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A arte e a educação Maisa Antunes

Livro - A Arte e a Educação - ces.uc.pt20-%20A%20Arte%20e%20a%20Educa%E7%E3o.pdf · educação infantil e de jovens e adultos, ensino fundamental, médio, espaços não-formais,

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A arte e a educação

Maisa Antunes

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raço passos numa cidade desenha-da à beira do rio São Francisco que Tcoleciona histórias e fantasias. Os

pescadores convivem com um cotidiano de lendas vivas; o tempo corre através de nós e do rio e convida-nos a sonhar na profundidade de suas margens. Cenário inspirador de despala-vras, transvistas pela delicadeza do olhar poéti-co.

De criança tornei-me menina-mulher e professora. Na minha busca: “só há um luxo verdadeiro: o das relações humanas” (Exupéry). Em suas trilhas contraditórias “os homens” travestidos de alunos ou de colegas (professo-res) são espelhos e reflexos dos meus próprios desejos, anseios e dores.

Em meu percurso docente passei pela educação infantil e de jovens e adultos, ensino fundamental, médio, espaços não-formais, e

Diálogos brincantesPor Maisa Antunes

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raço passos numa cidade desenha-da à beira do rio São Francisco que Tcoleciona histórias e fantasias. Os

pescadores convivem com um cotidiano de lendas vivas; o tempo corre através de nós e do rio e convida-nos a sonhar na profundidade de suas margens. Cenário inspirador de despala-vras, transvistas pela delicadeza do olhar poéti-co.

De criança tornei-me menina-mulher e professora. Na minha busca: “só há um luxo verdadeiro: o das relações humanas” (Exupéry). Em suas trilhas contraditórias “os homens” travestidos de alunos ou de colegas (professo-res) são espelhos e reflexos dos meus próprios desejos, anseios e dores.

Em meu percurso docente passei pela educação infantil e de jovens e adultos, ensino fundamental, médio, espaços não-formais, e

Diálogos brincantesPor Maisa Antunes

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hoje atuo no ensino superior, onde trabalho com o curso de formação de professores. Assumo, dentre outros componentes curriculares: ARTE E EDUCAÇÃO. Torno-me tão próxima deste que sou freqüentemente convidada para contri-buir em outros cursos de formação de professo-res. Convivo cotidianamente com esse conceito e passo a pensar mais sobre ele. Com isso, depois de algum tempo revela-se em mim o desejo de escrever um livro de entrevistas com um arte-educador e um artista.

Meu convívio com os textos de Duarte Júnior sobre arte-educação levou-me em 18 de janeiro de 2011, final de manhã, a um encontro com ele no aeroporto de Campinas-SP. Depois de alguns contatos via e-mail, recebeu-me carinhosamente em sua residência. Ele, Mary (sua esposa), Daniel (seu orientando); e (não podia esquecer) os cachorrinhos cuidados pelo casal. Carlinho, sem nenhuma resistência, encheu-me logo de carinhos, esfregando-se em mim, como se fosse um gato; Lolly ficou me observando de longe por muito tempo, no final não resistiu, jogou-se em meus braços para um afago, e Nina, que só se aproximava quando estalava os dedos para ela, era uma cadela sofri-da. Todos adotados... Duarte e eu trocamos

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livros e dedicatórias, depois iniciamos e finaliza-mos a entrevista. Uma coleção de cactos embe-lezava a sacada da janela frontal, os móveis da sala, desenhados pelas mãos de um marceneiro na década de 20 pertenceram ao avô de Duarte. Lá estavam também dois baús - da sua bisavó -, que possivelmente guardavam em suas memóri-as, sensações, dores e amores de um enxoval preparado por uma jovem que viajou da Itália para o Brasil na metade do século XIX. Foi cercada com esses símbolos que voltei para minha cidade naquele mesmo dia, cansada, feliz e protegida pelos gestos cuidadosos de Duarte Júnior.

Do artista, há pouco tempo, eu só conhecia suas obras por meio de exposições dos seus belos e enigmáticos retratos. Marcos Cesário é um poeta intimamente ligado a símbolos. Tem conexão direta com seus sentimentos - e na infância conviveu com um currículo nada invejável de suspensões e expulsões de estabele-cimentos de ensino -. Intenso e inquieto sabe sempre o que não procura. Foi com revelações inspiradoras que a entrevista com Marcos Cesário aconteceu no dia 28 de janeiro de 2011. Era início da tarde quando ele chegou, depois de um forte suco de maracujá, contemplou por

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hoje atuo no ensino superior, onde trabalho com o curso de formação de professores. Assumo, dentre outros componentes curriculares: ARTE E EDUCAÇÃO. Torno-me tão próxima deste que sou freqüentemente convidada para contri-buir em outros cursos de formação de professo-res. Convivo cotidianamente com esse conceito e passo a pensar mais sobre ele. Com isso, depois de algum tempo revela-se em mim o desejo de escrever um livro de entrevistas com um arte-educador e um artista.

Meu convívio com os textos de Duarte Júnior sobre arte-educação levou-me em 18 de janeiro de 2011, final de manhã, a um encontro com ele no aeroporto de Campinas-SP. Depois de alguns contatos via e-mail, recebeu-me carinhosamente em sua residência. Ele, Mary (sua esposa), Daniel (seu orientando); e (não podia esquecer) os cachorrinhos cuidados pelo casal. Carlinho, sem nenhuma resistência, encheu-me logo de carinhos, esfregando-se em mim, como se fosse um gato; Lolly ficou me observando de longe por muito tempo, no final não resistiu, jogou-se em meus braços para um afago, e Nina, que só se aproximava quando estalava os dedos para ela, era uma cadela sofri-da. Todos adotados... Duarte e eu trocamos

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livros e dedicatórias, depois iniciamos e finaliza-mos a entrevista. Uma coleção de cactos embe-lezava a sacada da janela frontal, os móveis da sala, desenhados pelas mãos de um marceneiro na década de 20 pertenceram ao avô de Duarte. Lá estavam também dois baús - da sua bisavó -, que possivelmente guardavam em suas memóri-as, sensações, dores e amores de um enxoval preparado por uma jovem que viajou da Itália para o Brasil na metade do século XIX. Foi cercada com esses símbolos que voltei para minha cidade naquele mesmo dia, cansada, feliz e protegida pelos gestos cuidadosos de Duarte Júnior.

Do artista, há pouco tempo, eu só conhecia suas obras por meio de exposições dos seus belos e enigmáticos retratos. Marcos Cesário é um poeta intimamente ligado a símbolos. Tem conexão direta com seus sentimentos - e na infância conviveu com um currículo nada invejável de suspensões e expulsões de estabele-cimentos de ensino -. Intenso e inquieto sabe sempre o que não procura. Foi com revelações inspiradoras que a entrevista com Marcos Cesário aconteceu no dia 28 de janeiro de 2011. Era início da tarde quando ele chegou, depois de um forte suco de maracujá, contemplou por

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horas seus livros-irmãos - Wilde, Exupéry, Hermann Hesse... - que habitualmente relê. Quando o sol preparava-se para mais um cochilo iniciamos e finalizamos uma entrevista rápida, talvez menos de meia hora. Levei-o ao terminal rodoviário, deixando comigo suas palavras e risos no gravador que ouvi e muitas vezes reli.

Duarte Júnior e Marcos Cesário falam da mesma coisa dizendo-nos coisas diferentes?

Para Duarte a arte “educa” numa dimensão não racional, refina nossa percepção e nossa sensibilidade. A isto Cesário chama de desedu-cação.

Duarte, mesmo reconhecendo as limitações, os aprisionamentos e os instrumentos de ades-tramento da educação escolar, ainda insiste em acreditar na EDUCAÇÃO. Cesário, alimentado por uma “revolta” da sua alma de poeta, argu-menta, inspirado em Oscar Wilde que a lingua-gem é mãe do pensamento, e assim sendo, esta, segundo Cesário, deve ser mudada para que também se mude o pensamento. Mudando assim os equívocos cometidos ao tentar unir “duas inimigas instintivas”: A ARTE E A EDUCAÇÃO.

Rubem Braga,

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Talvez aqui poderíamos defender juntos que o sentimento vem primeiro. Que a sensação, a paixão, a vaidade, a imaginação nos impulsio-nam a viver, a criar. E como a escola se apóia em instrumentos tão controladores, tão racionais, como conciliar com a arte? Sobre isso, tanto Duarte, como Cesário defendem que a arte deve estar na escola, mas não refém do currículo escolar.

Para Duarte, a escola atualmente é feita atendendo a uma educação profissionalizante e desenvolvendo capacidades lógicas e técnicas, que corresponde a demanda do mercado de trabalho. Nesse sentindo, segundo este pensa-dor, a arte, a poesia é algo inútil do ponto de vista da demanda deste mercado. E se a arte é inútil qual o interesse pela arte por parte de institui-ções educativas que estão a serviço de uma sociedade capitalista, impulsionadora do consu-mo desenfreado, ignorando o valor das coisas materiais e espirituais?

O filotógrafo (filósofo-fotógrafo) Cesário ao falar da arte e sua inutilidade nos provoca a pensar sobre a sociedade que “mata” o indivíduo em nome de um suposto bem estar para todos, e ainda nos leva a pensar o caráter imprevisível e livre da arte.

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horas seus livros-irmãos - Wilde, Exupéry, Hermann Hesse... - que habitualmente relê. Quando o sol preparava-se para mais um cochilo iniciamos e finalizamos uma entrevista rápida, talvez menos de meia hora. Levei-o ao terminal rodoviário, deixando comigo suas palavras e risos no gravador que ouvi e muitas vezes reli.

Duarte Júnior e Marcos Cesário falam da mesma coisa dizendo-nos coisas diferentes?

Para Duarte a arte “educa” numa dimensão não racional, refina nossa percepção e nossa sensibilidade. A isto Cesário chama de desedu-cação.

Duarte, mesmo reconhecendo as limitações, os aprisionamentos e os instrumentos de ades-tramento da educação escolar, ainda insiste em acreditar na EDUCAÇÃO. Cesário, alimentado por uma “revolta” da sua alma de poeta, argu-menta, inspirado em Oscar Wilde que a lingua-gem é mãe do pensamento, e assim sendo, esta, segundo Cesário, deve ser mudada para que também se mude o pensamento. Mudando assim os equívocos cometidos ao tentar unir “duas inimigas instintivas”: A ARTE E A EDUCAÇÃO.

Rubem Braga,

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Talvez aqui poderíamos defender juntos que o sentimento vem primeiro. Que a sensação, a paixão, a vaidade, a imaginação nos impulsio-nam a viver, a criar. E como a escola se apóia em instrumentos tão controladores, tão racionais, como conciliar com a arte? Sobre isso, tanto Duarte, como Cesário defendem que a arte deve estar na escola, mas não refém do currículo escolar.

Para Duarte, a escola atualmente é feita atendendo a uma educação profissionalizante e desenvolvendo capacidades lógicas e técnicas, que corresponde a demanda do mercado de trabalho. Nesse sentindo, segundo este pensa-dor, a arte, a poesia é algo inútil do ponto de vista da demanda deste mercado. E se a arte é inútil qual o interesse pela arte por parte de institui-ções educativas que estão a serviço de uma sociedade capitalista, impulsionadora do consu-mo desenfreado, ignorando o valor das coisas materiais e espirituais?

O filotógrafo (filósofo-fotógrafo) Cesário ao falar da arte e sua inutilidade nos provoca a pensar sobre a sociedade que “mata” o indivíduo em nome de um suposto bem estar para todos, e ainda nos leva a pensar o caráter imprevisível e livre da arte.

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Como educador sensível e entusiasta de uma educação livre e com sentido Duarte denuncia a forma como a arte está na escola. A confusão que acontece, o absurdo que ocorre, em que boa parte dos profissionais da educação acha que a arte pode ser usada como um meio para adquirir conhecimento. Diz ainda que as aulas de Português “matam” a poesia e o poema e os transforma em “cadáveres a serem disseca-dos com os bisturis teóricos”, que o espaço escolar “transforma uma obra de arte num corpo sem vida e dele se vai extraindo os órgãos: objetos diretos, sinédoques, metáforas, metoní-mias etc”. Para Duarte esse procedimento liquida qualquer prazer de um encontro poético. Os estudantes são obrigados a ler um romance, para fichá-lo ou para se submeter a uma avalia-ção ou ainda porque tal obra literária será cobra-da no vestibular.

Cesário, como artista, poeta, também denuncia a estrutura dura da escola e adverte que para a inspiração acontecer não precisa de nenhuma atividade programada, ao contrário, é na imprevisibilidade do encontro de contextos e temperamentos que pode acontecer o nasci-mento do criador e da criação. Diz ainda que a educação quer confundir o hábito de medir, que

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é próprio da educação, “ao desejo descompro-missado de contemplar e sentir”.

Coloco-me diante de Duarte e de Cesário como alguém que quer desaprender o sentido da arte-educação e como uma curiosa que quer não descortinar o véu da arte, nem esgotar a compre-ensão dos descaminhos da educação, mas como uma menina que quer brincar, aprender e desaprender quando as coisas aprendidas estiverem sufocando. Quero educar-me e deseducar-me para poder romper com os regulamentos quando estes regularem demais. Aqui recordo-me de uma passagem do livro A escola que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir, de Rubem Alves, que ao falar da Escola da Ponte, ele inicia uma de suas crônicas nos contando sobre os mestres Zen. Rubem diz que esses educadores eram educadores estra-nhos, uma vez que não pretendiam ensinar, estes desejavam era desensinar. Avaliações de apren-dizagem para estes mestres, nem pensar. Mas estavam constantemente avaliando a desapren-dizagem dos seus discípulos. Eles se interessa-vam mesmo era pela desaprendizagem, quando esta acontecia, riam de felicidade.

Tenho compartilhado com os estudantes os poetas que gosto. E mesmo intuitivamente

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Como educador sensível e entusiasta de uma educação livre e com sentido Duarte denuncia a forma como a arte está na escola. A confusão que acontece, o absurdo que ocorre, em que boa parte dos profissionais da educação acha que a arte pode ser usada como um meio para adquirir conhecimento. Diz ainda que as aulas de Português “matam” a poesia e o poema e os transforma em “cadáveres a serem disseca-dos com os bisturis teóricos”, que o espaço escolar “transforma uma obra de arte num corpo sem vida e dele se vai extraindo os órgãos: objetos diretos, sinédoques, metáforas, metoní-mias etc”. Para Duarte esse procedimento liquida qualquer prazer de um encontro poético. Os estudantes são obrigados a ler um romance, para fichá-lo ou para se submeter a uma avalia-ção ou ainda porque tal obra literária será cobra-da no vestibular.

Cesário, como artista, poeta, também denuncia a estrutura dura da escola e adverte que para a inspiração acontecer não precisa de nenhuma atividade programada, ao contrário, é na imprevisibilidade do encontro de contextos e temperamentos que pode acontecer o nasci-mento do criador e da criação. Diz ainda que a educação quer confundir o hábito de medir, que

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é próprio da educação, “ao desejo descompro-missado de contemplar e sentir”.

Coloco-me diante de Duarte e de Cesário como alguém que quer desaprender o sentido da arte-educação e como uma curiosa que quer não descortinar o véu da arte, nem esgotar a compre-ensão dos descaminhos da educação, mas como uma menina que quer brincar, aprender e desaprender quando as coisas aprendidas estiverem sufocando. Quero educar-me e deseducar-me para poder romper com os regulamentos quando estes regularem demais. Aqui recordo-me de uma passagem do livro A escola que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir, de Rubem Alves, que ao falar da Escola da Ponte, ele inicia uma de suas crônicas nos contando sobre os mestres Zen. Rubem diz que esses educadores eram educadores estra-nhos, uma vez que não pretendiam ensinar, estes desejavam era desensinar. Avaliações de apren-dizagem para estes mestres, nem pensar. Mas estavam constantemente avaliando a desapren-dizagem dos seus discípulos. Eles se interessa-vam mesmo era pela desaprendizagem, quando esta acontecia, riam de felicidade.

Tenho compartilhado com os estudantes os poetas que gosto. E mesmo intuitivamente

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sabendo que a arte diz o indizível, que fala da realidade fugindo dela, Nietzsche: “nenhum artista tolera o real”. Sou capaz de apreender as palavras que os poetas me dizem com suas poesias em versos, imagens, pinturas, escultu-ras...

Há experiências belas acontecendo, há lugares habitados de sentimentos desenhados por crianças e adolescentes, que com fome e sede de beleza, se entregam à dança, ao teatro e à música... Compondo cenários íntimos e lúdicos. São espaços de encontros não-formais que vão na contramão da lógica da educação formal.

A arte nos possibilita encontrarmo-nos? Ou perdermo-nos em nosso próprio caminho? Como Duarte, acredito na possibilidade de uma educação menos adestradora, que verdadeira-mente perceba outras dimensões do ser huma-no, não apenas a razão, perceba outros canais de apreensão do mundo como bem faz Cesário, com a intuição, a estética e a imaginação. Também sou provocada por Rubem Alves quando diz no prefácio do livro Fundamentos Estéticos da Educação (Duarte Jr., 1995), que a educação na perspectiva da estética é uma causa possivelmente derrotada, uma vez que esta, pensada a partir da beleza “equivale afirmar que

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o poeta e músico são mais importantes que o banqueiro e o fabricante de armas”.

Se esses diálogos não iluminarem a nossa razão que ao menos nos desvele a desrazão, o “acriançamento das palavras” como disse Manoel de Barros.

Brinquemos então.

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sabendo que a arte diz o indizível, que fala da realidade fugindo dela, Nietzsche: “nenhum artista tolera o real”. Sou capaz de apreender as palavras que os poetas me dizem com suas poesias em versos, imagens, pinturas, escultu-ras...

Há experiências belas acontecendo, há lugares habitados de sentimentos desenhados por crianças e adolescentes, que com fome e sede de beleza, se entregam à dança, ao teatro e à música... Compondo cenários íntimos e lúdicos. São espaços de encontros não-formais que vão na contramão da lógica da educação formal.

A arte nos possibilita encontrarmo-nos? Ou perdermo-nos em nosso próprio caminho? Como Duarte, acredito na possibilidade de uma educação menos adestradora, que verdadeira-mente perceba outras dimensões do ser huma-no, não apenas a razão, perceba outros canais de apreensão do mundo como bem faz Cesário, com a intuição, a estética e a imaginação. Também sou provocada por Rubem Alves quando diz no prefácio do livro Fundamentos Estéticos da Educação (Duarte Jr., 1995), que a educação na perspectiva da estética é uma causa possivelmente derrotada, uma vez que esta, pensada a partir da beleza “equivale afirmar que

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o poeta e músico são mais importantes que o banqueiro e o fabricante de armas”.

Se esses diálogos não iluminarem a nossa razão que ao menos nos desvele a desrazão, o “acriançamento das palavras” como disse Manoel de Barros.

Brinquemos então.

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(...) Se a própria vida é biologica-mente estética e se o próprio cosmo é primariamente um evento estético, então a beleza não é apenas um acessório cultural, uma categoria filosófica, um domínio das artes, ou mesmo uma prerroga-tiva do espírito humano. Ela sempre permaneceu indefinível, porque é uma testemunha sensori-al daquilo que está fundamental-mente para além da compreensão humana.

(James Hillman)

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Entrevista com o professor e psicólogo Francisco Duarte Jr. – 18.01.11

Maisa Antunes – Duarte Júnior, o que é arte-educação?

Duarte Jr. – Olha, lá no início de minhas reflexões eu comecei a pensar na arte como um fator de conhecimento, como um tipo de saber, um saber distinto de outros tipos de conhecimento, como a ciência e a filosofia. Para mim, a arte-educação seria uma maneira de utilizarmos a arte para desenvolver o que, mais tarde, eu viria a chamar de saber sensível, esse saber que o nosso corpo detém e embasa todo o conhecimento intelectual. Porém, hoje, eu ando pensando muito mais em educação estética, na qual a arte-educação estaria contida, ou seja, a educação estética seria uma maneira de educarmos esse saber sensível, que é o saber não-racional, o saber que é dado, basicamente, pelo nosso corpo, pela nossa sensibilidade e que pode ser educado de muitas maneiras. A arte seria uma dessas maneiras. Então, arte-educação, para mim, hoje, estaria inserida nisso

Por Maisa Antunes

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(...) Se a própria vida é biologica-mente estética e se o próprio cosmo é primariamente um evento estético, então a beleza não é apenas um acessório cultural, uma categoria filosófica, um domínio das artes, ou mesmo uma prerroga-tiva do espírito humano. Ela sempre permaneceu indefinível, porque é uma testemunha sensori-al daquilo que está fundamental-mente para além da compreensão humana.

(James Hillman)

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Entrevista com o professor e psicólogo Francisco Duarte Jr. – 18.01.11

Maisa Antunes – Duarte Júnior, o que é arte-educação?

Duarte Jr. – Olha, lá no início de minhas reflexões eu comecei a pensar na arte como um fator de conhecimento, como um tipo de saber, um saber distinto de outros tipos de conhecimento, como a ciência e a filosofia. Para mim, a arte-educação seria uma maneira de utilizarmos a arte para desenvolver o que, mais tarde, eu viria a chamar de saber sensível, esse saber que o nosso corpo detém e embasa todo o conhecimento intelectual. Porém, hoje, eu ando pensando muito mais em educação estética, na qual a arte-educação estaria contida, ou seja, a educação estética seria uma maneira de educarmos esse saber sensível, que é o saber não-racional, o saber que é dado, basicamente, pelo nosso corpo, pela nossa sensibilidade e que pode ser educado de muitas maneiras. A arte seria uma dessas maneiras. Então, arte-educação, para mim, hoje, estaria inserida nisso

Por Maisa Antunes

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que eu chamo de educação estética ou educação do sensível.

M. A. – Neste sentido, a arte assumiria uma função pedagógica?

Duarte Jr. – Neste sentido, sim. Quer dizer, a arte seria uma maneira de simbolizarmos, de tornarmos concreto, visível, palpável, essa dimensão intangível do saber humano que é o sentimento, aquilo que é sentido pelo nosso corpo. A arte é uma tentativa de se construir formas que simbolizem isso. Ao ter contato com essas formas eu reconheço, nelas, sentimentos meus – sentimento num sentido mais amplo, não significando apenas a emoção – sentimento significando um estar no mundo, nosso perceber o mundo, nossa percepção das coisas. Então, a arte seria uma simbolização desse mundo sensível, disso que está para além das palavras e dos conceitos lógicos.

M. A. – Como seria essa relação entre a Arte e a Educação?

Duarte Jr. – É uma relação complexa, em se tratando do mundo em que estamos vivendo, no qual a Educação é pensada tão-só para desenvolver capacidades lógicas, capacidades técnicas. A arte nessa visão educacional do mundo contemporâneo

- 14 -

fica meio desajustada, mas existem experiências que vão contra a corrente. Ao longo da história sempre houve pessoas como Herbert Read, que pensou a arte como fundamento da educação, quer dizer, a educação, segundo ele, começaria na dimensão sensível, e a razão e o pensamento surgiriam como um aprimoramento de alguma coisa que começa nessa dimensão sensível; esse seria o ideal: a arte como base da educação. Infelizmente no mundo que estamos vivendo a arte se tornou somente um elemento curricular a mais, e o mais trágico é que setores ligados à própria arte-educação, de certa maneira, capitularam e passaram a entender a arte assim, como um dos itens do currículo.

M. A. – O que você acha disso?

Duarte Jr. – Eu acho um retrocesso, uma regressão, uma destruição da proposta original de arte-educação. Isso que está acontecendo hoje, na escola – estou falando de uma maneira geral, é evidente que existem as exceções – de se considerar a arte como um conteúdo, é muito empobrecedor, na medida em que o conteúdo entendido por essas pessoas é lógico-conceitual, ou seja: História da Arte, Crítica de Arte, Filosofia da Arte, quer dizer, o que se chama hoje de leitura da obra de arte não é nada mais do que se falar sobre a obra de arte. Eu acho isso muito complicado. Perceba que ao longo da história do ensino de arte se observa ora uma

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que eu chamo de educação estética ou educação do sensível.

M. A. – Neste sentido, a arte assumiria uma função pedagógica?

Duarte Jr. – Neste sentido, sim. Quer dizer, a arte seria uma maneira de simbolizarmos, de tornarmos concreto, visível, palpável, essa dimensão intangível do saber humano que é o sentimento, aquilo que é sentido pelo nosso corpo. A arte é uma tentativa de se construir formas que simbolizem isso. Ao ter contato com essas formas eu reconheço, nelas, sentimentos meus – sentimento num sentido mais amplo, não significando apenas a emoção – sentimento significando um estar no mundo, nosso perceber o mundo, nossa percepção das coisas. Então, a arte seria uma simbolização desse mundo sensível, disso que está para além das palavras e dos conceitos lógicos.

M. A. – Como seria essa relação entre a Arte e a Educação?

Duarte Jr. – É uma relação complexa, em se tratando do mundo em que estamos vivendo, no qual a Educação é pensada tão-só para desenvolver capacidades lógicas, capacidades técnicas. A arte nessa visão educacional do mundo contemporâneo

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fica meio desajustada, mas existem experiências que vão contra a corrente. Ao longo da história sempre houve pessoas como Herbert Read, que pensou a arte como fundamento da educação, quer dizer, a educação, segundo ele, começaria na dimensão sensível, e a razão e o pensamento surgiriam como um aprimoramento de alguma coisa que começa nessa dimensão sensível; esse seria o ideal: a arte como base da educação. Infelizmente no mundo que estamos vivendo a arte se tornou somente um elemento curricular a mais, e o mais trágico é que setores ligados à própria arte-educação, de certa maneira, capitularam e passaram a entender a arte assim, como um dos itens do currículo.

M. A. – O que você acha disso?

Duarte Jr. – Eu acho um retrocesso, uma regressão, uma destruição da proposta original de arte-educação. Isso que está acontecendo hoje, na escola – estou falando de uma maneira geral, é evidente que existem as exceções – de se considerar a arte como um conteúdo, é muito empobrecedor, na medida em que o conteúdo entendido por essas pessoas é lógico-conceitual, ou seja: História da Arte, Crítica de Arte, Filosofia da Arte, quer dizer, o que se chama hoje de leitura da obra de arte não é nada mais do que se falar sobre a obra de arte. Eu acho isso muito complicado. Perceba que ao longo da história do ensino de arte se observa ora uma

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tendência de se pensar a arte como experiência, ora de se pensar a arte como conteúdo; as coisas oscilam entre esses dois pólos. Na verdade, isso é uma falsa polaridade, pois a arte é essencialmente uma experiência e o seu conteúdo é precisamente s e r e l a u m a e x p e r i ê n c i a . V a m o s f a l a r metaforicamente: você pode dar um curso de natação e levar apostilas sobre água, sobre os estados físicos e tipos da água: água limpa, água suja, água de rio... todos os estudos possíveis sobre a água; estudos sobre movimentos musculares; estudos sobre natação e assim você faz um brilhante curso teórico sobre o que é nadar; você apresenta vídeos sobre nadadores e pessoas nadando e tal, e, no final, os aprendizes fazem uma prova teórica e você dá um diploma de nadador a eles. É mais ou menos isto que está acontecendo com a arte hoje, quer dizer, estão sendo ministrados cursos sobre a arte dentro da escola sem as pessoas terem a experiência da arte, sem as pessoas terem a experiência de “caírem na água” e aprender com a “experiência da água”, no caso, com a experiência estética. Todo o saber que você pode ter sobre natação e que, por certo pode ser aprimorado até com teorias, tudo isso só tem sentido depois que você “caiu na piscina”, que aprendeu a nadar, depois que seu corpo conheceu a água. É a mesma coisa com a arte, ou seja, História da Arte, Sociologia da Arte, Filosofia da Arte, todos esses saberes são importantes, mas depois que você tenha uma

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formação sensível com a arte. O que acho falta na escola, hoje, é essa experiência: o mergulho na experiência estética, o face a face com a arte.

M. A. – Nesse caso, qual seria a função da Arte na Educação?

Duarte Jr. - A função da Arte na Educação seria, exatamente, permitir experiências sensíveis de se vivenciar realidades outras que não estão acessíveis em nosso cotidiano, mas que, ao se assistir um filme, ao se ver uma peça de teatro, ao se ler um romance, torna-se possível se viver as experiências de outros seres humanos – somos capazes de vivenciá-las, ainda que de um modo simbólico, ficcional, de “faz-de-conta”, digamos assim. A arte é um grande “faz-de-conta”, no fundo, um grande jogo. Alguns filósofos dizem mesmo que quando você vai ao cinema, ao teatro, quando tem um contato com a arte, você tem que suspender a descrença, isto é, tem que acreditar no que está sendo proposto, tem que aceitar o jogo. Se logo na primeira linha eu não aceitar ser possível o fato de Gregor Samsa estar acordando transformado num enorme inseto eu não participarei o jogo proposto por Kafka nas demais páginas de seu “A Metamorfose”, não terei uma experiência estética com aquele universo.

O jogo da arte consiste em você se emocionar

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tendência de se pensar a arte como experiência, ora de se pensar a arte como conteúdo; as coisas oscilam entre esses dois pólos. Na verdade, isso é uma falsa polaridade, pois a arte é essencialmente uma experiência e o seu conteúdo é precisamente s e r e l a u m a e x p e r i ê n c i a . V a m o s f a l a r metaforicamente: você pode dar um curso de natação e levar apostilas sobre água, sobre os estados físicos e tipos da água: água limpa, água suja, água de rio... todos os estudos possíveis sobre a água; estudos sobre movimentos musculares; estudos sobre natação e assim você faz um brilhante curso teórico sobre o que é nadar; você apresenta vídeos sobre nadadores e pessoas nadando e tal, e, no final, os aprendizes fazem uma prova teórica e você dá um diploma de nadador a eles. É mais ou menos isto que está acontecendo com a arte hoje, quer dizer, estão sendo ministrados cursos sobre a arte dentro da escola sem as pessoas terem a experiência da arte, sem as pessoas terem a experiência de “caírem na água” e aprender com a “experiência da água”, no caso, com a experiência estética. Todo o saber que você pode ter sobre natação e que, por certo pode ser aprimorado até com teorias, tudo isso só tem sentido depois que você “caiu na piscina”, que aprendeu a nadar, depois que seu corpo conheceu a água. É a mesma coisa com a arte, ou seja, História da Arte, Sociologia da Arte, Filosofia da Arte, todos esses saberes são importantes, mas depois que você tenha uma

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formação sensível com a arte. O que acho falta na escola, hoje, é essa experiência: o mergulho na experiência estética, o face a face com a arte.

M. A. – Nesse caso, qual seria a função da Arte na Educação?

Duarte Jr. - A função da Arte na Educação seria, exatamente, permitir experiências sensíveis de se vivenciar realidades outras que não estão acessíveis em nosso cotidiano, mas que, ao se assistir um filme, ao se ver uma peça de teatro, ao se ler um romance, torna-se possível se viver as experiências de outros seres humanos – somos capazes de vivenciá-las, ainda que de um modo simbólico, ficcional, de “faz-de-conta”, digamos assim. A arte é um grande “faz-de-conta”, no fundo, um grande jogo. Alguns filósofos dizem mesmo que quando você vai ao cinema, ao teatro, quando tem um contato com a arte, você tem que suspender a descrença, isto é, tem que acreditar no que está sendo proposto, tem que aceitar o jogo. Se logo na primeira linha eu não aceitar ser possível o fato de Gregor Samsa estar acordando transformado num enorme inseto eu não participarei o jogo proposto por Kafka nas demais páginas de seu “A Metamorfose”, não terei uma experiência estética com aquele universo.

O jogo da arte consiste em você se emocionar

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com aquilo que está acontecendo na obra, como se fosse verdade, é o jogo do “como se”, e é muito parecido com um jogo infantil, por exemplo, aquele em que a criança sobe em um cabo de vassoura e se comporta como se ele fosse um cavalo. Na arte é a mesma coisa: tem-se uma experiência e eu me comporto como se estivesse vivendo uma realidade, a qual, embora fictícia, e mesmo eu sabendo disso, o meu cérebro faz com que eu a vivencie intensamente. Isso é uma função muito importante da arte: fazer com que a gente explore sentimentos, tenha vivências e conheça realidades de outros seres humanos, de outras culturas, mesmo isto ocorrendo no modo do “como se”. A filósofa Susanne Langer diz que é exatamente por eu saber que é uma grande mentira, um faz-de-conta, o que estou vivendo, que eu me permito viver experiências aterradoras, como as que existem num filme de terror. As experiências mais brutais eu posso assistir no teatro ou no cinema porque eu sei que aquilo é uma ficção e, portanto, eu me permito sentir coisas das quais fujo em meu cotidiano. Eu acho que isso constitui um dos papéis mais fundamentais da arte: permitir que a gente vivencie a experiência de outros seres humanos, que a gente se entregue a elas sem medo ou preconceitos.

M. A. – A arte pode ser ensinada na escola? Qual é a sua opinião?

Duarte Jr. - Acho que você tem níveis de

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aprendizado em relação à arte. O aprendizado mais fundamental é o aprendizado do espectador, quer dizer, você aprende a ser espectador. Mas como é que se aprende a ser espectador de arte? Assistindo arte, ouvindo arte, vendo arte, lendo arte. Você tem que descobrir e aprender os códigos do cinema, do teatro, da música, do poema, inclusive com seus distintos subcódigos. As pessoas dizem: isso são as linguagens da arte. Eu não gosto dessa terminologia, prefiro dizer que são diferentes códigos. Nós humanos possuímos vários códigos distintos. Por exemplo, a chamada música erudita é composta em códigos diferentes daqueles empregados no samba, por exemplo; são músicas compostas em códigos diferentes. E se considerarmos a música indiana, ela constitui um código ainda mais diferente. Como é que podemos aprender esses códigos todos? Sendo espectador. Assistindo, ouvindo, esse é o aprendizado mais básico. Todos os outros decorrem deste. Como eu disse anteriormente, é a experiência com a arte, a experiência do ser espectador de arte, o nosso ponto de partida. A partir dele se pode desenvolver a reflexão; pode-se estudar Filosofia da Arte, Crítica de Arte, História da Arte... E ainda se ter um aprendizado técnico: aprender a pintar, a desenhar, a tocar algum instrumento, aprender a desempenhar um papel como ator, aprender a dançar etc. Quer dizer: esse aprendizado de técnicas artísticas precisa decorrer desse

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com aquilo que está acontecendo na obra, como se fosse verdade, é o jogo do “como se”, e é muito parecido com um jogo infantil, por exemplo, aquele em que a criança sobe em um cabo de vassoura e se comporta como se ele fosse um cavalo. Na arte é a mesma coisa: tem-se uma experiência e eu me comporto como se estivesse vivendo uma realidade, a qual, embora fictícia, e mesmo eu sabendo disso, o meu cérebro faz com que eu a vivencie intensamente. Isso é uma função muito importante da arte: fazer com que a gente explore sentimentos, tenha vivências e conheça realidades de outros seres humanos, de outras culturas, mesmo isto ocorrendo no modo do “como se”. A filósofa Susanne Langer diz que é exatamente por eu saber que é uma grande mentira, um faz-de-conta, o que estou vivendo, que eu me permito viver experiências aterradoras, como as que existem num filme de terror. As experiências mais brutais eu posso assistir no teatro ou no cinema porque eu sei que aquilo é uma ficção e, portanto, eu me permito sentir coisas das quais fujo em meu cotidiano. Eu acho que isso constitui um dos papéis mais fundamentais da arte: permitir que a gente vivencie a experiência de outros seres humanos, que a gente se entregue a elas sem medo ou preconceitos.

M. A. – A arte pode ser ensinada na escola? Qual é a sua opinião?

Duarte Jr. - Acho que você tem níveis de

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aprendizado em relação à arte. O aprendizado mais fundamental é o aprendizado do espectador, quer dizer, você aprende a ser espectador. Mas como é que se aprende a ser espectador de arte? Assistindo arte, ouvindo arte, vendo arte, lendo arte. Você tem que descobrir e aprender os códigos do cinema, do teatro, da música, do poema, inclusive com seus distintos subcódigos. As pessoas dizem: isso são as linguagens da arte. Eu não gosto dessa terminologia, prefiro dizer que são diferentes códigos. Nós humanos possuímos vários códigos distintos. Por exemplo, a chamada música erudita é composta em códigos diferentes daqueles empregados no samba, por exemplo; são músicas compostas em códigos diferentes. E se considerarmos a música indiana, ela constitui um código ainda mais diferente. Como é que podemos aprender esses códigos todos? Sendo espectador. Assistindo, ouvindo, esse é o aprendizado mais básico. Todos os outros decorrem deste. Como eu disse anteriormente, é a experiência com a arte, a experiência do ser espectador de arte, o nosso ponto de partida. A partir dele se pode desenvolver a reflexão; pode-se estudar Filosofia da Arte, Crítica de Arte, História da Arte... E ainda se ter um aprendizado técnico: aprender a pintar, a desenhar, a tocar algum instrumento, aprender a desempenhar um papel como ator, aprender a dançar etc. Quer dizer: esse aprendizado de técnicas artísticas precisa decorrer desse

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aprendizado básico, que se obtém primeiramente como espectador.

O papel da escola formal não é levar até as últimas conseqüências esse aprendizado técnico: o seu papel deveria ser, fundamentalmente, o de formar espectadores. E é evidente que se deveria ter um espaço na escola onde as pessoas pudessem aprender técnicas de pintura, de teatro, desde que isso, inclusive, fosse opcional, isto é, o aluno que quiser aprender pintura vai aprender sem ser obrigado. Sei que a gente está falando de uma escola ideal, mas a arte pode ser ensinada? Não sei se ela pode ser ensinada, mas pode ser aprendida, e isto significa entender-se o professor como um facilitador da aprendizagem – sendo a primeira essa aprendizagem dos códigos – é preciso que se aprenda a ser espectador. Eu necessito aprender que aqueles códigos que estão sendo colocados são símbolos de sentimentos, de emoções, situações e vivências humanas. Se você considerar, por exemplo, a história de uma arte recente como o cinema, que tem pouco mais do que cem anos, uma das últimas artes surgidas — excluindo a internet, os vídeos, que no entanto, decorrem do cinema – se vê que ele foi construindo, educando os seus espectadores. Pode-se partir dos filmes mudos lá do começo do século passado e se perceber como foram construídos os códigos, como eles foram evoluindo e como o espectador foi tendo que aprender tudo isso. No início do cinema havia a

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figura do explicador: uma pessoa que ficava de pé, ao lado da tela explicando coisas para a platéia; por exemplo: no filme alguém vinha e batia numa porta; imediatamente se cortava a cena para dentro da residência, e se via outra personagem abrindo essa porta; mas o espectador do começo do cinema não conseguia relacionar as duas coisas, que uma personagem estava abrindo uma porta para a outra, que havia batido nela uma cena antes. Era necessária, então, a figura do explicador, que descrevia esses detalhes do código cinematográfico, e assim se foi formando um público, que gradativamente aprendia os códigos daquela nova arte: o espectador foi aprendendo a ser espectador. Orson Wells, por exemplo, inventou o flash back no cinema, em seu Cidadão Kane e o público teve que assimilar essa nova forma de narrar.

A escola pode fazer isso. Seria esse o seu trabalho fundamental: a escola facilitando o aprendizado do espectador. Por certo essa experiência pode e deve ser acompanhada de reflexão, primeiramente uma reflexão sobre a própria experiência estética que se está tendo como espectador. Como complemento, então, poder-se-ia ministrar História da Arte, Crítica de Arte, Filosofia da Arte, Sociologia da Arte, tudo isso, mais a experiência do aprendizado técnico: pintar, dançar, tocar instrumentos, escrever poemas etc.

M. A. - Então, você defende o ensino da arte.- 21 -

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aprendizado básico, que se obtém primeiramente como espectador.

O papel da escola formal não é levar até as últimas conseqüências esse aprendizado técnico: o seu papel deveria ser, fundamentalmente, o de formar espectadores. E é evidente que se deveria ter um espaço na escola onde as pessoas pudessem aprender técnicas de pintura, de teatro, desde que isso, inclusive, fosse opcional, isto é, o aluno que quiser aprender pintura vai aprender sem ser obrigado. Sei que a gente está falando de uma escola ideal, mas a arte pode ser ensinada? Não sei se ela pode ser ensinada, mas pode ser aprendida, e isto significa entender-se o professor como um facilitador da aprendizagem – sendo a primeira essa aprendizagem dos códigos – é preciso que se aprenda a ser espectador. Eu necessito aprender que aqueles códigos que estão sendo colocados são símbolos de sentimentos, de emoções, situações e vivências humanas. Se você considerar, por exemplo, a história de uma arte recente como o cinema, que tem pouco mais do que cem anos, uma das últimas artes surgidas — excluindo a internet, os vídeos, que no entanto, decorrem do cinema – se vê que ele foi construindo, educando os seus espectadores. Pode-se partir dos filmes mudos lá do começo do século passado e se perceber como foram construídos os códigos, como eles foram evoluindo e como o espectador foi tendo que aprender tudo isso. No início do cinema havia a

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figura do explicador: uma pessoa que ficava de pé, ao lado da tela explicando coisas para a platéia; por exemplo: no filme alguém vinha e batia numa porta; imediatamente se cortava a cena para dentro da residência, e se via outra personagem abrindo essa porta; mas o espectador do começo do cinema não conseguia relacionar as duas coisas, que uma personagem estava abrindo uma porta para a outra, que havia batido nela uma cena antes. Era necessária, então, a figura do explicador, que descrevia esses detalhes do código cinematográfico, e assim se foi formando um público, que gradativamente aprendia os códigos daquela nova arte: o espectador foi aprendendo a ser espectador. Orson Wells, por exemplo, inventou o flash back no cinema, em seu Cidadão Kane e o público teve que assimilar essa nova forma de narrar.

A escola pode fazer isso. Seria esse o seu trabalho fundamental: a escola facilitando o aprendizado do espectador. Por certo essa experiência pode e deve ser acompanhada de reflexão, primeiramente uma reflexão sobre a própria experiência estética que se está tendo como espectador. Como complemento, então, poder-se-ia ministrar História da Arte, Crítica de Arte, Filosofia da Arte, Sociologia da Arte, tudo isso, mais a experiência do aprendizado técnico: pintar, dançar, tocar instrumentos, escrever poemas etc.

M. A. - Então, você defende o ensino da arte.- 21 -

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Duarte Jr.estar presente na escola, porém, em um sentido ideal, talvez ela não devesse fazer parte de um currículo, mas devesse fazer parte da escola. Em outras palavras, penso que deveria haver um espaço para as aulas formais e um espaço cultural no qual houvesse teatro, dança, espetáculos para as pessoas assistirem e discutirem com os professores, um momento que não se caracterizasse como uma aula formal, pois esse caráter de aula formal de cinquenta minutos é uma das coisas que descaracterizam muito a Arte na escola.

M. A. – A arte educa?

Duarte Jr. – Sim, em muitos sentidos. Precisamente a arte educa essa nossa dimensão que não pode ser educada racionalmente, a dimensão da sensibilidade, do perceber e sentir o mundo de outra maneira, de refinar a nossa percepção, os nossos sentimentos. A arte educa primordialmente neste sentido. Outras coisas também nos educam esteticamente, não somente a arte, por isso eu disse que hoje ando pensando a educação estética de um modo mais amplo. Tenho, por exemplo, planejado escrever sobre a comida como aprendizado estético; refletir sobre como a comida mobiliza em nós todos os sentidos: paladar, olfato, tato, gustação, audição, e como, por isso, ela é um elemento para a educação da sensibilidade e

- Sim, sim. Eu acho que a Arte deve

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também da convivência, não é? A gente está vivendo em um mundo que se verifica uma regressão da sensibilidade, um mundo no qual o espaço da convivência e o espaço da alimentação vão se tornando insignificantes, no sentido de essas atividades irem se tornando mecânicas, com as redes de fast food se parecendo mais com postos de combustível em que se para e simplesmente se abastece. A alimentação cotidiana vem se tornando muito mais funcional do que sensível. Mas isso é uma discussão muito longa e que fica para outra oportunidade.

M. A. – Duarte, a arte pode ser um instrumento na formação das pessoas?

Duarte Jr. - Formação humana, você quer dizer?

M. A. – Sim.

Duarte Jr. – Creio que sim. Penso que seja ela bastante responsável pela dimensão da sensibilidade, da convivência, do compreender o outro de que tanto necessitamos. As palavras empatia e compaixão se aplicam bem ao que a arte produz em nós. Sentimos empatia e compaixão pelo outro quando compreendemos o que o outro está sentindo. Compartilhar com ele um sentimento, um sentido vivencial, é, de certa maneira, o fundamento da Ética: saber a dor do

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Duarte Jr.estar presente na escola, porém, em um sentido ideal, talvez ela não devesse fazer parte de um currículo, mas devesse fazer parte da escola. Em outras palavras, penso que deveria haver um espaço para as aulas formais e um espaço cultural no qual houvesse teatro, dança, espetáculos para as pessoas assistirem e discutirem com os professores, um momento que não se caracterizasse como uma aula formal, pois esse caráter de aula formal de cinquenta minutos é uma das coisas que descaracterizam muito a Arte na escola.

M. A. – A arte educa?

Duarte Jr. – Sim, em muitos sentidos. Precisamente a arte educa essa nossa dimensão que não pode ser educada racionalmente, a dimensão da sensibilidade, do perceber e sentir o mundo de outra maneira, de refinar a nossa percepção, os nossos sentimentos. A arte educa primordialmente neste sentido. Outras coisas também nos educam esteticamente, não somente a arte, por isso eu disse que hoje ando pensando a educação estética de um modo mais amplo. Tenho, por exemplo, planejado escrever sobre a comida como aprendizado estético; refletir sobre como a comida mobiliza em nós todos os sentidos: paladar, olfato, tato, gustação, audição, e como, por isso, ela é um elemento para a educação da sensibilidade e

- Sim, sim. Eu acho que a Arte deve

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também da convivência, não é? A gente está vivendo em um mundo que se verifica uma regressão da sensibilidade, um mundo no qual o espaço da convivência e o espaço da alimentação vão se tornando insignificantes, no sentido de essas atividades irem se tornando mecânicas, com as redes de fast food se parecendo mais com postos de combustível em que se para e simplesmente se abastece. A alimentação cotidiana vem se tornando muito mais funcional do que sensível. Mas isso é uma discussão muito longa e que fica para outra oportunidade.

M. A. – Duarte, a arte pode ser um instrumento na formação das pessoas?

Duarte Jr. - Formação humana, você quer dizer?

M. A. – Sim.

Duarte Jr. – Creio que sim. Penso que seja ela bastante responsável pela dimensão da sensibilidade, da convivência, do compreender o outro de que tanto necessitamos. As palavras empatia e compaixão se aplicam bem ao que a arte produz em nós. Sentimos empatia e compaixão pelo outro quando compreendemos o que o outro está sentindo. Compartilhar com ele um sentimento, um sentido vivencial, é, de certa maneira, o fundamento da Ética: saber a dor do

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outro. Esse é o aprendizado fundamental que a arte nos dá: ter a experiência de outras pessoas, saber o que o outro está sentindo, aprender o sentimento do outro, inclusive de povos diferentes, de situações diferentes. Essa formação humana, acredito, seja o que de mais fundamental nos dê a arte. Contudo, acho que não devemos ter uma visão muito romântica de que a arte sozinha, por si mesma, forma as pessoas, pois existe toda uma dimensão ética que deve ser discutida ao lado da arte. E este é um ponto que enfatizo muito no trabalho com meus alunos.

Não sei se você conhece um documentário do Peter Cohen que se chama “Arquitetura da Destruição”, um filme fundamental sobre a dimensão estética do nazismo. Hitler era um pintor de aquarela, todos os membros da SS nazista tinham um pé na arte: eram pintores, violinistas, poetas... Precisamente esse documentário discute como o nazismo era um fenômeno, antes de político, estético. Hitler queria “embelezar” o mundo, queria acabar com tudo aquilo que era “feio” e “por acaso” os negros, os judeus e os homossexuais faziam parte dessas “coisas feias”. Assim, o que o filme nos mostra é o projeto nazista como uma busca de Hitler de um mundo “bonito”, ao modo dele, claro. A gente tem que tomar o cuidado de não acreditar que apenas a arte em si mesma consiga produzir pessoas boas, eticamente

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falando. No entanto, a arte é um fundamento a partir do qual se pode discutir Ética, relações humanas, cidadania, tudo isso, mas são dimensões complementares: o sensível e o inteligível. Eu tenho muito medo dessa visão romântica segundo a qual a arte vai nos libertar... Da mesma forma como o Nazismo era profundamente estético, existem certos psicopatas, certos “Serial Killers” que pretendem imprimir um caráter estético em seus assassinatos. Vamos devagar com esse romantismo que, inclusive, é muito perigoso.

M. A. - A arte ajuda a educação?

Duarte Jr. - Acredito firmemente que sim. Há, inclusive, discussões se pessoas mais sensíveis, mais atentas às percepções diferentes de mundo não se tornam cientistas melhores. Por exemplo, como é que as grandes descobertas da Razão se apoiaram em sensações estéticas, em construções estéticas? Einstein falava muito sobre isso: que a razão era um produto final de todo um sentimento, de visões de mundo, imagens ligadas à estética, ao sensível; então essa conexão entre o conhecimento inteligível e o saber sensível é bastante forte; Arte e Ciência estão muito próximas e, infelizmente, aparecem separadas na nossa educação, na nossa modernidade. Uma pessoa que considero muito interessante é o professor Jorge Albuquerque Vieira, um engenheiro (de formação) que trabalha

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outro. Esse é o aprendizado fundamental que a arte nos dá: ter a experiência de outras pessoas, saber o que o outro está sentindo, aprender o sentimento do outro, inclusive de povos diferentes, de situações diferentes. Essa formação humana, acredito, seja o que de mais fundamental nos dê a arte. Contudo, acho que não devemos ter uma visão muito romântica de que a arte sozinha, por si mesma, forma as pessoas, pois existe toda uma dimensão ética que deve ser discutida ao lado da arte. E este é um ponto que enfatizo muito no trabalho com meus alunos.

Não sei se você conhece um documentário do Peter Cohen que se chama “Arquitetura da Destruição”, um filme fundamental sobre a dimensão estética do nazismo. Hitler era um pintor de aquarela, todos os membros da SS nazista tinham um pé na arte: eram pintores, violinistas, poetas... Precisamente esse documentário discute como o nazismo era um fenômeno, antes de político, estético. Hitler queria “embelezar” o mundo, queria acabar com tudo aquilo que era “feio” e “por acaso” os negros, os judeus e os homossexuais faziam parte dessas “coisas feias”. Assim, o que o filme nos mostra é o projeto nazista como uma busca de Hitler de um mundo “bonito”, ao modo dele, claro. A gente tem que tomar o cuidado de não acreditar que apenas a arte em si mesma consiga produzir pessoas boas, eticamente

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falando. No entanto, a arte é um fundamento a partir do qual se pode discutir Ética, relações humanas, cidadania, tudo isso, mas são dimensões complementares: o sensível e o inteligível. Eu tenho muito medo dessa visão romântica segundo a qual a arte vai nos libertar... Da mesma forma como o Nazismo era profundamente estético, existem certos psicopatas, certos “Serial Killers” que pretendem imprimir um caráter estético em seus assassinatos. Vamos devagar com esse romantismo que, inclusive, é muito perigoso.

M. A. - A arte ajuda a educação?

Duarte Jr. - Acredito firmemente que sim. Há, inclusive, discussões se pessoas mais sensíveis, mais atentas às percepções diferentes de mundo não se tornam cientistas melhores. Por exemplo, como é que as grandes descobertas da Razão se apoiaram em sensações estéticas, em construções estéticas? Einstein falava muito sobre isso: que a razão era um produto final de todo um sentimento, de visões de mundo, imagens ligadas à estética, ao sensível; então essa conexão entre o conhecimento inteligível e o saber sensível é bastante forte; Arte e Ciência estão muito próximas e, infelizmente, aparecem separadas na nossa educação, na nossa modernidade. Uma pessoa que considero muito interessante é o professor Jorge Albuquerque Vieira, um engenheiro (de formação) que trabalha

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com Cosmologia e hoje é professor do curso de Dança na PUC de São Paulo. Como exemplo, ele é um dos muitos que refletem sobre essa conexão entre Arte e Ciência. Em seus escritos e suas palestras procura sempre mostrar que a nossa humana visão do universo, a nossa construção dos mais amplos sentidos, inclusive através da ciência, é profundamente estética.

M. A. – Dentro desse contexto da arte-educação, da arte na escola... A educação ajuda a arte?

Duarte Jr. – Depende de que educação nós estamos falando.

M. A. – Da educação escolar.

Duarte Jr. – Do jeito que ela está ocorrendo hoje, acho que até afasta as crianças da arte. A escola atualmente é feita para a educação profissio-nalizante, uma educação para se prestar vestibular, para se entrar no mercado de trabalho, quer dizer, a arte, vale dizer a poesia em sentido amplo, é algo inútil do ponto de vista do mercado de trabalho. Para esse tipo de escola a Arte é vista como algo não sério, algo que não tem utilidade. Para uma escola que pretenda a formação do ser humano, sim, a arte é importante e a escola é importante para a arte, elas se complementam, mas para uma escola baseada

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numa visão profissionalizante, numa visão funcionalista, não, a aula de arte atrapalha, esse tempo poderia muito bem ser ocupado pelo ensino da matemática ou do português, que são mais úteis. Esse é o tipo de escola que a gente construiu e na qual a esmagadora maioria acredita.

M. A. – Em seu novo livro – A montanha e o videogame – qual reflexão você traz sobre arte-educação?

Duarte Jr. – O que eu estava falando acerca de se ficar ensinando Teoria da Arte e não se ter experiência estética nenhuma é algo que acontece há muito tempo dentro das aulas de Português. Digo isso porque nesse novo livro há um ensaio intitulado “O Poético, a Poesia e o Poema na Educação Estética” no qual discuto um pouco isto. Penso que a Poesia, no sentido dos poemas, é algo que tem que ser tratada dentro das aulas de arte e não ficar restrita à aula de Português, porque em geral os poemas nas aulas de Português se tornam cadáveres a serem dissecados com os bisturis teóricos. Transforma-se uma obra de arte num corpo sem vida e dele se vai extraindo os órgãos: objetos diretos, sinédoques, metáforas, metonímias etc. E o que, com esse procedimento, acaba morto no estudante é qualquer tesão pela literatura, qualquer prazer de um encontro poético. A mesma coisa se faz com os romances, não é? Obriga-se o

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com Cosmologia e hoje é professor do curso de Dança na PUC de São Paulo. Como exemplo, ele é um dos muitos que refletem sobre essa conexão entre Arte e Ciência. Em seus escritos e suas palestras procura sempre mostrar que a nossa humana visão do universo, a nossa construção dos mais amplos sentidos, inclusive através da ciência, é profundamente estética.

M. A. – Dentro desse contexto da arte-educação, da arte na escola... A educação ajuda a arte?

Duarte Jr. – Depende de que educação nós estamos falando.

M. A. – Da educação escolar.

Duarte Jr. – Do jeito que ela está ocorrendo hoje, acho que até afasta as crianças da arte. A escola atualmente é feita para a educação profissio-nalizante, uma educação para se prestar vestibular, para se entrar no mercado de trabalho, quer dizer, a arte, vale dizer a poesia em sentido amplo, é algo inútil do ponto de vista do mercado de trabalho. Para esse tipo de escola a Arte é vista como algo não sério, algo que não tem utilidade. Para uma escola que pretenda a formação do ser humano, sim, a arte é importante e a escola é importante para a arte, elas se complementam, mas para uma escola baseada

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numa visão profissionalizante, numa visão funcionalista, não, a aula de arte atrapalha, esse tempo poderia muito bem ser ocupado pelo ensino da matemática ou do português, que são mais úteis. Esse é o tipo de escola que a gente construiu e na qual a esmagadora maioria acredita.

M. A. – Em seu novo livro – A montanha e o videogame – qual reflexão você traz sobre arte-educação?

Duarte Jr. – O que eu estava falando acerca de se ficar ensinando Teoria da Arte e não se ter experiência estética nenhuma é algo que acontece há muito tempo dentro das aulas de Português. Digo isso porque nesse novo livro há um ensaio intitulado “O Poético, a Poesia e o Poema na Educação Estética” no qual discuto um pouco isto. Penso que a Poesia, no sentido dos poemas, é algo que tem que ser tratada dentro das aulas de arte e não ficar restrita à aula de Português, porque em geral os poemas nas aulas de Português se tornam cadáveres a serem dissecados com os bisturis teóricos. Transforma-se uma obra de arte num corpo sem vida e dele se vai extraindo os órgãos: objetos diretos, sinédoques, metáforas, metonímias etc. E o que, com esse procedimento, acaba morto no estudante é qualquer tesão pela literatura, qualquer prazer de um encontro poético. A mesma coisa se faz com os romances, não é? Obriga-se o

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estudante a ler um romance, depois a fichá-lo e por fim a se submeter a uma avaliação teórica acerca dele. E em geral um romance construído numa linguagem que não é mais a dele, uma linguagem do século XIX: José de Alencar, Machado de Assis... Machado de Assis é uma leitura extremamente rica e prazerosa, mas para depois que você se torna um leitor; para um adolescente de 14, 15 anos, Machado de Assis não emprega a linguagem com a qual ele está acostumado – a questão do código discutida anteriormente. É preciso que ele leia os autores contemporâneos, que falam do universo dele, e não ler por obrigação de fichar, de fazer uma prova. O que acaba acontecendo é que essas aulas matam na criança e no adolescente o prazer da leitura, tornando a leitura uma coisa chata e não uma aventura.

Estão fazendo a mesma coisa com a arte. Acabam tornando a aula de arte algo maçante, chato; você tem que ficar vendo qual é o período em que foi produzida tal obra, qual é o estilo da outra... Não é isso. Assim, aquilo que se vê acontecer em uma aula de Literatura, de Português, está ocorrendo na aula de Arte também. A obra de arte, seja ela um poema, um filme ou um quadro, nesses casos se torna simplesmente uma desculpa, um pretexto, para se aprender teoria, seja Português, História da Arte, qualquer coisa nessa direção. Essa

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é a questão: a arte só passa a ser valorizada na escola à medida que você pode usá-la para adquirir uma sabedoria, um conhecimento considerado sério, como a Gramática ou as Escolas Literárias, no caso do Português, ou a História da Arte no caso das artes plásticas. Então, é como se a escola só admitisse a arte na medida em que ela fosse um pretexto para aprender disciplinas consideradas sérias, reflexivas. Um teórico da Literatura chamado Tzvetan Todorov passou a vida fazendo teoria literária —semiótica e todas aquelas coisas complicadas dos linguistas – e agora, já entrando nos anos, escreveu um livro chamado “A literatura em perigo”, no qual procura discutir exatamente isto que estou apontando. Afirma ele que tudo aquilo que passou a vida estudando no âmbito da teoria literária deve servir apenas para especialistas, não é jamais para ser ensinado nas escolas, para as crianças e jovens. As crianças e os adolescentes têm que ter o prazer da leitura, não devem ler por obrigação e para fazer uma prova. O Jorge Luis Borges falava isso também: se você começar a ler um livro —pode ser o livro que um crítico indicou, uma grande obra da literatura universal, qualquer coisa monumental —e começar a achar chato, não leia, porque tal livro ou não foi escrito para você ou ainda não é o seu momento de lê-lo. Haverá sempre outro livro de que você vai gostar. Não somos obrigados a ler porque determinado livro é um

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estudante a ler um romance, depois a fichá-lo e por fim a se submeter a uma avaliação teórica acerca dele. E em geral um romance construído numa linguagem que não é mais a dele, uma linguagem do século XIX: José de Alencar, Machado de Assis... Machado de Assis é uma leitura extremamente rica e prazerosa, mas para depois que você se torna um leitor; para um adolescente de 14, 15 anos, Machado de Assis não emprega a linguagem com a qual ele está acostumado – a questão do código discutida anteriormente. É preciso que ele leia os autores contemporâneos, que falam do universo dele, e não ler por obrigação de fichar, de fazer uma prova. O que acaba acontecendo é que essas aulas matam na criança e no adolescente o prazer da leitura, tornando a leitura uma coisa chata e não uma aventura.

Estão fazendo a mesma coisa com a arte. Acabam tornando a aula de arte algo maçante, chato; você tem que ficar vendo qual é o período em que foi produzida tal obra, qual é o estilo da outra... Não é isso. Assim, aquilo que se vê acontecer em uma aula de Literatura, de Português, está ocorrendo na aula de Arte também. A obra de arte, seja ela um poema, um filme ou um quadro, nesses casos se torna simplesmente uma desculpa, um pretexto, para se aprender teoria, seja Português, História da Arte, qualquer coisa nessa direção. Essa

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é a questão: a arte só passa a ser valorizada na escola à medida que você pode usá-la para adquirir uma sabedoria, um conhecimento considerado sério, como a Gramática ou as Escolas Literárias, no caso do Português, ou a História da Arte no caso das artes plásticas. Então, é como se a escola só admitisse a arte na medida em que ela fosse um pretexto para aprender disciplinas consideradas sérias, reflexivas. Um teórico da Literatura chamado Tzvetan Todorov passou a vida fazendo teoria literária —semiótica e todas aquelas coisas complicadas dos linguistas – e agora, já entrando nos anos, escreveu um livro chamado “A literatura em perigo”, no qual procura discutir exatamente isto que estou apontando. Afirma ele que tudo aquilo que passou a vida estudando no âmbito da teoria literária deve servir apenas para especialistas, não é jamais para ser ensinado nas escolas, para as crianças e jovens. As crianças e os adolescentes têm que ter o prazer da leitura, não devem ler por obrigação e para fazer uma prova. O Jorge Luis Borges falava isso também: se você começar a ler um livro —pode ser o livro que um crítico indicou, uma grande obra da literatura universal, qualquer coisa monumental —e começar a achar chato, não leia, porque tal livro ou não foi escrito para você ou ainda não é o seu momento de lê-lo. Haverá sempre outro livro de que você vai gostar. Não somos obrigados a ler porque determinado livro é um

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clássico, nada disso! O Borges dizia e reafirmava: “só leia o que lhe der prazer”. É assim que aprendemos a ler: lendo aquilo que nos dá prazer. A arte, qualquer forma de arte, deve ser, sobretudo, um convite ao prazer. E parece que este sempre foi mal visto nas escolas. Aliás, nelas se aprende a opor o dever ao prazer.

M. A. – Como você chegou à arte-educação?

Duarte Jr. - Cheguei naturalmente, ao longo de minha história de vida. Comecei a ler com três anos de idade e aprendi a ler brincando. Eu ia para a praça em Limeira (onde nasci e passei minha infância) com meu avô, todos os dias, e nela havia bancos de granito que eram doados por firmas da cidade, nos quais os nomes dessas firmas estavam gravados: “Casa Agrícola”, “Ao Rei do Armarinho” etc. Assim, em cada banco estava escrito algo e eu queria saber o que eram aquelas coisas, aqueles traços que estavam lá, e o meu avô ia me explicando, me ensinando as letras, as palavras. Foi dessa forma que, brincando na praça, eu aprendi a ler de forma prazerosa. Cheguei a me tornar uma espécie de “atração turística” da cidade, pois as pessoas que passavam me pediam para ler isso ou aquilo e eu ganhava balas e elogios depois. Portanto, aprendi a ler brincando nos bancos de jardim e não nos bancos de escola – apesar do que diz o Paulo Freire,

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a minha educação foi uma educação bancária que funcionou (risos).

E meu pai tinha uma boa biblioteca, na qual eu também passava muito tempo. No começo lia muito histórias em quadrinhos: Tio Patinhas, Pato Donald, essas coisas. Depois comecei a ler livros da biblioteca do meu pai; pegava o que eu queria. Comecei a ler Monteiro Lobato e sempre fui lendo tudo; pegava Shakespeare e olhava, e se não gostava deixava. Eu lia coisas do tipo “O Amante de Lady Chatterley”, contos de terror do Poe e outras coisas adultas. Li todo o Sherlock Holmes e as demais obras do Conan Doyle. O universo da leitura, deste modo, eu descobri sozinho, e lia aquilo que me dava prazer. A leitura em minha vida foi algo surgido da experiência, não de uma obrigação, tanto é que, quando na escola tinha que fazer uma análise sintática, não conseguia, eu sempre fui mau aluno de português, sempre escrevi e li desde criança e até hoje não sei fazer análise sintática (risos), tenho apenas uma idéia vaga do que seja análise sintática; quer dizer, eu até sei aquelas conjunções, mas aprendi-as com a prática, não pelo estudo da Gramática. Isso vem depois, as regras e o nosso interesse em conhecê-las vêm após do prazer da leitura.

A arte para mim sempre foi algo natural, a Teoria da Arte é que veio posteriormente. Só me

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clássico, nada disso! O Borges dizia e reafirmava: “só leia o que lhe der prazer”. É assim que aprendemos a ler: lendo aquilo que nos dá prazer. A arte, qualquer forma de arte, deve ser, sobretudo, um convite ao prazer. E parece que este sempre foi mal visto nas escolas. Aliás, nelas se aprende a opor o dever ao prazer.

M. A. – Como você chegou à arte-educação?

Duarte Jr. - Cheguei naturalmente, ao longo de minha história de vida. Comecei a ler com três anos de idade e aprendi a ler brincando. Eu ia para a praça em Limeira (onde nasci e passei minha infância) com meu avô, todos os dias, e nela havia bancos de granito que eram doados por firmas da cidade, nos quais os nomes dessas firmas estavam gravados: “Casa Agrícola”, “Ao Rei do Armarinho” etc. Assim, em cada banco estava escrito algo e eu queria saber o que eram aquelas coisas, aqueles traços que estavam lá, e o meu avô ia me explicando, me ensinando as letras, as palavras. Foi dessa forma que, brincando na praça, eu aprendi a ler de forma prazerosa. Cheguei a me tornar uma espécie de “atração turística” da cidade, pois as pessoas que passavam me pediam para ler isso ou aquilo e eu ganhava balas e elogios depois. Portanto, aprendi a ler brincando nos bancos de jardim e não nos bancos de escola – apesar do que diz o Paulo Freire,

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a minha educação foi uma educação bancária que funcionou (risos).

E meu pai tinha uma boa biblioteca, na qual eu também passava muito tempo. No começo lia muito histórias em quadrinhos: Tio Patinhas, Pato Donald, essas coisas. Depois comecei a ler livros da biblioteca do meu pai; pegava o que eu queria. Comecei a ler Monteiro Lobato e sempre fui lendo tudo; pegava Shakespeare e olhava, e se não gostava deixava. Eu lia coisas do tipo “O Amante de Lady Chatterley”, contos de terror do Poe e outras coisas adultas. Li todo o Sherlock Holmes e as demais obras do Conan Doyle. O universo da leitura, deste modo, eu descobri sozinho, e lia aquilo que me dava prazer. A leitura em minha vida foi algo surgido da experiência, não de uma obrigação, tanto é que, quando na escola tinha que fazer uma análise sintática, não conseguia, eu sempre fui mau aluno de português, sempre escrevi e li desde criança e até hoje não sei fazer análise sintática (risos), tenho apenas uma idéia vaga do que seja análise sintática; quer dizer, eu até sei aquelas conjunções, mas aprendi-as com a prática, não pelo estudo da Gramática. Isso vem depois, as regras e o nosso interesse em conhecê-las vêm após do prazer da leitura.

A arte para mim sempre foi algo natural, a Teoria da Arte é que veio posteriormente. Só me

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interessei em estudar Teoria da Arte muito mais tarde, porque para mim a arte era uma vivência. E em minha época de menino – em 1957, 58, quando tinha quatro ou cinco anos – a televisão era diferente dessa de hoje. Existia a TV Tupi, a mais famosa, localizada aqui no estado de São Paulo, e em sua programação havia três programas de teatro: Grande Teatro Tupi, TV de Vanguarda e TV de Comédia, os quais apresentavam sempre uma peça da dramaturgia, ou um conto, ou um romance adaptado para a televisão – não existia videoteipe na época, tudo se fazia ao vivo. Tinha-se então um bom teatro semanal com Paulo Autran, Tônia Carrero, Fernanda Montenegro, Gianfrancesco Guarnieri, todos eles atuando ali, ao vivo, na televisão, e eu pequenininho, com cinco ou seis anos, assistia a tudo aquilo: Shakespeare, Gogol, Nelson Rodrigues... Via e ficava fascinado com aquele universo, uma coisa deslumbrante. E essa emissora também levava ao ar o “Concertos Para a Juventude”, em que orquestras executavam, também ao vivo, as principais peças do repertório erudito. A televisão, na época, era uma coisa de elite cultural, depois é que foi se popularizando. Então, minha experiência com a arte foi assim: vivia em uma cidade do interior, em Limeira, em que raramente se tinha teatro; às vezes, aqui e ali, era até possível se assistir a algumas peças infantis, mas era coisa muito rara, e não havia orquestras tocando.

- 32 -

Mas eu tinha o acesso ao universo da arte através dos livros e da televisão e sempre me foi um prazer assistir tudo isso, um universo que me fazia sonhar. Foram experiências fantásticas, marcantes. Tem coisas de que me lembro até hoje desses espetáculos, cenas que marcaram muito minha vida. Meu interesse por arte surgiu dessas experiências marcadamente emotivas. Depois eu fiz violão, fiz teatro amador, cursos de pintura, desenho, e comecei a escrever poemas muito cedo, com doze anos, mas nada disso deu certo e, por isso, fui ser professor (risos).

A arte fez parte da minha vida, e o pensar sobre ela e as experiências que me proporcionava foi posterior. Enquanto eu cursava psicologia na faculdade, fazia paralelamente um curso de desenho e pintura. Pela manhã fazia esse curso, à tarde psicologia e à noite lecionava no Sindicato dos Metalúrgicos. Quando fui fazer mestrado é que comecei a pensar: “a arte foi algo tão importante em minha vida, contribuiu muito com a minha educação, com a minha formação humana, então ela deve ser algo fundamental para a Educação”. Foi quando eu descobri que existia algo chamado arte-educação e comecei a pensar nisso, a partir da minha própria experiência de vida. Eu aprendi com a arte a vida inteira: literatura, teatro, cinema, televisão. Eu acho que a escola faz é inverter isso:

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interessei em estudar Teoria da Arte muito mais tarde, porque para mim a arte era uma vivência. E em minha época de menino – em 1957, 58, quando tinha quatro ou cinco anos – a televisão era diferente dessa de hoje. Existia a TV Tupi, a mais famosa, localizada aqui no estado de São Paulo, e em sua programação havia três programas de teatro: Grande Teatro Tupi, TV de Vanguarda e TV de Comédia, os quais apresentavam sempre uma peça da dramaturgia, ou um conto, ou um romance adaptado para a televisão – não existia videoteipe na época, tudo se fazia ao vivo. Tinha-se então um bom teatro semanal com Paulo Autran, Tônia Carrero, Fernanda Montenegro, Gianfrancesco Guarnieri, todos eles atuando ali, ao vivo, na televisão, e eu pequenininho, com cinco ou seis anos, assistia a tudo aquilo: Shakespeare, Gogol, Nelson Rodrigues... Via e ficava fascinado com aquele universo, uma coisa deslumbrante. E essa emissora também levava ao ar o “Concertos Para a Juventude”, em que orquestras executavam, também ao vivo, as principais peças do repertório erudito. A televisão, na época, era uma coisa de elite cultural, depois é que foi se popularizando. Então, minha experiência com a arte foi assim: vivia em uma cidade do interior, em Limeira, em que raramente se tinha teatro; às vezes, aqui e ali, era até possível se assistir a algumas peças infantis, mas era coisa muito rara, e não havia orquestras tocando.

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Mas eu tinha o acesso ao universo da arte através dos livros e da televisão e sempre me foi um prazer assistir tudo isso, um universo que me fazia sonhar. Foram experiências fantásticas, marcantes. Tem coisas de que me lembro até hoje desses espetáculos, cenas que marcaram muito minha vida. Meu interesse por arte surgiu dessas experiências marcadamente emotivas. Depois eu fiz violão, fiz teatro amador, cursos de pintura, desenho, e comecei a escrever poemas muito cedo, com doze anos, mas nada disso deu certo e, por isso, fui ser professor (risos).

A arte fez parte da minha vida, e o pensar sobre ela e as experiências que me proporcionava foi posterior. Enquanto eu cursava psicologia na faculdade, fazia paralelamente um curso de desenho e pintura. Pela manhã fazia esse curso, à tarde psicologia e à noite lecionava no Sindicato dos Metalúrgicos. Quando fui fazer mestrado é que comecei a pensar: “a arte foi algo tão importante em minha vida, contribuiu muito com a minha educação, com a minha formação humana, então ela deve ser algo fundamental para a Educação”. Foi quando eu descobri que existia algo chamado arte-educação e comecei a pensar nisso, a partir da minha própria experiência de vida. Eu aprendi com a arte a vida inteira: literatura, teatro, cinema, televisão. Eu acho que a escola faz é inverter isso:

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dar reflexão antes da experiência. Todavia, se você não “cai na piscina” não pode pensar sobre o ato de nadar, só pode pensar sobre o ato de nadar após haver nadado! A mesma coisa é a experiência com a arte. E ainda ninguém aprende a escrever com gramática, você aprende a escrever, escrevendo; depois é que você começa a ver: “ah, não posso escrever isso, por isso, por isso, por isso...” Aí você aprende a escrever escrevendo e lendo. O Rubem Alves diz que “se as crianças precisassem aprender gramática antes de aprender a falar elas só começariam a falar em torno dos vinte anos”. Vale dizer: você aprende a falar falando, não precisa de gramática para aprender a falar, as pessoas vão lhe corrigindo enquanto fala. Se você está num meio em que as pessoas falam com português correto, com verbos usados em seus tempos certos, os pronomes bem colocados, as concordâncias bem feitas, você vai sendo corrigido e vai aprendendo a usar os tempos verbais certinhos, a fazer as concordâncias, sem saber a gramática, e depois é que você aprende porque está falando daquele jeito. Na arte é a mesma coisa; infelizmente, a escola inverte isso. A escola quer que você aprenda a teoria antes da experiência, quer dizer, não há teoria antes da experiência, não há reflexão antes da experiência. Você só pode refletir sobre aquilo que experimentou, se não, é um pensamento vazio e sem sentido.

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M. A. – Duarte, você fala sobre a experiência de como você chegou à arte-educação, pela sua própria história de vida. Mesmo reconhecendo a importância que a Arte tem para a Educação, você percebe, por outro lado, que a escola confunde e trata a arte como conteúdo, ou como um meio para ensinar um conteúdo. Atualmente, você conhece alguma experiência em escola que chegue próximo a isso que você considera como arte-educação e que você defende em seu trabalho?

Duarte Jr. – Olha, a gente sabe de alguma experiência aqui e ali, mas muito pontuais. Não que eu as tenha conhecido pessoalmente. Acho que atualmente o trabalho realizado por algumas ONG's vem se revelando muito mais rico neste sentido do que a escola formal. Lá na Bahia, seu estado, em Salvador existe a experiência educacional do Olodum, que começou com um trabalho de arte; no Rio existe o Afro-reggae; aqui em Campinas havia um pessoal com um trabalho chamado Bate-lata, uma orquestra de percussão com latas e instrumentos improvisados que eles mesmos faziam; chegaram até a gravar um LP inclusive com a participação do Caetano Veloso. Esses espaços de educação não-formal, não-oficial, estão muito mais próximos disso que eu entendo por arte-educação do que a escola propriamente

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dar reflexão antes da experiência. Todavia, se você não “cai na piscina” não pode pensar sobre o ato de nadar, só pode pensar sobre o ato de nadar após haver nadado! A mesma coisa é a experiência com a arte. E ainda ninguém aprende a escrever com gramática, você aprende a escrever, escrevendo; depois é que você começa a ver: “ah, não posso escrever isso, por isso, por isso, por isso...” Aí você aprende a escrever escrevendo e lendo. O Rubem Alves diz que “se as crianças precisassem aprender gramática antes de aprender a falar elas só começariam a falar em torno dos vinte anos”. Vale dizer: você aprende a falar falando, não precisa de gramática para aprender a falar, as pessoas vão lhe corrigindo enquanto fala. Se você está num meio em que as pessoas falam com português correto, com verbos usados em seus tempos certos, os pronomes bem colocados, as concordâncias bem feitas, você vai sendo corrigido e vai aprendendo a usar os tempos verbais certinhos, a fazer as concordâncias, sem saber a gramática, e depois é que você aprende porque está falando daquele jeito. Na arte é a mesma coisa; infelizmente, a escola inverte isso. A escola quer que você aprenda a teoria antes da experiência, quer dizer, não há teoria antes da experiência, não há reflexão antes da experiência. Você só pode refletir sobre aquilo que experimentou, se não, é um pensamento vazio e sem sentido.

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M. A. – Duarte, você fala sobre a experiência de como você chegou à arte-educação, pela sua própria história de vida. Mesmo reconhecendo a importância que a Arte tem para a Educação, você percebe, por outro lado, que a escola confunde e trata a arte como conteúdo, ou como um meio para ensinar um conteúdo. Atualmente, você conhece alguma experiência em escola que chegue próximo a isso que você considera como arte-educação e que você defende em seu trabalho?

Duarte Jr. – Olha, a gente sabe de alguma experiência aqui e ali, mas muito pontuais. Não que eu as tenha conhecido pessoalmente. Acho que atualmente o trabalho realizado por algumas ONG's vem se revelando muito mais rico neste sentido do que a escola formal. Lá na Bahia, seu estado, em Salvador existe a experiência educacional do Olodum, que começou com um trabalho de arte; no Rio existe o Afro-reggae; aqui em Campinas havia um pessoal com um trabalho chamado Bate-lata, uma orquestra de percussão com latas e instrumentos improvisados que eles mesmos faziam; chegaram até a gravar um LP inclusive com a participação do Caetano Veloso. Esses espaços de educação não-formal, não-oficial, estão muito mais próximos disso que eu entendo por arte-educação do que a escola propriamente

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dita. Na escola oficial são poucas as experiências dignas de nota. Mas há tentativas até bem sucedidas. Existem experiências pontuais animadoras em educação, porém penso que as mais fortes estejam fora do ensino oficial público, em trabalhos não-formais ou mesmo em algumas escolas particulares que, obviamente, destinam-se a poucos. Escolas que seguem a Pedagogia Waldorf parecem interessantes ao se basearem numa educação dos sentidos, embora algumas sejam muito radicais; mas a metodologia Waldorf é interessante por privilegiar os sentidos e a experiência.

No Brasil se teve uma experiência bastante marcante em educação na década de sessenta: os Ginásios Vocacionais. Foram seis ou sete estabelecimentos montados no estado de São Paulo a título experimental, com a esperança de que fossem bem sucedidos e depois se espalhassem pelo Brasil. Neles havia uma grande preocupação com a experiência e a vivência prática, e contavam com boas oficinas de artes, de marcenaria, de solda etc. Trabalhava-se com teatro, cinema, artes plásticas, música e outras manifestações artísticas. A própria gestão das escolas era compartilhada por alunos, pais e professores. Quem coordenou sua implantação foi a professora Maria Nilde Mascelani, já falecida. Com a ditadura, no entanto, toda a experiência foi interrompida. Professores foram presos, responderam a inquéritos militares e a maior

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parte de seu acervo, isto é, de sua memória, foi destruída. Penso que hoje precisamos resgatar essa experiência, ao menos como história e objeto de reflexão.

Mas aqui perto de mim conheço uma experiência interessante em arte-educação, desenvolvida por um orientando meu, de mestrado, o Edson Beleza. Ele é professor e hoje também Secretário de Cultura da cidade de Atibaia, próxima a Campinas. Pois foi lá que, a partir de suas aulas de artes plásticas, numa escola da cidade, ele recuperou uma antiga tradição do município que havia sido esquecida: os bonecões de carnaval. Começou a trabalhar com seus alunos confeccionando bonecos e a coisa se espalhou, primeiro entre os pais e depois junto à população, que em grande parte aderiu às oficinas de confecção de bonecos e assim se reeditou um carnaval familiar na cidade. Após alguns anos com desfiles dos bonecos ao som de uma bandinha, hoje já saem às ruas mais de cem deles, e esse número aumenta ano a ano, com o patrocínio oficial da prefeitura. Sua dissertação trata exatamente desta bem sucedida experiência em arte-educação que começou formalmente no interior de uma escola e ganhou as ruas, num trabalho não-formal de educação estética. E o interessante é que em sua pesquisa ele descobriu uma foto dos anos dez do século passado em que um bonecão aparece desfilando junto a músicos

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dita. Na escola oficial são poucas as experiências dignas de nota. Mas há tentativas até bem sucedidas. Existem experiências pontuais animadoras em educação, porém penso que as mais fortes estejam fora do ensino oficial público, em trabalhos não-formais ou mesmo em algumas escolas particulares que, obviamente, destinam-se a poucos. Escolas que seguem a Pedagogia Waldorf parecem interessantes ao se basearem numa educação dos sentidos, embora algumas sejam muito radicais; mas a metodologia Waldorf é interessante por privilegiar os sentidos e a experiência.

No Brasil se teve uma experiência bastante marcante em educação na década de sessenta: os Ginásios Vocacionais. Foram seis ou sete estabelecimentos montados no estado de São Paulo a título experimental, com a esperança de que fossem bem sucedidos e depois se espalhassem pelo Brasil. Neles havia uma grande preocupação com a experiência e a vivência prática, e contavam com boas oficinas de artes, de marcenaria, de solda etc. Trabalhava-se com teatro, cinema, artes plásticas, música e outras manifestações artísticas. A própria gestão das escolas era compartilhada por alunos, pais e professores. Quem coordenou sua implantação foi a professora Maria Nilde Mascelani, já falecida. Com a ditadura, no entanto, toda a experiência foi interrompida. Professores foram presos, responderam a inquéritos militares e a maior

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parte de seu acervo, isto é, de sua memória, foi destruída. Penso que hoje precisamos resgatar essa experiência, ao menos como história e objeto de reflexão.

Mas aqui perto de mim conheço uma experiência interessante em arte-educação, desenvolvida por um orientando meu, de mestrado, o Edson Beleza. Ele é professor e hoje também Secretário de Cultura da cidade de Atibaia, próxima a Campinas. Pois foi lá que, a partir de suas aulas de artes plásticas, numa escola da cidade, ele recuperou uma antiga tradição do município que havia sido esquecida: os bonecões de carnaval. Começou a trabalhar com seus alunos confeccionando bonecos e a coisa se espalhou, primeiro entre os pais e depois junto à população, que em grande parte aderiu às oficinas de confecção de bonecos e assim se reeditou um carnaval familiar na cidade. Após alguns anos com desfiles dos bonecos ao som de uma bandinha, hoje já saem às ruas mais de cem deles, e esse número aumenta ano a ano, com o patrocínio oficial da prefeitura. Sua dissertação trata exatamente desta bem sucedida experiência em arte-educação que começou formalmente no interior de uma escola e ganhou as ruas, num trabalho não-formal de educação estética. E o interessante é que em sua pesquisa ele descobriu uma foto dos anos dez do século passado em que um bonecão aparece desfilando junto a músicos

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numa esquina daquela cidade. Vale notar que o primeiro bonecão de Olinda, em Pernambuco, o Homem da Meia Noite, apenas ganhou as ruas nos anos trintas. E ainda é preciso dizer que a própria decoração carnavalesca de Atibaia tornou-se um trabalho educacional, pois os enfeites e adereços também são confeccionados em oficinas mantidas pela prefeitura e destinadas às crianças do município. Afora o fato de que os bonecos representam tanto personagens consagrados da mídia e das artes, como figuras pitorescas e até importantes do município, escolhidos pelas crianças, pelos pais ou demais pessoas da cidade que se entregam à sua feitura.

Essa dissertação, com o título “Folia com Bonecões: Uma Experiência em Arte-Educação”, está quase pronta e certamente deverá ser publicada, pois se trata do relato de como uma experiência em educação estética pode ser bem sucedida e contaminar toda uma comunidade.

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numa esquina daquela cidade. Vale notar que o primeiro bonecão de Olinda, em Pernambuco, o Homem da Meia Noite, apenas ganhou as ruas nos anos trintas. E ainda é preciso dizer que a própria decoração carnavalesca de Atibaia tornou-se um trabalho educacional, pois os enfeites e adereços também são confeccionados em oficinas mantidas pela prefeitura e destinadas às crianças do município. Afora o fato de que os bonecos representam tanto personagens consagrados da mídia e das artes, como figuras pitorescas e até importantes do município, escolhidos pelas crianças, pelos pais ou demais pessoas da cidade que se entregam à sua feitura.

Essa dissertação, com o título “Folia com Bonecões: Uma Experiência em Arte-Educação”, está quase pronta e certamente deverá ser publicada, pois se trata do relato de como uma experiência em educação estética pode ser bem sucedida e contaminar toda uma comunidade.

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“Arte é fome”(Rubem Fonseca)

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Maisa Antunes - Como você vê a disciplina arte-educação?

Marcos Cesário - Não vejo. A arte e a educação se vêem com frequência? A academia é uma sacerdotisa esquisita, unir em matrimônio duas inimigas instintivas! Foi um casamento mal arranjado (risos). Os representantes do poder, nossos eternos moralistas, sempre desejaram a arte como sua serviçal. É o seu sonho antigo e medíocre. A história nos lembra, mesmo sendo ela tão esquecida (risos), que alguns artistas, como Michelangelo, Da Vinci, se saíram mais ou menos bem enfeitando superficialmente a pompa estúpida dos tiranos e introduzindo com sutileza e delicadeza formas, luzes e sombras, mas outros como Van Gogh, Walt Whitman... não tiveram tanta sorte. Arte na escola, tudo bem: ela nasce, renasce, ressuscita e sobrevive em todos os tempos e lugares, mas arte no currículo escolar é uma demonstração de pretensão, de insensibilidade e mau gosto. A educação tenta limitar, violenta a arte, e arrota uma união estável e feliz, não para a arte.

Entrevista com o artista filósofo-fotógrafo(filotógrafo) Marcos Cesário – 28.01.11

Por Maisa Antunes

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“Arte é fome”(Rubem Fonseca)

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Maisa Antunes - Como você vê a disciplina arte-educação?

Marcos Cesário - Não vejo. A arte e a educação se vêem com frequência? A academia é uma sacerdotisa esquisita, unir em matrimônio duas inimigas instintivas! Foi um casamento mal arranjado (risos). Os representantes do poder, nossos eternos moralistas, sempre desejaram a arte como sua serviçal. É o seu sonho antigo e medíocre. A história nos lembra, mesmo sendo ela tão esquecida (risos), que alguns artistas, como Michelangelo, Da Vinci, se saíram mais ou menos bem enfeitando superficialmente a pompa estúpida dos tiranos e introduzindo com sutileza e delicadeza formas, luzes e sombras, mas outros como Van Gogh, Walt Whitman... não tiveram tanta sorte. Arte na escola, tudo bem: ela nasce, renasce, ressuscita e sobrevive em todos os tempos e lugares, mas arte no currículo escolar é uma demonstração de pretensão, de insensibilidade e mau gosto. A educação tenta limitar, violenta a arte, e arrota uma união estável e feliz, não para a arte.

Entrevista com o artista filósofo-fotógrafo(filotógrafo) Marcos Cesário – 28.01.11

Por Maisa Antunes

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M. A. - As duas não podem ao menos se ajudar?

M. Cesário - Eventualmente. A educação pode colaborar reproduzindo o conhecimento da técnica usada por alguns artistas, mas sabemos que a técnica é só um meio para alcançar um determinado “fim”, ou um recomeço, a obra. Mas ela deve ser assimilada, como instrumento que é, e o que não é raro, pode, ser reinventada e ultrapassada. Para Wilde “a obra de arte é um resultado singular de um temperamento singular” e para chegar ao que chamamos de original em arte só se ultrapassarmos os limites cartesianamente ensinados. O “professor” Gabriel García Marquez alertou: “façam tudo ao contrário que te ensinaram na escola”, em um poeta podemos acreditar. A história da educação é a história da repressão, palmatórias e derivados... a educação é um corpo machucado, reprimido e magoado e tanto ressentimento afeta de forma negativa a arte. Esta última é impulsionada pelo ódio, pelo amor, pela dor, pela paixão, mas dificilmente pelo ressentimento. E a educação munida de tal sentimento (o ressentimento) confunde seu hábito de medir, ao desejo descompromissado de contemplar e sentir. Exupéry sabia o que dizia “os intelectuais desmontam o rosto para explicá-lo por partes, mas não sabem apreciar um sorriso”, para vivenciar, criar, reinventar, os únicos e confiáveis caminhos

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são as trilhas raras e humildes da contemplação.

M. A. - Há muitos professores realizando junto com os estudantes experiências de natureza poética, estética, através do teatro, literatura, contos, que você conhece. Que nome v o c ê s u g e r i r i a a e s s a s i n i c i a t i v a s d e contemplação de mistério e beleza?

M. Cesário - Arte e deseducação! (Risos). Conheço professores como você, chegados a uma bela utopia, que encaram o currículo como uma resistência que deve ser sabotada e ultrapassada. Oscar Wilde disse que a linguagem é mãe do p e n s a m e n t o , m u d a m o s a l i n g u a g e m e transformamos um conceito pretensioso de arte-educação em tentativa verdadeira e humilde de contemplação. Seja como for arte não educa. Arte deseduca.

M. A. - Você sempre fala de comunicadores de beleza. Poderia definir melhor aqui?

M. Cesário - Como já disse, contempladores, diletantes, amantes da imaginação. Edgar Allan Poe no prefácio de um dos seus livros nos presenteou com a seguinte dedicatória: “dedico este livro aos que sentem mais do que aqueles que pensam”. Para comunicar a beleza tem que amar o desconhecido, aceitar o mistério, matéria invisível e concreta que

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M. A. - As duas não podem ao menos se ajudar?

M. Cesário - Eventualmente. A educação pode colaborar reproduzindo o conhecimento da técnica usada por alguns artistas, mas sabemos que a técnica é só um meio para alcançar um determinado “fim”, ou um recomeço, a obra. Mas ela deve ser assimilada, como instrumento que é, e o que não é raro, pode, ser reinventada e ultrapassada. Para Wilde “a obra de arte é um resultado singular de um temperamento singular” e para chegar ao que chamamos de original em arte só se ultrapassarmos os limites cartesianamente ensinados. O “professor” Gabriel García Marquez alertou: “façam tudo ao contrário que te ensinaram na escola”, em um poeta podemos acreditar. A história da educação é a história da repressão, palmatórias e derivados... a educação é um corpo machucado, reprimido e magoado e tanto ressentimento afeta de forma negativa a arte. Esta última é impulsionada pelo ódio, pelo amor, pela dor, pela paixão, mas dificilmente pelo ressentimento. E a educação munida de tal sentimento (o ressentimento) confunde seu hábito de medir, ao desejo descompromissado de contemplar e sentir. Exupéry sabia o que dizia “os intelectuais desmontam o rosto para explicá-lo por partes, mas não sabem apreciar um sorriso”, para vivenciar, criar, reinventar, os únicos e confiáveis caminhos

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são as trilhas raras e humildes da contemplação.

M. A. - Há muitos professores realizando junto com os estudantes experiências de natureza poética, estética, através do teatro, literatura, contos, que você conhece. Que nome v o c ê s u g e r i r i a a e s s a s i n i c i a t i v a s d e contemplação de mistério e beleza?

M. Cesário - Arte e deseducação! (Risos). Conheço professores como você, chegados a uma bela utopia, que encaram o currículo como uma resistência que deve ser sabotada e ultrapassada. Oscar Wilde disse que a linguagem é mãe do p e n s a m e n t o , m u d a m o s a l i n g u a g e m e transformamos um conceito pretensioso de arte-educação em tentativa verdadeira e humilde de contemplação. Seja como for arte não educa. Arte deseduca.

M. A. - Você sempre fala de comunicadores de beleza. Poderia definir melhor aqui?

M. Cesário - Como já disse, contempladores, diletantes, amantes da imaginação. Edgar Allan Poe no prefácio de um dos seus livros nos presenteou com a seguinte dedicatória: “dedico este livro aos que sentem mais do que aqueles que pensam”. Para comunicar a beleza tem que amar o desconhecido, aceitar o mistério, matéria invisível e concreta que

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sustenta o mundo que reinventamos e vivemos. Só poetas travestidos de professores sabem que “a realidade é o que a gente vê e não o que ela é” (Gabriel García Marquez). Que a vida... “o que vejo e que sou e suponho não é mais que um sonho num sonho” (Edgar Allan Poe). Sendo assim, os únicos que são capazes de ensinar são aqueles que são capazes de desaprender o aprendido, assumindo um eterno caso de amor com o mistério da beleza, terreno sempre desconhecido. “A arte é um véu e não um espelho” (Oscar Wilde). E a interpretação desse véu é algo imprevisível... Schopenhauer, “você pode fazer o que quer, mas não pode querer o que quer”.

M. A. - A arte pode ser ensinada?

M. Cesário - Não! Albert Camus “os homens não aprendem com as circunstâncias, mas com o contato do seu temperamento com as circunstâncias tornam-se o que são”. Demorei muito tempo para entender racionalmente – se é que entendo hoje – o que despertou em mim o gosto pelo transcendente e aparentemente irreal. Há pouco tempo lembrei de um episódio em minha adolescência, numa festa provinciana, o poeta Jotacê Freitas me saiu com essa: “ovos de avião”, o que a religião e a educação nunca conseguiram despertar, este fragmento do poema me revelou, e hoje conscientemente sinto a presença desta

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influência no meu temperamento e na minha arte. Isso nem eu, nem o poeta em questão poderíamos prever, e duvido que alguém possa. Não é só uma questão de acessibilidade à arte. E sim da sensibilidade, e como sabemos, esta é intraduzível. Encontrar em um momento indefinível, algo que possa impulsionar uma tendência individual e natural. E isso pode acontecer na igreja, numa sala de aula, ou em um presídio. Conheci um rapaz que foi preso acusado de tráfico, privado de quase tudo, em um ambiente que alguns talvez diriam inartístico, desencantado e magoado descobriu-se compositor e músico dentro de uma cela, ali naquele confinamento, o seu temperamento em contato com tão degradantes circunstâncias encontrou a música através de uma combinação imprevisível de fatos, gostos, desgostos e desejos. Aprender a tocar violão e aprimorar a técnica foi uma consequência. Arthur Bispo do Rosário, internado em um manicômio, revelou-nos através do lixo, e dos restos, do “nada” retratou e reinventou um todo. Sua desrazão encontrou uma lógica só dele e tão nossa... este encontro é irreproduzível. Bob Marley indica: “inspiração ao invés de educação”.

M. A. - A arte pode ajudar o criador a uma convivência melhor na sociedade?

M. Cesário - A criação só acontece com uma

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sustenta o mundo que reinventamos e vivemos. Só poetas travestidos de professores sabem que “a realidade é o que a gente vê e não o que ela é” (Gabriel García Marquez). Que a vida... “o que vejo e que sou e suponho não é mais que um sonho num sonho” (Edgar Allan Poe). Sendo assim, os únicos que são capazes de ensinar são aqueles que são capazes de desaprender o aprendido, assumindo um eterno caso de amor com o mistério da beleza, terreno sempre desconhecido. “A arte é um véu e não um espelho” (Oscar Wilde). E a interpretação desse véu é algo imprevisível... Schopenhauer, “você pode fazer o que quer, mas não pode querer o que quer”.

M. A. - A arte pode ser ensinada?

M. Cesário - Não! Albert Camus “os homens não aprendem com as circunstâncias, mas com o contato do seu temperamento com as circunstâncias tornam-se o que são”. Demorei muito tempo para entender racionalmente – se é que entendo hoje – o que despertou em mim o gosto pelo transcendente e aparentemente irreal. Há pouco tempo lembrei de um episódio em minha adolescência, numa festa provinciana, o poeta Jotacê Freitas me saiu com essa: “ovos de avião”, o que a religião e a educação nunca conseguiram despertar, este fragmento do poema me revelou, e hoje conscientemente sinto a presença desta

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influência no meu temperamento e na minha arte. Isso nem eu, nem o poeta em questão poderíamos prever, e duvido que alguém possa. Não é só uma questão de acessibilidade à arte. E sim da sensibilidade, e como sabemos, esta é intraduzível. Encontrar em um momento indefinível, algo que possa impulsionar uma tendência individual e natural. E isso pode acontecer na igreja, numa sala de aula, ou em um presídio. Conheci um rapaz que foi preso acusado de tráfico, privado de quase tudo, em um ambiente que alguns talvez diriam inartístico, desencantado e magoado descobriu-se compositor e músico dentro de uma cela, ali naquele confinamento, o seu temperamento em contato com tão degradantes circunstâncias encontrou a música através de uma combinação imprevisível de fatos, gostos, desgostos e desejos. Aprender a tocar violão e aprimorar a técnica foi uma consequência. Arthur Bispo do Rosário, internado em um manicômio, revelou-nos através do lixo, e dos restos, do “nada” retratou e reinventou um todo. Sua desrazão encontrou uma lógica só dele e tão nossa... este encontro é irreproduzível. Bob Marley indica: “inspiração ao invés de educação”.

M. A. - A arte pode ajudar o criador a uma convivência melhor na sociedade?

M. Cesário - A criação só acontece com uma

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postura de exclusão da vida cotidiana. Oscar Wilde afirma que: “pensamento e linguagem são para o artista instrumentos de uma arte. Vício e virtude são para o artista materiais para uma arte”. O que o filósofo Dandy sabia é que a arte é “inútil” para uma sociedade que julga e subjuga o indivíduo pelos seus dotes operários. Por condição, o artista é levado a ignorar os limites simplórios da educação que está a serviço da religião e da moral. Se assim é, como poderá a arte tornar melhor a convivência do criador com os reprodutores e os reféns das bases hipócritas que sustentam nossa sociedade? A igreja, sabemos, inventou e reinventou um inferno, usou grandes artistas para reproduzir o medo através da escultura, da pintura (...), estes artistas executavam com perfeição uma idéia arcaica, por conta disso, pela forma elevada que os artistas introduziam a um conceito castrador, os sacerdotes conseguiram forjar uma sociedade fraca e covarde. Estas obras, “isoladamente” podem ser apreciadas pela sua delicadeza e perfeição, mas o uso feito pelos educadores religiosos destas expressões artísticas, foi não só nociva, como letal.

M. A. - Então a arte não torna o artista melhor?

M. Cesário - Na maioria dos casos não. Em entrevista, Ariano Suassuna afirmou: “só acredito em fanático”, um fanático, já sabemos, é aquele que

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exclui quase tudo em prol de um quase nada, para os outros, mas que é tudo para ele, “alguém que acredi-ta apaixonadamente e vive desesperada-mente com base naquilo que acredita” (Henry Miller). Tenho um amigo querido, um pintor, que toda fase de cria-ção “simplesmente” surta. O que de simples não tem nada. Lembro do meu constrangimento ven-do-o sedado depois de o terem levado quase amar-rado a uma clínica psiquiátrica. Visto de lá e ainda hoje daqui ele não parecia muito próximo das pon-tes cognitivas que tornam um homem aceitável e melhor para a convivência social e não parecia que sua mulher e seus filhos tinham muito interesse em apreciar um talento que por vezes impulsionava um carinhoso marido, um bom pai, a chutar a TV e esmurrar a porta do armário. Entre os infinitos casos que a história comprova, não isolo este artista em questão. O genial escritor Proust teve que ser pego a força pelo irmão, que era médico, para medicá-lo, porque como fanático ignorava sua fragilidade física em busca de seu perfeccionismo fanático. Isso não só não ajudou muito sua reputação moral, como acelerou sua morte. Ele era muito deseducado, tanto que afirmou “boas intenções é uma coisa, arte é outra” e “tudo que se tem de belo no mundo deve-se aos nervosos”. Se há uma finalidade na arte, ela não é a ética, e sim a estética.

M. A. - A arte torna o espectador melhor?

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postura de exclusão da vida cotidiana. Oscar Wilde afirma que: “pensamento e linguagem são para o artista instrumentos de uma arte. Vício e virtude são para o artista materiais para uma arte”. O que o filósofo Dandy sabia é que a arte é “inútil” para uma sociedade que julga e subjuga o indivíduo pelos seus dotes operários. Por condição, o artista é levado a ignorar os limites simplórios da educação que está a serviço da religião e da moral. Se assim é, como poderá a arte tornar melhor a convivência do criador com os reprodutores e os reféns das bases hipócritas que sustentam nossa sociedade? A igreja, sabemos, inventou e reinventou um inferno, usou grandes artistas para reproduzir o medo através da escultura, da pintura (...), estes artistas executavam com perfeição uma idéia arcaica, por conta disso, pela forma elevada que os artistas introduziam a um conceito castrador, os sacerdotes conseguiram forjar uma sociedade fraca e covarde. Estas obras, “isoladamente” podem ser apreciadas pela sua delicadeza e perfeição, mas o uso feito pelos educadores religiosos destas expressões artísticas, foi não só nociva, como letal.

M. A. - Então a arte não torna o artista melhor?

M. Cesário - Na maioria dos casos não. Em entrevista, Ariano Suassuna afirmou: “só acredito em fanático”, um fanático, já sabemos, é aquele que

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exclui quase tudo em prol de um quase nada, para os outros, mas que é tudo para ele, “alguém que acredi-ta apaixonadamente e vive desesperada-mente com base naquilo que acredita” (Henry Miller). Tenho um amigo querido, um pintor, que toda fase de cria-ção “simplesmente” surta. O que de simples não tem nada. Lembro do meu constrangimento ven-do-o sedado depois de o terem levado quase amar-rado a uma clínica psiquiátrica. Visto de lá e ainda hoje daqui ele não parecia muito próximo das pon-tes cognitivas que tornam um homem aceitável e melhor para a convivência social e não parecia que sua mulher e seus filhos tinham muito interesse em apreciar um talento que por vezes impulsionava um carinhoso marido, um bom pai, a chutar a TV e esmurrar a porta do armário. Entre os infinitos casos que a história comprova, não isolo este artista em questão. O genial escritor Proust teve que ser pego a força pelo irmão, que era médico, para medicá-lo, porque como fanático ignorava sua fragilidade física em busca de seu perfeccionismo fanático. Isso não só não ajudou muito sua reputação moral, como acelerou sua morte. Ele era muito deseducado, tanto que afirmou “boas intenções é uma coisa, arte é outra” e “tudo que se tem de belo no mundo deve-se aos nervosos”. Se há uma finalidade na arte, ela não é a ética, e sim a estética.

M. A. - A arte torna o espectador melhor?

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M. Cesário - O fim da arte é a própria arte... Tornar o espectador, alguém "melhor" ou "pior", é função de quem acredita nas cartilhas, e nos resulta-dos sempre previsíveis. E o que faz da arte, arte, é a imprevisibilidade, a espontaneidade. O que a arte provoca e revela é o individuo e ela só pode ser apre-endida (não aprendida) pelo temperamento tem-perado, pelo individualismo. Albert Camus pode nos ajudar, "a verdade só alcança o homem carnal pela carne. Por isso seus caminhos são imprevisíve-is". E cada carne, cada temperamento encontra-se ou perde-se em si mesmo através das circunstâncias ou circunstancialmente através de uma obra de arte.

M. A. - O que é arte para você?

M. Cesário - A Arte é minha ilha. É meu com-promisso com o descompromisso. Minha brisa furacão. Nunca ferramenta! É meu pássaro colorido e mutante que só voando torna-se o que é, essencial-mente livre e saborosamente “inútil”.

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M. Cesário - O fim da arte é a própria arte... Tornar o espectador, alguém "melhor" ou "pior", é função de quem acredita nas cartilhas, e nos resulta-dos sempre previsíveis. E o que faz da arte, arte, é a imprevisibilidade, a espontaneidade. O que a arte provoca e revela é o individuo e ela só pode ser apre-endida (não aprendida) pelo temperamento tem-perado, pelo individualismo. Albert Camus pode nos ajudar, "a verdade só alcança o homem carnal pela carne. Por isso seus caminhos são imprevisíve-is". E cada carne, cada temperamento encontra-se ou perde-se em si mesmo através das circunstâncias ou circunstancialmente através de uma obra de arte.

M. A. - O que é arte para você?

M. Cesário - A Arte é minha ilha. É meu com-promisso com o descompromisso. Minha brisa furacão. Nunca ferramenta! É meu pássaro colorido e mutante que só voando torna-se o que é, essencial-mente livre e saborosamente “inútil”.

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Bibliotecária: Gerluce Lustosa – CRB 5ª Região 712

CDD 707

FICHA CATALOGRÁFICA

LINS, Claudia Maisa Antunes.A Arte e a Educação. /Claudia Maisa A. Lins. Juazeiro: Fonte Viva, 2011.50 p. il

1.Arte 2. Educação 3. Arte-Educação 4. Entrevista I. Título

Ficha Técnica

Edição: Maisa Antunes, Edmar Conceição, Fotografias: Marcos Cesário (www.marcoscesario.com.br)Texto Orelha: Edmar ConceiçãoDecupagem: Emiliana CarvalhoRevisão: Rosângela Gonçalves CunhaDiagramação: Mário Pires (www.mariopires.com.br)

Emiliana Carvalho

Impressão: Editora Fonte Viva – Fundação Aloysio PennaAv. Apolônio Sales, 1059 – Centro48601-200 – Paulo Afonso – BAFone: (75) 3501-3000 – Cel: (75) 9968-2968Email: [email protected]

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