturgia, neste contexto, pode ser definida como vida e ao para, a seguir, segundo Martn (1997, p. 305) configurar-se como cincia, ou seja, anlise e reflexo sobre a natureza e o modo de realizar-se esta vida e esta ao. A garantia de participao plena, consciente e ativa nas aes litrgicas por meio da formao requerque o mistrio de Cristo na sua totalidade e nos seus aspectos particulares no apenas tenha sentido em si, mas que este sentido seja percebido, assimilado e vivido interiormente, como realidade atualizada pela liturgia, como salvao de Deus e de Cristo presente e operante nas pessoas e na vida de cada um dos membros e da comunidade (PETRAZZINI, 2004).

Buyst (2005) acrescenta a necessidade de formao para realizar a passagem de uma liturgia verbalista, cerebral e racionalista para uma liturgia mais afetiva, simblica, inculturada, orante, sem deixar de ser proftica e de ser expresso de uma f engajada na libertao dos oprimidos. Ampliando a compreenso, ressalta-se tambm que a liturgia, fonte e cume de toda a vida e de toda a ao da igreja (Cf. SC n. 10) necessita deslocar-se do nvel terico e abstrato e encarnar-se no tecido concreto da vida dos cristos e da reunio que fazem, todos juntos, aqui e agora, para celebrar o mistrio que se torna atual para eles. Para Petrazzini (2004); Paludo (2004, p. 15), a partir disso, surgir um interesse mais consciente para a liturgia celebrada, uma participao mais personalizada, um desejo de autenticidade e coerncia crist mais sria e operante. A reforma litrgica proposta e desencadeada pelo Conclio Vaticano II procurou fomentar uma ao formativa especfica para renovar concretamente e em profundidade a vida litrgica dos pastores e fiis das comunidades crists. Isto representava uma mudana de mentalidade que exerceria forte influncia sobre o modelo de igreja, uma vez que a necessidade formativa era percebida nos diversos nveis eclesiais. Da aparente incontestvel

24 autoridade litrgica dos presbteros, fruto de um clericalismo histrico ainda renitente, percebeu-se, por meio de anlises das grades curriculares dos cursos de teologia, um embasamento insuficiente nas questes litrgicas. Por esta razo, o Conclio orientou os pastores eclesiais locais, mormente os bispos, a colocarem a formao litrgica como um dos principais objetivos da renovao da liturgia, pois entendida como um pressuposto necessrio participao plena, ativa e consciente dos fiis. Os fiis tm direito participao, no entanto, o modo como ela se d parte de um processo de adeso pessoal, por fora do Batismo, e tambm da colaborao dos pastores locais em promov-la. Martn (1997; 2006) considera a formao litrgica como uma das lacunas mais significativas na aplicao do documento conciliar, apesar de todos os esforos. Mesmo que a sua anlise esteja orientada ao contexto europeu da renovao litrgica, possvel fazer constataes semelhantes numa perspectiva latino-americana, muito embora, principalmente no Brasil, outras anlises possam ser empreendidas. Em mbito geral, Martn vislumbra, dentro da igreja, um retrocesso sintomtico em questes no superadas no campo eclesiolgico e litrgico. Na Amrica Latina, a ousadia das conferncias gerais2 do Conselho Episcopal Latino-Americano e do Caribe (CELAM) em assumir o Conclio e promover uma releitura da liturgia luz da prpria histria, tem sido determinante quanto aos rumos assumidos neste campo teolgico-pastoral. Martin (1997) relata que a formao litrgica compreende aspectos cientficos passveis de assimilao por meio de estudo como qualquer tipo de conhecimento. o caso de pastores e responsveis pela vida litrgica que buscam um conhecimento mais sistemtico acerca da liturgia. Mas h outro elemento importante fora desta possibilidade: a formao litrgica no privilgio de alguns. Todos os fiis, a qualquer tempo podem e devem ter acesso a ela, e o modo de adquiri-la pertence simultaneamente ordem do conhecimento e da iniciao. Vale ressaltar, alm disso, que a formao litrgica no uma concesso dada atual configurao sociocultural do mundo moderno, mas constitui um verdadeiro direito que tm todos os membros do Povo de Deus em razo de seu batismo (MARTN, 1997, p. 306). Em adio, Abreu; Buyst (2005, p. 9) definem a formao litrgica como um processo pedaggico cujo objetivo final a participao ativa, exterior e interior, consciente, plena e frutuosa nas celebraes litrgicas, ou seja, a vivncia do mistrio de Cristo atravs da participao na ao ritual. Neste sentido, a formao deixa de ser entendida unicamente no plano intelectual

Conferncias Gerais do Episcopado Latino-Americano e do Caribe: Medelln (Colmbia, 1968); Puebla (Mxico, 1979); Santo Domingo (Porto Rico, 1992) e Aparecida (Brasil, 2007).

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25 ou transmisso de contedos, mas como algo capaz de atingir a pessoa como um todo, na dimenso corporal, relacional, intelectual, afetiva, volitiva, intuitiva, imaginria, simblica, experiencial. Este processo tem como pressuposto um projeto educativo com uma opo metodolgica especfica com vistas sua eficcia. O retorno s fontes proposto pelo Vaticano II, por si s, provocou a necessidade de formao. Era preciso adequar-se a um modo de celebrar e de ser igreja que, remota e progressivamente, havia passado por modificaes e desvios significativos. Coube ao movimento litrgico retomar o elo com as fontes bblicas e patrsticas para dar um significado original liturgia da igreja. Esse salto qualitativo do Conclio, segundo Martn (1997, p. 305), representou a passagem de uma situao de assistncia passiva dos fiis e de uma atuao estereotipada dos ministros para uma situao de participao ativa, sincronizada e altamente expressiva atravs da linguagem e do simbolismo. Levando-se em conta o processo de ensino e aprendizagem prprio da formao litrgica, Martn descreve duas tarefas especficas da formao vida crist que tm lugar na liturgia e que constituem o ncleo da formao litrgica. A primeira tarefa a de iniciao no mistrio da salvao ou mistagogia3 que parte das experincias concretas da iniciao crist na vida e/ou na realidade vivida e celebrada, mais do que, propriamente, de uma experincia antropolgica ou transmisso de noes. Por outro lado, algumas situaes de ensino e aprendizagem tm apresentado relatos bem sucedidos sobre a formao litrgica partindo da experincia antropolgica e da transmisso de noes. o caso especfico do Laboratrio Litrgico4 que parte de dados antropolgicos na etapa de sensibilizao a determinado elemento ritual para posteriormente aprofund-lo e vivenci-lo. O objetivo est sempre dirigido a trs aspectos essenciais, a saber, o gesto ou ao ritual, o sentido teolgico e a atitude espiritual que a experincia ritual torna evidente. A segunda tarefa, em estreita relao com a primeira, refere-se aprendizagem na ao litrgica. Por meio da celebrao litrgica se ensaiam e se aprendem atitudes que tm valorIntroduo progressiva e gradual na vida litrgica da comunidade crist, nos sacramentos ou mistrios sagrados nos quais se realiza a obra de nossa salvao (Cf. MARTN, 1997, p. 307). O termo ser melhor detalhado no segundo captulo desta dissertao. 4 Segundo Buyst; Silva (1995), o laboratrio litrgico uma tcnica utilizada para a formao na qual faz-se um corte de um determinado rito ou elemento litrgico para ser vivenciado pessoal e comunitariamente, explorando criativamente todas as possibilidades, tomando conscincia do sentido teolgico, dos sentimentos e das atitudes espirituais envolvidas, em vista de uma participao cada vez mais autntica. Maiores detalhes sobre a tcnica, ver: BUYST, I. Smbolos na liturgia. 4.ed. So Paulo: Paulinas, 2003. (Anexo. Laboratrio Litrgico: uma tcnica a servio da formao litrgica. p. 85-88); ORMONDE, D. Laboratrio Litrgico: o que , como se faz, por qu? In: CENTRO DE LITURGIA. Formao litrgica: como fazer? 3.ed. So Paulo: Paulus, 2005. p. 3641; BARONTO, L. E. P. Laboratrio litrgico: pela inteireza do ser na vivncia ritual. So Paulo: Paulinas, 2006.3

26 no s dentro do culto, mas tambm fora dele. A celebrao em si compe-se de aes simblicas que tendem a comunicar o mistrio sem a necessidade de grande racionalizao durante o seu desenvolvimento. A prpria reviso dos livros litrgicos aps o Conclio, teve o cuidado de deixar minimamente evidenciado, nos textos, o contedo bblico e teolgico essencial para acompanhar a celebrao. Uma ao litrgica bem preparada e conduzida tem a capacidade de transmitir esses contedos, prescindindo dos recursos didtico-pedaggicos prprios de situaes de ensino e aprendizagem externas ao culto. A formao um fato progressivo e permanente que se realiza atravs de uma experincia cada vez mais intensa e profunda. Deste modo, a iniciao liturgia visa a aprofundar a prpria realidade litrgica naquilo que lhe fundamenta, isto , a liturgia memorial e celebrao do mistrio pascal. A formao litrgica parte essencial do processo de educao crist global cujo objetivo , conforme referido, conduzir participao consciente, ativa e plena da ao litrgica. Martn (1997) apresenta trs objetivos principais da formao litrgica: global, eclesial e sacramental. O primeiro diz respeito formao litrgica como um canal de desenvolvimento da experincia religiosa (p. 310) que permite aos participantes o confronto com o mistrio na celebrao entendida como evento salvfico. Tal confronto exige conhecimento, colaborao e esforo humanos. O objetivo eclesial recai sobre a tendncia da formao litrgica em promover a conscincia de pertena a uma comunidade ou assembleia litrgica (p. 311), ou seja, sentir-se, na e pela celebrao, membro de uma dada comunidade, ou ainda, conforme as concluses de Medelln, do ser humano como sujeito da celebrao litrgica e da vida eclesial. O terceiro objetivo, o sacramental, consiste em, pela formao litrgica, sublinhar que a expresso simblica e ritual no um elemento peculiar da liturgia, mas uma realidade que interessa a toda a existncia humana (id.). Em suma, a formao litrgica educa para a expresso corporal e o comportamento ritual, isto , os gestos e as atitudes corporais, embora possam permanecer num ritualismo externo, contribuem decisivamente para tornar realidade determinadas atitudes internas. Conforme Martn (1997) a formao litrgica deve possibilitar a passagem das atitudes aos gestos, e vice-versa. Em continuidade, Martn apresenta trs caractersticas da formao litrgica. Primeiro, a formao deve ser unitria, ou seja, capaz de atender tanto ao sujeito que se forma na liturgia, como ao objeto ou realidade com a qual o sujeito entra em contato na celebrao litrgica. Petrazzini (2004) refere-se articulao do polo antropolgico no qual o ser humano percebido em sua situao concreta de vida e o polo cristolgico, no qual o mistrio de Cristo

27 assumido como presente e operante na ao litrgica. Com base nesses dois polos se desenrola o processo de formao crist. A segunda caracterstica a formao adaptada aos destinatrios, conforme refere o documento conciliar: de acordo com a sua idade, condio, gnero de vida e grau de cultura religiosa (SC n. 19). Petrazzini (2004) traduziu essa orientao por meio do critrio pedaggico de progressividade que considera diferentes nveis compreenso e diferentes contextos. O sujeito, destinatrio da formao litrgica, ocupa o centro do itinerrio formativo e tem nele papel ativo, ou seja, quando uma pessoa [...] participa de uma celebrao litrgica, traz para ela todo este seu mundo rico e complexo. Para Martn (2006), a formao litrgica percorre todo o processo da educao da f e da vida crist. Em obra anterior, o autor explicita melhor esta ideia ao escrever:[...]

a formao litrgica contemplada em sua funo educativa [...] tanto antes como durante as celebraes nas quais eles vo participar, aparece como uma tarefa que deve pervadir toda a vida do cristo. Nenhuma idade capaz de esgotar as riquezas insondveis do mistrio de Cristo que se faz presente nas aes litrgicas (MARTN, 1997, p. 314-315).

A terceira e mais importante caracterstica a formao mistaggica. Segundo Martn (1997; 2006) essa formao se orienta pela prpria ao litrgica para introduzir progressivamente os celebrantes de maneira profunda e vital no mistrio celebrado. A vivncia contnua e progressiva do mistrio de Cristo aliada ao conhecimento litrgico e participao consciente, ativa, frutuosa e plena nas aes simblico-rituais constituem essa caracterstica da formao litrgica. Na Antiguidade Crist, as catequeses mistaggicas recorriam continuamente a elementos litrgicos (textos, ritos, cantos, aes,) a ponto de que seus significados e valores pudessem ser captados no de maneira fragmentada, mas dentro [...] de um todo orgnico e coerente, tal como se apresenta justamente a liturgia que celebrao do mistrio nico de Cristo (PETRAZZINI, 2004). Com base nisto, a CEPL e a Associao de Liturgistas do Brasil (ASLI) afirmam que a formao precisa ser entendida como processo de iniciao crist mistaggica, para formar cristos adultos, responsveis e que saibam pensar, agir e celebrar (CEPL; ASLI, 2007, p. 15). A anlise do papel da ao ritual na introduo dos participantes no mistrio celebrado permite concluir que a mistagogia no um conjunto de elementos pedaggicos nem mesmo um instrumento da pedagogia. Ela se constitui na prpria ao celebrativa como contemplao e representao do mistrio a partir da prpria ao e por parte de toda a assembleia litrgica.

28 Martn (1997, p. 317) relaciona alguns apoios que asseguram a formao mistaggica. So eles: a assembleia litrgica, o bispo ou presbtero na funo de mistagogo, a Escritura como mistagogia permanente e a homilia; e as oraes e gestos da liturgia que constituem a chamada lingustica celebrativa. A formao mistaggica tende a representar a compreenso mais profunda do retorno s fontes objetivado pelo Vaticano II. Esse retorno est largamente fundado na obra literria e pastoral de autores patrsticos, os Pais da Igreja. A partir dos escritos surgir uma terminologia prpria. A mistagogia, neste sentido, no se configura simplesmente um mtodo, mas uma mentalidade que expressa uma eclesiologia radicada entre os sculos IV e V da Era Crist e atualizada a partir do aggiornamento5 que motivou o Conclio. Petrazzini trata dos tipos de formao litrgica. A autora considera dois tipos ou momentos principais e um terceiro como decorrncia: a) Formao para a liturgia; b) Formao atravs da liturgia e da celebrao litrgica; e c) Formao da comunidade mediante a ao litrgica. A formao para a liturgia consiste em dar o sentido da presena e da ao de Cristo na liturgia, ou seja, o mistrio de Cristo o contedo primordial deste momento formativo. Tal formao implica uma dimenso de interiorizao do mistrio conhecido e acolhido na f. Deste modo, os participantes, alm de conhecer e expressar os elementos rituais, os gestos e as aes simblicas de uma celebrao na sua forma exterior so, pela formao, levados ao conhecimento consciente do seu contedo e do seu valor simblico-sacramental com referncia presena e ao de Cristo (PETRAZZINI, 2004). A formao atravs da liturgia e da celebrao litrgica assume que os elementos verbais no desempenham somente uma funo didtica. Palavra, cantos, oraes assumem um valor simblico, evocativo do mistrio, que atua no sentido de promover o envolvimento global e profundo de toda a pessoa, que se sente comprometida com uma ao que lhe diz respeito. Por fim, fala-se da formao da comunidade mediante a ao litrgica. Aqui, a comunidade entendida como o lugar de formao. A celebrao, especialmente da eucaristia, se torna o ponto culminante da reunio dos fiis e o momento privilegiado de formao da comunidade que se constitui em assembleia litrgica e adquire a conscincia do seu prprio ser e agir na igreja e a partir dela. As celebraes podem cumprir a sua funo formativa como pontos de partida ou fases de passagem para enriquecer os indivduos e as comunidades com maior conhecimento consciente e responsvel e com capacidade5

Termo italiano que pode ser traduzido genericamento por atualizao.

29 participativa mais profunda por ocasio das celebraes sacramentais propriamente ditas. Para maior participao daqueles aos quais se dirige a ao formativa, pode ser oportuno que o envolvimento deles na celebrao no se limite ao momento da sua realizao, mas comece desde a fase de programao e da preparao. De modo similar, Abreu; Buyst (2005) distinguem dois tipos de formao litrgica complementares e que se interpenetram: formao para a liturgia e formao pela liturgia. O primeiro se d por meio de cursos, encontros, seminrios, entre outros, com uma temtica e metodologia especficas. No caso do segundo, conforme orienta o artigo 33 da SC, aproveitase de uma pedagogia inerente prpria ao litrgica capaz de desencadear um processo formativo. A formao para a, atravs da, mediante a liturgia ratifica a importncia do processo de formao permanente. A liturgia uma escola de formao (educao) permanente da f. A liturgia pode transformar-se em lugar e em ocasio privilegiada para a formao permanente quando se procede por meio de itinerrios diversos e complementares que so detectveis e identificveis dentro da prpria liturgia. Neste sentido, as instncias de formao podem concentrar-se do nvel prtico-pastoral ao acadmico-profissional ou, conforme Abreu; Buyst (2005), nvel bsico, mdio, superior e especializao.

1.1 Formao litrgico-musical: proposta e resgate

A formao litrgico-musical no outra modalidade de formao litrgica. Sua compreenso, assim como acontece no mbito formativo geral, reside numa especificidade tcnica que fundamenta o seu exerccio. A maior parte dos ritos das celebraes litrgicas ou so cantados ou se fazem acompanhar por cantos rituais. Em certo sentido, praticamente impossvel pensar uma celebrao litrgica que prescinda do canto e da msica. Convm, todavia, retomar algumas chaves formativas que ajudem a desentranhar um processo que oscila entre o avano e o retrocesso. Os objetivos, as caractersticas e os tipos de formao litrgica so igualmente aplicados ao que se denomina formao litrgico-musical. Em todo caso, uma formao musical to consistente quanto a litrgica deve ocupar as iniciativas e aes ministeriais neste campo. Esta formao deve atingir preferencialmente os agentes da

30 msica litrgica, e ressoar na assembleia litrgica celebrante, pois o canto e a msica so partes integrantes da celebrao litrgica. Sobre esta questo, afirmou-se recentemente:[...] importante compreender que a msica, na Liturgia, no mero acessrio para embelezar, nem mero diversivo para quebrar a monotonia do rito. [...] tem uma capacidade especial de atingir os coraes, e, enquanto rito, uma grande eficcia pedaggica para lev-los a penetrar o Mistrio celebrado. Para isso, necessita estar intimamente vinculada ao rito, ao momento celebrativo e ao tempo litrgico [...] (SALA, 2008).

Com base nisto, aponta-se a necessidade de investimento na formao litrgico-musical dirigida aos vrios nveis eclesiais. A msica litrgica uma ao integrada e consequente. Para tanto, h necessidade de formadores capacitados e agentes interessados em formar-se. Segundo Sala (2008), a formao litrgico-musical pode ser promovida, tanto no nvel pastoral como no acadmico, por meio de encontros peridicos de estudo, reflexo, articulao, aprofundamento e ensaio. O texto que segue, portanto, um convite a vislumbrar as conquistas e desafios formao litrgico-musical no Brasil. Alm da tomada de conscincia de uma trajetria formativa notvel, importante atentar para a continuidade de um processo que rompe com um fazer eminentemente prtico-imitativo e aponta solues de conhecimento e ao a partir do prprio fazer ministerial e essencial.

1.1.1 A formao litrgico-musical ps-conciliar no Brasil

Com a aprovao do primeiro documento conciliar sobre a liturgia (SC), tratou-se de levar adiante todas as experincias significativas no campo litrgico no Brasil, sentidas ao longo do nosso movimento litrgico. Sob o peso das circunstncias, as iniciativas no campo formativo foram se consolidando e, deste modo, produziram-se as primeiras experincias no perodo ps-conciliar. A mais significativa delas, conforme se mencionou na introduo, foram os Encontros Nacionais de Msica Sacra (ENMS) que, por sua vez, orientaram e tm orientado as produes no campo litrgico-musical da CNBB.

31 O estudo intitulado A msica litrgica no Brasil (CNBB, 1998), relacionou as iniciativas conhecidas e seu provvel efeito sobre o projeto formativo. Esse projeto, iniciado no perodo imediatamente posterior ao Conclio por meio dos ENMS, de 1965 a 1968; incentivado pela aprovao e publicao do documento da CNBB n. 7, Pastoral da msica litrgica no Brasil e do estudo n. 12, Estudo sobre os cantos da missa, em 1976, abriu novas perspectivas implementao de uma reforma litrgico-musical duradoura. O documento apresenta e assume, no captulo 1, os pontos positivos e negativos os quais, de certo modo, esto inter-relacionados. Os pontos positivos destacam as atividades da Comisso Nacional de Liturgia da CNBB, por exemplo, os ENMS, as assessorias aos Regionais e Dioceses, os encontros de msica e canto pastoral e a criao de equipes regionais de msica litrgica, e os cantos da Campanha da Fraternidade. Entre as iniciativas regionais, destacam-se como positivas a realizao de cursos de canto pastoral, incentivo aos compositores locais e a divulgao impressa ou em udio. J os pontos negativos destacam a escassez de pessoas habilitadas em liturgia e msica devido falta de escolas especializadas, a carncia de formao litrgico-musical dos futuros presbteros, a baixa motivao de msicos leigos em contribuir com a msica litrgica, a falta de bons textos para os cantos, uso de melodias e textos divulgados pelos meios de comunicao, o uso inadequado dos instrumentos, a extino dos corais e as celebraes ocasionais6. Ao traar suas linhas de ao pastoral, conforme a letra e o esprito da SC, o documento props e incentivou a criao de comisses e equipes diocesanas e regionais de msica litrgica que, entre outras atribuies, se empenhassem em organizar cursos, encontros e reunies para a formao de agentes de pastoral, e outras pessoas capacitadas, orientando-as e formando-as no sentido litrgico-musical e na aplicao concreta s celebraes (CNBB, 1976b, n. 3.2.c). Fundamentado no documento n. 7, publicou-se pela srie Estudos da CNBB, o Estudo sobre os cantos da missa (CNBB, 1976a). Em geral, publicaes como essas trazem contribuies de vrios especialistas em uma determinada matria. Convm destacar o esforo do Pe. Jos Weber ento assessor para a msica litrgica na Comisso Nacional de Liturgia em elaborar o texto e acatar as sugestes dos participantes do III Encontro de Coordenadores Diocesanos de Msica Sacra, realizado em 1975. Nesta obra, cada canto segue o mesmo padro de anlise, a saber: ao litrgica, funo litrgica, funo ministerial,

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Citem-se por exemplo as missas exequiais, bodas e casamentos, aniversrios, batizados.

32 participantes, caractersticas gerais, forma literria, forma musical, participao dos instrumentos, quando se canta, exemplos e realizaes. Outro documento da CNBB, Animao da vida litrgica no Brasil, trouxe vrias reflexes temtica litrgico-musical, muito embora, tratasse da liturgia como um todo. De certo modo, atualizava o panorama da liturgia no Brasil tendo como pano de fundo as contribuies de duas conferncias episcopais latino-americanas, Medelln (1968) e Puebla (1979), com o objetivo de unir a dimenso celebrativa dimenso proftica e transformadora (CNBB, 1989, n. 2). O documento compe-se de duas partes. Na primeira, reflete a caminhada litrgica ps-conciliar no Brasil, a natureza da liturgia, sua linguagem e suas mltiplas expresses. Na segunda parte so apresentadas orientaes pastorais sobre a celebrao eucarstica que, em termos prticos, dizem respeito tambm ao canto e msica. Em 1998, no 35 aniversrio da SC, a CEPL da CNBB, por meio do Setor Msica Litrgica, lanou A msica litrgica no Brasil. Na primeira parte, o texto ocupou-se a olhar a realidade e perceber e/ou ratificar os xitos do processo de renovao litrgico-musical. Reconheceu que daquilo a que se propunha o documento Pastoral da msica litrgica no Brasil muito havia sido superado qualitativamente tanto no aspecto formativo e prtico como em publicaes temticas. Por outro lado, o diagnstico da realidade global e eclesial na passagem do sculo, fazia notar uma suspeita disperso neste campo e que se fizeram perceber no que se denominaram falhas, lacunas e problemas desafiadores. Os pontos negativos enumerados pelo documento, de certo modo, so amplificados e sua superao parece ainda distante. Somado a isso, a afluncia crescente de prticas neopentecostais, trazidas por movimentos eclesiais, tem desafiado a Igreja como um todo a resgatar o aspecto emocional das celebraes e, em certa medida, a superar formas individualistas e intimistas do cantar-celebrar. A segunda parte do estudo tem a preocupao de apontar elementos bblicos, teolgicos e histricos que justificam o pensar e o fazer litrgico-musical retomado pelo Conclio Vaticano II no seu projeto de retorno s fontes bblicas e patrsticas. A terceira e ltima parte compe-se de orientaes pastorais de amplo alcance e que objetivam a superao das lacunas apontadas e a explorao de novas possibilidades para uma msica litrgica renovada. Uma obra que perpassa longitudinalmente os estudos e documentos da CNBB , sem dvida, a publicao dos quatro volumes do Hinrio Litrgico. At o final da dcada de 1990, o setor de msica litrgica da CNBB havia compilado e editado, sob a responsabilidade da editora Paulus, um amplo repertrio de msicas litrgicas selecionadas criteriosamente. Mais

33 recentemente, a CNBB elaborou um projeto de gravao do repertrio para os diversos ciclos do ano litrgico: Ciclo do Natal: Advento A, B e C e Natal; Ciclo Pascal: Quaresma A, B e C e Trduo Pascal I e II; Tempo Comum A, B e C; Festas Litrgicas I, II, III e IV; Cantos de Abertura e Comunho; e Partes Fixas. Muito embora as ressalvas quanto qualidade das gravaes (concepo e execuo), tais recursos tm sido determinantes na difuso do repertrio entre as equipes de msica das celebraes litrgicas. As lacunas no repertrio esto sendo paulatinamente detectadas e preenchidas com novas composies. As publicaes mais recentes da CNBB, sob a responsabilidade da CEPL em parceria com pesquisadores e liturgistas, tm procurado recuperar as orientaes de documentos anteriores aliadas aos novos conhecimentos no campo da cincia litrgica. Neste processo de atualizao do conhecimento, merecem destaque as publicaes: a) Guia litrgico-pastoral (CNBB, 2006). Desenvolve vrios temas relacionados liturgia em geral e dedica uma parte do texto msica litrgica. b) Diretrio litrgico, publicado anualmente, interessa-se por orientar a vida litrgica da igreja no dia-a-dia das celebraes litrgicas. No texto introdutrio, so retomados alguns pontos do Guia. c) Liturgia em mutiro (CNBB, 2007). Coordenado pelo assessor da Pastoral Litrgica da CEPL, o projeto iniciou-se na pgina eletrnica da CNBB (www.cnbb.org.br) como uma publicao semanal sobre variados assuntos de liturgia assinado por especialistas convidados. Atualmente, o projeto conclui sua segunda etapa. As fichas referentes primeira etapa foram compiladas e publicadas em obra homnima. O mesmo acontecer nesta segunda etapa que se encontra em fase de concluso. d) Canto e msica na liturgia: princpios litrgicos, teolgicos, pastorais e estticos. Esta publicao foi resultante das discusses e concluses do Encontro de Msicos que a CNBB promoveu entre os anos de 2003 e 2005, que reuniu especialistas das vrias regies do Brasil. A ideia original seria de que esses princpios fossem a base para um Estatuto da Msica Litrgica. A ressonncia de tais princpios est sendo avaliada. e) Coleo Liturgia e Msica7. A coleo, sob a responsabilidade do ex-assessor de msica litrgica da CNBB, compe-se atualmente de sete volumes em que se procurou desenvolver textos, reedies e tradues de obras capazes de integrar elementos de formao litrgico-musical. So eles: Cantando a missa e ofcio divino (FONSECA, 2004); Msica

A Revista de Liturgia, ano 35, v. 206-210 e ano 36, v. 211-212, publicou uma srie de sete resenhas sobre cada uma das obras da coleo de autoria do padre Ney Brasil Pereira. Os textos foram muito bem avaliados.

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34 brasileira na liturgia (ALBUQUERQUE et al., 2005); O canto cristo na tradio primitiva (BASURKO, 2005); Msica, dana e poesia na bblia (MONRABAL, 2006); Tcnica vocal: princpios para o cantor litrgico (MOLINARI, 2007); Quem canta? O que cantar na liturgia (FONSECA, 2008); Msica ritual e mistagogia (BUYST; FONSECA, 2008). Dois outros volumes da coleo se encontram em elaborao. f) DVD - Canto e msica na liturgia. Produo audiovisual da Verbo Filmes em parceria com a CNBB e a editora Paulus e assessoria da Rede Celebra. Divide-se em trs partes: Quem canta na liturgia? O que cantar na liturgia? e Um canto para cada tempo litrgico, desenvolve contedos formativos elementares em linguagem acessvel. Alm desse conjunto de iniciativas editoriais, tem havido um empenho crescente e constante em desenvolver temas relacionados msica litrgica que atinjam variados nveis pastorais. O setor de msica litrgica da CEPL-CNBB elaborou um projeto formativo em quatro etapas (2006, 2007, 2008 e 2009). Este ciclo de quatro encontros objetivou a reunio de compositores e letristas/poetas provenientes da diversidade cultural, religiosa e musical do Brasil. A contribuio de telogos, liturgistas, antroplogos, musiclogos, esteticistas, linguistas e literatos tem sido fundamental na consecuo dos objetivos propostos. Outro momento, cujas consequncias sero relatadas no captulo terceiro, diz respeito XIX Semana de Liturgia em 2006 com o tema Canto e msica na liturgia. Esta reiterao temtica tem, seno trazido uma mentalidade condizente com a renovao litrgica conciliar, pelo menos, divulgado e tornado acessveis as produes nesta rea de interesse. Suspeita-se que tal insistncia tem modificado consideravelmente o modo de pensar a msica litrgica, no obstante os retrocessos percebidos na contemporaneidade da Igreja Catlica. Dos retrocessos, citem-se apenas dois: o retorno ao esteticismo versus pastoralismo da msica ritual, motivado por uma leitura parcial de documentos pontifcios da primeira metade do sculo XX, principalmente; e o uso prtico-operacional e inflacionado de subsdios musicais ditos litrgicos cujos critrios de escolha e criao do repertrio no supem uma base histrica, teolgico e litrgica favorvel. O ltimo momento da caminhada formativa litrgico-musical deveu-se publicao e divulgao da Carta aos Agentes de Msica Litrgica do Brasil (25 de setembro de 2008), assinada pelo bispo responsvel pela CEPL. Com base nas obras anteriores e nas Diretrizes Gerais da Ao Evangelizadora da Igreja no Brasil 2008-2010 (CNBB, 2008) e na Exortao Apostlica Ps-sinodal Sacramentum Caritatis do papa Bento XVI (2007), o texto dirige-se s equipes de liturgia e, particularmente, aos ministrios musicais, sintetiza os fundamentos da

35 prtica ministerial, reconhecendo os esforos empreendidos, orientando a prtica pastoral e estimulando a formao contnua. At aqui, optou-se por ilustrar a definio de formao litrgica e suas implicaes prtico-pastorais. Na continuidade, identificaram-se as iniciativas que denotam um perfil oficial de um processo de renovao litrgico-musical decorrente do Conclio e sua especificidade formativa. No captulo seguinte, um salto muito maior ser empreendido para se compreender as bases referenciais que sustentam a proposta da pesquisa: a mistagogia da igreja e o mtodo mistaggico. Uma terminologia ainda mais complexa ocupar a maior para das discusses empreendidas com a inteno de apresentar pistas para a formao de um conceito melhor situado sobre o meio e o mtodo.

Captulo II

2 A mistagogia na prxis litrgica crist da igreja primitiva

2.1 Antecedentes

O surgimento do conceito de mistagogia est diretamente relacionado aos processos de expanso e adaptao do Cristianismo ao mundo greco-romano. J no incio da Era Crist1, as influncias do pensamento grego, dentro do que se denominou cultura helenstica, estavam plenamente consolidadas. Este captulo tratar do contexto religioso e histrico do sculo IV e V a fim de esclarecer a emergncia do termo mistagogia e os efeitos de sua circunscrio a este perodo da histria da liturgia e da igreja. O incio do processo de expanso deveu-se atividade missionria do apstolo Paulo que, alm de seguidor e conhecedor da religio judaica, era formado, tambm, no pensamento clssico grego. Por meio de suas cartas e viagens, propagou a mensagem e a ao de Jesus Cristo pelas vrias regies do Imprio Romano, durante a segunda metade do sculo I. Em continuidade ao projeto paulino, outros pensadores da igreja primitiva, denominados Pais da Igreja2, trataram de transmitir a tica e o pensamento cristos. Figuram neste perodo a Didaqu (Doutrina dos Apstolos) e nomes como Justino e Tertuliano (sculo II), Cipriano e Hiplito de Roma (sculo III). A histria ilustra o surgimento paulatino de um culto novo, no somente no conceito, mas na terminologia. Em suma: antes da ressurreio de Cristo e mesmo algum tempo depois, o culto era ainda centralizado no Templo, com ofertas e sacrifcios expiatrios, conforme o preceito judaico da Tor3. Jesus, no dilogo com a samaritana, narrado pelo evangelho de Joo, refere-se ao culto espiritual: est chegando a hora, e agora, em que os adoradores adoraro o Pai em esprito e verdade (Evangelho de Joo 20, 23). Deste modo, inaugurava1 2

Para fins de datao histrica, convencionou-se o uso de a. C. para antes de Cristo e d. C. para depois de Cristo. No corpo do texto, usar-se- para designar Pais da Igreja, as expresses autores eclesisticos ou autores patrsticos, indiscriminadamente. 3 A lei de Moiss ou o livro que contm essa lei, isto , as escrituras religiosas judaicas (Pentateuco).

37 um novo culto em que os sacrifcios de animais realizados pelos sumo-sacerdotes no seriam mais necessrios, pois, segundo a carta aos Hebreus: Ele no precisa [...] oferecer sacrifcios em cada dia [...] j o fez uma vez por todas, oferecendo-se a si mesmo. [...] com o seu prprio sangue, ele entrou no Santurio uma vez por todas, obtendo uma redeno eterna (Carta aos Hebreus, 7, 27; 9, 12). No incio do processo de expanso do Cristianismo, era constante a necessidade de adaptar termos que pertenciam a outras culturas para que se pudesse, por analogia, compreender e aderir a esse novo modo cultual sem destoar do cotidiano das relaes sociais in loco. Silva (2003) relata como alguns elementos da cultura mediterrnea apresentavam uma conaturalidade para exprimir os conceitos prprios do Cristianismo. Para evitar um erro interpretativo das culturas autctones, os autores eclesisticos empenhavam-se duramente na catequese mistaggica por meio da qual explicitavam os ritos celebrados e incutiam uma mentalidade eclesial crist. O autor considera que essa apropriao de elementos culturais, longe de ameaar a propagao da f da igreja, veio a enriquec-la tanto no aspecto ritual quanto terminolgico. No obstante o combate ao paganismo ter sido uma preocupao constante neste contexto, era tambm comum, na prtica e na obra dos autores eclesisticos, a exposio de realidades da f crist sob a forma de catequeses mistaggicas. Assim, quando se trata de elementos culturais ou rituais no estritamente vinculados ao culto pago, os Padres [Pais da Igreja] no demonstram nenhuma dificuldade em us-los para explicar e viver a liturgia (SILVA, 2003, p. 30). Tudo se realizava em decorrncia da celebrao dos mistrios. O processo de iniciao crist possua etapas de formao muito bem delineadas para inserir progressivamente os novos cristos. H uma variedade de expresses do vocabulrio litrgico cristo que foi extrada do mundo cultural e lingustico greco-latino, em parte de suas religies mistricas, por exemplo, eucaristia, eulogia, liturgia, gape, cnon, hino, mistagogia, entre outras. A lngua litrgica desse perodo era, conforme o relato de Marsili (1987, p. 59), o grego-koin4, a lngua da primitiva evangelizao. Mais tardiamente, mas ainda nesse processo, outras apropriaes foram sendo empenhadas pelos autores eclesisticos que so descritas na definio do verbete Adaptao no Dicionrio de Liturgia:4

Koin: lngua comum, que formada na parte oriental do Imprio Romano, invadira todo o Ocidente. Conforme Marsili (1987), dois sculos antes de Cristo, o Antigo Testamento havia sido traduzido para esta lngua. Outros relatos confirmam esse uso. Veja-se, por exemplo, a obra Peregrinao de Etria: liturgia e catequese em Jerusalm no Sculo IV. 2.ed. Petrpolis: Vozes, 2004, n. 47-4, p. 121.

38[...] exemplo da influncia pag a formulao de oraes [...] que traz peculiaridades lingusticas prprias das oraes helensticas pr-crists. So abundantes nestas frmulas as orientaes solenes, numerosos atributos divinos e [...] um estilo retrico extrado da cultura helenista. [...] Tambm a iniciao crist foi acumulando usos pagos. Era moda [...] usar termos tirados diretamente dos ritos mistricos, como memnemenoi (pessoas iniciadas nos mistrios cristos), mystagogs (quem ensina) e mistagogia (a doutrina deste sobre o mistrio cristo) (CHUPUNGCO, 2004, p. 5).

Silva (2003) destaca que os mtodos mais recorrentes utilizados no processo de adaptao eram assimilao, reinterpretao e, tambm, substituio. Gradualmente, os elementos cultuais pagos eram substitudos ou mesmo anulados por elementos do culto cristo. Exemplo disso a instituio de festas crists no lugar de festas pags devido semelhana ou oposio de temas entre elas, como o caso da festa do Natal em oposio do deus Sol Invencvel. O sculo IV, na histria do cristianismo, foi marcado pelo edito de Milo5, no ano de 313, promulgado no incio do mandado do imperador Constantino (312-337 d.C.) que abriu, conforme Aug (2007, p. 31), a comunidade eclesial ao universo circunstante e ao imprio romano. Segundo Pierrard (1983, p. 42) o edito no se tratava de um ato jurdico, mas de resultados de acordos realizados em Milo entre Licnio (imperador do Oriente at 324 d.C.) e Constantino (imperador do Ocidente) que versava sobre os seguintes temas: esquecimento do passado, total liberdade de culto e reparao dos prejuzos sofridos pelos cristos. Frhlich (1987, p. 31) relaciona alguns privilgios obtidos pela religio crist em decorrncia do edito: construo de igrejas por todo o Imprio; dispensa de impostos e da prestao de servios pblicos, para os clrigos; equiparao dos bispos com os altos funcionrios e doao de propriedades de terras. No entanto, a situao do cristianismo frente ao paganismo institudo s viria a ser modificada durante o mandado de Teodsio (390-395 d.C.), ocasio em que o cristianismo tornara-se a religio oficial do mundo romano. Para forar esse processo, em 391 d.C., Teodsio imps o fim do paganismo na vida pblica (Frhlich, 1987, p. 33) pela proibio de todo culto pago. Empreendeu-se a destruio do velho politesmo romano por meio do confisco de bens dos templos pagos e, ao mesmo tempo, beneficiou o cristianismo com os privilgios fiscais e judicirios j relatados. Silva (2003) e Chupungco (2004) referem-se s mudanas na forma e compreenso da liturgia provocadas pelo fim da perseguio aos cristos e pela situao poltica, religiosa e social do mundo romano. Percebe-se que, mesmo aps um longo perodo de perseguies exercidas pelo poder temporal e religioso local, iniciadas a partir da segunda metade do sculo5

Tambm designado edito de tolerncia conforme relata Frhlich (1987, p. 31).

39 I da Era Crist, o processo de expanso e adaptao no foi interrompido. Fazem parte deste perodo, inmeros relatos sobre o testemunho dos mrtires e confessores6, os quais denotam a contra-resistncia dos cristos empreendida at a publicao do edito. Aug (2007) relata que aps a publicao do edito e o fim das perseguies, os mrtires da f se tornam objeto de venerao e surgem cultos especficos em memria dos mrtires. Dentre as principais mudanas percebidas aps o edito destaca-se uma que diz respeito ao espao celebrativo. Os cristos passaram a se reunir no mais na domus ecclesiae (casa da igreja), mas em ambientes amplos, denominados baslicas (lugar da realeza). A baslica constantiniana, segundo Chupungco (2004, p. 5) ainda se assemelha a uma domus ecclesiae estilizada. Antes do uso cristo, as baslicas eram construes amplas utilizadas para reunies de autoridades imperiais de Roma. Neunheuser (2007, p. 87) chega a dizer que se trata de uma estrutura arquitetnica que conseguiu se impor [...] como a norma dominante do edifcio cristo. Esta mudana no espao celebrativo exerce uma grande influncia sobre a dinmica da iniciao crist e das celebraes como, por exemplo, a Viglia Pascal, que assumem, segundo Silva (2003), um carter imponente e suntuoso prprio de cerimoniais da corte imperial. As vestes litrgicas tambm assumem o requinte da corte imperial, herana que perdura at os dias atuais. Esses antecedentes ajudam a descortinar o contexto no qual as discusses que seguem iniciaram seu processo de sistematizao. Sob vrias influncias filosficas e teolgicas, os escritos dos autores eclesisticos do perodo permitiram visualizar uma prtica sem precedentes na histria da liturgia crist. Parte dessa histria ser determinante na compreenso desse fenmeno e de seus desdobramentos.

A ttulo de ilustrao, ver o relato da ata dos mrtires de Abitnia, publicado por SILVA, J. A. O domingo: pscoa semanal dos cri