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Agenor Sarraf Pacheco Jerônimo da Silva e Silva (Orgs.) Agenor Sarraf Pacheco Jerônimo da Silva e Silva (Orgs.) NEAB/IFPA Pesquisas em Estudos Culturais na Amazônia Paraense Cartografia de Memórias: Pesquisas em Estudos Culturais na Amazônia Paraense Cartografia de Memórias:

Livro - Cartografia de Memórias 2015

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Cartografia de Memórias

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Agenor Sarraf PachecoJerônimo da Silva e Silva

(Orgs.)

Agenor Sarraf Pacheco

Jerônimo da Silva e Silva

(Orgs.)

NEAB/IFPA

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CARTOGRAFIA DE MEMÓRIAS: Pesquisas em Estudos Culturais na Amazônia Paraense

Agenor Sarraf Pacheco

Jerônimo da Silva e Silva

(Orgs.)

INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO PARÁ – IFPA CAMPUS BELÉM

DIRETORIA DE EXTENSÃO - DEXNÚCLEO DE ESTUDOS AFROBRASILEIROS – IFPA CAMPUS

BELÉM

BELÉM-PA2015

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Dados para catalogação na fonteSetor de Processamento Técnico

Biblioteca IFPA - Campus Belém____________________________________________________________________________________________

C328 Cartografia de Memórias: Pesquisas em Estudos Culturais da Amazônia ParaenseOrganizadores: Agenor Sarraf Pacheco, Jerônimo da Silva e Silva.Belém: IFPA, 2015.573 p.

ISBN: 978-85-62855-48-1Vários autores

1. Cultura Amazônica. 2. Antropologia. 3. Cartografia de Memória. I. Sarraf-Pacheco, Agenor(org.). II. Silva, Jerônimo da Silva e (org.)

CDD: 306.098115

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FICHA TÉCNICA

INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO PARÁ – IFPA

ReitoriaClaudio Alex Jorge da Rocha

Pró-Reitoria de Ensino - PROENElinilze Guedes Teodoro

Pró-Reitoria de Extensão e Relações Externas - PROEXMary Lucy Mendes Guimarães

Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação- PROPPGAna Paula Palheta Santana

Direção Geral do Campus BelémManoel Antonio Quaresma Rodrigues

Diretoria de Ensino - DELaura Helena Barros da SilvaDiretoria de Extensão - DEX

Hélio Antônio Lameira de AlmeidaDiretoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação -DPPI

Raidson Jenner Negreiros de AlencarCoordenação do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – NEAB – IFPA

Helena do Socorro Campos da Rocha

CONSELHO EDITORIALDr. Agenor Sarraf Pacheco (UFPA); Dr. Flávio Bezerra Barros (UFPA)

Dr. Francisco Bento da Silva (UFAC); Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque (UFAC)

Dr. Jerônimo da Silva e Silva (UNIFESSPA); Dr. Mário Médice Barbosa (IFPA)

Drª. Ivânia do Santos Neves (UFPA); Drª. Maria Antonieta Antonacci (PUC-SP)

Drª. Maria Ataide Malcher (UFPA); Drª. Rosa Elizabeth Acevedo Marin (UFPA)

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EQUIPE DE ELABORAÇÃOOrganizadores

Agenor Sarraf Pacheco

Jerônimo da Silva e Silva

Autores

Agenor Sarraf Pacheco; Eduardo Wagner Nunes Chagas; Ernani Pinheiro Chaves

Isabel Cristina França dos Santos Rodrigues; Jaime Cuéllar Velarde

Jerônimo da Silva e Silva; John Fletcher Couston Júnior; Marcos Valério Lima Reis

Mário Médice Barbosa; Ninon Rose Jardim; Renato Vieira de Souza

Rodrigo de Souza Wanzeler; Valéria Frota de Andrade

Vanessa Cristina Ferreira Simões; Walter Chile R. Lima

Welton Diego Carmim Lavareda

Designer Gráfico

Jorge Davi Lima Lopes

Revisor Gramatical

Paulo Rafael Bezerra Cardoso

Capa

Ricardo Harada - UFPA

Foto Capa

Furo de Breves, 2013 - Arquivo Pessoal: Agenor Sarraf

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SUMÁRIO

1. Errâncias da Memória ...........................................................................11

Jerônimo da Silva e Silva Agenor Sarraf Pacheco

2. Cartografia de Memórias na Amazônia ................................................21

Agenor Sarraf Pacheco

3. Barulhos e Contranarrativas: Percursos Sociológicos e Antropológicos na Contemporaneidade .............................................................................57

John FletcherAgenor Sarraf Pacheco Ernani Pinheiro Chaves

4. Cartografias do Saber-Fazer: Experiências de Mulheres com Talas de Jupati em São Sebastião da Boa Vista (Marajó das Florestas-PA) ............95

Ninon Rose Jardim Agenor Sarraf Pacheco

5. Bicitáxi em Caminhos da Memória: Mapas interculturais de criação, identidades e sociabilidades ....................................................................129

Vanessa Cristina Ferreira Simões Agenor Sarraf Pacheco

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6. São Benedito em Terras Coloridas ......................................................165Eduardo Wagner Nunes Chagas

7. Varinhas de Mosqueiro: Contribuição Afroindígena, Memória e Patrimônio Cultural ................................................................................197

Renato Vieira de Souza

8. Usina Contemporânea de Teatro em Memórias e Identidades ...........235

Valéria Frota de Andrade

9. A Pesca de Cacuri: Narrativas de Vida Amazônica .............................261

Walter Chile R. Lima Agenor Sarraf Pacheco

10. Bruno de Menezes: A Voz dos Desassistidos .....................................299

Marcos Valério Lima Reis

11. Sob a Ótica dos Estudos Culturais: Literatura, Cultura e Identidade em Candunga, de Bruno de Menezes ............................................................329

Rodrigo de Souza Wanzeler

12. Professoras Aposentadas em Saberes da Experiência na Amazônia..............................................................................371

Isabel Cristina França dos Santos Rodrigues

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13. Os Documentos Oficiais e a Produção Social dos Sentidos: A Legitimação de Outras Construções Identitárias ...................................407

Welton Diego Carmim Lavareda

14. Pelas Lentes dos Estudos Culturais: O Golpe Civil-Militar no Pará.......................................................................................441

Jaime Cuéllar Velarde Agenor Sarraf Pacheco

15. “Cosmonautas de Outro Mundo”: Memórias, Identidades & Encantarias na Amazônia Bragantina .........................................................................483

Jerônimo da Silva e Silva

16. Paraensismo Ameaçado: Essencialismo em Confronto com as Diversidades Culturais na Amazônia Paraense ......................................529

Mário Médice Barbosa

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ERRÂNCIAS DA MEMÓRIA

Jerônimo da Silva e Silva

Agenor Sarraf Pacheco

Escrever um prefácio, sabemos, é apresentar introdutoriamente através de um texto os aspectos mais significativos ou gerais sobre um determinado livro. Mas entendemos que, se por um lado, esta pode ser uma empresa descritiva, semelhante à tarefa de fazer uma resenha circunscrita à ideia de “obra em si”, também podemos cavar outros sentidos para “apresentação”. Pensamos o termo a-presentação enquanto o ato de atualização de alguma relação, criação de trajetórias e vínculos, analogamente à aproximação de pessoas graças às conexões dos círculos de amizade: o ato de cumprimentar, dizer o nome etc. Seria o exemplo de uma repetição, porém renovada pela força da singularidade de um encontro. Nesse sentido, antes de irmos ao encontro das temáticas, percursos das experiências e orientações conceituais das pesquisas arroladas, segue um breve preâmbulo acerca dos motivos, isto é, dos círculos de amizade que marcam a fisionomia da referida “Cartografias de Memórias”.

Publicada em 1973, “O Campo e a Cidade: na história e na literatura” de Raymond Williams é uma obra nascida da inovação do olhar, de um processo criativo vinculado à interdisciplinaridade. Estudioso da literatura inglesa e sempre atento à relação desta com as transformações históricas na Inglaterra, ou vice-versa, Raymond Williams passa a observar como inúmeros literatos constroem os mais díspares discursos sobre o campo e a cidade. Bucolismo, decadência, indiferença e nostalgia são sentimentos evocados pelos escritores para enfatizar, de forma coeva, estruturas do mundo “rural” e “urbano”. Apesar de não nos determos na complexa relação da história e da literatura enquanto bases para a construção de uma ideia de “Inglaterra” em séculos anteriores, nem tão pouco na reiterada força da literatura em criar predicados para a noção de “campo” e “cidade”, gostaríamos de enfatizar que “O Campo

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e a Cidade” de Raymond Williams é a tentativa de conceber a construção de memórias na fronteira entre o que designamos de “tempo” e “espaço”.

Como se constrói a noção de um tempo que passou (nostalgia)? A partir de que elementos se criam lugares fora do espaço (intocável ante as mudanças sociais que o circundam) e fora do tempo (imutável/bucólico)? De outro modo, de onde vem às forças capazes de prometer, idilicamente ou não, tanto a conservação de um mundo (o mundo das tradições) quanto a sua transformação (progresso)? Raymond Williams diz que para avançar nesses termos é necessário ver que “o problema inicial é de perspectiva”, priorizar as experiências em detrimento das fórmulas de oposição (“passado e presente”, “lá e aqui”) (WILLIAMS, 1989). Para tal, o autor não investiga porque um literato do século XVIII falava do campo como um espaço em vias de desaparecimento, ou o que exatamente inspirava a associação das cidades a um tipo de degradação moral, por exemplo, e sim quais lugares, correspondências e círculos de amizade permitiram que se estabelecesse uma escrita dessa ou daquela maneira. Sem dúvida estamos falando de um autor que tanto construiu uma grande interpretação da “memória dos literatos” e da “memória literária”, fundindo uma na outra, quanto foi capaz de atualizar a sua própria condição de literato a partir das experiências de memórias apreendidas “com”, e, ao fazê-lo, pôs-se como “crítico do seu tempo”.

A experiência de falar a partir de um ponto ou quadro de referência é inevitável, mas no caso de pessoas marcadas por distintos processos de deslocamentos, tal “quadro de referências” é atravessado por transbordamentos, vazantes ou fissuras. Nesses casos e mesmo ante a processos de exploração de todos os tipos, são mui capazes de irrigar e remodelar experiências culturais e formas de resistência. Em “Pensando a Diáspora, reflexões sobre a terra no exterior”, Stuart Hall, intelectual jamaicano diaspórico, em vida residente na Inglaterra e durante muito tempo diretor do Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS) da Universidade de Birmingham, Inglaterra, sinaliza aspectos importantes para se compreender a exterioridade da terra via movimento

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diaspórico1.

A experiência pessoal da diáspora afro-caribenha após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), tornada igualmente e não por acaso tema dileto do autor é o solo donde emerge as conexões de pesquisa entre poder e cultura de populações africanas e seus descendentes, das formas de vida de migrantes no dito “Velho Mundo” e da “ambiguidade” ou “multiplicidade” do conceito de “identidade na pós-modernidade” (HALL, 2009). Se inicialmente Stuart Hall considera a experiência diaspórica2 desses povos extremamente marcada pela violenta desterritorialização de suas formas de vida, por outro remete a possíveis retornos o sentimento de estranhamento ou não reconhecimento da terra a um fenômeno radical que o veicula tanto a adaptação no exterior quanto à invenção de uma terra “originária”. A diáspora arremessa tais populações ao trabalho prometeico-industrial da memória.

A promessa do retorno (físico ou não) à terra de origem forja incessantemente centenas de ferramentas da cultura sob a fornalha da memória. Aliás, a noção de que “a cultura é uma produção”, que tem “sua matéria-prima, seus recursos, seu ‘trabalho produtivo’” são recorrentes em Stuart Hall, pois deita engrenagens quer num conceito de memória de um povo

1 A respeito do processo de institucionalização dos Estudos Culturais Britânicos em 1964 e da relação e proeminência de Richard Hoggart, Raymond Williams e Stuart Hall na formação política e teórica do Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS), um campo de saber, sugerimos a título de introdução: (HALL, 2005; HALL, 2008; ESCOSTEGUY, 2008; DOUGLAS, 2001; NELSON, 2005).2 Apesar de ser um termo polissêmico, Stuart Hall utiliza o conceito de Diáspora no recorte específico das lutas de descolonização de povos africanos e seus descendentes, seus deslocamentos materiais e simbólicos e a bem dizer, miríades de dinâmicas elaboradas entre a noção de “terra distante” e “renascimento da terra” no exterior e liames da segunda metade do século XX: “A experiência da diáspora como a entendo aqui é definida, não pela essência ou pureza, mas pelo reconhecimento de uma heterogeneidade e diversidade necessárias, por uma concepção de “identidade” que vive com e pela diferença, e não apesar dela, por hibridismo”(HALL, 2006). Adiantamos o distanciamento do conceito “clássico” de diáspora formulada a partir da tradição genericamente chamada de “judaico-cristã”, na qual a diáspora estrutura tanto a história de um povo em particular - agrupamentos étnicos referentes aos “povos semitas” no Oriente Próximo - quanto uma pretensa teodiceia específica. A esse respeito recorremos a (PETERS, 2008; ARMSTRONG, 1994).

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em deslocamento, de literatos (como também o fazia Raymond Williams), ou de discursos nacionalistas, restritos ou não às políticas de Estado (HALL, 2009, p. 43).

A memória anteriormente evocada em “Campo e Cidade” de Raymond Williams, agora posta a irrigar exponencialmente as engrenagens do “trabalho produtivo” da cultura em Stuart Hall nas rotas de “Áfricas” e “Caribes”, leva-nos sem muito esforço a reconhecer no conceito de memória, pedra de toque e força antropofágica (SOVIK, 2009) da noção de diáspora: referência mediadora da experiência do deslocamento e, ao mesmo tempo, força instável e paroxística que revolve o solo do rememorar.

Não obstante a possibilidade de aproximar os autores supracitados à temática memorialística e destacar a aproximação do último à dinâmica das experiências diaspóricas, resta-nos perguntar: qual modus operandi poderá o pesquisador acessar para apreender vivências tão dissonantes e fugidias? Um dos caminhos diletos pela maioria dos autores dos textos arrolados na obra-vítima deste prefácio é a imersão no universo cartográfico, particularmente na “postura cartográfica” adotada em “O Ofício do Cartógrafo” de Martín-Barbero3.

Diferentemente dos mapas que nos impedem de construir o próprio percurso, fixando pontos de partida e chegada, a cartografia, tal como enunciada por Martín-Barbero, é caracterizada, primeiro, pela fluidez da experiência a partir da elaboração de trajetos particulares; segundo, pela noção de que a construção de “novos itinerários” implica o saudável risco de perder-nos; e terceiro, mediante o status de estar “perdido” ou na condição de “errância”, redescobrirmos a nós mesmos e os outros. Nesse fértil movimento entrelaçando memória e cartografia se nos desvela a riqueza da diferença4. O 3 O conceito de cartografia é plural e remete, portanto, a distintas áreas do saber. Para uma compreensão das ideias do autor e sua, digamos, recepção na Amazônia, é válido a consulta de (MARTÍN-BARBERO, 2004; MIRANDA, 2013).4 Sobre a problematização da centralidade das análises do campo da comunicação e de outros estudos de cultura podem ser lidas à obra (MARÍN-BARBERO, 2004, pp. 209-256).

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sobrevoo dado na presente interpretação de Raymond Williams, Stuart Hall e Martín-Barbero nada tem a ver com um traçado linear, síntese ou filiação teórica, mas sim evoca um ligeiro experimento cartográfico na Amazônia5.

Remetemos finalmente o leitor a esses termos para descortinar algumas das linhas gerais percorridas pelos autores desta “Cartografia de Memórias”, afinal, a tarefa de a-presentar entendida enquanto atualização não somente das reflexões de manuscritos e percursos de pesquisas, mas das relações de amizade e efetiva interlocução não podem ser fraturadas. Dito isto, é válido recuperar que o livro de “Cartografias de Memórias: Pesquisas em Estudos Culturais na Amazônia Paraense” é resultado, numa escala maior, das atividades desenvolvidas entre 2011 e 2015 do Grupo de Pesquisa em Estudos Culturais na Amazônia (GECA/CNPq/UFPA).

O GECA agrega desde os primeiros encontros professores, estudantes e demais cidadãos interessados em fazer pesquisa ou dialogar com o campo dos “Estudos Culturais”,“Pensamento Pós-Colonial”, “Pensamento Latino americano” e “Estudos Subalternos”. Além de discutir autores como Richard Hoggart, Raymond Williams, Edward Palmer Thompson, Stuart Hall, Raphael Samuel, Edouard Glissant, Edward Said, Homi Bhabha, Paul Gilroy, Néstor García Canclini, Beatriz Sarlo, Jesus Martin Barbero, Walter Mignolo, Enrique Dussel, George Yudice, Gayatri Spivak, Boaventura de Souza Santos, para citar os principais. Os encontros do grupo não olvidam a relevância e releitura desses autores à luz de outras realidades locais, a exemplo da Índia, Palestina, Caribe, América do Norte, América Latina e Brasil para lançar compreensões teóricas e políticas sobre cosmologia de populações amazônicas, centrando-se nas formas de negociações, ressignificações, perdas, lutas e resistências em tempos de encontros e confrontos culturais.

A partir de 2013, o GECA paulatinamente passou a integrar pesquisas e contribuições teóricas do campo das Artes, História, Literatura, Letras, 5 Existem pesquisas e incursões teóricas a esse respeito na Amazônia (SARRAF-PACHECO, et al. 2015 [No prelo]; SILVA, 2016 [Encaminhado à avaliação]).

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Comunicação, Design, Educação, Geografia, Ciências Sociais, Antropologia e Museologia, tendo suas reuniões realizadas mais detidamente no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA/UFPA) e Programa de Pós-Graduação em História (PPHIST/UFPA). Os textos dispostos nesta coletânea são resultados de pesquisas no âmbito da Pós-Graduação, de projetos de pesquisa, bem como dissertações e teses.

Em dezembro de 2013, através de parceria que vinha sendo estabelecida entre os Programas de Pós-Graduação em Antropologia e Comunicação, Cultura e Amazônia tornou possível realizar o II Colóquio Nacional de Estudos Culturais na Amazônia. O evento foi organizado pelos professores doutores Agenor Sarraf Pacheco (PPGA/PPHIST/UFPA) e Drª Ataíde Malcher (PPGCom/UFPA). Este colóquio gravitou em torno da temática “cartografias, literaturas e interculturalidades” e além de agregar pesquisadores vinculados aos referidos programas de pós-graduação reiterou o compromisso com a interdisciplinaridade. Segundo os organizadores do evento, a temática pretendia “evidenciar o lugar, as práticas e os modos de viver de povos da floresta, do campo, das águas, das beiras de estradas, de aldeias, de quilombos e mocambos, de centros, periferias urbanas ou de ambiente de margens silenciadas”.

Em lances de reflexão sobre tempos, lugares e agentes históricos, Sarraf-Pacheco (2012, p. 03), assinala:

A emergência dos tempos de globalização contemporânea, expansão e difusão dos meios hipermidiáticos pretenderam construir uma lógica unívoca para se pensar o modo de vida de populações, cujas histórias, memórias, culturas e identidades foram alinhavadas nas dobras do letrado e capitalista poder dominante ocidental. Na contramão deste processo, as culturas locais desafiaram silenciamentos e levantaram suas vozes, mostraram suas forças e rostos, reafirmaram suas identidades e exigiram revisões

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nas posturas das antigas, modernas e pós-modernas instituições sociais no que tange ao princípio de sua auto determinação.

Nesse meandro, o GECA, consciente das interconexões entre oralidades e letramentos, ruralidades e urbanidades, tradições e modernidades, localidades e globalidades, comunicações e culturas, tem procurado refletir e compreender como grupos e pessoas oriundas de diferentes territórios culturais, vivenciam, interpretam e criam significações para conviver com contínuos processos de mudanças impulsionados pelos mais variados meios de comunicação que se instalaram e conectaram a região amazônica ao restante do planeta.

Nas intersecções e interculturalidades produzidas, os integrantes desse grupo de pesquisa, reconhecendo-se como filhos nativos ou adotivos do mundo amazônico, vêm despertando consciência para os circuitos das tradições, comunicações, saberes, fazeres visibilizados em patrimônios culturais que congregam e expressam influências europeias, africanas, asiáticas, norte-americanas, intensificando-se com a disseminação das variadas formas de letramento, culturas e economias tecnológicas em tempos contemporâneos.

Entendemos que se processos de perdas, dominações e dizimações não podem ser esquecidos no contar das histórias regionais, não se pode esquecer que, mesmo em escalas desiguais, traduções culturais por meios de táticas, recepções ativas, artimanhas e/ou ressignificações deixam ver astuciosas maneiras de resistir e lutar no palco da cultura pelas gentes amazônidas (CERTEAU, 2002; WILLIAMS, 1979).

Em outra escala, antigas, modernas e pós-modernas práticas e produtos de comunicação não podem ser interpretados sem seus sentidos, reproduções e reinvenções culturais. Conforme nos ensina Martin-Barbero “estamos necessitando pensar o lugar estratégico que passou a ocupar a comunicação na configuração dos novos modelos de sociedade e sua paradoxal vinculação tanto no relançamento da modernização – via satélites, informática,

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videoprocessadores – quanto com a desconcertada e tateante experiência da tardomodernidade” (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 13).

Na produção dessa “tardomodernidade” na Amazônia, discutível em circuitos locais, a cultura fertiliza a existência humana em suas múltiplas dimensões, assim como sua relação com a comunicação representa “hoje um campo primordial de batalha política” (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 13): batalha tecida em prol da compreensão dos modos de viver na região e construção de projetos com tecnologias de ponta e alternativas capazes de contribuir com a emancipação das populações locais, sem serem obrigadas a negarem suas histórias, patrimônios, memórias, saberes e identidades.

Ante o exposto, o leitor poderá dialogar com a presente coletânea também em postura cartográfica, na medida em que os textos estão dispostos continuamente e sem privilegiar tema ou opção disciplinar, podendo escolher, dado uma óbvia predileção, entrar ou sair por um dos 15 capítulos dispersos no solo cartográfico. Nele encontram-se memórias de literatos, intelectuais, artistas, políticos, populações tradicionais do campo e cidade, igualmente, reflexões sobre estéticas, saberes e manifestações materiais e imateriais da dita “Amazônia paraense” e por último e não menos importante, cenários latentes de relações de poder, registros críticos e engajados das intolerâncias das políticas de Estado.

Esperamos que nossas escrituras possam de algum modo, desorientar e afligir o estimado leitor com as náuseas necessárias para forçá-lo na arte da errância e reencontro, esforço derradeiro para atualizar a si e nossos outros entre as miríades de Amazônias.

REFERÊNCIAS

ARMSTRONG, Karen. Uma história de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. 7. Ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

DOUGLAS, Kellner. Introdução; Guerras entre teorias e Estudos Culturais. In: A cultura da mídia - Estudos Culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: EDUSC, 2001, p. 09-74.

ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Stuart Hall: esboço de um itinerário biointelectual. In: Revista FAMECO, n. 21, Porto Alegre, agosto de 2008, p. 61-74.

HALL, Stuart. Identidade cultural e diáspora. Comunicação & Cultura, (n.º 1), 2006, p. 21-35.

______. Pensando a Diáspora: reflexões sobre a terra no exterior. In: Da diáspora: identidades e mediações culturais; Organização de Liv Sovik; tradução Adelaine La Guardia Resende... [et al.]. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009, p. 25-28.

______. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 8. ed. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

______. Raça, cultura e comunicações: olhando para trás e para frente dos Estudos Culturais. In: Projeto História 31. PUC-SP: Educ, dez. de 2005, pp. 15-24.

MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001.

______. Ofício de Cartógrafo: travessias Latino-Americanas da comunicação na cultura. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

MIRANDA, Fernanda Chocron. Cartografia movente: uma postura de pesquisa em comunicação na Amazônia. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Federal do Pará, Belém, 2013.

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NELSON, Cary et. al. Estudos Culturais: uma introdução. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. 6ª. ed. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005, p. 07-38.

PETERS, F. E. Os monoteístas: judeus, cristãos e muçulmanos. São Paulo: Contexto, 2008.

SARRAF-PACHECO, Agenor. Os Estudos Culturais em Outras Margens: identidades afroindígenas em “Zonas de Contato” Amazônicas. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, v. 9,ano IX, n. 3, set.-dez., de 2012, p. 1-19.

SARRAF-PACHECO, et al. “Na outra ponta do Brasil”: Experiências com escritos de Stuart Hall na Amazônia (sob avaliação científica), 2015, p. 1-13.

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CARTOGRAFIA DE MEMÓRIAS NA AMAZÔNIA

Agenor Sarraf Pacheco (PPHIST/PPGA/UFPA)

Costurando fronteiras

Desde menino vim pra cidade!Trouxe os meus livros leais,

Debaixo do braço e o ar de matutoDe quem tinha n’alma as raízes

Das paisagens, dos silêncios,Das cousas virgens do Marajó...

Dalcídio Jurandir (NUNES, 2011, p. 49)

Ver, observar, olhar, visitar, trafegar, apalpar, viver o bairro, pensar a cidade, refletir sobre seus caminhos, debater suas presenças ausentes, mergulhar em sua história, captar usos e sentidos de seus patrimônios6 edificados, abandonados, silenciados, restaurados, praticados por aqueles que os constroem, compartilham e a eles dão existência física e simbólica, são ações necessárias para a construção de uma cartografia de memórias acerca do lugar.

Diferente da cartografia moderna dual que criou linhas abissais e excluiu do direito à memória o subalterno e o ilegítimo, denunciada por Boaventura Santos (2010, p. 38), o sentido de cartografia que utilizo neste artigo está orientado por compreensões de Deleuze e Guattari (1995; 1996), Boaventura 6 A palavra patrimônio vem do latim, patrimonium, e estava voltada para todas as posses do pater, pai. Conforme Funari e Pelegrini (2006, p. 11), esses patrimônios referiam-se a bens materiais, humanos e naturais de valor aristocrático e privado. Com o correr do tempo, as novas acepções que o termo incorporou estiveram ligadas às formas de organização política, social e econômica das sociedades modernas. No contexto de formação dos Estados nacionais, determinados agentes, respaldados em instrumentos jurídicos, definiram o conjunto de bens que deverão estar sob a proteção da gestão pública (FONSECA, 2009). Já Choay (2001, p. 11) enfatiza que o termo patrimônio possui em sua origem, histórias que recuperam “estruturas familiares, econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no tempo”. Com o tempo, em função de suas mais variadas formas de utilização, tornou-se um “conceito nômade”.

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Santos (2002), Martín-Barbero (2004) e Glissant (2005). Em Deleuze e Guattari (1995), seis princípios conformam a filosofia da multiplicidade, cuja metáfora explicativa é o rizoma. São elas: a) conexão; b) heterogeneidade; c) multiplicidade; d) ruptura a-significante; e) cartografia; f) decalcomania. Sobre o princípio da cartografia eles assinalaram:

O mapa não produz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói (...) é aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmotável, reversível, suscentível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social (...). Uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas (1995, p. 22).

Lisiane Aguiar (2010, p. 1), mergulhada nesta orientação filosófica, aponta limites de pesquisas no campo da comunicação que adotam perspectivas deterministas e isoladas para compreender o objeto de investigação. Para ela, a filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari diferencia-se por basear-se em “um pensamento que não se materializa como histórico, que reproduz os fatos de forma representativa, mas geográfico, compreendendo que o método em uma pesquisa é como uma paisagem que muda a cada momento e de forma alguma é estática”.

Na perspectiva de Boaventura Santos (2002) a cartografia revela múltiplos campos do saber que estruturam representações sobre a realidade social. Para Martín-Barbero (2004, p. 13) são “mapas cognitivos que traduzem outras figuras como a do arquipélago, desprovidas de fronteiras que os una. Com isso, o continente se desagrega em ilhas múltiplas e diversas, que se interconectam”. Já em Glissant (2005, p. 54) sob a metáfora do rizoma, a cartografia se faz dentro do “pensamento arquipélago, não sistemático, indutivo, que explora o imprevisto da totalidade-mundo, e que sintoniza,

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harmoniza a escrita à oralidade, e a oralidade à escrita”.

Nossa leitura do roteiro geoturístico7, tracejado pelo bairro da Cidade Velha em Belém, inspirada nessas formulações, capta as rugosidades espaciais8 (SANTOS, 1980) e os espaços praticados (CERTEAU, 1994) como constitutivos de um mapa decolonial9 culturalmente talhado por memórias que desfiam experiências humanas em ampla e dinâmica zona de contato (PRATT, 1999). Deste modo, a cidade apresenta-se em trajeto plural, intercultural10, descontínuo, imprevisível, indutivo, aberto e em conexão com memórias que contiguamente fazem confluir passado e futuro, mediatizadas por construções e intervenções do presente.

Por esse enredo, trabalhamos com a compreensão de cartografia de memórias como campo teoricometodológico11 decolonial, não-linear, processual, dinâmico, rizomático, múltiplo. Ela envolve a construção de conhecimentos sem dualidades, valoriza suas intersecções e interculturalidades. Por meio do mapeamento, interpretação, reflexão e ação, cartografia de memórias gesta conhecimentos nas interfacesde teorias nômades com diferentes memórias, seus lugares, usos e significações. Para este campo, os saberes locais não são puros, as tradições são sempre reinventadas e as etnias historicamente misturadas.

7 Roteiros Geoturísticos - Conhecendo o Centro Histórico de Belém na Amazônia é um projeto de extensão do GGEOTUR- Grupo de Pesquisa de Geografia de Turismo, que pertence à Faculdade de Geografia e Cartografia da Universidade Federal do Pará (UFPA), coordenado pela Profª Dra. Maria Goretti Tavares. Ao longo do texto, detalharemos seus objetivos e atividades.8 Na conceituação de Santos (1980, p. 138), “as ‘rugosidades’ são formas espaciais do passado produzidas em momentos distintos do modo de produção e, portanto, com características socioculturais específicas. Nessa linha de interpretação, as ‘rugosidades’ constituem-se em paisagens técnicas que podem ser periodizadas segundo o desenvolvimento do modo de produção ao longo do tempo histórico”.9 Decolonialidades são movimentos mentais e epistemológicos de crítica e rompimento com ordens coloniais, concepções de vida eurocêntricas e discursos de modernidade que excluíram grupos sociais indígenas e africanos na América. Sobre essa compreensão Cf. Césaire (2006); Mignolo (2003; 2008; 2010); Santos e Menezes (2010), Santos (2010).10 A interculturalidade, de acordo com García Canclini (2009, p. 17) é um “modo de produção do social”, ela “remete à confrontação e ao entrelaçamento, aquilo que sucede quando os grupos entram em relações e trocas. (...) Interculturalidade implica que os diferentes são o que são, em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos”.11 A palavra construída sem hífen está baseada na crítica ao modelo dual teoria x metodologia, teoria x prática, teoria x empiria.

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A inspiração para essa construção está concatenada ao questionamento que a Filosofia da Multiplicidade de Deleuze e Guattari (1995), os Estudos Culturais Britânicos e Latino-americano, o Pensamento Pós-Colonial Indiano e Caribenho passaram a fazer do saber disciplinara partir das décadas de 1960 e 1980. Estes campos ao realizarem interrogações contínuas do conhecimento eurocentrado, que jogou nas sombras do cientificismo iluminista epistemologias e cosmologias elaboradas por outros povos e culturas não europeias, romperam fronteiras temáticas e abriram horizontes para problematizar diferentes dualidades forjadas pelo pensamento moderno.

Teoria x prática, sujeito x objeto, tradicional x moderno, campo x cidade, oralidade x escrito, material x imaterial, discurso x prática, são exemplos de dualidades que impediram a escrita do saber apreender sentidos, sensibilidades e sociabilidades produzidas nas intersecções desses indissociáveis universos, reveladores das experiências humanas em distintos momentos históricos.

Orientados por essa perspectiva anti-dicotômica, as interfaces urdidas em tempos contemporâneos entre variados campos disciplinares permitiram que outros saberes, histórias e estéticas do cotidiano ganhassem reconhecimentos acadêmicos. No mundo amazônico, por exemplo, esforços de um grupo de professores da Universidade Estadual do Pará (UEPA), sob a coordenação da professora Ivanilde Apoluceno de Oliveira, revelam a riqueza das experiências educacionais construídas em ambientes escolares e não-escolares de comunidades ribeirinhas do município de São Domingos do Capim. Nestes trabalhos acerca de Cartografias Ribeirinhas (2004; 2008b); Cartografias de Saberes (2007; 2008a) emergem relacionamentos profundos que homens, mulheres e crianças estabelecem com as paisagens locais e os ensinamentos escolares.

Nessa inspiração, as cartografias vislumbradas expõem, no primeiro trabalho, história e geografia do lugar, tradições e identidades, meio ambiente e seus usos, saberes culturais e educacionais, poéticas, trabalho e saúde, campo

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semântico da linguagem e valores do cotidiano (OLIVEIRA, 2008b, p. 17). Na segunda coletânea, os saberes culturais manifestam-se em vocabulários, medicina popular, culinária, lendas e mitos, religiosidade popular, músicas, fauna e flora (OLIVEIRA, 2007, p. 15). Já na terceira produção, o grupo de pesquisadores explorou a religiosidade como manifestação humana e cultural, por meio do estudo das representações dessas práticas em ambientes educativos (OLIVEIRA, 2008a). Para a professora Ivanilde, por exemplo,

Os saberes que envolvem a arte, a religiosidade, os costumes e os valores na cultura amazônica estão no centro dos debates sobre a formação e a prática de educação popular destas comunidades (hospitalares, periféricas, rurais-ribeirinhas), e o seu estudo possibilita a construção de novas diretrizes e práticas educativas, cujo ponto de partida é a reflexão sobre a própria práxis dos educadores e dos educandos contextualizada na cultura local (OLIVEIRA, 2007, p. 13).

A defesa da pesquisa interdisciplinar realizada pelo conjunto dos textos que conformam esses dois importantes exercícios de pesquisa educacional na Amazônia está baseada em uma cartografia simbólica, redigida por imaginários e representações da vida social. A fundamentação teórica centra-se nas concepções de cartografia elaborada por Boaventura Santos (2002), para quem o termo desvela múltiplos campos do saber que estruturam representações sobre a realidade social, e Mclaren (1991), que a interpreta como tentativa de captar sentidos expressos e ocultos da experiência social.

Roseli Sousa (2010), seguindo rastros desta construção, especialmente aquela elaborada por Fares (2003), em sua construção poética sobre saberes artístico-estéticos da ilha de Caratateua, em Belém, explora o conceito cartografia de saberes como

Campo de conhecimento materializado pelas práticas cotidianas que se estrutura num amálgama de memórias

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coletivas a dar contornos às produções culturais tradicionais da ilha de Caratateua. Marca a história de vida dos intérpretes. Espaço da memória e da voz que ergue as imagens e saberes da ilha constituindo-se em um mapa iconizado (SOUSA, 2010, p. 16).

A aposta neste artigo é que desenvolver investigações com base na cartografia de memórias, valorizando saberes e estéticas múltiplas e marginais, histórias invisibilizadas, temáticas socioculturais consideradas de menor relevância para o entendimento das conjunturas e estruturas sociais, permite reeditar a escuta não apenas de vozes das margens e suas formas de resistência, mas, preferencialmente, recompor táticas, contaminações, derrotas, traduções e recriações confeccionadas em bricolagens das vozes do eu & outro, do saber & conhecimento, do ocidente & oriente, da epistemologia norte & epistemologia sul, entre tantos outros binômios nascidos em inter-relações, mas fatiados pelas teorias da macronarrativa.

Assim, utilizamos memórias no lugar de saberes por defendermos que o campo da memóriaem sua dimensão social se manifesta nos mais diferentes registros da cultura, seja ele oral, escrito, visual, digital, material, imaterial, simbólico. Igualmente, todas as formas de saberes ganham materialidade na memória. Sousa (2010, p. 19) mesmo categorizando sua pesquisa na compreensão de uma cartografia de saberes, ao valorizar a relação espaço-tempo da narrativa dos moradores e produtores culturais da Ilha de Caratateua, pelo método da História Oral, assinala que ao final o “que se constrói é uma cartografia de memórias”.

Se o pesquisador seguir as pegadas do cronista de Walter Benjamin (1994) que valoriza os pequenos sinais do passado, manifestados em reminiscências, rastros, resíduos, fragmentos e a partir daí cartografá-los não apenas como um colecionar, mas especialmente assumindo a identidade de um intérprete o qual se coloca à escuta das vozes polifônicas dali emanadas, poderá recompor memórias insurgentes em conexões historicamente fraturadas pela escrita de

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um saber único e elitista.

O foco interdisciplinar em áreas que estão nos raios de nossos interesses e preocupações como História, Artes, Antropologia, Comunicação, Letras, Geografia, Educação explora cartografia de memórias como aporte teórico e ao mesmo tempo metodológico de pesquisas preocupadas em captar processos, discursos, experiências e sentidos de vivências interculturais arquitetadas nos imbricamentos rural & urbano, tradição & modernidade, oralidade & escrita, passado & presente.

Patrimônios, Rurbanidades e Poderes

Visando explicitar de que modo essa construção poética e política foi ganhando consistência em nossa reflexão, é preciso dizer que tudo começou quando o professor Renato Gimenez, coordenador do Curso de História da Faculdade Brasil-Amazônia (FIBRA), convidou-nos a ministrar a disciplina Patrimônio Material, Memória e História, em janeiro de 2013, para alunos do Curso de Especialização em Patrimônio Cultural e Educação Patrimonial desta faculdade.

Naquele momento, planejamos realizar uma atividade escrita que fosse capaz de traduzir significados de aprendizagens adquiridas na disciplina. O objetivo da produção textual era construir pontes entre teóricos e realidade social amazônica, contribuindo para que os alunos pudessem deitar argumentos de especialistas na discussão de patrimônio12, memória e história13 à luz de uma interpretação poética e política da cidade de Belém, especialmente em ambiente que ganhou convencional destaque por ser de “grande importância no processo de conquista e colonização portuguesa no Norte do Brasil” (G1 PA).

A ideia de rascunhar, então, essa cartografia de memórias, a partir de uma visita a determinados lugares da cidade de Belém, consolidou-se com o convite 12 Sobre a temática, o curso baseou-se em Choay (2001); Fonseca (2009); Oliveira (2010).13 Acerca da temática, o curso discutiu Halbwachs (2003); Nora (1993); Bosi (1999); Oliveira (2010).

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de Maria Goretti da Costa Tavares, professora da Faculdade de Geografia da Universidade Federal do Pará, para que acompanhássemos o percurso que turistas, alunos, moradores e curiosos vem fazendo desde 2010 pelas ruas da Cidade Velha, por intermédio das atividades do Projeto de Extensão “Roteiros Geoturísticos - Conhecendo o Centro Histórico de Belém na Amazônia”, sob sua coordenação. De acordo com esta professora (TAVARES, 2010),

o projeto objetiva desenvolver conhecimentos e fundamentos teóricos e práticos para elaboração de roteiros geoturísticos, tomando como base a formação histórica e espacial da cidade de Belém, visando resgatar a memória socioespacial da cidade, especificamente o bairro da Cidade Velha no centro histórico, a partir dos atores sociais que ali vivem. Assim como apresentar os roteiros geoturísticos à sociedade e ao poder público como uma das perspectivas de atividades econômicas voltadas para o desenvolvimento local.

Ler territórios urbanos na esteira de uma cartografia de memórias, elaborada por alunos universitários sobre sua cidade, segue na contramão do pensamento de sistema ou continental, que “se mostrou incapaz de dar conta do não-sistema generalizado das culturas do mundo” (GLISSANT, 2005, p. 53). Igualmente esse pensamento talhado pela modernidade, face oculta da colonialidade, como nos ensina Mignolo (2003), por ser abissal, criou uma linha invisível, colocando em inexistência e exclusão cosmologias e práticas culturais que não se encapsulavam em seus códigos inteligíveis. Com isso, instalou “a impossibilidade da copresença dos dois lados da linha” (SANTOS, 2010, p. 32).

Assim, com base em Deleuze e Guattarri, Barbero, Glissant e Boaventura Santos, captamos o bairro da Cidade Velha como porta de entrada de Belém, não apenas por ter o privilégio de ser o ponto inicial de nascimento da cidade ou representação visível de um poder colonizador, mas fronteira de

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trocas e tensões, capaz de evidenciar e costurar tradições e modernidades, inclusões e exclusões sociais, vozes nativas e diaspóricas, colonialidades e decolonialidades14, implodindo com percepções que apreendem determinadas áreas urbanas de uma cidade circunscrita e fechada em si mesma.

Ana Maria Holanda (2013), uma das alunas que participou do roteiro, imprime em seu texto uma leitura do lugar em diálogo com a perspectiva cartográfica proposta neste texto.

Muitos pontos localizados nos bairros da Cidade Velha e da Campina são importantes na história e na forma de como vivem o povo paraense hoje. Os ribeirinhos com a culinária do açaí, símbolo de importância social e econômica da região, desembarcam e comercializam esta fruta que virou um marco da tradição paraense na “Feira do Açai”. Fruto que vemos espalhado em vários pontos pela cidade.

Já para Maria Edleuza (2013) o açaí possui grande valor simbólico. Dissertando acerca da feira, acionou memórias do lugar no tempo de infância na convivência cuidadosa e preocupada de sua mãe.

Esse complexo da feira já sofreu várias modificações, falo isso porque em 1980, minha mãe vendia comida na Feira do Ver-o-Peso. Ela por muitas vezes me contou que eu quando caminhava com ela pela Feira do Açaí, soltava-me de sua mão e corria em direção aos paneiros de açaí, enchia as mãos e voltava roendo os caroços e ela brigava comigo porque minhas mãos e roupas ficavam manchadas. Esses fatos hoje eu conto para meus filhos.

As lembranças de Edleuza foram herdadas a partir das frequentes narrativas maternas, aspecto discutido por Halbwachs (2003) quando 14 Conforme Porto-Goncalves (2005, p. 3), a colonialidade do saber “para além do legado de desigualdades e injustiças sociais profundos do colonialismo e do imperialismo, já assinalados pela teoria da dependência e outros, há um legado epistemológico do eurocentrismo que nos impede de compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhes são próprias”. Para Mignolo (2003, p. 34), “a partir da emergência e consolidação do circuito comercial do Atlântico, já não é possível conceber a modernidade sem a colonialidade” (...).

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ensina que as convivências em grupo reconstroem ou simulam memórias, criando representações do passado com base na percepção do outro. Com isso, internalizamos imagens profundamente engajadas em histórias compartilhadas com empréstimos do presente.

Nestes quadros, olhar para a Cidade Velha e enxergar expressões da vida na cidade de Belém e nas fronteiras da região amazônica parece-nos uma importante perspectiva para articular memórias, o dentro e o fora e captar suas conexões na tessitura de um modo de vida rurbano15 nesta metrópole paraense. Se o açaí é um produto considerado como ícone da identidade belenense e amazônica, cuja manifestação simbólica maior é a Feira do Açaí, território que coloca em diálogo a cidade e a floresta, seus pontos de presença em toda a metrópole por meio de variados tipos e modelos de bandeiras vermelhas parecem construir um desenho complexo de uma Belém toda marcada e integrada pelo hábito indígena de se alimentar.

Para além do açaí e na esteira da chamada culinária paraense, encontramos outros tipos de alimento como vatapá, tacacá, caruru, maniçoba, sendo comercializados tanto no bairro da Cidade Velha, quanto no bairro de Nazaré, por exemplo. Ao lado destes alimentos tradicionais a cidade em todos os seus ambientes consome hambúrgueres e outras iguarias como cardápio ofertado pela modernidade. Adensamos esse olhar cartográfico lembrando o patrimônio arquitetônico. Mesmo com leis de tombamento em vigor cujo teor maior é preservar o patrimônio colonial e bellepoquiano da Cidade

15 Gilberto Freire (1982) parece ser o primeiro intelectual brasileiro a cunha e conceituar rurbanidade. De acordo com Raimundo Santos (2006), Freire já havia anunciada a questão rurbana em 1956, num texto intitulado “Palavras às Professoras Primárias de Pernambuco”. Para o autor de “Casa Grande e Senzala” é preciso ultrapassar a dicotomia do puramente urbano e do puramente rural para identificar uma “terceira situação desenvolvida pela conjugação de valores das duas situações originais e às vezes contrárias e desarmônicas, quando puras” (FREIRE, 1982, p. 83). Em pesquisa desenvolvida sobre os modos de viver na cidade de Melgaço, no Marajó das Florestas, no Pará, denominamos esses imbricamentos de cidade-floresta. “O termo cidade-floresta opera com noções de uma urbanidade singular que se elabora pelos saberes, linguagens, crenças e experiências sociais de populações conformadas dentro de outra lógica de cidade e concepção de mundo. Ali antigos caminhos de roça cedem lugar à construção de ruas de chão batido, depois asfaltadas, assim como a continuidade de práticas de viveres rurais nesses novos espaços de moradia dialogam intensamente” (SARRAF-PACHECO, 2006, p. 24; 2010, p. 24).

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Velha, ali já encontramos outras arquiteturas contemporâneas, o velho e o novo se manifestam em profundas relações de complementaridades, tensões e traduções.

Stuart Hall (2003, p. 339), ao discutir o lugar da hegemonia nas relações culturais, adensa interesses para urdir fronteiras historicamente duais e atentar para as posições que histórias, práticas e costumes de grupos e sujeitos sociais ocupam na “guerra de posições culturais”em terrenos de encontros, negociações e sociabilidades.

A hegemonia cultural nunca é uma questão de vitória ou dominação pura; nunca é um jogo cultural de perde-ganha; sempre tem a ver com a mudança no equilíbrio de poder nas relações da cultura; trata-se sempre de mudar as disposições e configurações do poder cultural e não se retirar dele.

Mais adiante o intelectual jamaicano, um dos fundadores, nos primeiros anos da década de 1960, do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos, na Universidade de Birmingham, em Londres, em texto escrito na década de 90, avalia:

Reconheço que os espaços “conquistados” para a diferença são poucos e dispersos, e cuidadosamente policiados e regulados. (...) Eu sei que o que substitui a invisibilidade é uma espécie de visibilidade cuidadosamente regulada e segregada. Mas simplesmente menosprezá-la (...), não adianta.

Inspirado em trajetória poética dalcidiana que abre esta composição acadêmica, é possível dizer que pelos limites de nosso conhecimento da realidade em estudo, porque tendo vindo desde menino para Belém ainda “debaixo do braço” nos acompanha fios de memórias “do ar de matuto (...) das cousas do Marajó”, este artigo revela as primeiras aproximações com a história

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desta metrópole amazônica. Até, então, nossas escrituras estiveram centradas no entendimento de uma história sociocultural do mundo marajoara (SARRAF-PACHECO, 2006; 2009).

Assim, para compor a cartografia de memórias sobre o bairro da Cidade Velha em conexão com a cidade e o mundo amazônico, baseamo-nos em escrituras polifônicas ponteadas pelos alunos de pós-graduação. Em diálogo com os textos destes acadêmicos, a leitura do bairro e seu patrimônio afasta-se de convencionais dualidades. O esforço tentará captar as posições e tensões que grupos no poder e populares forjaram na construção do patrimônio material, arquitetônico ou cultural do centro histórico de Belém.

Podemos dizer que uma cidade está erigida sobre memórias oficiais e populares que se cruzam, vivem processos de trocas, experimentam a dominação, a perda e a expropriação, assim como resistem, criam táticas e astúcias para manterem-se vivas. O patrimônio do espaço urbano é plural, assim como plural são os lugares onde se manifesta e se ressignifica.

É preciso não olvidar que as pedras e vozes da cidade quando problematizadas podem revelar e esconder histórias, memórias, poderes, afetos, paisagens, patrimônios, identidades e histórias locais. Se compreendermos que toda forma de seleção e valorização de um bem material ou imaterial como patrimônio cultural público ou privado, envolve não apenas uma rede de relações de poder, disputas, negociações (LUCHIARI, 2005), mas também de contaminações, afetividades e pertencimentos, é possível dizer que o viver urbano é por excelência território onde patrimônios do poder e do afeto se manifestam pujantemente.

As construções materiais em decomposição no espaço urbano quando examinadas a partir das experiências dos sujeitos sociais que com ela interagiram podem revelar cenas do pulsar da vida urbana na relação passado & presente. Valorizar vozes de agentes históricos que convivem com esses

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monumentos ou deles guardam histórias e sentidos de seus usos e existências ajuda a reconstituir em termos de presenças já ausentes visões implementadas pelo poder público, particular ou popular sobre as edificações da cidade.

A Carta Constitucional de 1988, em seu artigo 216, assinala que “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. No conjunto dessas heranças adentram: I. As formas de expressão; II. Os modos de criar, fazer e viver; III. As criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV. As obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V. Os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (DANTAS, 2002).

Se o termo patrimônio carregou durante muito tempo os conceitos de belo, monumental, memorável, excepcional16

6, herança de prerrogativas epistemológicas eurocentradas, e no Brasil resultado do que advogou o Decreto-lei 25, de 1937, quando vinculou a noção de patrimônio histórico e artístico nacional “a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico” (FONSECA, 2005, p. 245), a partir dos anos de 1970 passou a ser postos em continuo interrogatório. Esse movimento ganhou força legal, com os sentidos de patrimônio apresentados na Constituição de 1988, conforme se verificou em Dantas (2002), pois trouxe à tona a necessidade de reconhecimento do patrimônio imaterial das sociedades, questionando representações e interesses de classe, gênero, raça, cor, postas nas sombras.

O conjunto de leis produzidas sobre as políticas de patrimonialização de bens públicos acionaram polêmicas e conflitos. Antes da Carta Constitucional, em 1979, a fusão do Centro Nacional de Referências Culturais (CNRC) ao 16 García Canclini (2012, p. 78), discutindo a definição de patrimônio por seu valor excepcional e universal afirma que sua fundamentação se assenta numa estética idealista que interpreta a obra como objeto singular e original.

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Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) fortaleceu e ampliou as práticas de patrimônio “retomando a proposta germinal de Mário de Andrade, ao diversificar o olhar patrimonial para os saberes e fazeres da produção cultural de grupos ainda não contemplados pelos reconhecimentos de patrimônio até aquele momento” (TOJI, 2009, p. 14).

As novas discussões e pesquisas sobre a temática do patrimônio, com as quais temos nos filiado têm procurado sair “de um discurso patrimonial referido aos grandes monumentos artísticos do passado, interpretados como fatos destacados de uma civilização, se avançou para uma concepção do patrimônio entendido como o conjunto dos bens culturais, referente às identidades coletivas” (ZANIRATO e RIBEIRO, 2006, p. 251). Com isso, a mudança na maneira de ver e valorizar o patrimônio exigiu revisões e construções de

outros marcos, balizas e periodizações, assim como outros signos de celebração, que permitissem inferir em nosso patrimônio cultural, sinais e ruídos de histórias silenciadas, minorias emudecidas, espaços de trabalho alijados, cultos religiosos ignorados, práticas sociais em extinção (MARTINS, 2009, p. 292).

Por esses termos, torna-se perceptível que se o poder público constrói políticas para salvaguardar patrimônios históricos oficiais, os moradores por sua vez ampliam a concepção de patrimônio defendida pelos discursos e práticas da gestão municipal, estadual ou federal, apresentando seus afetivos lugares de memórias. Tal diferença não interpreta a realidade histórica onde estão atuando poderes públicos e populares como meramente dicotômica, onde se vislumbra apenas dois grupos sempre em espaços distintos e de oposição. Em lutas desiguais, descontínuas, mas também estabelecendo alianças e deixando-se contaminar, administradores e moradores cotidianamente rompem fronteiras culturais, recriando caminhos para expor suas visões de mundo e de patrimônio.

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Neste diapasão, interessa refletir com assinaturas de Homi Bhabha (2003, p. 20) para quem o inovador e o crucial encontram-se na necessidade e capacidade de ultrapassar narrativas da origem e centrar esforços no entendimento dos “processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais”. Tal teorização está em conexão com perspectivas analíticas de Stuart Hall, que ao discutir as relações de força entre a chamada cultura dominante e a popular, inspirando-se em Raymond Williams e E. P. Thompson, assinala: “as culturas concebidas não como ‘formas de vida’, mas como ‘formas de luta’ constantemente se entrecruzam: as lutas culturais relevantes surgem nos pontos de intersecção” (HALL, 2003, p. 260).

Nas linhas dessa discussão, a Cartografia de Memórias inscreve-se por dentro de encontros, confrontos e trocas culturais que se manifestam em representações e práticas de patrimônios culturais amazônicos construídas pelos diferentes grupos sociais. Em torno dessa temática, apreendem-se epistemologias diferenciadas. Ao mesmo tempo, surpreendem-se momentos em que o afeto popular se encanta pelos discursos do poder e a lógica oficial contamina-se pela estética da tradição oral.

Para mergulhar nesse território de concretude e liquidez, é preciso dizer que o espaço que comporta esse centro histórico cujo tombamento foi homologado pelo Ministério da Cultura em 10 de maio de 2012, dialoga com a cidade, a história da região amazônica, os problemas da vida urbana e rural, mediada também por águas e florestas, conforme já sinalizamos no exemplo da Feira do Açaí, bem como no consumo cotidiano do açaí na região.

Se para o tombamento do patrimônio “levou-se em conta o conjunto formado pela trama da cidade consolidada entre os séculos 17 e 18 – com igrejas e suas torres, largos e praças, coretos, mercados e feiras - em interação com a Baía de Guajará” (MACHADO, 2012)17

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, traduzindo uma riqueza patrimonial de valor inestimável, pensar o bairro na

17 De acordo com o dossiê elaborado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a área de tombamento aprovada pelo Conselho Consultivo inclui bens já

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esteira de uma cartografia de memórias é apreendê-lo para além do instituído, dos planejadores urbanos e agentes do patrimônio (FONSECA, 2009).

A percepção do aluno Roberto Oliveira sobre o ponto de onde parte o roteiro geoturístico – o Forte do Presépio, atual Forte do Castelo – traduz compreensão menos ufanista e heróica do lugar. “A cidade começou com a construção de uma improvisada fortificação militar e uma pequena igreja de taipa, coberta de palha dedicada a Nossa Senhora das Graças, em 1616”, expondo um marco simbólico de dominação portuguesa, num tempo de morte da gerência do território pelos tupinambá e o nascimento do núcleo colonial (1616-1626) e mais tarde o Estado do Maranhão e Grão-Pará (1626-1652; 1654-1759) sob a custodia Lusitana18

18.

Em tempos considerados pós-modernos, sem esquecer suas ambiguidades, desigualdades e formas de exclusão (HALL, 2003), somos oportunizados a repensar nossa existência em sintonia com os lugares. Aliás, temos aprendido com estudiosos que se debruçam para refletir sobre as tênues fronteiras entre o humano e o não-humano (CHASSOT, 2008) ou entre o patrimônio material e imaterial (SALAINI e GRAEFF, 2011), as memórias coletivas e as memórias individuais (HALBWACHS, 2003; PORTELLI, 1997),que as dualidades dificultam compreensões mais amplas e inclusivas para estudos da experiência humana na sociedade contemporânea. É preciso não perder de vista, no entanto, que

Se o pós-moderno global representa uma abertura ambígua para a diferença e para as margens e faz com que um certo tipo de descentramento da narrativa ocidental se torne provável, ele é acompanhado por uma reação que vem do âmago das políticas culturais: a resistência agressiva à diferença; a tentativa de restaurar o cânone da civilização

tombados individualmente pelo IPHAN, nas décadas de 1940 a 1970.18 Baseado em Coelho (2002, p. 200), a cronologia, até a independência do Brasil, ainda é composta por Estado do Pará (1652-1654) e Estado do Grão-Pará e a Rio Negro (1759-1821).

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ocidental; o ataque direto e indireto ao multiculturalismo; o retorno às grandes narrativas da história, da língua e da literatura (...); a defesa do absolutismo étnico, de um racismo cultural (...) (HALL, 2003, p. 340).

O alerta de Hall ajuda a ficarmos atentos para a existência tanto de teorias que continuam interpretando a realidade social a partir da dominação ou tão somente da resistência, sem alcançar a “emergência dos interstícios” (BHABHA, 2003), quanto de rearticulações de perspectivas reacionárias e conservadoras a respeito da negação do outro na história. Mesmo considerando que formas de dominação se manifestam em todos os lugares onde a experiência humana se alinhava, compor uma cartografia de memórias sobre lugares de uma cidade é valorizar as diferentes vozes, relações e práticas culturais.

Pierre Nora (1993, p. 10) poderia nos dizer que a lâmina que fatiou a árvore da memória e espalhou pelos caminhos cascas da história sustentou-se na defesa de teorias duais para vivências indissociáveis. Deste modo, a colonização das paisagens físicas e culturais da Amazônia nas primeiras décadas do século XVII, pautada no pensamento moderno sistêmico e abissal, fez com que a necessidade de erigir lugares de memória, contraditoriamente explicitava a perda de antigos referenciais, o abandono das tradições, uma “desidentificação com a memória” dos grupos humanos que possuíam outras formas de transmitir e registrar saberes e fazeres.

Neste investimento, visando interpretar memórias do patrimônio cultural da cidade Velha, inspirada na experiência do Roteiro Geoturístico de Belém e ultrapassar tradicionais dualidades anteriormente sinalizadas, deste ponto em diante, nossa escritura tentará recompor um mapa diário, costurado a partir das composições poéticas e políticas de alunos graduados em processo de especialização na área de patrimônio cultural e educação patrimonial.

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Nas Pegadas da Cidade, Rotas do Roteiro

O passeio para o qual convido o leitor é bastante peculiar: é imaginário. Em primeiro lugar porque, se evidentemente nem eu nem o leitor vivenciamos concretamente (...), trata-se aqui de nos juntarmos para que eu conduza imaginariamente por algumas ruas e becos, ladeiras e largos, várzeas e jardins da cidade, narrando-lhe no caminho o que os transeuntes, também companheiros deste passeio, relatam (...) (FREHSE, 2005, p. 95).

Bem que a tomada pela mão, realizada por Frehse, poderia ser feita com os participantes do roteiro geoturístico de Belém, coordenado pela professora Goretti Tavares no dia 13 de janeiro de 2013. Mesmo não sendo essa a rota da autora, sua capacidade de conduzir o leitor em seu incrível estudo sobre a vida pelas ruas de São Paulo, nos finais do período imperial, parece nos levar por uma cartografia de memórias para mergulhar nas entranhas da cidade. No texto-orelha, José de Souza Martins assinala que “é um passeio vivo e colorido pelas ruas e calçadas, pelas praças e poucos jardins, numa última perambulação pela aconchegante cidade colonial que estava para desaparecer”.

Nos itinerários do roteiro geoturístico da Cidade Velha, o patrimônio material foi ganhando corpo à medida que rasgávamos o antigo território dos tupinambá e caminhávamos pela Ladeira do Castelo, Feira do Açaí, Rua Siqueira Mendes, Casa Rosada, Fábrica Soberana, Sede Náutica dos Clubes do Remo e do Paysandu, Largo e Igreja do Carmo, Porto do Sal, Igreja São João, Praça D. Pedro II, Palácios Lauro Sodré e Antônio Lemos, Instituto Histórico e Geográfico do Pará.

O aluno Daniel Tavares (2013) abre seu texto “Olhando Belém...” chamando a atenção do leitor para o fato de que a capital do Estado do Pará é detentora de um rico e diverso patrimônio cultural. “Uma ótima maneira de se aproximar e vivenciá-la se encontra nos roteiros geoturísticos”. Já Lúcio

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Gomes (2013) confessa que

Não é comum que as pessoas acordem cedo em um domingo de janeiro, onde a maioria delas se encontra de férias, principalmente se o dia estiver cinza.(...) Naquele dia acordei cedo para ver o que eu não conseguia ver em minhas visitas, ultimamente frequentes, ao Centro Histórico de Belém. Dessa vez com um objetivo diferente: perceber este centro através dos olhos dos bolsistas que organizaram e apresentam com bastante frequência, sob a coordenação da professora Goretti, o projeto de extensão conhecido como Roteiro Geoturístico no Bairro da Cidade Velha.

Questionando as relações entre memória coletiva e lugares de memória a partir do diálogo que estabeleceu com Halbwachs (2006) e Nora (1993), Daniel Tavares caracteriza o centro histórico de Belém como um território de memória do grupo de moradores que ali habitam e produzem seus processos de identificação com a cidade. Já Silva (2003:20) em pesquisa realizada sobre a “Qualidade de vida no Centro Histórico de Belém a partir de seus moradores”, constatou que

a população residente está bastante satisfeita de morar na área, avaliando o local como tranquilo e bem localizado. Essa localização se dá pelo fato de no CHB existir um grande polo de atividades comerciais e de serviço, então além de estarem bem servidos dessas atividades, os moradores também têm acesso aos transportes públicos urbanos.

Na ótica dos moradores, contudo, a insegurança revelou-se como principal problema no diagnóstico técnico aplicado pela jovem pesquisadora, por intermédio da metodologia de percepção ambiental. A existência de residências sem uso contínuo e falta de segurança pública na área contribuem para a marginalização do espaço. Diante da problemática mapeada, Silva

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(2003) considera ser preciso a implantação de uma política de ordenação do espaço por meio de legislação urbanística, patrimonial e de incentivos ao setor habitacional. Para isso, planejar e colocar em prática ações dessa política tornam-se soluções fundamentais na melhoria da qualidade de vida no bairro.

Nestes mapas de percepções, o aluno Smile Golobovante (2013) em seu texto observa certas contradições na vida daquele centro histórico.

O bairro da Cidade Velha encontra-se em grande parte tombado como patrimônio histórico tanto na esfera federal, como estadual e municipal. Entretanto, isso não exime do descaso de proprietários e do poder público com os prédios, praças e igrejas. (...) Os terminais hidroviários e o transporte de pessoas pelos diversos rios são precários, expondo a população paraense à falta de conforto e até perigos nas precárias embarcações.

A denúncia de Smile recoloca a presença de um modo de vida também aquático nos processos de identificação de muitos moradores de Belém. O uso diário de embarcações para ir ao trabalho, realizar viagens ou passeios é uma marca do cotidiano de determinados moradores do centro histórico de Belém ou de moradores de outros bairros que precisam alcançar a Cidade Velha para tomar a embarcação que fica ancorada em seus portos. Nesse sentido, utilizando formulações de Trindade Jr. (2002), poderíamos dizer que uma cidade ribeirinha também faz parte da multiplicidade de identidades que configuram Belém. Para o estudioso, uma cidade ribeirinha se faz não por estar situada à margem de um rio, mas pelas

interações e modos de vida que são estabelecidos entre os citadinos e o rio, seja este tratado como via de transporte de importância fundamental, seja este considerado como fonte de recursos econômicos e de subsistência, seja ainda como um referencial simbólico intrinsecamente relacionado à vida do homem amazônico que habita a cidade (TRINDADE JR., 2002, p. 137).

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As vozes dos alunos do curso de Especialização em Patrimônio Cultural e Educação Patrimonial, cartografadas em seus textos, vão desvelando o centro histórico de Belém em suas relações com diferentes temporalidades, riquezas e problemáticas.Maria Aparecida de Souza (2013) narra que

ao olhar à Cidade Velha se vê as marcas de um passado que dialoga com o presente, sem perder de vista a elegância de sua história. Porém, é necessária uma atenção especial para a preservação e valorização da memória que lá se faz.

A percepção de Maria Aparecida entra em sintonia com as de Lúcio Gomes (2013), quando reclama da necessidade de maior atenção dos órgãos competentes e da população paraense ao patrimônio material ali erigido. Ainda que este território histórico apresente uma “certa tendência comercial”, contudo seu descaso “acaba por degradar não só a vida comercial daqueles moradores, como também as próprias edificações presentes no bairro”.

Um bairro festivo também emerge das escrituras dos alunos-narradores. Na pena de Gabriela Araújo (2013) “a Cidade Velha é um local de grande expressão cultural que varia entre as atividades religiosas, como o Círio, e as carnavelescas, como o carnaval de rua. (...) E estas atividades culturais são muito presentes em locais como a Praça do Carmo”, considerada a segunda Praça de Belém. Ela foi construída para ser um ambiente de contemplação e sociabilidade para a Igreja do Carmo. Entretanto, a aluna não deixa de notar que há certo descaso com a estrutura deste patrimônio, que aos pouco vai se deteriorando, além de termos percebido, durante o passeio uma quantidade expressiva de lixo espalhado pela rua. Esse retrato de realidade dialoga com a matéria “Praça das Mercês é de novo tomada pelo lixo”. Comunica o matutino:

O acúmulo de lixo na Praça das Mercês, localizada no centro histórico, incomoda os donos de barracas localizadas na área. A praça, que é tombada como patrimônio histórico pela prefeitura, foi revitalizada há um mês, mas já está cheia de sujeira, entulho e mato alto novamente (Jornal O

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Liberal – Cidades – Belém, sábado, 20 de abril de 2013, p. 09).

Os moradores explicam que a ocorrência do fato se dá pela falta de fiscalização e limpeza contínua da área por parte da prefeitura. O problema se agrava porque muitos lojistas descarregam mercadorias e entulhos de obras na parte de trás da praça e com a demora do caminhão de limpeza, o mau cheiro e a presença de bichos roedores contaminam o lugar. Deste modo, entre revelações do patrimônio edificado e seus usos, seguimos cartografando outras vozes.

Nos percursos pelas memórias da cidade, entre os muitos lugares visitados e explanados pelos alunos de Geografia, Maria Edleuza da Silva (2013) destacou com detalhes um deles. Acompanhemos o que ela descreveu:

Seguimos para a Capela de São João Batista. Esta capela é de arquitetura barroca, sua primeira construção ganhou a data de 1622, quando foi construída em taipa e barro. No século XVIII, foi edificada no estilo de arquitetura de Antônio Landi. Ela é de estrutura octogonal e de pintura quadrilateral (causando uma ilusão), principalmente em seu altar. Um fato curioso é que esta capela serviu de prisão para Antônio Vieira.

Em outro lance de vista, Ana Maria Holanda (2013) apreende o bairro como “ponto de entrada e saída de saberes e tradições”, demonstrando quão interrelacional é o patrimônio construído tanto pelo passado, quanto pelo presente, igualmente o bairro como zona de intercâmbio com outros ambientes rurais da região. Ali está o Complexo Feliz Lusitânia que, além da Casa das Onze Janelas com suas ambíguas histórias para contar19

19, 19 Segundo Vergolino (2013), a Casa das Onze Janelas foi um “palacete reformado ainda no séc. XVIII pelo arquiteto italiano Antônio Giuseppe Landi, que morou, casou-se e faleceu na capital. Posteriormente, o prédio foi adaptado pelo arquiteto Athaide Teive para servir de residência ao Governador. Com o passar dos séculos, também foi usado como hospital militar, sede da Guarda e depósito de materiais do Exército”. A memória oral local narra histórias de torturas no período do golpe civil-militar de 1964 a 1985, o que aponta o caráter ambíguo deste patrimônio arquitetônico.

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Igreja de Santo Alexandre (que abriga o Museu de Artes), a Praça Dom Frei Caetano Brandão, a Catedral Metropolitana da Sé, comporta o Forte do Presépio ou Forte do Castelo, fortaleza construída pelos portugueses, quando estavam sob o domínio espanhol, para defender a região da invasão de outras nações estrangeiras que, desde o final do século XV já negociavam com as variadas nações indígenas no estuário amazônico20

20.

Esta fortaleza, comenta a aluna, abriga o Museu da Memória, um importante espaço expositivo de “um acervo cultural que abrange desde a história da fundação, as artes ‘marajoara e tapajônica’, assim como as mudanças culturais e artísticas que envolvem todo o entorno”.

Simbolicamente marcado pela cruz e pela espada, o centro histórico de Belém guarda diferentes memórias, algumas estão tatuadas no patrimônio arquitetônico, outras se alojam nos subterrâneos de lembranças que as edificações silenciam, mas não conseguem apagá-las. Nesse contexto, podemos recuperar importante e esclarecedora formulação de Pollak (1989, p. 8):

a fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor.

Muitos turistas, moradores ou mesmo alunos, quando visitam esse complexo território urbano,ficam encantados com o poder imponente das construções, os olhos brilham, a curiosidade se aguça, demonstrando que as fronteiras interpretadas por Pollak, mas não exploradas em suas intersecções, produzem alianças. Em dimensão contígua a essa, intelectuais, alunos, moradores e turistas esclarecidos relembram que foram populações indígenas, inicialmente, as que erigiram aquele centro histórico, conscientes de que na

20 Sobre a conquista da Amazônia, entre outros importantes trabalhos, ler: Cardoso (2002).

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feitura das arquiteturas para evocar e celebrar uma memória da conquista portuguesa na Amazônia, um processo de tradução cultural orientou o saber colonizador. Na ótica de representações ibéricas e cosmologias ameríndias o patrimônio da Cidade Velha foi sendo levantado.

A valorização desta mão-de-obra e o não esquecimento dos sofrimentos da conquista problematizam as memórias oficialmente compostas para narrar o lugar. Alistair Thomson (1997, p. 58), discutindo sobre os insucessos ou dramas de composição do passado, assinala:

A composição por ser baseada em bloqueios e exclusões, nunca é plenamente alcançada; é constantemente ameaçada, abalada, despedaçada. Sentimentos e impulsos reprimidos se manifestam ou são “descarregados” (atravessando sorrateiramente as barreiras da coerência consciente) de formas específicas – sonhos, erros, sintomas físicos e piadas – que permitem vislumbrar os dolorosos e fragmentados significados pessoais ocultos.

As formulações de Thomson interseccionam-secom as de Pollak (1989, p. 4), quando problematizando a chamada memória coletiva, que para ele assume, quase sempre, o discurso oficial e nacional, demonstra seu caráter excludente, pois se interessa “pelos processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e de formalização das memórias” dominantes. Por outro lado, quando privilegiamos, enfatiza Pollak, as memórias subterrâneas como constituintes de grupos minoritários e historicamente postos sob o julgo da dominação, reabilitamos “a periferia e a marginalidade” (Idem, p. 4).

Janelas entreabertas

Fechemos os olhos e deixemos nossa imaginação andar pela cidade. O que vemos? (...) Há diferenças arquitetônicas, de usos, de cores, de tempos, de intensidade e de movimentos. Desigualdades. Contradições. Será que podemos dizer que

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existem várias cidade dentro da cidade? (CARLOS, 1995, p. 36).

Ao longo da leitura realizada sobre a cidade de Belém, focalizada a partir do bairro da Cidade Velha, especialmente nos traçados do roteiro geoturístico, tentamos compor uma cartografia de memórias para explorar diferentes possibilidades de compreender o bairro por dentro e por fora, afastando-nos de dualidades como tradição X modernidade e ruralidade X urbanidade. Em outras palavras, respondendo ao questionamento de Ana Fani Carlos percebemos não apenas vários bairros dentro da cidade, mas várias cidades dentro de um único bairro: uma Belém ribeirinha; uma Belém dos passeios; uma Belém das festas populares; uma Belém histórica; uma Belém comercial. As observações da aluna Gabriela Araújo (2013) identificam ainda a Belém colonial e a Belém da belle époque.

Junto destas Beléns, uma cidade comercial, uma cidade zona de contato em que o rio conecta diferentes modos de viver, fazer uso e lutar pelo direito à cidade. Concomitante a essas cidades, não se pode esquecer a cidade da prostituição, a cidade da violência, a cidade do tráfico de drogas que são produzidas por dentro e nas fronteiras do bairro da Cidade Velha. Deste modo, palavras conclusivas de Jéssica Rodrigues (2013) traduzem um pouco dos interesses por nós partilhados ao trilharmos as rotas do roteiro geoturístico:

Este passeio ajuda o indivíduo a repensar sobre a história de sua cidade e buscar a valorização desses espaços, verificando qual a melhor forma para que eles possam ser utilizados, de maneira a contribuir para a preservação do patrimônio histórico e cultural de Belém e com seu desenvolvimento socioeconômico, turístico e cultural.

Enfim, nas janelas entreabertas para continuar olhando e pensando a cidade a partir da primeira área onde embrionariamente ela se formou, entre continuidades e mudanças as rugosidades espaciais da Cidade Velha vão

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tomando feituras próprias de seu tempo e dos interesses de seus agentes sociais, a exemplo da Praça Dom Pedro II, cujo ambiente no período colonial era o grande Lago do Piri, e, atualmente, é onde está instalado o centro administrativo de Belém, por congregar os poderes executivo, legislativo e judiciário, além do importante Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Um território rural/florestal foi sacrificado para o nascimento do centro histórico de Belém e a emergência de uma metrópole na boca de entrada do grande rio Amazonas. O roteiro geoturístico transforma-se em prática politicamente comprometida com lembranças das vozes que não podem mais falar, entretanto, por ruídos e reminiscências de suas presenças ausentes, ainda lutam para não serem esquecidas da história (SARLO, 1997).

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BARULHOS E CONTRANARRATIVAS:

Percursos Sociológicos e Antropológicos na Contemporaneidade

John Fletcher (PPGA/UFPA)Agenor Sarraf Pacheco (PPHIST/PPGA/UFPA)

Ernani Pinheiro Chaves (PPGFIL/PPGA/UFPA)

1. Considerações Iniciais

A experiência cotidiana mostra quão facilmente um conflito entre dois indivíduos transforma cada um deles, não apenas em sua relação um com o outro, mas também consigo mesmo (SIMMEL, 1983, p. 150).

Um dos exercícios mais frutíferos ao debate das ciências humanas é o de problematizar seus percursos em torno de nossas interpretações culturais acerca da vida em sociedade. Observado o fato do mundo intercultural brasileiro viver hoje um afloramento mais característico de emergências e reinscrições empíricas e teóricas21

21

(estas postas em evidência por uma vivência tecnológica e em redes intensa), detecta-se não menos urgente compreender tais engrenagens, como também as reconfigurantes deposições que já não se visibilizam tão claramente como eram pretendidas outrora (CUCHE, 2002).

Como observou Stuart Hall, passamos a nos deparar com um mundo marcado por diferenças não mais irrelevantes, porém altercadas por desestabilizadores como

(...) a nova divisão internacional do trabalho, as novas tecnologias de informação global, um “descentramento nacional do capitalismo”, a ligação oferecida pela corporação

21 Observamos a reinscrição a partir de Bhabha (2003a), quando este emprega o termo como a rearticulação do signo para as identificações culturais. Reinscrição é um território conflituoso, mas produtivo, que emerge no interior das fronteiras reguladas do discurso social.

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transnacional, a transnacionalização da produção, o aparecimento do modo capitalista de produção (...) como “uma abstração autenticamente global”, a fragmentação cultural e o multiculturalismo, a rearticulação das culturas nativas em uma narrativa capitalista (...), o enfraquecimento das fronteiras, a multiplicação em sociedades antes coloniais das desigualdades associadas às diferenças coloniais, a “desorganização de um mundo concebido em termos de três mundos”, o fluxo da cultura ao mesmo tempo homogeneizador e heterogeneizador, uma modernidade que “não é mais euro-americana somente”, formas de controle que não podem ser impostas, mas têm que ser negociadas, a reconstituição de subjetividades nas fronteiras nacionais (HALL, 2003a, p. 116).

Frente ao desvelar dessa nova percepção de mundo, foi possível indagar se já não seria mais oportuno investir esforços para se compreender as culturas transnacionais em seus intensos deslocamentos e conflitos geo-históricos, políticos e econômicos interdependentes. Ou ainda, questionar se zonas de instabilidades não fariam parte desse novo mapa da experiência humana em tempos contemporâneos, ainda mais que estas zonas não poderiam ser lidas como meras situações degenerescentes, mas campos férteis para a faísca da transformação, a ponto de uma análise teórico-socialse configurar, mais adequadamente,caso uma proposição e aproximação das narrações turvas, conforme advogam Hannerz (1997) e Carvalho (2001), para interpretar a realidade em sua condição incomensurável.

São com esses enredos questionadores, metaforicamente apreendidos como toque de caixa, que o presente ensaio se propõe a trafegar por uma discussão em torno dos diversos diálogos e conflitos conceituais que se instalaram nas relações entre sociedade e cultura nos limites do contemporâneo a partir do pós-guerra – diálogos os quais atravessam os campos da sociologia pós-moderna inicial, da antropologia pós-moderna

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inscrita a partir do Seminário de Santa Fé e das abordagens pós-coloniais –, de maneira a provocar ruídos que possam desestabilizar convenções conceituais hegemônicas e, ao mesmo tempo, buscar premissas teóricas alternativas capazes de permitir a compreensão de tramas culturais em suas diferenças, assimetrias, desigualdades, resistências, sem perder de vista as relacionais trocas, negociações e contágios entre povos, grupos e pessoas de distintas nações, sexo, raça, classe, religião, entre outros agrupamentos sociais.

2. Ruídos Iniciais

Alguns ecos das mudanças teóricas em torno das noções de cultura hoje são encontrados com os cientistas tributários a Clifford Geertz. Pode-se ressaltar, por sinal, o quanto se fez (e continuamente se faz) necessário refletir acerca dos meandros formulados a partir do seu interpretativismo cultural, uma vez que foi nesse horizonte mais específico de eventos que também se fraturaram as concepções modernas das ciências humanas. Estas fraturas nos trouxeram uma série de filiações, dissensões e contrarrespostas características de um presente heterogêneo e plurivocal (CALDEIRA, 1988).

O antropólogo americano, adepto de uma visão de cultura em torno da “multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas” (GEERTZ, 2011, p. 07), mesmo passível às inúmeras críticas advindas da antropologia que o seguiu, assim como daquelas ligadas aoutros campos do conhecimento, bem demonstrou uma transformação a partir de um período que lhe era contextual.O mundo de então, meados da década de 1960, podemos observar, vivia os efeitos avassaladores do declínio da narrativa tradicional – uma forma de entendimento refletida por Benjamin (2011), quando do aparecimento de uma transmissão fragmentária ante os eventos do holocausto e da Shoat –, de maneira que Geertz (2011), inúmeros de seus contemporâneos e mesmo sucessores foram inspiradores para se vir sucumbir algumas das anteriores abordagens sociais, as quais agora tentavam

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buscar novas formas de agir sobre o presente e revelar outras lógicas científicas e históricas, postas anteriormente no subterrâneo (GAGNEBIN, 2001; SELIGMANN-SILVA, 2006).

As reinscrições teóricas de Clifford Geertz trouxeram perspectivas de enxergar culturas e mundo como fenômenos questionáveis e estranháveis. Foram estas reinscrições que anteciparam algumas das crises do que ficou conhecido por condição pós-moderna – condição “no interior e entre algumas disciplinas acadêmicas e áreas culturais, na filosofia, na arquitetura, nos estudos sobre o cinema e em assuntos literários” (CONNOR, 2004, p. 13) – e se aliaram, mesmo discretamente, às teorias feministas e às culturais do grupo de Birmingham para nos fazer ver e reagir contra os cânones da cultura masculina, branca e europeia (KELLNER, 2001).

No que concerne a esta implosão de paradigmas tradicionais sob a alcunha de condição pós-moderna, tornaram-se referenciais as publicações de La Condition Postmoderne, de Jean François Lyotard, em 1979; de Postmodernism: or the Cultural Logicof Late Capitalism, de Fredric Jameson, em 1984; e dos discursos promovidos por Jean Baudrillard, a partir da segunda metade dos anos 1970, uma vez que tais reflexões cooptaram para reinserir e problematizar, contemporaneamente,uma consciência mais inclusiva, indeterminante e vestigial como a que melhor dá conta de analisar e buscar um entendimento crítico dessa nova lógica global.

Jean-François Lyotard (2009), nosso autor abre-alas para este recorte da análise, teve sua proeminência por ser um dos primeiros nomes a chamar a atenção para uma relação interdisciplinar entre política, economia e estética, já sob o impacto da eletrônica e de um mundo imerso em uma condição de estilhaçamento com o declínio moderno.Foi ele quem, para melhor enriquecer um encadeamento dessa mudança empírica,tratou de destacar como a alteração de estatuto do saber, concomitante à entrada das sociedades na fase dita pós-industrial, passou a vir entremeada por informações tecnológicas–

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uma nova função de transmissão narrativa que modificou as operações de aquisição, classificação, acesso e exploração informacionais.

Por trazer como consequência o fato de que uma mudança gera oscilações na estrutura de sentimento social, Lyotard (2009) ainda reinscreveu um emergente conhecimento e conjecturou a respeito de uma variação de comportamentos a partir dessa distinta etapa tecnológica. O sociólogo ainda trouxe,em seu corpus de reflexão,a multiplicação de centros de poder e de atividade associados à dissolução de todas as tradicionais formas de transmissão informacionais. Tais novos centros, muito mais plenos de si e objetivados em campos autônomos e autorregulares, instauraram o fim das chamadas metanarrativas22

22

e sentiram urgir por outros instrumentos conceituais.

Como observado pelo próprio autor:

Interessando-se pelos indecidíveis, nos limites da precisão do controle, pelos quanta, pelos conflitos de informação não completa, pelos ‘fracta’, pelas catástrofes, pelos paradoxos paradigmáticos, a ciência pós-moderna torna a teoria de sua própria evolução descontínua, catastrófica, não retificável, paradoxal. Muda o sentido da palavra saber e não diz como esta mudança pode se fazer. Produz, não o conhecido, mas o desconhecido (LYOTARD, 2009, p. 108).

Neste fluxo de agentes e reagentes, o sociólogo francês, portanto,ressalvou que as duas principais narrativas a que a ciência recorria para receber autoridade e propósito, a política e a filosofia, passaram a sofrer uma perda gradativa de seus poderes a partir da Segunda Guerra Mundial (mais precisamente no que concerne ao fato delas fornecerem uma estrutura legitimadora ao trabalho científico). A narrativa política, relacionada com o gradual desvencilhamento

22 As metanarrativas eram formadas por um conjunto de regras pragmáticas que constituíam o vínculo social e que subordinavam, organizavam e explicavam outras narrativas, como era o caso do marxismo e do positivismo (LYOTARD, 2009).

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da escravidão e da opressão de classe, e a narrativa filosófica, relacionada com o conhecimento como parte integrante de um processo histórico, comprimiram-se para dar lugar a uma configuração da iniciativa capitalista ante um desenvolvimento tecno-científico e disperso.

É claro que Lyotard não findaria nesses desenvolvimentos as suas leituras, mas ainda traria sua grande apoteose teórica. Em meio a esse cenário reestruturante, destacou jogos de linguagem múltiplos e,muitas vezes,incompatíveis (por escolha) entre si, que, ao mesmo tempo, passaram a florescer e incorreram em um dialogismo entre a consolidação de um sistema e a promoção da pluralidade interior a ele. Conforme interpretado por Harvey (2011), as teorias do sociólogo francês aliaram o domínio cultural/estético ao domínio socioeconômico das práticas sociais,a ponto de o poder organizador da ciência entrar em crise, enfraquecer-se, ver emergir uma práxis da fragmentação e do vir-a-serem espaços exercitados localmente (algo que poderia ganhar a alcunha de autonomia fragmentadora das micronarrativas, com princípios próprios e intransferíveis de autolegitimação).

De certa forma, a observação lyotardiana acerca desse novo território de microrregiões, muito mais orgânico e conflituoso, indeferiu o pressuposto de adesão a discursos metafísicos, promulgou o abandono de fábulas, fez com que “os ‘jogadores’ assumissem a responsabilidade não somente dos enunciados que eles propunham, mas também das regras as quais eles os submetem para torná-los aceitáveis” (LYOTARD, 2009, p. 113). Contiguamente, o intelectual propôs uma relação totalmente diversa daquela inscrita pelos modernistas, principalmente por estes últimos pressuporem uma correspondência rígida e identificável entre o que era dito e o modo como estava sendo dito, ao passo que o sociólogo assinalava que tais relações entre significado e significante deveriam ser vistas como complexos que se separavam e se reuniam continuamente em novas combinações.

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Como uma presumível consequência de muitas das tentativas de responder aos tempos constituintes e moventes nos quais nos encontramos, esta disseminada teoria de Lyotard foi (e continua sendo) uma janela de entrada para determinados sentimentos de indivíduos integrados nessa macrorede global.As interpretações do autor, todavia,desvelaram ainda um olhar peremptório, por abarcarem uma inscrição duplamente totalizadora, não somente pela afirmação do colapso total da metanarrativa, em toda parte e continuamente, como também por uma crença inquestionável do domínio absoluto da metanarrativa antes do contexto “pós-moderno” (CONNOR, 2004; HARVEY, 2011).

É bem possível conjecturar que uma das perspectivas não vislumbradas no trabalho de Lyotard foi a de não discutir as sociedades como agrupamentos de realidades distintas e atravessadas por variados processos políticos, econômicos, geográficos e culturais. A proposição de uma horizontalização interpretativa das sociedades pelo autor (uma espécie de unilateralidade), destituída de análises quase completas em torno da cultura da mídia, mostraram-se sujeitas a questionamentos diversos, principalmente daqueles que, contrariamente,preferiam enxergar o mundo como um tecido permeado por heterogeneizações (e não homogeneizações) (KELLNER, 2001).

Fredric Jameson, segundo teórico a compor este cenário de mudanças interpretativas, é o autor de Postmodernism: or the Cultural Logic of Late Capitalism, versão posterior e ampliada do debate já iniciado em Postmodernism and Consumer Society. Muito aproximado de algumas das inscrições de Jean-François Lyotard, o teórico aqui em questão ainda pôde ser considerado um relator dos aspectos formais-estilísticos do que foi por ele tido como o horizonte pós-moderno; importante crítico marxista para redirecionar, conforme assinalado por Bhabha (2003a, p. 295), intelectual indiano dos estudos pós-coloniais, “o movimento da dialética materialista, levando-o de sua centralização no Estado e sua estética e categorias disciplinárias idealizadas em direção aos espaços irrequietos e não mapeados da paisagem urbana”.

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Ao analisar a correlação entre a emergência de novas características formais na cultura com a de um novo tipo de vida social e de uma ordem econômica, Jameson (2007) identificou o fim de uma determinada estrutura de lógica cultural, ou a derrocada do que ficou estabelecido como a metafísica moderna (o sublime, em uma concepção hegeliana; a dissolução artística de atingir o absoluto, o estrutural, o explicável e comensurável dentro de assertivas lógicas e captáveis), e viu o mundo mais relacionado à sua dimensão visual. Foi a respeito de como esta simbiose imagética passou a ganhar importância notável na vida do homem, por conseguinte, que o autor pôs-se a repensar os novos tempos como “(...) o retorno do belo e do decorativo no lugar do antigo sublime moderno, o abandono da arte e da procura pelo absoluto e pela verdade e sua redefinição como uma fonte de puro prazer e gratificação” (JAMESON, 2007, p. 86).

Algumas das características identificadoras da cultura pós-moderna, na ótica de Jameson, ganham destaque em:

a) Uma nova falta de profundidade,delongada tanto para a teoria contemporânea quanto para a cultura da imagem vivenciada;

b) O enfraquecimento da historicidade, seja em nossas relações com a história pública, seja em nossas novas formas de temporalidade privada, de maneira que uma estrutura esquizofrênica (e lacaniana) passou a determinar “novos tipos de sintaxe e de relação sintagmática nas formas mais temporais de representação” (JAMESON, 2007, p. 32) – daí uma circulação social e ênfase na cultura do simulacro;

c) Matiz emocional outro (na qual saem de cena, conforme observado anteriormente, as teorias mais antigas do sublime, em substituição por outras instantâneas e rapidamente

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perecíveis);

d) Uma profunda relação de todos os aspectos da vida social com a nova tecnologia, transformada em uma das protagonistas de um novo sistema econômico mundial;

e) O pastiche, ou a multiplicação e colagem sem relevo de estilos, paródia vazia sem senso de humor (JAMESON, 1993), o que passou a implicar no “desaparecimento do sujeito individual, ao lado de sua consequência formal, a crescente inviabilidade de um estilo pessoal” (JAMESON, 2007, p. 43);

f) A ausência de qualquer grande projeto coletivo, bem como o desmonte de conceitos modernos como o de identidade, em virtude da experiência da perda do eu no tempo indiferenciado, e da proliferação de grupos sociais os quais passam a falar línguas particulares (profissões desenvolvendo seus códigos ou termos privados, e os indivíduos tornando-se um exemplo de isolamento linguístico, separados de todos os outros).

Neste enredo, ainda que superficialmente fosse muito admissível ser guiado pelas observações do autor, muito se ressaltou sobre o quanto Jameson apresentou uma dificuldade para mapear um novo espaço internacional de realidades históricas descontínuas, haja vista sua não retórica para dar conta das passagens intersticiais e dos processos de diferenças culturais presentes nas categorias que fogem das nomenclaturas; sua dificuldade de mobilização ante sua condição e situacionalidade23

23

parcial quando as “circunstâncias individuais são tão instáveis e sem identidade,

23 Rabinow (1999) alude à aproximação de FredricJameson com o trabalho dos situacionistas, grupo de críticos sociais radicais, cujas escrituras ganharam ressonância na França dos anos 1960. Para este grupo, a vida contemporânea fora aplainada por uma sociedade do espetáculo, na qual a imagem valia mais que o produto em si.

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que não podem servir como objeto de reflexão prolongada” (RABINOW, 1999, p. 93).

Conforme observado por Bhabha (2003a), o autor aqui tratado não soube encontrar o potencial da lógica política do futuro como questão aberta, e preferiu assimilar o conhecimento como um fenômeno estabelecido por limites, os quais são ordenados em uma divisão binária do espaço.

(...) A dialética do irrepresentável (que enquadra as realidades incomensuráveis do espaço internacional) torna-se de súbito por demais visível, conhecido de modo por demais previsível. (...) Os significados desconectados do presente são fixados nas periodizações pontuais do mercado, do monopólio e do capital multinacional; os movimentos erráticos, intersticiais, que significam as temporalidades transnacionais da cultura são rejuntados aos espaços teleológicos do capital global. E, através do enquadramento do presente dentro das ‘três fases’ do capital, a energia inovadora do ‘terceiro’ espaço de certa forma se perde (BHABHA, 2003a, p. 302).

É, inclusive, pertinente problematizar o eixo espacial-visual das apreensões de Jameson (2007), uma vez que, dado o atual afastamento temporal nosso em relação a suas publicações, escutamos ruídos frequentes de como o autor parece ter sido levado principalmente por impressões menos avaliativas das culturas, derrogando a elas uma visão rasteira a unidimensional, sem substância, significado e nexo com o passado. Conforme observado por Kellner (2001, p. 302), os textos aqui pensados de Fredric Jameson colocaram em xeque a continuidade da pertinência dos modelos de profundidade hermenêutica, como é o caso do “marxista, de essência e aparência, consciência verdadeira e falsa, ideologia e verdade; o freudiano, de significados latentes e manifestos; o existencialista, da existência autêntica e inautêntica; o semiótico, de significante e significado”.

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Contra algumas das expectativas de leituras efetuadas por Jameson e sua possível postura em favor de uma morte da hermenêutica,é constantemente debatido o quanto o autor não propiciou um acesso mais denso a uma análise interpretativa da imagem, da narrativa, das ideologias e dos significados, os quais continuam presentes na proposta de uma visão pós-moderna da cultura (KELLNER, 2001). Mais relacionado hoje a um cego envolvimento quanto às críticas do suposto apogeu do poderio neocolonialista cultural norte-americano (ou até do capitalismo como protagonista de tal papel), Fredric Jameson bloqueou, passionalmente, a possibilidade de aceite da tradução cultural como algo negociável e irregular para qualquer indivíduo encontrado na trama intersubjetiva e pós-moderna.

Para adensar esta primeira etapa do ensaio, nosso terceiro ponto de reflexão sobre os debates iniciais em torno da pós-modernidade traz o nome do sociólogo francês Jean Baudrillard (1990), cuja obra também realiza um entrelaçamento entre os domínios econômicos ou produtivos e os domínios da ideologia ou da cultura. Proximamente tributário de um revisionismo situacionista do mundo contemporâneo, este terceiro autor, sem embargo, consegue ser ainda mais radical quanto à sua interpretação pós-moderna das sociedades contemporâneas se comparado com os posicionamentos de Jean-François Lyotard e Fredric Jameson.

Para o sociólogo, o mundo contemporâneo passou a viver uma explosão e aceleração de suas mercadorias culturais, de forma que as mesmas passaram a refletir o que ele chamou de operacionalização geral do significante: etapa de mercantilização de toda e qualquer engrenagem social constituinte. Seus escritos geralmente buscaram tratar de um momento em que “os artefatos culturais, as imagens, as representações e até os sentimentos e estruturas psíquicas tornaram-se parte do mundo contemporâneo” (CONNOR, 2004, p. 48). Com isso, eles desencadearam um estado alegórico de “utopias realizadas, onde é preciso paradoxalmente continuar a viver como se elas não o tivessem” (BAUDRILLARD, 1990, p. 10).

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Sob o vislumbre do que seria uma serialização de eventos e sentimentos cotidianos, o autor observou que passamos a um contexto de hiper-realização de ideais e de experiências em uma simulação indefinida; viramos retroalimentadores de uma rede fadada “à comutação incessante e, portanto, à indeterminação crescente e ao princípio de incerteza” (BAUDRILLARD, 1990, p. 10).Seus conceitos de simulacro e simulação24

24

, dois sustentáculos ligados à maneira com a qual o indivíduo passou a perceber a realidade e a si mesmo,advieram na qualidade de efeitos máximos de coerência da classificação do valor – valor este agora fractal após passar pelas etapas do natural (valor de uso), do mercantil (valor de troca) e do estrutural (valor de signo) (BAUDRILLARD, 1994).

No quarto estágio, o estágio fractal, ou estágio viral, ou ainda estágio irradiado do valor, já não há nenhuma referência: o valor irradia em todas as direções, em todos os interstícios, sem referência ao que quer que seja, por pura contiguidade. No estágio fractal, já não há equivalência, nem natural nem geral, nem há lei do valor propriamente dita: só há uma espécie de epidemia do valor, de metástase geral do valor, de proliferação e de dispersão aleatória. Em rigor, já não se deveria falar de valor, já que essa espécie de multiplicação e de reação em cadeia torna impossível qualquer avaliação (BAUDRILLARD, 1990, p. 11-12).

Sem dúvida, para Baudrillard, não havia mais escapatória, pois tudo sofrera uma nadificação completa ante a falsificação do mundo por si mesmo; falsificação esta tal que o autor nem mais parecia identificar o que seria real, ou se sofria de uma nostalgia que simplesmente não deixou vestígios. Como bem observado por ele mesmo, “o movimento glorioso da modernidade levou não a uma transmutação de todos os valores, como havíamos sonhado, mas

24 A simulação constitui o grupo dos objetos e experiências manufaturados e voltados para representar a realidade além de suas circunscrições – o que incorre em um evento hiper-real – e simulacro um estado de dormência dos sentidos para se perceber as reais fronteiras dos limites apagados pelo efeito da simulação (BAUDRILLARD, 1994).

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a uma dispersão e involução do valor, cujo resultado é para nós a confusão total” (BAUDRILLARD, 1990, p. 16).

Assim como Jean-François Lyotard e Fredric Jameson, Jean Baudrillard pareceu seguir alguns rastros do que Hall (2003b, p. 59) chamou de “centro da aspiração universalista e panóptica da globalização”; drama mítico relacionado mais com uma experiência de fantasia do que com uma realidade de autorreconhecimento; ambiguidade conceitual ao se estabelecer em um horizonte de quebra da metafísica moderna e uma práxis da não problematização de suas próprias respostas neopositivistas e irreversíveis. Participante da crença de que os sujeitos pós-modernos haviam se perdido para sempre “numa sucessão fragmentária de espelhos, jogo infinito de imagens supérfluas e sem significados” (KELLNER, 2001, p. 303), este autor em questão, mesmo estando no front de um debate acerca dos limites do contemporâneo nas sociedades, incorreu em certa controvérsia ao não admitir uma nova agenda polissêmica para indivíduos e eventos culturais, inseridos em uma nova arte de governar e viver mundos.

Jean Baudrillard, ao que indicam muitos debates ocorridos na esteira dos textos pós-modernos, igualmente apresentou uma “tendência a generalizar em demasia o presente, tomando exemplos de novas tendências emergentes,fundindo-as para formar uma nova dominante cultural” (KELLNER, 2001, p. 330). Ainda que suas reflexões não tragam dados completamente inaplicáveis, bem como é o caso similar do pensamento de Jameson e do de Lyotard – e aqui podemos pensá-los como fornecedores de fragmentos cambiantes para um mundo que não pode mais ser limitado por explicações perenes (HANNERZ, 1997) –, as estabilizações deste sociólogo francês também detonaram um universo empírico rígido,que enxergava, independentemente de para o bem ou para o mal, os EUA como o único centro da geografia econômica e cultural global; sinalizavam um período ainda pós-queda do Muro de Berlim, inconsciente de uma próxima etapa global multipolar, compartilhada e permeada por civilizações colaborativas

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se, muitas vezes, fragilmente pacíficas (HUNTINGTON; 1997; COSTA LIMA, 2008; GARCÍACANCLINI, 2012).

3. O Barulho da Antropologia Pós-Moderna

E aqui recolocamos Geertz, ou melhor, os pensamentos antropológicos inscritos na crença de naufrágio de algumas das anteriores abordagens sociais, os quais tiveram o autor como principal cabeça de linhagem, como bem observou Trajano Filho (1986). E retornamos ao barulho25

25 emergente após o interpretativismo cultural, conscientes desta retomada de discussão não como um passo a um evento simples e natural, sem maiores dissensões e conflitos internos e externos. Os tempos e as formas de apreender o mundo continuaram a mudar vertiginosamente, e a tradição hermenêutica (com suas devidas reformulações, vale observar) trouxe novos rumos para aqueles momentos de incertezas, quando os discursos da modernidade nas ciências humanas estavam sendo colocados à prova.

Ressaltado o entendimento de que de um lado havia uma facção hermenêutica atuante, leitora de Heidegger à luz de Nietzsche, hesitante “entre o elogio do saber fragmentário correspondente a um real parcializado, que resiste às totalizações impostas pela unidade do conceito, e um ‘neo-positivismo’ crítico” (SOARES, 1988, p. 102) – o que pode ser observado nas reflexões de Lyotard, Jameson e Baudrillard –, de outro também ganhava terreno um grupo hermenêutico(ou de indivíduos ao menos afluentes a ele) o qual já retomava Heidegger submetido ao desafio do passado – porção encabeçada principalmente pela obra de Hans-Georg Gadamer (filósofo ao qual Geertz era deveras referente).

Foi a partir deste segundo agrupamento, mais especificamente,que se esquadrinhou uma direção para a pesquisa antropológica a qual buscou

25 Utilizamos o termo barulho para evidenciar um número de vozes que cresceu vertiginosamente no período do pós-guerra, cujas fontes, ironicamente, beberam também em alguns dos mesmos nomes da condição pós-moderna, vendo-se resultantes de tempos assombrados por tradições em migalhas.

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“situar-se num horizonte marcado pelo primado da categoria relativizadora de pertencimento, pelo foco na diferença e no particular” (SOARES, 1988, p. 102) – elementos os quais travaram uma autocrítica para o processo de produção de interpretações culturais e que deram espaço para uma maior discussão das narrativas totalizantes.

Conforme observado por Caldeira,

Os pós-modernos vão tentar romper tanto o caráter de separação das culturas, quanto o de re-criação da totalidade. Para eles a etnografia não deve ser uma interpretação sobre, mas uma negociação com, um diálogo, a expressão das trocas entre uma multiplicidade de vozes. (...) o objetivo final, no que diz respeito ao autor, seria fazer com que ele agora se diluísse no texto, minimizando em muito a sua presença, dando espaço aos outros, que antes apareciam só através dele (CALDEIRA, 1988, p. 141).

O Seminário de Santa Fé2626, por exemplo, marcou este período de

questionamentos para a antropologia feita em solo americano e gerou uma coletânea de ensaios chamada Writing Culture, cujo tema central girou em torno do escrever etnográfico. Então concebido como incentivador à experimentação da pesquisa antropológica, “se por nada mais, por trazer uma consciência estética e ética para a antropologia e por advogar etnografias menos aborrecidas” (TRAJANO FILHO, 1986, p. 150), o mencionado seminário também ocasionou, como refinador de suas operações, a forma polifônica, advinda do Círculo Linguístico de Mikhail Bakhtin (FISCHER, 1986; TEDLOCK, 1986; CRAPANZANO, 1986; CLIFFORD, 1998).

Foi sob esse aspecto, por conseguinte – e por esse reconhecimento das culturas como a junção de várias redes dialógicas em movimento, um

26 O Seminário de Santa Fé ocorreu na Escola de Investigação Americana de Santa Fé, Nuevo México, em 1984, e teve seu tema central em torno da redação do texto antropológico, da autoridade etnográfica e da relação entre pesquisador e seus pesquisados (ROCHA & ECKERT, 1998).

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plurilinguismo a fazer trocas, interceptando-se num ir e vir em relação ao fluxo temporal, sem categorizações em relação ao passado, presente ou futuro (BAKHTIN, 2003) –, que se buscou melhor avaliar os contextos, os diálogos, as análises de peculiaridades e as relações intersubjetivas entre antropólogo e interlocutores como referenciais para uma pesquisa coerente27

27

, feita em um mundo muito mais entremeado pelas reinscrições do que pelas semelhanças.

Para muitos meta-antropólogos que se voltaram a analisar esse período de mudanças, os etnógrafos pós-modernos estabeleceram um patamar de objetivação da desnorteante complexidade do mundo, “pressuporam sua irredutibilidade e negaram a possibilidade de reconstruir uma totalidade que desse sentido a todas as posições diversas” (CALDEIRA, 1988, p. 142).

James Clifford (1986), um dos nomes que compôs esse time de autores2828

do Writing Culture, por exemplo, ressaltou a dimensão política e ética da escrita etnográfica. Essa proposição, demarcada pelo reconhecimento da alegoria como constituinte do texto etnográfico, denotava o quanto,para ele, outros pesquisadores poderiam posicionar seus textos como enunciados que não poderiam ser controlados, nem estabelecidos como verdadeiros em suas totalidades.

A forma polifônica bakhtiniana, ponto deveras considerado pelo antropólogo, seria uma estratégia que nem mesmo poderia ser tomada como libertadora para o texto interpretativo (ou espécie de autenticação de uma proximidade plena do mundo real), visto que,uma análise de culturas a qual tentasse trazer inúmeras vozes para enriquecer sua abordagem representaria, sem embargo, um exemplar de uma utopia da autoria plural (também conhecida como heteroglossia domesticada) e sujeita à autoridade do antropólogo, visto

27 Como observou James Clifford (1998, p. 58), uma pesquisa coerente “pressupõe um modo controlador de autoridade”.28 Além de James Clifford, os outros autores que compuseram esta frente crítica da antropologia foram Mary Louise Pratt, Vincent Crapanzano, Renato Rosaldo, Stephen Tyler, TalalAsad, George Marcus, Michael Fischer e Paul Rabinow (ROCHA & ECKERT, 1998).

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seu poder final de assumir uma tarefa executiva, editorial, em seu texto.

Outro ponto ressaltado, e também não menos importante, para Clifford, é o de que a pluralidade de vozes não teria o poder de modificar a “profunda identificação ocidental de qualquer organização de texto com a intenção de um único autor” (CLIFFORD, 1998, p. 55).O americano acreditava que todos os modos de escrita,modos potenciais de autoridade, estavam disponíveis a todos, porém mereciam o olhar da suspeição hermenêutica; constantes autocríticas para se obter um estremecimento contínuo da autoridade que repousava no fazer do etnógrafo.

Michael Fischer, também componente da compilação Writing Culture, percebeu como práticas de autobiografias étnicas dos anos 1970 e 1980 eram destacáveis para “revitalizar nossas formas de pensar sobre como a cultura opera e reelabora nossa prática de etnografia como um modo de crítica cultural” (FISCHER, 1986, p. 194). Para o pesquisador em questão, tais autobiografias poderiam oferecer ao tema da interpretação novos modos de escrever e ler a diferença, de forma a responder mais pertinentemente à realidade crítica, se comparada com o teor das abordagens da sociologia tradicional. Até mesmo de acordo com Trajano Filho (1986, p. 144), as análises autobiográficas correspondiam mais refinadamente ao fato de a etnicidade requerer um olhar “dinâmico, sempre reinventado e reinterpretado, orientado mais para o futuro do que para o passado”.

A preocupação de Fischer em relação aos dilemas das ciências humanas de sua época não poderia deixar de se ater ao fato de que os homens agiam dentro de mundos intersubjetivos, socialmente constituídos; traziam experiências as quais eram mediadas “pela linguagem, pela participação social (as relações dos outros) e por símbolos culturais” (FISCHER, 1985, p. 57). Destacadamente através do uso de estratégias estilísticas,as quais foram, por sinal, empregadas/detectadas nas autobiografias por ele consideradas (e que compreendiam a transferência, o trabalho com sonhos, a bifocalidade, a

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interferência e o humor irônico), é que uma prática etnográfica poderia dar conta de se situar em um mundo cuja natureza dialógica era determinante.

De maneira crescente, as ciências sociais em todo o globo passaram a relevar pressupostos narrativos outros, “não oficiais”, mais ousados, bem como se impregnou de uma expansão metodológica para prover distintos acessos ao mundo vivido. Michael Fischer, James Clifford, Vincent Crapanzano, entre outros, não necessariamente foram os únicos divisores de horizontes para esse pensar plural, quebrador de etapas da cronologia do pensamento científico (vide semelhante tipo de efervescência cultural no interior dos discursos acadêmicos do grupo de Birmingham), mas suas colocações, junto das inúmeras posturas etnográficas emergentes, puderam desvelar uma ampliação de uma escrita social, a qual não mais se estabelecia como autoridade infalível e finalizada.

Foi em meio aos debates e constantes contra-argumentações dessa geração de antropólogos –geração posterior ao pensamento de Geertz e contemporânea às neuroses sobreviventes do pós-guerra –, que se iniciaram alguns procedimentos diferenciados de narrativas sobre os outros e sobre os tipos de críticas, de políticas efetuadas e de formas de enxergar a diversidade (CARVALHO, 2001). Favoráveis por trazer uma maior flexibilidade ao exercício antropológico (ver também CALDEIRA, 1988; RABINOW, 1999), ainda que não plenamente atentos às relações de interdependência entre as sociedades mesmo na diferença (interdependência esta que somente a história subsequente ratificaria e problematizaria),estes antropólogos pós-modernos americanos erigiram, no interior de suas próprias instituições centrais,uma das fendas para o surgimento de um pensamento em que o periférico pôde se entrelaçar ao global e vice-versa, constituído por pesquisadores advindos de localidades antes silenciadas.

Intencional ou não, estes mencionados intelectuais de um dos centros de saber do ocidente proveram uma parcela de argumentação para se pensar,

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a partir de uma nova geografia científica, os rastros do ingovernável e da experiência caótica das emergências concorrentes, dialógicas e nem sempre pacíficas no mundo contemporâneo.

4. O Pensamento Pós-Colonial como Contrarresposta

Com alguns dos inúmeros rastros das ciências sociais, o olhar etnográfico foi continuamente descentrado, possibilitando que as referências ditas dominantes pudessem ser problematizadas e, por que não, deixassem de ser consideradas unicamente decisivas para o pensamento cultural (uma forma de buscar, nas margens, a transformação do cânone e a realocação da cultura como estratégia transnacional e de tradução) (BHABHA, 2003b).

Em um cenário de práticas empíricas e teóricas entrecruzadas, vimos surgir à opção de alternativas outras que dessem conta de um mundo diverso, incerto e assinalado por contextos, ruídos e reinscrições, multipolaridades e interdependências – contexto de diferenças este não mais irrelevante após a Queda das Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York, e ao ataque a Washington, em 11 de Setembro de 2001, episódio trágico e elucidativo para contrapor os que encaravam a homogeneização sob a égide norte-americana (SAID, 2003; COSTA LIMA, 2008; GARCÍACANCLINI, 2012).

Carvalho (2001, p. 110-111) destacou que após o estabelecimento da antropologia como disciplina acadêmica e, muito mais tarde, com a sua “crescente politização a partir das lutas anti-imperialistas e pós-coloniais, pôde melhor ser sustentado o argumento de que ao nativo foi possibilitado construir sua alteridade segundo o modo em que retruca, de um lugar subalterno, o olhar do colonizador sobre si”. De certa forma, a partir dessa noção, e observado o fato de tantos viverem em localizações situadas fora dos spotlights da produção teórica, social e artística (sujeitos vários, mas que, ironicamente, tentavam responder às suas emergências a partir de um pensamento criado para uma realidade empírica que não lhes cabia completamente), que se reiterou o

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enunciado pós-colonial para propor uma opção de deserção do excesso de narrativas do centro (MIGNOLO, 2010) e de implementação de “uma nova agenda etnográfica para recuperar explicitamente sua crítica a nossa posição de periferia do Ocidente” (CARVALHO, 2001, p. 118).

Diferente de inúmeras abordagens conceituais em voga na contemporaneidade, haja vista uma recusa de “conceber o conhecimento como diletantismo ou fazer dele um exercício de proselitismo” (SCHMIDT, 2011, p. 27), os posicionamentos subalternos (termo assumido pelos pós-coloniais os quais ganharam destaque no cenário internacional) não precisaram ser lidos como rendições ao ceticismo radical de algumas disposições teóricas do pós-modernismo e do pós-estruturalismo, muito menos como uma mera analogia de relativismo radical.

Seja por abrir fendas no entre curso das teses pós-estruturalistas, sinalizando os limites de certos enquadramentos e comprometimentos, seja por possuírem um compromisso político e afetivo com as subjetividades marginalizadas, os intelectuais deste pensamento se estabeleceram em outra dimensão interpretativa e enfaticamente declinaram do princípio “ético e estético que está no centro da oposição das referidas teorias ao humanismo da episteme moderna” (SCHMIDT, 2011, p. 27).

As abordagens aqui referidas descortinaram uma proposta hermenêutica pluritópica29

29 para mudar a política dos olhares sobre os modos culturais de viver dos indivíduos e colocando em pauta a presença de autores de procedências diversas como Frantz Fanon, Edward Said, Stuart Hall, Homi Bhabha, Walter Mignolo e Nestor García Canclini, para citar os principais com os quais trabalhamos neste trabalho, tal rearticulação teórica se delineou insurgente ao realocar conflitos enunciativos e “descrever ou caracterizar a mudança nas relações globais que marcam a transição

29 Para esse entendimento de uma hermenêutica feita às margens, devemos considerar as observações críticas de Mignolo (2003), quando postula um saber não enredado por doxas ou epistemes colonialistas.

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(necessariamente irregular) da era dos Impérios para o momento da pós-independência ou da pós-descolonização” (HALL, 2003a, p. 101);por destacar ainda um estar-junto de localidades fragmentadas em contingências históricas amplamente dispersas, onde elites locais administram os efeitos contraditórios do subdesenvolvimento e as vozes subalternas negociam interesses nesses territórios (BHABHA, 2003b).

De acordo com García Canclini (2005, p. 23), “adotar o ponto de vista dos oprimidos ou dos excluídos pode servir na etapa da descoberta, para gerar hipóteses ou contra hipóteses que desafiem os saberes constituídos”.Entretanto, para além de descortinar cenários de tensão, encontro e conflito, falar de culturas em metrópoles e localidades de nações periféricas ou pós-coloniais (metrópoles estas desnudadas com suas tramas de negociações e neuroses),igualmente implica em se colocar nas intersecções nas quais se desconstroem os condicionamentos da ordem e da tradição e que dão vislumbre a algumas das razões que escapam dos reconhecimentos correntes.

Em termos inaugurais desse modus operandi das margens, muito se recorre à figura do filósofo e psiquiatra martinicano Frantz Fanon, visto que suas pesquisas (as quais datam da década de 1950 e 1960) se tornaram reverberantes e renitentes por apontar estruturas de sentimentos fantasmagóricas nos povos colonizados, cujos “complexos de inferioridade, devido ao sepultamento de suas originalidades culturais, tomou posição diante das linguagens das nações civilizadoras, isto é, das culturas metropolitanas” (FANON, 2008, p. 34). Foram tais estruturas fantasmagóricas, espécie de “enfeitiçamento à distância” (FANON, 2008, p. 38) sofrido pelos indivíduos cujas histórias traziam a pecha da subordinação, algumas das integrantes para se ampliar os efeitos assimétricos e o arsenal de complexos germinados no seio da situação social de nações indeferidas pelo eixo do pensamento oficial.

O autor aqui proposto, negro e na condição de imigrante durante seus estudos na França, com experiência decisiva à formulação de sua teoria no

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mundo africano, teve uma tomada de consciência das realidades econômicas e sociais inferiorizadas,as quais assolavam seu país, quando se predispôs a pensar uma situação que não somente lhe era própria (situação repetida com variados indivíduos da mesma localidade)e que mostrava uma conjuntura de um povo arraigada pela sombra histórica das metrópoles europeias (nações colonizadoras e, portanto, eternamente “mais avançadas”).

Fanon ilustrou seu pensamento, neste caso em questão, com reflexões em torno do romance autobiográfico Je suis Martiniquaise, de Mayotte Capécia, do romance Présence Africaine, de Abdoulaye Sadji, e do romance autobiográfico Un homme pareil aux autres, de René Maran, de maneira a destacar, em vias concretas, um processo bilateral e psicologicamente desigual entre a sua sociedade e a sociedade do “colonizador”, bem como a ocorrência nele e entre seus compatriotas de uma “aquisição por interiorização de valores originalmente proibidos” (FANON, 2008, p. 66) para uma admissão ilusória no mundo branco.

O autor ainda acentuava que não havia como “excluir da explicação do homem a possibilidade de assumir ou negar uma situação dada” (FANON, 2008, p. 84). Além do mais, o problema da colonização comportava, portanto, “não apenas a intersecção de condições objetivas e históricas, mas também a atitude do homem diante dessas condições” (FANON, 2008, p. 84).

Como observou Homi Bhabha, Frantz Fanon,

ao tentar empreender essas transformações audaciosas, frequentemente impossíveis, da verdade e do valor, o testemunho áspero da deslocação colonial, seu deslocamento de tempo e pessoa, sua profanação de cultura e território, recusou a ambição de qualquer teoria total da opressão colonial (BHABHA, 2003c, p. 71).

A obra do martinicano, muito além de ser uma observação fenomenológica do Eu e do Outro, estudo da ambivalência psicanalítica do

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inconsciente, também pôde ser historicamente considerada como uma das primeiras,corajosamente, a tratar de uma dialética da libertação empírica e epistemológica em relação aos espectros históricos da sujeição; a perceber possibilidades no indivíduo periférico de escolha entre a ação ou a passividade a respeito da verdadeira origem de seus conflitos culturais, isto é, a respeito das suas orientações neuróticas das estruturas sociais (BHABHA, 2003c; FANON, 2008).

Outro nome relevante para se pensar um viés de colapso do que, por muitos, é tido como “o” pensamento ocidental é o do palestino e crítico literário Edward Said. Com a repercussão, mais especificamente, de sua obra Orientalismo, o autor, como observado por Tailche e El Gebaly (2012), foi um dos mais ferozes a tecer uma crítica contrapontual ao discurso acadêmico colonial eurocêntrico, que, em alguns casos, foi responsável por “controlar, manipular e até incorporar o que se tratava de um mundo manifestadamente diferente” (SAID, 2007, p. 41).

O intelectual palestino contribuiu para todo um horizonte de novos pensamentos sociais formulados a partir da fala dos oprimidos que deveriam exercitar seus direitos “de narrar suas experiências, suas insurreições, suas memórias, suas tradições, suas histórias” (CARVALHO, 2001, p. 124). Ele denotou ainda a precariedade da autoridade cultural,na qual a periferia se encontrava submetida,passível de reformulações em novos atos enunciativos sob o signo do confronto.

Ao se utilizar do mote do Oriente como invenção do Ocidente, Said (2007), conforme destacado, apontou:

Orientalismo não é um simples tema ou campo político refletido passivamente pela cultura. (...) É antes a distribuição de consciência geopolítica em textos estéticos, eruditos, econômicos, sociológicos, históricos e filológicos; é a elaboração não só de uma distinção geográfica básica

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(o mundo é composto de duas metades desiguais, o Oriente e o Ocidente), mas também de toda uma série de “interesses” que, por meios como a descoberta erudita, a reconstrução filológica, a análise psicológica, a descrição paisagística e sociológica, o Orientalismo não só cria, mas igualmente mantém; é, mais do que expressa, uma certa vontade ou intenção de compreender, em alguns casos controlar, manipular e até incorporar o que é um mundo manifestamente diferente (ou alternativo e novo) (SAID, 2007, p. 41).

Para o autor aqui em questão, sua ideia de ver o Ocidente como promulgador de referências para outros povos (e aqui, inclusive, percebe-se o Oriente como algo além da palavra e que implica regiões fora do eixo América do Norte e Europa Ocidental) seria sobretudo um discurso que não poderia ser encontrado em uma relação direta com o poder político ao natural. De certa forma, estes saberes forjados seriam produzidos e existiriam em intercâmbio cultural com o poder político (como um regime imperial ou intelectual), o poder intelectual (aqui entraria o papel das ciências dominantes, como é o caso da linguística ou da anatomia comparadas, ou ainda qualquer uma das modernas ciências políticas) e o poder cultural (bem o caso das ideias sobre o que fazemos e o que o outro não pode fazer ou compreender a respeito de nós).

Embora lembrado o fato de que “cada campo individual está ligado a todos os outros, e que nada do que acontece em nosso mundo se dá isoladamente e isento de influências externas” (SAID, 2007, p. 19), as preocupações do autor se convergiram para as polarizações redutivas,as quais gradualmente se faziam mais presentes no pensamento das sociedades ocidentais– binarismos limitantes os quais eclipsaram a memória, o passado histórico e as lógicas próprias das diversas etnias que compõem o chamado mundo subalterno. Grosso modo, o demarcador teórico do cientista palestino se estabeleceu, juntamente com a obra de Frantz Fanon, como

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uma denúncia feroz àqueles tempos a urgir por arquiteturas reflexivas de “desaprender o modo dominador inerente” (SAID, 2007, p. 60).

No que tange a uma discussão hodierna das culturas periféricas,mesmo que uma série de propostas interpretativas tenha eclodido desde as primeiras reverberações dos pensamentos de Frantz Fanon e Edward Said, é verificável, todavia, que ainda não é possível crer que podemos compreender nossos limites do contemporâneos e abdicarmos da ideia de que sobrepujamos o colonial– este, não obstante, sobrevive através de seus efeitos secundários, como é o caso de outras relações de poder deslocadas e descentradas por novos conjuntos de vetores. Nesta conjuntura desestruturante, também não é admissível estabelecer criticidade em uma compreensão mais plena da realidade hoje se esquecermos das noções sinalizadoras e pós-coloniais primeiras, mas não últimas, de características neuróticas e neurotizantes “concretas” em nossas vivências nas fronteiras do presente. Como bem destacou Mignolo (2003, p. 66), “a crítica moderna da modernidade (pós-modernidade) pode até ser uma prática necessária, mas que [continuamente] termina onde começam as diferenças coloniais”. É nesse solo da diversidade colonial, por outro lado, que devemos problematizar nossa morada, não deixando de pôr em alerta os nossos passados e os significados impostos a nós e por nós.

E pelo menos no que pode ser visualizado por inferências diversas a esse pensamento “subalterno”, pela não mudança do estatuto empírico e perverso do estar-junto subjugado, o debate pós-colonial, distante de confundir deserção colonialista com xenofobia, trata de destacar a proliferação de narrativas, temporalidades e um estatuto de poder sustentado pelos pilares da epistemologia, da hermenêutica e da estética de países que impuseram suas tradições científicas (MIGNOLO, 2010), principalmente hoje, em nosso repensar global, após os efeitos marcantes dos últimos grandes impasses sofridos pela humanidade (HALL, 2003a; BHABHA, 2003b; GARCÍA CANCLINI, 2012).

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Conforme acentuado por Schmidt (2011), e ressaltado o fato do capitalismo em sua dimensão produtiva difusa operar um procedimento intenso de neocolonização, o qual se articula nos mesmos moldes da temporalidade imperial, a batalha pela pós-colonialidade do saber,ainda urgente para desmantelar a falsa promessa da superação material e de pensamento binário, marcou o sistema global produtor de centro, semiperiferias e periferias. Este processo foi capaz de gerar guerras culturais como a dos cânones, dos valores, dos direitos, dos acessos, o que deixa claro que as fronteiras se reconstituem e se renovam na geração de margens, exclusões, fragmentação social e emergência de novos modos de pensar, agir e produzir conhecimentos (ver também SANTOS, 2007).

Uma operação deveras elucidativa atualmente contra a falácia do paradigma realista é a desenvolvida por Homi Bhabha (2003a), no que concerne à produção de sentidos nas sociedades. Apropriando-se de noções derridadianas, na perspectiva do signo em movimento, o autor indiano reivindicou a interpretação das culturas como uma estratégia de mobilização dos sentidos, uma vez que todas as suas significações, geradas como efeito da relação ativa e passiva entre presença e ausência, seriam mais bem apreendidas sempre com certo grau de indeterminação ou indecidibilidade significatória (SCHMIDT, 2011).

Distante da noção clássica da condição do signo linguístico definida por Saussurre, Bhabha passou a detectar como qualquer rede discursiva se constitui como um jogo de diferenças em que “o jogo é também um ato de diferenciação, pois compreende diferenças e espaçamentos necessários aos relacionamentos dos signos entre si e sem os quais os significantes não podem significar” (SCHMIDT, 2011, p. 25). Vale ressaltar que autor aqui em questão estabeleceu uma crítica para as avaliações puras e simples de significados sociais como sendo as mais ou menos autênticas (e aqui devemos pensar nos territórios não mapeados e compostos por imagens híbridas, as quais fogem das tentativas cada vez mais infrutíferas das nomenclaturas), haja

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vista a necessidade de significação plurivalente, composta por um terceiro lócus contextual de enunciações justapostas, incomensuráveis, moventes e deliberadamente contraditórias – característica integrante de uma das operações mais atuais para se pensar as sociedades sob um benéfico olhar fenomenológico e contra os fechamentos arbitrários dos saberes importados (BHABHA, 2003b; MENEZES DE SOUZA, 2004).

Na esteira do que pontuou Menezes de Souza,

a postura desconstrucionista, que elimina o conceito de uma realidade transcendental e não mediada, abre uma fenda entre o significante e o significado, postulando o texto não como representação de algo exterior – um logos – mas sim como um processo produtivo de significados, através do qual várias posições de sujeito ideológicas e historicamente situadas podem ser estabelecidas, posições a partir das quais o significado é construído e o leitor e o autor são posicionados (2004, p. 117).

Voltamos, neste caso, à polissemia bakhtiniana para revelar as camadas escondidas das interpretações dos outros. Contudo, retomamos o linguista russo já sob uma semântica que aceita a ambiguidade como parte do tempo social, sob a urgência da expansão de um sistema sensório em direção a dimensões novas, ainda inimagináveis (o alerta dos significados desnaturalizados por operações liminares e culturais) (PAGANO & MAGALHÂES, 2005).

O estatuto bhabhadiano da produção de sentidos, estrategicamente político, reverbera uma lógica além de suas limitações, capaz de aceitar “uma forma liminar de significação, sem anterioridade em relação à contingência da experiência, sem uma representação refém do empirismo e sem a exterioridade relativa à intenção originária de um ‘autor’” (SCHMIDT, 2011, p. 35). É, por conseguinte,através destas operações de enfrentamento dos pedaços teimosos das sociedades na atualidade que podemos nos aproximar das naturezas

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performativas das identificações distintas do mundo e fazer emergir um acesso aos problematizadores da regulação e da negociação dos espaços os quais são continuamente, contingencialmente, passíveis de expansões. Espaços cujas fronteiras são retraçadas e expõem “os limites de qualquer alegação de um signo singular ou autônomo de diferença – seja ele classe, gênero ou raça” (BHABHA, 2003b, p. 301).

Se o nosso presente, “que aparece através do colapso da temporalidade, significa uma intermediatidade histórica” (BHABHA, 2003a, p. 301), este, então, exala uma questão aberta, continuamente carente por posturas renováveis; denota, muito claramente,vivências em uma trama de descontinuidades culturais, deformações sociais e de estruturas de sentimento: memórias e imaginários os quais misturam o privado e o público, o masculino e o feminino, o imigrante e o entrevistador, variedades linguísticas hegemônicas e não hegemônicas, atores centrais e marginais, a lógica monocultural e a multicultural, a periferia e a tecnologia, entre outros aparentes binômios continuamente interrelacionais (MARTÍN-BARBERO, 2000; GARCÍA CANCLINI, 2003; MOITA LOPES & BASTOS, 2010).

O presente reinscrito é a ruptura que possibilita desmascararas novas formas de visões rígidas e/ou estacionadas para as culturas, visto a necessidade da autocrítica, da não reincidência, “onde a diferença não é nem o Um nem o Outro, mas algo além, intervalar (...); um futuro intersticial, que emerge no entre-meio entre as exigências do passado e as necessidades do presente” (BHABHA, 2003b, p. 301). Seja pelo fato de entender que os conflitos estarão sempre presentes, emudecendo novos grupos, lugares e encontrando alternativas de burlar nossas políticas teóricas plurais, as quais insistentemente devem ficar à procura de chaves de leitura para além dos últimos limites, a abordagem pós-colonial, vale acrescentar, acredita em informar e refletir sobre os entrelugares que deram novamente um sentido humano ao mundo (GAGNEBIN, 2001).

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São as articulações conceituais desta rede de intelectuais alguns dos vagalumes a pedir (e nesse ponto, de maneira incansável, espera-se), em nós, por uma tentativa de um pensamento liminar entre as sociedades de procedências “ditas” irrelevantes, como a latino-americana, a brasileira e a amazônica – pensamento o qual busca “as margens externas do sistema mundial moderno” (MIGNOLO, 2003, p. 34) –, de maneira a nos fazer lutar para explorar possibilidades enunciativas como “estratégias de empoderamento de sujeitos que se posicionam criticamente no lugar fronteiriço da identidade e que, por isso mesmo, suas articulações estão livres do binarismo investido de que se valem as contrapolíticas de exclusão” (SCHMIDT, 2011, p. 35).

5. Algumas Considerações

Desde os estilhaços narrativos e os estranhamentos conceituais desvelados a partir do pós-guerra, o mundo contemporâneo, com suas sociedades complexas e intermitentemente colaborativas, viu-se diferente. Quando pensamos hoje em alternativas de entender as mudanças nos diversos estatutos do interpretar culturas, vemos um emaranhado de discursos e práticas permeado por alianças, dissidências e contra respostas aos pressupostos ora hermenêuticos neopositivistas, ora hermenêuticos gadamerianos, ora hermenêuticos fenomenológicos.

De um lado, conseguimos ler ruídos já nas inscrições desveladas por Clifford Geertz, ou mesmo pelos diversos cientistas tributários ao seu interpretativismo cultural. De outro, uma geração da sociologia pós-moderna, mesmo em seus passos iniciais, pôde perceber os efeitos contraditórios e, para eles, nada celebratórios de uma nova dimensão intercultural das nações.

Em todo caso, um efeito pertinente, mas não ausente de constantes problematizações, desse barulho no qual o mundo das ciências sociais passou a se ver foi o de abrir fendas para que minorias reclamassem para si o papel de entender e ler suas próprias diferenças a partir de instrumentos conceituais

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cada vez mais próprios, ausentes do excesso de análises interpretativas do “centro” – algo, atualmente, vislumbrado nas novas geografias de saber do sudoeste da Ásia, da América Latina, da África e do Oriente Médio, bem como através de cientistas diaspóricos atuantes nos interiores das próprias instituições do eixo dominante Ocidental.

Devemos ainda ressaltar, não obstante, que a tentativa de encontrar um mapa mais ou menos coerente com essas tramas moventes de articulações incita discursos que ainda podem soar misteriosos e nos enganar em face de seus poucos segundos de realidade, as quais correspondem às breves estabilidades antes das objetivações cruéis que as encerram em lógicas de leis próprias e, por vezes,irradiáveis (vide os malefícios promovidos por um discurso neoliberal e instrumentalizador da diferença).

Homi Bhabha é um dos nomes que atualmente acreditamos se inserir nessa sublevação de um terceiro lugar da interpretação, espaço autocrítico e perambulante de imagens híbridas, que busca acompanhar a transformação social “sem a promessa de clausura celebratória, sem a transcendência das condições complexas e conflitantes que acompanham o ato de tradução cultural” (BHABHA apud MENEZES DE SOUZA, 2004, p. 113). Talvez por apostarmos algumas de nossas cartas de apreciação nesse entendimento e por essa crença teimosa na existência de instantes voláteis, porém rapidamente apreensíveis (visto serem ora fulgurantes, ora diáfanos), ser ainda possível insistir nessa extenuante procura por signos os quais estejam em um entre, em um estilhaço, em um sem título a mais.

Hall (2003a, p. 118) já tinha previsto que “o desmantelamento do paradigma colonial faria emergir das profundezas estranhos demônios, e que esses monstros viriam arrastando todo tipo de material subterrâneo” para pôr nossas frágeis tentativas de certeza em alerta – efeito característico, hoje, quando buscamos remover “o

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para o das negociações fronteiriças da tradução cultural” (BHABHA, 2003a, p. 306).Em todo caso, o mesmo autor também pôde alertar acerca do fato de haver uma predisposição da razão em encontrar seu leito de sono, festim diabólico do poder e do saber unicamente na lógica passível de ritualização e instrumentalização dos interstícios – outro lado da abordagem, portanto, que deve ser constantemente estranhado e colocado em alerta para se pensar o solo fértil das transformações sociais.

Adotar uma trama discursiva a partir de um pensamento pós-colonial, o qual não indefere um acesso a outras abordagens interpretativas – uma concepção para horizontalizar saberes –, é, não obstante, operação capaz de inscrever no espaço da textualidade um deslocamento político quanto a sua vinculação tradicional (GIROUX & GIROUX, 2003). Muito mais relacionado como uma oposição aos procedimentos de uma crítica engajada, delegara o discurso político uma prática de significação busca fazer da teoria uma porta para nos tornar mais conscientes de que “o povo, a comunidade, a luta de classes, o antirracismo, a diferença de gênero, a afirmação anti-imperialista, negra ou terceira não existem com um sentido primordial, naturalista” (BHABHA, 2003d, p. 52).

Conforme evidenciado por Bhabha, nossas vivências em temporalidades híbridas, transformacionais, requerem uma rearticulação, ou tradução de algo que foge das nomenclaturas mais simplistas. É, de certa forma, na negociação entre gêneros e classe que observamos o enfrentamento das “fronteiras deslocadas e diferenciadas de sua representação como grupo e os lugares enunciativos nos quais os limites e limitações do poder social são confrontados em uma relação agonística” (BHABHA, 2003d, p. 55) – o que sugere nosso lugar de fala e articulação política a partir das margens, sejam elas margens da América Latina, do Brasil ou dos territórios Amazônicos.30 Para maior esclarecimento da pluralidade demográfica, devemos assinalar o que Bhabha chamou de “imposição da homogeneidade sobre as populações ‘minoritárias’ em nome da diversidade cultural ou do pluralismo” (2003a, p. 314).

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No fim das contas,quer queiram quer não (e isso é muito mais complicado de ser subjugado pelas garras da política perversa e do pensamento simplificante), o maior combustível para esse constante mover-se entre ruídos e silêncios vem de um termo já observado por Mauss (1972),que é o de solidariedade, ação entre sujeitos amparada pela crença que ultrapassa até mesmo nossos comportamentos culturalmente formatados. Muito apropriadamente, é esta intenção de solidariedade, um colocar-se no futuro como questão aberta, autocrítica e consciente de nossos limites e os dos outros, que nos fazem apostar não podermos mais encontrar uma resposta final (pois sua pergunta já não estará mais lá), mas fortaleceremos um debate para,continuamente, aproximarmo-nos de novos limites, conflitos reconfigurados com o passar do tempo, quase respostas, contínuos migrantes, assimetrias, traduções inesgotáveis, vozes submersas a clamar por reconhecimento, eternos pontos em seguida.

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CARTOGRAFIAS DO SABER-FAZER:

Experiências de Mulheres com Talas de Jupati em São Sebastião da Boa Vista (Marajó das Florestas - Pa)

Ninon Rose Jardim (UEPA)Agenor Sarraf Pacheco (PPHIST/PPGA/UFPA)

Primeiras reentranças

O saber-fazer de mulheres tecedoras da fibra de jupati3131

que vivem às/nas margens dos rios Pirarara, Urucuzal, Chaves, Seringueiro e da Vila de Nazaré, no município de São Sebastião da Boa Vista no Marajó das Florestas-PA, entrelaçou-se em meus interesses de pesquisa desde 2004, a partir do Projeto do SEBRAE-PA “Turismo Amazônia no Marajó”.

Durante os dois anos de projeto (2004-2006), apesar de o foco ter sido o uso da tala do jupati, foi a fibra que me chamou atenção. A fibra é extraída do pecíolo das folhas da palmeira que é longa, grossa, branca, leve e de um brilho natural intenso, que nas mãos hábeis das mulheres vai ganhando vida, em uma diversidade morfológica traduzida em desenhos (re)criados no ato de trançar.

O processo do saber-fazer em fibra envolve contaminações, perdas e reelaborações de práticas culturais como é de conhecimento do campo dos Estudos Culturais, porém o importante é captar os elementos que unem essas práticas, como também interpretar aqueles que as diferenciam, o que está por traz de sua materialidade. Em outras palavras, problematizando os sentidos da experiência que uma determinada prática social constrói, é possível

31A matéria prima utilizada pelos artesãos do município de São Sebastião da Boa Vista é o jupati (Raphia Taedigera), palmeira nativa da flora amazônica em aspecto de touceira, com aproximadamente 2 a 3m de altura, mas com folhas compridas que podem atingir até 15 metros. É usada de diversas formas pelos ribeirinhos: da tala grossa faz-se o matapi, utensílio confeccionado com a tala do jupati usado para a pesca artesanal do camarão; da tala mais fina fazem-se objetos utilitários como cestos e baús e do pecíolo das folhas é retirada uma fibra longa e grossa, branca e leve que é usada na confecção de chapéus de diversos tamanhos e no trabalho de encapa. (JARDIM, 2007).

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visualizar estéticas, memórias e identidades. Nesse processo, modos de fazer se perdem, outros se transformam, outros se criam (HOGGART, 1973). Nessa perspectiva, mergulhar no cenário e ver, olhar, observar, trafegar e viver a paisagem geocultural, compreender modos de ser, viver e fazer das mulheres de fibra e como traduzem suas percepções de mundo na tessitura diária e (re)fazem ou (re)afirmam identidades pode fazer refletir ressignificações sobre a arte dessas mulheres.

E como fazer isso sem adentrar nas cosmologias e nos ecossistemas estéticos32

32

dessa cultura onde essas mulheres estão inseridas? Optei então por fazer uma cartografia sensível da região, explorando geografia, história e estéticas das formas de viver/morar no lugar. Uma cartografia de memórias que valoriza os “[...] saberes e estéticas múltiplas e marginais, histórias invisibilizadas [...]” (SARRAF-PACHECO, 2015, p. 5).

O sentido de cartografia o qual será usado no texto está de acordo com as reflexões de Martin-Barbero (2004), que dilui o entendimento da cartografia moderna como apenas representação de fronteiras apresentando-a como construção também de imagens das relações e dos entretecimentos dos caminhos. Em Martin-Barbero (2004, p. 12), apreendo “[...] uma lógica cartográfica fractal [...] que se expressa textualmente, ou melhor, textilmente:

32 Quando trago o termo ecossistema estético estou apropriando-me das discussões de Medeiros (2013) em seu texto de apresentação do 22º Encontro Nacional da ANPAP, o qual com base em Domènech (2011), no que se refere à percepção humana, à maneira como traduzimos o entorno, emerge uma relação de interdependência, onde os universos dialogam, confrontam-se, interferem-se, “[...] daí a proximidade com o conceito de ecossistema, visto que este subentende o caráter de interdependência dos organismos vivos que fazem parte de um dado universo, revendo a noção mecanicista de sujeito e objeto na medida em que as relações são sempre entre agentes, isto é, interagentes em prol da (sobre)vivência de cada um e do equilíbrio, mesmo que precário, do todo. Ecossistemas estéticos podem ser pensados como processos; dinâmicas; mobilidades; equilíbrios precários; organicidades tênues; inteligências em constante estado de adaptabilidade; conluios do aleatório com o intencional; demo/grafias artístico-estéticas; ecoestéticas. Ecossistemas estéticos não constitui um conceito, mas, antes, uma provocação, um convite à reflexão sobre as artes visuais e as configurações de sua herança genética na atualidade, num momento em que essa herança vai sendo modificada pelas condições oferecidas pelo (meio) ambiente” (MEDEIROS, 2013).

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em pregas e des-pregas, reveses, intertextos, intervalos”. Uma lógica arquipélago, “[...] lugar de diálogos e confrontação entre as múltiplas terras-ilhas que se entrelaçam” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 13). O que comunga com o pensamento arquipélago de Glissant (2005) o qual “[...] deriva rumo a uma visão do poético e do imaginário do mundo [...] um pensamento não sistemático, indutivo, que explora o imprevisto da totalidade-mundo [...]” (GLISSANT, 2005, p.54).

No cenário da arte de tecer, as mulheres revelam aspirações, esperanças, vicissitudes e contradições cotidianas. O fazer se torna testemunho da passagem do tempo de quem pensou, arquitetou, experimentou, fez, refez, visualizou e viveu essa arte. É preciso, assim, identificar sentidos de pertença, heranças históricas, socioculturais e elementos estético-formais que fazem parte dessa cultura.

Contudo é importante entender que esse saber-fazer, como patrimônio cultural, não pode ser visto em forma “pura”, autóctone, fixo, “essencial” e sim como uma cultura movente, misturada, resultante de constante tensionamento entre diferentes conhecimentos e práticas de diferentes grupos culturais (CANDAU, 2008).

Impressões do lugar

O sol se punha na tarde de junho de 2011, a noite começava a se levantar e em meio ao frenesi de pessoas, mercadorias, carregadores e carretos33

33 no porto São Benedito3434

, o colorido das redes pouco a pouco ia compondo os conveses dos barcos ancorados às margens da Baia do Guajará35

35

, formando combinações análogas e contrastantes. Uma infinidade de formas

33 Carreto é como se chama o carro de madeira usado pelos carregadores para levar as bagagens dos viajantes aos barcos.34 O porto São Benedito é um dos diversos portos distribuídos ao longo da Av. Bernardo Sayão em Belém do Pará.35 A Baia do Guajará banha a cidade de Belém.

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geométricas, expostas em suas varandas, revelava diversas texturas e estampas no tecido. Um ato que, de tão corriqueiro para os paraenses transitando pelas ruas de rios, tornou-se natural ao olhar. Ao mesmo tempo aponta que aquela paisagem cultural está enraizada na vida desses sujeitos, traduzindo uma estética do cotidiano a qual “[...] se organiza a partir de múltiplas facetas do seu processo de vida e de transformação” (RICHTER, 2003, p. 21).

Para onde vão? Muitos são os destinos. O meu era São Sebastião da Boa Vista no Marajó das Florestas, uma cidade de pequeno porte, instigante na sua singularidade, dividida em Cidade Velha e Cidade Nova pelo Furo Santo Antônio ou Furo Humaitá, como alguns chamam. Boa Vista, como é conhecida por quem mora por lá, ainda é cortada pelo Furo Jaçuana. Esses caminhos de rio deram o título ao município de a “Veneza do Marajó”, fazendo referência à cidade de Veneza, na Itália.

Figura 01 – Pôr-do-sol às margens da Baía do Guajará

Clarté: Arquivo pessoal, 2011

Figura 02 – Redes no convés

Roseli Souza: Arquivo pessoal, 2012

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Figura 03 – Furo Santo AntônioManuela Costa: Arquivo pessoal, 2011

Quanto ao título que se refere à cidade italiana, na Amazônia Marajoara, há duas Venezas do Marajó: São Sebastião da Boa Vista e Afuá. Estes municípios disputam entre si o imaginário e o título de ser uma cidade sobre pontes e cortada pelas águas. De acordo com os moradores de Boa Vista, quem primeiro adquiriu o título de Veneza do Marajó foi Boa Vista, sendo inclusive a única cortada pelo rio. Todavia, quando se visita Afuá, caminha-se somente por pontes, algumas já transformadas pelo concreto posto sobre a madeira, diferente de Boa Vista que ainda possui ruas em seu traçado urbano. Ali, na entrada da cidade, pode-se ler: “Seja bem vindo à Veneza do Marajó”. Disputas à parte, o certo é que as cidades marajoaras e amazônicas são constituídas em suas especificidades e em profundo diálogo com a paisagem geocultural da região.

O apito toca, fazendo-me voltar de minhas digressões e retomar minhas impressões; já é hora de partir. Do parapeito do Veneza do Marajó36

36,

vejo a cidade de Belém ficar para trás, ao redor os barcos se espalham, os coloridos das redes, das vestimentas das pessoas, os grafismos dos barcos, das luzes que piscam ao som do tecnobrega37

37

36 Um dos barcos que fazem a linha Belém – São Sebastião da Boa Vista.37 Ritmo popular nascido nas periferias de Belém do Pará, o Tecnobrega é um mix de Carimbó, Siriá, Lundu e outros gêneros como o Calypso ribeirinho, além de Guitarradas, sintetizadores

Figura 04 – Furo JaçuanaLídia Abrahim: Arquivo pessoal, 2012

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aos poucos vão se diluindo na escuridão, formando rastros de luz que iluminam os rios do Pará.

A viagem é longa e está apenas começando, oito horas separavam-me de meu destino. Até chegar a São Sebastião da Boa Vista, navegamos por vários furos e rios. Ainda recostada no parapeito do barco observava as pessoas, vários rostos compõem a população do barco. Quem são? De onde são? O que vão fazer por lá? Vão a trabalho, a passeio, retornam para casa, vão visitar parentes? Como saber? Alguns trocam ideias, outros jogam conversa fora, outros ainda comem e bebem ao som do tecnobrega e de outros ritmos paraenses.

Observo as preferências, uns viajam de rede, outros de camarote, escolha, que não necessariamente, tem a ver com o valor da acomodação. Muitas vezes pode estar ligada a práticas culturais, herdadas de tradições indígenas. Muitos escolhem a rede por achar mais seguro, pois não gostam de ir fechados nos camarotes, outros ainda, como eu, não conseguem viajar e batidas eletrônicas. Trata-se de um movimento único no Brasil, que carrega multidões todos os fins de semana para as famosas “festas de aparelhagem”. A iniciativa gera uma indústria musical própria, com base na periferia. Disponível em TV Brasil. http://tvbrasil.ebc.com.br/sabadosazuis/episodio/tecnobrega. Acesso em: 27 de maio de 2013.

Figura 05 – Vista de Belém do parapeito do Veneza do Marajó

Clarté: Arquivo pessoal, 2011

Figura 06 – Movimento dos barcos na Baía do Guajará

Clarté: Arquivo pessoal, 2011

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de rede, pois ficam mareados3838 com o balanço do barco, e ainda há outros

que acham a cama mais confortável para uma viagem longa.

A brisa da noite e o céu estrelado me acompanham. O silêncio só é cortado pelo barulho do vento, pelo som do motor e pelo rio ao reclamar da passagem do barco. Por volta de duas horas de viagem, o Veneza encosta em frente à praça do município de Barcarena39

39

onde outros passageiros se juntam aos que partiram de Belém. A viagem continua. Logo a tranquilidade começa a ser quebrada pela força da Baía do Marajó, o mar dos marajoaras. Dizem os marajoaras que navegar por ela nos meses de setembro, outubro, novembro e dezembro não é para qualquer um, no verão paraense a baía fica mais agitada e perigosa.

A Baía de Marajó é, na verdade, a foz em estuário do rio Pará, um dos componentes da grande foz do rio Amazonas, em sua porção sul do litoral da ilha de Marajó. A baía separa o litoral continental do estado do Pará, no contato entre o recortado litoral oceânico e o da foz do rio Pará, com o litoral leste da Ilha de Marajó.

Em função do enorme volume de descarga de água doce, vindo desse complexo hidrográfico que envolve o braço sul do Amazonas e a foz do Tocantins, formadores do rio Pará, as águas da baía são permanentemente turvas e com baixa salinidade40

40.

38 Ficar mareado é no linguajar local, ficar nauseado e com a sensação do movimento da maré, do movimento do barco, mesmo estando fora dele.39 As terras de Barcarena foram habitadas primeiramente pelos índios Aruãs. Com a chegada dos Jesuítas, ali foi instalada a fazenda Gebrié (ou Gebirié) e construída uma igreja. Em suas terras morreu, em 1834 o cônego Batista Campos, um dos líderes da Cabanagem. Seu território foi separado de Belém em 1938. Disponível em Portal ORM. http://www.orm.com.br/tvliberal. Acesso em: 26 de novembro de 2012.40 Disponível em Portal Amazônia.com. http://www.portalamazonia.com.br/secao/amazoniadeaz/interna.php?id=28. Acesso em: 26 de novembro de 2012.

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A maresia experimenta o barco, bate com força fazendo o barco gemer, uma verdadeira luta do homem com as águas. Muitos ficam alheios, deitados adormecidos em suas redes, embalados pelo ritmo da maré. Outros como eu, se sobressaltam a cada sacolejo, no entanto confiam na Virgem de Nazaré41

41

e esperam a maresia passar.

Figura 07 – Passageiros dormindo durante a travessia da Baía do Marajó

Lídia Abhahim: Arquivo pessoal, 2012

Depois de algum tempo a luta termina e a Baia do Marajó vai ficando para traz. Agora posso dormir sossegada.

Ainda é madrugada quando o Veneza encosta no porto no Furo Santo Antônio. Logo na chegada avisto, do parapeito do barco, os moto-táxis e carregadores chegando em busca de fregueses. Aportamos em São Sebastião da Boa Vista e é muito bom estar de volta depois de tanto tempo!

A cidade ainda dorme, pois chegamos por volta de quatro horas da manhã. Alguns não desembarcam, preferem esperar o dia amanhecer dentro do barco. Eu não, logo aceno e o carregador vem ao meu encontro. Depois de tudo organizado no carreto começo minha caminhada a pé pelas ruas de São 41 Nossa Senhora de Nazaré é a padroeira dos paraenses.

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Sebastião da Boa Vista até a casa do Pingo. Caminho mais um pouco e logo observo à minha esquerda a Praça Matriz com seus bancos de concreto, coretos e a ponte sob o pequeno lago, mas o grande destaque da praça vai para o imponente altar com a imagem de São Sebastião, padroeiro do município, que fica ao centro em frente à igreja Matriz, voltado para o rio, o que restou da antiga igreja: “[...] símbolo de devoção e resistência, uma vez que sobreviveu a demolição da antiga capela, chamada de ‘Igreja Original’ [...]” (COSTA; SIMÕES, 2011, p. 69)

Figura 08 – Praça Matriz

Moyses Cavalcante: Arquivo pessoal, 2012

Figura 09 – Imagem de São Sebastião como destaque da praça

Aislan de Paula: Arquivo pessoal, 2011

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A pintura da praça está desgastada, mas ainda expressa as cores vermelho, preto e branco, inspirada nos motivos ornamentais da cerâmica marajoara. Do lado esquerdo da praça está a prefeitura do município, um prédio imponente com traços da arquitetura moderna, também nas cores do Marajó. Ao lado da prefeitura fica o Centro Catequético e, ao seu lado, na esquina, a construção recente do prédio do Banco do Brasil, novidade na cidade.

Em frente à praça avisto o trapiche municipal e a praia. É neste complexo que toda a movimentação da cidade acontece: as festas profanas, como o festival do açaí (realizado em setembro), o carnaval, a festa junina, além dos shows de bandas regionais. As festas religiosas, entre as quais ganha destaque a festividade de São Sebastião que acontece em janeiro; e as festas políticas, como os antigos showmícios.

A esse espaço de lazer da cidade, os boavistenses levam os filhos para passear, tomar banho na praia, ver o movimento de saída e chegada das embarcações. Ali, os diferentes moradores, de distintas faixas etárias, encontram-se, seja para brincar, conversar, namorar, beber, dançar, seja para apreciar a paisagem geocultural. O trapiche e a praia são, portanto, o principal espaço de sociabilidade da cidade, um espaço praticado para lembrar Certeau

Figura 10/11 – Prédio da Prefeitura do município e Centro catequético

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Figura 12 – Praia e trapiche municipal

Aislan de Paula: Arquivo pessoal, 2011

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A pintura da praça está desgastada, mas ainda expressa as cores vermelho, preto e branco, inspirada nos motivos ornamentais da cerâmica marajoara. Do lado esquerdo da praça está a prefeitura do município, um prédio imponente com traços da arquitetura moderna, também nas cores do Marajó. Ao lado da prefeitura fica o Centro Catequético e, ao seu lado, na esquina, a construção recente do prédio do Banco do Brasil, novidade na cidade.

Em frente à praça avisto o trapiche municipal e a praia. É neste complexo que toda a movimentação da cidade acontece: as festas profanas, como o festival do açaí (realizado em setembro), o carnaval, a festa junina, além dos shows de bandas regionais. As festas religiosas, entre as quais ganha destaque a festividade de São Sebastião que acontece em janeiro; e as festas políticas, como os antigos showmícios.

A esse espaço de lazer da cidade, os boavistenses levam os filhos para passear, tomar banho na praia, ver o movimento de saída e chegada das embarcações. Ali, os diferentes moradores, de distintas faixas etárias, encontram-se, seja para brincar, conversar, namorar, beber, dançar, seja para apreciar a paisagem geocultural. O trapiche e a praia são, portanto, o principal espaço de sociabilidade da cidade, um espaço praticado para lembrar Certeau

Figura 10/11 – Prédio da Prefeitura do município e Centro catequético

Aislan de Paula: Arquivo pessoal, 2011

Figura 12 – Praia e trapiche municipal

Aislan de Paula: Arquivo pessoal, 2011

(2003). Nesse sentido, é valido recuperar reflexões de Oliveira (2008, p. 27), quando argumenta:

O espaço é a junção da paisagem com a sociedade. Deixa de ser uma observação de momento, para ser a paisagem com o movimento, com a dinâmica social, como sendo o local. Com suas características peculiares, que são impressas pelo uso que se dá a ele, no qual cada indivíduo ou grupo social se desenvolve em uma lógica biológica (com a ingestão de alimentos), produtiva (com o trabalho, entendido de maneira geral) e/ou cultural (com os mitos, tradições, hábitos e costumes).

Figura 13 – Espaço de lazer onde são montados palcos e terreiros

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Continuando a caminhada vejo, à minha direita, o prédio da secretaria de cultura que também comporta a biblioteca municipal Jarbas Passarinho, um espaço de informação e pesquisa para os boavistenses. Passo ainda pelo centro comercial e, dobrando à direita, logo visualizo o ginásio de esportes da cidade. Ando mais alguns metros e lá está, à minha esquerda, uma casa de madeira de dois pavimentos, sem pintura; é ali que ficarei hospedada. Agora vou aproveitar o restinho da madrugada e dormir um pouco, pois logo cedo irei para o sítio, como chamam os boavistenses às comunidades ribeirinhas afastadas da cidade-sede.

Paisagens Praticadas

O dia amanhece e depois de desfrutar do café da manhã na companhia de Pingo, Rita (sua esposa), João e Larissa (seus filhos), com o delicioso pãozinho caseiro de São Sebastião da Boa Vista, caminho pela cidade para providenciar algumas coisas que precisava levar ao sítio.

Às sete da manhã, a cidade já fervilha, o movimento é intenso, o comércio já está de portas abertas, as pessoas caminham pela rua, crianças uniformizadas vão para as escolas, mulheres passam com a sacola cheia de compras, denunciando que acabaram de vir da feira, homens batem papo nas esquinas; os moto-táxis, que não existiam há cinco anos atrás, quando da minha última estada no município, misturam-se às bicicletas e às pessoas, fazendo com que já tenhamos de andar com mais cuidado pelas ruas. Os sons da vida urbana se misturam no ar: o ronco do motor das motos, o som da boca de ferro43

42, das bicicletas com som, a voz dos vendedores na porta das lojas, as conversas corriqueiras entre os transeuntes, tudo faz parte do dia a dia do movimento da cidade.

Imersa nessa paisagem, olho tudo com interesse de quem há muito não esteve por ali. Muitas coisas mudaram, encontrei mais asfalto, menos estivas,

43 Publicidade, montada por um sistema de som instalado nos postes que transmitem notícias locais. Muito comum nas periferias de Belém e nos municípios do Pará.

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todavia isso não trouxe o saneamento básico que ainda é precário. Encontrei muitas casas já de alvenaria, mas que, mesmo assim, não perderam o colorido característico das casas de madeira do Marajó; entretanto este colorido sofreu intervenções com a utilização de novos materiais.

Durante a caminhada o olhar às estéticas da cotidianidade levou-me a observar a arquitetura vernácula. As moradas boavistenses, tanto na cidade como no sítio, são constituídas de composições formais geometrizantes que decoram principalmente as varandas das casas, herança estético-formal indígena presentificada e resignificada pela memória de rastro/resíduo a partir de zonas de contato com outros saberes.

Esses elementos estéticos são recorrentes tanto em São Sebastião da Boa Vista como em todos os municípios da Amazônia Marajoara. As casas também apresentam morfologias orgânicas que aparecem compondo portas e janelas. Em algumas delas encontramos a iconografia a qual compõe os barcos da região, presentes na pintura da fachada. Estar na varanda de uma dessas casas é quase como debruçar-se no parapeito do barco e observar o movimento das ruas de rio.

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Figura 14/15 – Arquitetura vernacular com o uso de formas geométricas

Moyses Carvalho: Arquivo pessoal, 2013

Figura 16/17 – Arquitetura vernacular com uso da iconografia dos barcos da região

Manuela Costa: Arquivo pessoal, 2011

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As cores são usadas nos seus mais diversos matizes, principalmente em combinações contrastantes. Esta esteticidade se apresenta tanto externa como internamente nas edificações, contudo não se restringem a arquitetura, espalhando-se também pela decoração, “[...] a casa do homem do povo sempre conta sobre sua cultura, sobre as tradições locais, mas diz ainda da criatividade de seus donos, de sua liberdade no ato de criar” (ZALUAR, 2007, p. 134).

Olhando esse cenário posso entender um pouco quem são estes marajoaras, pessoas em sua maioria, desfavorecidos economicamente, que buscam, na expressão estética de sua cotidianidade, libertar-se e mostrar-se ao outro, marcando seu lugar, construindo sua identidade. Matutando sobre tudo isso, resolvo as pendências e retorno à casa do Pingo. Já é hora de pegar a rabeta44

43

e ir para o sítio. Depois de tudo organizado e dos agradecimentos pela acolhida, vou ao encontro do meu barqueiro, o Júnior, que me aguarda com

44 Embarcação de madeira similar a uma canoa comprida, pilotada na proa com motor localizado próximo a popa.

Figura 18/19 – O uso da cor na arquitetura vernacular

Moyses Cavalcante: Arquivo pessoal, 2013

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sua embarcação às margens do Furo Santo Antônio.

A viagem começa: a rabeta se afasta da margem, o barulho do motor mistura-se aos meus pensamentos. Vou olhando as casas enfileiradas por de trás de uma estiva que serve de rua aos transeuntes. Ao mesmo tempo em que me encanto com o colorido e as formas, não posso deixar de observar as contradições sociais: a beleza estética da cotidianidade em contraste com a falta de saneamento básico que coloca essa população às margens da sociedade sem o atendimento de suas necessidades mais essenciais.

Segundo Pingo de Ouro, vice-prefeito de São Sebastião da Boa Vista, a prefeitura do município vem, desde 2005, tentando resolver o problema. Já conta com uma estação de tratamento de água e com toda a tubulação pronta, faltando apenas finalizar o processo de ligação da rede doméstica à rede de esgoto. Este é um projeto do governo do Estado que está segundo ele há cerca de dois anos parado. Quanto ao tratamento dos dejetos sanitários, há outro projeto do governo federal em andamento o qual visa este tratamento para que os resíduos não poluam os rios da cidade. Soluções fundamentais para a população, que infelizmente ficam à mercê de acordos políticos e disputas entre partidos.

Enquanto isso, a água sem tratamento adequado é despejada nos rios e mistura-se ao banho das crianças que, alheias a isso tudo, brincam na maré cheia. Rapidamente saímos do Furo Santo Antônio e entramos à esquerda no Rio Pará. A expectativa do reencontro é grande. Nosso destino é a casa de Socorro e Roberto, seu marido, no Furo do Pirarara. A viagem levará cerca de quarenta minutos. A rabeta navega próximo à margem. Sol forte, vento no rosto, cheiro de água doce, sinto-me em casa. A luz do dia que reflete o rio ainda calmo, sem maresia, aponta que a viagem será tranquila. Assim deixo-me envolver pelo clima e vou registrando minhas percepções pelo caminho das águas.

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A rabeta corta o rio deixando seus rastros nesse caminho líquido. Cruzamos com uma balsa cheia de troncos de madeira: é a floresta indo embora, parte do patrimônio das populações locais, comercializado quase sempre sem fiscalização e a baixo preço. A riqueza parte, ficando a pobreza e o abandono social. Olho a cena e penso na crônica escrita por Sarraf-Pacheco (2009), quando poética e politicamente discute os destinos da floresta saqueada.

Passamos pelo Cocal, povoado às margens do rio, e logo depois avisto o Furo Acatituba; já estamos quase na metade da viagem. Depois de aproximadamente meia hora desponta à nossa esquerda, a entrada do Furo Urucuzal, já bem mais largo que o Acatituba o que indica estarmos muito próximos da praia de Nazaré. Neste momento, dois botos nos deram o ar de sua graça, surgindo rapidamente e desaparecendo com a mesma rapidez. É um brinde que a natureza nos traz, convidando-nos a refletir sobre o poder desse mamífero no imaginário amazônico e marajoara.

Figura 20 – Rio Pará

Aislan de Paula: Arquivo pessoal, 2011

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O verde da mata em seus vários tons é quebrado vez por outra. O trânsito dos cascos45

44, rabetas, rabudas4645 e embarcações maiores riscam o rio em uma

infinidade de grafismos coloridos, também presentes na tipografia usada para dar nome às embarcações e transmitir mensagens aos que por elas cruzam. Esse movimento expõe conteúdos para aulas de teoria da cor e da forma. Nas embarcações sem cobertura são as sombrinhas que fazem às vezes de proteção contra o sol marajoara, compondo o cenário em variadas estampas.

45 Como os boavistenses chamam a canoa de madeira.46 Embarcação pequena, normalmente feita para uma ou duas pessoas. Pilotada com motor de popa, atinge grandes velocidades.

Figura 21/22/23 – Trânsito no Rio Pará

Aislan de Paula: Arquivo pessoal, 2011

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As casas distribuídas às margens do rio trazem além dos tons da madeira, combinações de praticamente todo o círculo cromático. Nos povoados, como o Cocal e a Vila de Nazaré, as casas são interligadas por estivas que fazem o papel de ruas e por onde os transeuntes vão e vêm. A paisagem mais comum por essas paragens são casas incrustadas no meio da mata rodeadas de açaizeiros que ficam distantes umas das outras. Nelas, pequenos trapiches se estendem até o rio para facilitar o acesso dos barcos, tanto na cheia quanto na vazante. Quando mais simplórias, são os troncos de miritizeiro que, presos entre varas de madeira, substituem os trapiches e servem de pontes flutuantes, requerendo muito equilíbrio de quem não está acostumado a andar sobre ele. Os varais de roupa, normalmente instalados em uma das laterais desses trapiches, também fazem parte da paisagem visual do Marajó das Florestas.

Figura 24/25 – Arquitetura ribeirinha

Moyses Cavalcante: Arquivo pessoal, 2013

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Além das cores, as formas geométricas básicas, quadrados, triângulos, em combinações simples e harmônicas estão presentes na arquitetura das casas ribeirinhas, nos detalhes das fachadas, das varandas, decorando as ruas de rio; em artefatos como os matapis dispostos ordenadamente um sobre o outro formando verdadeiras instalações, na cestaria em tala de jupati empilhada, já aguardando o embarque para a comercialização em Belém e em outros municípios do Pará; em estruturas de pesca como os cacuris e a infinidade de espias47

46

que seguram os matapis iscados4847. Todos esses elementos morfológicos

marcam o lugar do homem nessa paisagem. “O lugar é a ordem [...] segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência [...] Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade” (CERTEAU, 2003, p. 201).

47 Espias são varas de madeira que prendem os matapis às margens do rio. 48 Sobre a experiência de trabalhadores da floresta amazônica, na arte do saber-fazer com a arquitetura e a pesca do cacuri, consultar Lima (2012)

Figura 26/27 – Arquitetura ribeirinha

Moyses Cavalcante: Arquivo pessoal, 2013

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Figura 29 – Cestaria

Aislan de Paula: Arquivo pessoal, 2011

Figura 28 – Matapis

Lídia Abrahim: Arquivo pessoal, 2012

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Em meio às minhas percepções, surge à nossa frente, a praia de Nazaré com seus coqueiros imponentes, que antes não faziam parte da paisagem. Foram plantados por Seu Inácio, um dos primeiros moradores da comunidade, e hoje se tornaram referência marcante daquela comunidade rural. Vemos também o trapiche principal da vila que dá acesso à pequena capela toda em madeira, onde são realizadas as celebrações e a festividade de Santa Maria, padroeira da vila, festejada sempre em 15 de agosto.

Figura 33 – Trapiche principal da Vila de Nazaré e igreja ao fundo

Clarté: Arquivo pessoal, 2011

Figura 30 – CacuriMoyses Cavalcante: Arquivo pessoal,

2012

Figura 31 – EspiasLídia Abrahim: Arquivo pessoal, 2012

Figura 32 – Praia de Nazaré

Aislan de Paula: Arquivo pessoal, 2011

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Como opção de lazer, as crianças e jovens aproveitam o que a natureza oferece. Assim, a praia se torna o espaço mais disputado: se a maré está cheia o banho de rio é certo e a estiva serve de trampolim para os mais arteiros. Se a maré está seca as areias viram campinho de futebol para a alegria de todos.

O vento é o companheiro de quem mora por ali. Ele avisa a hora da enchente, da vazante, da tempestade, da maresia. As atividades da escola e outras que por ventura venham a ser realizadas no local, são determinadas pela força da maresia: quando ela está forte não há quem encoste em Nazaré, é arriscado, pois o barco pode afundar, ir para o fundo. Há um respeito muito grande pelos movimentos da maré, dos ventos, do tempo, que determinam o dia a dia das mulheres de/da fibra. Por esses termos, é válido acompanhar o que assinala Sarraf-Pacheco (2009, p. 410):

Na dinâmica marajoara, as populações locais, sempre sensíveis e sintonizadas aos mistérios da floresta amazônica, produziram inteligíveis modos de vida e trabalho, os quais vêm permitindo-lhes dialogar e respeitar temporalidades dos indissociáveis reinos: humano, vegetal, animal e mineral, garantidores do sustento de seu dia-a-dia.

Figura 34/35 – Banhos de rio e Brincadeira de bola

Clarté e Aislan de Paula: Arquivo pessoal, 2011

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A igreja “divide” a vila de Nazaré. Do lado esquerdo mora a família de Seu Inácio e dois de seus filhos, o Irã e o Ivanildo que ao constituírem família construíram suas casas à beira da praia: mesmo na maré alta as águas não chegam por lá. Do outro lado, fica a maior parte do povoado, onde mora a família de Seu Celino, suas filhas, Melânia e Rosária, e seu filho, João; e a família de Dona Amélia com seus filhos Raimundinho, Reinaldo e Rivelino, todos já casados.

É deste lado que fica a escola da comunidade, logo ao lado da igreja, que em minhas primeiras vindas ao município, ainda não existia. A escola, na época, ficava em um barracão improvisado próximo à igreja, que não existe mais. Segundo o relato de Marli uma das mulheres de fibra, naquele tempo a disputa de poder e sua centralização apenas nas mãos de Seu Celino, atual dirigente da comunidade49

48

de Nazaré, contribuíram para a inutilização do barracão, logo corroído pelo tempo e pelas águas. O relato de Marli mostra como as relações de poder estão presentes às margens dos rios no Marajó das Florestas: “Aquele, barracãozinho que tava [...] aí caiu, dismancharam, né? Fizero aquele lá atrás. Aí como os piqueno tava fazendo, aí pronto, ele (Seu Celino) tomô conta, aí tá lá daquele jeito. Madeira tá apodrecendo [...].”50

49

Ali o acesso à escola e às casas é feito por uma estiva em madeira, que está precisando de muitos reparos e em outros pontos nem existe mais, sendo substituída por troncos de açaizeiro colocados em grupos de dois ou três, que servem de ponte improvisada à passagem dos moradores.

49 Durante as entrevistas observei que o termo comunidade é usado pelos moradores dos furos e rios de São Sebastião da Boa Vista como definição de comunidade religiosa. Quando perguntei durante as entrevistas onde ficava a localização de sua casa, a entrevistada se posiciona ou pelo nome do furo ou rio que passa em frente ou pela comunidade religiosa de que participa, dependendo da sua opção religiosa.50 Entrevista com Marli, realizada na residência de Socorro, no dia 29 de outubro de 2011.

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Nazaré é um povoado familiar, foi formado a partir da ida de Seu Celino para o local, o filho mais velho de Seu Alto e Dona Francisca, já falecidos. Seu Celino foi o primeiro a levantar sua casa para lá, ainda com dezesseis anos, por volta de 1949. Junto com ele depois vieram alguns de seus irmãos. Sob o murmurar da maré ao bater nas areias da praia de Nazaré, em companhia de meu orientador que participou e ajudou nesta etapa da pesquisa, Seu Celino conta como isso tudo aconteceu:

[...] nós morava lá no Pirarara [...] aí eu chamei o Avelino, meu irmão, esse que mora em Abaeté, perguntei por quanto ele fazia um chalé pra mim aqui na ponta, bem na ponta onde era a tapera grande. Que era proibido ente morá aí, mas nós vinha morá! Que eu não vinha morá no Pirarara! [...] Tava com dezesseis já pra dezessete [...] Veio fazê, só essa casa aqui. Aí, meu irmão casu, esse que mora em cima, o Inácio. Ele pediu pra mim dá um lugar pra ele morar junto com nós aí, enquanto ele alimpava o lugar pra fazê onde ele mora, lá onde tem aqueles coqueiro. Ta bom! Ele veio pra lá [...] viero comigo a minha mãe, essa Amélia que é minha irmã, os dois muleques e o outro meu irmão

Figura 36/37 – Estivas da Vila de Nazaré

Clarté: Arquivo pessoal, 2011

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que mora em Macapá, o Raimundo, que era o mais criança, o caçula.51

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A ocupação do espaço, porém, não foi pacífica: a divisão das terras de Nazaré gerou muitos conflitos entre os irmãos. Essa animosidade velada ainda se observa hoje, havendo um clima de disputa de poder e a igreja, ironicamente, acabou ficando, atrevo-me a dizer, como espaço de zona de contato52

51 (PRATT, 1999), onde as relações são constituídas na difícil e negociada convivência cotidiana em um processo contínuo de fazer-se em presença, em que as tradições só são transmitidas e partilhadas diante do outro (GLISSANT, 2005). Desse modo, “o espaço é desenhado e criado na plasticidade da experiência e das relações humanas. A ação multiplica os espaços, transforma-o em ambiente dividido, compartilhado, convivido” (DIAS, 2006, p. 32).

[...] e o meu irmão esse que mora aí, o Inácio, num quiria que fosse por aqui a divisa, ele num quis, quiria que fosse por lá, aí, teve aquela confusão, cabô que nós era sete irmãos, fico só pra quatro aqui, três ficô lá pro Pirarara, onde tá morando o Roberto [...] aí a Amélia cumprô o quinham que era do Raimundo, que tá morando pra Macapá, cumprô do Avelino mora em Abaetetuba, e comprô do Nicanor que já é falecido e fico com a parte dela, ela ficô com quatro parte do terreno. Eu cumprei dum irmão que mora em Curralinho e o Inácio fico com o quinham que é dele, sabe, só que ele tirô o que quis! Aí eu entrei na confusão. Meu irmão quis fazê confusão. Eu disse não, num presta! A gente não semo dono de nada! Eu tenho isso comigo. Quando a gente veio, incontrô. A gente vai morrê, num vai leva, então não adianta briga, somo tudo irmão. Vamos fazê o seguinte, deixa ele tirá o que ele

51 Entrevista com Celino, realizada na praia de Nazaré, no dia 21 de julho de 2012.52 O conceito de zona de contato de Pratt (1999, p.27) é usado para definir espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra, freqüentemente em relações extremamente assimétricas de dominação e subordinação. Aqui o conceito foi ressignificado para discutir as relações de dominação e subordinação entre agentes de mesma cultura.

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quisê e que sobrá nós se arreparte. E aquele que achá de deve vendê vende e a gente arremata, né? [...].53

52

O povoamento da vila é compreendido pelos relacionamentos afetivos entre primos, filhos de Celino e seus irmãos Inácio e Amélia. Poucos são os que migraram de outras localidades.

[...] é o seguinte, essas família que moram aqui, são tudo só uma família, só uma família. Olha, aquela ali é minha irmã, aquele que mora lá é meu irmão. Agora, são casado as vez primo com prima, aí eles ficam aqui no mesmo lugar, sabe? [...] Aquela menina que mora aí, que tem aquela baiúcazinha, é minha filha, já o rapaz é filho do Inácio [...] primos legítimo. Essa aqui que mora aí, a Melânia, é mulher do Raimundinho, ela é minha filha, a Melânia e o Raimundinho é filho da Amélia, é! Obelha é o meu filho, que mora lá no Pirarara, a Bete é filha da Amélia, pois é [...] É só uma família, aí então a família foi crescendo, foro casando primo com primo, as vez arguns não são primo. Aquele outro que mora lá adiante da casa do Inácio é casado com a prima dele, mas é lá de outra família, lá no Urucuzal, a Céle, mulher do Irã [...] aí a nossa família cresceu [...]54

453

Hoje o dirigente da comunidade é o Seu Celino. Ele é quem define o que pode e o que não pode acontecer na comunidade. A praia de Nazaré, por exemplo, não é uma praia pública: quem chega de fora e quer usufruir de suas belezas, precisa pedir o consentimento de Seu Celino. Excessos de todas as espécies, como bebedeiras, namoros, roupas indecentes, nada é permitido. O ambiente é familiar na definição de Seu Celino. A escola, apesar de pública, é administrada por ele, é ele quem tem as chaves da escola. Assim, qualquer outra atividade deve ser comunicada para que possa ser autorizada a realização. Conforme suas representações, essa autoridade foi instituída divinamente, 53 Entrevista com Celino. Depoimento citado.54 Idem.

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pois foi a própria Santa Maria quem delegou a ele esse poder, o que parece indicar, em suas representações, um caráter inquestionável de sua autoridade.

Foi o seguinte, eu tava com treze ano, com onze ano, esse caso o padre pediu pra eu guardar em segredo, né? Eu praticamente fiquei morto, uns quatro, cinco dia fiquei morto, aí, [...] eu tive uma visão comigo, que eu foi levado por duas mulhê que já eram falecida. Quando eu chego numa certa mediação, num campo, e umas árvre, encontremo... vinha, São Francisco, Anjo São Miguer e a Santa Maria! Vieram ao meu encontro. Aí ela mandú que eu vortasse, as mulhê queriu que eu seguisse, que eu num fusse, que ela ia precisar de mim aqui na terra ainda pra fazê arguma coisa. Aí eu disse, eu tava com onze ano, eu disse: Mas cumo? Que eu num sei lê, num sei escrevê? Daí ela disse: Você não precisa estudar, você não precisa estudar com ninguém! Você não precisa caderno, você não precisa nada! Quando chegá o tempo eu vô lhe chamar e vô mandar o professor! Precisa nada! Você vai arreceber o espírito, que se chama o espírito de fortaleza! Você vai ler sem precisar de ninguém lhe ensinar, lê, escrevê. Agora você nunca vai escrevê pra ninguém! Eu não escrevo pra ninguém, não. Eu só assino o meu nome, essas coisa. Leio o trabalho da comunidade, mas num escrevo, eu tenho secretária [...]55

54

[...] aí comecei sunhá com as coisa, começô a vim aquele professô, me dá aula, apresentava o que era pra fazê [...] eu já tava com trinta ano, eu já tinha família, né? Começo a mostrar pra mim [...] que já tava chegando o tempo de eu trabalhar numa comunidade [...] Que durante eu fosse vivo, que ninguém! Podia trabalha comigo, mas tomar a frente, não, ela num ia dexar. Todos os qui viesse, já teve uns cinco coordenação, mas nenhuma deu conta [...]5655

55 Entrevista com Celino. Depoimento citado.56 Idem.

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Neste sentido, Seu Celino usa suas representações como estratégia para marcar sua espiritual presença na direção da comunidade. O modo como concentra em suas mãos todas as decisões importantes acerca da comunidade católica e do espaço geográfico da Vila de Nazaré indica ser justificado pelo ensinamento divino. Mesmo sem perceber Seu Celino cria o mito fundador da comunidade católica de Nazaré.

Aqui trago o sentido de mito fundador de Glissant (2005) que se refere ao que ele chama de culturas atávicas (uma Gênese, uma filiação). O principal papel do mito fundador, segundo o autor (Idem, p. 74) “[...] é consagrar a presença de uma comunidade em um território, enraizando essa presença, esse presente a uma Gênese, a uma criação do mundo, através da filiação legítima”. Dessa forma, ele se sente autorizado a considerar-se absoluto na gerência da comunidade.

Não era objetivo, deste trabalho, saber como essas representações interferem ou influenciam as outras pessoas da comunidade, mas há um respeito de todos por Seu Celino, mesmo daqueles que não concordam com suas atitudes e desmandos. Imersa nessas questões, vejo Nazaré ir ficando para trás, já estamos bem próximos da entrada do Furo Pirarara. Depois de mais alguns minutos, Júnior vira a rabeta à esquerda e adentra o furo. Logo na entrada, ao lado direito, vemos uma pequena praia com algumas casas onde alguns se divertem em um jogo de bola na areia.

O sopro leve da maresia se dilui na calmaria do furo, vamos adentrando mais e mais, passamos pela casa de Rosinha e de lá já avisto, na enseada ao fundo, a casa de Socorro e sua família. Aparentemente nada mudou, vejo a casa de madeira sem pintura com porta e janela na fachada e um pequeno trapiche onde está ancorado o casco. O motor diminui a velocidade para encostar, Socorro aparece logo na janela e abre aquele sorriso. A rabeta encosta no trapiche e depois de tudo desembarcado vem o abraço acolhedor, de quem há muito não se via. Adentramos a casa, é hora de contar as novidades e matar

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saudades.

Caminhos percorridos

Percorrer caminhos desconhecidos é encarar imprevisibilidades que se abrem a nossa frente, pois não sabemos o que nos espera. Assim, comecei a trançar meus caminhos com os das mulheres da fibra no dinamismo, movência e complexidade de encontrar-se e sociabilizar-se com o outro. Nesse percurso, encontrei pistas e algumas pegadas que me levaram a possibilidades de chegada.

Mergulhar nas águas da memória para “ver, observar, visitar, trafegar, apalpar”, pensar, sentir, refletir sobre a paisagem geocultural de São Sebastião da Boa Vista. “Debater sobre suas presenças ausentes, captar os usos e sentidos” (SARRAF-PACHECO, 2015, p.1) e desfiar a arte da fibra. Caminhos necessários a uma cartografia de memórias da arte em fibra do jupati, cartografia sensível que trouxe aspectos invisibilizados.

No navegar por São Sebastião da Boa Vista emergiram os modos de viver, agir e fazer de mulheres da floresta. Que mesmo imersas nos furos e rios da Ilha de Chaves estão interconectadas com a paisagem praticada, com suas memórias contando vida e arte em bricolagens. Assim, esses lugares de memória marcam identidades ao desvelar o lugar e as relações que estabelecem com ele.

Essa paisagem impõe algumas restrições refletidas diretamente no fazer artístico das mulheres da fibra e na sua comercialização. Apesar dos caminhos serem fluidos, as distâncias e a falta de transporte público dificultam o escoamento da produção, pois a maioria não tem recursos disponíveis para o investimento em transporte próprio. Em muitas narrativas, trazidas pelas mulheres de fibra durante a pesquisa, ouvi queixas quanto à queda da comercialização das obras em fibra, as mais antigas contam que no passado encostavam navios nos portos de Boa Vista para comprar sua arte. Os

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compradores vinham atrás do produto, hoje isso não acontece mais, como deixa ver Dona Marcelina:

Meu pai vendia a bordo desses navio que passa da Enasa. Ele levava caxas e caxas, cheia de chapéu, garrafa e vendia, quantidade [...] Porque a gente não vendia assim, era só em navio [...] O navio encostava lá no Cocal, aí ele ia vendê. Porque ele ia naqueles navio, chegava lá cum chapéu, aí todo mundo queria, ele vendia assim, um pro lado, otro pra outro. Tinha gente que encomendavo cinco dózia (dúzia), quatro dózia. Assim era, e aí nós tecia cada um tipo que eles queriam, ente vazia.57

56

As dificuldades para a comercialização e os baixos valores praticados nas vendas das obras em fibra contribuem para que muitas mulheres abandonem a fibra e busquem outras alternativas de vivência, como a artesania em tala de jupati, que requer menos esforço e habilidade. Mesmo o prazer pela tessitura e a relação afetiva constituída pela arte, expressada nas narrativas das mulheres, não é suficiente para manter o fazer e dessa forma essas relações são sufocadas pela necessidade do sustento.

O que poderia vir a ser um meio de vida, de realização pessoal, de reconhecimento e reafirmação de um modo de vida, é relegado ao sonho, ao desejo, à paixão. A falta de investimento do poder público na melhoria das condições de vivência dessas populações espalhadas pelos Marajós retira dessas mulheres a possibilidade de viver dessa arte e não apenas sobreviver.

Paisagem cultural, processo criativo, fazer e cotidianidade estão “intertecidos” e interferem diretamente no fazer artístico dessas mulheres. Não há como delimitar onde começa e termina cada um desses processos. Os Enfeites e Caminhos são a representação viva dessa inter-relação. Bater o açaí, iscar o matapi, olhar a composição das folhas do jupatizeiro para identificar 57 Entrevista com Dona Marcelina, realizada em sua residência, em 01 de setembro de 2012.

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se a fibra presta, esperar a escura para retirar a vara da mata, beneficiar a fibra, escolher as cores e tingi-la, planejar a composição, tecer, conversar, encontrar-se, desvelar-se, desnudar-se, relacionar-se, são tantos e outros alinhavos que definem a arte em fibra do jupati, que estão tão entretecidas em uma rede de relações culturalestéticosocial (usada aqui sem os hífens para marcar essa interconexão) que não há como entendê-la por fora, mas apenas por dentro, por entre essa teia relacional de cosmologias, paisagens praticadas e ecossistemas estéticos. Mergulhar nessas águas foi fundamental para a análise, interpretação e significação dessa arte.

Nessa viagem percorri alguns caminhos, durante o percurso fui tomada por maresias e calmarias. Meu percurso não chega ao fim aqui, faço apenas uma parada para que outros embarquem.

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BICITÁXI EM CAMINHOS DA MEMÓRIA:

Mapas interculturais de criação, identidades e sociabilidades

Vanessa Cristina Ferreira Simões (CESUPA)Agenor Sarraf Pacheco (PPHIST/PPGA/UFPA)

Ponto de partida

“Mas tu já falastes com o Sarito?”

(Pergunta feita por vários entrevistados, entre eles Pedro Júnior.)

Desde a primeira vez em que ouvimos falar de bicitáxi e de Afuá5857, o

nome de Sarito5958 emergiu com força em meio às narrativas desses nomes e

suas histórias. A ele é atribuída a autoria do meio de transporte nascido no município, o bicitáxi: transporte de pedal, feito a partir da união de duas bicicletas, assumindo o formato de um carro e que acomoda várias pessoas. Dos discursos midiáticos com os quais travamos contato, às conversas que tivemos com diversos moradores locais, é Sarito para todo lado. Confessamos que isso nos deixou curiosos e ansiosos por nosso encontro.

Entretanto, mesmos nos primeiros contatos com Afuá, ainda mediados pela internet, por matérias jornalísticas e vídeos de programas da Rede Globo60

59, nossa aposta sempre foi de uma autoria compartilhada. Suspeita

58 Afuá é um município localizado ao norte do arquipélago de Marajó, pertence ao Estado do Pará, faz fronteira com a capital do Estado do Amapá pelo Canal do Norte. A cidade foi construída em terreno de várzea, estando exposta às variações da maré dos rios que a cercam. Por isso, suas vias e casas são erguidas sobre palafitas, o que lhe coloca diante de algumas limitações, a exemplo dos meios de transporte. Hoje em Afuá circulam apenas veículos de pedal, como as bicicletas, principal meio de locomoção dos moradores, e triciclos e quadriciclos (bicitáxi), ambos criados na localidade.59 O nome de batismo de Seu Sarito, pouco conhecido na cidade,é Raimundo Gomes.60 Afuá já recebeu a cobertura de programas da Rede Globo, como o Faustão, Mais Você e Jornal Hoje, além de equipes de reportagem da revista quatro rodas e G1. Ganha destaque nestes programas o inventivo bicitáxi.

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confirmada nas passagens pela cidade. O transporte que é marca registrada do município não foi criado por um indivíduo apenas. Ele é uma criação coletiva, pois seu processo de conformação não se encerrou na invenção do modelo desenvolvido por Sarito, persistindo pelas mãos de vários homens e mulheres que o recriam todos os dias. Quando não se propõem a um modelo totalmente novo, o modificam, o customizam. Como dimensão constituinte da vida marajoara, a máquina de criação do bicitáxi afuaense não pára.

Depois de conhecer e conversar com alguns moradores de Afuá, o que constatamos são criadores disfarçados de soldadores, conselheiros tutelares, radialistas, funcionários públicos, professores, pintores de placas. São artistas do cotidiano. Ou seriam designers populares? Provavelmente, nem um, nem outro, mas uma categoria nova que a Academia ainda não consegue conceituar, e que nem é nossa pretensão aqui definir. Autodidatas e experimentais, para alguns a internet foi a escola da técnica, já para outros foi a tentativa e erro, foi a necessidade, foi a vida. Nas falas surgem identidades de artistas e, quando não, surgem “invenção”, “inventor”, “criatividade”, “ideia” e “idear”.61

60

Fig. 1: Amostra da variedade de bicitáxis encontrados na cidade (modelo da Rede Celpa,

“Jipe”, “Penélope charmosa”, “Bicilância”, modelo da Assembleia de Deus e da Paróquia Nossa

Senhora da Conceição).Fonte: Aislan de Paula Ferreira da Silva, 2013.61 Verbo criado a partir do substantivo ideia com significado próximo a pensar, criar. Foi mencionado em algumas entrevistas, como a concedida por Valdison em 6 de julho de 2013, no município de Afuá.

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Considerando esse processo de criação contínua, partilhada e também descentralizada, sem uma ordem estabelecida ou roteiro de lugares exclusivos de produção de bicitáxis, que nos propomos a recompor, a partir da interação, conversas informais, observações e entrevistas com interlocutores-criadores, as memórias das invenções do bicitáxi. A intenção é discutirmos cosmologias que se revelam nas memórias desse especifico objeto de arte, design e cultura na perspectiva de uma ecologia de saberes, conforme preconiza Boaventura de Souza Santos (2010), para romper com fronteiras e hierarquias estabelecidas pelo pensamento moderno o qual silenciou determinados saberes fundamentais a uma compreensão mais complexa e inclusiva da capacidade de criar de homens e mulheres de distintas camadas e territórios socioculturais.

A partir das memórias de diversos afuaenses, procuramos apreender os processos de criação do bicitáxi como experiência estética e intercultural (GARCÍA-CANCLINI, 2009),problematizando posições de identificações (HALL, 2006)que criadores assumem quando rememoram os diferentes arranjos no ato de reproduzir formas já consolidadas ou inventar novos modelos de bicitáxis, apreendidos como obra de arte e produtos de um design vernacular capaz de resistir, desconstruir e dialogar com modelos canônicos.

Para dar conta desses objetivos, buscamos uma postura de pesquisa em sintonia com a especificidade dos saberes e fazeres locais, a qual encontra amparo nas orientações teórico-metodológicas traçadas por Sarraf-Pacheco (2015) acerca de uma cartografia de memórias, que leva em conta a construção de mapas de sentidos, abertos e descontínuos, em que as fronteiras são apagadas e as múltiplas vozes silenciadas emergem pelos caminhos de reminiscências. Segundo Sarraf-Pacheco (2015, p. 4), trata-se de um modelo de foco interdisciplinar: “[...] cartografia de memórias como aporte teórico e ao mesmo tempo metodológico de pesquisas preocupadas em captar processos, discursos, experiências e sentidos de vivências interculturais arquitetadas nos imbricamentos rural & urbano, tradição & modernidade, oralidade & escrita,

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passado & presente”.

A proposta deste pesquisador amazônico-marajoara parte principalmente das proposições de Martín-Barbero (2004), sobre cartografia, de Édouard Glissant (2005), a respeito do pensamento arquipélago, e de Boaventura de Souza Santos (2010), quanto à crítica ao pensamento abissal.Em todos os autores encontra-se o convite ao deslocamento do olhar para a construção de saberes em diálogo, a partir de vozes subalternizadas, que surgem pelas margens e cujas fronteiras são moventes. Sobre a crítica ao entendimento de mapas como reduções e simplificações da realidade que impedem à descoberta de novos itinerários, Martín-Barbero defende sua posição com uma questão (1994, p. 12) “Mas quem disse que a cartografia só pode representar fronteiras e não construir imagens das relações e dos entrelaçamentos, dos caminhos em fuga e dos labirintos?”.

É nesse sentido que a cartografia contribui com a realização deste estudo de memórias de um saber-fazer amazônico ainda pouco conhecido pelo mundo acadêmico. As reminiscências recolhidas foram narradas por pessoas comuns, em suas casas, lugares de trabalho ou lazer, e estão atravessadas por minhas próprias memórias no processo de pesquisa e descoberta da cidade.Em determinados momentos elas se entrelaçam, se reforçam, adicionam detalhes à releitura da história da produção de um dado bicitáxi; em outros, se contradizem, geram conflitos. Isto demonstra a riqueza de vivências possíveis de uma mesma experiência social e o caráter construtivo da memória.

Para entender esta dimensão da memória, utilizamos aqui a apreensão de Bosi (1999) que, partindo de Halbwachs (1925; 1956), entende-a como um processo de construção contínua, e não como algo dado, como produto acabado e disponível para quem se propõe a recuperá-lo. Desta forma, ela se reconstrói cada vez que é acionada,sem levar em conta apenas o passado, mas principalmente o contexto vivido no presente e também as pretensões futuras. Lembrar constitui, assim, um processo mediado por múltiplos interesses,

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intenções e representações sociais daquilo que o sujeito quer retomar do passado.

O caráter livre, espontâneo, quase onírico da memória é, segundo Halbwachs, excepcional. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual(BOSI, 1999, p. 55).

Assim, na concepção de Bosi (1999), não é possível resgatar acontecimentos passados, uma vez que estes se perdem no momento em que passam, de modo que a recomposição62

61 destas memórias torna-se o único meio de esboçar sempre de forma parcial este passado, uma vez que estas terão sempre a marca do sujeito o qual se lembra do lugar que ocupa na trama social e de sua condição psicocultural atual.Com isso, a autora desconstrói a ilusão de uma História legítima, verdadeira e imparcial, uma vez que ela se alimenta de memórias – orais, escritas ou imagéticas – para retomar acontecimentos e estas não são livres de intenção.

A experiência da releitura é apenas um exemplo, entre muitos, da dificuldade, senão da impossibilidade, de reviver o passado tal e qual; impossibilidade que todo sujeito que lembra tem em comum com o historiador. [...] Posto o limite fatal que o tempo impõe ao historiador, não lhe resta senão reconstruir, no que lhe for possível, a fisionomia dos acontecimentos. Nesse esforço exerce um papel condicionante todo o conjunto de noções presentes

62 A noção de recomposição de memórias está baseada em Alistair Thomson (1997, p. 56), que defende a produção de reminiscências como composição de fragmentos de lembranças, de modo a “dar sentido a nossa vida passada e presente”.

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que, involuntariamente, nos obriga a avaliar (logo, a alterar) o conteúdo das memórias (BOSI, 1999, p.59).

Cientes destes limites próprios do tempo, do lugar e das condições psicoculturais dos narradores que recompõem experiências passadas, não pretendemos caminhar em direção a uma “História oficial da invenção do bicitáxi”, mas sim, a uma cartografia aberta e movente de memórias de processos diversos de suas criações. A pluralidade de versões, a pessoalidade das experiências relatadas, os silêncios e táticas adotadas em cada narração foram aspectos os quais procuramos observar na feitura deste exercício de pesquisa, pois eles tornaram-se chave para começar a entender os caminhos da memória que desvelam o bicitáxi e aqueles outros itinerários a que ele nos aponta e com os quais estão inter-relacionados.

Nesse sentido, é importante refletirmos ainda acerca da relação entre memória coletiva e memória individual. Michael Pollak (1989, p. 4) aborda as contradições presentes nas construções de “Memórias oficiais”, analisadas pelo autor na esteira das memórias nacionais por seu “caráter destruidor, uniformizador e opressor”. Pollak argumenta que elas servem como dispositivos de reforço de identidades coletivas e de busca pela coesão dos grupos sociais.

Utilizando-se de “quadros de referência”, com os quais baliza memórias individuais dentro de pontos comuns fornecidos por um discurso totalizador, Pollak (1989, p. 9) fala da emergência de uma “memória enquadrada”no lugar de memória coletiva, uma vez que a primeira revela mais claramente seu processo de construção. No entanto, o autor ressalva que o enquadramento se dá dentro dos limites da justificação e da coerência de discursos, não sendo imune à emergência de “memórias subterrâneas”.

Uma das alternativas para subverter a lógica de poder das “memórias oficiais” está na capacidade do pesquisador de analisar “processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e de formalização das memórias” (POLLAK, 1989, p. 04), de modo a problematizar suas intenções e

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mecanismos. Mas o autor tambémpropõe o exercício de conferir visibilidade às “memórias subterrâneas” das minorias excluídas do discurso oficial, como forma de resistência, colocando-as em posição de questionar os limites do enquadramento.

Se a análise do trabalho de enquadramento de seus agentes e seus traços materiais é uma chave para estudar, de cima para baixo, como as memórias coletivas são construídas, desconstruídas e reconstruídas, o procedimento inverso, aquele que, com instrumentos da história oral, parte das memórias individuais, faz aparecerem os limites desse trabalho de enquadramento e, ao mesmo tempo, revela um trabalho psicológico do indivíduo que tende a controlar as feridas, as tensões e contradições entre a imagem oficial do passado e suas lembranças pessoais. (POLLAK, 1989, p. 12)

Conforme aponta Pollak (1989), o papel desempenhado pelos pesquisadores orientados teórica e metodologicamente pela História Oral no trato das memórias dos subalternos vêm contribuindo de modo decisivo no questionamento dos discursos oficiais da História. E nesse curso, seus apontamentos somam-se aqui de modo a dar contorno aos delineamentos da cartografia de memórias que me proponho a esquadrinhar, oferecendo ferramental adequado para a preparação e realização das entrevistas, reflexões acercado relacionamento com os interlocutores e bases para o tratamento do material coletado.Entre os autores desse campo, destacamos os trabalhos de Alistair Thomson (1997) e Alessandro Portelli (1997a, 1997b), que se propõem a pensar na memória não apenas como “depositário passivo de fatos, mas também um processo ativo de criação de significações” (PORTELLI, 1997a, p.33).

Segundo Portelli (1997a), o que faz a história oral diferente de outras metodologias de pesquisa é o potencial de se trabalhar com narrativas orais.

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Estas são capazes de revelar não apenas novas facetas de acontecimentos inscritos na história de uma localidade, mas principalmente os significados e afetos atribuídos a eles na experiência individual dos sujeitos envolvidos. Dimensões psicológicas como dores e emoções que surgem não apenas no conteúdo das narrativas, mas também na entonação, ritmo, silêncios e tom de voz do narrador, aspectos difícil de captar na escrita, são cheios de sentido a serem explorados pelo entrevistador.

Entrevistas sempre revelam eventos desconhecidos ou aspectos desconhecidos de eventos conhecidos: elas sempre lançam nova luz sobre áreas inexploradas da vida diária de classes não hegemônicas. [...] Fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa o que fez. Fontes orais podem não adicionar muito ao que sabemos, por exemplo, o custo material de uma greve para os trabalhadores envolvidos; mas contam-nos bastante sobre seus custos psicológicos (THOMSON, 1997a, p. 31).

Thomson (1997a; 1997b), também nos lembra da importância em pensar a relação entre pesquisador e narrador na condução das entrevistas, construindo-a na direção de uma igualdade entre as partes, que embora inalcançável, haja vista as diferenças dos lugares de fala dos envolvidos, deve-se sempre buscar a fim de minimizar as distorções calcadas no que o narrador pensa que o entrevistador quer ouvir e aquilo que se sente a vontade para abordar. Deste modo, é preciso buscar pontos em comuns, sejam eles interesses, experiências ou posições que os aproximem e criem laços de confiança.

Na apreensão de Portelli (1997b, p. 9) “uma entrevista é uma troca entre dois sujeitos: literalmente uma visão mútua. Uma parte não pode realmente ver a outra a menos que a outra possa vê-lo ou vê-la na troca.” Com isso, ele enfatiza a fluidez dos papéis nesta relação pesquisador e entrevistado, uma vez que não só o entrevistador observa, mas é também avaliado pelo narrador,

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que o estuda a fim de decidir aquilo que pode relatar ou o que é esperado dele. Daí a importância em entender este estudo das memórias que cercam o bicitáxi como lugar de diálogo, em que a pesquisadora e os entrevistados são agentes na construção do texto acadêmico.

Alistair Thompson (1997) ainda contribui com o deslocamento da atenção dada ao conteúdo das memórias para os processos de afloramento das reminiscências, bem como esclarecimento de que também as “distorções” apreendidas das entrevistas podem tornar-se materiais de análise se entendidas como recursos do narrador. Caso percebido, por exemplo, na narração63

62

acerca de uma lei que proibiria o tráfego de veículos motorizados na cidade, mas que na verdade é da ordem do direito consuetudinário. O tratamento de lei escrita, no entanto, confere maior legitimidade ao discurso e, por isso, é constantemente retomado pelos moradores a fim de ressaltar a seriedade desta proibição. Em outras palavras, os moradores operam com o dispositivo da lei escrita criado pela sociedade moderna para reafirmar uma tradição.

Outro ponto abordado pelo autor citado no parágrafo anterior (1997) ainda leva a pensar em Afuá: os entrelaçamentos entre memórias coletivas ou discursos oficiais repercutidos pela mídia a respeito da invenção do bicitáxi com as memórias individuais narradas nas entrevistas realizadas. Não foram poucas vezes em que percebemos paralelos entre recortes da história contada nas matérias jornalísticas e falas dos entrevistados, negociações de discursos que merecem uma análise mais prolongada.

São tantas as inquietações provocadas por esta cidade marajoara que se revela aos poucos ao nosso olhar, em seu próprio ritmo,fazendo-nos sentir uma colecionadora de figurinhas, na ansiedade de completar o álbum, mesmo sabendo que ele jamais estará acabado, num ciclo infinito sem começo

63“[...] E o Código de Posturas do município, ele tem um regimento que ele, um artigo que, não pode ter veículos motorizados né, devidas as ruas não são propícia pra isso, né?” Este fragmento foi retirado da entrevista concedida por Raimundo Gomes, o popular Sarito, em 21 de abril de 2013, no município de Afuá, pertencente ao arquipélago do Marajó, no Estado do Pará.

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nem fim. Assim como no curso da pesquisa, preferimos apresentar Afuá no caminhar desta escrita, para que o leitor aprecie sua descoberta como a vivemos cotidianamente.

Fig. 2: Paisagem encontrada em Afuá: movimentação noturna na praça Albertino Braraúna e

estacionamento de bicicletas na orla.

Fonte: Aislan de Paula Ferreira da Silva, 2013.

É pelas demandas que surgem nesse processo de encontro com a cidade que mobilizamos tantos nomes. São eles autores da História Oral, estudiosos da memória, dos Estudos Culturais e do pensamento Pós-colonial. Produções que nos ajudam a costurar e desfazer as tramas de fios da memória desta cartografia que, contrariando os modelos de mapas tradicionais, positivistas, não se encerra, nem aponta direções, mas se mantém aberta a cada nova via que surge de maneira inesperada e desloca o caminho antes formulado.

Nas vias das lembranças da criação

A subjetividade, o trabalho através do qual as pessoas constroem e atribuem o significado à própria experiência e à própria identidade, constitui por si mesmo o argumento, o fim mesmo do discurso. Excluir ou exorcizar a subjetividade como se fosse somente uma fastidiosa

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interferência na objetividade factual do testemunho quer dizer, em última instância, torcer o significado próprio dos fatos narrados. (PORTELLI, 1996, p. 60)

Quando uma coisa dá prazer, quando se torna uma parte de nossas vidas, e quando a maneira como interagimos com ela define nosso lugar na sociedade e no mundo, então temos amor. (NORMAN, 2008, p. 257)

Encontramos dona Hilda em um final de tarde na varanda de sua casa. Apresentamo-nos com timidez e lhe explicamos que não pudemos deixar de notar o bicitáxi em frente a sua residência, onde se lê “Vovó Hilda”. Ela ri e nos acolhe, convidando-nos para sentar e prosear. Nesse instante percebemos estar diante de uma grande narradora. Seus 78 anos lhe outorgam uma autoridade de memorialista de sua comunidade e ela o faz com deleite, mesmo com o peso da idade, que por vezes não dá conta da quantidade de coisas que ela tenta me contar (BOSI, 1999). Sobre o bicitáxi, ela lembra como aconteceu sua aquisição. Ao longo da narrativa, mais do que fatos, ela narra seus desejos, seu cotidiano, revela sua personalidade, sua fé:

Ah mana, esse bicitáxi, sabe, eu tinha tanta vontade. Tudo que eu peço pro meu Deus, ele parece que ele me uve mesmo. Aí eu tenho um subrinho. [pausa] É um neto. O José. Aí eu tava deitada numa rede, nutra cozinha, me embalando, sabe... Aí o José chegou aqui, disse “bença vó”, eu disse “Deus te abençoe meu filho”. Disse “vó, a senhora quer um bicitáxi”, eu disse “quero, meu filho, cadê?”. Ele disse “não, porque ali um amigo seu tem um que ele disse que ele vende pra senhora”. Aí eu disse “ô meu Deus, que benção!” Aí eu alevantei disse “Vai dizer pra ele vir aqui comigo, o Rui”. O Rui que paga ali, luz e água, sabe? Aí ele veio aqui comigo. Chegou, preguntei. “Não dona Hilda, pra senhora eu vendo na hora”. Eu disse “tá bom, quanto é?” Ele disse “duzentos e cinquenta”. Ele estava nu assim, sabe?63

64 Fragmento da entrevista concedida por Hilda Batista de Sousa, em 07 de julho de 2013, no

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Fig. 3: Dona Hilda e detalhes do seu bicitáxi.

Fonte: Aislan de Paula Ferreira da Silva, 2013.

Nesse trecho dona Hilda entrelaça ao evento em questão as diversas práticas do seu cotidiano, como o embalar na rede e a benção concedida aos netos (sinal de respeito muito frequente entre os mais idosos, em especial no meio rural), permitindo-nos a partir de meus próprios códigos remontar acena sugerida por ela. Também surgem as formas de sociabilidade, como o modo de reconheceras pessoas da cidade (“O Rui que paga ali, luz e água, sabe?”) e o prestígio social de dona Hilda, para quem Rui vende o bicitáxi na hora. Além disso, marcadores de uma identidade cristã, como nos trechos “Tudo que eu peço pro meu Deus, parece que ele me uve mesmo” e “ô meu Deus, que benção!”, apresentam seu bicitáxi como uma graça concedida pela fé.Convicção esta reforçada no uso atribuído ao veículo “para ir à Igreja”.

Esses fragmentos de uma vida social e de identidades assumidas surgidos nas reminiscências, como trata Portelli (1997a, 1997b), fazem parte do processo de significação da experiência que se dá nas vias da memória. Sobre isso, Pollak (1989, p. 13) também coloca que as narrações que atravessam

município de Afuá, pertencente ao arquipélago do Marajó, no Estado do Pará.

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histórias de vida colocam o indivíduo em posição de “reconstrução de si mesmo”, na qual “o indivíduo tende a definir seu lugar social e suas relações com os outros”.

Depois de comprado, o bicitáxi de dona Hilda ainda passou por diversas adaptações, uma vez que foi adquirido “pelado”, ou seja, sem cobertura, nem pintura ou som, e com poucos acessórios. Aos cuidados de seu neto, a quem conhecemos pela narração dela como alguém preocupado com seu bem-estar, o veículo cai nas graças de dona Hilda.

[...] Aí meu neto veio e disse “Ah vó, seu bicitáxi não vai ficar assim não. Deus o livre! Se vai andar no soli!” Nesse tempo eu ainda era boa da saúde das pernas né, saía, passeava aí. E aí “Vó eu vou levar e vu fazer pra senhora, bem dizer, né?” Eu disse “Então leva!” Aí ele agarrou, pegou, levou. Aí quando ele veio já foi vermelho e preto. Veio tão bunitinho... [risos] Primeira cor dele, foi. Aí eu paguei ele, eu já fiquei com meu bicitáxi. E agora quando troca é ele que faz o serviço. Pois é mana, foi uma benção isso! Já me ofereceram três mil e quinhentos, eu disse que eu num vendo, eu preciso né?65

64

A recordação da cor da primeira pintura, mesmo que não escolhida por ela, mostra como o trabalho da memória privilegia impressões de ordem sensorial. Como afirma Pollak (1989): “Nas lembranças mais próximas, aquelas de que guardamos recordações pessoais, os pontos de referência geralmente apresentados nas discussões são, como mostrou Dominique Veillon, de ordem sensorial: o barulho, os cheiros, as cores”. O sorriso de dona Hilda, ao lembrar-se dessas características do bicitáxi, acompanhado por “Veio tão bunitinho...”, apresenta um misto de satisfação pela conquista de seu veículo com saudosismo. Ela, que não sabe pedalar, conquistou o direito de fazer passeios longos acompanhada da família a partir desse dia. E isso parece ter significado muito para esta vovó, tanto que ela já recusou diversas propostas 65 Idem

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de venda do bicitáxi.

Sua maneira de narrar, muito pessoal, cheia de detalhes e emoção expressam um estilo narrativo próprio, que conforme apontado por Bosi (1999), partindo de Bartlett, diz respeito ao modo da recordação, ou seja, aos aspectos da “personalidade, como o temperamento e o caráter do sujeito que lembra”.Além das escolhas das palavras, dos diminutivos empregados, das repetições, são os olhares, os ritmos da fala, os sorrisos e o bom humor de dona Hilda informações importantes que nos comunicam um pouco sobre como ela vive e reflete acerca de suas experiências. Nesse sentido, Bosi (1999, p.91) trata ainda do modo de contar histórias dos velhos: “Seu talento de narrar lhe vem da experiência; sua lição, ele extraiu da própria dor; sua dignidade é a de contá-la até o fim, sem medo”.

Quando perguntamos sobre a pintura do bicitáxi com a inscrição “Vovó Hilda”, encomendada por seus netos, dona Hilda me conta com entusiasmo e carinho: “Foi o meu neto aideia de colocar a inscrição Vovó Hilda na pintura]! Eles gostam muito de mim, sabe? O Josi, da Elza. Eles gostam muito de mim. Aí já quando chegou aqui, já tudo direitinho, aí eu olhei ‘Vovó Hilda’. Eu disse ‘Mas ahhhpequenu!’ [risos] ”66

65.

Na fala da depoente, o bicitáxi se revela como lugar onde se depositam afetos, sendo significado por sua família como meio para expressão de sentimentos e do reconhecimento do papel social da matriarca. E o orgulho expresso por ela, quando enfatiza como é querida pelos netos, reforça a função simbólica assumida por ele nesta situação. Mais do que veículo, ele adquire importância pelas memórias que evoca, que no caso de dona Hilda se mostram lembranças felizes, como a recordação emocionada de uma homenagem dos netos a sua avó ou quando ela me conta sobre quão divertido foi o tempo que passou com Carol Nakamura, repórter do Faustão que lhe entrevistou e com quem estabeleceu laços afetivos.

66 Idem

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Nesse sentido, Donald Norman (2008, p. 66), autor das ciências cognitivas que lança seu olhar sobre o design, chama-nos a atenção para a “história da interação, as associações que as pessoas têm com os objetos e as lembranças que eles evocam”, ou seja, a significação atribuída aos objetos, construída no diálogo entre marcadores de uma dada cultura e a experiência pessoal dos sujeitos.

Tendo a nossa frente uma memória viva de Afuá, cidade que quase não dispõe de registros escritos sobre sua origem e formação67

66, não resistimos e perguntamos a dona Hilda sobre o suas lembranças desses tempos. Nascida e criada em um sítio, ela passou a morar na sede do município depois de casada e, com isso, acompanhou o início de sua construção.Com ar de saudade, ela me conta sobre o cotidiano daquela época, tempo em que a cidade era tranquila e sem violência, fato que, segundo ela, aumentou principalmente com a formação do bairro do Capim Marinho, onde a infraestrutura é precária e a população sofre com a carência dos serviços públicos.

Quando nós chegamu aqui pra esta cidade, olha eu te digo mesmo, se tivesse vinte e poucas casas era muito. De crente tinha duze pessoas, e agora tem milhares e milhares de crente, né? E muita gente. Isso aqui era só... era só um serradar.Meu marido caçava por aqui, matava muito preguiça, paca, tatu, né? Tudo tinha, né? E agora a gente olha, tá dessa situação né? Aí emendou Afuá com o Capim Marinho. Cresceu muito, mana. Cresceu muito e tombém, né, mudou muito. A gente tem até medo de ficar assim, né, de ficar assim, né? Muita, muita violência... O pessoar né, eles tão numa violência horrível. De primeiro não, de primeiro a gente podia deitar, dormir que num tava nem como aquele medu, né? Mas agora não... agora eles invade mesmo. É obrigada a pessoa tá atentu, né?68

67

67 A biblioteca municipal e prefeitura carecem de dados e documentosreferenciáveis que tratem dessas memórias oficiais da origem do município.68 Fragmento da entrevista concedida por Hilda Batista de Sousa, em 07 de julho de 2013, no município de Afuá, pertencente ao arquipélago do Marajó, no Estado do Pará.

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A crítica social de dona Hilda, revela sua preferência por uma Afuá antiga, menor, mais pacata. O crescimento do município, com a formação do Capim Marinho, só é visto como prejuízo a qualidade de vida: aumento da criminalidade, extinção das caças e recursos naturais, aumento das pontes de palafitas e da quantidade de bicicletas, que expõem pessoas idosas como ela ao risco de acidentes.

Ahhh, menina... bicicleta não tem conta, bicicleta, né? Só que tem hora, né? Que quando eles batu os utro, né? Tem caído até gente, porque disconforme bicicleta, né? E fica tudo... A gente não pode nem sair na rua, né? Uma pessuaidusa, né? De repente sofre um acidente, né? Eles num tão nem aí, né?69

68

Quanto a isso, Bosi (1999)discute como a memória dos velhos trata fatos do passado por ideais do presente, o que pode nos sugerir porque o passado de dona Hilda parece aos seus olhos tão melhor do que a atual realidade de Afuá. As críticas à situação de hoje a impedem de notar as dificuldades de outrora e a evidenciar apenas os aspectos positivos.

Um processo importante desse processo de reconstrução é posto em relevo por Halbwachs quando nos adverte do processo de ‘desfiguração’ que o passado sofre ao ser remanejado pelas ideias e pelos ideais presentes do velho. A ‘pressão dos preconceitos’ e as ‘preferências da sociedade dos velhos’ podem modelar seu passado e, na verdade, recompor sua biografia individual ou grupal seguindo padrões e valores que, na linguagem corrente de hoje são chamados ‘ideológicos’.

Nesse relato, ainda, voltam a aparecer marcas de sua religiosidade, e descobrimos a dona Hilda evangélica. A maneira como ela compõe suas reminiscências não é por acaso. Ela não mede o crescimento da cidade apenas pelo aumento populacional, mas especificamente pelo maior número de 69 Idem

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“crentes”. Como essa informação se repete em outros momentos, sou levada a crer que ela realmente quer marcar sua posição de cristã evangélica. Identidade esta que não impede que dona Hilda acredite nos poderes do “boto”.

Agora cidade de Afuá... Sabe como é que cumeçou essa cidade?O meu pai ele vendia muito mantimento, aí quando foi um dia era a casa do seu capitão Eugênio, coroner Guedes, essa gente mais antiga né? E aí eles agarraram, né? Tavam ruçando lá embaixo né? Pra fazer esta cidade, né? De lá, dali daquela rua pra lá. E aí o meu pai tava lá vendendo mantimento. Aí ele subiu lá com o pessoal e os pessoal chamaram ele pra comprar mantimento, e ele fui né? Aí chego lá estavam lá cunversando, batendo papu, né? Que ele gustava de cunversar muito... E aí, eles preguntarum: Como é que vai ser o nome desta cidade? Aí o buto passou e disse AFUÁ. [risos] Pois não fui mana? Afuá verdadeiro. [...] Foi o buto que assuprou, né? Que ele assopra, né?70

69

Sabe-se que as religiões cristãs não veem com bons olhos essas explicações do mundo por mitos e seres mágicos. Apesar disso, dona Hilda conta com muita naturalidade essa, que para ela, é a origem do nome do município, do qual só o que se sabe oficialmente é que não é uma palavra nem de procedência portuguesa, nem indígena71

70. Esse fato, que poderia sugerir um conflito de identidade,é explicado por Hall (2006), que desmonta a ilusão de um “eu coerente” e trata da questão da identidade cultural como uma “celebração móvel”, em constante formação e negociação com diferentes sistemas culturais. Assim, para ele a contradição é parte do jogo das identidades.

Além disso, a presença do “boto” na fala de dona Hilda reflete a permanência de códigos do universo simbólico ribeirinho, que apesar de em constante negociação com signos da ordem do urbano e da própria Indústria

70 Idem71 Informação retirada do Plano Diretor Participativo do município de Afuá - Relatório da leitura da realidade do município – Leitura Compartilhada, de Julho de 2006, disponível da Prefeitura Municipal de Afuá.

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Cultural, ainda se faz notar nas narrativas das pessoas da cidade, em especial nas reminiscências dos mais velhos. Constituída por diversas ilhas, onde vivem famílias organizadas em pequenas vilas e povoados, bem como de uma sede municipal em área de várzea, com casas e vias soerguidas sobre palafitas, Afuá hoje conta com energia 24h, internet e serviço de telefonia celular. Inovações tecnológicas que modificaram o cotidiano dos afuaenses, mas ao seu próprio modo, segundo seus referenciais.

Fig.4: Matéria falando sobre a rápida adaptação dos moradores de Afuá a chegada do sinal de internet.

Fonte: Portal G1, do dia 12 de maio de 2011.

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Inscritas em relações de poder desiguais, essas negociações da esfera da cultura revelam processos de dominação, mas também de entrelaçamentos, possíveis por dinâmicas de resistência, nas quais o colonizado ressignifica os códigos do colonizador e faz dele algo novo, a partir de suas próprias cosmologias (HALL, 2009).Daí porque não faz sentido pensar nessas dinâmicas sobre a lógica de binarismos construídos no pensamento moderno como tradição x modernidade, global x local, cidade x floresta, conhecimento x saberes (SARRAF-PACHECO, 2015; SANTOS, 2010).

Nesse sentido, os bicitáxi também se mostram produtos desses imbricamentos. Da união de duas bicicletas, principal meio de transporte do município, surge um veículo de quatro rodas que, entre os moradores locais, ganha status de carro. Mas não é um, nem outro. Ainda é parte bicicleta, porque continua a seguir o tempo do pedal, da pedalada, tempo este fisiológico. Sua aparência, todavia, se refere à tecnologia do automóvel, símbolo da sociedade de consumo urbana, “cidade grande”, símbolo de velocidade, conforto, prestígio social. Do entrelaçamento dessas linguagens e sentidos, sob uma perspectiva intercultural72

71, resulta um veículo completamente original, que continua a se modificar e agregar novos usos, influências estéticas e significados.

Esse é o caso do bicitáxi conhecido como “Bat Ferrari”, de Doranildo Almeida dos Santos. Uma mistura inusitada de “batmóvel”, o carro do homem morcego “Batman”, com o modelo famoso da marca italiana de automóveis “Ferrari”. Encontramos com o professor da zona rural em sua residência e, de dentro do seu veículo, ele relembra o processo de montagem do carro:

Teve um inventor que inventou, né. Ele criou uns triciclos aqui, né? Aí foram modernizando, modernizando... Aí criaram alguns modelos aí. Aí eu criei o meu próprio modelo. Aí negócio de filme de batman, e tal, da Ferrari. Aí eu criei esse modelo aqui. Foi mais ou menos em 2004,

72 A compreensão sobre interculturalidade utilizada aqui foi elaborada por Néstor García Canclini (2009, p. 17): “Em contrapartida, a interculturalidade remete a confrontação e ao entrelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em relações e trocas.”.

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acho... que o Pelado, que foi feito lá. Aí fomos fazendo aos poucos, aos poucos. Aí surgiu a Bat Ferrari aqui [...]73

72

Em seu depoimento, Doranildo segue um percurso linear dos acontecimentos, começando pela criação do primeiro bicitáxi, em referência ao “inventor” Sarito, passando pelo período que ele chama de “modernização” dos veículos, quando eles começaram a ser personalizados, ganhando formas e acabamentos sofisticados e exclusivos, até a criação de seu próprio modelo. Por se tratar de um processo artesanal de fabricação de peças únicas, no qual são envolvidos oficinas de soldagem, oficinas de montagem de bicicleta, profissionais de estofado, além dos próprios donos do veículo, é frequente nas encomendas o desejo de diferenciação, o que desencadeou o processo de “modernização” apontado por Doranildo.

Nós fomos no caso, fazendo aos poucos, porque devido a mão de obra ser um pouco, cara, né? A gente foi fazendo aos poucos. Ele [Pelado] também dava as ideias lá. “Olhe, fica bacana se fizer isso aqui” Aí aos poucos foi surgindo as ideias lá até chegar no final. [...] Tem um sinhô que trabalha com sofá. Eu fiz o detalhe dos bancos, né? Na madeira. Aí o menino só encapou lá com estofado”7473

Fig. 5: Doranildo e detalhes da sua Bat Ferrari.

Fonte: Aislan de Paula Ferreira da Silva, 2013.73 Fragmento da entrevista concedida por Doranildo Almeida dos Santos, em 10 de julho de 2013, no município de Afuá, pertencente ao arquipélago do Marajó, no Estado do Pará.74 Idem.

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Nesse trecho, aparece a referência a participação de dois profissionais na criação do modelo de Doranildo. Entre eles Pelado, como é conhecido Luiz Wagner Primavera Alves, que é dono de uma oficina de soldagem e foi responsável pelos primeiros bicitáxis da cidade, na época em que apenas sua oficina e a de Leôncio Jr. trabalhavam nessa área. Pelado e seus funcionários são constantemente citados nas entrevistas por sua participação com ideais na criação dos veículos. Criação que se dá, muitas vezes, ao longo do próprio processo de fabricação e de forma colaborativa, com participação dos soldadores, família e amigos.

Na verdade, no começo, ela não tinha esses detalhes do banco [em forma de morcego], não tinha esses detalhes do lado aqui, pra baixo, assim... atrás aqui, não tinha isso aqui. Aí era só Ferrari, que eu chamava só de Ferrari ela. Era vermelha, sabe? Aí depois eu modifiquei ela. Aí já criei o banco diferente, essas chapas no lado, aqui atrás. Aí eu juntei, Bat Ferrari.75

74

Tem um colega meu aí... Esse aqui [Bat Ferrari] é feito de duas bicicletas, soldada uma na outra, aí vai aperfeiçoando. Aí tem um colega meu [Marinaldo] que ele faz a planta mesmo. Ele faz a maquete e faz a planta. [...] Ele que fez lá o Jipe lá. Aí tem outro menino que tem outro carro, o Derley, não sei se você já falou com ele. Aí ele fez esses dois. Aí ele fez a maquete, a planta, tudinho lá do carro lá. Aí deles é diferente, que é de tubo, é mais leve, é maior e tem amortecedor. Aí o meu tava ficando já pra traz. Aí eu tentei dá uma diferenciada nele.76

75

Conforme relata Doranildo, é comum os donos de bicitáxi fazerem melhorias e adaptações nos seus veículos ao longo dos anos, nem que seja renovando a pintura, o que mostra o cuidado das pessoas com seus modelos. Além disso, esse cuidado também está relacionado com a competição que

75 Idem.76 Idem.

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parece existir na cidade pelo melhor veículo. Nessa disputa entram aspectos como o preço final do veículo, o modelo mais diferente, a potência do som, os acessórios exclusivos, o acabamento da pintura com aerografia (que possibilita customizá-lo com grafismos), entre outros. Tudo para não ficar para trás, como diz Doranildo.

Todos querem imprimir no bicitáxi sua marca pessoal. Com isso, ele se torna mecanismo de afirmação de identidades, revelando gostos, influências, afinidades. Identificações que se mostram muito diversas, podendo vir de diferentes lugares do mundo, como as de Doranildo, que na primeira versão do seu modelo teve como referência a marca italiana Ferrari, a qual comercializa os automóveis esportivos de luxo mais desejados entre os fãs desse mercado. Por isso a escolha pela cor vermelha, além do velocímetro (puramente decorativo) e emblema da marca no painel. Visual este que consagrou na cidade a “Ferrari” do professor.

Porém, com o passar do tempo e o surgimento de outros bicitáxi ainda mais inovadores, como o de Elisomar, conhecido como o “Jipe” ou “Mitsubishi”, que é feito de tubo ao invés das duas bicicletas e possui até amortecedor, Doranildo resolveu inovar mais uma vez e trazer para Afuá o carro de um super-herói. O “batmóvel”, do herói dos quadrinhos e do cinema “Batman”, que fazia muito sucesso em seus filmes por ser capaz de realizar manobras impossíveis a outros automóveis e por ser símbolo de tecnologia avançada. Mas ao invés da total substituição da pintura e acabamento, ele optou por misturar as duas referências, reunindo aerofólio customizado como o do “batmóvel” do filme de 1989, pintura amarelada Ferrari, banco em forma de morcego e marca da Ferrari ao lado do emblema do “Batman” no painel, fazendo, com isso, surgir o imprevisível (GLISSANT, 2005), a “Bat Ferrari”.

O que acontece no caribe durante três séculos é, literalmente, o seguinte: um encontro de elementos culturais vindos de horizontes absolutamente diversos e que realmente se crioulizam, realmente se imbricam e se confundem

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um no outro para dar nascimento a algo absolutamente imprevisível, absolutamente novo – a realidade crioula. (GLISSANT, 2005, p. 17-18)

A imprevisibilidade de que fala Glissant (2005) para tratar da cultura crioula no Caribe, não é exclusiva dessa experiência, e em Afuá ela se materializa nos bicitáxis, que são produtos do encontro de culturas que se imbricam (processo que o autor chama de crioulização), resistem e formam algo completamente novo, na ordem do imprevisível. O novo que também resulta da ressignificação de bens da Indústria Cultural, como o caso da “Bat Ferrari” mostra que são deslocados do seu sentido original pelo olhar local para dar conta de experiências e experimentações inscritas naquele território. Nesse sentido, García Canclini (2005, p.25) nos chama a atenção sobre como entender essa dinâmica em que as culturas estão inseridas no século XXI: “Para entender cada grupo, deve-se descrever como se apropria dos produtos materiais e simbólicos alheios e os reinterpreta”.

Ainda no terreno da interculturalidade, recordamo-nos bem do impacto de nosso primeiro contato com o bicitáxi “Viúva Negra”. Era domingo à noite e estávamos na Praça Albertino Baraúna, a qual se encontrava lotada de pessoas lanchando, bebendo cerveja com os amigos, crianças brincando no pula-pula e eu à procura de novos narradores. O barulho era intenso devido às conversas, gritos de crianças, aos aparelhos de som dos bicitáxis que passavam e de algumas lanchonetes que colocavam música para seus clientes. No entanto, tudo foi silenciado por uma música muito alta que de repente começou a tocar. No susto, nossa primeira reação foi procurar de onde vinha, mas a nossa frente havia muitos brinquedos montados e bicitáxis parados que me impediam de ver. Percebemos, porém, que o som se movimentava. Foi quando nos perguntamos “é um bicitáxi isso?!”.

E de fato era. Mas não qualquer um. Acabávamos de conhecer o “Fim do sossego”. Um encontro primeiramente sonoro e depois intensamente

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visual. Em letras garrafais ele já anunciava a que vinha. “Viúva Negra” aparecia logo abaixo, escrito em letras menores. Muita informação para dar conta em um domingo à noite. Sendo assim, o dono do veículo, Joy Bezerra, nascido em Macapá, aceitou nosso convite para conversarmos em outro momento. Sentado em sua oficina, onde trabalha com manutenção de refrigeradores, JB como é conhecido, relembra suas motivações ao comprar o bicitáxi.

Quando eu mudei pra cá, né, pra cidade. Aí no começo achei interessante, até aluguei um, na época que eu cheguei aqui. Aí como na cidade grande eu tinha um carro de som, que eu sempre gostei de carro de som, eu falei “ah, vou comprar um aqui”. Então quando eu adquiri esse aí ele já tava feito, né, mas não assim. Aí fui modificando, fui criando algumas coisas e coloquei um som. Hoje é um som dos melhores assim, pessoal falam né? Comentam aí e tudo mais. E aí, se você aí, vamo supor... Eu sempre falo isso que aqui, como a gente tem uma cidade que não pode ter veiculo motorizado, nada... Aí se tem vamo supor, um bicitáxi que seria o seu carro de passeio, né, aí a bicicleta seria a sua moto e triciclo seria sua caminhonete de trabalho.77

76

Fig. 6: Joy Bezerra e detalhes do seu bicitáxi.

Fonte: Aislan de Paula Ferreira da Silva, 2013.

77 Fragmento da entrevista concedida por Joy Bezerra, em 10 de julho de 2013, no município de Afuá, pertencente ao arquipélago do Marajó, no Estado do Pará.

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No relato de JB, ele recompõe suas primeiras impressões ao se mudar para Afuá, dando destaque para o impacto causado pelo bicitáxi. Tendo nascido e vivido muitos anos em Macapá, ele constrói seu olhar sobre o mundo a partir dos códigos do universo urbano da capital, os quais implicam em seus gostos, preferências, valores e formas de consumo. Sendo assim, sua leitura sobre o bicitáxi também se dá no diálogo com esses códigos. Por isso ele o compara ao carro de passeio e estabelece paralelos da bicicleta com a moto e do triciclo com a caminhonete de trabalho. Referenciais que resistem e cercam sua interpretação da cultura afuaense.

Entretanto, é muito provável que o discurso de JB tenha sido construído levando em conta seus interlocutores. Sabendo que morávamos em Belém e estávamos ali para a realização da pesquisa, ele nos viu como uma figura estrangeira e tentou introduzir na sua narração elementos os quais ele acredita fazerem parte das nossas referências: o “carro de passeio”, a “moto”, a “caminhonete de trabalho”, de modo a tornar a explicação mais didática. Não que estes não sejam também referenciais do universo dele, mas talvez ele não os tivesse utilizado para narrar suas lembranças caso a conversa fosse com um morador local. Nesse sentido, Portelli (1997a, p. 35-36) esclarece que “[...] informantes contam-lhes o que creem que eles queiram ouvir e assim revelam quem eles pensam que o pesquisador é. Os entrevistados estão sempre, embora talvez discretamente, estudando os entrevistadores que o ‘estudam’.”.

Quanto ao apreço e decisão de compra pelo bicitáxi, o que a narrativa de JB indica é que ele viu no veículo a possibilidade de manter as práticas de lazer cultivadas “na cidade grande”, como ele mesmo coloca, onde era proprietário de um “carro de som”, do qual gostava muito. Deste modo, em Afuá ele recria suas antigas formas de entretenimento a partir das limitações com que se depara e em diálogo com códigos e saberes locais.

Com isso, ele alcança também status social. Uma vez que um dos principais diferenciais listados pelos donos de bicitáxis é a qualidade e

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potência do som, a “Viúva Negra” se destaca ao ser reconhecida por ter um dos melhores. Repercussão esta que faz com que JB, fã de “carros de som”, sinta-se realizado, falando com orgulho sobre os comentários que circulam na cidade: “Hoje é um som dos melhores, assim pessoal falam né? Comentam aí e tudo mais”.

Esse processo de conquista de prestígio social a partir dos bicitáxis os inscreve em relações de disputa, que são também relações de poder, em que se medem não apenas poder aquisitivo, mas também criatividade e capacidade de inovação. Nestas relações são construídas novas formas de sociabilidade por vias do consumo, que modificam a maneira como estes criadores se relacionam com seus veículos. Nesse sentido, Norman (2008) nos leva a pensar sobre as diversas relações emocionais estabelecidas por nós com os objetos, as quais podem ocorrer em três níveis: visceral, comportamental e reflexivo. O nível reflexivo, que nos interessa mais propriamente aqui, diz respeito aos significados atribuídos aos produtos, o pensar sobre eles. Nele contam não apenas a interação direta entre objeto e usuário, em que reside a satisfação do primeiro impacto sensorial (nível visceral) e do pleno uso (nível comportamental), mas principalmente como os produtos “refletem e determinam sua autoimagem, bem como as imagens que os outros têm de você.” (p.75)

O design reflexivo, portanto, tem a ver com relações de longo prazo, com os sentimentos de satisfação produzidos por ter, exibir, e usar um produto. O sentido de identidade própria de uma pessoa está situado no nível reflexivo, e é nele que a interação entre o produto e sua identidade é importante, conforme demonstra o orgulho (ou a vergonha) de ser dono ou de usar o produto. (NORMAN, 2008, p, 58)

Conforme discute Norman (2008), pensar estas relações com os objetos nos permite perceber como estes se entrelaçam às identidades dos indivíduos.

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Entendendo essas identidades como representações, construções discursivas do eu,Hall (2006) nos lembra que os sujeitos podem assumir diversas posições de identidade, dependendo dos interesses em jogo. O consumo, nesse sentido, é uma das ferramentas utilizadas por eles para afirmar um ou outro posicionamento, auxiliando na construção de sua autoimagem.

Ele era um simples, só com as quatro rodas, uma coisa, só os banco. Não era essa cor, aí... O nome a gente criou, o nome. Que tem um carro de som Viúva Negra que é conhecido, acho que no Pará todo, né? Acho que no Brasil... É uma aparelhagem em uma caminhonete. E daí foi que surgiu Viúva Negra. E aí foi colocado. Gente colocou Viúva Negra, e aí é conhecido hoje aqui.77

A fala de JB mostra que a escolha do nome de seu carro não foi aleatória, mas uma decisão que carrega uma importante função simbólica. Ela reforça e comunica a identidade assumida por ele, enquanto fã deste universo das aparelhagens instaladas em carros.Com essa opção ele busca também trazer para seu bicitáxi o prestígio do carro som “Viúva Negra”, que de acordo com ele é conhecido a nível nacional. Tentativa essa bem sucedida, ao que lhe parece, como quando ele fala que seu modelo é “conhecido hoje aqui”.

Fig. 7: Aparelhagem “F250 Viúva Negra”.

Fonte: https://www.facebook.com/f250viuvanegraevc.78 Idem.

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Em relação aos aspectos visuais do bicitáxi, além da clara influência das aparelhagens, percebida pela presença de lâmpadas leds em diversos locais do veículo e da pintura de uma caveira na parte de trás, JB ainda nos revela outra afinidade, os carros de corrida, que determinaram a escolha de uma série de elementos, conforme ele lembra:

Devido as corridas de carro [escolha do volante], as corridas de automóvel, que eu gosto muito. E aí eu tirei o modelo de lá. Diferenciei na realidade, sabe? Mandei diferenciar o meu dos outros aqui, e coloquei dessa maneira. [...] Tem a rabeta aerofólio, tá atrás, também... Os desenhos de carro, uns apliques de carros de corrida que eu coloquei...79

78

A gente cria, né, a gente que é o dono. Chega lá, ele dá mais um... diz assim “Não Joy, esse detalhe vamo mudar aqui que vai ficar legal”. A gente botou umas carenagens, justamente pra ele ficar um carro quase rebaixado, né?80

79

Os elementos presentes no bicitáxi “Viúva Negra” nos permitem reconhecer a diversidade de influências que atravessam JB e marcam sua trajetória. Enquanto espectador de corridas,ele aproveita a oportunidade da customização para agregar ao seu modelo reproduções de componentes desse tipo de carros, como o aerofólio e o volante,bem como de para-lama e para-choque, que criam a impressão de que ele é rebaixado, outro elemento de automóveis de corrida. Além disso, desenhos de automóveis em alta velocidade são espalhados pelo veículo. Uma composição onde cabem diversas referências, aparentemente descoordenadas, mas que para ele fazem sentido.

Foi criado pelo um amigo meu aqui [Kaos], que ele pinta, ele faz essas coisas. E aí ele que... Eu pedi a opinião dele... “Vamo fazer assim, que vai ficar legal” Fomo criando aí, nós dois, e ficou essa maneira aí. [...] Foi por isso que eu deixei mais na mão dele. Isso aí se conhece, então vê que

79 Idem80 Idem

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se faz aí.8180

Já sobre a pintura do “Viúva Negra”, JB conta que preferiu deixar aos cuidados do seu amigo e artista visual, Adamor Jr, conhecido apenas por Kaos.Ele foi responsável não apenas pela execução do serviço, mas também pela concepção do efeito desejado ao acabamento final. A liberdade conferida por JB a criação de Kaos resulta em um produto atravessado por múltiplos olhares e histórias de vida. Não é à toa que a referência escolhida pelo artista vai em outra direção: “Foi uma pintura, tipo, não parecida, mas assim meio do filme Tron, que tinha as linhas ascendentes... Aí tive que fazer o máximo possível que são espaços pequenos que não dá pra expandir muito o trabalho.”82

81

O filme citado por Kaos é de ficção científica e já foi ao cinema em duas versões produzidas pela Walt Disney Pictures: “Tron”, de 1982 e “Tron: Legacy”, de 2010. Nas duas versões ele se destaca pelo apelo visual e utilização de recursos de computação gráfica. As “linhas ascendentes” de que fala o depoente são efeitos de luz que compõe o visual tecnológico da direção de arte do filme. No “Viúva Negra” esses efeitos e linguagem visual se recriam pelo trabalho na técnica da aerografia de Kaos e o que permanece deles é o apelo à tecnologia.

81 Idem.82 Fragmento da entrevista concedida por Adamor Junior, em 08 de julho de 2013, no município de Afuá, pertencente ao arquipélago do Marajó, no Estado do Pará.

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Fig. 8: Cartaz do filme Tron – O Legado.

Fonte: http://www.tribunadoceara.com.br/nas-prateleiras/tag/tron-o-legado/. Acesso em 22

de julho de 2013.

Tecnologia, velocidade, potência, música, luzes, linhas e carros. Entre tantas informações visuais, o “Viúva Negra” não comunica, grita. E nos faz pensar sobre a experiência estética que resulta disso tudo.A esse respeito, Ella Shohat e Robert Stam (2006) discutem uma estética anticlássica, a partir das teorizações de Bakhtin a respeito do carnaval, que parece se aproximar do que observamos acontecer nos bicitáxis de Afuá. Ela se refere a uma forma de resistência aos padrões de beleza clássicos e ao pensamento racionalista positivista,os quais buscam a ordem e a unidade. Assim, na experiência carnavalesca anticlássica valoriza-se o heterogêneo, a contradição, o poluído, o banal, o rebelde.

Na teorização de Bakhtin, o carnaval abraça uma estética anticlássica que rejeita a harmonia formal e a unidade em favor de uma assimetria, do heterogêneo, do oximoro (paradoxo) e da miscigenação. O ‘realismo grotesco’ do carnaval vira a estética convencional do avesso para enfocar

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um novo tipo de beleza popular, convulsiva e rebelde, que ousa revelar o caráter grotesco dos poderosos e a beleza latente do ‘vulgar’. Na estética carnavalesca, tudo remete ao seu oposto, dentro de uma lógica alternativa de contradição permanente que transgride o pensamento monológico típico de certo tipo de racionalismo positivista. (SHOHAT e STAM, 2006, p. 421)

Assim, a aparente incoerência da estética dos bicitáxis de Afuá ganha sentido nas palavras de Shohat e Stam (2006), tal como nas vidas dos moradores da cidade. Do interior de suas cosmologias, eles ressignificam códigos do colonizador e criam formas de resistência e de negociação. Formas estas imbricadas em seu cotidiano pelo exercício da criação. Na invenção da vida diária eles experimentam formas, mecanismos e linguagens, brincam com o português, de onde surgem “bicitáxi”, “bicilância”, “bicimoto”, “idear”, pintam, bordam, suam e reconstroem a si próprios.

Depois da curva um longo caminho pela frente

O caminho percorrido até aqui na criação de mapas pelos quais afloram lembranças, apesar de inicial, já nos permite entrever questões importantes. Trabalhando com reminiscências foi possível refletir sobre seus processos de afloramento em que passado, presente e futuro se entrelaçam e nos permitem ver para além dos bicitáxis e seus processos de criação (THOMSON, 1997). A composição de reminiscências feita por nossos narradores privilegiou aspectos que provavelmente não encontraríamos em fontes oficiais. São releituras do passado em que novos sentidos se constroem, impregnados da subjetividade de quem lembra e de quem as ouve (BOSI, 1999).

Deste modo, com Dona Hilda aprendemos que o bicitáxi pode ser lugar de afetos. Benção de Deus, demonstração de carinho dos netos, diversão. Já Doranildo e JB nos mostram uma Afuá intercultural (CANCLINI, 2009), de encontros culturais de onde surge o imprevisível (GLISSANT, 2005) e novas

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experiências estéticas. “Rebelde”, “vulgar”, “heterogêneo” (SHOHAT e STAM, 2006). A resistência do local, que inventa formas de lidar com o estrangeiro por dentro de suas cosmologias (HALL, 2009).

Eles também nos falam sobre políticas de identidades e afirmação da diferença. O desejo de diferenciação mediado pelas contínuas recriações do bicitáxi se refere a esta necessidade de afirmação do eu na relação com o outro (HALL, 2006). Extensões dos próprios donos em diálogo com os profissionais corresponsáveis na criação e com as demais pessoas que atravessam o processo de produção dos bicitáxis. O desejo de personalização, além de social, inscrito em relações sociais de poder, é de ordem íntima, de expressão pessoal. E essa possibilidade de expressão via bicitáxié o que dá voz a sujeitos silenciados pela História e pelas instituições de poder do pensamento moderno. É o “Fim do sossego”83

82 deles.

Assim, o que levamos adiante das narrativas transpostas nesse texto são cenas do cotidiano de uma cidade atravessada pela criação. Suas práticas diárias, suas crenças, seus dramas, aquilo que a afeta, que a comove, suas formas de sociabilidade e vínculos, seu olhar sobre a vida e o mundo são saberes que se transpõem em bicitáxis, triciclos e bicicletas e não ocupam uma parte específica de seus dias, nem exigem uma qualificação ou certificado reconhecido pelo MEC. Da ordem do ordinário, cotidiano, habitual, comum, tais saberes estão imbricados a rotina da cidade. O que faria deles menores, inferiores, sob o olhar do pensamento moderno ocidental, que segundo Boaventura (2010) é um pensamento abissal, que divide o mundo em dois únicos lados e invisibiliza o outro para afirmação de um. Nesse sentido, arte e artesanato, ciência e senso comum, design e gambiarra seriam exemplos disso.

Na experiência social, no entanto, a vida não parece cumprir divisões tão precisas quanto esta forma de pensamento construída na dita modernidade. Estética? Arte? Design? O que percebemos é que eles mostram

83 “Fim do sossego” é o que aparece escrito no bicitáxi de Joy Bezerra, conhecido como JB.

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saber o que fazem, mesmo sem rotular, e isso lhes parece suficiente. Alguns dizem que tiveram a “criatividade de cuidar do bicitáxi” 84

83, outros que “foram modernizando, modernizando” 85

84 ou que ficaram “ideando, ideando, durante dias” 86

85. Contudo, há também aqueles que assumem suas identidades de artistas e são reconhecidos como tais. No entanto nunca participaram de exposições e suas obras fogem das categorias de arte prestigiadas.Pinturas em fachadas comerciais e barcos, desenhos de tatuagens, esculturas em entalhe de madeira, troféus para eventos da cidade. Mesmo que a academia diga ao contrário, em Afuá eles são artistas.

A intencionalidade artística como fundamento para a afirmação da arte – em outras palavras, a necessidade de que o artista explicite sua ambição estética – cobrada por alguns, falha ao exigir as mesmas categorias da língua culta para reconhecer a intencionalidade estética na produção popular. Essa intencionalidade facilmente compreendida na afirmação de que ali “tudo é invenção” de Luís Davi somada ao fato de o criador não agir em função de expectativas de reconhecimento (ou se existir não o será na ambiciosa escala do sistema artístico), é o quanto basta para sabermos que o que os move é algo demasiado potente a ponto de fazê-los dedicar suas vidas à criação, ou de reconhecer que sem ela – a criação – a vida não teria sentido. (BRANDÃO; SEQUEIRA, 2012, p. 43)

São também criadores de projetos a partir de demandas específicas. A pouca estrutura das vias de madeira e as limitações tecnológicas colocam aos afuaenses desafios de sobrevivência que fazem com que eles recriem o espaço de circulação pela invenção do bicitáxi. Já que as grandes indústrias

84 Fragmento da entrevista concedida por Luiz Paulino, em 3 de julho de 2013 no município de Afuá, pertencente ao arquipélago do Marajó, no Estado do Pará.85 Fragmento da entrevista concedida por Doranildo Almeida dos Santos, em 10 de julho de 2013, no município de Afuá, pertencente ao arquipélago do Marajó, no Estado do Pará.86 Fragmento da entrevista concedida por Valdison Gomes, em 06 de julho de 2013, no município de Afuá, pertencente ao arquipélago do Marajó, no Estado do Pará.

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e os grandes designers não estão preocupados em atender as especificidades locais, este subverte o industrial pelo artesanal. Bicicleta vira bicitáxi.

O melhor tipo de design não é necessariamente um objeto, um espaço, ou uma estrutura: é um processo dinâmico e adaptável. Muitos estudantes de faculdade fizeram uma mesa de trabalho ao colocar uma porta de face lisa sobre dois gaveteiros de arquivos. Caixas se transformaram em cadeiras e em estantes de livros. Tijolos e pranchas de madeira fazem prateleiras. Tapetes se transformam em tapeçarias de paredes. Os melhores designs são os que criamos para nós mesmos. E esse é o tipo de design mais apropriado – funcional e estético. É um design em harmonia com nossos estilos de vida individuais. (NORMAN, 2008, p. 255)

Conforme discute Norman (2008), a experiência vivida em Afuá diz respeito ao que ele entende pelo melhor design, aquele que é feito pelos próprios usuários, cientes de suas verdadeiras necessidades e agentes de sua cultura. Mesmo que o resultado provenha de uma metodologia diferente, na qual tentativa e erro muitas vezes substituem o desenho ea prancheta, ainda assim são soluções que preenchem lacunas sociais, estéticas e afetivas.

REFERÊNCIAS

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. 7. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 11-92.

BRANDÃO, L.; SEQUEIRA, R. Da criação autoral à anônima: expandindo o conceito da criação. In: Cultura Visual, n. 17, maio/2012. Salvador: EDUFBA, p. 39-49.

GARCÍA CANCLINI, Néstor. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade. Tradução Luiz Sérgio Henrique. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

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GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva, Guaraeira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

_____. Que “negro” é esse na cultura negra? In: Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução Adelaine La Guardia Resende. 1ª edição atualizada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Ofício de Cartógrafo – Travessias latino-americanas da comunicação na cultura. Tradução: Fidelina Gonzáles. Coleção Comunicação Contemporânea 3. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

NORMAN, Donald A. Design Emocional: porque adoramos (ou detestamos) os objetos do dia-a-dia. Tradução de Ana Deiró. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

PREFEITURA MUNICIPAL DE AFUÁ. Plano Diretor Participativo do município do Afuá. Relatório da Leitura da realidade do município – leitura compartilhada. 2006.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, p. 03-15, 1989.

PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos. Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. Tempo. Rio de Janeiro, vol. 1, nº. 2, p. 59-72, 1996.

PORTELLI, Alessandro. O que faz a História Oral diferente. Projeto História, PUC/SP, v. 14, p. 25-39, fev. 1997a.

_____. Formas e significados na História Oral. A pesquisa como um experimento em igualdade. Projeto História, PUC/SP, v. 14, p. 07-24, fev. 1997b.

_____. A entrevista oral e suas representações literárias. Ensaios de História

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Oral. Tradução Fernando Luiz Cássio e Ricardo Santhiago. São Paulo: Letra e Voz, 2010, p. 209-230.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

SARRAF-PACHECO, Agenor Sarraf. Cartografia de Memórias: Patrimônios, Culturas e Poderes na Amazônia. In: Cartografias de Memórias. Pesquisas em Estudos Culturais na Amazônia. Belém: NEAB/IFPA, 2015. (No prelo).

SHOHAT, Ella e STAM, Robert. A estética da resistência. In: Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação. Tradução Marcos Soares. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 407-475.

THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre História Oral e as memórias. Projeto História, PUC/SP, v. 15, p. 51-71, abril/1997.

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SÃO BENEDITO EM TERRAS COLORIDAS

Eduardo Wagner Nunes Chagas (PPGSA/UFPA)

Introdução

A religiosidade católica no Brasil é marcada pela interação conflituosa e harmônica estabelecida com várias outras formas de religiosidade e concepções de espiritualidade ou cosmologias, dentre as quais estão principalmente as multifacetadas faces das religiões africanas, com a crença nos Orixás e Voduns, e as indígenas brasileiras, com as forças da natureza e seres mágicos. Portanto, a religiosidade católica brasileira é, como em tantos outros focos da colonização ibérica, o resultado de um longo processo de misturas, ressignificações de símbolos e reinterpretações de conceitos.

Por esse motivo, conceitos como o de sincretismo são amplamente estudados e reelaborados, buscando-se uma forma de abraçar toda a complexidade antropológica, histórica e simbólica que se estabeleceu ao longo desse meio milênio da história do país. Creio ser tarefa árdua a elaboração de um único conceito que em si abarque todo o contexto das misturas religiosas no Brasil. No entanto, o que é fato é haver misturas, por vezes inusitadas, por outras, de tão cotidianas, vistas como comuns e “normais”.

Apenas se nos ativermos ao catolicismo e aos cultos afro-brasileiros no país, utilizando a concepção clássica de sincretismo, há assunto para laudas infindas de discussão e análise. Focando-nos na figura dos santos católicos, por exemplo, o mínimo que podemos observar é o que Rubem César Fernandes chama de “dupla significação”. No entanto, a respeito da expressão, o autor alerta para abrangência maior da compreensão, para além do “duplo”, quando diz:

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(...) falar de “dupla significação” é pouco para dar conta das figuras representadas pelos santos no Brasil, pois que são três as suas faces! Modificam-se no passar do catolicismo oficial para o catolicismo popular, e novamente na passagem para o afro-brasileiro, ou vice-versa. (FERNANDES, 1994, p. 120).

Na realidade, a concepção religiosa no Brasil é marcada pelo deslizamento e pela porosidade de significados e crenças. O próprio catolicismo é bipartido, pois existe o calendário oficial nacional, que estabelece datas para festas e eventos, e as manifestações inúmeras realizadas por grupos que, para os pesquisadores, são classificadas como catolicismo popular (Idem). Este tem como principal característica “o culto dos santos, marca maior da religiosidade popular” (Idem, p. 195) e pode ser compreendido como o conjunto de práticas nascidas e criadas no contexto rural, “herdeiro de antigas tradições ibéricas”, o qual se mostra como a expressão da paixão do povo manifesta em formas religiosas, “tais como as romarias, procissões, beatos, capelas de beira de estrada” (Idem, p. 230).

O termo “popular”, entretanto, é compreendido semanticamente por muitos como sinônimo de depreciação ou minoração. Porém, prefiro compreendê-lo e aplicá-lo como o concebe Mikhail Bakhtin (1987) quando utiliza a expressão “cultura popular” para classificar as formas de expressão da vida da sociedade da Idade Média e do Renascimento na Europa. Bakhtin usa “popular” para identificar as ações do povo, oriundas do povo e praticadas pelo povo, que em sua maioria eram os mais pobres e menos abastados. Todavia, essas ações não são apresentadas como oposição intelectual à “erudição”, mas sim como reação à imposição de uma cultura que se afirmava como única e “correta” por ser fruída pelos mais ricos, as elites. Dessa forma, pela lente de Bakhtin, o popular se refere a uma contra-ação intelectualmente involuntária que é marca não da falta de conhecimento, mas, pelo contrário, é prova da inventividade criativa inerente ao homem.

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E se voltamo-nos ao contexto do catolicismo popular, a partir da visão “popular” de cultura de Bakhtin, compreendemos de forma mais clara o que nos apresenta o excerto seguinte:

Há um “saber popular” que é transmitido a duras penas, em um trabalho contraposto às invectivas assimiladoras dos agentes da erudição. Mesmo uma novena humilde, realizada em casa a despeito do padre, contém uma dimensão de resistência, pois ensina a falar com Deus pelos próprios lábios (FERNANDES, 1994, p. 220). (Negrito meu).

O adjetivo “próprios” assinala a liberdade de se “falar” de algo com a particularidade de uma concepção não determinada e liberta. As festas do catolicismo popular, tais como as festividades dedicadas a São Benedito no bairro do Jurunas, são exemplo disto. O “popular”, portanto, não é o “menor”, ou o “menos”, antes é um “outro”, um igual ou um mesmo, expressão de uma realidade social multifacetada, conformada nas relações de sociabilidade e disputa entre grupos, classes sociais, gêneros, raça ou cor/etnia. Desse modo, o popular constitui-se em expressões dos modos de vida de camadas subalternas, mas que sempre esteve em diálogo com o erudito. Nele bebeu e por ele foi cooptado, assim como operou com as ferramentas dominantes para reafirmar tradições em continuas mudanças históricas87

86.

Isto posto serve para localizar as festividades jurunenses no contexto do catolicismo popular, pois ambas as festas não fazem parte do calendário oficial católico de Belém. No entanto, cada uma a sua maneira, por seus “próprios” meios, construiu-se e mantém-se viva dentro de sua esfera social. Belém, sequer possui uma paróquia exclusiva de São Benedito, porém, em um mesmo bairro, em uma mesma rua, possui duas festividades dedicadas a este Santo.

87 Esta reflexão é estabelecida tendo por base o que discute Peter Burke, em “A cultura popular na Idade Média” (1989).

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Essa construção das festas, em suas dimensões simbólica, histórica e social, é tomada, neste estudo, como expressão da polifonia ou multivocalidade discutida por Canevacci (1993; 1996), ou daquilo que Rubem César Fernandes classifica como “polissemia”, quando afirma:

A polissemia é uma característica comum às ideias fortes nas ciências sociais. Condená-las em nome da clareza cartesiana implicaria romper com a linguagem que nos mobiliza. Ignorá-la, por outro lado, implica renunciar ao sentido crítico a que está associado o nome da ciência. Posto assim, entre a cruz e a caldeirinha, podemos ao menos tentar compreender os múltiplos sentidos contidos nas ideias mobilizadoras, e distinguir os problemas implícitos que as tornam tão ambíguas e polivalentes (FERNANDES, 1994, p. 219).

Neste sentido, o catolicismo no Brasil é extremamente polissêmico. Desde sua origem com a catequese jesuíta já apresenta elementos díspares que produziram uma forma singular da religião no país, à qual se fundiram concepções religiosas africanas e indígenas, principalmente, resultando no que aqui é visto como o catolicismo popular.

“Sãos Beneditos”

Dentre as muitas expressões interessantes que ouvi durante os anos de pesquisa no Jurunas, eram comuns as seguintes: “a festa da Venina” ou “o Santo da Venina” e “a festa do Manoel” ou “o Santo do Manoel”. Eram interessantes porque pareciam denotar certa disputa ou marcar uma diferenciação arisca. Entretanto, “a festa da Venina”, realmente é a festa de Dona Venina Vasconcelos, que tem em sua casa a sede do Centro Comunitário Timbiras, onde são realizados os eventos da festividade mais antiga; “a festa do Manoel” é a festividade realizada pela Irmandade Recreativa São Benedito, cujo presidente é Manoel Costa.

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A festividade do Centro Comunitário possui três imagens, as quais ficam colocadas no nicho que se encontra dentro do barracão do Centro durante o período da festa. A Irmandade possui outras três, sendo que a mais valiosa (simbolicamente) é guardada pelo próprio Manoel Costa em sua casa, e de lá só sai para a procissão principal.

Historicizar estas festividades é trabalho para outra pesquisa, no entanto, tomando por guia e fonte as pesquisas da professora Carmem Izabel (2005; 2008) e as entrevistas e conversas produzidas a partir desta pesquisa, é possível tecer um breve panorama histórico de ambas e da relação existente entre elas.

“O Santo da Venina”

Primeiramente, a festividade mais antiga, iniciada em 1932, por Dona Teodora Vasconcelos, tia e mãe de criação de Dona Venina. Oficialmente quem realiza o evento, a festividade, é o Centro Comunitário Timbiras, cuja sede também é a casa de Dona Venina, situada na Rua dos Timbiras, nº 659, entre as Travessas Bom Jardim e Monte Alegre. A Rua dos Timbiras, no perímetro compreendido entre a Travessa Bom Jardim e a Avenida Bernardo Sayão, é completamente não pavimentada. Um perímetro dividido entre um lado de chão batido e outro ocupado pelo canal da Timbiras – que na realidade é um escoamento de esgoto a céu aberto. A casa de Dona Venina fica do lado de chão batido. Quando estive lá em 2008, a primeira impressão foi a de não estar em Belém, mas sim em alguma localidade interiorana do Estado. Casas simples, em sua maioria de madeira ainda, poucas em alvenaria, pequenas árvores e plantas às margens do canal, muitos fios elétricos e telefônicos e lixo fazem parte da composição da paisagem, além de bares, palafitas e crianças correndo de um lado para a outro, principalmente nos dias de festa.

A festividade do Centro Comunitário segue um calendário fixo: deve ser iniciada sempre no último domingo do mês de julho e encerrada no primeiro

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domingo de agosto. Embora mais antiga, possui um conjunto de eventos mais simples que os realizados pela festividade da Irmandade e apresenta características bem distintas da outra. A festividade é basicamente composta pelos eventos apresentados no quadro abaixo:

DOMINGO SEGUNDA – SEXTA SÁBADO DOMINGO- Procissão inicial.

- Levantamento dos mastros.

- Baile.

Ladainhas seguidas de momento comensal.

- Ladainha.

- Trasladação.

- Café da manhã.

- Procissão de Encerramento.

- Almoço.

- Baile.

- Derrubada dos mastros.

- Encontro com a procissão da Irmandade e retorno ao barracão.

Em 2010, quando acompanhei a procissão inicial, segui a romaria por um trajeto cheio de idas e vindas pelas ruas do bairro. Partimos, inicialmente, da casa de Pai Edson, na Travessa Bom Jardim, com uma imagem de São Benedito carregada em um andor, a qual, acreditei eu, seria a única a fazer parte desta procissão. De lá seguimos para a Rua dos Caripunas, onde outro grupo aguardava na casa de Pai Ronaldo. Além do grupo de pessoas que aumentou o volume de romeiros da procissão, havia também na casa de Pai Ronaldo uma segunda imagem de São Benedito. Assim, quando a procissão seguiu de lá para outras ruas do Jurunas, era composta pelo povo que a seguia caminhando e cantando, pela charanga que ora tocava músicas religiosas ora não, e por dois andores, cada um levando uma imagem de São Benedito. Conforme me foi explicado por Pai Ronaldo, “reza a tradição” que as famílias destes dois devotos (que, ressalte-se, são afro-religiosos, em sua maioria de matrizes fincadas na Mina e/ou Candomblé) são responsáveis pela guarda dessas duas imagens durante o ano inteiro. As imagens pertencem a Dona Venina, porém, quem as guarda e zela por elas durante o ano são os dois Pais

O santo da Caripunas, em primeiro plano, e o santo da bom Jardim, ao fundo, na procissão caminhando pela Rua dos Caripunas.

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domingo de agosto. Embora mais antiga, possui um conjunto de eventos mais simples que os realizados pela festividade da Irmandade e apresenta características bem distintas da outra. A festividade é basicamente composta pelos eventos apresentados no quadro abaixo:

DOMINGO SEGUNDA – SEXTA SÁBADO DOMINGO- Procissão inicial.

- Levantamento dos mastros.

- Baile.

Ladainhas seguidas de momento comensal.

- Ladainha.

- Trasladação.

- Café da manhã.

- Procissão de Encerramento.

- Almoço.

- Baile.

- Derrubada dos mastros.

- Encontro com a procissão da Irmandade e retorno ao barracão.

Em 2010, quando acompanhei a procissão inicial, segui a romaria por um trajeto cheio de idas e vindas pelas ruas do bairro. Partimos, inicialmente, da casa de Pai Edson, na Travessa Bom Jardim, com uma imagem de São Benedito carregada em um andor, a qual, acreditei eu, seria a única a fazer parte desta procissão. De lá seguimos para a Rua dos Caripunas, onde outro grupo aguardava na casa de Pai Ronaldo. Além do grupo de pessoas que aumentou o volume de romeiros da procissão, havia também na casa de Pai Ronaldo uma segunda imagem de São Benedito. Assim, quando a procissão seguiu de lá para outras ruas do Jurunas, era composta pelo povo que a seguia caminhando e cantando, pela charanga que ora tocava músicas religiosas ora não, e por dois andores, cada um levando uma imagem de São Benedito. Conforme me foi explicado por Pai Ronaldo, “reza a tradição” que as famílias destes dois devotos (que, ressalte-se, são afro-religiosos, em sua maioria de matrizes fincadas na Mina e/ou Candomblé) são responsáveis pela guarda dessas duas imagens durante o ano inteiro. As imagens pertencem a Dona Venina, porém, quem as guarda e zela por elas durante o ano são os dois Pais

O santo da Caripunas, em primeiro plano, e o santo da bom Jardim, ao fundo, na procissão caminhando pela Rua dos Caripunas.

guardiões.

Depois que as duas imagens se encontram, a função da procissão é buscar os dois mastros que serão erguido em frente à casa de Dona Venina (um dos homens e um das mulheres) nas casas de quem os prometeu, bem como as bandeiras ou estandartes que serão colocados no alto deles. O ato de doar o mastro ou o estandarte figura como paga de uma promessa e dá certo prestígio a quem se responsabiliza pela doação.

Com mastros e bandeiras coletados é hora de seguir para a Rua dos Timbiras e iniciar a festa com o seu levantamento oficial. Quando a procissão chega à esquina da Rua dos Timbiras com a Travessa Bom Jardim, há soltura de foguetes, salva de palmas e muito alvoroço entre os que aguardam em

Na Rua dos Pariquis, bem em frente a um dos galpões que em alguns anos serviu de barracão para a construção das alegorias do Rancho Não Posso me Amofiná (escola de samba jurunenses fundada em 1934), o mastro das mulheres aguarda.

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frente a casa de Dona Venina, às margens do canal. Segue-se, após a chegada das imagens, a decoração final dos mastros, quando neles são amarradas frutas, colocadas as bandeiras (ou estandartes) e escondidos, em cada um, um prêmio. Após isso os mastros são erguidos ao som da charanga e de muitas palmas. Toda essa galhofada é necessária para que as imagens de São Benedito entrem no barracão e sejam colocadas ao lado da terceira imagem do Santo, esta guardada unicamente por Dona Venina, em um nicho que fica no fundo do salão. A colocação das imagens no nicho é feita pelos Pais Edson e Ronaldo após algumas rezas e cantorias. Feito isto, o que se segue é um animado baile regado à cerveja e música. Em 2010, o baile terminou por volta das seis da manhã da segunda-feira.

Na noite da segunda-feira, após a abertura oficial da festividade ocorrida no domingo, é hora de iniciar os cinco dias de ladainhas. Não há bebidas, nem músicas, nem danças, apenas terços e ladainhas, seguidos por um momento comensal, quando são servidos refrigerantes, sucos, bolos e mingaus. As ladainhas seguem sendo realizadas até a noite da sexta-feira.

O nicho do barracão. Ao fundo, no alto, a imagem mais antiga, que é cuidadosamente guardada por Dona Venina; no primeiro plano, as imagens guardadas pelos Pais Edson e Ronaldo.

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No sábado à noite é hora da trasladação, a procissão que leva a imagem principal da festa até a igreja de Santa Terezinha, localizada na esquina da Avenida Roberto Camilier com a Rua dos Timbiras, um quarteirão acima da sede do Rancho. A trasladação tem início na casa de Dona Venina e sobe a Rua dos Timbiras até a igreja em uma procissão breve e sem muita pompa.

No domingo pela manhã, o primeiro domingo de agosto, é hora de novamente trazer o Santo em procissão de volta a sua morada no nicho do barracão. Os devotos do Centro reúnem-se, antes de rumarem em grupo para a Igreja de Santa Terezinha, na casa de Dona Venina, para juntos tomarem um café da manhã oferecido pela festa. Após o café, seguem para a Igreja, onde assistem a missa matinal. Finda a missa, a procissão é curta e logo chega até a sede do Centro Comunitário. Segue-se um dia festivo, com novo baile, almoço, cerveja e música, até que chegue a tarde, quando a procissão da Irmandade passa em frente a casa de Dona Venina.

Por volta das cinco horas da tarde do domingo, a procissão da Irmandade chega à esquina da Rua dos Timbiras com a Travessa Bom Jardim. Por lá fica estacionada até que haja a derrubada dos mastros fincados em frente à casa de Dona Venina, novamente ao som da charanga e de muitas palmas. É um momento de extrema animação. Todos avançam sobre os mastros derrubados, buscando obter algumas de suas frutas ou encontrar o prêmio em dinheiro

Dona Venina no último dia de festa do Centro Comunitário: o café da manhã nos fundos de sua casa – tapioca, cuscuz, bolo e pão; durante a missa na Igreja de Santa Teresinha; observando a saída do andor após a missa, em frente a Igreja .

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escondido no cume, mas, principalmente, para alcançar o estandarte. Neste momento, a imagem principal da festa já aguarda no andor em frente a casa.

Com a derrubada dos mastros a procissão da Irmandade avança e passando pela frente do Centro Comunitário é seguida pelos que lá compunham a festa e pela imagem do “Santo da Venina” em seu andor. Assim, tem-se o momento de intersecção entre as festividades, com a romaria formada pelos devotos dos dois grupos e pelas duas imagens de São Benedito.

Quando a procissão chega à frente da Capela da Irmandade é hora de outro momento ritual: o levantamento dos mastros da Irmandade. Após isso, a imagem da Irmandade entra na Capela e a do Centro Comunitário é reconduzida à sua sede, desse modo, finda-se mais um ano de festividade do Centro Comunitário de Dona Venina.

“O Santo do Manoel”

Embora o encontro dos grupos nesta procissão marque o fim da festividade do Centro Comunitário, ele não representa o início oficial da festividade da Irmandade. Antes desse domingo de encontro, a Irmandade Recreativa de São Benedito já principia seus festejos alguns dias antes, quando, geralmente na quinta-feira antes do domingo de intersecção, há a primeira alvorada na Capela da Rua dos Timbiras. No entanto, o que marca o início dos festejos realmente é o levantamento dos mastros, o que só ocorre no domingo.

As atividades da festa da Irmandade iniciam-se bem cedo no domingo. Enquanto os devotos da festividade do Centro Comunitário participam da missa na igreja de Santa Terezinha, a Irmandade de São Benedito efetua uma longa romaria fluvial, que sai do Porto do Açaí, na Avenida Bernardo Sayão (também chamada de Estrada Nova) e ruma para o Furo de São Benedito, no Baixo Acará. Lá, na Ilha do Maracujá, na casa de Dona Maria da Conceição, reza-se um terço. Esta senhora é responsável pela guarda das duas imagens peregrinas que percorrem os povoados do Furo a partir do início do mês de

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julho. Após a finalização do terço é realizada uma breve procissão em volta de um pequeno campo de futebol que fica ao lado da casa de Dona Maria da Conceição. A procissão no campo é também uma etapa importante desse momento, pois é solicitada pelos times de futebol, masculino e feminino, formados pelos moradores do Furo de São Benedito. A procissão serve como firmação da fé dos jogadores e como bênção para o lugar.

Após isso são levadas às embarcações três imagens de São Benedito e um mastro – que foi doado por um morador da ilha. A procissão (fluvial, agora) segue de volta para o Jurunas. E, embora as embarcações mantenham certa distância umas das outras, em cada barco há soltura de foguetes, rezas e cantorias até a chegada à Feira do Açaí, também na Avenida Bernardo Sayão. De lá, debaixo de um sol escaldante, a procissão ruma para a Capela da Irmandade. No caminho há várias homenagens de feirantes e moradores do bairro, com queima de fogos e chuvas de papel picado. Seu Manoel é o condutor, sempre convidando o povo a, junto com ele, exclamarem: Viva o Glorioso São Benedito! Novamente há uma procissão de três santos (imagens), pois a imagem peregrina da Irmandade é acompanha pelas duas que estavam percorrendo as casas dos moradores do Furo. O que se diz é que a imagem maior vai buscar as outras menores.

As duas zelosas senhoras, moradoras do Furo de São Benedito, conduzem sob o sol quente as imagens da Ilha do Maracujá.

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Por fim, perto do meio dia, a procissão chega à Capela. Todos os integrantes, famintos e sedentos, participam de um almoço coletivo, servido nos fundos da Capela em uma longa mesa. As duas imagens guardadas por Dona Conceição retornam à Ilha do Maracujá após o almoço. É momento de um breve descanso, pois a segunda parte das atividades do dia logo será iniciada.

À tarde, por volta das dezesseis horas, inicia-se a segunda procissão do dia, a qual tem por finalidade buscar o segundo mastro na casa de seu doador, bem como os estandartes. Em percurso que não sai do bairro, a procissão cumpre seu objetivo e retorna descendo a Rua dos Timbiras, rumo à sede do Centro Comunitário, onde se encontra com os devotos de lá, seguindo na procissão dupla até a Capela89

87.

Levantam-se os mastros ao som de palmas e brados, reza-se a missa, inicia-se a festa – que não possui baile, nem cerveja, mas barraquinhas com venda de comidas e doces e brinquedos para a diversão do povo; em algumas noites há também a apresentação de grupos musicais católicos.

Durante a semana, de segunda a sexta, a festividade realiza diariamente alvoradas, seguidas de café da manhã, e procissões noturnas. Estas procissões são realizadas pelos noitários, designação daqueles que são responsáveis pela realização das procissões e pela doação de um jantar para os que delas 89 A procissão dupla a que me refiro aqui é a formada pelos participantes da festividade da Irmandade e os do Centro Comunitário.

Durante uma semana a frente da Capela de São Benedito, sede da Irmandade, fica com a ambiência de qualquer outra quermesse de festejos católicos.

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participaram. As procissões noturnas terminam com missa na capela, antes de ser oferecido o jantar.

No sábado pela manhã é realizada a última alvorada, que se diferencia das demais, pois ao seu término a imagem de São Benedito – a mais preciosa – é conduzida pelo jovem Dellean Cardoso até a casa de Dona Regina, na Avenida Bernardo Sayão, em frente à Feira Coberta do Jurunas, de onde sairá à noite, em trasladação para a Igreja de São Judas Tadeu, no bairro da Condor.

A trasladação do sábado à noite é extensa e demorada, porém arrasta uma multidão e produz uma série de homenagens pelo caminho. Presenciei durante a trasladação em 2010 uma cena poética e chocante, a qual infelizmente não pude registrar com a câmera, pois fui aconselhado pelos organizadores da festividade a não usar a câmera no perímetro em que estávamos, devido ao risco de furtos e assaltos. A cena foi produzida por um homem que surgiu de algum lugar e ajoelhou-se em frente à berlinda que levava a imagem de São Benedito. O homem, um senhor com cerca de uns quarenta anos, em prantos, ajoelhado e com os braços estendidos para o céu, agradecia ao Santo em brados emocionados por algo que só era do conhecimento dele e de São Benedito.

O domingo de manhã, após a noite da trasladação, é iniciado bem cedo, com missa na Igreja de São Judas Tadeu. Após ela, então, tem início

Procissão de noitários da Rua dos Caripunas, seguindo por esta rua em direção a Capela de São Benedito.

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a grande procissão da Irmandade. A procissão segue da Igreja de São Judas até a Capela da Irmandade, passando por três dos maiores bairros de Belém: Cremação, Batista Campos e Jurunas. Tão extensa quanto cansativa, devido ao calor e à distância, é, porém, espetacular. Dela participam uma série de grupos distintos, entre ciclistas, bandas de música, trios elétricos, carros de anjos, porta-estandartes, estudantes uniformizados conduzindo bandeiras, grupos de coroinhas, promesseiros e o povo misturado que segue a imagem de São Benedito rumo ao Jurunas. É a procissão mais longa e espetacularizada das duas festividades, cheia de cenas inusitadas, homenagens grandiosas e momentos de emoção comunal.

Esta procissão é o maior momento da festividade realizada pela Irmandade. Após a chegada é servido um abundante almoço para todos que quiserem ser servidos. A Capela fica aberta para visitação durante o dia inteiro até à noite quando, após o encerramento oficial, é simbolicamente fechada. O encerramento é realizado em seguida de uma última procissão noturna, curta, que ao retornar marca o momento da derrubada dos mastros e a queima dos fogos de vista, logo depois de uma ladainha e do Te Deum Laudamus (canto de ação de graças). Assim é encerrada a festividade da Irmandade Recreativa de São Benedito da Rua dos Timbiras e o período de festas dedicadas a este santo no Jurunas.

Chegada da grande procissão à Rua dos Timbiras, entre a casa de Seu Manoel e a Capela da Irmandade.

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São Benedito Brasileiro de Norte a Sul

Duas festividades dedicadas a um mesmo Santo em uma mesma rua de um mesmo bairro é algo singular, para não dizer único! Ainda não tenho conhecimento de outra situação semelhante, por isso as festividades de São Benedito jurunenses despertaram-me tanto interesse.

Com relação ao dia de intersecção das festas, em entrevista concedida por Dona Venina em sua casa, em frente ao canal da Rua dos Timbiras, tomando mingau de milho oferecido por ela, perguntei qual a opinião dela a respeito disso – as duas festividades –, e obtive a seguinte resposta: “Ah, pra mim é uma festa só, porque é o mesmo Santo... Não tem diferença nenhuma. Talvez algumas pessoas achem diferente, porque um tem menos, outro tem mais... Mas pra mim é uma mesma festa, porque eu sou devota mesmo” (risos)90

88.

Ao que parece pela fala de Dona Venina, aquilo que se transformou em uma dissertação de mestrado, para ela é algo bem simples, claro e resolvido: não há nada de especial em duas festas na mesma rua, afinal de contas o Santo é o mesmo! A respeito, pude encontrar em palavras de Rubem César Fernandes uma articulação plausível que explica esse tipo de situação:

90 Entrevista concedida por Dona Venina Vasconcelos, 64 anos, em sua casa, no Jurunas, no dia 02 de abril de 2011, às nove horas da manhã.

A simpática e sempre sorridente Dona Venina e eu, em frente a sua casa, no dia do encerramento de sua festividade.

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(...) promessas, romarias e santos são múltiplos, com efeito, mas não compõem uma coleção caótica. Os grupos rituais podem ser independentes e competir entre si, mas relacionam-se de uma forma que é característica do catolicismo. São, em princípio, complementares (FERNANDES, 1994, p. 117). (Negritos meus).

É exatamente isto que Rubem César Fernandes confirma nesta passagem. Aquilo que me pareceu caótico, na realidade nunca o foi. Mesmo independentes e diferenciados por muitos aspectos, os eventos beneditinos jurunenses têm o caráter comum da complementaridade do catolicismo.

Um Santo Preto em Terras Coloridas

“São Benedito é negro”, diz-se comumente quando é preciso caracterizá-lo. Enquanto São Jorge é guerreiro e São Francisco é manso de coração, o que chama a atenção em São Benedito é a cor de sua pele! Com isso poderíamos concluir que a santidade é restrita aos brancos e que um santo negro é algo excepcional. Pode até ser, porém, São Benedito, além de negro (como a grande maioria dos moradores do bairro do Jurunas) foi outras coisas e tem em sua biografia uma vasta lista de qualidades também excepcionais, as quais podem ser o motivo da afeição por ele que os brasileiros cultivam amplamente desde a colonização até os dias de hoje.

Frei Benedito nasceu, de acordo com a versão mais aceita pela maioria dos hagiógrafos de sua vida, em 1526, na Sicília, Itália. Filho de escravos forros de origem etíope, desde muito cedo demonstrava inclinação à vida religiosa. Foi pastor de ovelhas e agricultor. Sua família era pobre, porém formada por católicos fervorosos89. Por volta de seus dezoito anos decidiu consagrar sua 91 Todas as referências narrativas a respeito da vida de São Benedito que reproduzo aqui são oriundas de versões diversas sobre sua vida, a qual é contada por seus devotos (incluindo-se os jurunenses) carregada de uma dramaticidade espetacular e divinal que, embora faça parte de um imaginário talvez não condizente com a realidade dos fatos, é aceito pelos devotos do Santo. Por esse motivo, busquei narrar os fatos em consonância com a vida imaginada e aceita pelos devotos, tendo por base biográfica o trabalho de Frei Ascânio Brandão. A obra deste Frei a que me refiro é “São Bendito: o santo preto”. Adquiri um exemplar deste livro

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vida ao serviço do Senhor e, aos vinte e um anos, passou a integrar o grupo dos Irmãos Eremitas de São Francisco de Assis, tornando-se, portanto, um franciscano, devoto do Presépio. Foi um dos mais humildes dos irmãos, seguindo fielmente os votos de pobreza, obediência e castidade. Andava descalço, vestia-se com trapos e dormia sem procurar conforto algum. Não sabia ler nem escrever, porém tornou-se conhecido tanto por sua sabedoria quanto por sua extrema humildade e modéstia, além é claro dos prodígios que realizava. Apesar de ser analfabeto, Frei Benedito possuía grande capacidade retórica e elaborava reflexões a respeito da prática do cristianismo que outros freis doutos não alcançavam, por esse motivo foi considerado por muitos como um homem iluminado pelo Espírito Santo.

Dentre muitas particularidades, além da cor da pele, São Benedito, o franciscano pobre e ignorante, é um dos poucos santos católicos cuja imagem também traz o Menino Jesus em seu colo. A humildade, sabedoria e bondade do Santo, são simbolicamente intensificadas pela presença do Menino Deus em seus braços. Jesus menino é símbolo de pureza e intersecção entre os homens e Deus Pai, a qual é mediada pela figura terna de Maria Mãe.

Frei Benedito morreu no dia 4 de abril de 1589, às dezenove horas de uma terça-feira de Páscoa, no Convento de Santa Maria, em Palermo, onde viveu a maior parte de sua vida. Foi canonizado em 25 de maio de 1807, durante a Festa da Santíssima Trindade, quando Pio VII o declarou Santo. No entanto, a devoção ao frei negro já era difundida por quase toda a Europa, mesmo quando ainda em vida.

no Museu da Marujada, no município de Bragança – PA. Porém é uma publicação que não traz informações catalográficas, apesar de apresentar uma lista de referências elaborada pelo próprio autor, Monsenhor Ascânio Brandão. Por esse motivo, as informações apresentadas nas referências deste trabalho estão passíveis de falhas em sua exatidão. O prefácio refere-se a “nós”, mas não específica quem publica esta quarta edição. No entanto, nas referências apresentadas ao fim da obra, o autor aponta a seguinte bibliografia como sua principal fonte de pesquisa: NICOLISI, Benedetto (Pe.). Vita di S. Benedetto di S. Fratello. Palermo: Palermo-Gen. Affissione e Publlicit, 1907.

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Em livro cuja terceira edição foi publicada em 1954, de autoria do Monsenhor Ascânio Brandão, a respeito da relação de Frei Benedito e seus devotos, há a narrativa do seguinte episódio, baseado em seus estudos sobre a vida de São Benedito:

Um português da cidade do Porto, com grandes sacrifícios conseguiu dirigir-se à Sicília para visitar o santo pretinho cuja fama se espalhara por Portugal. Queria ver Frei Benedito e foi direto ao mosteiro. Disse aos franciscanos: “Padres, os senhores não podem imaginar minha felicidade! Em Portugal fala-se muito do santo que aqui mora, de seus prodígios. Preciso conhecê-lo, encontrar-me com ele!” O superior manda chamar Frei Benedito. O devoto português se dirige a ele: “Meu santo! Ó querido Frei Benedito! Nada mais quero nesta vida! Basta-me ver o senhor e estar aqui!” Frei Benedito fez com que ele se levantasse e conversaram durante longo tempo. De volta para sua terra, tornou-se um grande propagador dos prodígios que se operavam por intermédio de Frei Benedito. (ASCÂNIO BRANDÃO, 1992, p. 48-49). (Negritos meus).

Este episódio mostra que, mesmo em vida, a popularidade de São Benedito já era grande e havia chegado a Portugal, bem como a outros países da Europa, cuja expansão marítima e atividade colonial estavam a pleno vapor à época. Essa pode ser uma das explicações para a chegada da devoção ao Santo no Brasil, maior colônia do império português.

A Igreja Católica possui um número extenso de santos, porém, poucos alcançam o nível de popularidade que São Benedito possui hoje. A meu ver, a popularidade de um santo se estabelece, principalmente, por fatores que o identificam com o grupo social que o segue, a sua história de vida e, obviamente, o poder a ele atribuído. No caso de São Benedito, mesmo em vida, conforme descreve Monsenhor Ascânio, já era admirado pelos prodígios que realizava, mais a humildade com que se relacionava com os que lhe acorriam.

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Além disso, em relação aos grupos africanos, a cor da pele, com toda certeza, foi fator de grande importância.

Monsenhor Ascânio contribui ainda com o seguinte trecho, a respeito do início da devoção beneditina em Portugal e no Brasil:

Em Lisboa foi estabelecida uma confraria de São Benedito. Com toda pompa, celebrava-se a festa do Santo. Na procissão, uma multidão de negros escravos desfilava diante da imagem do Santo com estandartes, com velas acesas e tochas coloridas. E de Portugal, depois, a devoção se espalhava por todas as colônias. No Brasil, o culto a São Benedito iniciou-se na Bahia. Na catedral da Bahia, em 1686, já se festejava o beato e, neste mesmo ano, foram criados e encaminhados a Roma os Estatutos da Irmandade do Bem-Aventurado Frei Benedito de Palermo. Antes da canonização, o Santo já era popular no Brasil. Da Bahia a devoção se espalhou pelo Maranhão. E, atualmente, por todo o Brasil. Não erramos ao afirmar que em todas as cidades do Brasil ele é venerado com uma festa especial. A devoção ao Santo é uma das maiores de todo o povo brasileiro. As procissões em louvor ao Santo atraem multidões. (...). Diz o povo que São Benedito castiga. É um exagero de nosso povo. Mas é certo que quem não o invoca, ao menos o respeita. (ASCÂNIO BRANDÃO, 1992, p. 91-92). (Negritos meus).

Monsenhor Ascânio, embora pareça exagerado em suas palavras, fala de um fato. São Benedito é, realmente, um dos santos mais festejados no país, e há mais tempo. No entanto, pelo caráter popular da devoção a ele dedicada, esse título não é oficializado. Nesta citação, o primeiro trecho negritado apresenta uma característica essencial para a compreensão da popularidade de São Benedito no Brasil e em Portugal: a condição da cor da pele negra o identificou desde muito cedo com os escravos catequizados, os quais, tal como

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o Santo, eram negros, pobres e excluídos socialmente.

São Benedito, por essas semelhanças aliadas aos predicados de bondade e justiça atribuídos a ele, tornou-se um símbolo de refúgio para os escravos negros, tanto em Portugal, quanto no Brasil. Em uma análise expandida dessa afeição pelo Santo até a atualidade, a devoção ao Santo no bairro do Jurunas pode ser observada pela mesma lente, pois o bairro é em sua maioria habitado por negros, pobres e excluídos socialmente.

O catolicismo, tanto em sua dimensão popular quanto na oficial de suas festas e devoções, é além de uma religião um fenômeno social integrador atemporal. Para Rubem César Fernandes, não há “outra instituição de peso no Ocidente que seja capaz de integrar, como a Igreja católica o faz, as dimensões antigas, medievais e modernas da memória ocidental” (1994, p. 46).

A relação entre o católico brasileiro negro ou afrodescendente e a devoção a São Benedito, portanto, é resultado de um alinhamento simbólico e romantizado, mesmo se considerarmos que a história é tecida em um palco cultural de tensões, conflitos, relações de poder, perdas, ganhos, artimanhas, cooptações. Essa relação foi fortalecida no Brasil por dois fatores importantes: a criação de confrarias ou irmandades e o costume de festejar o Santo por meio de atividades não comuns ao rito católico tradicional.

Os escravos de procedência bantu, principalmente do Congo, associaram-se no Brasil, em confrarias religiosas, tendo por patronos santos católicos. Destas confrarias, as mais importantes, eram a de S. Benedito e a de N. S. do Rosário dos Negros Congos, sendo que esta última já era a sua padroeira na África, por influência dos colonizadores portugueses. (RAMOS, 1988, p. 115-116). (Negritos meus).

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As confrarias ou irmandades serviam como meio de fornecer ao escravo uma condição mais próxima da humanidade negada pelo colonizador. Além disso, essas entidades reuniam iguais e possibilitavam ao escravo, dentre outras benesses, recursos financeiros para o alcance da alforria. Quando tudo isso resultava em acertos, o agradecimento era diretamente dirigido ao Santo patrono na forma de festa.

Desde o final do século XVI os negros escravos já participavam de confrarias e irmandades em Portugal. Entre elas destacava-se a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, muito popular na época. Esse tipo de associação negra seria trazido ao Brasil, possibilitando aos escravos vindos para cá algum tipo de organização social e política. Desligados de suas raízes, esses grupos procuravam reestruturar, através das confrarias, seus valores culturais destruídos pela escravidão. A ideia de família era reorganizada não mais necessariamente como uma relação de sangue, mas como uma ligação étnica. As associações de negros estabeleciam “famílias”, como nos candomblés, nos batuques, nos cucumbis e nos grupos carnavalescos. Chamar alguém de pai, mãe ou tia (como, por exemplo, Pai Francisco, Mãe Pequena ou Tia Ciata) passaria a ser um designativo dessa nova forma de relação. Além de Nossa Senhora do Rosário, as irmandades religiosas negras cultuavam os santos negros, como Santo Elesbão, Santa Ifigênia e São Benedito (de Palermo), sendo-lhes permitido celebrar suas festas com procissões, missas, fogos e danças nas praças públicas. As comemorações religiosas negras quase sempre acabavam em divertimentos profanos nos quais as irmandades elegiam um rei negro a que chamavam geralmente de Rei do Congo. Em Pernambuco, por exemplo, era comum no século XVIII a coroação de reis e rainhas negros no dia da festa de Nossa Senhora do Rosário. Essas comemorações

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eram geralmente acompanhadas de muitas danças, entre elas o lundu, o batuque, a capoeira e a dança dos velhos. (FERREIRA, 2004, p. 191). (Negritos meus).

Este texto é intitulado por Felipe Ferreira como “Festas Negras” e apresenta outro autor confirmando a relação das confrarias/irmandades com a questão da escravidão e das festas “profanas” originando uma forma de culto diferenciada da estabelecida pelo catolicismo oficial no país. A devoção a São Benedito tem efetivamente essa matriz negra e festiva no Brasil e da mesma forma na Amazônia.

Dentre as festas negras híbridas criadas pelos escravos catequizados a Congada é definitivamente uma das mais significativas. Os escravos oriundos da região do Congo, na África, trazidos para o Brasil, criaram uma forma de, mesmo no cativeiro, coroar simbolicamente seus reis também escravizados, por meio das celebrações das Congadas. Embora figurassem como uma afronta à autoridade da Igreja e da Coroa Portuguesa, essas manifestações eram permitidas e incentivadas tanto pelos senhores de escravos quanto pela própria Igreja, na tentativa de estabelecerem com os escravos um relacionamento amigável que impedisse rebeliões e fugas no período colonial brasileiro.

As Congadas surgem nesse contexto em forma de autos espetaculares em louvor aos Santos católicos – principalmente São Benedito, Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia; todos santos negros – mesclando sua dramaturgia principal (a coroação simbólica do Rei do Congo) com elementos do catolicismo e personagens da hierarquia nobiliárquica portuguesa (príncipes, fidalgos, embaixadores), bem como das sociedades indígenas brasileiras (caciques), em um espetáculo que utilizava a dança, o canto e a dramatização de textos.

Embora as Congadas sejam um exemplo claro das reelaborações culturais desenvolvidas pelos negros africanos no Brasil, estas também são

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exemplo de manifestações híbridas e do uso da festa no sentido apresentado por Mary Del Priori, em seu trabalho “Festas e utopias no Brasil colonial”.

O tempo da festa tem sido celebrado ao longo da história dos homens como um tempo de utopias. Tempo de fantasias e de liberdades, de ações burlescas e vivazes, a festa se faz no interior de um território lúdico onde se exprimem igualmente as frustrações, revanches e reivindicações dos vários grupos que compõem a sociedade. (PRIORI, 1994, p. 09).

Congadas, não por coincidência, festejam santos negros. Estes santos, na realidade, representavam à época colonial as reivindicações e revanches dos grupos negros por meio do tempo da festa. Relembrar e homenagear os antigos reis negros nessas festas, dependentes da permissão da Igreja e dos senhores, requeria também o alinhamento ao catolicismo oficial. Porém, mesmo na escolha dos santos a serem festejados, a atitude dos escravos

Uma Congada, segundo Rugendas.Ilustração 10: Ambiente do Brasil-Colônia, a dança da congada.

(Imagem: Rugendas, gravura, 1835).

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permanecia disfarçando a rebeldia por meio da devoção a santos negros, e isto não foi percebido pelos portugueses, e se foi, não foi contestado.

Dentre as muitas manifestações existentes no país chamadas de congadas há uma específica dedicada a São Benedito, quase no extremo sul do Brasil, no Estado do Paraná: A Congada de São Benedito da Lapa. A Congada da Lapa é uma mistura de narrativas que envolvem a devoção a São Benedito e um desentendimento entre a embaixada da Rainha Ginga de Angola e o Rei do Congo, a respeito de qual destas personagens tem o direito ou o privilégio na primazia das homenagens ao Santo preto. Outra versão fala do mal-entendido relacionado a uma disputa entre o embaixador e o Rei pelo amor da Rainha Ginga. Esta Congada, porém, compõe o quadro das manifestações culturais típicas paranaenses e também está relacionada à devoção a São Benedito como forma de protesto disfarçado por parte dos negros escravizados do lugar durante o século XVIII.

O padroeiro oficial do município da Lapa, na realidade, é Santo Antônio. Porém, cultos de caráter rebelde e popular tornaram-se comuns na região da Lapa desde o período colonial. A crença em mitos, tais como o Monge da Gruta,

A Congada de Santa Efigênia em Carvalhópolis, Minas Gerais, e a representação da tríade santa negra: São Benedito, Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia. No estandarte, flores de plástico e fitas de cetim emolduram as imagens dos Santos.

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e o culto a santos negros, tais como São Benedito, burlaram as determinações da Igreja, criando manifestações culturais de grande participação popular como a Congada da Lapa. A despeito da instituição de Santo Antônio como padroeiro, a devoção transgressora a São Benedito resultou, inclusive, na construção de um santuário dedicado a ele, bem como na fundação da Irmandade de São Benedito da Lapa e no surgimento da Congada da Lapa.

É interessante perceber ainda que a Congada da Lapa é uma mistura. Nela estão presentes as três formas principais de cortejo ainda hoje praticadas no Brasil, segundo Ruben César Fernandes: as cívicas, as carnavalescas (ditas profanas) e as religiosas. O caráter cívico refere-se a sua dramaturgia, narrando um quiproquó diplomático imaginário entre dois reinos africanos. O aspecto carnavalesco, na verdade carnavalizado, apresenta a profanidade da manifestação, materializada em suas lutas coreografadas, nos cantos, nas indumentárias coloridas, declamações de textos, na execução da música percussiva, característica das folias de São Benedito, e pelo uso da rua como palco. Por fim, é obviamente uma manifestação religiosa em cortejo, pois que é um auto, por ser uma homenagem a São Benedito, realizada como parte das comemorações do período natalino e por, hoje em dia, ser permitida pelo padre da Paróquia de São Benedito.

Congada de São Benedito da Lapa, Paraná. No primeiro plano os nobres da realeza africana; ao fundo, o Santuário de São Benedito.

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Saindo do Sul do país e chegando ao Norte, outra manifestação grandiosa também é dedicada a São Benedito, e realizada há mais de duzentos anos na cidade de Bragança, no Estado do Pará. Uma das festividades beneditinas mais antigas no Estado do Pará, a Festividade do Glorioso São Benedito de Bragança, da qual faz parte a Marujada, grupo de irmãos associados à Irmandade, que dançam pelas ruas da cidade no mês de dezembro, foi iniciada por escravos no ano de 1798. Além de Bragança, outros municípios paraenses, há muitos anos, possuem em seu calendário de festas populares, festejos dedicados a São Benedito (Quatipuru, Tracuateua, Ananindeua, Gurupá, entre tantos outros dos cento e quarenta e três municípios que compõem o Estado).

A Marujada de Bragança (que na realidade é um grandioso grupo de dança) não possui personagens como os da Congada da Lapa, porém é composta por dançarinos devotos, os marujos e as marujas, que dançam ritmos derivados de danças praticadas pelos escravos à época da fundação da irmandade. Dentre os principais ritmos dançados pela Marujada, está o

Marujada de Bragança, Pará. Cortejo dançante, composto por marujos e marujas, que dançam pelas ruas da cidade e no Barracão da Marujada.

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retumbão, uma variação da sensual dança do lundu.

A visualidade da Marujada é uma das principais características da manifestação. Além de conduzir em seus cortejos a imagem de São Benedito e estandartes em homenagem ao Santo, o cortejo da marujada é tradicionalmente conhecido por sua indumentária. Homens vestem calça e camisa brancas, cinto preto e chapéu adornado com fita de cetim vermelha sobre a qual se aplica uma pequena rosa e um espelho oval. As mulheres usam longas saias vermelhas e blusas brancas; porém, o maior símbolo da maruja é o chapéu dourado, carregado de fitas de cetim coloridas e encimado por um adorno de penas de pata. Marujos e marujas andam sempre descalços e em determinados dias do festejo trocam o vermelho pelo azul. A Marujada, assim como a Congada da Lapa, é realizada no período das comemorações natalinas e com o consentimento da Igreja.

Entre Congadas e Marujadas, o que importa perceber é, antes de tudo, a abrangência da devoção a São Benedito no território nacional, bem como uma matriz comum no surgimento dos vários festejos a ele dedicados relacionada à escravidão e a busca de formas de manifestação da liberdade, por meio de folguedos populares onde a festa e a religião mascaram outras intenções.

Na Amazônia, a devoção a São Benedito é tão difusa quanto no resto do país e da mesma maneira diversificada. As festividades jurunenses, por exemplo, não sendo Congadas ou Marujadas, permanecem, entretanto, nas mesmas características sociais originárias de todas as outras festividades dedicadas a este Santo no resto do Brasil.

A relação entre o indivíduo amazônico seja ele negro, índio, ou mestiço de qualquer categoria, com a devoção a São Benedito, é sempre permeada pelo sentimento de intimidade e parentesco, em que surge também a concepção de santo “padroeiro”. As histórias de vida dos sujeitos quase tornam a figura do Santo em um parente próximo, como se pode ver no relato de Dona Venina

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em uma de suas falas durante a entrevista já mencionada, quando me revelou que para ela São Benedito seria como o avô que ela nunca teve, respondendo a pergunta que fiz a respeito do que significava a presença de São Benedito em sua vida:

Representa uma família, porque desde quando eu me entendi já tinha essa festividade aqui. Então eu passei pra mim e pros meus filhos que ele é nosso avô, porque é o avô que eu não conheci... Sim. Tá errado? Ou tá certo? É isso mesmo que eu sinto... O que é que eu posso fazer...? (risos).

Esse tipo de relação pessoal de intimidade entre o santo e o devoto é comum nas diversas localidades onde há devoções a São Benedito, tais como Bragança, ou como a Gurupá de algumas décadas passadas, pesquisada por Charles Wagley, em um trabalho extremamente valoroso para esta pesquisa.

Discorrendo sobre as devoções católicas em Itá (Gurupá), Wagley em seu trabalho “Uma comunidade amazônica”, com a narratividade típica da antropologia da primeira metade do século XX, tece seu texto da seguinte forma:

Deus e Cristo são adorados, porém a Virgem Maria e os santos têm maior relevo na religião local. Além disso, a devoção de seus habitantes concentra-se nos santos cujas imagens podem ser encontradas na igreja do lugar e nas pequenas capelas das localidades rurais, vizinhas, tais como as de Santo Antônio, São Benedito, São José, Santa Apolônia e a da Virgem Maria, que o povo identifica com as imagens. Santo Antônio e São Benedito, cujas imagens ocupam o altar-mor da igreja matriz, chegaram mesmo a ser visto à noite caminhando pelas ruas. O pai de Juca contou-lhe ter avistado os dois santos passeando certa noite sob as mangueiras da rua principal; usavam hábitos de monge e dirigiam-se à igreja, onde os viu entrar. Uma luz ascendeu-se no interior e em seguida a igreja

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voltou às escuras. No dia seguinte foi ele até a igreja e examinou ambas as imagens, verificando que tanto Santo Antônio quanto São Benedito tinham areia nos pés. (...). A história da vida de São Benedito como é relatada em Itá, representa-o com a tez escura e como um “escravo da casa de Nosso Senhor” – tendo a mesma cor e categoria dos antepassados da maioria das pessoas de classe mais baixa. (WAGLEY, 1988, p. 221-222). (Negritos meus).

Mais uma observação quanto à identificação dos devotos de São Benedito com a cor de sua pele e a qualidade de ser pobre. Não é novidade, no entanto, o fato de que São Benedito “anda” pelo meio do povo em grande intimidade com suas vidas e cotidiano. Portanto, como questionar Dona Venina, que lhe deu o lugar de seu próprio avô?

São Benedito popularizou-se entre os brasileiros por inúmeras razões, no entanto, a questão da cor de sua pele tal como a própria história de vida do santo, como ajudador dos pobres, o tornou uma figura particularmente identificável com o brasileiro, que já não se limitou mais aos escravos negros do século XVII.

Outro estudo interessante sobre o mesmo lugar, Gurupá, realizado por Eduardo Galvão e intitulado “Santos e visagens”, também em meados do século XX, traz um contexto onde o próprio Santo é discriminado por sua cor e diminuído em sua potência divina.

Um outro santo, porém, S. Benedito, é o mais querido na devoção do povo. Devotos de S. Antônio procuram dirimir-lhe o prestígio, afirmando-o “santo de pretos”, com a intenção manifesta de situar o seu culto como próprio a uma condição social inferior. Acrescentam que “não tem casa própria, vivendo de favor na casa de Santo Antônio”, ou “Santo Antônio é seu superior, que preto foi feito para servir aos brancos”, em alusão à cor do santo.

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Os que o cultuam respondem, por seu lado, que “é certo, S. Benedito vive em casa de Santo Antônio, mas é ele quem paga a casa”. (GALVÃO, 1976, p. 32). (Negritos meus).

Definitivamente, São Benedito no Brasil tornou-se um Santo de pretos e pobres, porém poderoso para seus devotos e popularíssimo em seus festejos, representante quase absoluto do tal catolicismo popular.

O tempo, tomando-se como exemplo a devoção a São Benedito desde Portugal até os municípios paraenses do século XXI, mostra que as formas de dominação eclesiásticas terminaram por gerar novas modalidades de religião católica, dentre as quais a popular: “passados cinco séculos de catequese racionalizadora, e uns anos de teologia da libertação, constatamos que o anúncio de uma ‘identidade social autônoma e soberana’ tem a repercussão dos pequenos números. É formador de minorias” (FERNANDES, 1994, p. 196).

Assim, é fácil compreender a concepção pejorativa do termo “popular” relacionado às manifestações não controladas pela Igreja, mesmo se dedicadas aos Santos oficiais do panteão católico.

A expressão é utilizada em sentidos diversos, nem sempre coincidentes. O termo “popular” designa “... o que pertence à ‘maioria dos homens’, porém também é utilizado no sentido daquilo ‘que pertence aos estratos inferiores da população’” (Pereira de Queiroz, 1983). Ademais, um outro atributo costuma ser invocado para caracterizar as “religiões populares”: seriam “extra-oficiais”, fora do controle e da regulamentação das autoridades instituídas, cultivadas pelos “leigos” em oposição à religiosidade clerical (Chauí, 1980). (FERNANDES, 1994, p. 217). (Negritos meus).

Porém, como já esclarecido, este trabalho não se utiliza dessa visão de “popular” para atribuir o adjetivo ao substantivo catolicismo. O que importa

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para esta pesquisa é compreender o caminho longo e inventivo que a devoção a São Benedito trilhou desde Palermo ainda no século XVI, passando por Portugal, pela Bahia, no século XVII, até chegar às margens do canal da Rua dos Timbiras, no início do século XX, com a realização da primeira festividade dirigida por Dona Teodora – jurunense, negra de poucas posses, descendente de escravos, católica afro-religiosa e festeira. Estes aspectos são fundamentais para compreender a dinâmica cultural e social presente nas festividades de São Benedito no Jurunas, principalmente considerando-as como reflexos históricos de uma extensa articulação simbólica estabelecida entre o Brasil e o catolicismo europeu trazido para cá pelos jesuítas e colonizadores.

REFERÊNCIAS

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BURKE, Peter. A cultura popular na Idade Média. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

ASCÂNIO BRANDÃO (Monsenhor). São Benedito: o santo preto. 4. ed. Belém: Grafipel, 1992.

CANEVACCI, Massimo. Sincretismos: uma exploração das hibridações culturais. Trad. Roberta Barni. São Paulo: Studio Nobel, 1996.

______. A cidade polifônica. Trad. Cecília Prada. São Paulo: Studio Nobel, 1993.

FERNANDES, Rubem César. Romarias da paixão. Rio de Janiero: Rocco, 1994.

______. Os cavaleiros do Bom Jesus: uma introdução às religiões populares. São Paulo: Brasiliense, 1982.

FERREIRA, Felipe. O livro de ouro do carnaval brasileiro. Coleção o Livro

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de Ouro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

GALVÃO, Eduardo. Santos e visagens. Um estudo da vida religiosa de Itá, Baixo Amazonas. 2. ed. São Paulo: Nacional; Brasília: INL, 1976.

PRIORI, Mary Del. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994.

RAMOS, Arthur. O negro brasileiro: etnografia religiosa e psicanálise. 2. ed. fac-similar. Recife: FUNDAJ; Massangana, 1988.

RODRIGUES, Carmem Izabel. Festividade de São Benedito: 1955 - 2005. Belém: Meridional, 2005.

______. Vem do bairro do Jurunas. Sociabilidade e construção de identidades em espaço urbano. Belém: Editora do NAEA, 2008.

WAGLEY, Charles. Uma comunidade amazônica. Estudo do homem nos trópicos. Tradução Clotilde da Silva Costa. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

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VARINHAS DE MOSQUEIRO:

Contribuição Afroindígena, Memória e Patrimônio Cultural

Renato Vieira de Souza (SEMEC)

Construção de memórias e heranças culturais a partir do autor

Memórias remotas, militâncias em favor da vida e dos saberes tradicionais que trazem em seu mote a experiência simbólica, constituída de sujeitos e suas narrações vividas, imersas em um mundo real que resiste ao tempo e suas abruptas transformações marcando a vivência humana: são estas instâncias da experiência que fomentam a construção de uma investigação cuja proposta é voltar às feições de nossa cosmologia representada nas falas, memórias e experiências estético-culturais amazônicas que perpassam a todos nós, seus filhos.

Não teria como falar disso sem citar minha experiência pessoal, inicialmente marcada pela curiosidade na infância. Nasci em Belém, num lar humilde no bairro da Cremação onde tive as primeiras sensações de ser amazônida por ser filho de marajoaras e aprender com suas experiências. Naquele tempo, costumava ouvir minha tia materna92

90 Nazaré (1928-1984), conhecida na família como Nenê, primogênita de cinco irmãs e um irmão, nascida e criada às margens do rio Ituquara, no município de Breves, no arquipélago do Marajó, lugar de muita natureza, traduzida nas memórias dos meus ascendentes e nas imagens raras do lugar, como a Fotografia 01, já bastante gasta pelo manuseio. Por nunca ter estado lá, talvez os nomes e as imagens formadas no pensamento continuem à espera de uma oportunidade de constatar de perto, ao menos, o que ainda restar de pé após tantas décadas.

Minha tia sempre falava que a vida era difícil sem as “melhorias da cidade” e que meus avós tinham se habituado desde a infância com a vida

92 As referências à ascendência materna se devem à vivência mais próxima do autor com esse tronco familiar desde a infância.

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simples, rústica, vivendo em harmonia com a floresta. Tertuliano, meu avô, era seringueiro desde bem jovem e se acostumara a lidar com as ameaças da selva, ensinando aos filhos e à esposa Virgínia algumas regras básicas de sobrevivência que foram facilmente assimiladas por todos, inclusive por tia Nenê, que sempre foi uma filha muito prestativa.

Ouvir lendas, receitas à base de ervas medicinais, conhecer variedade de frutos e artesanatos inspirados e confeccionados com o suporte da flora e da fauna marajoara, fomentou minha curiosidade pelo mundo dos nativos de tal forma que estar em ambientes característicos da cosmologia amazônica é como voltar ao lar onde reside meu espírito ancestral.

Quando nasci, meu avô já havia falecido e minha avó doente não viveria muito tempo para me narrar suas experiências, o que fez com que as histórias da tia Nenê ganhassem peso na minha formação psicológica. Para mim que nunca vi meu avô era interessante ouvir como ocorriam os tipos de caça e pesca comuns, bem como os processos de confecção da borracha, da farinha e do açaí que na minha infância tomava, batido na máquina de um vizinho todos os dias, não mais como era costume de toda a minha família desde que viviam no Ituquara.

Sentia um aperto ao saber que o vovô passava horas no mato colhendo o leite da seringa para ser vendido na cidade em troca de mantimentos, isso durante décadas, ao ponto de calejar mãos e pés que, segundo minha tia, “não tinha mais remédio que desse jeito”. Foi no proveito dessa vida na floresta que o jovem seringueiro envelheceu ao lado da esposa criando os filhos com dignidade, traço marcante desses homens marajoaras dos quais sinto orgulho de ser um de seus netos.

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Essas histórias da minha tia já não contavam mais com os recursos visuais da floresta, visto que desde que meu avô adoeceu para a morte, vieram quase todos da família para Belém em busca de recursos médicos. Em muitos momentos, quando se referia aos animais da mata, minha principal referência estava nos filmes que passavam na TV geralmente à tarde e, dentre os mais emblemáticos, o “Tarzan das Selvas” que lutava com os bichos e aparecia sempre como um herói invencível. Essa percepção do “herói” muito antes de ser desconstruída na minha mente, já sofria um questionamento: “se na selva existe um herói, por que meus parentes tiveram que sair de lá?”.

Na minha mente infantil não era fácil entender o fato de ter que sair de um lugar como a floresta se lá havia sempre alguém pra defender as pessoas em perigo (inclusive doentes como foi o caso de meu avô). Essa questão sempre vinha à minha mente, mas tinha vergonha de perguntar para a minha tia, com receio de que não me falasse mais nada. Por isso, resolvi questionar um amigo de um de meus primos, Tuca, de quem jamais esqueci o apelido e que foi decisivo em me esclarecer: “O Tarzan é do cinema. É o herói do cinema!”.

Fotog. 01 – Família de ribeirinhos com destaque para os avós em pé e tia Nazaré sentada à direita. Breves, margens do rio Ituquara.

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A partir daí comecei a perceber que os heróis são feitos por alguém.

Algum tempo depois entendi que esse alguém pode inclusive cair no erro de desprezar quem deveria ser o herói de verdade. Como o herói do cinema só aparecia na TV, podia considerar herói quem eu quisesse, inclusive meu avô falecido de quem minha tia era fã. A iluminação que tive não atenuou meu interesse pelas narrações de minha tia, nem minha vontade de ver o Tarzan e até ser como ele, brincando de herói e usando uma faca na cintura para cortar o capim que margeava a rua de casa. A ansiedade de estar na floresta continuou intacta, tanto que andar pelo mato e sentir seu cheiro era um prazer. Hoje entendo que tudo tinha estreita relação com as histórias de tia Nenê, histórias que nunca mais esqueci.

Ao narrar esses fatos incrustados na memória, pude perceber que tanto minha tia no passado quanto eu, no presente, atribuímos novos significados aos sentimentos e experiências pulsantes (SARRAF-PACHECO, 2009a). Esses pulsos reconhecidos como do natural psicológico humano os quais são citados por Gilbert Durand (1997) se mantiveram como registro ao longo da minha vida, sendo os principais responsáveis por minha inclinação às questões envolvendo arte, sociedade e ecologia, não se esgotando, contudo, nessas esferas, mas expandindo-se a partir delas para outras experiências vivenciais. Com isso, desde quando entrei na rede pública municipal em 2002 para lecionar Artes no distrito de Mosqueiro, ilha de Belém, vi surgir a possibilidade de interações mais aguçadas com o universo empírico onde as imagens compartilhadas por minha tia assaltam a memória deficitária da experiência concreta.

Como é do conhecimento de quem trabalha com o ensino de Artes, o cotidiano da sala de aula é um espaço propício para se deter diante de situações que têm em seu mister o inusitado, principalmente quando elas estão em pleno contato com permanentes mudanças cujo campo de experiências multiculturais é sempre atrativo. Nessa perspectiva, a convivência com

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indivíduos que reproduzem olhares marcados pela herança de tradições remotas é reveladora, sobretudo quando a interação se apresenta com históricos culturais ilesos, não investigados e, portanto, não revelados ao mundo, um laboratório aberto a intercâmbios com diversas possibilidades nas esferas científica, social, política e cultural.

De posse dessas informações é mais fácil entender o desejo de investigar que originou o que se apresenta nesse trabalho, bem como aonde se chegou até o momento no tangente ao patrimônio cultural e a tradição oral dos Marajós que se faz presente em Mosqueiro. Evidentemente, há muito a ser descoberto ainda e o que se tem pode ser entendido apenas como o ponto de partida para o encontro com um universo científico pouco conhecido e reconhecido pelo mundo moderno.

Mosqueiro, varinhas e outras descobertas

“Nós temos as nossas varinhas. Já conhece as nossas varinhas...?” Foi a pergunta a mim feita por uma mulher logo na minha primeira visita à comunidade do Caruaru em Mosqueiro, a qual se tornou o ponto de partida da investigação que desenvolvi desde 2009. Para esclarecer melhor o que me atraiu nessa frase e como tudo começou, devo voltar no tempo alguns anos.

Foi numa dessas circunstâncias acima mencionadas que em 2004 conheci um aluno de meia idade do supletivo voltado à Educação de Jovens e Adultos– EJA93

91, possuidor de uma rara sensibilidade na manipulação de cores. Além de combiná-las com destreza, ele as produzia artesanalmente com matéria-prima natural em tons primários e neutros. A informação ficou guardada durante algum tempo até que, enfim, decidi procurar mais elementos daquele trabalho.

Como tinha apenas o nome do aluno, ficou difícil localizá-lo, visto que não possuía familiares nas comunidades próximas e saber do seu

93 EJA – Programa do Governo Federal em parceria com a rede escolar nos municípios.

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paradeiro tornou-se uma tarefa difícil para alguém como eu, cheio de afazeres profissionais e pessoais. Então, decidi procurar os que tinham o hábito de produzir tintas a partir de matéria-prima natural. Foi-me passada informação de uma comunidade chamada Caruaru, localizada no interior da ilha, a cerca de quarenta minutos de barco da vila de Mosqueiro, onde, segundo se dizia, ainda havia uma tradição artesanal mantida por pescadores que confeccionavam tintas para uso geral.

No final de 2008, depois de algumas tentativas fracassadas, finalmente conheci o lugar ao qual os moradores de Mosqueiro se referiam como “sítio”. Era realmente o que se pode chamar de vila de pescadores com habitações de madeira e bucolismo, cercada de verde, onde o acesso aos produtos da cidade como a luz elétrica, instalada em 2005, era ainda recente. Ao entrevistar os sitiantes sobre a produção das tintas, deparei-me com a indiferença dos jovens pelo assunto, bem como pelo trabalho dos veteranos moradores e certo espírito saudosista dos adultos quanto à cultura artesanal.

A tradição que me aguçava parecia impopular com a chegada das tintas industrializadas, e a técnica de tirar esse produto da mata tinha sido abandonada já havia anos, assim como o ânimo de dar continuidade ao processo devido às praticidades modernas. Ainda nas primeiras averiguações, vi naufragar o projeto das tintas naturais e toda importância que ele teria se aqueles indivíduos a tivessem mantido em seu repertório cultural. Foi desagradável, mas isso não tirou meu ímpeto de estar entre essas pessoas, cuja forma e estilo de vida em intenso contato com a natureza despertava dentro de mim um misto de inveja, admiração e saudades da infância quando ouvia minha tia Nazaré e morava com meus pais numa casa que tinha um quintal grande, repleto de árvores onde eu me perdia escalando árvores e desbravando o mato durante maior parte do dia.

Passado um ano, já me tornara conhecido de alguns moradores os quais me contavam histórias do lugar e desabafavam seu descontentamento com a

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ausência do poder público. Nesse momento vexatório em que o lamento e a indignação contaminam qualquer um que se coloca no lugar daquela gente, foi que a professora das crianças da comunidade e também bordadeira do Caruaru, Leila do Socorro protagonizou a frase-destaque desse tópico: “Nós temos as nossas varinhas...!”.

Fotog. 02 – Varinhas confeccionadas na comunidade do Caruaru em Mosqueiro

Fonte: Acervo pessoal 2009

A palavra “varinhas” era nova para mim e soou naquele instante como um brinquedo infantil, imagem que se extinguiria do meu pensamento alguns minutos depois. Foi quando a professora veio de dentro de uma das salas da Unidade de Ensino portando um feixe de varas com figuras geométricas “desenhadas” bidimensionalmente (Fotografia 02). As varinhas são pedaços de madeira em formatos retilíneos com diâmetro regular variando de 0,7 cm a 3,0 cm e com extensão longitudinal de até mais de 1,00 metro.

As figuras têm várias opções de decoração sujeitas a quem as confecciona. A finalidade primeira dessas varinhas é ainda desconhecida, mas há pelo menos cinquenta anos elas têm sido vendidas como lembrança, símbolo de afeto e instrumento de conquista, daí terem se popularizado em Mosqueiro como “Varinhas do Amor”. Reza a tradição que se alguém der uma de presente à pessoa amada conquistará o seu coração. Rapidamente soube que apenas algumas mulheres da comunidade mantinham o costume de confeccionar aqueles objetos-símbolos da cultura afroindígena semelhantes a pequenos totens.

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O porquê de haver apenas mulheres nesse processo de confecção e o fato de tão poucas estarem envolvidas na atividade, diferentemente do que segundo elas teria acontecido no passado, foi um dado importante para o desenvolvimento da investigação. Entretanto, ao perceber os grafismos com mais cuidado e a maneira respeitável como tratavam aquele objeto, acabei me entusiasmando de vez. Os desenhos continham figuras geométricas que aprendi a reproduzir desde a infância, as quais se tornaram meu assunto preferido no Nível Médio de ensino quando estudei Edificações na Escola Técnica Federal94

92. Assim meu interesse crescia na história de Mosqueiro, na memória que se havia constituído em torno dos grafismos em varinhas e, principalmente, na relação de identidade local atribuídas pelas mulheres envolvidas na atividade.

Nesse texto quando há referência a “grafismo”, entendo como a relação possível com a pintura, a gravura ou o desenho, quer seja do ramo de estudo da arte primitiva ou rupestre da região, quer seja um fenômeno da cultura visual. No caso das varinhas, designadas pelas mulheres “bordadas”95

93, não pensei em um conceito específico, diferenciado do que elas mesmas utilizam e referente a essa técnica. Ainda que os grafismos sejam uma apropriação admitida dentro da tradição nativa ou trazida de uma cultura estrangeira e não-amazônica, convencionou-se utilizar aqui o termo adotado na tradição, sendo este também um meio de dar legitimidade às suas falas.

Imediatamente notei que as varinhas faziam parte de um repertório de artesanatos produzidos no lugar onde elas tinham destaque por serem como suas “filhas legítimas”. Esse objeto da cultura material havia se tornado uma prática coletiva na ilha, vasta em vegetação até a década de 1970 quando navios faziam a rota Belém-Mosqueiro-Soure, proporcionando não apenas lucros às famílias pobres, mas uma tradição artística coletiva perdida no tempo, reduzindo o costume de confeccionar bordados a algumas mulheres

94 Atualmente Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará – IFPA95 O termo bordadas é de uso corriqueiro das mulheres e corresponde à técnica da gravura, onde são feitas incisões na casca da madeira para formar os desenhos geométricos.

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no interior da ilha, como é o caso das que residem na comunidade do Caruaru. Também percebi haver no passado outros repertórios adormecidos – caso das ladainhas que se faziam antes de existir a capela de Santa Rosa de Lima na qual se rezam as missas no Caruaru – e mesmo extintos, que não perduraram por indiferença institucional, fragmentação social e outros motivos semelhantes os quais levaram à extinção das tintas artesanais.

Com esse conjunto de informações, foi possível sistematizarmos o que impressiona alguém que se dedica à pesquisa: a resistência do fenômeno artístico como ícone, um símbolo de uma identidade local, ainda que em alguns casos assuma características de memória cultural; identidade aqui, referindo-se ao conceito particularista de sociedade que resiste aos processos globais na tentativa de preservar seus traços culturais identitários (HALL, 2006). Com base na abordagem antropológica interpretativa de Clifford Geertz (2006) na qual a vivência dos indivíduos apresenta os códigos necessários à compreensão de um fenômeno artístico, comunidades como a do Maracajá e a ribeirinha do Caruaru tornaram-se os lócus da pesquisa na ilha de Mosqueiro. Entendi assim que a história do grafismo em varinhas na comunidade do Caruaru era remanescente de um fenômeno intenso.

No passado não muito distante havia uma atribuição mítica – inerente a povos da Amazônia e outras regiões muito antigas – a qual se tornou lucrativa no tempo dos navios vindos de Soure e Belém, agora resistente como simbolismo cultural, envolvido por um grupo pequeno que não abre mão desse objeto. Isso é evidente no pronome possessivo nossas, usado na introdução desse tópico, bem como nesse mundo peculiar das mulheres de Mosqueiro que preferem se identificar como “bordadeiras” ou mesmo “artistas”94.

Pensando na relação de identidade local à qual Geertz e Hall se referem em suas obras científicas e que populações tradicionais mantêm com seu 96 Na subseção 2.1 há argumentos que esclarecem o fato de não se referir a essas mulheres como “artesãs”, ainda que o conceito se aplique às suas práticas dentro de uma convenção internacional adotada. Esse conceito é discutidoe melhor explicado com contribuições de autores como Nestor Canclini, DonisDondis e Clifford Geertz.

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universo simbólico, busquei aprofundar o olhar investigativo na história de vida dessas pessoas. A sensação de que esse espírito identitário permeava toda a ilha, promoveu a fundamentação nas falas de outros moradores, no caso, parentes ou vizinhos das mulheres bordadeiras, remanescentes de décadas passadas que ainda estivessem morando em Mosqueiro. À princípio, parecia que tratávamos de poucas fontes que tinham testemunhado a época dos navios e o comércio de varinhas.

Esse pensamento perdurou até se estabelecer contato com a terceira fonte a qual apontou mais três pessoas que tinham sido bordadeiras na infância e adolescência, mas depois de conseguirem melhor ocupação e um bom casamento haviam abandonado a atividade. A partir disso obtive a compreensão de que eram tantos os sujeitos entre mulheres, suas filhas, vizinhos, amigos e outros parentes com alguma memória significante das varinhas que foi necessário optar por um universo restrito, representativo de entrevistados.

Contudo, o espírito identitário presente no grafismo em varinhas se fez notar com mais evidência no grupo de mulheres que tinha de alguma forma durante algum tempo mantido a prática de bordar varinhas e, de forma especial, as que ainda bordam. Sobre este grupo foi desenvolvido o argumento dessa investigação.Para resolver os pormenores do trabalho foi necessário conhecer a memória e as características da manifestação coletiva no passado, lançando mão dos relatos orais e imagens do presente remontando às ideias que dão sentido ao que se produz na atualidade (ALBERTI, 2005). Está presente nessa visão, a renovação temática e metodológica que a sociologia da cultura e os estudos culturais realizam sobre o presente. Entender o passado a partir de sua lógica, utilizando a cultura da memória como categoria investigativa segundo Beatriz Sarlo

... emaranha-se com a certeza de que isso, em primeiro lugar, é absolutamente possível, o que ameniza a complexidade do que se deseja reconstituir; e, em segundo lugar, de que isso se alcança quando nos colocamos na perspectiva de

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um sujeito e reconhecemos que a subjetividade tem um lugar apresentado com recursos que, em muitos casos, vêm daquilo que, desde meados do século XIX, a literatura experimentou como primeira pessoa do relato e discurso indireto livre: modos de subjetivação do narrado (2007, p.18).

Assim a autora defende um reordenamento ideológico e conceitual do passado e suas personagens, utilizando sua subjetivação como veículo. Nesse reordenamento, a cultura da memória compreende um espectro de apreensões, saberes e significados narrados e recriados pelos atores sociais. A subjetivação da memória ocorre na inter-relação das falas constituintes da cultura do passado com a dinâmica vivida no presente e essa ferramenta analítica permeia todo o estudo do fenômeno cultural em Mosqueiro. Além de captar a cultura da memória e a experiência do presente, também procurei contemplar a representação de uma identidade como patrimônio local, expressa nas falas das mulheres e materializada nas varinhas.

Ao olhar para o passado, sabemos que Mosqueiro tem se mantido um lugar permeado continuamente por um imperativo dominante intransigente. Ainda que assim não fosse, os milenares habitantes da região dificilmente conseguiriam evitar o esfacelamento de sua cultura diante de uma prerrogativa eurocêntrica que percebe culturas do índio e do negro como inferiores, selvagens, desprovidas de sofisticação e conhecimentos relevantes, portanto, sem espaço na história dos vencedores (SHOHAT; STAM, 2006).

Tal racionalidade afirmativa do positivismo secular é responsável pela extinção não só de saberes culturais milenares, mas de seus atributos visíveis contidos em um sistema vivo em equilíbrio: flora e fauna amazônicas em total relação com o ente humano, fornecendo-lhe alternativas, soluções e múltiplas experiências, algumas deduzíveis por resquícios materiais localizados que aqui se procura destacar.

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Nessa linha de pensamento, toda política colonial implantada corroborou para sedimentar valores hegemônicos, reconhecíveis na cultura como plataformas. Fazem parte dessa dinâmica a constituição étnica de Mosqueiro, a localização geográfica dos seus habitantes e a substituição do modelo econômico de subsistência pelo comércio de produtos, seja a matéria prima ou os manufaturados (BENCHIMOL, 1999)95.

Essa política, implantada ainda no século XVIII, sempre teve como destino o consumidor externo – ora a Igreja romana, ora a coroa imperial portuguesa – e ao longo dos últimos 150 anos, as elites dominantes instaladas na região tornam-se o alvo preferencial das benesses desse comércio, destacando-se o turismo na ilha. Aos legítimos herdeiros, restaram, via de regra, as “sobras” da riqueza vindas com os barões da borracha e os navios imponentes.

Antes disso, as tentativas de tomar o poder haviam fracassado com a ausência de planos concretos de emancipação proletária ainda na primeira metade do século XIX. Mesmo com o fim de um ciclo de desenvolvimento no qual as plataformas de segregação foram bastante perceptíveis, teve início uma nova etapa, que traz em sua patente a ausência de um projeto desenvolvimentista conectado à realidade sociocultural, admitindo o potencial ecológico do lugar.

Dessa forma, o resultado da pesquisa aqui apresentado buscou investigar a relação de identidade entre as bordadeiras e o artesanato em varinhas na ilha de Mosqueiro, levando em conta o histórico dessa relação. A resistência da tradição do grafismo, bem como outras variáveis contidas na experiência estética e no relato oral das bordadeiras é razão para a busca das raízes desse fenômeno que estão presentes na experiência humana dos indivíduos atuais, mas que se constroem em suas memórias e em sua constituição física, 97 Esse argumento serve para inúmeros fenômenos da modernidade na Amazônia. Embora aqui não convenha abordar, a pesquisa demonstrou que a substituição do modelo econômico se consolidou de forma tanto quanto agressiva em Soure, ilha do Marajó onde a tradição de se confeccionar varinhas também se mantém viva.

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revelando suas raízes culturais.

Agrego a essa discussão algumas questões não respondidas que têm a ver com a resistência das varinhas em meio ao advento da cultura de massa e a dimensão econômica como um dos pilares da reprodução e da sua resistência (BENJAMIN, 1994). Por isso, seja de que forma for, podemos perceber o grafismo das varinhas como um símbolo de uma cultura local à semelhança de outras manifestações artísticas que ocupam espaço na conjuntura contemporânea das artes visuais.

Mosqueiro na fala de seus moradores suas artistas bordadeiras

Alguns moradores da ilha afirmam em seus depoimentos que as varinhas bordadas teriam origem indígena perpassada de geração em geração com alguma finalidade remota que não se sabe precisar. Mesmo ao se falar da tradição indígena, os relatos são sempre inseguros, sem fontes confiáveis como um rumor que não se sabe de onde surge. Devido a isso, alguns apostam em que “veio do Marajó” e virou moda em Mosqueiro, uma afirmação conclusiva para eles que na prática não responde o que se pergunta.

O que se sabe mesmo é que a produção desse souvenir era farta e disseminada entre a população devido à facilidade que se tinha na época de encontrar a matéria-prima para a produção. A partir de 1976, com a inauguração da ponte de acesso ao continente, diminuem os roteiros de navio e há um incremento no comércio local. Desse modo, o avanço da urbanização e o desmatamento prejudicaram a coleta da matéria-prima. Esses motivos foram decisivos para a derrocada da tradição ainda na década de 1970. As falas das bordadeiras mostram que a ausência da mata próximo à zona urbana de Mosqueiro dificulta o ressurgimento dessa tradição local da forma como ocorria em décadas passadas.

Como se pode perceber, a informação a partir da fala das protagonistas dessa arte é de fundamental valor, pois contempla o conceito de História Oral

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que permite o conhecimento de “experiências e modos de vida de diferentes grupos sociais” por meio da memória (ALBERTI, 2005, p. 166). Além de possibilitar o acesso ao que denomina histórias dentro da história, a memória desses relatos, é essencial a um grupo porque está atrelada à construção de sua identidade. Ela [a memória] é

resultado de um trabalho de organização e de seleção do que é importante para o sentimento de unidade, de continuidade e de coerência – isto é, de identidade. E porque a memória é mutante, é possível falar de uma história das memórias de pessoas ou grupos, passível de ser estudada por meio de entrevistas de História Oral. (Ibid, 2005, p. 167)

A memória aqui é colocada como uma construção da História. De acordo com essa linha de raciocínio, os relatos orais são mecanismos capazes de descrever a identidade do grupo. As opções do grupo são basicamente definidas segundo critérios que mantém o processo de continuidade e coerência acima mencionados. O conceito de identidade não se refere aqui a um sentido ideológico que satisfez por muito tempo a plausibilidade científica da História, mas sim a uma dimensão antropológica defendida por Astor Diehl (2002). Segundo este autor, antropologizar é tornar inerente ao ser e sua construção vivencial que leva em conta aspectos sociais, biológicos e culturais. Por esse motivo, memória e identidade devem estar conectadas inclusive com as dimensões “tempo, espaço e movimento” (p.114) que problematizaram a historiografia moderna, pois a partir delas ampliam-se as possibilidades de análise dos elementos fornecidos pela História Oral.

Ao mencionar identidade, não se pretende reduzir a realidade a um discurso polarizado, mas o contrário disso. Numa análise do Massacre de Civitella Val de Chiana onde 115 italianos foram mortos num ataque nazista em 1944, Alessandro Portelli se refere à memória dividida onde se pensa:

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[estar] ‘lidando com diversas memórias fragmentadas e internamente divididas, todas, de uma forma ou de outra, ideológica e culturalmente mediadas’. O reconhecimento da diversidade constitui, portanto, a melhor alternativa para evitarmos a polaridade simplificadora entre ‘memória oficial’ e ‘memória dominada’ e realizarmos uma abordagem mais rica dos testemunhos (PORTELLI apud ALBERTI, 2005, pp.167-168).

A legitimação dessa diversidade é, portanto, o caminho mais lógico para que se evite a simplificação do discurso da memória oficial e da memória dominada que em certos momentos do passado ocasionou excessos. Perceber as memórias fragmentadas requer tato aguçado e atenção aos sentimentos de pertencimento comuns em comunidades tradicionais. Dessa forma, a autora concorda com Diehl quanto a uma coleta mais lúcida dos testemunhos orais e das dimensões que envolvem os relatos.

Atualmente, “a bucólica”, como a ela se referem seus visitantes veranistas, guarda na memória de seus moradores diversas experiências que fazem alusão às varinhas bordadas. Em outros tempos a facilidade de se obter informações sobre elas seria bem maior e diminuiria os esforços empreendidos no levantamento de dados. Entretanto, o que se encontrou no lugar é suficiente para uma análise razoável muito pautada na história de vida das mulheres e seus bordados, mesmo havendo insatisfações enraizadas no contínuo histórico que não se dissipou.

Tanto as bordadeiras quanto os moradores falam em políticas de inclusão social fomentadas em outros governos e que agora a falta de assistência prejudica a cadeia sustentável antes implantada. Assim como nos “Marajós”, cheios de história e cultura, os mosqueirenses são vistos como sujeitos incultos pelos políticos (SARRAF-PACHECO, 2009). Além da dimensão política, há um argumento presente que sugere a importância da experiência artística com o amparo econômico para a sua continuidade,

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sendo este um dado imprescindível na relação das mulheres com as varinhas.

O Maracajá é certamente um dos bairros mais antigos da ilha de Mosqueiro, mas para falar dele não se pode deixar de citar outro bairro, vizinho: a Vila, como é chamada a parte mais urbana da ilha, onde estão situados marcos históricos como o velho trapiche, a paróquia de Nossa Senhora do Ó de 1868, a Praça da Matriz e o principal mercado do distrito, onde antes funcionavam pequenos comércios (BAENA apud PREFEITURA, 2003).

Foi essa comunidade que viu se disseminar, ao longo do século XX, o intenso comércio de Varinhas do Amor. As referências desse tempo são ricas, bastando a qualquer pessoa o ato de caminhar com um exemplar delas pelas ruas para que logo apareçam as intervenções dos moradores veteranos: “Olha uma varinha!”, “isso foi uma febre!” ou “conheço quem bordava bem!”, geralmente se referindo aos anos de esplendor dos grafismos geométricos bordados por alguma parente de meia-idade, idosa ou já falecida.

É importante esclarecer que assim como muitas tradições artísticas da

Mapa 01 – Bairros de MosqueiroArte: Welington Morais

Fonte: www.mosqueirando.blogspot.com/#uds-search-results; acesso em 20/06/2011

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região amazônica, as varinhas bordadas se constituíram como uma prática de gênero que está relacionada com um histórico hegemônico conhecido. Relatos mostram quea tradição tornou-se uma atividade predominantemente feminina, visto que os homens desenvolviam trabalhos braçais como a caça, a pesca e a carpintaria enquanto suas vizinhas, parentes ou companheiras, ficavam em casa com as filhas bordando varinhas e ensinando-as para que as vendessem na chegada dos navios.

Essa posição oriunda do patriarcado que marca a mulher como um ser ingênuo, desprovido de força e papel social insignificante é tratado por Zuleika Alambert (2004) como preconceito. Os argumentos de que a mulher, devido à sua condição biológica, está fadada a ser dona-de-casa e cuidar dos filhos foram destituídos diante das conquistas femininas na modernidade. Nessa perspectiva, a mulher, assim como negros, índios e outros segmentos, têm importância na configuração do novo paradigma que exclui a intolerância protagonizada por grupos hegemônicos os quais fizeram a história ao seu modo:

Não podemos esquecer que os homens, como transmissores tradicionais da cultura na sociedade, incluindo o registro histórico, veicularam aquilo que consideravam e julgavam importante. Na medida em que as atividades femininas se diferenciavam das suas, elas foram consideradas sem significação e até indignas de menção (ALAMBERT, 2004, p.74).

A reafirmação desse paradigma explica em boa medida o porquê das varinhas nunca terem sido mencionadas como fenômeno da cultura visual nos livros de arte e história amazônica. A revisão da história das mentalidades, que marca o cotidiano, o individual e o privado, colocou em xeque o papel preponderante da família na sociedade, protagonizado pela mulher. A partir desse e de outros argumentos decisivos, não há mais espaço para uma visão reduzida e mascarada da mulher na sociedade.

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Entretanto, no semblante das bordadeiras parece nítido esse descaso, já que se conformam porque simplesmente “sempre foi assim” e não há como mudar. Sujeitam-se ao prazer de bordar, pois sempre deu lucro para as famílias pobres que chegavam a produzir grande número de varinhas por dia. Tanto interessava pela comercialização quanto pela facilidade em colher a matéria-prima: Mosqueiro tinha muita mata, principalmente nos arredores do bairro do Maracajá onde moram as veteranas bordadeiras (Mapa 01). Diz-se que “ninguém nunca precisou de semente pra plantar”, pois as árvores nasciam em todo lugar onde havia espaço.

Como representante dessas bordadeiras do Maracajá, sujeitos de memórias vívidas, apresenta-se dona Oscarina (Fotog. 03), casada, setenta e oito anos, mãe de nove filhos(três homens e seis mulheres, a primogênita já falecida) que ainda trabalha no mercado da vila de Mosqueiro vendendo frutas, hortaliças e algumas varinhas encomendadas da afilhada “Dica”, moradora da comunidade do Caruaru, sobre a qual falarei em detalhes posteriormente.

A feirante nunca se afastou totalmente de atividades criativas e durante mais de vinte e cinco anos manteve a tradição do “Boi Mirim” que era encenado e dançado nas ruas, sendo ela responsável pela indumentária das crianças (Fotografia03.1). Além do Boi, dona Oscarina ainda mantém o olhar artístico apurado, demonstrado nos enfeites caseiros que, de certa forma, dão credibilidade às suas falas quando se refere à tradição de bordar varinhas (Fotografia. 03.2).

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Fotografia 03 – Dona Oscarina

Fonte: Acervo pessoal (dezembro de 2010)

Fotografia 03.1 – Boi-mirim confeccionado por dona Oscarina.

Fotografia 03.2 – Flores de material plástico reaproveitado.

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A rotina da anciã é intensa, apesar da idade avançada. Acorda geralmente às cinco da manhã, faz alguns serviços domésticos e logo toma uma condução para estar no mercado da Vila antes das sete da manhã. O marido, ex-pescador e também idoso, é inapto pela saúde debilitada. Por isso, raramente sai de casa, exceto quando chega uma das filhas do casal que o leva para dar uma volta pela praça da Vila.

O expediente de dona Oscarina no mercado vai até o começo da tarde, quando volta para casa. O descanso é garantido pelo resto do dia. Na sala, ao lado do marido, ora está bordando um tecido, ora consertando uma roupa sem as típicas obrigações da vida moderna que a teriam forçado a mudar o estilo de vida cadenciado há muito tempo. A vizinhança é silenciosa e o aparelho de TV LCDnovo, presenteado por um dos filhos, passa boa parte do dia desligado.

O passado é pouco mencionado nas conversas, mas quando surge, é como o ímpeto de um vendaval, trazendo particularidades locais e experiências preciosas para se reconstituir o trajeto dos moradores do Maracajá e sua vivência artística pouco celebrada. A fala compassada e o português inculto revelam a simplicidade e a casualidade mestiça, imersas na tradição católica e nos rituais simbólicos que permeiam as relações sociais dos mosqueirenses. Ao ser questionada sobre a origem da confecção das varinhas e sua finalidade, dona Oscarina argumentou:

Era pra passeio! Nós fazia de vinte a trinta varinhas por dia lá na ponte. Nós saía de tardinha pra tirar a vara, nesse tempo tinha o campo do Botafogo que chamavam, nesse campo tinha muita vara... aí pra estrada tinha muita mata! Nesse tempo tinha o navio que encostava na ponte de tardinha e todo mundo comprava por Cr$ 0,20 centavos. Não foi só uma que fez, foi uma passando pra outra. Aí pro Maracajá tinha gente que fazia que só! Eram mais esperto!...faziam muito...exposição nunca teve, nunca teve representação,

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nunca fizeram nada pra saber como era que fazia o trabalho da gente. Só esse pessoal de fora, sempre quando vinha, eles pegavam e perguntavam como era pra fazer.(...) Às vezes mandavam fazer umas grossonas, mas tudo bordadinha. Tudo desenho a gente fazia. Nós sabia todos... já não era preciso se preocupar por desenho que a gente inventava da cabeça da gente mesmo...e surgiu aqui mesmo! (...) Nesse tempo aqui no Mosqueiro era uma pobreza danada, tudo o que entrava era lucro e a gente fazia isso que era pra ter um lucrozinho que não tinha (informação verbal)98

96.

Amistosamente, a idosa menciona detalhes contidos nas entrelinhas da questão como quem palestra sobre a história de um povo guerreiro. Ela começa o relato afirmando que a finalidade das varinhas era o desfile, ou “passeio” pelos logradouros da vila. Andar com as varinhas era, numa linguagem mais coloquial, fazer média, mas hoje se sabe que o hábito não se reduzia ao que a artista conta. Havia um desejo de conquista fundado em crenças populares que faziam com que os jovens se presenteassem mutuamente.

Para alguns, isso era verdadeiro, mas para outros, pouco importava; as falas demonstram que andar com as varinhas era mesmo elegante. Moradores antigos como seu Claudionor Wanzeler, professor aposentado e morador da Vila, fala de uma indumentária típica de mulheres-turistas que saiam para passear. Esta seria composta de um chapéu de palha e um tamanco de madeira tendo a varinha bordada como complemento, perfil identificado facilmente pelos ilhéus onde quer que as visitantes estivessem(Fotografia04).

Esse traje compôs a paisagem da ilha nas décadas de 1960 e 1970 principalmente a época do verão (informação verbal)99

97. A menção de dona Oscarina à “estrada” onde “tinha muita mata” alude a uma das principais avenidas atuais, a 16 de Novembro, que liga os bairros Vila e Chapéu Virado.

98 Dona Oscarina. Entrevista concedida ao autor. Mosqueiro, dez. 2010.99 Claudionor Wanzeler. Entrevista concedida ao autor. Mosqueiro, jun. 2011.

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O navio, que chegava sempre ao fim da tarde na Vila, garantia o sucesso na venda das varinhas a Cr$ 0,20 (vinte centavos de cruzeiro), valor irrisório até 1976, ano em que cessam as viagens em grandes navios para a ilha100

98. O valor baixo e a grande procura pelo produto justificariam o fato deste se tornar um objeto da cultura popular tão marcante para as gerações que vivenciaram a experiência e que guardam memórias preciosas desse tempo.

Dona Oscarina esclarece como aprendeu os bordados: “uma passando para a outra”, ou seja, o ensino do bordado era coletivo e mais acentuado no bairro do Maracajá, onde se vendia bem por haver muitas famílias bordando. Esse relato encontra eco em diversas falas, tanto de antigas bordadeiras quanto de suas descendentes. Ao que parece, as jovens da época não tinham opções variadas de lazer e o trabalho de colher varinhas para bordar, se tornou recreativo.

Parece-me evidente o valor desse hábito para a artista, ao se referir como uma atividade lúdica que redundava em proveito financeiro. A veterana ainda apresenta um claro lamento diante da indiferença por parte das instituições ao

100 Com Cr$ 0,20 centavos de cruzeiro em 1976 se comprava o pão francês de 100 gramas, que em 2011 custa em média, R$ 0,60 centavos de real (nota do autor).

Fotografia 04– Chapéu de palha e tamancos, que faziam parte da indumentária, juntamente com as varinhas ainda são vendidos no mercado de Mosqueiro.

Fonte: Acervo pessoal (2011).

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fenômeno cultural: “exposição nunca teve, nunca teve representação, nunca fizeram nada pra saber como era que fazia o trabalho da gente. Só esse pessoal de fora, sempre quando vinham, eles pegavam e perguntavam como era pra fazer.”

Na verdade as exposições acontecem periodicamente no espaço de eventos culturais denominado “Praia Bar”, às proximidades do trapiche da vila. Nele são expostos ainda hoje, diversos artesanatos típicos da região das ilhas de Belém como colares e brincos além de camisetas de lembrança. O que sustenta o argumento de dona Oscarina é o fato de nunca se ter fomentado exclusivamente a tradição das varinhas como um trabalho pertencente ao lugar, dando continuidade a um antigo costume da coletividade mosqueirense. Essa valorização vinha sempre dos turistas e demais visitantes que permaneceram encomendando varinhas mesmo após mais de trinta anos.

Outra informação que legitima dona Oscarina como artista diz respeito ao exercício criativo da anciã, pois não só imitava os grafismos, mas também criava outros desenhos. Tal situação teria se desconstruído ao longo dos anos pela ausência da prática e do aperfeiçoamento técnico. Por outro lado, poderia se tratar de um devaneio de dona Oscarina e seria fácil manter essa afirmação, não fossem os trabalhos confeccionados pela anciã dispostos em sua residência e registrados nesta seção que dão ideia do poder criativo e sensibilidade estética não apagados pelo tempo.

Dentre várias das histórias narradas por terceiros que trabalham no mercado da Vila próximo de dona Oscarina, algumas interessantes constam no depoimento de seu Dilermando Souza, o “Seu Menino”, dono de uma banca no mercado, herdada do pai, onde vende de tudo, inclusive varinhas encomendadas de uma das bordadeiras do Caruaru. Conta ele que sempre ouviu histórias das varinhas desde a infância quando, segundo ele, muita gente bordava em Mosqueiro.

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Seu Menino admite que elas tenham vindo do Marajó para Mosqueiro, pois há versões de vaqueiros visitantes que afirmariam ser de lá a invenção dos bordados, mas independente disso ele afirma ser uma “coisa que é nossa!”, pois a tradição de andar com varinhas era uma febre nas férias de julho que marcou a vida de todos na Vila. Como exemplo de algo assim, seu Menino conta que em julho de 2009 estava na banca quando viu uma senhora alta, já idosa, parar na frente das varinhas expostas em sua banca.

De repente ela passou a falar alto e ao mesmo tempo não conter as lágrimas. Em seguida, uns rapazes, identificados como seus filhos, vieram saber o que havia acontecido. Então ela contou que eram jovens ela e seu marido e estavam em Mosqueiro na década de 1970. Depois de conversarem, ele a presenteou com uma “Varinha do Amor” e a partir de então surgiu a intenção de namorar, o que aconteceu de fato. Eles ficaram noivos e casaram, fixando residência em São Paulo onde o rapaz residia. Depois de muitos anos vivendo distante, reencontrar as varinhas foi inesperado. Para ela, isso aqui representa muito (informação verbal)101

99.

Os depoimentos que relacionam as varinhas a casos de amor permeiam a vida dos moradores antigos. Mas os visitantes é que costumam guardar as memórias de situações inesperadas. Dona Oscarina diz ter ouvido muito e que nem precisou apelar para a vara porque já tinha encontrado o marido. Lamenta novamente a falta de esforço da Prefeitura para incentivar a tradição.

Assim como dona Oscarina, dona Nair, setenta e oito anos, mãe de dez filhos sendo um homem e nove mulheres, popularmente conhecida como “dona Neca” (Fotografia 05), é também moradora do Maracajá onde havia no passado grande quantidade de madeira para a produção de varinhas. Além de ser uma das mais antigas moradoras, ela é uma das artistas com boa memória do “Almirante Alexandrino” – navio desativado nos anos 1950 – e da estrutura do bairro até 1976, pouco iluminado, mas nem por isso perigoso. Ela fala com

101 Seu Menino. Relato informal concedido ao autor. Mosqueiro, ago. 2011.

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saudades dos tempos em que reunia as filhas para confeccionar as varinhas antes de o navio atracar no trapiche da Vila. Dona Neca é hoje, uma anciã aposentada que começou seu depoimento falando do motivo de ter começado a bordar varinhas:

É a curiosidade, né?...ficava olhando alguém passar com a varinha bordada...aí a gente ficava ...e já ia...às vezes inventava o desenho de cabeça (...) A gente via passar alguém na rua com a varinha e por curiosidade ia fazer...lá no mato tirar a varinha e em casa tirava medida e depois ia bordar...gravava o nome das pessoas que já mandavam pedir. As minhas filhas é que iam vender aqueles feixes de varinhas. Era tudo de lembrança! Quando tinha encomenda a gente já ia pro mato da Bitar...já teve encomenda de um monte de varinha pra São Paulo. Chegava em casa, a gente inventava todo tipo de desenho e às vezes deixava no meio da vara a casca preparada pra colocar o nome com a gilé. Graças a Deus eles vendiam bem. (...) Eu tinha dois irmãos... eles eram até analfabetos...não escreviam. Eles pegavam na faca e riscavam e cortavam, decoravam, desenhavam... mas a gente via aquilo por ver que a gente ainda tava tudo molecona...mas aí depois esqueci. Depois que eu me casei já mãe de filho é que eu fui perguntei. Eles eram rapazes adultos aí que faziam por fazer com faquinha. Ainda nem existia esse negócio de “bordar varinha pra vender”. Eles eram analfabetos e cortavam a Tapiririca, a Santa Clara que tinha antigamente. Não tem nada de índio não! Foi o pessoal do Maracajá mesmo! (informação verbal)102

100.

102 Dona Neca. Entrevista concedida ao autor. Mosqueiro, nov. 2010.

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Fotog. 05 – DonaNeca

Fonte: Acervo pessoal 2011.

Dona Neca fala da curiosidade ao ver as pessoas nas ruas de seu bairro portando varinhas, o que indica que a prática era muito forte no lugar. O exercício com o tempo lhe proporcionou tanta destreza a ponto de começar a também criar os bordados e os fazer sob encomenda implicando não mais na reprodução dos grafismos, mas na produção de motivos novos, o que, devido às limitações da artista que há muitos anos deixou a atividade, não se pôde comprovar. O hábito de gravar o nome das pessoas sob encomenda era comum e permanece vivo. Em geral se grava qualquer nome pedido, mas a tradição perpassada conta que no começo era para dar de presente a uma pessoa amada.

A anciã se refere a dois de seus irmãos mais velhos, falecidos há muitos anos que, com robusta experiência nas matas, tinham aprendido a colher e confeccionar varinhas com uso de canivete. Ainda na infância, ela demonstrava curiosidade com os grafismos geométricos, inclusive as madeiras usadas, colhidas ali próximo, onde está localizado o terreno da Fábrica Bitar ou “mato

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da Bitar” que ainda hoje dispõe de uma grande quantidade de Santa Clara, o tipo predileto para confeccionar os bordados.

Considerando os anos da infância e adolescência de dona Neca, essa memória dos irmãos se passaria na década de 1940 quando Mosqueiro era um lugarejo semi-urbanizado, cercado de matas onde o contato com produtos manufaturados como as lâminas de barbear usadas para bordar as varinhas atualmente era provavelmente incomum ou mesmo inexistente. Além do relato comum às demais bordadeiras sobre a finalidade comercial da produção das varinhas, destaca-se a afirmação de que os próprios moradores do Maracajá foram responsáveis pelo começo da tradição e não os índios, mesmo diante das evidências apontadas.

A afirmação de dona Neca teria importância, pois apontaria para os próprios sujeitos do Maracajá como responsáveis pela origem do fenômeno. A possibilidade remota daria muito mais legitimidade às mulheres bordadeiras enquanto reprodutoras de um patrimônio único da cultura material, tangível e genuinamente mosqueirense. Nesse sentido, a ilha teria um objeto visual com amparo institucional brasileiro (CAVALCANTI, 2008).

Entretanto, a probabilidade dessa afirmativa ser verdadeira é desprezível, visto que não se sustenta em qualquer documento histórico ou arqueológico da região, muito menos em outros depoimentos orais. Segundo Azevedo (1999),são vários os acontecimentos que corroboraram para o despovoamento indígena: em especial, a chegada dos negros e a posse da terra por Veiga Cabral na primeira metade do século XIX que, teoricamente, trouxe o elemento branco para a composição étnica do bairro (PREFEITURA, 2003).

Portanto, o Maracajá, e por extensão Mosqueiro, se estabeleceu como espaço de intervenções e atravessamentos culturais em vários momentos de sua história que não excluem as raízes multiculturais constitutivas de sua tradição simbólica, podendo ser africana, indígena, europeia, a fusão de duas

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ou de todas elas.

Os navios que aportavam no trapiche de Mosqueiro desde o século XIX trazendo turistas e demais visitantes cultivaram entre os moradores o hábito de apreciar a chegada dessas embarcações sempre nos fins de tarde. Assim como o Almirante Alexandrino é uma memória viva para dona Neca, o Presidente Vargas também, e não para apenas ela, mas para grande parte dos moradores que em suas memórias expressam a eles um sentimento de gratidão. Olhando por essa ótica, percebe-se nitidamente o que descreve Sarraf-Pacheco (2009a, p. 84): “no momento em que narram suas lembranças, recriam suas experiências, atribuindo-lhes novos sentidos a partir de sensações, sentimentos, emoções vividas que estavam recolhidas nos labirintos da memória”.

Essas sensações recolhidas nos recônditos da memória recriam as imagens que dizem ao presente espectador: antes não havia tanta gente no Maracajá. Eram poucas casas, pouca luz à noite e tinha muita mata para colher a matéria-prima das varinhas. A vida era difícil e cada oportunidade era bem aproveitada. Vender varinhas era a ocasião não só de faturar, mas de participar da festa, de se sentir inserido no mundo dos privilégios exclusivos dos abastados compradores, pelo menos, por alguns momentos nos fins de semana e nas férias, quando os navios vinham lotados de veranistas.

Olhando assim, ninguém acharia exagero pensar que o velho sonho de emancipação, pouco fruído pelos cabanos, continua por se realizar em Mosqueiro, mesmo depois de um século e meio. A velha política do colonizador não produziu apenas famílias de excluídos: afortunadamente também produziu cultura visual que reflete o local: um trajeto simbólico de resistência.

Alheia aos motivos hegemônicos que geram esses antagonismos, dona Neca demonstra satisfação com a entrevista e fala das varinhas bordadas com grande entusiasmo. Dona Neca não continuou a produzir enfeites caseiros em

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seu cotidiano, nem mesmo as filhas tiveram incentivo. A inserção da família no mercado de trabalho, segundo ela, desmotivou o costume de bordar e tornou mais atraente a vida e os prazeres modernos. Ao posar para a câmera digital, ela chama o marido e diz “hoje a foto sai na hora... na nossa época demorava uma semana!”.

O marido confirma dizendo que os filmes eram levados para Belém de navio. O fotógrafo só aparecia uma semana depois com o resultado que nunca se sabia se era satisfatório. Pensativo, o marido de dona Neca olha para o nada como se voltasse aos tempos escondidos no pensamento e sussurra: “Tudo mudou...” Ao ver o companheiro afirmar isso, a veterana demonstra que nem tudo é ruim no mundo da modernidade. Certamente é um mundo mais perigoso, mas tudo é também, segundo ela, mais fácil do que antes.

Considerações transitórias

Os relatos das bordadeiras do Maracajá apontam em direção a uma atividade coletiva, vivenciada pelo gênero feminino, que via no mito da Varinha do Amor uma alternativa de ganho financeiro, mas também uma forma de expressar imaginação que como cultura imaterial também é patrimônio (CAVALCANTI, 2008). Esse trabalho tinha suporte nos desembarcados que compravam em grande quantidade para ter de lembrança, presentear alguém ou apenas desfilar pelas ruas.

A memória traz à tona a dimensão artística nesse trabalho, produzido a partir do processo de criação, tendo uma matriz iconográfica comum que se fixou historicamente como símbolo, patenteado nas falas das que detinham dessa prática. O que se tem de interessante no registro das memórias é que, além da prática e do interesse juvenil e institucional (leia-se, governamental, que no passado não se consolidou), nada se perdeu. Havendo mato para colher varinhas, bordadeiras e os turistas de veraneio, a experiência, provavelmente seria semelhante aos tempos dos navios. Embora a tradição tenha sucumbido

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no bairro do Maracajá, a identidade na fala das bordadeiras se mostra viva, e sua continuidade estará mantida se houver atitude por parte daquelas que herdaram a tradição e as necessárias condições de manejo da floresta.

Conforme vimos, a experiência simbólica no estuário marajoara tem sido um caminho traçado há várias gerações numa busca de manter significados ancestrais que não se perderam e de estabelecer construções possíveis no contato com o cenário da modernidade. As memórias trazem figuras de um tempo cadenciado, envolvido no bucolismo entre o trabalho feminino de bordar varinhas e a chegada dos navios que presenteava a população com festa.

A fala das bordadeiras, artistas e outros sujeitos estão repletas de significações do passado que tentam se articular com o presente, ainda que este se mostre arredio às tentativas de entrelaçamento. O que é real nesse mundo parece ser mesmo a permissão, a abertura às mais diversas formas de manifestação da fé, da expressão sexual e cultural no mais convincente modo de legitimação da diversidade. Parece muito atraente, mas a verdade é que a liberdade tornou-se estratégica por seu sentido descartável, mascarando processos de luta e tensão (BHABHA, 2003). Esse conflito se mostra quando nos relatos há um velado pedido de socorro para manter viva a tradição das varinhas. Seus algozes seriam o desmatamento, o extrativismo mineral, a indiferença dos filhos e filhas para com sua cultura, a desunião entre os membros das comunidades e a inoperância dos governantes.

No bojo de todas essas situações, coloca-se a tradição como oriunda do contexto comunitário, no qual, em tese, haveria fortes laços afetivos entre seus membros. Ao que parece, esse modelo de comunidade é mais uma idealização de relacionamentos identitários do que uma realidade (HALL, 2003) e os fatos mostram grupos heterogêneos em contraponto a grupos íntegros e harmônicos, assim defendidos por alguns teóricos sociais.

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Nas comunidades observadas em Mosqueiro, verificamos o conflito, o jogo de interesses, o rompimento com o passado e a abertura a novas experiências que conjugam o tradicional e o novo no mesmo espaço antropológico. Surge esse novo perfil de comunidade em conflito com o conhecimento passado, mas que ainda o busca, embora seja adepta do consumo e de comportamentos sociais urbanos, típicos da indústria cultural. É assim que:

Jovens de todas as comunidades expressam certa fidelidade às “tradições” de origem, ao mesmo tempo em que demonstram um declínio visível em sua prática concreta. Declaram não uma identidade primordial, mas uma escolha de posição do grupo ao qual desejam ser associados. As escolhas identitárias são mais políticas que antropológicas, mais “associativas”, menos designadas. (MODOOD apud HALL, 2003, p.67)

Não é conveniente generalizarmos o termo tradição ao nos referirmos a um contexto fluido, em plena transformação. Como vemos, enquanto algumas pessoas olham para as varinhas bordadas como um “pedaço de pau” outras as consideram talvez mais que um símbolo, um estatuto de sua identidade local, materializada nas gravuras geométricas. Esse, segundo Hall, seria um sintoma importante do hibridismo, que não se aplica a indivíduos híbridos, mas à tradução cultural que não se completa, permanecendo em sua indecidibilidade.

A reflexão sugere uma resposta que aqui não pretendo dar em minhas considerações transitórias. Refletir nas histórias de vida dessas pessoas talvez leve o leitor a reflexões bem mais relevantes do que suponho ao responder a questão acima. Algumas considerações dizem da identidade cultural dessa gente e seu amor a um objeto simples. Outras mostram a importância de seu patrimônio natural notável nas matas, rios, costumes e crenças. Seja por qual caminho seguir, certamente, os encontros serão surpreendentes, da mesma forma como foi o primeiro contato deste aprendiz pesquisador com um objeto tão significante como a varinha do amor.

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VIDAL, Lux (org.). Grafismo indígena: estudos de antropologia estética. São Paulo: Studio Nobel: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 1992.

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Registros Orais

Edicinamar de Nazaré da Rocha e Silva (Baxinha). Soure, ago. 2011 a jan. 2012.

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Humberto Nascimento de Araújo (Beto). Mosqueiro, jun. 2011.

Leila do Socorro Araújo Cunha. Mosqueiro, nov. 2009 a jul. 2011.

Nair Lima da Silva (dona Neca). Mosqueiro, nov. 2010 a jun. 2011.

Oscarina Silva Pires. Mosqueiro, dez. 2010 a mai 2011.

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USINA CONTEMPORÂNEA DE TEATRO EM MEMÓRIAS E IDENTIDADES

Valéria Frota de Andrade (ETEDUFPA)

Nós somos mais que cinco. Somos vários em únicos. Batendo nas portas fechadas e entrando sem pagar couvert. Somos vários em únicos.

Vários momentos, vários lugares, nós somos um baralho. E diversas cartas. Um menestrel ou um velho cancioneiro esquecido saído dos porões da história.

Beto Paiva. Data certa não indicada [1989].

Entrando em cena – uma introdução

Atualmente, o cenário brasileiro teatral comporta uma enorme diversidade de propostas, as quais encontram expressão através das mais variadas estéticas e formas de organização. Contudo, o teatro de grupo tem se mostrado a alternativa mais propícia para a viabilização de experiências, sobretudo as realizadas por jovens atores egressos dos cursos e escolas espalhados pelo país. Artistas que buscam uma expressão própria, para além do teatro comercial ou dos projetos individuais que reúnem elencos circunstancialmente.

O grupo Usina Contemporânea de Teatro encontra-se inserido em tal movimento ao longo de vinte e dois anos não apenas produzindo espetáculos, mas também descobrindo formas particulares do fazer coletivo, no qual as relações pessoais têm especial valor. Foi o que pude constatar ao longo da pesquisa voltada à trajetória do grupo sob os vieses da memória e da identidade, como representações capazes (quiçá!) de traduzir o que é “ser Usina” e qual a sua importância para os artistas que dele fizeram ou fazem parte, entre os quais eu me incluo.

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É preciso ressaltar que o meu ponto de vista esteve, em larga medida, balizado e até mesmo comprometido pelo envolvimento com o grupo que há dezessete anos– então já consolidado, com oito espetáculos em apenas quatro anos de existência- me acolhia. Eu, uma paulistana filha de nordestinos, estrangeira experimentando uma experiência diaspórica em solo brasileiro, quando casualmente vim morar em Belém do Pará. Tive, com isso, oportunidade de ser “testemunha ocular” de parte da história narrada na dissertação intitulada Com a cara lavada e a mala nas costas – memória e identidade na trajetória do Usina Contemporânea de Teatro (1989–2011)101. Mais do que o testemunho, no Usina tive a oportunidade de vivenciar processos que foram uma verdadeira escola. Mais do que a formação empírica, ganhei companheiros de trabalho e amigos preciosos, aos quais, presentes ou não, rendo minhas sinceras homenagens.

A afetividade mostrou-se um vínculo fundamental entre os “usineiros”, levando-me aos conceitos de convívio teatral, desenvolvido pelo argentino Jorge Dubatti, e o de estruturas de sentimento, de Raymond Williams, para analisar alguns aspectos da trajetória e identidade do grupo. O primeiro propõe a ideia do encontro como condição para o acontecimento teatral:o encontro que se dá entre os criadores, até a forma como se constitui o espaço do espectador, passando pela própria configuração da poética. Já o conceito de estrutura de sentimento, no âmbito dos estudos culturais, deveu-se à ênfase nas particularidades de cada experiência vivida e na forma como tais experiências se articularam às mudanças culturais e sociais, permitindo sublinhar a maneira como o Usina integrou-se a um período histórico de grandes transformações e em que medida compartilhou da estrutura de sentimento predominante. Ao valorizar aspectos contraditórios e moventes da experiência, Williams destaca a importância de observar os tons e os desejos manifestados, tanto quanto as convenções estabelecidas. Cada um desses conceitos 103 Dissertação defendida em junho de 2012, com orientação do Prof. Dr. Agenor Sarraf e coorientação da Profª Drª Karine Jansen, por meio do Programa de Pós-graduação em Artes do ICA – Instituto de Ciências da Arte.

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se desenvolve a partir de horizontes muito particulares, possuindo, a meu ver, pontos de contato. A seu modo, ambos ressaltam o caráter de experiência viva dos sujeitos da pesquisa.

Evidentemente, não se pode resgatar a trajetória do grupo, mas sim, tentar conduzir o leitor por meio de um determinado enquadramento, atualizando o passado pelos olhos do presente, num constante processo de criação, gestado em teias de lembranças e esquecimentos. Por isso a memória revelou-se um vastíssimo campo, servindo de caminho para chegar a traços identitários do grupo, sob a perspectiva da interferência mútua entre memória e identidade, por meio da qual se produz uma trajetória de vida. Esta complexa relação é assim descrita por JoëlCandau:

A memória, ao mesmo tempo em que nos modela, é também por nós modelada. Isto resume perfeitamente a dialética da memória e da identidade que se conjugam, se nutrem mutuamente, se apóiam uma na outra para produzir uma trajetória de vida, uma história, um mito, uma narrativa. Ao final, resta apenas o esquecimento (CANDAU, 2011, p. 16).

Além de serem representações ambíguas, segundo o autor, os conceitos de memória e identidade comportam múltiplos significados e abordagens. A priori, a memória é a “reconstrução continuamente atualizada do passado, mais um enquadramento do que um conteúdo” (CANDAU, 2011, p. 9). A identidade é abordada segundo a perspectiva de polissemia e fluidez atribuída por Stuart Hall, que admite falarmos “a partir de um lugar e de um tempo em particular, a partir de uma história e de uma cultura que são específicas” (2006, p. 22), e ressalta que a identidade cultural não possui uma essência fixa, inalterável.

Ainda que se saiba o quanto pode ser imprecisa a reconstituição de um quadro por meio da memória, dada a sua seletividade e capacidade de transformação ao mover-se entre os meandros do esquecimento, não se pode

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negar sua importância para o conhecimento do passado, bem como para pensar o presente. Nas palavras do autor, “pela retrospecção o homem aprende a suportar a duração: juntando os pedaços do que foi numa nova imagem que poderá talvez ajudá-lo a encarar sua vida presente” (CANDAU, 2011, p. 15) e, claro, a projetar o futuro.

O caráter mutável e relativo da identidade também é assinalado por Maffesoli, ao afirmar que “o eu só é uma frágil construção, ele não tem substância própria, mas se produz através das situações e experiências que o moldam num perpétuo jogo de esconde-esconde” (MAFFESOLI, 1999, p. 304). O filósofo francês destaca a multiplicidade de interferências com o mundo circundante a definir o indivíduo, tornando o sujeito um “efeito de composição”, numa abordagem que pensa este sujeito a partir do outro, da alteridade. No caso do Usina, essa “pulsão da troca” se basearia na diversidade de experiências, ao se organizar de forma semelhante a uma cooperativa, preservando o mesmo espaço para várias proposições, resultando, portanto, das diversas composições efetuadas entre os seus integrantes, das muitas identificações que possibilitaram o delineamento de diferentes projetos e estéticas.

Neste sentido, os horizontes metodológicos da História Oral, campo de estudo estreitamente ligado às lembranças individuais e que reconhece as múltiplas abordagens da verdade, fizeram-me privilegiar os relatos e depoimentos para a construção da narrativa. Foram escolhidos como narradores todos aqueles que integraram o primeiro núcleo do Usina: Wlad Lima104

102, Karine Jansen105103, Alberto Silva Neto106

104, Anibal Pacha107105, Josianne Dias108

106,

104 Atriz, diretora, pesquisadora, cenógrafa e professora da Escola de Teatro e Dança e do PPGArtes na UFPA, fundadora de diversos grupos teatrais da cidade de Belém. 105 Atriz, diretora, pesquisadora e professora da Escola de Teatro e Dança e do PPGArtes na UFPA.106 Ator, diretor e professor da Escola de Teatro e Dança da UFPA.107 Ator, diretor, bonequeiro, artista plástico, cenógrafo, figurinista e professor da Escola de Teatro e Dança da UFPA. Fundador e integrante da In Bust Teatro com Bonecos, grupo criado em 1996.108 Atriz, cantora lírica e professora no Curso de Terapia Ocupacional da UEPA, mais conhecida como Anne Dias.

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Leo Bitar109107, Nando Lima110

108

e Beto Paiva111109, que deixou aqui seu testemunho

através de textos esparsos, diários de trabalho, enfim, da sua existência em nossas memórias.

Segundo Alessandro Portelli, as histórias são sempre abertas, provisórias e parciais devido à mudança das pessoas: “os narradores examinam a imagem de seu próprio passado enquanto caminham” (2004, p. 298). Foi pertinente observar a perspectiva da história de vida como algo pulsante, em permanente evolução. O autor assinala, ainda, que isso requer uma atenção do pesquisador para a consequente necessidade de modificar procedimentos narrativos, o que implica em uma nova postura: “Falar sobre o ‘outro’ como sujeito está longe de ser suficiente, se não nos enxergarmos entre outros e se não colocarmos o tempo em nós mesmos e nós mesmos no tempo” (PORTELLI, 2004, p. 313).

As transformações ocorridas no teatro brasileiro ao longo das últimas cinco décadas têm propiciado diversas perspectivas de investigação aos grupos. O treinamento do ator, a ocupação de espaços não convencionais, o diálogo com a realidade social e política, a exploração de diversos indutores são apenas alguns dos focos dos inúmeros coletivos que compõem o cenário no qual o Usina se insere. Suas criações deixam entrever o diálogo com as tendências mais gerais do teatro em âmbito nacional, por meio de influências diversas, num constante processo de mudança e atualização, correspondendo ao caráter mutável das identidades, conforme observa Stuart Hall: “as identidades são os nomes que damos às diferentes formas como somos posicionados pelas narrativas do passado e como nos posicionamos dentro delas” (2006, p. 24).

Destaco, além do afeto entre os integrantes, o forte sentido de coletividade como uma das principais características, ainda que o grupo tenha se multiplicado em diferentes núcleos de criação, experimentando o teatro

109 Ator, sonoplasta e designer de som para teatro e cinema.110 Ator, diretor, artista visual, desenvolve trabalhos envolvendo o teatro e outras mídias.111 Roberto Paiva foi ator, diretor e jornalista, mais conhecido como Beto Paiva. Faleceu em Belém, em 1997.

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de rua, o teatro multimídia, o teatro de animação, e mais recentemente, as pesquisas sobre o homem amazônico. Núcleos que permitiram, inclusive, a possibilidade de trânsito entre outros grupos da cidade e períodos de afastamento dos integrantes, sem que isso tenha enfraquecido o sentimento de ser Usina, como é possível perceber no depoimento de Karine Jansen, registrado em um diário de trabalho:

(...) vivo há muitos anos nessa floresta: Usina. Tenho a impressão que não conseguiria mais ficar longe dela nem mais uma hora. Mas a gente é povo estranho e temos um jeito de ajudar que às vezes faz as pessoas correrem, faltarem, adoecerem, mas tudo passa, a dor, o medo, a insegurança, a angústia. No fundo, bem lá no fundo do coração somos um povo feliz. Pois, dentro dessa floresta, caímos em poço, pisamos em bosta, nos ferimos, complicamos joelhos e pés, mas sobrevivemos (Karine Jansen. Diário de trabalho de A Vida é Sonho, 13 setembro de 1997).

Em seu discurso, Karine assinala algo que marca o grupo e o torna diferente dos outros. Isso decorre, por sua vez, das características individuais dos integrantes, fazendo saltar uma relação dialética entre indivíduo e coletivo. No que a atriz diz ser um diário de sua vida dentro e fora do ensaio, revela-se uma espécie de autodefinição que parte de algo muito pessoal e acaba alcançando a esfera do coletivo. Esse aspecto fica muito claro na afirmação de Butler:

As identificações pertencem ao imaginário, elas são esforços fantasmáticos de alinhamento, de lealdade, de coabitações ambíguas e intercorporais. Elas desestabilizam o eu; elas são a sedimentação do ‘nós’ na constituição de qualquer eu; elas constituem a estruturação presente da alteridade, contida na formulação mesma do eu (Butler, 1993, p. 105 apud HALL, 2008, p. 130).

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Identificações diversas resultaram em um processo movido pelo sentimento de vinculação entre os integrantes através de parcerias artísticas estabelecidas e gradualmente consolidadas com o tempo ou também de parcerias pontuais. A configuração desse coletivo me remeteu à noção de teatro de grupo que, segundo Guinsburg, começou a circular de forma mais insistente no ambiente teatral brasileiro na década de oitenta. Afinal, foi preciso tentar compreender não apenas o contexto em que o Usina está inserido, mas também as motivações para o seu surgimento e as estratégias atuais de manutenção.

Acerca da noção de teatro de grupo, Kil Abreu, crítico teatral paraense residente em São Paulo, afirma:

O que marca a existência do grupo, no sentido que nos interessa, é uma Experiência comum colocada em perspectiva. (...) Trata-se, antes, de um projeto estético, de um conjunto de práticas marcadas pelo procedimento processual e em atividade continuada, pela experimentação e pela especulação criativa, que pode inclusive se desdobrar ou alimentar desejos de intervenção de outra ordem que não a estritamente artística (ABREU, 2008, p. 22).

A diluição da divisão rígida entre as funções artísticas, a durabilidade, a precariedade, a opção por não se inserir em um circuito comercial, o engajamento político são aspectos as quais, quase sempre, ligam o teatro de grupo ao teatro alternativo ou amador, enquanto “um teatro intelectual que se propunha a pensar sobre a sua produção e sobre uma sociedade mais democrática, contrapondo-se à ideia de profissional” (JANSEN, 2009, p. 89). Com o Usina não foi diferente, tornando visíveis maneiras particulares de se estruturar, como observa Beatrice Picon-Vallin:

O elo no teatro de grupo (...) é um conjunto de convicções partilhadas e que comprometem cada uma das pessoas

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envolvidas; é a consciência de viver uma aventura única; é o respeito às regras do jogo específicas daquele grupo, que o público conhece e aprova (PICON-VALLIN, 2008, p. 84).

A exemplo de outros grupos paraenses, o Usina resiste, apesar da quase absoluta inexistência de financiamento público que propicie a continuidade do trabalho. Nos vinte e dois anos de percurso, constituiu-se (e assim permanece) em um espaço de compartilhar ideias, pesquisar, descobrir, rir junto, brigar, negociar, dividir angústias, somar forças para enfrentar perdas; espaço, enfim, de amizade, de amor, de afeto, de comunhão, de alegria pelo encontro em cena, como podemos perceber neste depoimento de Alberto Silva Neto:

O Usina é mais do que um grupo de teatro, pra todo mundo que fez parte dele um dia. O Usina é como se fosse uma extensão da minha própria vida e da minha própria experiência como artista de teatro. É como se ele, mesmo diluído, mesmo sentindo saudade de pessoas que não estão mais aqui, é como se ele ainda fosse uma família, o carinho, a preocupação que eu tenho, a amizade, profunda e recíproca, que eu tenho com todas as pessoas com as quais eu trabalhei no Usina, se alimenta a cada dia, se renova a cada dia, e não se parece com as relações que eu tenho com nenhum outros integrantes de outros grupos com os quais eu trabalhei. Isso permanece um mistério do Usina que um dia talvez encontre uma explicação (Alberto Silva Neto. Depoimento cedido à autora em agosto de 2011).

As diversas experiências pessoais articulavam-se através de uma teia de relações estabelecidas a partir do afeto, aquele “lugar entre as pessoas em que elas percebem que não ‘são’ uma coisa em si, mas que ‘são’ naquilo que se mistura com os outros” (DIAZ, 2012, p. 89). Dimensão contemplada, no meu entender, pela ideia do “estar-junto” de Maffesoli: “É certamente

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porque há a prevalência do conjunto sobre o particular, ou seja, do outro, que se podem reconhecer os outros em si” (1999, p. 311). Isso traduz o que percebo no Usina: um contínuo amalgamar de individualidades, construindo e refazendo identidades pessoais e coletivas sob inferências diversas – sentimentais e artísticas, resultando em respeito e admiração.

No campo da pesquisa histórica, a despeito da efemeridade de sua cena, o teatro adquire o estatuto de acontecimento, possuindo um tempo e um lugar, segundo Rosangela Patriota. A autora afirma que ele “sobrevive por meio da memória daqueles que dele participaram, como artistas e como público, e pelos fragmentos que compuseram a sua existência” (PATRIOTA, 2004, p. 241). Recorrer aos documentos disponíveis (roteiros, fotografias, diários de trabalho, projetos, programas, cartazes, anotações, vídeos, matérias e críticas de jornal)contribuiu para a tentativa de estabelecer um diálogo capaz de potencializar as informações neles contidas, selecionando aspectos relevantes e momentos significativos.

De acordo com Peter Burke, esta tem sido uma prerrogativa das recentes linhas historiográficas, que têm o cotidiano e as mentalidades como fontes e não apenas eventos políticos, tendências econômicas e estruturas sociais: “(...) lança-se mão, cada vez mais, de uma gama mais abrangente de evidências, na qual as imagens têm o seu lugar ao lado de textos literários e testemunhos orais” (1992, p. 17). Burke ressalta o poder de comunicação das imagens, não sem advertir sobre os perigos do seu uso: “Imagens são irremediavelmente mudas” (1992, p. 43), o que reforça a escolha da Análise de Documentos Escritos e Visuais como segunda metodologia.

Além do entrecruzamento das noções de memória e identidade, é preciso fazer algumas considerações sobre a articulação entre memória e história. À concepção mais tradicional de história cujo eixo é a

interpretação e distanciamento crítico do passado, contrapõe-se a memória, que implica sempre uma

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participação emotiva em relação a ele, que é sempre vaga, fragmentária, incompleta, sempre tendenciosa em alguma medida (ROSSI, 2010, p. 28).

Porém, autores como Pierre Nora veem na história a incompletude e superficialidade inerentes à operação intelectual, enquanto a memória, fenômeno sempre atual, guarda o espaço do sagrado, do afetivo, constituindo-se “segredo da identidade” (1993, p. 18). Nesse rastro, destacam-se as vertentes mais recentes da historiografia, como a história do tempo presente, que se caracteriza pela unidade temporal do sujeito e objeto; a micro-história, em que o particular tem especial importância para a definição específica do contexto e as pequenas indicações são tomadas como paradigmas científicos; as micronarrativas, cujo pressuposto é que acontecimentos da vida cotidiana podem iluminar as estruturas sociais; a história oral, que ao tratar de subjetividade, memória, discurso e diálogo, reconhece as múltiplas abordagens do passado. Todas levam a pensar numa comunicação crescente entre história e memória, contribuindo para diluir fronteiras rígidas entre tais conceitos.

Peter Burke ressalta, inclusive, a necessidade de os narradores históricos tornarem-se visíveis em suas narrativas, procurando formas mais adequadas, desenvolvendo suas próprias “técnicas ficcionais” para “obras factuais” e advertindo o leitor de que outras interpretações, além da sua, são possíveis. São procedimentos em que a redução na escala não torna a narrativa menos densa; pelo contrário, obriga à procura de novas formas para as novas histórias.

Ao revelar olhares plurais e afetivos sobre o Usina, este trabalho intencionou trazer apenas uma das versões possíveis para essa história, comportando a fluidez propiciada pelo imaginário sobre momentos em que encontros humanos produzem experiências significativas de vida.

O momento atual, em que integrantes se dedicam à reflexão teórica e a atividades acadêmicas, apresenta-se com perspectivas renovadas, que

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repousam sobre a noção do coletivo, cada vez mais fortalecida. Afinal, “a coisa mais importante no teatro é que você faça alguma coisa com um grupo” (LEHMANN, 2010, p. 243), para não perder a capacidade de intervir.

Dos espetáculos e poéticas

Era começo de 1989 quando o Arte Usina Contemporânea apresentou seu primeiro trabalho à cidade, fazendo das praças um espaço privilegiado para a cena. Cheios de ideias e ideais, um grupo de jovens atores queria formar plateia, queriam discutir questões políticas, queriam descobrir o teatro, queriam pesquisar, queriam muitas coisas. E muito fizeram e continuam fazendo. Multiplicaram-se e cresceram. Transformaram-se. Encheram de novos ares a cena de Belém, ocupando espaços alternativos e agregando as pessoas em torno de si.

O grupo foi constituído graças a uma iniciativa do DCE – Diretório Central dos Estudantes da UFPA – que destinou uma pequena quantia para a realização de dez apresentações em sindicatos. Acabaram fazendo bem mais que isso – só do Exercício nº 1 foi mais de uma centena -e assumindo de maneira apaixonada a missão de levar teatro a um público menos favorecido. Posteriormente, esse coletivo significaria, sobretudo, o espaço de formação empírica para seus integrantes, calcado em muito estudo e pesquisa.

O texto escolhido para o primeiro trabalho (Figura 1) foi O filhote de elefante,de Bertolt Brecht, à qual foi acrescentada a segunda cena de Merlin, ou a terra deserta, de Tankred Dorst. Sem nenhuma estrutura de produção e quase sempre sem remuneração, eles precisavam se responsabilizar até mesmo pelo próprio deslocamento e pelo transporte dos cenários e adereços.

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Figura 1 -Exercício nº 1 em Dorst e Brecht, no

Anfiteatro da Praça da República. Beto Paiva,

Zê Charone e Karine Jansen (Anibal Pacha,

1989). Acervo pessoal: Wlad Lima.

A imagem acima revela o grande interesse demonstrado pelo público, assistindo ao espetáculo em pé ou sentado no chão. As fisionomias de adultos e crianças deixam transparecer a forte comunicação ali estabelecida. Segundo Kosovski, “os artistas de rua agregam, com a matéria do seu afeto, as pessoas em torno de si” (2005, p.11). A cena, originalmente pensada de forma frontal, ou seja, voltada para uma direção, e não em arena, passa a ter o público como fundo. Há uma grande interação entre atores e espectadores, já não mais separados em palco e plateia. Quem assistia à cena, assistia também às respostas e reações das pessoas. Isso remete à transparência, apontada por André Carreira como principal característica espacial do teatro de rua. Leva a pensar nesse valioso espaço de encontro entre o teatro e seu público,o qual prontamente respondia ao chamado dos atores numa manhã de domingo na Praça da República.

A forte crença em um teatro capaz de interferir na percepção do espectador quanto à sua própria realidade se relacionava com um

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momento político brasileiro de especial significado. Em pleno processo de redemocratização, o país encontrava-se às portas da primeira eleição direta para Presidente da República depois de dezoito anos.Nascidos entre 1965 e 1970, os jovens atores do Usina pertenciam à geração chamada de filhos da ditadura, quiçá órfãos, ansiavam pela transformação social e o teatro lhes parecia o meio mais adequado para isso. Ou pelo menos, o meio do qual dispunham.

Em seu livro Teatro da Militância, Silvana Garcia explica que se costumou utilizar tal denominação para aquele teatro cuja ideia é ser um instrumento de ação social, a serviço de uma ideologia ou de um programa político. Suas raízes se encontram em experiências teatrais realizadas desde meados do século XIX, quando surgem teorias e movimentos sociais, em especial no teatro de agitprop112

110, cujo modelo se espalharia pelo mundo. A autora destaca os principais aspectos que aproximam entre si esses grupos independentes, mesmo com uma produção estética bastante variada. São eles: produzir coletivamente, atuar fora do âmbito profissional, levar o teatro para o público de periferia, produzir um teatro popular, estabelecer um compromisso de solidariedade com o espectador e sua realidade (GARCIA, 1990, p. 124).

Passados quase vinte anos do início do movimento estudado por Garcia, o Arte Usina Contemporânea trazia em sua bagagem um ideário muito semelhante. Nasceu, portanto, sob o signo da militância, com o objetivo claro de suscitar o debate em torno de questões políticas, sobretudo através dos dois primeiros espetáculos, que tinham a finalidade de ser apresentados em diversos espaços, servindo de mote para discussões dentro dos mais variados grupos de pessoas,estabelecendo um diálogo vivo entre “os que querem ouvir e aqueles que têm algo a dizer” (Copeau, 1922 apud KOSOVSKI, 2005, p. 17).

112 Teatro de agitação e propaganda surgido na Rússia durante a revolução socialista no início do século XX, contaminado pela liberdade formal de uma vanguarda militante e inovadora (GUINSBURG: FARIA; LIMA, 2006, p. 18).

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Alberto relembra uma ocasião capaz de ilustrar muito bem essa dimensão política, que extrapola o âmbito artístico. Foi num centro comunitário localizado no bairro do Bengui, periferia de Belém, lugar extremamente precário onde havia apenas um bico de luz. O elenco testemunhou o depoimento de uma moradora durante um debate realizado após o espetáculo, do qual todos têm uma memória nítida, reveladora da intensidade daquele momento. É Alberto quem relata:

Ela começou dizendo assim: ‘olha, desculpa, eu não conheço teatro, eu nunca vi teatro, então eu não vou saber o que falar. Eu vou só falar do que eu entendi’, e começou a dar um depoimento de vida fascinante, e demonstrar que ela tinha tido uma compreensão profunda de todos os temas que estavam propostos ali: a situação de uma mãe solteira, desamparada, a questão da subordinação do homem às relações comerciais, capitalistas, enfim, os mais importantes temas que estavam postos ali, essa senhora dissecou, na nossa frente, da forma mais pura, mais simples, e sempre dizendo que ela não tinha compreendido. Foi muito bonito isso, porque pela primeira vez eu consegui compreender esse sentido do teatro como agente de transformação da vida das pessoas (Alberto Silva Neto. Depoimento citado).

O depoimento relatado por Alberto toca naquilo que Hans-ThiesLehmann atribui como sendo papel do teatro político, o de interferir no modo como se percebe as questões cotidianas: “para o teatro, o que é importante é a forma de mudar essa percepção, a forma como se vai conseguir alterar essas fórmulas de percepção que estão dadas” (2010, p. 234). Não apenas o público dava mostras de que passava a perceber as questões cotidianas de forma diferenciada, mas também os atores alteravam sua compreensão do fazer teatral:

Foi uma formação como artista muito forte, esse primeiro ano de rua, no sentido de compreender a função do artista

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numa sociedade, fazer teatro pelo prazer de fazer e pelo comprometimento social e político que essa atividade tem, conhecer uma realidade social que estava longe da minha realidade de um jovem de classe média também. E isso tudo quem me proporcionou foi o Usina (Alberto Silva Neto. Depoimento citado).

Em 1989, montariam ainda mais dois espetáculos: Exercício nº 2 em Arrabal, a partir da peça Piquenique no Front, de Fernando Arrabal, e Exercício nº 3.Essa trilogia traduzia, de certa forma, o início de sua formação, realizando experimentações, sondagens, testando desafios, em encenações simples e cheias de teatralidade, dirigidas por Wlad Lima, com exceção do Exercício nº 3, já uma criação coletiva com base em improvisações. Embora abordasse um tema estritamente político, este último trabalho começava a se distanciar do teatro militante, apontando, ao mesmo tempo, para um maior interesse em aprofundar a pesquisa da linguagem teatral, propriamente. Isso logo faria o grupo passar por sua primeira crise.

Figuras 2, 3 e 4 -Exercício nº 1 em Dorst e Brecht,Exercício nº 2 em ArrabaleExercício nº 3, na

Praça da República (Anibal Pacha,1989). Acervo pessoal: Leo Bitar.

Nessa primeira fase, a opção pela rua foi determinante para o delineamento da estética do grupo. A contundente intervenção em espaços públicos - a Praça da República, em especial, foi palco de cinco espetáculos - pode ser verificada também pelas longas temporadas. Farsas Medievais (1990), por exemplo, ficou em cartaz durante seis meses, de quinta a domingo, com

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duas sessões no domingo, sempre com grande plateia.

As dificuldades eram (e continuam sendo) de toda ordem, desde as intempéries do clima, até a falta de acústica, de limpeza e infraestrutura: “Somos garis, atores, técnicos. Viramo-nos em mil para garantir o mínimo de respeito com o público”113

111. Afinal, o objetivo maior era justamente atingir um público que não tinha acesso às salas de espetáculos, como destaca Karine Jansen: “Todos os fins de semana somos prestigiados pelos meninos de rua e todo o povo que por lá aparece. Nunca fomos agredidos”. Se por um lado isso demonstra a necessidade de teatro, por outro, leva a constatar o “espaço da marginalidade reivindicada [que] situa esta modalidade teatral em um lugar social desprestigiado” (CARREIRA, 2005, p. 31).

A despeito da resposta do público, sempre contribuindo ao final de cada apresentação, quando o elenco passava o chapéu - única fonte para a manutenção do trabalho - aos atores restava contar com a precariedade dos camarins do Teatro Experimental Waldemar Henrique, onde não havia sequer água. A absoluta falta de apoio tem a ver com essa condição marginal a qual são condenados os grupos de rua; não diminuindo, porém, o entusiasmo da trupe que ambicionava levar o espetáculo a outros estados.

Figura 5: Beto Paiva e Alberto Silva Neto conferindo o“chapéu”, após apresentação

(AnibalPacha, 1989). Acervo pessoal: Wlad Lima.

113 Entrevista de Karine Jansen para o jornal O Liberal/ Caderno Dois (06/janeiro/1991).

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Ocupando não apenas o anfiteatro, mas também outros locais da Praça da República, o Arte Usina foi um dos vários grupos de Belém que fizeram deste lugar um espaço privilegiado na cena teatral paraense, seja pela falta de opções diante dos valores cobrados pelos teatros, seja devido a uma escolha estética e política. O Grupo Cena Aberta114

112

teve um papel importantíssimo neste sentido, conforme registra Marton Maués em sua dissertação sobre o seu grupo, os Palhaços Trovadores115

113, outro contumaz ocupante da praça. A montagem de Angélica, em 1976, dirigida por Zélia Amador de Deus, teria marcado o início de uma época de intensa ocupação da Praça da República pelos grupos amadores:

Segundo a diretora, outras montagens se seguiram ao ato político pelo fechamento do Theatro da Paz, devido as constantes reformas. Os grupos amadores não tinham um teatro para si e o que ofereciam, auditórios de colégios, não satisfazia aos anseios da categoria, que passou a protestar, forçando a criação do Teatro Waldemar Henrique, em 1979,próximo ao Theatro da Paz, também na Praça da República (MAUÉS, 2004, p. 45).

Dez anos depois de criado o Teatro Waldemar Henrique, os grupos ainda sofriam com a falta de espaço e as consequências da política cultural recessiva do governo federal116

114, agravada pela inoperância dos governos estadual e municipal. Mesmo com todas as dificuldades, havia uma intensa produção nos anos oitenta. Era um momento de novas perspectivas do ponto de vista da organização da classe, em que a entidade de representação da categoria havia sido renovada, passando a se chamar FESAT – Federação de Atores e Técnicos de Teatro do Pará. Durante os últimos anos da década 114 Dirigido por Luís Otávio Barata, o grupo atuou entre as décadas de 1970 e 1990, com montagens que provocaram grande polêmica, como Genet, o palhaço de Deus e Em nome do amor, entre outras. O grupo liderou o movimento que reivindicou espaço para os grupos no final dos anos setenta.115 Fundado em 1998, foi o primeiro grupo a trabalhar e pesquisar a linguagem do clown em Belém, fazendo um trabalho voltado especialmente para a valorização da cultura popular.116 Este momento refere-se ao governo de Fernando Collor de Mello (1990 – 1992), primeiro presidente eleito desde 1960. Não chegou ao fim do mandato devido ao impeachment.

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de noventa, novos grupos paraenses passaram a se apresentar nos espaços abertos, “experimentando de uma maneira mais consequente os elementos da linguagem da rua” (MAUÉS, 2004,p. 45).

Depois de Farsas Medievais, o Usina só voltaria às ruas quase vinte anos depois, em 2009, com Ágora Mandrágora ou Santa Maria do Grão Agora. Isto se deve ao mergulho em formas de encenação que exploravam outros recursos, sejam eles próprios da caixa cênica ou porão, em palco italiano ou no formato de arena.

Em 1990, o grupo adotaria o nome atual, devido a razões burocráticas, já que para concorrer em editais públicos era necessário possuir um CNPJ. Entre 1990 e 1994 viveria a sua segunda fase, começando a experimentar a mistura de linguagens, de elementos, de gêneros e códigos, aproximando-se da “pluralidade fragmentária”(FERNANDES, 2010, p. 119) da cena contemporânea e suscitando novas configurações do espaço, do tempo, do texto, da relação entre realidade e representação etc. Além do teatro de rua, consolidaria outros dois núcleos:o teatro midiático, sob a direção de Nando Lima,e o teatro de animação,responsável por projetar o grupo nacionalmente. Trabalhos solo também tiveram espaço(Urbanidades, com Karine Jansen em 1992, e Primeiro Milagre do Menino Jesus,com Alberto Silva Neto, em 1993), assim como um exercício com máscaras (Ao Luar, em 1994). Muitas vezes, aconteceram apresentações simultâneas em diferentes espaços da cidade, o que pode ser considerado uma característica, pois isso aconteceria em outros momentos.

Em 1990, com Anjos sobre Berlim (Figura 6), pela primeira vez o grupo ocupava uma caixa cênica, numa encenação que mesclava teatro, vídeo e performance, certamente um dos trabalhos mais experimentais da história recente do teatro paraense. Abordava o tema da solidão urbana, vista através da relação entre cinco jovens que dividiam um apartamento e citavam fragmentos de autores como Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Heiner Müller e Caio

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Fernando Abreu. Depois viriam The Hall(1991), Leão Azul(1991)e Cal (1993), concebido para uma geodésica especialmente construída para o espetáculo (Figura 7). Todos criados por Nando Lima, que ainda hoje, já não mais no Usina, pesquisa a inter-relação entre teatro e novas tecnologias.

Figuras 6 e 7 -Anjos sobre Berlim. Anne Dias e Alberto Silva Neto, com a plateia ao fundo

(Anibal Pacha,1990) Acervo pessoal: Leo Bitar. Cal. Nando Lima (Alexandre Sequeira,

1993). Acervo pessoal: Nando Lima.

O terceiro núcleo do grupo surgiu da paixão de Beto Paiva, Anibal Pacha e Leo Bitar pela linguagem da animação, depois de assistirem, em 1990, à Companhia Cidade Muda, um grupo paulista dirigido por Eduardo Amos. A influência foi tão forte, que logo estrearia um dos espetáculos mais marcantes do Usina e de Belém: Virando ao Inverso (Figura 8). A inexperiência do grupo não impediu um resultado que impressionou até mesmo a curadoria do Festival Internacional de Teatro de Bonecos117

115, no Rio Grande do Sul. Dirigido por Beto Paiva, com a importante contribuição de Dênis Moreira e Anibal Pacha, o espetáculo se tornaria uma referência para grupos de teatro de animação surgidos posteriormente, como a In Bust Teatro com Bonecos118

116

117 O Festival acontece anualmente na cidade de Canela desde, e é organizado pela Associação Gaúcha de Teatro de Bonecos – AGTB.118 Grupo criado em1996, investiga a utilização teatral do boneco, o jogo com o ator e a sua relação com a plateia, elemento ativo na dramaturgia do corpo. Está presente na cena paraense como um dos grupos de atividade permanente, sendo frequentemente procurado por outros encenadores locais (PACHA, 2011, p.165).

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e a Usina de Animação119117. O grupo montaria ainda mais dois espetáculos de

animação: À Deriva (1992), uma adaptação de A Tempestade, de Shakespeare, e Fausto(1993), de Marlowe (Figura 9).

Vale ressaltar que a criação dessa trilogia coincide com um momento muito promissor para o teatro de animação brasileiro, “com novas expressões por parte de grupos antes mais tradicionais ou com o surgimento de novos grupos” (GUINSBURG; FARIA; LIMA, 2006, p. 32). Revelou-se na ocasião a enorme potência criativa do Usina, o qual investiria numa pesquisa com traços muito particulares, ao propor um tipo de manipulação que não isola o manipulador com recursos de iluminação ou cenários, conforme explica Beto Paiva, referindo-se ao Virando ao Inverso:

O espetáculo busca um resgate da simplicidade do teatro em uma tentativa de acerto poético. A encenação não é baseada nos recursos ilusórios comumente usados nos teatros de bonecos que se conhece. A manipulação é direta, aparecendo tanto manipulador como o boneco manipulado, dando ao espectador a opção de assistir à fábula do enredo e a técnica de manipulação (Beto Paiva. Data certa não indicada [1990]).

Figuras 8 e 9 - Virando ao Inverso. Andréia Rezende manipulando o Mago (Anibal

Pacha,1990). Acervo pessoal: Leo Bitar. Fausto. Valéria Andrade manipulando a Duquesa

(Walda Marques,1994). Acervo pessoal da pesquisadora.119 Criado por Jefferson Cecim e Dênis Moreira em 1995, “multiplica a cena animada, pois vindo do grupo Usina Contemporânea de Teatro, priorizou uma cena fragmentada, construída para diversos ambientes, estabelecendo uma íntima relação com a música, que vai para a cena praticamente substituindo o texto dramático” (JANSEN, 2009, p. 90).

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Em 1996, depois da tentativa frustrada de montar Quarteto, de Heiner Müller, o grupo viveria o momento mais doloroso de sua história. Durante o processo que dirigia, Beto começaria a dar sinais de cansaço em virtude da doença que logo nos roubaria o seu convívio. Precocemente, Beto deixava a nós - Usina - e o teatro paraense sem uma das suas mentes mais brilhantes. De certa forma, isso nos levaria a viver um período de interseção, entre 1997 e 2000, como se um ciclo estivesse se fechando. Até mesmo com sua ausência, foi capaz de aglutinar pessoas há muito tempo afastadas do Usina. Antigos e novos usineiros reuniram-se para montar A vida é sonho(1997), um antigo projeto acalentado por Beto, seguido por duas remontagens: Primeiro milagre do menino Jesus e O filhote de elefante.

Entre 2000 e 2004, Nando Lima retomaria o grupo após mais um período sem produzir, com três espetáculos: Sombra à l’ombre (2000), Leve Barato(2002) e O pássaro de fogo do meu coração(2004), todos fortemente marcados pela experimentação com a música, o teatro de sombras, o vídeo e as artes plásticas, e nos quais as imagens são detonadoras do texto, privilegiando a liberdade de interferência a cada apresentação, o que os aproxima do caráter de performance.

Figuras 10 e 11 -Sombra a l’ombre (Alexandre Sequeira, 2000). O pássaro de fogo do meu

coração(André Mardock, 2004). Acervo pessoal: Nando Lima.

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Os seis espetáculos mais recentes, produzidos entre 2004 e 2010, foram viabilizados por editais públicos120

118. Nando Lima dirigiu 80 já era!(2005) e Frozen(2006 - Figura 12); Alberto Silva Neto foi o responsável pelos projetos que resultaram em Tambor de água(2004), Ágora Mandrágora ou Santa Maria do Grão Agora(2009 – Figura 13), e Eutanázio e o princípio do mundo(2009); eu propus Parésqui (2006). Novamente a ocorrência simultânea de linhas diferenciadas de pesquisa permite ressaltar a multiplicidade comportada pelo grupo e ao mesmo tempo a consolidação de antigas parcerias a alimentar novos trabalhos.Depois de dez anos, o Usina voltou às praças, relendo um clássico da dramaturgia mundial para fazer uma contundente crítica ao ambiente político da cidade. Pesquisas sobre a mímesis corpórea e o diálogo com a obra do romancista paraense Dalcídio Jurandir têm marcado as criações cujo foco é o homem amazônico.

Figuras 12 e 13 -Frozen, no U.Porão. Leo Bitar, Pedro Olaia e Andréia Rezende (Alberto

Bitar, 2006). Acervo pessoal: Nando Lima.Ágora Mandrágora ou Santa Maria do Grão

Agora, na Praça da República (Alberto Bitar, 2009). Acervo pessoal da pesquisadora.

Diante da trajetória aqui brevemente descrita, é possível apontar a relação entre as múltiplas vertentes do Usina à ideia de pluralidade intrínseca aos conceitos de memória e identidade, destacar a afetividade como base do 120 Edital de Bolsas de Pesquisa, Experimentação e Criação Artística do IAP – Instituto de Artes do Pará contemplou três deles, outros dois projetos receberam o Prêmio Myrian Muniz, da Funarte, e um foi contemplado pelo edital da Secretaria de Estado da Cultura – SECULT.

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convívio teatral e o papel fundamental na formação de artistas importantes no cenário paraense, possibilitando a descoberta de novas concepções de teatro.

Além do Usina Contemporânea, muitos grupos paraenses ainda carecem de pesquisas sobre suas trajetórias, para que possamos garantir o registro de parte fundamental da nossa história. Por fim, e à luz de Raymond Williams, gostaria de assinalar as inferências mútuas entre o teatro e a sociedade, na medida em que ele absorve e reflete aspectos culturais, contribuindo para a transformação gradual de estruturas sociais. Neste sentido, o coletivo afirma-se como potência resultante dos encontros, dos bons encontros, das boas composições, capaz de gerar ainda mais energia, como uma verdadeira USINA.

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A Pesca de Cacuri: Narrativas de Vida Amazônica

Walter Chile R. Lima (SOPREN/GECA/UFPA/Bolsista CAPES Brasil Doutorando do Programa Doutoral em Estudos Culturais UA/UMINHO)

Agenor Sarraf Pacheco (PPHIST/PPGA/UFPA)

Nosso desafio começa, então, no repensar da necessidade de: “Unir tudo o que a ciência moderna separou: a natureza da sociedade, o sujeito do objeto, as disciplinas da disciplina, a arte da ciência, a ciência dos outros saberes, o conhecimento da sabedoria. Somos convocados a uma epistemologia de saberes vividos declararmo-nos contra o exílio e em favor da recorporização do saber, dos saberes que dão corpo ao corpo”.

(BOAVENTURA SANTOS, 2008, p. 07)

Itinerários da Pesquisa

O filósofo Deleuze (1999, p. 02), em um fragmento de sua obra “O Ato da Criação”, preocupou-se em refletir sobre o tratamento que deve ser dado às ideias. Observa que “devemos tratá-las como potenciais já empenhados nesse ou naquele modo de expressão [...]”. A reflexão do estudioso é oportuna, motivadora e fomentadora da realização deste trabalho, ao permitir articular o ato de criação tanto ao universo da pesquisa, quanto ao fazer-se da arte. Por estes termos, a problemática que move este exercício acadêmico de produção do conhecimento reside na seguinte direção: como os habitantes das ilhas de Abaetetuba, no Pará, vivem e produzem o saber-fazer da pesca em cacuris121

119?

121 O cacuri consiste numa armadilha fixa de grande proporção para a captura de peixes. O Cacuri é assimilado nessa pesquisa como curral de beira, por ser à beira de praias, rios e igarapés o seu local de assentamento. Diferencia-se dos currais de fora, expressões ouvidas em Salinópolis ao dialogar com pescadores que experienciam a pesca na região Atlântica, litoral paraense principalmente em sua forma arquitetural. Mas tanto os currais de beira quanto os currais de fora aprisionam o pescado de subsistência do amazônida.

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Nesse quadro, constitui objetivo da investigação reconstituir os modos de viver e fazer da prática do cacuri por populações Amazônidas.

O cacuri emerge, então, como saber local amazônico na sua estrutura simbólica, formal, material e estética. Ele permite identificar as contribuições deste saber-fazer, assim como sua valorização enquanto artefato procedente de uma cultura só muito recentemente visibilizada pela academia, especialmente no campo das artes. Para tanto, procuramos igualmente descrever a espacialidade e os insumos utilizados a partir da técnica de elaboração do Cacuri, posicionando-nos a respeito do contexto político, econômico, cultural, social e ambiental no qual ele está inserido.

Ao seguir orientações do “olhar político” na esteira do que advoga Beatriz Sarlo (1997), o qual deixa o pesquisador sempre em alerta para as artimanhas da cultura dominante no sentido de continuar orquestrando suas prerrogativas de história e memória, a expectativa foi problematizar essa orientação e demonstrar que apropriar-se e ressaltar a potencialidade das formas do cacuri se constitui como arma de luta contra o esquecimento da memória deste saber-fazer local na Amazônia. Em outras palavras, discutir e dissertar a respeito do tema é uma tática para continuar visibilizando vozes, memórias e trajetórias das populações do interior da floresta.

A partir de uma pesquisa de campo sob a metodologia da História Oral realizada no corpo a corpo com 09 (nove) praticantes e ex-praticantes da pesca em cacuris no estuário sul do rio Amazonas, região das Ilhas de Abaetetuba – Pará – Brasil e análises documentais, especialmente escrituras de viajantes e naturalistas rastreadas em arquivos públicos como a Biblioteca Nacional, Real Gabinete Português de Leitura e Biblioteca Marechal Rondon, no Rio de Janeiro, procuramos entender a construção e as transformações das experiências sociais de pescadores no lidar com o cacuri e igualmente captar as percepções de intelectuais que descreveram esse saber-fazer tradicional amazônico.

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A escolha da narrativa como forma textual é oportuna, uma vez que a prática do cacuri quanto narrativa tem íntima relação com o artesania e manufatura, uma vez que para Benjamin (1996, p. 205) ”narrativa é uma forma artesanal de comunicação”. A vivência profissional nos permitiu despertar o interesse pelo tema ao ter a ideia de enxergar os currais de pesca como artefatos significativos e dotados de potencialidades simbólicas, como sinais do mundo e da cultura amazônicas, sem cair num regionalismo exclusivo e excludente.

A prática da pesca do cacuri, que aqui será descrita, é lugar para falar dos saberes locais e globais, das conexões entre o perto e o distante, da arte com a vida ou da arte como vida, mas sempre levará consigo memórias de tempos e histórias que poderão não ser mais contadas pela voz ou mesmo pelo escrito, mas estarão tatuadas e perenizadas no texto dissertativo.

Após lidar mais proximamente com a pesca artesanal e conhecer um arsenal de artefatos da cultura material local122

120

e estratégias utilizadas pelos amazônidas para a captura do pescado, apropriamo-nos de suas características formais, estéticas, simbólicas e ao imaginário que rodeia o cacuri.

A escolha do cacuri estuarino como tema de pesquisa foi inicialmente motivada pelo fato de sua feitura e utilização estarem em processo de desaparecimento na região das ilhas do município de Abaetetuba. Outro fator de motivação foi à familiaridade com o lugar, pois já atuamos profissionalmente há aproximadamente duas décadas na região, somado ao tempo de militância ambiental e vivência no lugar. Assim, as muitas informações acumuladas e levantadas permitem melhor conhecimento das peculiaridades dos modos de vida regional nessa faixa da Amazônia Tocantina.

O refinamento técnico que é dado pelos poucos mestres que ainda confeccionam o cacuri estuarino123

121, isto é, o cacuri confeccionado na região 122 A cultura material de um povo consiste especialmente na produção de objetos de uso estético e funcional.123 Consiste no Cacuri produzido pela população do estuário do rio Amazonas, especialmente a que habita a região das ilhas do município de Abaetetuba - Pará. Comparado ao Cacuri atlântico, possui diferença na materialidade e estética e está em vias de desaparecimento da paisagem local.

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das ilhas de Abaetetuba, também pode ser considerado com um desses fatores de motivação se comparado com os cacuris da Zona do Salgado Paraense, aos quais tivemos acesso a partir do ano de 2009. Foi possível perceber que os currais apresentam especificidades técnicas e materiais muito peculiares a cada região onde são construídos, dado os insumos disponíveis nos diferentes ecossistemas.

No que tange ao aspecto teórico, o encontro com os Estudos Culturais apontou caminhos às inquietações, possibilitou compreender a dinâmica e o modo de vida dos narradores, os mestres cacurizeiros e a enxergá-los como fonte principal de conhecimento em decorrência de seus saberes que são de grande importância para a reprodução e continuidade dessa prática cultural.

Neste estudo, portanto, dialogamos especialmente com Raymond Williams (1977), Ella Shohat e Robert Stam (2006) e Beatriz Sarlo (1997; 2007), intelectuais dos Estudos Culturais e Pós-Colonial, além de Walter Benjamin, especialmente sobre o lugar da narrativa oral na sociedade capitalista urbanocêntrica. O pensamento desses estudiosos contribuiu para adensar o entendimento de categorias analíticas como cultura, cultura popular, hegemônica, dominante, residual e emergente, eurocentrismo e memória, aplicadas à realidade amazônica, renovando-as ou estabelecendo conexões com tais perspectivas conceituais.

A crítica em relação às transformações no campo socioambiental em que o cacuri está inserido teve como suporte as reflexões de ElmarAltvater, Aluísio Leal, Camillo Vianna e Beatriz Sarlo.

Quanto à pesquisa documental, analisamos os relatos de viajantes, naturalistas, romancistas e religiosos como Frei Daniel, Júlio Parternostro, Manoel José de Oliveira Bastos, José Veríssimo, Antônio Ladislau Monteiro Baena, Charles M. de La Condamine, Henri Coudreau, Paul Le Cointe, Gastão Cruls e Carl Friedrich Philipp Von Martius, que andaram pela região

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amazônica e tiveram suas impressões registradas, nas quais se identifica um discurso eurocêntrico, inferiorizante e hostil em relação à população local e seus ancestrais.

A pesquisa de campo, orientada pela Metodologia da História Oral, especialmente nos trabalhos de Alessandro Portelli e Alistair Thompson, a partir da técnica de entrevistas com os interlocutores, foi dividida em três categorias a partir da seguinte seleção: a) praticantes da pesca de cacuri que residem nas ilhas de Abaetetuba; b) ex-praticantes da pesca de cacuri que ainda moram no espaço rural e c) ex-praticantes da pesca de cacuri os quais migraram para o centro urbano e habitam na sede do município de Abaetetuba.

Com a categoria praticante procuramos entender como se deu o processo de aprendizagem das técnicas de produção e utilização da armadilha, da elaboração da forma arquitetural e da matéria necessária na confecção do curral. Com as demais categorias entrevistadas, procuramos além das questões já citadas, conhecer as razões para o abandono da pesca de cacuri, buscando nos depoimentos reconstituir imagens e conteúdos ainda presentes na memória dos narradores, inspirado na compreensão de Thomson (1997, p. 54) de que “a relação entre as imagens e o conteúdo das reminiscências tornou-se de extrema importância na análise e no uso do testemunho oral”.

A abordagem aos narradores e a postura adotada na coleta de campo foi subsidiada pelo estudo de Maria da Paz Araújo Cardoso diante do Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária – CRUTAC/UFPA, chamado Abordagem Cultural de Comunidade. O estudo traz em sua essência norte a postura que deve ser adotada ao abordar comunidades do interior da floresta, nas quais o respeito pelos valores e o diálogo em tom de igualdade devem ser ponderados.

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Aspecto importante nesse diálogo da empiria com a teoria refere-se ao lugar do cacuri na presente pesquisa. Acreditamos que à medida que se disserta sobre um recurso de pesca amazônico, torna-se possível colaborar com o reconhecimento da diversidade cultural presente na região, a partir da troca e construção de saberes do curraleiro amazônida com quem se propõe a estudar o cacuri. Dessa forma reafirmando a existência de uma via de mão dupla entre a oralidade e o saber letrado.

Compreendemos que a realização deste estudo pode visibilizar uma prática cultural tradicional amazônica e reconhecer como relevante o saber de uma categoria social historicamente posta à margem do conhecimento letrado, como são as populações interioranas amazônicas. Tais representações preconceituosas podem ser surpreendidas tanto na pena de alguns viajantes ou naturalistas quanto em determinados discursos políticos e midiáticos contemporâneos, quando reafirmam em suas posições apenas o isolamento, o conformismo e a não capacidade desses agentes históricos locais de ler criticamente as condições de dominação que lhes foram impostas pelo poder (neo)colonizador (STAM e SHOHAT, 2006).

Portanto, ao estudar o cacuri, procuramos transportar em múltiplas formas os valores culturais, simbólicos, estéticos, afetivos, ambientais e sociais, de um contexto interiorano amazônico para um contexto acadêmico, desejando contribuir para a visibilidade dos saberes e da poética desenvolvidas por diferentes sujeitos sociais amazônicos, como indígenas, africanos, brancos pobres, interioranos, lavradores, pescadores tradicionais, apanhadores, caboclos, quilombolas, remeiros, seringueiros, mateiros, pilotos, caçadores, curandeiros, timoneiros, proeiros, lenhadores, marisqueiros, entre outros. Tratam-se de populações amazônicas que há séculos domesticaram a floresta, que já foi considerada inóspita (MARGARET MEAD, 2000), e a habitam desenvolvendo um modo de vida menos impactante às futuras e atuais gerações frente às práticas das sociedades urbanas. Tais populações, porém, foram historicamente discriminadas, silenciadas e esquecidas pelos

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que alcançaram postos dominantes e pelo modelo acadêmico eurocêntrico instalado na região.

O lugar e sua paisagem

O campo socioambiental de estudo é a região das ilhas do município de Abaetetuba-Pará. A região é de várzea de maré com alagamento diário. Está situada na confluência dos rios Tocantins e Pará, no estuário sul do rio Amazonas, distanciada de Belém a aproximadamente 80 km na direção oeste (HIRAOKA e RODRIGUES, 1997, p. 74-75). O acesso pelos furos e igarapés é possibilitado através de embarcações de pequeno porte como rabetas e rabudinhos.

Os moradores das Ilhas procuram diariamente ir à sede do município utilizando rabetas como transporte para, entre outros afazeres, negociar com “aviadores de mantimentos” a despesa necessária ao sustento de sua família. Tal prática reforça antigos laços de comercialização e exploração em cenário amazônico.

As ilhas são interligadas por furos de maré e igarapés, principais vias de acesso que possibilitam a comunicação entre uma comunidade e outra e entre as comunidades e a sede do município.A vegetação é de mata secundária, possibilitada por regeneração natural e ultimamente também por cultivo, maciçamente incentivada por entidades como a SOPREN e órgãos governamentais em determinadas gestões. A busca por madeira para atender os grandes centros e mesmo o mercado exterior e a febre pela comercialização do palmito de açaí em décadas recentes na Amazônia tocantina alteraram sobremaneira a paisagem local. “A paisagem como produto da história interferiu nos aspectos socioambientais do Vale do Tocantins na medida em que a população tradicional passou por um processo de descontinuidade em relação à sociedade” (MENEZES, 2000, p. 92).

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O imaginário é um dos componentes sensíveis mais fantásticos articulados na viagem pelo mundo da dádiva líquida estuarina, “mas explorado e saqueado historicamente e entregue a sua própria sorte” (VIANNA, 1993). Ao passar pela boca do furo Maracapucu e topar com a ilha da Pacoca, imaginamos como deve ser bela a cena que se repete a cada noite de luar, quando a Cobra Grande que lá habita transforma a ilha em navio prateado e a leva na corcunda nos seus passeios pelo rio Maratauíra.

O grande ofídio se faz presente no imaginário local e se mostra de distintas formas e situações em diversos pontos da região.Em analogia com o cacuri, entendemos que suas formas tenham parecença: correspondente ao paredão seria a cauda da cobra e seu salão equivalendo à cabeça.Visto por outra perspectiva, o salão corresponderia ao estômago e a espia do cacuri seria a língua da cobra. A língua, neste caso, tem a responsabilidade de interceptar o pescado e direcioná-lo na câmara do curral. O imaginário é o recurso que as populações utilizam para compreender os fenômenos naturais e sobrenaturais e a cobra é um personagem marcante nas narrativas e muito presente na vida interiorana.

Essas paisagens com seu poder de sensibilizar o olhar humano a partir de sua beleza física, poética e estética enlaçam ainda mais em suas entranhas com as histórias de seus habitantes. São narrativas que traduzem outras cosmologias e modos de vida de populações amazônicas, muitas vezes silenciadas ou estereotipadas pela escrita eurocêntrica que formou o mundo acadêmico, o discurso político e midiático. Expressões como “selvagem, preguiçoso”, “indolente”, “acomodado”, foram historicamente formuladas e propaladas nos diferentes espaços sociais para identificar características do homem amazônico.

Mesmo enredados em adversidades e contradições do viver local, homens, mulheres e crianças da região são detentores e guardiões de um rico patrimônio tradicional (SARRAF-PACHECO, 2009b).

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Essas (...) populações locais, sempre sensíveis e sintonizadas aos mistérios da floresta amazônica, produziram inteligíveis modos de vida e trabalho, os quais vêm permitindo-lhes dialogar e respeitar temporalidades dos indissociáveis reinos: humano, vegetal, animal e mineral, garantidores do sustento de seu dia-a-dia. (SARRAF-PACHECO, 2009b, p. 410-411).

Nesse universo, o saber-fazer da pesca ganha destaque nesta pesquisa. Antes, sigamos desvendando o território e os sujeitos da pesquisa.

O Ambiente Social e os Narradores

O ambiente social dos mestres cacurizeiros é a região das ilhas de Abaetetuba, especialmente seus furos e igarapés. À frente de suas casas se pode ver o correr e a calmaria das águas e embarcações transitarem com seus vizinhos, mercadorias e viajantes.

Atrás de suas casas está o quintal florestal que representa sua farmácia, pois é de onde retiram ervas, cascas e raízes utilizadas na medicina popular; as matas e rios da região são sua geladeira, pois delas extraem alimentos frescos a qualquer hora. Também se constitui na loja de material de construção, pois na mata coletam os materiais para a construção de sua casa, de sua embarcação e de suas armadilhas para a captura de fauna. A mata representa ainda o livro de histórias fantásticas, pois no diálogo com histórias e feitos de muitos dos personagens silvestres do amazonário (VIANNA, 1993), constroem narrativas que expressam valores, atitudes e cosmovisões.

Grande parte das famílias professa a fé católica. Mas na paisagem da comunidade, o prédio da igreja católica fica ao lado de um barracão para a realização de festas. Oriundo do passado colonial, o terreiro de Jesus à frente da igreja, destinado a abrigar parte dos festejos, amplia ainda hoje o cenário da comunidade rural, juntamente com o campo de futebol ao fundo. Complexifica essa paisagem natural e cultural um novo componente: prédios

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de igrejas evangélicas em sua maioria construídos nas proximidades de um templo católico.

Percebemos que a doutrina religiosa exerce influência no modo de vida dos moradores da floresta e em suas práticas culturais, balizando seus comportamentos e atitudes diante do mundo. A relação com os santos ou Jesus Cristo, por exemplo, é direta. O homem e a mulher antes de deixarem suas habitações, quando necessitam ir ao trabalho ou à cidade, negociam suas perspectivas de vida com seus guias espirituais.

Destacamos também a presença de práticas de pajelança por parte dos moradores de ambas as religiões. Tal observação já fora realizada por Galvão (1976) na localidade de Ita, ao afirmar que o amazônida transita entre os costumes do catolicismo ibérico e da pajelança tupi, buscando identificar a importância dessa religiosidade nas relações intrapessoal e interpessoal. Para o autor supracitado, a prática da pajelança, procurada pelo amazônida, é sempre para a cura de doenças e feitiçarias. As visitas a um pajé, pai ou mãe de santo é sempre para solucionar problemas individuais que afligem os moradores da região, sejam tais problemas de natureza física ou espiritual.

A água dos rios e igarapés são as vias de acesso e de dinamismo das relações interpessoais, possibilitam, assim como as mídias contemporâneas, a chegada de informações mais diversas possíveis. É pelas águas que o povo da floresta conecta-se aos outros espaços amazônicos. É também no regime das águas que essas populações ganham e perdem filhos e entes queridos e do mesmo modo constroem e desfazem interesses e sonhos (SARRAF-PACHECO, 2009).

A população residente interage com o ambiente físico e social no tempo e no espaço através de suas práticas religiosas, econômicas e culturais influenciadas pela sazonalidade dos bens naturais, dos ciclos da maré e pelas necessidades de sobrevivência física, espiritual e pessoal.

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Os narradores desta viagem são todos homens, pais de famílias, moradores e ex-moradores das ilhas de Abaetetuba, nove sujeitos que fizeram/fazem uso dos saberes sobre pesca e técnicas de trançados deixados por seus ancestrais e os aplicaram em algum momento de suas vidas. A esse respeito Benjamin (1996, p. 198), compreende que a fonte onde se abastecem os narradores consiste na “experiência passada de pessoa a pessoa”.

Para um melhor conhecimento de aspectos de suas vidas, passo a apresentá-los a partir de agora:

Seu Aristeu Machado Figueiró, 70 anos, nascido no furo dos Carecas, rio da Prata, Abaetetuba-Pará. É ex-praticante da pesca de cacuri e habitante da zona rural.

Seu Francisco João Maués, conhecido como Joãozinho, 53 anos, nascido no Igarapé Acapu, no Baixo Tucumanduba, Abaetetuba – Pará, onde reside. É ex – praticante da pesca de cacuri e habitante do espaço rural.

Seu João Batista dos Reis e Silva, 97 anos, nascido no rio Tucumanduba onde reside. É ex-praticante da pesca de cacuri.

Seu Maximiliano Rodrigues Correa, 71 anos, é conhecido na comunidade como seu Maxico. Nascido no furo Maracapucu, é ex-praticante da pesca de cacuri. Reside hoje no espaço urbano do município de Abaetetuba.

Seu Miguel Pompeu Ferreira Maués, 63 anos, nascido no rio Cuitininga, zona rural de Abaetetuba. É ex-praticante da pesca de cacuri. Migrou para a sede do município com seus pais e irmãos na busca de melhores condições de vida.

Seu Orlando Machado Figueiró, 64 anos. Nascido e residente do rio da Prata. É praticante da pesca do Cacuri. Hoje vive da produção de seu açaizal e da pesca de cacuri. Tem a preocupação de ensinar a arte da pesca de cacuri a

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seu filho caçula, pois acredita que socializando este saber poderá seu filho se sustentar quando ele, seu Orlando, “for chamado por Deus”.

Seu Coriolano Amaral de Freitas, 72 anos, nascido na ilha do Cará-Cará, na zona rural de Cametá - Pará. Informou-nos que na infância frequentou a escola, mas tudo que aprendeu de significativo para sua vida foi na oralidade e no convívio com seus pares. É ex-praticante da pesca de cacuri.

Seu José Maria Barbosa Ferreira, 50 anos. Conhecido na comunidade como Quixinho. Nasceu no rio Panacuerazinho e reside no rio Sirituba, ambos no meio rural de Abaetetuba. A escola não fez parte de seu cotidiano e os saberes que detém vem da tradição oral e da relação com seus pares. É praticante da pesca de Cacuri.

Seu Sebastião Pereira Cardoso Filho, 44 anos. Nasceu no rio Sirituba, na zona rural de Abaetetuba onde reside. É conhecido na comunidade como Zal. Estudou somente a primeira série do antigo primeiro grau e tudo que aprendeu de importante para sua vida foi na tradição oral. É praticante da pesca de cacuri.

Do total de nove mestres cacurizeiros entrevistados, somente três narradores ainda praticam a pesca de cacuri. Eles movimentam seus saberes para manter viva uma laboriosa prática cultural que começa a apresentar sintomas de desuso no estuário sul do rio Amazonas, prática na qual pescador e pescado são unidos e separados por tempos lunares, dinâmicas costeiras, ventos que movimentam massas de águas e promovem fluxos e refluxos de marés.

Os cacurizeiros praticantes informam que apesar do muito trabalho exigido por esta prática pesqueira, eles ainda a fazem como alternativa de sustento e forma de deixar um ensinamento para seus filhos, pois assim seus pais e pares o fizeram. A memória do saber-fazer motiva a transmissão para as gerações futuras.

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Necessitando de melhores condições de vida, os ex-praticantes que migraram para o espaço urbano deixam adormecer o legado, seus saberes, hoje pensado pelos estudiosos da cultura como patrimônio imaterial do lugar124

122. Em suas narrativas a pesca do cacuri emerge apenas como lembrança e não mais como experiência cotidiana. Por outro lado, Benjamin (1996, p. 221), entende que o narrador “pode recorrer à experiência de toda uma vida, a sua e a experiência alheia e a assimila à sua substância mais íntima” quando necessita operar com esses saberes. Em outras palavras, a migração do cacurizeiro para a cidade não representa a perda da experiência de trabalho, mas tão somente seu adormecer.

O Cacuri

Instrumento de subsistência confeccionado na atualidade por indígenas, negros, afroindígenas, mestiços e brancos pobres. Visa aprisionar os peixes que se deslocam pelas águas doces, salobras e salgadas da “dádiva líquida amazônica”. A presa do curral é o pescado o qual se movimenta pelas correntes à procura de alimento, microrganismos, frutos e sementes que flutuam no “lixo da maré”.

O amazônida, assim como os pescadores tradicionais de outros pontos do litoral brasileiro, onde se pratica a pesca com armadilhas fixas, articula seus saberes naturalistas, espaciais e matemáticos com o intuito de garantir sua sobrevivência.Currais de pesca são produzidos e utilizados em vários lugares do litoral brasileiro, especialmente em regiões onde o modo de vida das pessoas é regido pelo regime das águas (SARRAF-PACHECO, 2009). Além do litoral, essas instalações ampliadas estão presentes nas águas internas, como rios e igarapés. Em cada localidade onde se fazem presentes, os currais recebem nomes distintos e são elaborados com formas arquiteturais e matérias muito particulares.

124 São muitos os intelectuais contemporâneos debruçados e interessados em discutir em seus estudos a temática do patrimônio imaterial das sociedades humanas. Entre eles seria importante consultar: (CAVALCANTE E FONSECA, 2008).

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Segundo os curraleiros125123 da zona do salgado paraense, cacuri significa

curral pequeno. Possui duas partes: uma forma circular com uma fenda e suas extremidades voltadas para dento do círculo, denominada salão (curral ou chiqueiro) e outra reta, denominada língua do curral (manga ou mesmo espia). Da fenda do salão sai à língua do curral, que funciona como anteparo ao pescado.

O peixe que transita pelas correntes de maré e ao se deparar com a língua do curral muda de direção, procurando a parte mais funda do curso d’água entra na câmara do curral. Não conseguindo sair, permanece aprisionado, até a maré baixar, momento em que o curraleiro coleta as espécies capturadas, atividade chamada de despesca do curral.

Ribeiro (1987) salienta que a palavra cacuri é uma expressão pertencente à Língua Geral, correspondente a um apetrecho fixo de pesca de grandes dimensões. Já Veríssimo (1970, p. 81) em sua monografia intitulada A pesca na Amazônia reservou espaço para a descrição do cacuri.

O cacuri é construído com dous ou três panos de pari, conforme o armam tomando toda a largura entre as duas margens ou meia largura apenas, encostando-o a uma única. A primeira forma é a mais comum e a mais produtiva, mas não pode ser usada se não em águas inteiramente particulares, não aproveitadas pela serventia pública ou do próprio estabelecimento. Quando não é possível inutilizar totalmente o canal, o cacuri vai apenas até o meio dêle, deixando daí à oposta margem o espaço suficiente à passagem de uma canoa. Esta passagem não fica aberta, o que tornaria inútil o cacuri (sic).

Pelas características de tamanho e de localização apontadas pelo autor, sua descrição se dá sobre o cacuri de águas internas, assentado em pequenos 125 Expressão de auto identificação dos pescadores que praticam a pesca de curral no litoral paraense. Manescky (1993) e Furtado (1987), estudiosas da antropologia pesqueira na Amazônia, utilizam a expressão curralista para designar os mesmos sujeitos.

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cursos d’águas como igarapés. Este tipo de curral, ainda presente no furo Sirituba em Abaetetuba, é instalado na boca de pequenos igarapés no período de águas brandas. Assentadores remanescentes como seu Zal e Quixinho são exímios cacurizeiros dessa área e demonstram habilidade na construção material e na leitura do tempo da maré e demais códigos da natureza.

Compreendemos que os saberes desta prática, apesar dos encontros intensos com outras culturas, transformou-se em patrimônio de reprodução e resistência dos mestres cacurizeiros. A Figura 1 representa uma amostra hiperdimensionada do cacuri descrito por Veríssimo.

Figura 1:Cacuri assentado na “Costa Marapatá” em Abaetetuba-PA. Foto da pesquisa de

campo, abril de 2011.

Arquivo Pessoal: Walter Chile.

Veríssimo (1970, p. 82) alerta para o perigo de se penetrar inadvertidamente no salão dos cacuri, pois ali são aprisionados tanto peixes inofensivos quanto espécies aquáticas que oferecem risco ao cacurizeiro como o poraquê, (Electrophorus electricus) que emite descarga elétrica em tudo que nele toca; o jacaré, possivelmente o jacaretinga (Caiman crocodilus) temível

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predador, de mandíbula forte, dentes afiados e apetite insaciável; e a arraia, certamente a arraia fluvial (Potamotrygon hystrix), possuidora de veneno em seu ferrão, o qual depois de penetrado na carne humana, pode doer por até 24 horas.

O alerta de Veríssimo (1970) vem ao encontro do relato de Seu Quixinho do furo Sirituba. O mestre cacurizeiro informa que por desatenção, já levou oito ferradas de arraia ao penetrar no interior do salão do Cacuri, com isso deixando-o debilitado e incapaz temporariamente para o exercício de suas atividades. Mas sigamos descrevendo a materialidade que permite compreender esta arte pesqueira.

A Materialidade do Cacuri

As variações na matéria acontecem e são influenciadas também pelo ecossistema onde o fazedor de Cacuri habita ou tem acesso. Nas regiões litorâneas a matéria empregada é coletada no mangal126

124. Nas águas internas, especialmente no estuário, onde se encontra o campo sócio/ambiental desta pesquisa, a matéria é extraída das florestas de várzea. Mas é possível identificar matéria oriunda de culturas urbano-industriais que foi incorporada à feitura do artefato.

Na região do salgado paraense, encontramos uma mescla de materiais na confecção dos currais. Lá foi possível identificar a presença de diversas matérias procedentes de ecossistema de mangue como moirões e varas extraídos de espécies como o mangueiro (Rizophora mangle), a siriubeira (Avicennia germinans) e o tinteiro (Laguncularia racemosa) e de espécies procedentes de ecossistemas de terra firme. “Forrando as laterais e dando forma as paredes do curral, encontramos as redes de nylon” (LIMA, 2010, p.128). A chegada do nylon à região parece facilitar o trabalho do construtor de currais, pois

126 O Brasil possui o segundo maior cinturão de mangue conhecido, vindo logo atrás da Indonésia. No mangue se reproduzem, acasalam e se alimentam espécies de fauna aquática, alada e terrestre. Apesar de legislação para protegê-lo, ele vem sendo ostensivamente devastado, em sua maioria pela especulação imobiliária (SOUZA FILHO, 2005).

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oferece praticidade na instalação e manutenção. Demonstra ainda dinamismo nas relações e revela o encontro entre a matéria proveniente de uma cultura industrial com a matéria de cultura haliêutica amazônica.

Na região estuarina abaetetubense, os mestres cacurizeiros produzem as folhas de pari - componente de forração do cacuri, utilizando as talas extraídas da flecheira, do jupatizeiro (Raphia taedigera) e do marajazeiro(Bactris maraja), trançados com cipó e/ou cabo de nylon. Apesar de estarem na mesma região, as variações entre espécies utilizadas são evidentes.

A respeito da matéria empregada na feitura do curral, Seu Batista ex-fazedor de cacurido Tucumanduba, Abaetetuba-Pará informa que:

O cacuri grande era feito de paxiúba. Tirava as tala grande e tecer o pari prá tecer o Cacuri. Tirava o estaqueamento de madeira, tala é... vara, é uma coisa muito boa. O Cacuri é cipó titica. Nesse tempo cipó titica e paxiuba [...] A gente fazia de cipó, agora tinha muita gente que fazia de arame, nós fazia de cipó. Tinha um mato chamado mucunã. Tirava, partia, tirava aquela fibra, amarrava o pari nas varas, levava muito tempo [...].

No depoimento do pescador se pode perceber que a matéria utilizada, em sua maioria, era proveniente da floresta, apesar de já existir um elemento industrializado, o arame, empregado na feitura do Cacuri por seus contemporâneos.

Na Figura 2, Seu Batista mostra uma das folhas de pari que ele utilizava para compor o cacuri.

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Figura 2: Seu João Batista. FuroTucumanduba, Abaetetuba – Pará e a folha de pari feita de

flecheira e cipó titica, que ele utilizava para montar o cacuri. Foto da pesquisa de campo, abril

de 2011. Arquivo Pessoal: Walter Chile.

Vale ressaltar que a folha de pari retratada foi confeccionada de talas de flecheira, tecidas com cipó titica. A flecheira não aparece no relato de Seu Batista, seja por esquecimento ou por ter sido a paxiubeira (Iriartea deltoidea) mais significativa para esta prática cultural.

A paxiuba127125 foi praticamente dizimada da região. Nas quatro décadas

em que ali convivemos, sequer vimos um exemplar plantado da espécie. O motivo de seu desaparecimento teria relação com a devastação intensa que a região sofreu. É sabido que ela fornece tábuas côncavas de uso excelente para assoalhar pequenas construções e para confecção da tala utilizada na pesca de bloqueio128

126.

Seu Maxico informa sobre a matéria que ele empregava na feitura do cacuri:

127 Na atualidade, utiliza-se a expressão paxiuba para as tábuas extraídas do caule do açaizeiro e são usadas para assoalhar construções como galinheiros, chiqueiros, jiraus e outros. 128 A tala utilizada na pesca de bloqueio consiste em uma vara de aproximadamente 4m de comprimento, extraída do caule da paxiubeira(Iriartea deltoidea). Uma das extremidades da tala é mais estreita que a outra, o que lhe dá uma mobilidade. Isto significa que ela verga, mas não quebra. Sua função na pesca é a de sonda. Com ela o chefe da turma de pescadores verifica a localização do cardume. O domínio dos códigos da pesca permite que o líder estime a quantidade de peixe e, pelo toque do peixe na vara, consegue, inclusive, identificar a espécie que se encontra submersa.

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O pari era de tala, tala de jupati, tala de frecha, de tala de marajá. Tecido o pari com cipó titica. Quando num tinha o cipó titica, ente utilizava o reia cipó – um cipó comprido, vermelho – às vez nós pegava aquela folha daquele espinho muru-muru e amarrava do lado de fora. O buto gustava de atacar o cacuri por fora.

Associada à descrição e explicação na arte de confeccionar o cacuri, o narrador revela a estratégia adotada para proteger sua presa de outro predador, o boto. Este animal aquático, pertencente à família dos cetáceos, alimenta-se de peixes. Ouve-se com bastante frequência nas ilhas de Abaetetuba, relatos de ataques de botos a redes e outras armadilhas de pesca utilizadas pela comunidade.

O boto é um personagem ambíguo. Pescadores de cacuri residentes no interior do município de Cametá-Pará, ao contrário dos abaetetubenses, estabelecem amizade e parceria com esses animais na captura do pescado. Relatos de embarcados abaetetubenses em viagem pelas águas do município de Cametá dão conta que os botos dessa localidade atuam conduzindo os cardumes para o paredão dos cacuri e, consequentemente, para o salão do curral.

Por seus feitos, os botos são recompensados com peixes pelo dono do cacuri. As narrativas revelam ainda uma relação de propriedade desse animal já que cada cacurizeiro cametaense é possuidor de um boto.

Seu Orlando, mestre cacurizeiro que mora no rio da Prata, próximo à baía de Marapatá, apesar da diminuição do pescado alegada pela maioria dos narradores, mantém viva a pesca de cacuri. Sobre a matéria que ele utiliza na feitura do cacuri, informa.

Esse cacuri aí tem de se do marajá, se fu dutru materiar é fraco, dá turu desse marajá aí dura duis u três anos, ele se agarante e... ela, tem ingual um ferrozinho, dura mais, tem

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mais durabilidade. Tira a tala dela, o turu num gosta. Aí ente compra o prástico, a corda de prástico do cabo dez, né,e faz as folha de pari. Num pode fazer de mais de uma braça e meia senão fica muito pesado. No passado era só cipól, ele entrava no lugar do cabo, era o cipol pritinho.

No depoimento de seu Orlando é revelado um novo tipo de matéria que compôs a feitura do cacuri de outrora, consiste no cipó pretinho e era utilizado na tecitura das folhas de pari. O encontro com matérias procedentes de outras paragens e a diminuição da oferta de cipó devem ter oportunizado a substituição do cipó pretinho. Além do que, informam os narradores Orlando, Zal e Quixinho, “que o cabo de nylon tem maior durabilidade, resiste mais à ação da água e do tempo”.

Acompanham-se processos de mudança cultural, no qual os pescadores optam pelo produto industrial, especialmente por sua resistência. A introdução do cabo de nylon, segundo Seu Orlando, Seu Quixinho e Seu Zal veio facilitar o trabalho do cacurizeiro, pois substituindo o cipó na tecitura das folhas de pari, uma atividade a menos deixa de ser feita, uma vez que o cabo de nylon não requer constante manutenção como necessita o cipó.

Compreendemos que o uso de materiais procedentes de outras culturas e absorvido pelos fazedores de cacuri não desqualificam o artefato, pois sua essência continua viva e sua finalidade perdura, qual seja de captura do pescado e de persistência em permanecer no seio da cultura ribeirinha.

A introdução do cabo de nylon é oportuna, pois ele veio substituir o cipó titica na confecção do cacuri, no momento em que a oferta desta epífita começa a diminuir nas feiras interioranas. O cipó titica (Heteropsis flexuosa) se reproduz no dossel de árvores de grande porte e com a busca desenfreada por madeira amazônica não tem encontrado espaço de reprodução.

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Por outro lado, estamos diante de uma sociedade capitalista e industrializada que transforma ideias e elementos da cultura artesanal em produtos de mercado e, com isso, as formas de uso do cipó titica têm aumentado e a demanda pela matéria também. Setores produtivos como a movelaria têm expandido o uso do cipó na confecção de artefatos de estética exótica.

Lavar o Caco, não mais.

Dialogando sobre os tempos passados, as revelações foram emergindo e a memória dos mestres pescadores e fazedores de cacuri sobre o cenário da pesca de um passado recente veio à tona, sendo registrada, questionada, acolhida e interpretada. As rememorações apontaram, entre outras, para a diminuição brutal do pescado na região das ilhas de Abaetetuba e, consequentemente, para o significativo processo de desuso do cacuri. Sobre o sentido do afloramento dessas experiências narradas pelos cacurizeiros, Sarlo (2007, p. 10) faz entender que o passado sempre chega ao presente, em condições subjetivas e “políticas” normais.

Para o Seu Francisco João Maués, 53 anos, conhecido por Seu Joãozinho do baixo Tucumanduba, pescador e líder de turma de “pesca de bloqueio”, nascido no igarapé Acapu, morador das ilhas e ex-praticante da pesca de cacuri, a diminuição do pescado tem a ver com a chegada da rede de três malhos ou tramalho. Seu Joãozinho Maués relembra que:

[...] toda maré baixa a gente ia despescar, né, o Cacuri, toda maré baixa ente pegava o peixe. Naquele tempu num existia malhadeira, que num tinha malhadeira. A única malhadeira que tinha era uma de três furru: um forru com a malha menor por dentro e duis cá malha maior só prá pegá ariri e utrus peixe. Aí depois que chegu essa, essa malhadeira que nós temu hoje em dia, tudo o pescado tem ficado mais difíci, inclusive porque eles num respeitu a época da fécha. Nós num temus uma, umá, uma fiscalização

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que venha fiscalizar. O governo dá tanto dinheiru prá, pró, prus pessoal que dizem que pescam, né. Que a maior parte num [...] pescum, né, e chega na hora o melhor ele num manda fazer, que é fiscalizar [...] fiscalizar a atividade na pesca que a gente tá precisando que fiscalize. Aqui só quem para é a turma que pesca mapará129

127, só ela quem para [...] respeita u defesu. Us zutros nenhum, é isso.

Para Seu Joãozinho, que ainda hoje vive da pesca nas ilhas de Abaetetuba, o aparecimento da rede de pesca do tipo malhadeira e o desrespeito à política governamental voltada para o setor pesqueiro são fatores capazes de explicar a diminuição do pescado.O depoimento deste narrador e sua performance expressando insatisfação e tristeza com a situação do pescado nos dias de hoje vão ao encontro do que afirma Sarlo (2007, p. 9), que “o retorno do passado nem sempre é um momento libertador da lembrança, mas um advento, uma captura do presente”.

Acreditamos que a diminuição do pescado em quantidade comercial e do rareamento de espécies da ictiofauna do baixo Tocantins explicam-se acima de outros fatores pela cegueira e descaso do poder público e representantes políticos, pois em nome do desenvolvimento e do crescimento de alguns está sendo possível sacrificar a qualidade de vida de outros preexistentes no lugar.

Já Seu Aristeu, aposentado, morador do furo dos Carecas no rio da Prata, mestre cacurizeiro que deixou de pescar a aproximadamente 25 anos, revela que quando pescava de cacuri, existia fartura de pescado na região das ilhas de Abaetetuba, como pode ser identificado no depoimento destacado abaixo:

Era a maneira de pegar a bóia mais fáci, entendeu? É mermo que o cara tá esperando chegar pai e mãe quando chega com o cumê, prá gente, sabe? Assim é o Cacuri. É um aparelho que só pega peixe esculhidu. Tucunaré. Só dava peixe graúdo, tinha vez que a gente tirava cincu, seis tucunaré [...]

129 O mapará (Hypophthalmus marginatus) é um peixe de pele que vive na água doce, possui cheiro forte e carne saborosa e é muito comum na região do baixo Tocantins.

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Seu Miguel Pompeu, ex-praticante da pesca de cacuri, que há quarenta anos parou de realizá-la, revela inicialmente que deixou de praticar a pesca porque migrou para a sede do município.

Nós viemos embora dê lá do interior, né. Viemos embora prá cá prá Abaetetuba, né. Então aqui a gente não tinha como fazer, porque não tinha terreno, não tinha área prá fazer, prá pôr e eu acho que a própria juventude já partiu prá outra coisa e foi sumindo o Cacuri, sumindo e sumiu.

Seu Miguel Pompeu narra ainda que o surgimento das redes do tipo malhadeira e tarrafa contribuíram para o desuso do cacuri, porque as redes não demandam tanto trabalho como a feitura e assentamento do cacuri.

... e porque foi surgindo, como tô te falando, outras coisa mais fácil. A malhadeira, a tarrafa, entendeste? Que você não pula hoje na água prá pegar. Vamo dizer: a rede de lanciar, né. Eu saia de casa, vê bem como era cara, eu mê lembro bem, a água que enchia quatro, cinco horas da tarde, eu saia de casa assim duas zoras da tarde, eu acho que dentro de uma hora eu trazia uma rasa130

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cheia dê camarão graúdo, peixe todinho. Só ia lá dê casa até lá no Laranjeira, ele sabe bem onde é o rio, trazia todinha, cara, cheia, muita. Ente parava porque num adiantava mais, se não ia se estragar né. Não tinha esse negócio de você tá com fome e não ter comida não. Podia pular no rio e você trazer comida pra comer. Hoje não, né, tá maior difirculdade, não existe mais isso. Hoje vamo dizer, às vezes eu vou daqui ainda, que eu tenho vontade, o Garapa, sabe? Digo ô, ei Garapa, vamo pegar um peixe? Aí ente vai, mas hoje eu vou só dê dia. Duas, três zoras, quando é cincu horas ente tá saindo. O mais que a gente pega é três quilos dê camarão, graudão também. Aí não, não, parou, acabou, falhou o peixe. Acho que a população

130 Rasa é a expressão local usada para designar um tipo de cesto de talas trançadas (paneiro). A rasa é também usada como unidade de medida na comercialização do açaí em grãos.

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cresceu muito, né! Aí já viu. Então o Cacuri foi acabando por causa disso. Que veio outras coisas que facilitou, né!

É possível identificar na fala de seu Miguel Pompeu o que ele compreende como um dos motivos da diminuição no pescado ofertado pelo ambiente natural das ilhas de Abaetetuba. O ex-praticante de pesca de cacuri atribui essa mudança ao aumento da população. Ele revela também que o aparecimento das redes de malhar e tarrafear facilitaram a captura do pescado, pois seu uso não requer que o pescador entre na água para realizar a despesca. Entrar na água para realizar a despesca de qualquer armadilha torna o pecador vulnerável à ferrada de arraia e ao ataque de poraquê e de jacaré. Veríssimo (1970, p. 6-7) relata que em fins do século XIX a rede de pesca já se fazia presente em rios da Amazônia.

A gente amazônica não dá geralmente apreço aos peixes pequenos e se atém aos maiores e aos de fácil presa com seus instrumentos de pesca curiosos, interessantes, mas primitivos. Esses instrumentos não lhe proporcionavam a captura senão dos maiores, e só os maiores ficaram principalmente conhecendo e aproveitando. A introdução da rede de pescar e o seu uso, aliás limitadíssimo, entre os propriamente naturais da região, deve ter aumentado em número considerável a quantidade dos peixes na alimentação usados.

Torna-se perceptível que a assimilação de outros apetrechos de captura do pescado deu-se de forma lenta, particularmente a rede de pescar, apetrecho altamente absorvido pelo amazônida de hoje, tal sua popularização e presença nas cenas da vida ribeirinha de canto a canto da Amazônia. Os mais antigos moradores das ilhas de Abaetetuba apontam o uso excessivo da rede como responsável pela quase extinção comercial de algumas espécies de pescado.

Entendemos que aceitar somente que um fenômeno pode diminuir a população de peixes de toda uma região, como é o caso da presença da

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malhadeira no baixo Tocantins e seu desdobramento, a sobrepesca, reflete uma visão reducionista do problema e ofusca algo de muito maior que, acreditamos, deve ser levado em consideração que é o parecer dos estudiosos.

É sabido que empreendimentos como a Usina Hidrelétrica de Tucuruí e a Albras/Alunorte em Barcarena se instalaram na região a partir dos anos 80 do século XX provocando mudanças visíveis no aspecto social, cultural, ambiental e humano, discutidos e apresentados num imenso rol de teses, dissertações e pareceres. Questiono-me: teriam esses empreendimentos alguma relação com a desordem ambiental relatada pelos mestres cacurizeiros, no que diz respeito ao aniquilamento progressivo das zonas de produção de alimentos da população local?

A esse respeito o estudioso ElmarAltvater (1993, p. 12) compreende que:

[...] em consequência da globalidade do ecossistema terra pode-se elevar a sintropia em determinadas regiões, enquanto em outras regiões a entropia é aumentada sobremaneira. Progresso, industrialização e modernização estão ligados com o ganho em ordem, ao qual porém correspondem o aumento da desordem, do caos em outras regiões do mundo. Responsáveis por esta contrariedade do desenvolvimento são mecanismos econômicos e sociais. A alteração positiva ou negativa do balanço entrópico tem, assim, consequências econômicas e sociais.

Na fala do estudioso é possível compreender que empreendimentos econômicos e sociais podem provocar a entropia em determinadas regiões, isto é, a desordem e a sintropia – a ordem –, em outras. Olhando-se para a realidade local, pode-se compreender que a desordem, a qual diz respeito ao caos social, ambiental, cultural e humano que aqui se instalou, pode ter gerado contrapartida, elevando o nível de bem estar nas paragens de destino dos bens naturais daqui explorados tornando evidente uma relação de dominador e dominados.

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Seu Batista, morador do rio Baixo Tucumanduba em Abaetetuba relata que a primeira vez que ele viu uma malhadeira foi com um vizinho, “naquele tempo tinha muito peixe e quando o vizinho tentou tirar a rede prá dentro do casco ele não conseguiu, pois era muito peixe que ela pegava. Ele teve que puxar a rede prá terra prá poder despescar”.

Apesar de muitos depoimentos apontarem para a diminuição da ictiofauna nas ilhas de Abaetetuba, o depoimento do Seu Orlando Machado Figueiró do rio da Prata segue para a direção contrária. Praticante da pesca de cacuri, ele relata o seguinte:

Antigamente pegava menos peixe, parecia que tinha quantidade de peixe, mas num tinha não. Num tinha porque só existia anzó e uns pari. Num existia a malhadeira, o corral que era pouco que existia, mas ele num pegava tanto, né ...olhe, ele prendia mais um pouco, né, mas num era tanto que ele prende agora. Agora Deus manda de cardume de tainha de dez tunelada. O meu ermão tava pescando de malhadeira aír fora e o meu filho cu o filho dele, meu sobrinho, tavu mais pra cima, eles tavu prá baixu, que quando ele passu a lanterna assim, estrondu um lote de tainha, que ele disse que ali tinha sessenta mil quilos de peixe. E ela estrondu pertu da muntaria que eles estavu ca rede n’água. Não era muito grande, mas meteu eles no fundo. Isso fui ano passado. Então vai servi, que diz assim, ah, vai acabar! não acaba! O que Deus faz só multiprica. Quanto mais vem gente prá cumer aqui, mais ele manda abondância.

É possível identificar na fala de Seu Orlando a força da matriz religiosa como norteadora para a divergência de percepção entre seu depoimento e os apresentados pelos demais narradores no que tange à diminuição do pescado. As dificuldades da pesca no passado em função dos instrumentos de pesca artesanais limitados e o poder divino na contínua multiplicação para alimentar a população que cresce, demonstram um presente sem problemas como tem

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sido descrito pelos praticantes e ex-praticantes da pesca de cacuri. Sobre as percepções diferentes e divergentes do passado Sarlo (2007, p. 9) assevera que:

O passado é sempre conflituoso. A ele se referem, em concorrência, a memória e a história, porque nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça, de subjetividade). Pensar que poderia existir um entendimento fácil entre essas perspectivas sobre o passado é um desejo ou um lugar-comum.

Baseados na oralidade, o modo de ler e interpretar o mundo, apresentado pelos pescadores de cacuri, compreendemos o conflito entre história e memória como uma dimensão importante para se distinguir o que pressupõe o saber escrito e o saber vivido. A discordância nos depoimentos pode ser comparada com a desconfiança que a história como ciência tem das informações transmitidas pela memória como lembrança problemática de experiências vividas.

Para os sentidos desta pesquisa, baseada na História Oral como metodologia de investigação e interpretação, as vozes divergentes não são aniquiladas para se chegar a depoimentos uníssonos, ao contrário: a valorização e análise de depoimentos com explicações distintas da maioria permitem alcançar aspectos da complexa forma como homens e mulheres vivem seu cotidiano e o significam.

O que se pode prever de tudo isso é que as circunstâncias históricas passadas e presentes, permeadas de incertezas e omissões do poder público e de classe política inexpressiva, tem gerado transformações onerosas para a qualidade de vida das populações locais. Isso tudo leva a pensar que a pesca com cacuri estuarino poderá ficar somente na lembrança do povo abaetetubense.

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A cultura do Cacuri na Amazônia

No girar do globo, dada às circunstancias espaciais e temporais, as experiências de dominação e opressão culturais, especialmente originárias do velho sobre o novo mundo, se deram, como tem revelado timidamente a história oficial e extraoficial, por instrumentos que variam de acordo com a mudança dos tempos.

Exploração ilegal de bens naturais, escravidão, dominação ideológica, armada ou de outras formas, uso de instrumentos contemporâneos como a introdução de novos valores para a formação de consumidores, saque do conhecimento tradicional, que em muitos casos tem como argumento de entrada a própria ciência, são exemplos de dominação e opressão vivenciados no universo amazônico desde os tempos da colonização portuguesa.

Considerando as complexidades que estão envolvidas no conceito de cultura, que segundo Williams (1979, p 17) “se funde e confunde experiências e tendências radicalmente diferentes de sua formação”, adotamos neste trabalho este conceito como modo de vida e, para não esquecer Thompson (1998), também como modos de luta.

Reconhecemos que a relação construída por homens e mulheres da Amazônia no lidar com a pesca em cacuris, igualmente com a leitura, compreensão e respeito à dinâmica da floresta em sua dimensão física, social e sobrenatural, são componentes da formação cultural regional. O conjunto desses saberes e práticas, correlacionados ao universo de crenças e costumes, constitui a cultura de populações da Amazônia alagada e de terra firme, rural e urbana.

Tais saberes, durante muito tempo, para seguir em sintonia com Williams (1979), foram ostensivamente rejeitados pela concepção clássica de cultura. Tal visão colocou em destaque, sobremaneira, a arte erudita, os saberes letrados e os valores oriundos da cultura dominante burguesa e

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urbanocêntrica. Infelizmente essa concepção que sustenta o discurso do senso comum ainda hoje exerce grande força no imaginário em disseminação sobre a região e seus habitantes.

Há um grande esquecimento, por parte do próprio pensamento acadêmico e por alguns de seus intérpretes, de que a natureza não se descola da cultura, o popular do erudito, a oralidade do letramento, a tradição da modernidade, assim como o local do global. Esses pares que foram postos em dicotomias, antes de tudo são campos inter-relacionais e complementares. O saber local, por exemplo, é o grande sustentáculo do nascimento de uma série de teorias científicas. Igualmente, antes da disseminação e hegemonia do conhecimento letrado, as formas de oralidade eram os meios pelos quais povos e culturas transmitiam descobertas, ensinamentos e cosmologias.

Em outra direção, é preciso considerar tentativas bem sucedidas de escrita de um novo tipo de saber letrado que emergiu na academia, pelo menos a partir da década de 1960. Dentre os vários campos, recuperamos aqui a perspectiva dos Estudos Culturais Britânicos, no qual Williams é uma das principais vozes representativas. Em sua teoria social de cultura, o pensador britânico não fatia a cultura da vida doméstica, ordinária, termo utilizado por ele para se contrapor ao extraordinário.

Em diálogo com a contribuição da Antropologia Social, mas valorizando perspectivas de análise dos encontros e confrontos interculturais contemporâneos, que se explicam pela influência e formas de recepção dos produtos industriais na vida da classe trabalhadora e popular, Raymond Williams apreende cultura como modos de vida em suas experiências concretas e ressignificações simbólicas.

Diante desses quadros, o autor compreendeu que saberes e práticas culturais atravessam processos de mudanças distintas e inter-relacionais. Os conceitos de emergente, dominante e residual, por ele formulados, ganham

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ressonâncias no contexto amazônico em se tratando do saber-fazer do povo da floresta que operam na (des)pesca do Cacuri. Williams (1979, p. 125) compreende o residual como um elemento efetivo do presente que foi formado no passado e se encontra ativo no processo cultural não como lembrança de sua existência, mas como componente presente na cultura.

A esse respeito, é possível inferir que o cacuri hoje elaborado nas ilhas de Abaetetuba corresponde ao que cunhou Williams (1979) como residual. Esse elemento analítico carrega consigo alguns aspectos tradicionais os quais se formaram no passado, mas que continuam se manifestando ainda no presente. Nesse sentido, mesmo diante das transformações pelas quais vem passando a arte de tecer e sentar o cacuri nas margens dos rios na Amazônia, a tala e o saber-fazer são exemplos da persistência de uma cultura de pesca tradicional regional, portanto ícones residuais, conforme se visualiza na Figura 3.

Figura 3: Seu Quixinho desenrolando a folha de pari, por ele tecida com talas de jupati e

corda de nylon para compor seu Cacuri. Local: Furo Sirituba, Abaetetuba – PA. Foto da

pesquisa de campo, abril de 2011. Arquivo Pessoal: Walter Chile.

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A Figura 3 revela ainda um remanescente cacurizeiro em atividade, um amazônida que resiste ao processo histórico de substituição dos artefatos manufaturados pelos industrializados para a captura do pescado. Seu Quixinho desenrola uma folha de pari tecida com talas de jupati e corda de nylon verificando o estado de conservação da peça, como parte dos preparativos para realizar o assentamento de seu cacuri no furo Sirituba. Ao mesmo tempo, acompanho o uso de corda de nylon como exemplo de fusões do tradicional com o moderno na arte amazônica. Assim, do passado Seu Quixinho usa a tala e o saber deixado por seus ancestrais, no presente apropria-se do cabo ou corda de nylon que se mostra mais durável e resistente que o cipó no teçume das folhas de pari.

Por outro lado, o povo da floresta utiliza-se da tecnologia e dos produtos industrializados para reafirmar seu saber e suas práticas culturais. Se utilizar esses produtos é participar da modernidade, o pescador de cacuri milita na modernidade ao utilizar esses produtos no cotidiano.A relação entre tempos e artefatos culturais distintos, deixa ver que o trabalho de tradição seletiva evidencia incorporações de elementos ativamente residuais e isso sé dá pela interpretação, diluição, projeção e exclusão discriminativa (WILLIAMS, 1979, p 126).

Já o conceito dedominante aplicado ao universo da pesca em cacuris pode ser interpretado como tradições que foram entrando em desuso e substituída pelo uso de novos elementos. O cipó que fazia a amarração das talas que compunham a estrutura da folha de pari emerge como elemento do passado apontado por Williams (1979), que dá lugar ao elemento do presente, o dominante, representado pelo cabo de nylon, absorvido pelos mestres cacurizeiros na feitura das folhas de pari em decorrência de sua potencialidade.

Nesse universo de lutas pela tradição e pela vida, apreendo a presença do emergente, entendido como algo novo que está brotando no bojo das

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práticas culturais. Williams (1979, p. 126) assinala que “novos significados e valores, novas práticas, novas relações e tipos de relação estão sendo continuamente criados”. A esse respeito, o autor reforça que “o que importa, finalmente, no entendimento da cultura emergente, em distinção da cultura dominante e residual, é que ela não é nunca apenas uma questão de prática imediata. Na verdade depende crucialmente de descobrir novas formas ou adaptações da forma” (WILLIAMS, 1979, p. 129).

Compreendemos, portanto, que desdobramentos deste estudo, como a possibilidade de feitura de uma construção cenográfica plural para abrigar encenações inspirado na estética e na forma geratriz do cacuri estuarino, que foi proposta na dissertação “O Teatro Cacuri: Narrativas de Vida e Cenografia Amazônica”, caracteriza-se como uma maneira de “adaptação da forma”, como uma descoberta de novas formas de composição e utilização defendida por Williams.

Fontes de Pesquisa

Depoimentos Orais

1. Entrevista com seu Aristeu Machado Figueiró, 70 anos, realizada no Furo dos Carecas, Rio da Prata, Abaetetuba-Pará, no dia 26/04/2011.

2. Entrevista com seu Orlando Machado Figueiró, 64 anos, realizada no Rio da Prata, Abaetetuba-Pará, no dia 13/07/2011.

3. Entrevista com seu Miguel Pompeu Ferreira Maués, 63anos, realizada na cidade de Abaetetuba- Pará, no dia 28/04/2011.

4. Entrevista com seu João Batista dos Reis Silva, 97 anos, realizada no Rio Baixo Tucumanduba, Abaetetuba-Pará, no dia 26/04/2011.

5. Entrevista com o seu Francisco João Maués, 53 anos, realizada no

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Rio Baixo Tucumanduba, Abaetetuba-Pará, no dia 26/04/2011.

6. Entrevista com o seu Coriolano Amaral de Freitas, 72 anos, realizada na cidade de Abaetetuba-Pará, no dia 12/05/2011.

7. Entrevista com o seu Sebastião Pereira Cardoso Filho, 44 anos, realizada no rio Sirituba, Abaetetuba-Pará, no dia 11/05/2011.

8. Entrevista com o seu José Maria Barbosa Ferreira, 50 anos, realizada no rio Sirituba, Abaetetuba-Pará, no dia 11/05/2011.

9. Entrevista com o seu Maximiliano Rodrigues Correa, 71 anos, realizada na cidade de Abaetetuba-Pará, no dia 28/04/2011.

Viajantes, Naturalistas e outros Escritores

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CONDAMINE, Charles M. de La. Viagem na América Meridional: descendo o rio das Amazonas. Tradução Candido Jucá Filho etal. Ed. Pan-Americana. Rio de Janeiro, 1944.

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A Voz dos Desassistidos

Marcos Valério Lima Reis (FIBRA)

Este trabalho aqui apresentado é parte de uma pesquisa realizada durante o mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura que possibilitou um olhar detalhado da vida e obra de um dos literatos mais influentes do modernismo paraense. Estabelecer uma linha entre a trajetória de vida de Bruno de Menezes e a tecitura de sua obra foi um dos objetivos para a conclusão desse estudo.

É nessa esteira que direcionei uma metodologia que permitisse esse binômio: vida e obra. Dentre os diversos capítulos que compuseram a temática da dissertação, escolhi um por apresentar uma identidade marcante na vida de Bruno de Menezes: a resistência à relação de poder, ou pela análise de outros pesquisadores ou pela análise do seu lado anarquista. Neste sentido coloquei em relevo o que intitulamos “Bruno de Menezes: a voz dos desassistidos”.

É esta verve política e poética do literato a qual iremos descortinar neste estudo que envolve agentes sociais, que sempre ao olhar do outro, do dominante, foram silenciados, marginalizados e estereotipados ao longo de todo um percurso histórico. É pelo olhar avesso ao do colonizador e de grande parte da literatura existente a sua época, que colocarei em evidencia o pensamento de Bento Bruno de Menezes Costa, um intelectual negro, escritor, poeta, literato, morador do periférico bairro do Jurunas em Belém, vivente no final do século XIX e início do XX, um período histórico, efervescente e transformador da cultura e da vida paraense.

Observando suas influências, diálogos, frustrações e decepções, anseios e as praticas de sociabilidades compartilhadas com seus iguais e com circuitos intelectuais e políticos belenenses, pretendo reconstruir a trajetória131

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de vida 131 Neste trabalho, entendo a palavra trajetória como a categoria que explica os trânsitos

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do folclorista, cooperativista, anarquista e iniciador do modernismo no Pará.

Na contramão da dominação

A pesquisa reserva ao seu autor uma variedade de emoções durante todo o seu desenvolvimento. Com essa não foi diferente, cada instrumento observado, lido e o manuseio em sua interpretação, provocou as mais diversas sensações. É nesse exercício que proponho no início de escrita dessa dissertação evidenciar o trajeto e o desenvolvimento deste trabalho que me fez repensar posições culturalmente instaladas, principalmente quando se fala em homogeneização cultural, silenciamentos, o olhar do outro, negação de sujeitos, colonizado e colonizador, práticas sociais, tensões culturais, diálogos, construção e desconstrução, além de agentes históricos cujas representações ganharam ecos e ressonâncias em muitas instâncias culturais.

Investigar é um trabalho difícil e prazeroso, pois exige do pesquisador uma mudança de postura que move valores e aspirações. Todo ato de pesquisa aciona dimensões paradoxais, especialmente neste século XXI, quando somos empurrados para os dilemas de paradigmas os quais assolaram as Ciências Sociais. Boaventura de Sousa Santos (1987) deixa evidente esse dilema ao refletir sobre a realidade contemporânea.

Vivemos num tempo que ao debruçar-se sobre si próprio descobre que os seus pés são cruzamentos de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não ser, ora pensamos não ter ainda deixado de ser; sombras que vem do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca vir a ser (SANTOS, 1987, p. 30).

Tudo o que parecia instituído perde conceituação e passa adquirir outros significados. É diante desse processo de ressignificação que trilhei o caminho deste trabalho.

históricos de Bruno de Menezes. Portanto, será utilizada para dar conta das análises de acervos de fotos, jornais, revistas, livros, produções poéticas, teses, dissertações, monografias, artigos sobre a formação cultural, religiosa, social, política e literária sobre Bruno de Menezes.

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Nesse sentido a constituição de suas identidades foi urdida por diversas experiências, tensões e sociabilidades com povos e culturas nativas e européias. Diante de constantes trocas, alinhavadas no espaço geográfico Amazônico, essas populações em mesclas culturais formaram uma rede rizomática de saberes e fazeres. Neste sentido é válido recuperar reflexões de Edouard Glissant quando nega a existência de um sentimento “absoluto sacralizado de uma posse ontológica, mas a cumplicidade relacional” (GLISSANT, 1990, p. 161).

É nessa formação de teias que Glissant (1990, p. 23) toma o conceito de rizoma, como “raiz múltipla, estendida em redes, na terra ou no ar, sem que nenhum tronco intervenha como predador irremediável” o que se opõem a raiz única e totalitária. Neste sentido o convívio e as relações sociais se tornam determinantes para a afirmação, negação ou reconstrução da identidade (HALL, 2001).

Fazendo um recorte amazônico diante desse processo de identidades, Sarraf-Pacheco (2011, p. 47) evidencia os diálogos entre os negros escravizados, os indígenas e os espaços amazônicos.

(...) dizer que desde a presença dos primeiros africanos nos Marajós no século XVII, intensificando-se com a criação da Companhia Geral do Comércio do Grão Pará e Maranhão (1755-1778), ou mesmo após sua extinção, os mais de 53.000 africanos recrutados para a região não deixaram de criar intercâmbios com inúmeras populações indígenas e reinventar espaços de liberdade sob regime das águas dinâmicas das matas.

Para construir um aporte para sedimentar este estudo, adotei uma teoria a qual possibilitasse dialogar com as diversas formas de olhar o objeto de estudo. A teoria interpretativa dos Estudos Culturais Britânicos, veio ao encontro dos anseios para a construção do pensamento que nortearam esta pesquisa e cujos principais representantes são Raymond Williams (1979),

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Richard Hoggart (1973), Stuart Hall (2003) e Homi Bhabha (2003).

A maneira como esses intelectuais confeccionam leituras da realidade social a partir do diálogo com diferentes documentos (literários, visuais, manuscritos, orais) embasam a perspectiva de análise da trajetória de vida política e literária de Bruno de Menezes. Nesta perspectiva, faço um panorama do campo teórico que serviu de base para a confecção desta dissertação.

Foi nos anos 1960, com o trabalho de Lévi-Strauss e Roland Barthes na França, e de Raymond Williams e Richard Hoggart, no Reino Unido, que a “virada cultural” começou a ter um impacto maior na vida intelectual e acadêmica. Um novo campo interdisciplinar de estudo organizado em torno da cultura como o conceito central — os “Estudos Culturais”— começou a tomar forma, estimulado em parte pela fundação de um centro de pesquisas de pós-graduação, o Centro de Estudos Culturais Contemporâneos, na Universidade de Birmingham, em 1964. Essa corrente teórica ganhou espaço especialmente a partir de sua internacionalização nos finais da década de 1980, nos meios acadêmicos e está presente em áreas do conhecimento como a Antropologia, Sociologia, História, Geografia, possibilitando às pesquisas uma diversidade de abordagens.

É imperioso colocar em destaque a influência dos Estudos Culturais para a tecitura dessa dissertação, porque possibilitou interpretar questões de ordem social e econômica, referentes ao contexto paraense, desconectadas de análise estruturalista, com isso permitindo observar outras dimensões da vida humana de um literato negro, oriundo de família pobre, colocando em relevo vozes de culturas “subalternas”. Desta forma, a virada epistemológica representada pelos Estudos Culturais evidencia como cultura, consciência e experiência, são dimensões amalgamadas no fazer cotidiano de qualquer agente histórico.

A relação de Bruno de Menezes com o primeiro grupo de modernistas e os articuladores da revista Belém Nova, seu idealismo à frente do cooperativismo,

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serviram de fio condutor para uma aproximação com o texto A fração de Bloomsbury, de Raymond Williams (1999). Neste artigo, o intelectual inglês analisa a experiência de um grupo cultural britânico nos primeiros anos do século XX, bem como sua representabilidade para a sociedade e cultura inglesa. Nele, Williams debruça-se sobre as relações pessoais e o prazer estético. Assim, aproximo as relações de Bruno de Menezes com os Estudos Culturais Britânicos, à frente da Belém Nova e de um grupo de intelectuais da paisagem amazônica, que experimentaram a arte de arquitetar uma produção atravessada por ideias também presentes no trabalho de Willians e seu círculo cultural.

Utilizei para isso a pesquisa documental de autores e obras, livros, artigos, teses, dissertações e monografias sobre Bruno de Menezes e suas obras. Foi necessário captar de modo empírico o circuito intelectual de Bruno de Menezes, em entrevistas com parentes, e conversas com amigos. Assim, o recurso metodológico da História Oral foi muito mais do que uma técnica de apreensão de informações, mas um campo teórico de interpretação das experiências narradas.

Somando a isto, avancei a investigação sobre a trajetória de Bruno de Menezes em leituras de jornais, suplementos literários e das diferentes edições da obra, assim como do acervo particular (cartas, fotografias, correspondências). Foi durante um mês confinado nas bibliotecas da Academia Paraense de Letras, da Arthur Viana e do Arquivo Público do Pará, que acompanhei a memória cultural, social, artística e literária impregnada nos textos de seus articulistas, período entre 1923 a 1945, tempo que circulou a Revista Belém Nova (1923 a 1929), um dos marcos do modernismo na capital paraense, e outros periódicos como o Suplemento Literário da Folha do Norte, as revistas A Semana, Terra Imatura e Amazônia. Tais acervos foram importantes para o entendimento dos meios de produção e as práticas sociais nas primeiras décadas do século XX.

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Analisando esse material fui ao encontro da trajetória de vida do autor, suas influências, refutações, as simbologias utilizadas, as significações, crenças, identidades, religiosidades e saberes vividos por ele. Ancorado pelos Estudos Culturais, aporte teórico que se constitui em um campo de investigação interdisciplinar e ocupa-se em interpretar essas experiências socioculturais de diferentes grupos em mediação e conflitos, voltando-se especialmente para a sociedade contemporânea sem esquecer as práticas vividas no passado, pesquisei a trajetória de Bruno de Menezes e o aspecto contextual (histórico, político, social, econômico) que a cerca. Assim, fiz um levantamento de livros relacionados à obra elaborada, periódicos, informações disponíveis na Internet, biografias, fotos, artigos, monografias, dissertações e teses que de alguma maneira discutissem a obra e a temática da negritude, de identidades, religiosidades e saberes e suas relações com o contexto amazônico.

É preciso lembrar, a última década do século XIX, mais precisamente o ano de 1893, um marco para este trabalho, pois além de importantes fatos sociais surgidos no final deste século, que tratarei no decorrer deste artigo, nascia Bento Bruno de Menezes Costa, menino paupérrimo do bairro do Jurunas em Belém, negro, filho de pedreiro com uma lavadeira e com um intenso circulo de amizade.

Os últimos dez anos do século XIX foram de grandes transformações políticas, sociais, culturais e artísticas, haja vista a efervescência que vivia a sociedade paraense e as mudanças nas paisagens urbanas que eram implantadas em Belém pelo intendente Antonio Lemos132

130. É nesse contexto de diálogo, trocas culturais e práticas sociais que vivia o poeta Bruno de Menezes, captados em vestígios deixados pela sua história de vida e as marcas e heranças culturais, sociais, políticas e artísticas, além da familiar.

Bruno de Menezes presenciou a transformação física, social e econômica de Belém. A sua poesia trouxe o retrato degradante da capital paraense, uma

132 Ver mais em SARGES (2000; 2002).

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metrópole que desejou “luzes de candelabros, transportes modernos, conforto natural da civilização” (MENEZES, 1993, p. 488). Entretanto, na percepção do poeta, Belém não teve um planejamento durante esse período, levando com isso à falência social. Sarges (2010, p. 138), acompanhando a compreensão de Luís Osíris da Silva sobre esse decadente período, confirma esse caráter “puramente colonial, destinado ao comércio internacional”.

A Amazônia, descapitalizada, manietada pela falta de poupanças locais, presa a uma estrutura econômica retrógrada, viu passar, desse modo, sua chamada fase áurea. E assim, embora tenha sido a pedra de toque da conquista do vale para o Brasil, a borracha ficaria reduzida apenas ao mais vibrante capítulo do homem planiciário para a constituição de sua economia (SARGES, 2010, p. 138).

A própria condição financeira do poeta refletia o estado lastimável deste período. Bruno afirma o estado provinciano da capital paraense quando relaciona os períodos de ascensão e decadência desse tempo histórico, mostrando o pensamento da elite social que via esse momento usufruindo da riqueza adquirida no comércio. Para a classe privilegiada, esse período seria eterno, “não passaria”. Menezes critica a ostentação, por isso “esbanjastes os ouropeis da tua leviandade e não cuidaste de ti”. (MENEZES, 1993, p. 488).

Bruno teve sua infância marcada pela pobreza, condição legitimadora do contraste social existente entre a prosperidade dos barões da borracha e a mendicância que grande parte da população belenense vivia. A inquietação de Bruno de Menezes frente à condição social e financeira de sua família o fez lançar-se ao trabalho árduo como aprendiz de gráfico; conforme relata Rocha (1998):

Pobre, paupérrimo mesmo, trabalhou Bruno como aprendiz de gráfico na Livraria Moderna, de Sabino Silva, onde, como de praxe aquela época sofria vexatórios castigos impostos por Manoel da Costa. Semi-operário afeito as artes

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de oficina, passou-se para a livraria Gillet e já na qualidade de mestre prestou serviço na livraria Bittencourt. É uma das fases mais criticas de sua vida, espoliado e humilhado, Bruno revolta-se contra o desumano regime capitalista. E torna-se prosélito da doutrina anarquista (informação verbal)133131.

Num sobressalto temporal para a década de 1940, por ser pertinente à crítica social realizada pelo poeta, destaco o estado de pobreza vivido por Bruno de Menezes em sua fase adulta, casado com a professora Francisquinha Menezes e com filhos. Este período, assim como em sua infância, foi de desilusão e ao mesmo tempo de inquietude familiar e social. O estado miserável da família Menezes é recapitulado pelo olhar atento de sua filha, Irmã Marília Menezes. A narrativa ilustra a solidariedade que Bruno recebeu de amigos para a manutenção da família e para a aquisição da casa própria.

As casas em que morávamos na Cidade Velha (só posso falar sobre essas) eram todas alugadas, com sacrifício, por meus pais, pois o aluguel era alto para dois funcionários públicos que ganhavam uma miséria. Muito pequenas para os 6 filhos (Geraldo vivia no Seminário de Belém)134132 e os pais. Na casa da Rua Gurupá ainda tínhamos uma senhora que ajudou mamãe a nos criar durante 8 anos. Morreu quando eu tinha 6 anos e a chamávamos de mamãe Zizi. Na casa da Rua Santarém, 10, muito estreita, meus irmãos rapazes dormiam com a rede por cima da mesa, e as 4 moças no mesmo quarto pequeno. Havia uma fossa horrível na rua. Com muita oração, economia severa e ajuda de uma senhora amiga, foi possível comprar a atual casa da João Diogo, 26, que nos pareceu um palácio. Na João Diogo papai teve um quarto mais espaçoso para

133 Fragmento do pronunciamento feito em 1988, pelo príncipe dos poetas Alonso Rocha, na Academia Paraense de Letras em homenagem ao 95º aniversário de nascimento de Bruno de Menezes.134 Geraldo Menezes, hoje monsenhor, vivia no seminário de Belém, preparando-se para o sacerdócio.

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escrever e guardar livros e papelada, arrumada por ele e minhas irmãs. Entretanto, mamãe, com sua veia poética, sempre dizia que a casa da Rua Santarém onde passamos mais tempo, foi o casulo onde as borboletas (filhos) se formaram para a vida (informação verbal)135133.

A vivência pobre de Bruno de Menezes projetou-lhe contra o sistema capitalista. Daí sua imersão no cooperativismo e no sindicalismo como formas de resistências à dominação econômica, fato que mais tarde iria torná-lo um defensor da humanidade e dos direitos trabalhistas. No soneto O Operário (1913), primeiro soneto de Bruno de Menezes publicado em um periódico da época chamado O Martelo, a crítica social por ele realizada mostra sua preocupação com o desrespeito ao trabalhador:

Fatigado levanta-se o operárioPor haver trabalhado o dia inteiro;E mesmo sem dirigir-se ao calvárioDo seu agro labor – o grande obreiro...

E se acaso não chega por primeiroAntecedendo da oficina o horário,Se quiser para o almoço ter dinheiroTem de escutar de doestos um rosário... (MENEZES, 1993, p. 453)

A crise econômica não diminuiu a exploração do trabalho e a condição de inferioridade dada ao trabalhador é colocada em relevo neste poema. Bruno critica a duração da jornada de trabalho, o estado mental e físico a que era submetido o trabalhador e a baixa remuneração. Sarges (2010, p. 103) comenta essa situação de completa submissão do trabalhador. A força produtiva de trabalho e, nesse período em especial a do seringueiro, possuía uma situação análoga à de servidão.

135 Entrevista realizada em 19 de maio de 2011 via correspondência eletrônica.

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O seringueiro era o último elo da cadeia econômica. Aparentemente, era livre, mas a estrutura econômica o colocava em situação de trabalho semelhante a servidão. Comprava os suprimentos necessários a preço altíssimo no armazém do seringalista, por isso sempre estava em débito (...) e endividado, não conseguindo mais escapar da exploração do patrão (SARGES, 2010, p. 103).

Observador da realidade, Bruno de Menezes utiliza sua arte literária para consolidar seu pensamento e suas inquietações pessoais. Seus sentimentos íntimos foram transportados para a literatura. Assim, posso entender que uma das identidades construídas pelo poeta possui um caráter de resistência frente a processos de homogeneização ou de subordinação culturais impostos. Neste sentido, evidenciei a influência dos fatos vividos por Bruno de Menezes durante as primeiras fases de sua vida na composição identitária de sua obra. Baseando-me na ideia de que a realidade molda o individuo, é preciso levar em conta cada circunstância das quais o agente histórico participou e os meios de produção de sua obra.

Bruno de Menezes era partícipe das práticas sociais, culturais e religiosas, vivenciadas em seu bairro. “Livre e solto”, circulava em diversos ambientes, bebendo da sociabilidade e da intensa tradição do bairro. Rocha (1988), narra o trânsito de Menezes nesses espaços.

(...) acompanhando nos ombros largos de seu pai no círio de Nazaré, gola azul, gorro de marinheiro de fitas pretas e letras douradas, pisoteando, adolescente nas saídas festivas de Boi-Bumbá de seu padrinho Miguel Arcanjo, sob os olhares carinhosos de sua mãe Balbina e a proteção de João Golemada, maranhense, valente na defesa de seu bando, quando a policia ainda não havia proibido os “bois” saírem de seus currais para os tradicionais encontros. Levado pela mão de dona Binca, freqüentava a antiga igreja dos capuchinhos, onde aprendeu a rezar. Mão ardendo dos

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bolos da palmatória da professora Gregória Leão de Matos, cuja escola particular ficava vizinha a estância Jaqueira e posteriormente no Grupo escolar José Veríssimo, onde terminou o curso primário, Bruno de Menezes recebia o sinete que viria marcar a emotividade pintura de sua obra e a autenticidade de sua poesia musical comunicativa (informação verbal)136

134.

A iniciação à prática religiosa na Igreja católica, a participação nos festejos do Círio de Nazaré, a participação ativa nas festas de boi-bumbá, a iniciação nos estudos primários são indicadores do diverso nas identidades apresentadas pelo poeta. O circuito nos mais diferentes meios de produção lhe credenciou a uma visão múltipla das manifestações realizadas no bairro. O poeta interagiu com diversos agentes sociais, ora articulando resistências, ora mediando. Nos diversos trânsitos sociais, Bruno de Menezes participou de “confrontações sociais, relações de poder, estratégias de resistências e reafirmação de valores e identidades” (BURKE, 1992, p.327).

Foi na resistência ao sistema capitalista que Bruno de Menezes consolidou as instâncias das cooperativas e promoveu as redes de sindicatos para a organização dos trabalhadores. Líder dos desfavorecidos, seu pensamento era resultado do anseio grupal e seu engajamento na teia social era visceral, daí “o conceito de cultura passou a incluir o fazer significativo presente em todo modo de vida e suas estruturas de sentimentos” (WILLIAMS, 1992, p. 29). A postura do poeta nos diálogos com seus pares ou mesmo dialogando com os diversos sujeitos sociais, sua posição era por vezes de negociação de identidades, o que possibilitou seu trânsito nas mais distintas divisões e limites de identidades convencionais.

Em seu arcabouço literário Bruno de Menezes, dialogou com agentes que, à margem social, reproduziam costumes e tradições simbólicas ancestrais

136 Fragmento do pronunciamento feito em 1988, pelo príncipe dos poetas Alonso Rocha, na Academia Paraense de Letras em homenagem ao 95º aniversário de nascimento de Bruno de Menezes.

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passadas de geração a geração, ao mesmo tempo em que se atualizam diante da modernidade. O entendimento de Renato Ortiz sobre o conceito de cultura popular suscita uma dicotomia em que a “polêmica oscila em dois polos” (ORTIZ, 1992. p. 5.), compreendendo a cultura popular tanto como “cultura subalterna”, uma forma de interpretação classista, na qual a cultura seria separada por um hiato entre o popular e o erudito e, de forma “mais abrangente”, quanto “cultura popular” a partir da acepção de “povo”. Assim vejo no engajamento social do poeta e em seu pensamento anarquista, quer nos momentos que esteve à frente das lutas de classes ou diante da resistência a ideologias dominantes, um porta-voz de grupos em mediações.

Nesse sentido, o conjunto da obra de Bruno de Menezes e os meios de produção em Batuque apresentam olhares perspectivos sobre tempo, lugar, política, identidades e religiosidade, associados a sua experiência cotidiana. Esses fatos proporcionaram a elaboração de seu pensamento intelectual e social o que resultou em um processo integrado com as questões comunitárias, falas que provocaram a associação, a vinculação entre os indivíduos conscientes de sua condição sociopolítica, literária e cultural e que, inspirados nas lutas passadas, puderam intervir no cenário presente.

Essa influência o motivou a produzir uma literatura engajada, preocupada com as questões sociais e religiosas de seu tempo. O que fica latente é que as experiências de vida desde a infância do poeta, nas relações de trocas, reelaboração, tradução e no trânsito com diversos agentes sociais, foram as forças motrizes de sua produção. A sua vivência sedimentou a construção de suas identidades não só em Batuque (l931), mas também em seus ensaios antropológicos e folclóricos – Boi Bumbá (1958) e São Benedito da Praia (1959) – e em sua ficção narrativa – Maria Dagmar (1950) e Candunga (1954). Fernandes (2010, p. 224) dimensiona a compreensão do período histórico para o entendimento da realidade vivida pelos seus agentes.

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Compreender o cenário histórico e social de produção da arte e da cultura, e das consequentes poéticas e teorias, é importante para compreendermos que existem correspondências entre intelectuais condicionados pelas mesmas realidades, a despeito de não terem uma imediata relação e influência.

Bruno de Menezes foi um intelectual com uma pluralidade de enfoque que absorveu informações em seu círculo no bairro do Jurunas de sua infância, nas igrejas e festas religiosas, com os capoeiras nos folguedos de boi-bumbá, no Ver-o-Peso participando e pesquisando a festa de São Benedito ou mesmo em sua inclinação anarquista. Esse conhecimento adquirido e toda sua cosmovisão foram utilizados na composição de seu repertório literário. Neste sentido, o poeta possui uma produção literária ao longo de toda sua trajetória de vida.

A amargura diante da condição financeira, a luta para garantir o sustento da família e os vexatórios castigos impostos constantemente por Manoel da Costa137

135, seu chefe na oficina de encadernação, fez com que o aprendiz de gráfico na Livraria Moderna de Sabino Silva, Bento Bruno de Menezes Costa, idealista e trabalhador, se decepcionasse com o sistema capitalista. Neste sentido, Rocha (1994, p. 10) aponta o estado de “revolta” do poeta, que, inspirado pela leitura anarquista, descobriu no sindicalismo e no cooperativismo o sistema humanizado de viver:

É uma das fases mais criticas de sua vida, espoliado e humilhado, Bruno revolta-se contra o desumano regime capitalista e torna-se prosélito da doutrina anarquista, influenciado por leituras de Blasco Ibanez138

136. Tendo sido

137 Proprietário da gráfica e Livraria em que Bruno de Menezes trabalhou.138 Nasceu em Valência, 1867 e faleceu em Menton, 1928 Romancista espanhol. Licenciado em Direito, inicia a sua carreira literária escrevendo em catalão, mas depois passa a escrever em castelhano. Tem alguma actividade política, aderindo ao republicanismo federalista. Desenvolve uma intensa actividade como jornalista e orador, destacando-se na sua juventude como agitador democrático e anticlerical. Em 1891 funda o jornal El Pueblo, criando depois as editoras Prometeo e Sempere, a partir das quais leva a cabo um importante trabalho de

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o anarquismo o inspirador de ardorosos militantes do sindicalismo, Bruno abandona a profissão e, ligado a um grupo de proletários mais ou menos emancipados, dedica-se ao ensino das primeiras letras na Escola Francisco Ferrer fundada pela Federação das Classes Trabalhadoras.

A resistência ao capitalismo fez com que Bruno de Menezes deixasse o trabalho nas gráficas e dedicasse seu tempo a favor de um sistema que, segundo seu entendimento, conseguiria edificar um processo alternativo de geração de trabalho em que o ponto norteador seria a distribuição equitativa da riqueza.

Cooperativista, sindicalista. O papai, devido ao fato de ter tido uma infância pobre, tinha o seu “que” de revolucionário, por isso que ele enveredou pelo cooperativismo, porque até hoje o cooperativismo é a única maneira de uma equipe de homens que não são capitalistas enfrentarem com sucesso o capitalismo selvagem, inspirado nos 28 tecelões de Rochdale, que foram os criadores do cooperativismo. O papai dava aula de cooperativismo. Daí muito embora ele não fosse um homem formado e, ser chamado professor Bruno, [Colégio] no Gentil, no Grupo Escolar Coronel Sarmento, em Icoaraci (informação verbal)139

137.

Para entender o modo como Bruno de Menezes optou pelo cooperativismo, como meio de equiparação econômica das classes trabalhadoras, ressalto a origem desse processo que inicia no século XIX, com a Revolução Industrial, época em que o proletariado urbano procurava um meio para melhorar sua precária situação econômica. Naquela época,

divulgação cultural e política entre as classes populares. Em 1909 vai para a Argentina, criando ali duas colónias agrícolas que fracassam economicamente. Em 1914 estabelece-se em Paris e a partir de 1920 faz várias viagens aos Estados Unidos, onde é nomeado doutor honoris causa pela Universidade de Washington. Em desacordo com a política do ditador Primo de Rivera, sai de Espanha e fixa-se em Nice. A sua obra novelística, reflectindo as realidades de Espanha, utiliza recursos próprios do naturalismo de Zola. Os seus romances mais conhecidos são Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, A Catedral e Areias Sangrentas, ambos transpostos para o cinema.(http://www.vidaslusofonas.pt/vicente_blasco_ibanez.htm-acesso em 03.09.2011)139 José Haroldo Fernandes. Entrevista realizada em fevereiro de 2011

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28 tecelões de Rochdale, uma pequena cidade inglesa, associaram-se com o propósito de, mediante a colaboração de todos, tentarem melhorar sua condição de vida. Nesse período histórico, o cooperativismo ganhou condições propícias para o seu desenvolvimento.

A verve política anarquista do poeta “custou-lhe sacrifícios e amarguras” (ROCHA, 2006. p. 46). Nesse sentido, em seu discurso na Academia Paraense de Letras, por ocasião do centenário de nascimento de Bruno de Menezes em 1993, é o próprio Rocha que evidencia trechos de vários trabalhos publicados nos jornais, documentando o pensamento de Menezes a favor da união da classe trabalhadora em beneficio ao trabalho organizado e humanizado.

Trabalhadores, homens de mãos calosas, componentes do proviléo e da plebe – a única arma para as vossas reivindicações é o sindicalismo’. E, novo profeta, pregava a união das classes obreiras: A coesão, uma é indispensável nos espíritos das classes trabalhadores. É a melhor arma de combate contra as convenções sociais, as especulações burguesas, a ganância patronal’(...)

(...) Necessário se torna que o homem trabalhador erga espécie, humanize o seu ser, levante o irmão que cai, torne-se invencível pela unidade da classe’(...)

(...) A questão é estudar o problema que temos em nossa frente. Abdicamos os pequenos agrupamentos em favor da reunião forte e unida dos sindicatos, que é fazermos verdadeiras assembléias associativas’(...)

Por que não oito horas? (ROCHA, 2006, p. 10)4

No excerto o poeta reafirma a condição de luta pelos direitos trabalhistas e argumenta com seu círculo sobre a unidade em forma de cooperativa para pôr fim a ganância da burguesia. Bento Bruno assumiu o sindicalismo e o cooperativismo como condição de vida e como resistência a um sistema que,

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segundo seu olhar, era desigual e para tencionar e provocar reflexão das classes operárias envolveu a família, investiu tempo, trabalho e poesia.

Eu trabalhei com ele durante 2 anos no Departamento de Assistência ao Cooperativismo da Secretaria do Estado de Produção do Governo Assunção. (1951-1955) O governo do Estado do Palácio ainda funcionava Aqui no Palácio do Governo antes de ser o tribunal e, durante esses dois anos, eu também tive ocasiões de fazer preleções sobre cooperativismo escolar. Foi a fase áurea do cooperativismo no Pará, sobretudo, em se tratando do cooperativismo escolar. Papai fundou clubes agrícolas nos grupos escolares. Ele foi o assessor da Cooperativa Agrícola do Estado em Tomé-Açu, que era uma potência naquele tempo da SOCIPE de outras cooperativas (informação verbal)138.

Seu trabalho nas oficinas gráficas foram pontes para conhecer literaturas do universo socialista/comunista e anarquistas de Liev Tolstoi (1828-1910), Máximo Gorki (1860-1904), Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). Foi atuando como professor que Bruno de Menezes abandonou a profissão nas gráficas e iniciou sua vida na militância sindicalista na Escola Francisco Ferrer, estabelecimento de ensino fundado pela Federação das Classes Trabalhadoras no Pará.

Aldrin Figueiredo (2006) relata o envolvimento do poeta com o movimento anarco-comunista na segunda década do século XX e sua contribuição para a fundação de entidades ligadas ao anarquismo.

Entre 1916 e 1920, travou uma relação muito próxima com dois grupos muito importantes na organização do movimento operário no Pará: Os anarco-comunistas e os anarquistas sindicalistas. [...] Fundou em 1918, o partido Comunista do Pará, tendo frente o grupo político, Os semeadores. Em 1919, criaram o jornal o semeador,

140 José Haroldo Menezes. Entrevista realizada em fevereiro de 2011.

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sub-intitulado, Órgão de Propaganda Sociológica, com o objetivo de divulgar o triunfo da revolução e derrotar toda a democracia falsa que dirigia as duas Américas (FIGUIREDO, 2006, p. 32).

Nesse sentido foram inúmeras as atividades reivindicando o equilíbrio econômico e social, através de artigos em diversos periódicos como: O Semeador, O Correio de Belém, O Combate, Jornal Pequeno, Voz do Trabalhador e Jornal do Povo. Realizava, também, conferências nos sindicatos sobre temas de educação e politização operária.

O poema O Operário, publicado em 1913 pelo jornal O Martelo, marca a estreia do poeta na vida literária concretizando seu pensamento visionário de cooperativista. Menezes acreditava que o “sistema cooperativista, cujos ‘princípios da fraternidade, defesa social e econômica, sem predomínio de elites, nem de raças, condizia com sua crença de que a família humana há de ter o seu outro Éden” (ROCHA, 2006, p. 46).

Fatigado levanta-se o operário

Por haver trabalhado o dia inteiro;

E mesmo assim dirige-se ao calvário

Do seu agro labor – o grande obreiro...

E se acaso não chega por primeiro,

Antecedendo da oficina o horário,

Se quiser para o almoço ter dinheiro

Tem de escutar de doestos um rosário...

Mas, sendo artista que sua arte preza,

Estanca no portal, dali não passa,

Os seus minutos e patrão despreza.

E, de orgulho cheio, eleva o seu olhar,

Mostrando ter passado a nuvem baça

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Que lhe estava a razão sempre a ocultar! (MENEZES, 1993, p. 453)

Nos versos de O Operário, o engajamento e a causa da justiça social são priorizados num misto de lamento e resistência. O poema é um retrato de sua sensibilidade diante do que lhe parecia injusto e com isso conscientizava seu círculo para aderir ao sindicalismo, tendo como meta a unidade de intenções para atingir um pensamento de resistência coletiva. Assim Bruno articulava e congregava trabalhadores para se organizarem.

Com esse pensamento surgiu a Associação dos Estreantes, denominação que depois recebeu o nome de Associação dos Novos. Nesta associação o poeta agregava principalmente gráficos, estudantes e assalariados, todos com grande inclinação e entusiasmo para a literatura, a música e a pintura. Esses intelectuais representavam a novíssima geração – Bruno de Menezes, Rocha Júnior, Ernani Vieira, De Campos Ribeiro, Paulo de Oliveira, Mário Platilha, Farias Gomes, Clóvis de Gusmão, Wladimir Emanuel, Wenceslau Costa, Sandoval Lage, Lindolfo Mesquita, Jacques Flores, Gabriel Lage e tantos outros ali tiveram os seus dias de idealismo, sob o incentivo da imprensa.

A produção cultural de Bruno de Menezes está inteiramente imbricada com sua experiência política, inclusive com sua formação religiosa a exemplo do poema O Operário (1913), quando relaciona crítica social e valores do catolicismo, como fundamento do seu humanismo, isto é uma articulação de consciência de classe e valores religiosos. A alma inquieta do cooperativista é traduzida pelas palavras do literato Bruno de Menezes.

Além de ser um marco em sua vida literária, a obra revela a idade latente do poeta que completava 20 anos, comprometido com a humanização das leis trabalhistas, com a edificação espiritual do homem. Menezes aponta sua inquietude não só com a questão social e econômica, voltando-se para o ser humano, como base para a formação de uma sociedade unida na partilha de

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valores sociais e espirituais. O historiador Aldrin Figueiredo, em seu artigo Bruno de Menezes Anarquista (2006) afirma esse estado do poeta militante.

Necessitava preservar o senso humanista, o lado poético da vida, a compaixão com o amigo próximo. Um sentimento de pertencimento de classes, de partilha de valores espirituais. Há um sentido religioso e revolucionário ao mesmo tempo: necessário se torna que o homem trabalhador erga a espécie, humanize o seu ser, levante o irmão que caí, torne-se invencível pela unidade de classe (FIGUEIREDO, 2006, p. 70).

Revolucionar através da literatura era a proposta de resistência do poeta Menezes. Em sua investida como professor de cooperativismo palestrava em diferentes sindicatos, associações e clubes beneficentes de trabalhadores. O discurso realizado em 1920, na sede da União dos Operários Sapateiros, cujo tema central versava sobre a repressão política, a violência policial, as perseguições enfrentadas pelo movimento operário no Brasil e no Pará, indicava sua verve de resistência.

A luta operária é uma marca da trajetória anarquista de Bruno de Menezes, quer pela busca de uma conscientização da unidade entre trabalhadores, quer pela estimulante militância e doutrina política e literária ou mesmo pelo exercício estético da critica social que metamorfoseou sua experiência social na partilha de suas aflições e dificuldades para o bem comum do proletariado, da saúde e progresso da humanidade. Portanto, o desenvolvimento da tecitura poética da obra de Bruno de Menezes está sedimentado nessa fase inicial anarquista de intensa atividade política, social. Fatos que definiram “a contínua produção do literato em seu conjunto e não como etapa de um trabalho imaturo e de rebeldia juvenil” (FIGUEIREDO, 2006, p. 69).

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Neste campo penso na interpretação de Stuart Hall141139

sobre identidades para esclarecer e sedimentar a participação de Bruno de Menezes, no circuito em que viveu. Hall (2009, p.232) afirma que a identidade é resultado da experiência do homem no chão cultural, vivenciada na historicidade do cotidiano, dos ideais e representações construídas em campos sociais complexos.

Essa luta é contínua e ocorre nas linhas complexas da resistência e da aceitação, da recusa e da capitulação, que transformam o campo da cultura em uma espécie de campo de batalha permanente, onde não se obtêm vitórias definitivas, mas onde há sempre posições estratégicas a serem conquistadas ou perdidas (HALL, 2009, p. 232).

O poeta interagiu com diversos agentes sociais, ora articulando resistências, ora as mediando. Nos diversos trânsitos sociais, Bruno de Menezes participou de “confrontações sociais, relações de poder, estratégias de resistências e reafirmação de valores e identidades” (BURKE, 1992, p.327). Foi na resistência ao sistema capitalista que Bruno de Menezes consolidou as instâncias das cooperativas e promoveu as redes de sindicatos para a organização dos trabalhadores. Líder dos desfavorecidos, seu pensamento era resultado do anseio grupal e seu engajamento na teia social era visceral, daí “o conceito de cultura passou a incluir o fazer significativo presente em todo modo de vida e suas estruturas de sentimentos” (WILLIAMS, 1992, p. 29). A postura do poeta nos diálogos com seus pares ou mesmo dialogando com os diversos sujeitos sociais, sua posição era por vezes de negociação de identidades o que possibilitou seu trânsito nas mais distintas divisões e limites de identidades convencionais.

141 HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do popular. In: HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações. Tradução Adelaine La Guardia Resende... [et al.]. 1ª edição atualizada. Belo Horizonte: Editora UFMG.

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Bruno de Menezes possui dezenas de poesias e numerosos trabalhos sobre o folclore paraense, publicados em jornais e revistas. Assim, o poeta espraiou em suas obras, registros poéticos e documentos sobre temas ligados folclóricos. Câmara Cascudo (1955, p. 33), em sua definição, estreita a relação do fato folclórico realizado por Bruno de Menezes

(...) Um pouco confundido com a etnografia, o folclore ensina a conhecer o espírito, o trabalho, a tendência, o instinto, tudo quanto de habitual existe no homem. Ao lado da Literatura, do pensamento intelectual letrado, correm as águas paralelas, solitárias e poderosas da memória e a imaginação popular.

Bruno de Menezes experimentava o que de comum existe no homem, por isso, visitava os terreiros de bumbas, participava de quadrilhas juninas, escrevia peças para quadras, vivenciando assim o que ele mesmo chamava de Ciência do Povo. No conjunto de sua obra, diversas peças para o teatro foram escritas por ele. Essas produções só se têm informações relatadas pela família, entre elas: Retumbão de Genoveva (1945), Flor das Águas (1946), Ilha dos amores (1947), Na casa de Nha Maroca (1947), Promessa de Natal (1953) e Paixão de Mara (sem informações sobre data de publicação).

Bruno de Menezes possuía um olhar especial aos que viviam desassistidos e injustiçados. Durante sua vida foi bandeira de contestação e anarquismo. Esse pensamento voltado aos que viviam à margem social possuía um caráter de resistência. No excerto do livro Batuque na poesia Gente da estiva, Bruno de Menezes evidencia o cotidiano do negro trabalhador da estiva, que após a abolição, sem opção, teve que buscar em subemprego a manutenção da família.

No caís o serviço na sua bruteza

É ver como em faina

Qualquer formigueiro

Com a gente da estiva empurrando carrinho (MENEZES, 1966, p. 59).

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O negro estereotipado socialmente tem sua vida deformada pelo processo escravista. Aos olhos do colonizador esse sujeito social era visto como mercadoria, interessando apenas sua força produtiva. Vale lembrar que após a abolição da escravatura o negro foi colocado à mercê das desigualdades sociais existentes no Brasil. O poeta torna-se porta-voz dos trabalhadores mostrando as condições impróprias de labuta desses operários, silenciados por sua condição e pela inexistência de ascensão social.

E a gente da estiva

Ao voltar a casa,

Faminta esfalfada

Nem come daquilo

Que lhe andou nas mãos

Calejadas e humildes (MENEZES, 1966, p. 61).

Bruno de Menezes realça a atividade diária dos trabalhadores na estiva. No excerto, o poeta descreve a rudeza do trabalho braçal e a ambientação de seu local de atividade.

Fazendo lingadas

De sacos e fardos

Trazendo caixotes barricas pranchões

Que o braço de ferro

Dos altos guindastes

Arreia de cima aos fundos porões (MENEZES, 1966, p. 59)

O estado de pobreza do escravo liberto, mas oprimido pelo sistema era captado pela poesia a qual denunciava o desequilíbrio social e as formas degradantes a que era submetido. Menezes destaca essa condição.

(...) A gente da estiva

Camisa suada

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Estômago murcho (MENEZES, 1966, p. 61)

Além da condição de pobreza dispensada ao negro, Bruno de Menezes percebe o estado de invisibilidade desse agente social. A atividade laboral no caís é finalizada com o abastecimento do navio que pode seguir seu destino. Bruno de Menezes reconstrói o estado serviçal do término da tarefa e o inicio de outra. Utiliza a critica social para mostrar uma intensa jornada à qual era submetido e faz uma relação do trabalho forçado como outra escravidão.

Repleta o navio em seu bojo de carga.

E vozes de adeus

Sorrisos felizes

Lembranças e beijos afagos e abraços.

A campa retine

A voz da sirene previne a partida.

(...) como se fizesse trabalho forçado

Recolhe o carrinho

Pra outras lingadas

Sem ter o direito até de fumar (MENEZES, 1966, p. 61).

Bastide (1973) destaca a impossibilidade de ascensão social do negro após a abolição da escravidão, restando a esses agentes sociais trabalhos rudes, de natureza brutal e de função humilde. Bruno de Menezes tem consciência do seu africanismo: a sua condição de afrodescendente permite um olhar sensível e interno sobre o achatamento e o esmagamento social a que era submetido o negro no seu cotidiano, mesmo depois de abolida a escravidão. O africano mesmo livre, ainda era subjugado por outros senhores.

Bento Bruno de Menezes Costa era conhecedor da alma do negro e do seu martírio em deixar sua terra natal para servir como escravo. A nostalgia trazida pela escravidão é apresentada por Bruno de Menezes como uma forma de amenizar todo o sofrimento que reside pelo fato de estar longe de sua terra

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de origem. Nesse sentido, Thomson (1997), compreende que as recordações do tempo pretérito nos ajudam a “expressar e lidar com suas lembranças dolorosas até mesmo dar um novo sentido às velhas histórias” (THOMSON, 1997, p. 63), como no excerto abaixo extraído do poema Cachaça.

Surrado vendido mas tendo na alma seu santo orixá.

Sem nunca esqueceres a selva do Congo,

Os verdes coqueiros os teus bananais... (MENEZES, 1966, p. 43).

A memória de Bruno de Menezes demonstra o modo como o escravo africano posto em diáspora forçada através do atlântico aqui representado pelo grupo de negros africanos, que, apresentado dentro desse contexto histórico e social, destaca os traumas advindos do êxodo forçado e sua relação com a memória cultural e ficcional. Segundo Faria (2010, p. 14), a memória estabelece uma ligação entre o passado individual e o passado coletivo, nossas origens, heranças e histórias.

O passado está sempre conosco, e ele define o nosso presente, ele ressoa em nossas vozes, paira sobre nossos silêncios, e explica como nos tornamos nós mesmos e habitamos o que chamamos “nossa casa”. Assim o que chamamos de passado apenas uma função e produção de um presente continuo e seus discursos.

O poeta apresenta em alguns trechos, uma atmosfera rica de saudades e lembranças. É possível perceber a nostalgia do autor em recordações próprias, um sentimento de busca ao passado cheio de encantamento. Ah! São João dos meus quinze anos da jaqueira, / Quando fui chefe de maloca e as mulatas me viciavam (MENEZES, 1966, p. 39). Esse ambiente de lembranças e memórias pode ser definido como forma de reconstituição de um processo histórico, por destacar a presença e a participação de seus ancestrais na constituição do povo brasileiro. No excerto do poema Pai João, fica latente esse posicionamento.

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Pai João sonolento e bambo na pachorra da idade

Cisma no tempo de ontem

De olhos vendo o passado recorda o veterano

A vida brasileira que ele viu e gosou e vieu! (MENEZES, 1966, p. 17)

Seus antecessores são lembrados e destacados, sendo a escravidão o referencial para a tessitura de Batuque. “Mãe Maria contou que o pai dele era escravo” (MENEZES, 1966, p. 17). Os segredos da saudade apresentados em Batuque remetem à alma do autor e a sua sensibilidade ao detalhar os mais profundos anseios de sua ancestralidade, desde a escravidão, passando pela não aceitação de sua nova condição. Bruno de Menezes usa seu espírito nostálgico para falar de sua negritude, para mostrar todo o processo que colocou o negro em um ambiente estranho, oponente que descaracterizou seu meio comunitário e familiar. Esse afastamento de seu espaço natural foi determinante para incentivar o sentimento de africanidade.

O filósofo Benedito Nunes (2006), ao analisar o conjunto da obra poética de Menezes, relata que a mesma seguiu sob uma dupla confluência o que a tornou multicêntrica. Neste sentido, segue uma ordem de desenvolvimento, ora cresce uniformemente, ou por sucessivos acréscimos ou por linhas quebradas, atalhos e rumos imprevistos. Mostra também os influxos, quer pessoal ou histórico.

Assim sua vivência nos mais diversos circuitos, possibilitou a construção de uma literatura baseada em experiências domésticas e públicas sem uma sequência lógica ou linearidade. A visão absorvida no cotidiano condicionava os influxos de sua obra. Para finalizar reitero que pelo seu caráter inovador na região Amazônica a obra exige maior atenção pelos que estudam a negritude na literatura.

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Trazer ao debate temas tão caros à sociedade mundial e local e discutir as questões de identidades com ferramentas modernas capazes de provocar uma leitura interdisciplinar, para dar conta dos novos pensamentos sobre cultura popular e a partir dessa reflexão pensar em pluralidade, em constantes movimentos de hibridação e em resistências como os percebidos nos poemas apresentados em Batuque foi sem duvida o que me moveu a construção desse trabalho.

Esse imbricamento de elementos da cultura afro-luso-indígena levou-me a perceber a dinâmica das identidades colocadas em trânsitos e diálogos na formação de outras construções identitárias. Operar com os Estudos Culturais para entender as práticas sociais do poeta mostrou-me que a obra literária ultrapassa o próprio Estudo Literário. Tal fato permitiu-me ver o quanto Bruno de Menezes viveu seu presente, percebendo as vozes de seus pares e com o olhar atento ao futuro.

Uma das grandes preocupações na constituição deste trabalho foi produzir uma narrativa capitaneada pelos Estudos Culturais adotando o respeito e o zelo pelas fontes documentais e orais, para que dentro de minha perspectiva e de meu orientador o rigor metodológico fosse embasado de verossimilhança.

As entrevistas realizadas foram carregadas de sentimentos, lembranças e percepções familiares que, no seu desenvolvimento, trouxeram à tona marcas de um momento histórico vivido não só pela família, porém por um circuito de movimentos e trânsitos que constituíram a história literária, social, política e cultural de Belém. Por isso a utilização da História Oral foi importante para perceber meandros da vida de Bruno de Menezes dos quais a obra Batuque não dava conta.

Na busca das identidades, Bruno de Menezes estrategicamente negociou, mediou e utilizou todo o seu arcabouço constituído ao longo de suas

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práticas sociais na intenção de reverter a condição econômica como forma de conceder o direito de fala às vozes dos desfavorecidos e subjugados pelo poder econômico e/ou social. Em sua inquietude, tornou-se fonte inesgotável de conhecimento, dos saberes locais e um profundo entendimento da sua ancestralidade e a partir desse aspecto produziu uma arte voltada para a sua gente. Em Batuque, Bruno de Menezes não só falou de sua gente, falou de seu pertencimento, de seu gênesis, de sua história e com isso pôde transbordar de legitimidade e autoridade.

Na tecitura da obra estudada o poeta escreveu a historiografia da alma negra ao falar do tráfico, da saudade, do transe, da musicalidade, da sensualidade, da relação de poder e das festas. Bruno de Menezes assumiu um posicionamento moderno de ouvir a perspectiva dos marginalizados e silenciados, haja vista que em fragmentos de sua literatura é constante a resistência aos preconceitos sociais e por esse posicionamento assumido a sua obra torna-se fonte de sua legitimação.

Neste sentido, o entendimento de Bourdieu (2004) na compreensão de produção cultural, aqui se referindo à literatura, ciência etc., está no fato de que não basta referir-se ao conteúdo textual da produção, nem somente ao contexto social ou apenas fazer uma relação entre texto e contexto. Entre esses espaços existe um universo intermediário a que este autor define como campo literário, artístico, jurídico ou cientifico; ou seja, o espaço onde estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem e difundem a arte, a literatura ou a ciência.

Nesta perspectiva os estudos e reflexões propostos, pretendem de alguma forma contribuir para um entendimento mais próximo do olhar do intelectual e literato Bruno de Menezes sobre as identidades e as religiosidades. Evidenciei a alma do autor de Batuque e o que a percepção pôde filtrar do seu espírito solidário, de sua ânsia em prol dos injustiçados, sua vivência com o proletariado paraense e seu senso de justiça. Traços de sua personalidade os

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quais são canalizados e convergem para sua obra.

Um idealista que na inquietude de sua alma mostrou sem preconceito a herança cultural de seus pares e o legado de conhecimentos nas diversas áreas. Um visionário que nas entrelinhas percebia o significado de ser negro. E por sua percepção, sentimentos como o amor, a liberdade e o respeito à dignidade humana, serviram de condutores em sua obra e em uma tessitura poética que só a sensibilidade do artista pode captar.

A obra estudada possui conhecimentos de fatos históricos e está impregnada de sentimentos e saberes locais passados de geração em geração, assimilados e compartilhados pelo poeta e inseridos na cartografia amazônica. Ao analisar a trajetória de Menezes, percebi a latente disposição em construir uma literatura que ultrapassasse os limites da região sem perder suas características. Dalcídio Jurandir refere-se à obra como “uma saborosa força nativa e o poeta nos transmite a vida brasileira que ele viu, gozou e viveu nesta Belém tão sua”.

Batuque tem importância histórica e literária na poesia brasileira, sobretudo na poesia Amazônica. O poema atravessa a cidade como um igarapé de maré cheia. Assim, Jurandir outorga a Bruno de Menezes a legitimação de uma obra que é sedimentada pela trajetória construída ao longo dos seus 70 anos de vida. O resultado indica que a análise da escrita literária de Bruno de Menezes, com atenção especial ao conjunto de poemas contidos no livro Batuque, quando contextualizada em sua historicidade e na relação criador e criação, torna-se importante instrumento de estudo sobre memória, identidades, religiosidades e saberes africanos na Amazônia.

REFERÊNCIAS

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MENEZES, Geraldo. Geraldo Menezes: entrevista [fev. 2011]. Entrevistador: Marcos Valério Lima Reis. Belém, 2011. Fita DV-CAM (28 minutos). Entrevista concedida para elaboração de dissertação de mestrado do entrevistador.

MENEZES, Ir. Marília. Ir. Marília Menezes: entrevista [fev. 2011]. Entrevistador: Marcos Valério Lima Reis. Belém, 2011. Fita DV-CAM (120 minutos). Entrevista concedida para elaboração de dissertação de mestrado do entrevistador.

MENEZES, José Haroldo. José Haroldo Menezes: entrevista [fev. 2011]. Entrevistador: Marcos Valério Lima Reis. Belém, 2011. Fita DV-CAM (70 minutos). Entrevista concedida para elaboração de dissertação de mestrado do entrevistador.

MENEZES, Maria de Belém. Maria de Belém Menezes: entrevista [fev. 2011]. Entrevistador: Marcos Valério Lima Reis. Belém, 2011. Fita DV-CAM (20 minutos). Entrevista concedida para elaboração de dissertação de mestrado do entrevistador.

DOCUMENTOS ESCRITOS

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SOB A ÓTICA DOS ESTUDOS CULTURAIS:

Literatura, Cultura e Identidade em Candunga, de Bruno de Menezes

Rodrigo de Souza Wanzeler (PPGA/UFPA)

O trem vai partir!

(...) E foste um difícil começo

Afasto o que não conheço (...)

(Caetano Veloso, Sampa)

Meu interesse pelo autor Bruno de Menezes e por suas obras se deu ainda na graduação, quando foi objeto de observação do Trabalho de Conclusão de Curso140 o livro de poemas Batuque, obra ímpar na literatura brasileira, destacando o fato de como o negro é visto, ou melhor, revisto, neste livro, em que a voz da raça negra é reconhecida. O reconhecimento da enunciação da periferia é, para mim, um dos aspectos mais marcantes das principais obras de Bruno, dentre elas o romance que será observado ao longo deste trabalho, Candunga: cenas das migrações nordestinas na zona bragantina.

Comparada à produção poética, a prosa de Bruno de Menezes ainda não foi minuciosamente observada. Por este fato, dar-se-á atenção ao romance Candunga, motivado pelo estudo de uma obra parcamente analisada, bem como pela sua temática e suas características. A obra faz referência à migração nordestina para a Zona Bragantina, no nordeste paraense, entre as décadas de 1930 e 1940, como parte do projeto de colonização do entorno da Estrada de Ferro de Bragança.

Mais precisamente, tem-se no livro a saga de uma família de retirantes nordestinos, oriundos do Ceará, que vem para o Pará por conta da fuga da

142 Batuque: o som que consolidou uma nova perspectiva sobre o negro na literatura brasileira.

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seca na região e, também, pelo incentivo à migração para a zona bragantina promovido pelo poder público da época. Esse local encontrava-se então em pleno desenvolvimento devido à construção da via férrea que ligava as cidades de Belém e Bragança, servindo para o transporte de pessoas oriundas destas duas cidades, bem como das que surgiram ao longo da ferrovia, núcleos predominantemente agrícolas.

Pensa-se ser importante que, antes de qualquer análise, o autor da obra de referência para este trabalho seja apresentado. Bento Bruno de Menezes Costa ou, literariamente, Bruno de Menezes, nasceu no bairro do Jurunas, em Belém do Pará, no dia 21 de março de 1893 e faleceu em Manaus, no dia 02 de julho de 1963. Nos anos de 1920, a cidade possuía ainda rescaldos de sua bela época, no entanto, a dita decadência da Belle Époque proporcionou o surgimento de outras perspectivas, nas quais a marginalidade artística teve voz e vez. Bruno de Menezes vivenciou a transformação socioeconômica de Belém e isso marcou profundamente suas letras. Sua obra poética, primeiramente, fora fortemente influenciada pela estética simbolista, “antes de qualquer coisa, a música”143

141, no início da década de 1920, o que daria o tom em grande parte de sua obra literária. Não é à toa que Bruno é chamado de “Poeta da Lua”144

142. No entanto, aos poucos, a veia modernista pulsou mais forte. Para o professor Francisco Paulo Mendes (1993, p. 09), Bruno de Menezes foi o grande arauto do estilo modernista na região amazônica, destacando um de seus primeiros versos, no poema Arte Nova, ainda no ano de 1920, antes da Semana de Arte Moderna de 22, no qual o poeta diz: “Eu quero uma arte original”.

De acordo com dados fornecidos pela família do escritor, há um depoimento do historiador do Modernismo nas regiões Norte e Nordeste, Joaquim Inojosa, que confirma Belém do Pará como a terceira capital do país a aderir ao movimento modernista no Brasil, o que justifica a relevante alcunha 143 Referência à tradução do primeiro verso do poema Art Poétique(Arte Poética),“De la musique avant toutechose”, do poeta simbolista francês Paul Verlaine.144 A lua era bastante representada em poemas simbolistas brasileiros, tornando-se um dois maiores símbolos deste estilo. Na poesia de Bruno de Menezes a presença da lua era bastante recorrente desde o título, como em seus livros Bailado lunar e Lua sonâmbula.

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de introdutor do Modernismo na Amazônia a Bruno de Menezes. Em 1923 o escritor fundou a revista Belém Nova, mola propulsora e propagadora das novidades estéticas advindas do sudeste brasileiro no estado do Pará.

O espírito renovador de Bruno o levou a criar grupos onde se discutia a fundo o tema das artes, principalmente a literatura. Primeiramente surgiram os Vândalos do Apocalipse e mais tarde a Academia do Peixe Frito, uma verdadeira crítica às Academias oficiais, institucionalizadas. Da Academia proposta por Bruno fizeram parte literatos como Jacques Flores e Dalcídio Jurandir.

Bruno foi um lutador incansável, homem ligado diretamente às cooperativas relacionadas à terra, preocupado com as desigualdades sociais existentes, uma mente com fervor revolucionário. O escritor reconheceu a voz dos negros, das prostitutas, dos flagelados, denunciando as iniquidades por meio de seus escritos, quebrando o paradigma de se falar pela classe favorecida, pois em Bruno a margem tem voz e importância.

Com este estudo, busca-se propor uma pesquisa acadêmica sobre a formação cultural da Amazônia por meio dos estudos literários, com ênfase no escritor Bruno de Menezes. Desta forma, pretende-se destacar a riqueza interdisciplinar da obra, contribuindo para os estudos sobre a proveniência desta diversidade cultural na Amazônia, acerca da ocupação de vários grupos e seu impacto para a região, descortinando a heterogeneização cultural presente na parte amazônica que será aqui destacada: a zona bragantina. Ressaltando, desta maneira, o quanto a literatura é importante para os estudos de relevantes aspectos condicionados sob as égides social, histórica e cultural.

Cultura,Identidade e Estudos Culturais: algumas considerações

O aspecto líquido de nossa conjuntura atual torna os conceitos de cultura e identidade cada vez menos palpáveis, por isto não se tem a ousadia de atingir a exatidão, apenas se quer encontrar definições coerentes com o

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nosso pensamento, com a forma como se percebe a realidade, para discuti-las em nossa obra de referência.

Antes de se chegar ao ponto principal deste trabalho, vê-se a necessidade de abordar cultura e identidade em seus aspectos conceituais, a fim de que se possa observar com subsídios teóricos como se constroem os discursos de afirmação, analisando desta forma os seus desdobramentos.

No que diz respeito ao termo cultura, de acordo com Bosi (1999), este é uma derivação do verbo latino colo que significa eu moro, eu cultivo, estar na natureza e cuidar da mesma, respectivamente, estabelecendo uma forte relação do homem com o meio. Eagleton (2005, p.10) afirma que a raiz do termo cultura é colere, mas que também possui significados que vão desde cultivar até habitar, sendo que deste último veio a evolução para colonus, que nos remete à ideia de colonização. A partir de colere se tem também cultus, contribuição para a enveredação religiosa com o surgimento do termo culto, corroborando para uma análise de que cultura e religião são termos bastante imbricados, o culto de uma ou mais entidades divinas.

Eagleton também observa o fato de cultura significar cultivo, o cuidar do que é natural, pondo-nos diante de uma dialética entre a artificialidade e a naturalidade, entre o que fazemos à natureza e o que a natureza faz a nós, denotando uma existência além, uma matéria-prima que, no entanto, necessita de elaboração humana significativa. Ou seja, seria uma interferência de mão-dupla, pois ao mesmo tempo em que interferimos na natureza ela interfere em nós. Assim é a dinâmica cultural, o fazer e o ser feito, o mudar e o ser modificado. Observando-se bem, os termos latinos, tanto colo quanto colere, estão intimamente ligados à terra não é à toa que o vocábulo colonização, também, provém da mesma matriz vocabular de cultura.

Já que cultura e terra estão relacionadas, pode-se destacar o fato de a terra, desde os primórdios até os dias atuais, ser objeto bastante cobiçado por diferentes povos e justamente desta cobiça se desencadearam guerras, invasões,

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entre outras formas de disputa pela terra, a grande busca pela expansão de poder, de domínio sobre o Outro145

143.

É importante ressaltar o fato de que seja qual for a forma de expansão territorial ela sempre gera conflitos. Estes ocorrem devido a não estar em questão a terra somente, mas toda uma base estratificada sobre ela, “todo um conjunto de práticas, técnicas, símbolos e valores”a que se chama de cultura, como afirma Bosi (1999, p. 17). É salutar que se perceba como se estabelece a relação entre cultura e colonização, em que o ato de colonizar implica na imposição, pelo colonizador, de sua cultura em detrimento da cultura do colonizado, devido ao primeiro considerar-se superior em relação ao segundo. Daí, como foi dito anteriormente, intensificam-se os conflitos, inclusive com o extermínio daqueles que se opunham às imposições colonialistas. Para Josef (2005, p. 115), “o colonizador traz seu modelo sociocultural que se impõe sobre o autóctone, num processo marginalizador”.

O ato de colonizar está associado diretamente à economia e à cultura, como grande projeto de expansão dos domínios políticos e ideológicos sobre povos considerados inferiores. O colonizador não leva em consideração o que há de instaurado por esses povos em seus respectivos lugares, no que diz respeito aos aspectos social, econômico e cultural.

O colonizador se projeta no Outro e tenta fazer do colonizado sua imagem e semelhança, uma ação narcísica, criando uma atmosfera homogênea para facilitar o domínio, impondo sua língua, sua religião, suas práticas, ou seja, sua cultura, e os que não se subjugavam eram rechaçados por meio do discurso da diferença, discurso utilizado como justificativa para a superioridade do colonizador, a partir de uma dicotomia entre civilização x barbárie em voga, majoritariamente, até o século XIX, caracterizada por um discurso intelectual de progresso socioeconômico. A relação centro x periferia estava surgindo e faria parte de nosso vocabulário nos séculos XX e XXI, criando um abismo socioeconômico entre esses dois polos. Dentro de um viés 145 Utilizar-se-á a inicial maiúscula no vocábulo Outro quando houver a necessidade da especificação de que está se falando do Outro das relações culturais.

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mais contemporâneo, Silviano Santiago (1978, p. 17) fala sobre a relação entre colônias e metrópoles:

O neocolonialismo, a nova máscara que aterroriza os países do Terceiro Mundo em pleno século XX, é o estabelecimento gradual num outro país de valores rejeitados pela metrópole, é a exportação de objetos fora de moda na sociedade neocolonialista, transformada hoje em centro da sociedade de consumo.

O renascimento colonialista engendra por sua vez uma nova sociedade, a dos mestiços, cuja principal característica é o fato de que a noção de unidade sofre reviravolta, é contaminada em favor de uma mistura sutil e complexa entre o elemento europeu e o elemento autóctone.

Nessa perspectiva acerca do conceito de cultura, outra relação estabelecida se dá com o termo civilização, do francês civilisation. Adam Kuper (2002) mostra uma visão europeizada dos referidos termos destacando vários conceitos principalmente em relação a ingleses, franceses e alemães, em que civilização e cultura caminham juntas. No entanto, cada conceito possui suas peculiaridades. Segundo Guizot (apud KUPER, 2002, p. 49), “a Inglaterra alcançará progresso social, mas não intelectual; na Alemanha, o progresso espiritual não tinha sido alcançado pelo progresso social; apenas na França ambos haviam marchado lado a lado”.

Os franceses possuíam uma visão acerca do processo civilizatório que nos dá a noção clara de superioridade, na qual a civilização seria o patamar maior a ser alcançado, partindo-se do estágio de selvageria, passando pela barbárie, até se chegar ao ápice do desenvolvimento humano; os ingleses associaram diretamente o progresso da civilização ao progresso da indústria, ou seja, a Revolução Industrial deu o tom do desenvolvimento social, econômico e cultural inglês; os alemães pensavam em civilização como um processo contínuo de desenvolvimento e aperfeiçoamento, no qual a kultur

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(cultura) era adquirida independentemente do nível de civilização, por ser algo subjetivo, concernente ao desenvolvimento do conhecimento humano.

O modo de pensar alemão põe cultura e civilização como antagônicos no processo de desenvolvimento social e, analisando-se a contemporaneidade, perceber-se-á que quanto mais a civilização avança, principalmente em termos tecnológicos, de modernização dos meios, a cultura e seus valores são postos à prova. Essa conjuntura fez com que muitos teóricos voltassem suas atenções ao estudo da cultura, criando um novo campo de análise a partir dos anos 1950/60, os Estudos Culturais.

De acordo com Neveu e Mattelart (2006), ainda nos anos 1950, os Estudos Culturais tiveram sua base solidificada a partir de figuras como Richard Hoggart, Raymond Williams, Edward Thompsom e Stuart Hall. Esses estudiosos do campo da cultura enfrentaram muitos desafios até a efetivação dos Estudos Culturais como disciplina, como saber científico em Universidades inglesas.

Os Estudos Culturais sofreram uma grande resistência da academia antes de penetrar neste campo. Os autores citados e seus estudos sobre cultura e sociedade estavam sempre à margem em relação às ciências canonizadas pela academia, como os Estudos Literários, por exemplo. Fredric Jameson (1994, p.13) diz que os Estudos Culturais nasceram da insatisfação com as outras disciplinas em termos de conteúdo e de limite do campo de observação destas, considerando os Estudos Culturais, desta maneira, pós-disciplinares, servindo não como mera resposta ao cânone, mas suplementando seu campo de estudo. Jameson (ibidem, p.12), também, faz uma leitura bastante aguçada acerca do movimento chamado Estudos Culturais, dando-lhe um viés mais político do que meramente teórico-metodológico:

(...) Se os Estudos de Cultura devem ser encarados como a expressão de uma aliança projetada entre diversos grupos sociais, então sua formulação rigorosa como

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empreendimento intelectual ou pedagógico seria menos importante do que pensam alguns de seus adeptos, quando ameaçam retomar em toda linha os combates sectários de esquerda na luta pela expressão verbal correta da orientação partidária dos estudos de cultura: o importante não é a orientação, mas a possibilidade das alianças sociais que seu lema geral parece refletir. Trata-se mais de um sintoma do que uma teoria (...).

Mattelart e Neveu (2006) trabalham com quatro conceitos básicos no que diz respeito ao projeto do CCCS - Centre for Contemporary Cultural Studies146

144: os conceitos de ideologia, hegemonia, resistência e identidade, os quais estão intrinsecamente ligados à problematização da cultura. O conceito de ideologia perpassa a resistência ou aceitação dos valores e símbolos por parte dos grupos populares, fazendo-os refletir acerca de sua identidade ou submeter-se à ideia dominante; o conceito de hegemonia147

145

nos remete ao teórico italiano de influência marxista Antonio Gramsci, que formulou tal conceito na década de 1930, dando-lhe um direcionamento mais cultural, ampliando o significado do termo em relação à forma que Lenin o utilizava, por um viés essencialmente político. Em ambas as formas há o questionamento de valores, das relações de hierarquia dentro da sociedade, da ordem social dominante, da mediação entre o dominante e o dominado em uma relação de imposição e aceitação, respectivamente. Bobbio (2006, pp. 66-67) afirma:

Pois bem: do ponto de vista conceitual, o termo “hegemonia” nos Cadernos (e nas Cartas) não tem mais o mesmo significado que nos dois escritos de 1926. Nestes, ele é empregado, de acordo com o predominante significado oficial dos textos soviéticos, em referência à aliança entre operários e camponeses, ou seja, no sentido de direção política, nos Cadernos e nas Cartas, adquirem também – e

146 Centro de Estudos Culturais Contemporâneos,criado em 1964, na Universidade de Birmingham, Inglaterra, com o objetivo de tentar legitimar os Estudos Culturais enquanto saber científico.147 A acepção gramsciniana de hegemonia norteará o uso dos termos no presente trabalho.

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predominantemente – o significado de “direção cultural”. Nesta modificação de significado, de modo algum, negligenciável, mas geralmente negligenciada, reside a novidade do pensamento gramsciniano: de modo que hoje, apesar da homenagem que Gramsci presta a Lenin enquanto teórico da hegemonia, o teórico por excelência da hegemonia, em seu significado mais rico no debate contemporâneo acerca do marxismo, não é Lenin, mas Gramsci.

Procura-se nesta pesquisa não negligenciar, como fala Bobbio, esta ampliação do conceito de hegemonia feita por Gramsci, por conta disto observar-se-ão sob a ótica gramsciniana as relações de hegemonia e subalternidade no romance Candunga, de Bruno de Menezes, analisando principalmente os discursos sobre o caboclo e sobre o nordestino migrante no contexto do romance.

Terry Eagleton (1997, p. 105) também faz observações referentes ao conceito de hegemonia gramsciniano:

Gramsci normalmente usa a palavra hegemonia para designar a maneira como um poder governante conquista o consentimento dos subjugados a seu domínio – apesar de, é verdade, empregar o termo ocasionalmente para designar conjuntamente o consentimento e a coerção.

No que diz respeito à resistência percebemos uma questão dialética, na qual ao mesmo tempo em que as classes populares resistem à dominação, tais classes se resignam em afirmar a ordem instaurada. Sobre isso, nos diz Hebdige (Apud MATTELART & NEVEU, 2006, p. 75):

[Subculturas não são] nem simples afirmação, nem recusa, nem “exploração comercial”, nem “revolta autêntica”. [...] Trata-se, ao mesmo tempo, de uma declaração de independência, de alteridade, de intenção de mudança, de

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uma recusa ao anonimato e a um estatuto subordinado. É uma insubordinação. E se trata, ao mesmo tempo, de uma confirmação do próprio fato de privação do poder, de uma celebração da impotência.

No que diz respeito ao conceito de identidade, pode-se dizer, de acordo com Mattelart e Neveu, que ele advém da dinâmica imposta sobre as classes sociais mutáveis, do questionamento da constituição das coletividades a partir de gênero, raça, etnicidade, sexualidade.

Em meio a todo esse fervor de ideias, reivindicações, consciência de classe, é que o CCCS se vê inserido e tenta trazer respostas aos questionamentos que surgem a partir de uma maior dinamicidade do fluxo das informações, em que o contato com o Outro não passa mais despercebido. Tudo tem causa e efeito quando se fala do aspecto sociocultural. Hall (ibidem, p.104) fala sobre essa conjuntura, afirmando que:

Doravante, não podemos mais conceber o indivíduo em termos de um ego completo e monolítico ou de um si autônomo. A experiência do si é mais fragmentada, marcada pela incompletude, compostas de múltiplos si, de múltiplas identidades ligadas aos diferentes mundos sociais em que nos situamos. [...]

Esse é um processo transformacional significativo que provém de épocas anteriores, mudanças de pensamento que geraram um novo olhar do homem sobre si mesmo, criando uma verdadeira crise de identidade desembocada na contemporaneidade.

Hall aprofundou seus estudos no que diz respeito à cultura e à identidade traçando um paralelo entre três tipos de sujeito: o do Iluminismo, o sociológico e o pós-moderno. O primeiro era concebido tal qual um indivíduo centrado, unificado, centro esse que se mantinha intacto desde o nascimento até a morte do sujeito, ou seja, possuía uma identidade imutável, era o sujeito da razão;

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o segundo avança a uma interação, passa-se a estabelecer uma relação com a sociedade que o cerca e a identidade já é passível de mudanças a partir dessa interação; o terceiro tipo de sujeito é, afirma Hall (2001, p. 12-13):

Conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.

Ocorre o que Hall chama de “descentramento” ou “deslocamento do sujeito e do pensamento”, o indivíduo não é mais um todo unificado e sim um grande mosaico, vários fragmentos que formam inúmeras identidades contraditórias entre si. Essa é a representação do sujeito contemporâneo, um sujeito multifacetado, pertencente a uma sociedade tão fragmentada e multifacetada quanto ele. Essa fragmentação foi impulsionada, modernamente, pela globalização quando novos paradigmas foram instaurados, sujeitos foram deslocados e identidades foram movimentadas, colocando a diferença como base dessa conjuntura.

O descentramento do sujeito e do pensamento, para Hall, é marcado por cinco grandes momentos em nossa história. O primeiro é referente às releituras dos escritos marxistas no século XX, mais precisamente na década de 60, quando a frase de Marx “homens fazem a história, mas apenas sob as condições que lhe são dadas” fora reinterpretada de forma que se passa a perceber que o homem por si só não é agente histórico sem as condições criadas por outros.

O segundo grande momento se dá quando o alemão Sigmund Freud teoriza que nossa identidade, nossa sexualidade e a construção dos nossos desejos são formadas basicamente no inconsciente humano, desconstruindo uma base cartesiana de quase três séculos que tinha o homem como uno,

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fixo, o sujeito do cogito, ergo sum, o “penso, logo existo”. Ou seja, percebe-se o homem intrinsecamente ligado ao Outro, formando e sendo constituído a partir deste. Observemos o que Hall (ibidem, p. 37) afirma da leitura feita, de Freud, pelo psicanalista francês Jacques Lacan, no que diz respeito à formação do homem:

(...) a imagem do eu como inteiro e unificado é algo que a criança aprende apenas gradualmente, parcialmente, e com grande dificuldade. Ela não se desenvolve naturalmente a partir do interior do núcleo do ser da criança, mas é formada em relação com outros – grifo meu.

O terceiro momento de descentramento se refere aos estudos linguísticos do estruturalista francês Ferdinand Sausurre. Para Saussure, nós não somos os criadores, os autores do que afirmamos, pois a língua é algo preexistente ao homem, utilizamo-la apenas como código referencial para a comunicação dentro de um sistema social e não individual. Expressar-se em uma língua é expor uma gama de símbolos, de valores, ou seja, de cultura. De acordo com a ideia saussuriana o homem não é o centro, o agente nem em algo que lhe é tão inerente, a própria língua.

O quarto momento de deslocamento do sujeito se dá pelo trabalho do filósofo francês Michel Foucault. Ele discorre acerca da disciplina presente na vida humana, a vigilância está em primeiro plano, devem-se evitar os excessos por meio de regras, instituições que moderam a vida, as atividades, os prazeres do indivíduo, que ficam em segundo plano e não no centro, sob um estrito controle, a fim de que se mantenha ou se estabeleça a ordem, a organização social. Mas, segundo Hall, está-se diante de um paradoxo, pois, apesar da organização coletiva, temos modernamente um maior isolamento do sujeito, uma ainda maior vigilância e uma individualização do ser.

O quinto momento de descentramento está relacionado ao feminismo que, para Hall, é o instaurador da chamada política de identidade. O

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feminismo teve um papel importante para o deslocamento das posições sociais instauradas ao longo da história. O movimento passou a questionar os papéis de mulheres e homens no cotidiano familiar: o aspecto doméstico, o cuidado com as crianças, o ser pai e o ser mãe. Passa a existir a luta pela valorização da mulher, ou seja, há a quebra, ou pelo menos o abalo, de alguns paradigmas, verdadeiros tabus, a partir das contestações do movimento feminista, alterando a dinâmica social estabelecida e as posições de sujeito que foram enraizadas historicamente e que construíram a base de uma sociedade patriarcal.

O apelo às mulheres pelo movimento feminista, o apelo aos gays e lésbicas na luta por uma política social a estes indivíduos, o apelo aos negros nas lutas raciais, entre outros movimentos gerados a partir da década de 60 do século XX são um marco histórico na luta de classes contemporânea.

Para Hall, esses cinco grandes momentos de descentramento ou deslocamento do sujeito são os verdadeiros desestabilizadores da forma como se pensa o sujeito e a identidade na pós-modernidade, uma forma inacabada e fragmentada.

A partir da contribuição de Stuart Hall, percebe-se que falar acerca de identidade não é tarefa fácil por se tratar de um terreno movediço não só pela sua complexidade, mas pela diversidade que o termo abarca. Bauman (2005, p.16) diz que “as pessoas, em busca de identidade, se vêem invariavelmente diante da tarefa intimidadora de alcançar o impossível” (grifo do autor).

Para Taylor (apud FIGUEIREDO, pp. 189-190), a identidade está, de forma bastante estreita, ligada à noção de reconhecimento, de contato dialógico com o Outro. Reconhecemos nossa identidade a partir do Outro, com o qual nos identificamos ou não. Podemos destacar o fato de a identidade poder ser analisada em sua forma mais subjetiva, individual, até uma forma mais ampla, abrangendo uma comunidade, um país.

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Em linhas mais gerais, Hobsbawn (ibidem, p. 192) considera que para uma comunidade se tornar uma nação é necessário já haver um estado de fato, uma língua e uma cultura comum, além de um forte poderio militar. A comunidade que possuir esse perfil comum compartilha de uma identidade nacional, a partir da construção de um imaginário coletivo no qual cada indivíduo se reconheça enquanto membro desta coletividade.

Aqui no Brasil, a questão de uma identidade nacional ganhou força no século XIX, após a “independência” de 1822. Vamos, aqui, dar destaque à literatura, mais especificamente aos românticos, que difundiram um sentimento de brasilidade, fruto do imaginário, por meio de seus escritos. Por este fato, há considerações sobre a existência de uma literatura brasileira, de fato, somente a partir desta conjuntura, na qual o Romantismo seria o primeiro estilo de época realmente nacional, no qual valores e símbolos brasileiros são postos em evidência, principalmente a exuberância de nossas florestas e o heroísmo do índio, mesmo sendo este ainda bastante europeizado, mas ainda sim sem dar relevância à figura do negro. Sobre isto, Renato Ortiz (1994)afirma que:

(...) em sua bricolage de uma identidade nacional, o romantismo pode ignorar completamente a presença do negro. A situação se transforma radicalmente com o advento da abolição.

Uma europeização, contraditória e cheia de lacunas, marca a ânsia de uma elite brasileira letrada em se distinguir de seus “espelhos europeus”, apesar de os nossos modelos político e literário, por vontade desta elite, estarem baseados em países da Europa. Pregava-se uma unidade nacional com o intuito de se manter a ordem e se alcançar o progresso desejado. Para dar conta disto, criaram-se símbolos de nacionalidade, relacionados, principalmente, ao exotismo de nossa terra, à pátria brasileira, com o objetivo de dar um “toque de brasilidade” aos nossos escritos. Sobre isto, afirma Costa Lima (1986, p.

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202):

(...) a ideia de pátria é recente, reservada às elites, primordial para o projeto de manutenção da unidade nacional, ela se constituía em principio básico de identidade grupal. Básico tanto em acepção política, quanto do ponto de vista literário. Politicamente, o empenho pela pátria “empregava” o escritor; literariamente, porque, sem a “natureza virgem”, sem a tropicalização de suas descrições e de suas personagens, ele corria o risco de ser confundido com os “colonizados” de antes e, assim, de não poder pretender o tão cobiçado título de fundador da literatura nacional.

É a busca por um passado ainda pouco conhecido, ou pouco valorizado, como parte da construção da identidade, mas, como se está observando, repleto de contradições.

A diversidade cultural e identitária pode vir a gerar problemas localizados no campo das diferenças, as quais são formas de juízo de valor determinantes para a manutenção de uma cultura como hegemônica em detrimento do diferente. No entanto, a crise, o conflito de identidades e de culturas ocorre por meio das diferenças, ou seja, estas são imprescindíveis para que se reconheça ou não diante do Outro, pois é o ponto no qual se constroem os discursos de afirmação e manutenção de uma cultura e de uma identidade.Há visões que concebem que a construção de um discurso identitário e cultural se dá em uma relação afirmação/negação, na qual quando se afirma ser algo ao mesmo tempo se nega esse pertencimento ao Outro, ao diferente. Poder-se-ia chamar a isto dialética da identidade. Para Finazzi-Agro (2005, p. 61):

O Outro, na impossibilidade de ser alcançado no plano real, se torna, então, objeto recalcado do desejo (...) uma apropriação que só pode ser realizada na assimilação (...) enfim, destruindo e ao mesmo tempo, incorporando aquilo que deseja. [Grifo meu].

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Relação bem familiar ao que se observou no trecho anterior acontece em nossa literatura quando o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, publicado em 1928, prega a deglutição de todas as influências que vêm do Outro, do estrangeiro, para que se absorva somente o que nos seja relevante, expelindo o que não nos interessa. Destruição e assimilação, “Tupi or not Tupi that is the question”, o ser ou não ser nacional, o ser brasileiro sendo e não sendo o Outro. Observe-se a seguir um trecho do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade (apud TELES, 1987, pp. 353-360):

A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.

Percebe-se a complexidade presente na análise dos termos cultura e identidade, a amplitude do primeiro e a não exatidão do segundo em seus diversos conceitos. O importante aqui é percebermos o que está por trás da construção desses conceitos, a quem eles interessam, de que forma eles são postos, ou impostos. Nota-se que as classes subalternas não fazem parte dessa construção, sendo mero objeto para a consolidação de políticas criadas pelas e para as classes hegemônicas, e isso é corrente nos diferentes níveis espaciais,

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do local ao global, criando uma atmosfera de igualdade, de acesso amplo, que tende a escamotear a profunda desigualdade existente entre as classes citadas. É a expressão “muitos como um”, utilizada por Homi Bhabha (2007, p. 203), funcionando como principal característica da sociedade pós-moderna: a invenção de um povo unitário.

Um olhar sobre o romance Candunga

No esteio dos conceitos vistos anteriormente, perceber-se-á que é notório no romance de Bruno de Menezes o papel centralizador e essencialista desempenhado pelo narrador por meio de um discurso pedagógico cultural que homogeneíza tanto o caboclo amazônico quanto o nordestino migrante, sendo que o primeiro tem uma cultura considerada superior em relação ao segundo. O romance Candunga traz consigo um aspecto onírico por parte do narrador em relação aos nordestinos: a essencialização de que todo migrante saído do nordeste brasileiro sonha, vislumbra melhoras no modo de vida em outras terras, porém toda a aura de progresso e melhoria é quebrada desde a chegada em solo amazônico. Observe-se o trecho a seguir:

Assim, numa pungente irrisão dos fados, eles [retirantes nordestinos], que rugiam espavoridos, ante um sol cruel e um céu que se algodoava em cirrus, ao depararem o ambicionado oásis, na terra hospitaleira da Amazônia, recebem em cheio, em chocante contraste, o aguaceiro imprevisto, de um desabar de nimbos. (MENEZES, 1993, p. 106).

Percebe-se no trecho anterior que o narrador traz consigo a marca logocêntrica de uma Amazônia como o melhor lugar, bem como o tom hiperbólico no que diz respeito aos fenômenos naturais da região, afinal observa-se que o nordestino, em sua chegada, não presenciou uma chuva, e sim um aguaceiro. Este tom de exagero provem de um discurso colonial que ressaltava a grandeza das matas e das águas, asseverando nossa posição em

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relação ao discurso contemporâneo sobre a Amazônia ser, primordialmente, ainda colonialista, um contraste entre a fartura natural e a escassez econômica.

A postura do narrador em Candunga contribui ao marcante fortalecimento identitário, uma fala pedagógica sobre a identidade cabocla da Amazônia e sobre a identidade nordestina. Dentro do espaço da zona bragantina, o Outro é o nordestino, aquele que possui costumes e valores contrastantes dentro da região em relação à cultura hegemônica do caboclo. O narrador reflete, em sua fala, durante a saga contada no romance, ao mesmo tempo, no que diz respeito aos nordestinos, pesar pela situação social e inquietação no que diz respeito ao fator cultural. No entanto, fica bem delimitado na obra um posicionamento de afirmação da cultura cabocla. Observem-se os trechos a seguir:

Conscientemente, para esse povo cigano, se pungia deixar o sertão, acabado de fome e sede, seria com a mesma resignação fatalista, que aceitariam outro habitat numa região menos agressiva, onde o sol dos martírios, não queimasse tanto os roçados e nem reduzisse a ressequido leito o fundo arenoso das cacimbas.(Ibidem, p. 108)

Nos municípios localizados ao longo da ferrovia, não se encontravam os grupos de musicistas para as danças populares, com seus instrumentos característicos, como sucede nas localidades onde predomina o elemento nativo, sem mescla nordestina.(Ibidem, p. 203)

Percebe-se nos trechos que o migrante, gradativamente, foi ocupando espaço, não só físico, e se fazendo presente de forma ativa no cotidiano da região, saindo do Nordeste rumo ao desconhecido e depois influenciando na dinâmica sociocultural em localidades da zona bragantina. Comparem-se esses trechos com outro que foi retirado do livro de Ernesto Cruz (1955, p. 48), A Estrada de Ferro de Bragança – visão política, econômica e social, um dado histórico da visão sobre o nordestino:

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No núcleo colonial de Benevides, os flagelados cearenses não corresponderam ao que deles esperava o Governo. Vimos como se deixaram conduzir pelo espírito de indisciplina e pela falta de compreensão dos deveres. Desses colonos chegou a dizer o presidente João Bandeira de Melo Filho que, em sua maioria, não eram lavradores e nem revelavam amor ao trabalho e à propriedade territorial.[Grifo meu].

Está-se diante de afirmações consolidadas, acerca do nordestino, as quais deturpam sua imagem, principalmente em relação ao trabalho. O migrante, advindo do nordeste do Brasil, é até hoje sinônimo de falta, de pobreza, verdadeira praga por se tornar mão-de-obra não absorvida pelo mercado, geralmente, pela sua falta de qualificação, e que, por conseguinte, fica à margem, nas periferias, contribuindo para a elevação dos índices de exclusão social, nublando a imagem de qualquer bela metrópole brasileira. Deixe-se claro que isto não é exclusividade dos nordestinos, mas se ressalte, também, que o estigma construído sobre os migrantes saídos do Nordeste brasileiro é latente em grande parte da população brasileira.

Outra visão muito conhecida sobre o nordestino pode ser vista em algumas partes d’Os Sertões, de Euclides da Cunha. O nordestino também é desqualificado, minuciosamente, na visão euclidiana, apesar de sua descrição do homem sertanejo começar com a célebre frase: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral” (CUNHA, 1998, p. 118) [grifo meu]. Observe-se o trecho a seguir:

A sua aparência [do sertanejo], entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.

É desgracioso, desengonçado, torto. Hercules – Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta a

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translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela.

É o homem permanentemente fatigado.

Reflete a preguiça invencível.(Ibidem, pp. 118-119)

Tem-se uma visão determinista sobre o sertanejo, também, perceptível em muitas passagens do romance Candunga, que passam a ser latentes a partir da migração nordestina para a zona bragantina. Estando-se de acordo com Bhabha, esse discurso, presente n’Os Sertões e em Candunga, representa uma visão estereotipada acerca de comunidades colonizadas. O estereótipo seria “uma simplificação porque é uma forma presa, fixa, de representação que constitui um problema para a representação do sujeito em relações psíquicas e sociais” (BHABHA, 2007, p.117) [grifo do autor], o que contribui para a discriminação, sem deixar de ser manifestação de poder por meio das diferenças. O estereótipo, para Bhabha, acaba sendo uma estratégia que objetiva enraizar e ratificar as diferenças culturais, estigmatizando o Outro por meio de uma imagem imóvel. As respectivas obras de Bruno e de Euclides148

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trazem consigo estes traços.

O deslocamento sociocultural tende a provocar o “estranhamento” do Eu em relação ao Outro e vice-versa, desse “estranhamento” se sobressaem às diferenças, mas não uma pura e simples dicotomia entre a cultura do Eu 148 Não se quer determinista este trabalho a ponto de se considerar Os Sertões uma obra que retrata somente aspectos negativos do povo nordestino, pelo contrário, sabe-se que Euclides da Cunha também exaltara o homem do Nordeste brasileiro nesta que é sua obra principal, a presença nordestina vai crescendo com a narrativa euclidiana. No episódio da Travessia do Cambaio, n’Os Sertões, o narrador euclidiano diz: “Tomara-lhe a frente um mameluco possante – rosto de bronze afeiado pela pátina das sardas – de envergadura de gladiador sobressaindo no tumulto. Este campeador terrível ficou desconhecido à história. Perdeu-se-lhe o nome. Mas não a imprecação altiva que arrojou sobre a vozeria e sobre os estampidos, ao saltar sobre o canhão da direita, que abarcou nos braços musculosos, como se estrangulasse um monstro” (CUNHA, 1998, p. 272).

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e a cultura do Outro, tem-se na verdade um complexo jogo de negociações, em que essas diferenças podem vir a ser relativizadas ou tensionadas. Neste ponto, observa-se a grande importância da literatura para a análise das relações humanas. Sobre esse “estranhamento”, tem-se um exemplo claro no trecho seguinte de Candunga:

Os seus costumes, a sua religião, a sua índole, são outros. Em lugar do foguetório, preferem disparar as armas, gastando balas, ao contrário do caboclo que se amolece todo por um foguete, um samba, um “chorinho” tocado melosamente, num clarinete, num cavaquinho, num violão bem ponteado. Eis porque, na zona bragantina, dentro das colônias os divertimentos festivos são pouco animados; as músicas que executam nas sanfonas e nas violas, só arrastam os pares no passo do “baião”, do “corrido”, num ritmo desajeitado.(MENEZES, 1993, p. 203)

Percebe-se, pelo narrador, o nível de conflito existente entre o discurso pedagógico cultural sobre o caboclo e a cultura do nordestino, cada um sujeito partícipe de seus respectivos saberes e fazeres. A palavra “desajeitado”, no excerto anterior, traz-nos à mente a descrição de Euclides da Cunha sobre o nordestino. Torna-se evidente, em Candunga, a visão do Outro (migrante nordestino) como degradador, aquele que mudou a fisionomia da região, queimou a mata e “mesclou” seus hábitos “cearenses” com os costumes do caboclo sensível, uma visão bastante semelhante à do Outro europeu em relação à América, o invasor de terras e aniquilador de culturas.

Parece que, em Candunga há, pode-se dizer, uma espécie de nordestino europeizado, tão invasor, tão destruidor de cultura, do meio ambiente quanto o português ou o espanhol, por exemplo, só que com uma diferença crucial: enquanto o europeu colonizador chegou como conquistador, o nordestino, também colonizador, chegou na condição de subalterno, aquele que possui

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uma condição socioeconômica inferior. É importante notar que a diferença entre ambos está em suas condições de chegada, pois que a própria palavra “colonizador” possui acepções diferentes neste contexto: europeu colonizador é dominador, enquanto que nordestino colonizador é ocupante de terras.

Já que se está falando de uma relação entre Eu e o Outro, é válido ressaltar o fato de o nordestino também se sentir estranho em outras terras, homem desenraizado que é, “não escondendo a mística do fatalismo que persegue sua raça”(Ibidem, p. 99), deixa para trás o pouco que possui para tentar a ventura longe de casa. Observe-se o trecho a seguir:

Seu sentimento de paternidade havia sido espezinhado. “Estivesse no meu sertão”– verberava – e tamanha vergonha não me danava assim. Retirante em terra alheia, não passa de flagelado, que se vê peiado – desafoga-se com Tereza, fazendo o seu conceito de justiça local.(Ibidem, p.206)

O nordestino se vê exilado, limitado em solo amazônico, outro lugar que parece e difere do seu, uma cultura diferente e semelhante à sua e uma identidade posta à prova para sua manutenção ou sua não adaptação em terras estranhas. Um conflito que põe à prova a resistência do nordestino, um estranho para si mesmo, que vive uma relação conflituosa com o Outro e consigo próprio pelo contexto em que ele está inserido no romance.

O migrante entra em crise com os outros hegemônicos (aqueles que já estavam quando o nordestino chegara) pelo que lhe é imposto cultural e socioeconomicamente e com seu Outro subjetivo pelas mudanças e adequações forçadas percebidas em si mesmo. Enquanto que o caboclo se vê personificado na figura do narrador, atormentado tanto pelo sofrimento do migrante quanto pelo estranhamento que a chegada deste lhe causara, representando a relação dialógica que existe nas relações identitárias.

Tanto a figura do migrante quanto a do narrador-caboclo são na verdade fissuradas, apesar de suas condições subalternas e hegemônicas,

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respectivamente, em termos culturais, no entanto, ambos são subalternos em relação aos comerciantes exploradores. O discurso do narrador acaba por estabelecer a diferença entre o que está no plano simbólico, cultural, e o que está no plano socioeconômico.

Percebe-se um nordestino análogo, com as devidas adequações, ao Dom Quixote observado por Foucault. Para o filósofo francês “ele [Dom Quixote], que à força dos livros tornara-se um signo errante num mundo que não o reconhecia, ei-lo tornado, malgrado ele” (FOUCAULT, 2002, p. 66). O nordestino migrante de Candunga é o próprio signo errante e irreconhecível por conta de forças exteriores a si como a fuga da seca, as políticas de incentivo à migração, bem como a exploração de seu trabalho.

Mesmo sofrendo desmazelos vários, o migrante nordestino ainda se vê sob estigmas negativos e preconceitos deterministas observados nas falas do narrador do romance de Bruno, principal enunciador de um discurso pedagógico em prol da cultura e da identidade amazônica contra a cultura nordestina. Seria este um tipo de não reconhecimento da importância dos nordestinos para a Amazônia brasileira, ou, mais especificamente no contexto do romance estudado, para a zona bragantina.

Tratando-se de cultura e identidade, pensa-se ser salutar trazer, para efeito de uma breve observação, nossa leitura de partes da obra Nordestinos na Amazônia, de Alcino Teixeira de Mello, com publicação, cronologicamente, próxima deCandunga, 1956 e 1954, respectivamente. Contudo, com visões opostas no que diz respeito à Amazônia e ao nordestino migrante.

Nordestinos na Amazônia faz referência aos migrantes que, durante o ciclo da borracha, vieram pra cá servir de mão-de-obra para a extração do látex. É exposta, na obra, a situação de penúria vivida pelos nordestinos durante sua permanência em terras amazônicas. Vale ressaltar que tal obra não tem o caráter literário de romance, mas sim de documento, no sentido pragmático da palavra, destacando-se os dados relativos aos migrantes, já que

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o autor era chefe do Departamento de Migrações do Instituto Nacional de Imigração e Colonização.

Traçando-se um paralelo entre o romance de Bruno de Menezes e a obra de Teixeira de Mello, podem-se observar muitos pontos em comum, mas também dissonâncias várias (das quais serão destacadas algumas). Logicamente que não se quer apenas se deter em semelhanças e diferenças entre as duas obras, mas importa perceber traços relacionados ao eixo de nosso trabalho, a cultura e a identidade, ambas manifestadas por meio de um discurso pedagógico.

Em Candunga, como já é sabido, tem-se a exposição de dois discursos culturais, um sobre o caboclo amazônico e outro sobre o nordestino migrante, ambos povoadores das colônias ao longo da Estrada de Ferro de Bragança. Por meio do narrador, percebe-se a valorização de uma certa cultura amazônica em detrimento de uma certa cultura nordestina em momentos vários do romance. A Amazônia é vista como espaço de bonança e fartura em contraposição à secura do nordeste brasileiro. Observe-se o trecho a seguir: “Vem de abandonados pontos do nordeste, rumo ao sonhado Pará. Crivados de ‘bicho de pé’, macilentos e desnutridos, transportam as trouxas dos teréns, sem esquecerem as cabaças d’água”(MENEZES, 1993, p. 103) [grifo meu].

Neste trecho, percebe-se claramente a visão que o narrador tem do que representa a Amazônia para os nordestinos que nela chegam: o sonho, o oásis, sem deixar de mencionar adjetivos que os diminuem, pondo em relevância o estado em que se encontram os migrantes, aproximando-os de uma descrição quase animalesca, não humana, bastante presente, também, n’Os Sertões.

Teixeira de Mello possui uma visão oposta à do narrador de Candunga. A Amazônia é vista como ambiente inóspito, cheio de armadilhas, doenças, obstáculos que o nordestino, com “têmpera de aço”, tem de vencer para se adaptar à floresta. Bem como a ida do nordestino para terras amazônicas representava o retrocesso para o estágio socioeconômico em que ele se

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encontrava no seu lugar de origem. Observem-se os trechos seguintes:

Gozando no sertão do convívio de amigos e parentes, agora se vê afastado de suas relações sociais, longe de mundo civilizado, vislumbrando através da folhagem das estradas o penacho do ameríndio traiçoeiro, o vulto do solerte tigre amazônico, ou o colear de venenosas serpentes.(MELLO, 1956, pp. 13 e 14) [Grifo meu].

[O nordestino] pertencendo embora à fase superior da civilização, teve que contrariar seus próprios instintos e desprezar as influências socioeconômicas de sua herança, para adaptar-se a um estado selvagem e inferior, e praticar a primitiva economia florestal.(Ibidem, p. 23)

Da crise, do estranhamento, vêm as diversas formas de afirmação da identidade e da cultura, provocando o conflito. Em Candunga, o uso de vários termos pelo narrador denota bem esse sentimento. O nordestino e a sua terra representam o flagelo, a fome, o povo desajeitado e desnutrido, enquanto que o caboclo e a sua terra representam a esperança, a ventura, o povo animado. Na visão contrastante de Teixeira de Mello, percebe-se o outro lado da afirmação identitária e cultural, o lado em que o nordestino se sobressai em relação ao caboclo amazônico, pois este se encontraria em um nível inferior de civilização.

Ou seja, as diferenças culturais existentes contribuem para que se asseverem os conflitos dentro do romance, bem como na produção do documento observado, e os trechos transcritos das obras ratificam tal questão. O narrador de Candunga e Teixeira de Mello estão em polos opostos, ambos possuem uma visão determinista acerca do Outro e de seu lugar, dando a seus escritos uma clara noção de superioridade sobre o diferente.

Já se falou, anteriormente, que o romance Candunga faz alusão à migração nordestina, para a zona bragantina, durante a colonização da área ao entorno

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da Estrada de Ferro Belém-Bragança. Dentre os aspectos marcantes da obra se destacam, principalmente, os conflitos identitários e culturais manifestados entre a família de retirantes cearenses e o discurso sobre o caboclo amazônico, os primeiros, representados por seis personagens, Gonzaga, Candunga, Tereza, Ana, Josefa e Assunção, e o segundo, representado pela figura do narrador. Foi justamente este posicionamento do narrador que chamou a nossa atenção no romance.

Deixe-se claro que o social, para nós, é observado por meio de uma perspectiva em que a personagem ou grupo de personagens (no caso de Candunga, os colonos - retirantes nordestinos e caboclos amazônicos) tem uma intrínseca ligação com a sociedade em geral, não apenas pelo fato de a literatura representar tipos humanos, mas também pelo fato do destino dessas personagens ser movido por impulsos necessários que conferem historicidade às tensões individuais ou entre grupos.

Tendo como elemento principal o enredo do romance, podem-se fazer algumas considerações acerca do aspecto social da obra, bem como dar relevância à figura do narrador de Candunga.

Tecnicamente, poder-se-ia considerar o narrador do romance, de acordo com Gancho e levando em consideração sua atuação na obra, como sendo “parcial”. Este “é o narrador que se identifica com determinado personagem da história e, mesmo não o defendendo explicitamente, permite que ele tenha mais espaço, isto é, maior destaque na história”(GANCHO, 1995, p. 28).

EmCandunga, podem-se ampliar as considerações de Gancho e dizer que o narrador se identifica com mais de uma personagem: Romário e Candunga são as personagens com as quais o narrador tem uma maior identificação. O primeiro é quem possui conhecimento e discursa em favor dos colonos, contra os “coronéis” da zona bragantina; o segundo é eleito o personagem principal, é o título do romance observado e a quem cabe a missão de transmitir aos

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outros as ideias do agrônomo Romário, numa perspectiva, pode-se dizer, messiânica, guardadas as devidas proporções.

Além das duas personagens, considera-se, também, a forte identificação do narrador com a cultura amazônica em detrimento da nordestina quando esta chega a solo amazônico, por meio dos retirantes, para se estabelecer na zona bragantina. Ou seja, o discurso pedagógico sobre a identidade amazônica do narrador é bastante aflorado no romance. Segundo Mattelart e Neveu (2006), o conceito de identidade advém da dinâmica sobre as classes sociais mutáveis, do questionamento da constituição das coletividades a partir de gênero, raça, entre outros aspectos. Ou seja, a imposição da dura realidade sobre os migrantes e colonos amazônidas fez com que surgisse o questionamento da grave situação vivida por estes. No romance de Bruno, Romário é o questionador e Candunga o instrumento para a materialização das ideias do agrônomo, para que desta forma as mudanças pudessem vir a ser implementadas tanto para migrantes nordestinos quanto para amazônidas, mas ainda sob a nuvem espessa do privilégio à cultura destes em detrimento da cultura daqueles por meio da fala do narrador.

São aqueles impulsos necessários, em Candunga, que fazem nordestinos migrarem para a zona bragantina, fugidos da seca, e colonizarem a área, tornando a obra uma inegável referência histórica para a Estrada de Ferro de Bragança. A partir de então, os conflitos socioculturais, econômicos e identitários norteiam a trama social do romance, destacando a situação vivida pelos nordestinos recém-chegados e pelos caboclos, enquanto colonos da referida área.

Em Candunga, não se perceberá a presença especificada, nomeada de personagens oriundas da região amazônica. Enquanto há personagens retirantes nordestinos, personagens comerciantes estrangeiros, a voz do caboclo amazônico é a do narrador. Há suposições da pertença amazônica de algumas personagens como o agrônomo Romário e Rosinha, a amasiada do

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português João, mas tal fato não é explicitado no romance.

O narrador de Candunga, apesar de não fazer parte dos acontecimentos da obra, é quem denota os sentimentos de estranhamento, pertença cultural e manutenção da identidade diante da presença nordestina. Um narrador paradoxal por estranhar, no campo cultural, a presença do Outro nordestino e ao mesmo tempo fazer deste Outro um símbolo da resistência campesina ante a exploração praticada pelos senhores de terra na zona bragantina.

Este narrador possui um discurso centralizador que reforça a segmentação cultural por meio de falas estigmatizadoras e preconceituosas várias contra os nordestinos, observadas ao longo deste trabalho, apesar de o herói do romance de Bruno ser proveniente do nordeste brasileiro, fato este que não diminui o aspecto diferenciador para com a cultura do migrante, inclusive pelo fato de o herói Candunga estar a reboque dos pensamentos do agrônomo Romário, o grande mentor do romance.

O aspecto paradoxal do narrador de Candunga não difere das contradições sociais latentes no romance. Em pleno período de ascensão do capitalismo como modo de produção há relações econômicas pré-capitalistas, aspectos feudais no que diz respeito ao uso da terra, inclusive, com a escravidão por dívida sendo notadamente utilizada pelos senhores de terra. Um grande paradoxo entre a modernidade trazida pelo capital e os laços com a tradição, que é mantenedora do poder exercido pela classe hegemônica, a qual possui os bens de produção.

Schwarz observa muito bem o que a colonização provocara no Brasil:

Esquematizando-se, pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o “homem livre”, na verdade dependente. Entre os primeiros dois a relação é clara, é a multidão dos terceiros que nos interessa. Nem proprietários, nem proletários, seu acesso à vida social e

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a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande.(SCHWARZ, 1992, p. 16)

Pode-se observar, trazendo o trecho acima para o nosso foco de estudo, que se tem, em suma, a relação produzida no romance de Bruno de Menezes, sendo que os migrantes nordestinos, protagonistas de Candunga, oscilam entre a escravidão e a liberdade, dependendo, única e exclusivamente, dos “favores” dos senhores de terra, João Portuga, Minervino Piauí e o Turco Abdala, para a sua manutenção e sobrevivência em solo amazônico.

Os “favores”, citados há pouco por Schwarz, muito têm a ver com a nossa história enquanto país periférico. Importações de um mundo burguês europeu, que pregava a ideia do homem livre, o ideal liberal, para um país escravocrata como o nosso, refletem o cume da contradição do desenvolvimento capitalista no Brasil. Este, segundo Schwarz, seria o primeiro estágio da relação estabelecida por meio do favor, o qual evoluiu a um aspecto institucional na sociedade brasileira. Enquanto o mundo burguês defendia a liberdade do homem, aqui no Brasil, mesmo após o fim da escravidão, a dependência pessoal continuava por intermédio do favor, nas várias instâncias de nossa sociedade. Sobre isso nos diz Canclini:

O favor é tão antimoderno quanto a escravidão, porem “mais simpático” e suscetível de unir-se ao liberalismo por seu componente de arbítrio, pelo jogo fluido de estima e auto-estima ao qual submete o interesse material. É verdade que, enquanto a modernização européia se baseia na autonomia da pessoa [...] o favor pratica a dependência da pessoa.(CANCLINI, 2000, p. 76)

Verdadeira pretensão de nossos intelectuais de se criar um Estado burguês moderno, no entanto, sem se libertar, por vontade e vocação, das amarras do clientelismo, simbologia da manutenção do poder para nossa aristocracia pseudomoderna. Como nos fala Schwarz sobre o narrador das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, em Um mestre na

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periferia do capitalismo,“os horrores da estrutura social não impossibilitavam a frequentação extensa da vida intelectual européia, embora lhe deslocassem o aproveitamento”(SCHWARZ, 1998, p.181), e diz também que

Em consequência, escravismo e clientelismo não são fixados apenas pelo lado obvio, do atraso, mas também pelo lado perturbador e mais substantivo de sua afinidade com a tendência nova. Esta “modernidade”, de que se poderia prestar para álibi de classe, no universo machadiano, entretanto não alimenta ilusões: ela só aumenta a miséria, pois, sem elogiar o atraso, desqualifica o progresso de que aquele faz parte.(Ibidem, p. 174)

Não da mesma forma machadiana, mas emCandunga há um aspecto transgressor na fala do narrador, denunciando a estrutura social que esmaga o colono e beneficia apenas os “coronéis”. Fica clara a relação de “favor”, que na verdade é servil, existente entre os senhores de terra e os colonos, bem como a relação interna de favorecimento entre os “coronéis” e as autoridades do local. João Portuga, Minervino Piauí, Salomão Abdala e o capataz João Deodato contam com a conivência do prefeito da cidade e do comissário de polícia para concretizarem suas ações ilícitas contra os colonos e contra Romário.

O mais interessante é notar que o comerciante Minervino Piauí é nordestino, ou seja, para o narrador do romance, o nordestino não é somente o flagelado, mas ele o é, também, por uma questão social advinda de sua própria região, em que “coronéis” monopolizam áreas e se autointitulam como donos do lugar. A zona bragantina seria este nordeste deslocado e ampliado, na visão denunciativa do narrador, já que um turco e um português também fazem parte desta rede de exploração. Acerca deste “conchavo” nos diz o narrador, com certo tom de ironia no primeiro trecho:

Um comissário de policia, pouco letrado, representa a arbitrariedade e a ordem. Um luso espertalhão, um sírio sem escrúpulos, um piauiense manhoso, combinados nas

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artimanhas, absorvem todo o trabalho e produção do burgo. E nada mais.(MENEZES, 1993, p. 114)

Os magnatas da “vila”, aparceirados com os figurões locais, engendram toda sorte de obstáculos à obra que Romário vem realizar. Não atendem aos Editais. Nenhum acha conveniente explicar porque alardeiam posse legítima nas terras, consideradas como devolutas, para a localização dos colonos.(Ibidem, p. 137)

Ainda sob a perspectiva das relações de favor, observe a seguir um diálogo da obra Candunga entre um grupo de colonos e o agrônomo Romário, no qual fica clara a exploração sofrida por aqueles que chegaram para trabalhar essencialmente como lavradores na zona bragantina, durante o povoamento das localidades ao longo da Estrada de Ferro Belém-Bragança:

- Há quanto tempo foram vocês trabalhar nessas terras? – quer saber Romário para se orientar.

A essa pergunta, os colonos se entreolham e um deles, falando pelos outros, responde:

- Desde que nóis cheguêmo...

- Por que não pediram para cada família ser localizada em lotes independentes?

- Pedi o que, seu doutô! Aqui todo terreno tem dono...

- Como é isso? Romário surpreende-se.

- A terra, o mato, a roça, a caça, a água... Até nóis mesmo... Se não temo dono, sêmo alugado, que é o mesmo que sê escravo...

Romário carrega a fisionomia:

- Como é isso?...

- É a verdade, seu doutô... Sêmo burro de carga de seu João Portuga, de seu Minervino, de seu Deodato... Mas o pió é o

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turco...(Ibidem, p. 133)

Com base no que foi observado, na conceituação de Schwarz, o favor nada mais é que o reflexo de uma modernidade inconsequente vivida no Brasil, por meio de nossa aristocracia “euro-tupiniquim”, pautada em relações de trabalho pré-capitalistas. Simulacro da modernidade europeia na América Latina. Sobre isto, Bhabha afirma que

Os embates da fronteira da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos; podem realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento e progresso.(BHABHA, 2007, p. 21)

Nessa linha, Schwarz é desafiador quanto ao progresso relativo à modernidade implementada no Brasil, assim como o próprio romance de Bruno o é no que diz respeito à zona bragantina. Os trechos anteriores de Candunga reforçam tal observação.

Falar em modernidade no Brasil nos causa entraves de várias ordens, principalmente pelo tipo de política aqui implementada e pelo que se viu há pouco. Falar de aspectos modernos na Amazônia nos provoca, minimamente, um enorme estranhamento. Pensamentos contraditórios surgem em nossas mentes pelo fato de se imaginar a modernidade em meio à selva amazônica no contexto de nosso romance. No entanto, a modernidade amazônica é um fato, principalmente após o primeiro boom da borracha.

No quarto capítulo de Candunga, tem-se o início da viagem da locomotiva “Peixe-Boi”, símbolo da modernidade no romance. É tal locomotiva que transporta os colonos para a zona bragantina. Para Hardman, em seu livro Trem fantasma – a modernidade na selva, a locomotiva, em si, é a materialização da exhibitio burguesa, espetacularização da modernidade, representação do progresso, da velocidade, da volatilidade, da fluidez do

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mundo moderno. Observe-se o trecho a seguir:

O que sobressai, para além desse parentesco, é o modo similar de entrada em cena dos caminhos de ferro nas três composições: como trens fantasmas, cujo aparecimento fugaz já significa também a próxima desaparição, cuja luz estranha já carrega a inevitabilidade melancólica da sombra; ferrovia ao mesmo tempo exposta e fugidia, oculta sob a película fina de “chuva, vapor e velocidade”; fumaça, cores brumosas de subúrbio e a própria sinuosidade do percurso; vitrais da estação de trem e mágica luz da manhã, no pontilhado tão marcadamente impressionista. (HARDMAN, 1988, p. 36)

No caso de Candunga não há esse tom de espetáculo, de exibição proveniente de uma burguesia em ascensão no que diz respeito à locomotiva. A “Peixe-Boi” é, no contexto do romance, a ligação da zona bragantina à capital Belém, um meio de transporte em condições insalubres, sub-humanas, descaracterizando totalmente uma forma de exhibitio das elites do local, como observara Hardman.

O narrador de Candunga observa que “nos vagões invadidos pelas fagulhas, não se pode transitar, sem correr o risco de tropeçar em corpos deitados nas tábuas nuas, em crianças desfalecidas, em detritos de toda a espécie”. O narrador nota também que “provoca engulho o cheiro azedo dos suores, com as persianas dos vagões descidas, por causa das lufadas de vento e chuva”. A descrição da viagem nos vagões da “Peixe-Boi”, do estado da locomotiva, chega a ser comparada a “um cardíaco obrigado a andar muitas léguas”. Refletindo a decadência de uma, na realidade, pseudomodernidade amazônica, na qual o que deveria ser um símbolo de pujança e modernidade, progresso para o povo da região, serve somente para o movimento de se abastecer/descarregar de gente humilde e esperançosa de um futuro melhor para si. Imagem de uma modernidade em decadência, com a respiração

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ofegante, após o áureo período da borracha na região amazônica.

Este é um traço do modelo de modernidade deficiente implantado na Amazônia e na América Latina como um todo. Sobre isto,Canclini afirma que “tivemos um modernismo exuberante com uma modernização deficiente” e ressalta também que

[Ondas de modernização] no final do século XIX e início do XX, impulsionadas pela oligarquia progressista, pela alfabetização e pelos intelectuais europeizados; entre os anos 20 e 30 deste século, pela expansão do capitalismo e ascensão democratizadora dos setores médios e liberais, pela contribuição de migrantes e pela difusão em massa da escola, pela imprensa e pelo radio; desde os anos 40, pela industrialização, pelo crescimento urbano, pelo maior acesso à educação média e superior, pelas novas indústrias culturais.

Esses movimentos, entretanto, não puderam cumprir as operações da modernidade europeia. (CANCLINI, 2000, p. 67)

Ou seja, tentou-se fazer o imitatio147 de uma modernidade burguesa europeia na América Latina sem levar em consideração nossas peculiaridades, culminando no não acompanhamento do ritmo moderno do velho mundo. A locomotiva “Peixe-Boi” é um dos belos exemplos da modernidade frustrada vivida na América Latina, em que os transportados sobre os trilhos da Estrada de Ferro de Bragança sentiram na pele os desmazelos para com sua gente.

Em Candunga, o narrador expõe o que, de fato, a modernidade, metaforizada pela locomotiva, trouxe à região da zona bragantina. As consequências foram trágicas. Esfacelamento da estrutura familiar, no que diz respeito à família de Candunga; assassinatos; aumento da destruição do meio

149 Fez-se uma adaptação do termo que o crítico literário Luiz Costa Lima utiliza para designar a arte baseada no oferecimento de um modelo ao artista ou ao escritor.

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ambiente; aparecimento dos “vícios” trazidos pela modernidade (a jogatina, a prostituição, etc.). É o progresso transportando a miséria.

No combate às mazelas existentes, uma das personagens que mais se aproxima do autor de nossa obra, espécie de alter ego deste no que diz respeito ao aspecto ideológico, pregando a igualdade e a ascensão dos mais humildes, é justamente Romário. O agrônomo chegara à zona bragantina para dirigir o núcleo colonial e, quando se depara com as condições em que se encontram os colonos, passa a empreitar uma tentativa de mudança no sistema econômico do local, por meio do enfrentamento com a justiça do local e com os senhores de terra, e da conscientização dos explorados. Observe-se o trecho a seguir:

- Pois é assim, - recomenda Romário – façam tudo que estou dizendo. Quando surgir qualquer novidade, comuniquem aos assistentes. Vão tirando as madeiras e as palhas para os paióis. O governo paga este serviço. Outra coisa: comprem, de agora em diante, com o “cobre” à vista. Nada de troca nem pagamento com produtos. Venderemos tudo. Vamos acabar com esse negócio de entrega direta no comércio, porque aí é que vocês são roubados.(MENEZES, 1993, p. 158)

O narrador de Candunga traz consigo um tom deveras denunciativo, externando a situação vivida pelos lavradores, tanto caboclos quanto nordestinos, no que diz respeito às relações sociais estabelecidas na região da zona bragantina entre aqueles e os “donos” das terras. Analfabetismo, escravidão e prostituição são apenas alguns dos problemas observados ao longo do romance de Bruno de Menezes.

Tem-se, nesse aspecto, a representação de um problema social brasileiro bastante comum ao longo da história, que é a transformação de espaços produtivos em latifúndios, nos quais uma minoria se beneficia de vários hectares de terra, enquanto a maioria esmagadora de trabalhadores é

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cada vez mais reprimida e explorada, levada e deixada à margem. Fato este trazido à tona pela voz do narrador em Candunga. Este tom denunciativo, para Silviano Santiago, é a função social do romance na contemporaneidade, proporcionando “um espaço crítico em que se refletem os grupos sociais que vão ocupando as esferas de poder, prestigio e decisão nas fazendas e nas cidades”(SANTIAGO, 1982, p. 29).

Além de denunciar os abusos sofridos pelos colonos, o narrador, por meio de seu discurso, tenta estabelecer uma espécie de ordem cultural no lugar. Um tom progressista predomina em sua fala, em suas impressões. De forma semelhante, Romário traz consigo esta ideologia progressista. Observe os trechos a seguir, respectivamente, falas de Romário e do narrador:

- É isso mesmo, é assim como você diz! Responsabilizo-me por tudo! A terra é de vocês, é daquele que a aproveita e dela arranca o seu pão, sem sugar o sangue de ninguém! Contem comigo! Chegará o dia de não pagarem mais! Trabalhem com fé! Isto há de acabar! Não demora muito!

A esse fala do sonhador, os caipiras se entreolham. Nunca ninguém lhes dissera essas cousas. E como se compreendessem o visionário, iam se dispersando, silenciosos, crentes de que aquelas palavras, sem saberem como, teriam de se realizar um dia.(MENEZES, 1993, pp. 159-160)

Para Lucas, os romances de caráter social que mais se destacam são aqueles que

Primam pela negação do sistema que nega o homem, que o tritura na sua máquina de produção, que o mutila, que reduz os seus horizontes, que o transforma em coisa. As outras obras não passam de sonho de visionários, utopia pseudorrevolucionária,

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deformação da mente em favor de um futuro provável.(LUCAS, 1970, p. 55)

Em Candunga, há, pode-se dizer, uma espécie de transição entre os dois tipos de romance elucidados por Lucas. Diz-se isso pelo fato de haver no romance de Bruno de Menezes a negação do sistema e a consequente ânsia por mudança. Observou-se que os trabalhadores da zona bragantina se tornam “coisas” frente à dinâmica da modernidade implementada na região; perceberam-se descrições animalescas do homem nordestino: “Antonio Candunga, seu afilhado, pelo físico dessorado, lembra um novilho desgarrado, de ossatura à mostra, a quem abriram a porteira do curral”; vê-se um sentimento de subalternidade latente nos migrantes desesperançosos: “pobre tem que vivê sempre por baxo [...] Nóis não semo ninguém”.Por outro lado, não deixa de haver aspectos utópicos, “sonhos de visionários”, como foi observado na fala do narrador sobre o Romário.

Interessante se notar que o tom revolucionário, do narrador e de Romário, soa, para nós, paradoxalmente, como uma espécie de híbrido positivo150

148-socialista. Em Candunga, o estabelecimento do progresso por meio da ordem, no entanto, possui traços que fogem a um aspecto totalmente positivista marcante no Brasil no início de nossa República, ligado, principalmente, ao militarismo. No romance há uma tendência ao Socialismo enquanto ideologia por conta da ânsia pela não exploração das camadas mais pobres, no caso do romance, dos colonos, por isso se falou em híbrido positivo-socialista já que o tipo de positivismo implementado no Brasil, presente no lema de nossa bandeira, não é o mesmo observado em Candunga.

Há passagens de Candunga em que fica clara a noção do que se está falando, fazendo, inclusive, menções à Revolução de 30 ocorrida no Brasil, por meio da qual os militares Getúlio Vargas e Magalhães Barata comandaram a 150 A teoria positivista é oriunda da França, criada pelo filósofo Augusto Comte. O termo “positivismo” possui várias acepções, mas, aqui, iremos nos ater ao sentido utilizado no Brasil, baseado, primordialmente, na Ordem e no Progresso, influência direta do discurso comteano: “Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”.

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República e o Pará, respectivamente, durante quinze e cinco anos consecutivos, tempos chamados de Varguismo e Baratismo, pelo modo incisivo e populista de governar de ambos.

Apesar de haver o questionamento das relações de poder estabelecidas na zona bragantina, com o fomento à criação de cooperativas, o que se percebe em Candunga é a referência legalista, o esteio que é o poder público, por meio do interventor estadual, para a luta contra os “coronéis”. Observem-se as falas do interventor, anônimo, do estado do Pará em Candunga:

- Quero a abertura de um inquérito policial rigoroso! – E mais enraivecido: - Ah, esses galegos, esses “coronéis” da roça, só mesmo todos na cadeia! Pensam que a revolução foi feita para isso, mas se enganam. (MENEZES, 1993, p. 171) [Grifo meu].

- É isto mesmo... Para que esta gente pensa que se fez revolução? Dê-lhes uma lição em regra e depois os ponha na rua... Eles ficam desmoralizados na colônia, onde se julgam grande coisa. (Ibidem, p.192) [Grifo meu]149.

Note-se que no início do livro, Bruno de Menezes enfatiza uma longa dedicatória aos prefeitos das unidades municipais da zona bragantina, dando à obra, além do caráter social, documental e ficcional, um caráter institucional, representado no romance pela fala de autoridades anônimas que estavam de acordo com o que Romário pregava, no entanto sem perder um viés mantenedor da ordem para que se chegasse ao progresso na zona bragantina.

Apesar de não ser o nosso objetivo criar uma dicotomia entre o romance e os nordestinos, não se pode deixar de mencionar o caráter essencialista e determinista com que o narrador de Candunga expõe sua visão acerca do

151 Faz-se necessária esta nota para deixar claro que o contexto histórico do enredo da obra Candunga, pós 1930, coincide com a feitura do romance por Bruno de Menezes. Não é aleatoriamente que o interventor, no trecho citado, se vale duas vezes da palavra revolução. Além disso, percebe-se na fala interventorial características de um governo com “pulso firme” e “mãos de ferro”, grande marca de governos militaristas como os de Getúlio Vargas e Magalhães Barata.

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migrante. Mesmo tendo um nordestino como o protagonista do romance, sendo a personagem Candunga a grande anunciadora das boas novas aos oprimidos colonos da região da zona bragantina, tem-se, ainda assim, um forte preconceito contra os nordestinos, chegando a ter um caráter etnocêntrico, tornando-se notório no romance o posicionamento do narrador frente à cultura nordestina. Uma postura que vai além do estranhamento chegando à subjugação dos migrantes diante, principalmente, do discurso pedagógico sobre a cultura amazônica.

Conclusão: última estação

Trabalhou-se com vários conceitos de cultura e identidade ao longo do trabalho, tratando das essencialidades e determinações, preconceitos e estigmatizações, advindos do narrador de Candunga, devido ao fato de o texto literário observado suscitar este tipo de olhar. Trabalhou-se também a observação da construção dos discursos identitários, dos discursos de manutenção de poder, traçando o paralelo com a contemporaneidade, com a pós-modernidade, ampliando, desta forma, as significações sobre a obra.

A expressão “muitos como um”, utilizada por Bhabha (2007, p. 203), é como o narrador externa sua visão de identidade cultural. Ele (narrador), sendo a representação da cultura e da identidade amazônicas no contexto do romance Candunga, possui uma visão etnocêntrica avessa à cultura do migrante nordestino presente na zona bragantina. Purismos e essencialismos não condizem com o que de fato é a identidade, mas se tem a clara noção de que sua busca incessante faz parte de um discurso político e ideológico o qual possui como objetivo manter a ordem em prol da manutenção do poder pelas elites.

Fez-se a crítica de uma obra que nunca fora profundamente estudada, de um autor bastante conhecido por sua poesia, mas não por sua prosa, além de estar se fazendo um estudo acerca de uma temática bastante recente

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teoricamente sobre um romance escrito na década de 30 do século XX. Aspectos culturais e identitários à flor da pele no contexto da obra de Bruno, autor de um romance em que o narrador, apesar de várias falas etnocêntricas e logocêntricas, consegue externar a função social, o caráter transgressor que a arte de boa qualidade deve possuir.

Tem-se, logicamente, ressalvas várias sobre o discurso deste narrador, mas não se deixou de mencionar ao longo do trabalho os aspectos qualitativos do romance. Quis-se a fuga do que se tornou clichê em observações literárias sobre autores amazônicos: não se escolheu Bruno e seu romance para exaltá-los somente, mas também para criticá-los devidamente com o suporte teórico utilizado. A literatura, de forma interdisciplinar, por meio dos Estudos Culturais, sendo utilizada como ferramenta para descortinar o aspecto social, bem como o aspecto social utilizado como esteio para o fator artístico da literatura.

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PROFESSORAS APOSENTADAS EM SABERES DA EXPERIÊNCIA NA AMAZÔNIA

Isabel Cristina França dos Santos Rodrigues (IEMCI/UFPA)

Introdução

Discutir saberes da experiência e a identidade docente utilizando para isso um grupo de professoras aposentadas traz para discussão algumas temáticas que envolvem diferentes campos de estudo como a Educação, a Linguagem e os Estudos Culturais. As aposentadas circulam pelas diferentes esferas comunicativas e procuram orientar ainda o trabalho desenvolvido pela nova geração de docentes negociando sentidos e papeis sociais, em especial, durante os encontros religiosos e de lazer promovidos pelas comunidades.

Em função do perfil do público e dos contextos selecionados para este trabalho, é necessário observar temáticas que abordem também a velhice e a cultura. Os sentidos atribuídos ao trabalho na sociedade atual são colocados em xeque, pois as aposentadas assumem identidades diversas nas suas interações e algumas delas se direcionam, em especial, à Pastoral da Criança e aos grupos folclóricos. Isso garante status às aposentadas, pois elas se engajam de tal modo nas práticas socioculturais que chegam a ser consideradas como pessoas ativas em detrimento de quem se aposentou e seguiu com um projeto diferente.

A partir das visitas realizadas nos contextos, selecionamos 14 aposentadas e 22 representantes das comunidades da vila de São Benedito e da vila do Carmo, entre professores da Educação Básica, líderes comunitários, ex-alunos e coordenadores de grupos folclóricos. Alguns deles acumulavam diferentes papeis sociais por conta dos engajamentos tanto na vida profissional quanto na social das vilas. No entanto, para este artigo selecionamos apenas alguns desses sujeitos cujas narrativas revelam saberes da experiência e questões de identidade. Desse modo, é relevante trazer para discussão como são tratados tais saberes e como eles ressignificam as identidades assumidas

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pelas aposentadas de maneira a valorizar suas trajetórias na vida profissional e social.

Por conta disso, uma das questões que nos moveram no processo investigativo e que direciona o estudo aqui apresentado foi: Quais os sentidos que as professoras aposentadas da vila Moiaraba e Carmo do Tocantins atribuem à continuidade do investimento na vida por meio das práticas socioculturais exercendo forte influência na comunidade e, em especial, na formação pessoal e profissional dos docentes da Educação Básica? Considerando que ela nos mostraria os porquês de as aposentadas se engajarem nas práticas socioculturais, assim como indiciaria os saberes que elas compartilham com a nova geração de docentes. Para isso, tivemos que selecionar o aporte teórico-metodológico que criasse condições para o grupo selecionado revelar tais motivações e os saberes provenientes dos engajamentos nas ações pelas vilas.

As narrativas indicaram que as atividades realizadas pelas aposentadas estavam ligadas, principalmente, aos eventos culturais, tais como, os ensaios da quadrilha, do grupo Folclórico da vila do Carmo, as celebrações do Sagrado Coração de Jesus e do Espírito Santo, as ações da Pastoral da Criança e as aulas da catequese nas duas vilas. Dentre essas atividades, a catequese era uma das mais mencionadas pelas aposentadas inicialmente por se tratar de uma prática que as faziam rememorar a docência, possivelmente, em função das semelhanças entre as experiências as quais elas acumularam durante a docência e o perfil do catequista, fazendo com que elas se sentissem à vontade para lidar com os alunos, apesar das diferenças de idade.

A opção por trabalhar com um público como o formado pelas aposentadas redimensiona ou amplia os olhares acadêmicos no que concerne às formas de lidar com práticas socioculturais e identidades que se revelam nos engajamentos desses sujeitos em seus contextos, seja pelo prestígio social, seja pela necessidade em dar qualidade ao tempo ocioso proporcionado pela aposentadoria e de ajuda aos moradores por meio de orientações aos docentes

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da Educação Básica e trabalho com as crianças e jovens (Pastoral da Criança, quadrilhas e celebrações dos eventos que envolvem os padroeiros das vilas).

Identidade docente

Ao observar a rotina das aposentadas em suas comunidades, verificamos que a valorização do trabalho o qual elas desenvolvem, em certa medida, está vinculada ao fato de ainda poderem trabalhar e se manterem produtivas naqueles espaços culturais. Daí, a relação entre cultura e produção econômica, articulada às dimensões política, social e histórica etc. Nada está fora da cultura, inclusive, as ditas paisagens físicas, pois os homens é que as interpretam, representam, manipulam e constroem sobre elas relações de territorialidades e pertencimentos que revelam as diferentes identidades assumidas pelas aposentadas ao longo de suas trajetórias.

É importante ressaltar que muitos estudiosos se destacaram no desenvolvimento das pesquisas a respeito da cultura, mas para fins deste trabalho, selecionamos Stuart Hall (2003) e Raymond Williams (1979). Hall traz para discussão as identidades em construção ao se opor ao tipo de comunicação que se estabelecia entre os sujeitos, focalizando a existência de um discurso como prática social que deve ser articulado de modo a persuadir o outro. Por isso, o sujeito se constitui na linguagem e através dela assume suas identidades, visto que para esse estudioso a identidade está em processo, é instável e negociável.

Na perspectiva de Williams (1979) são as inter-relações que auxiliam bastante no entendimento da totalidade do processo cultural, não se restringindo a um aspecto específico, que neste caso tende a ser o dominante. Isso se consolida ao se analisar tal processo apenas no aspecto temporal, deixando-se de lado “as relações dinâmicas internas de qualquer processo real” (p.125).

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A experiência social é concebida como em processo, entre o dominante e o emergente. Os modos de vida das professoras aposentadas, olhadas sob estes aspectos, indiciam as opções pelas práticas socioculturais como forma de continuarem a investir na vida por meio de novos projetos, mas pautadas nas experiências acumuladas ao longo da docência e da vida em comunidade, não se adequando a uma imagem “cristalizada” de aposentado enquanto desprovido de subjetividade, sem direito a voz e vez, desvalorizado em seus saberes pautados na experiência vivida. Ou seja, há uma luta entre cultura dominante e as percepções, criatividades e sentidos construídos no convívio entre os sujeitos, de modo que, este convívio é forjado em um espaço multifacetado nas práticas socioculturais desenvolvidas pelo grupo de aposentadas.

O sujeito tratado neste trabalho é o descentrado, abordado nos estudos de Brandão (2002). É a partir daí que Brandão (op. cit) se apóia nos estudos de Bakhtin (1996) ao defender que a palavra não é monológica, de modo que a perspectiva do dialogismo é fundamental, para que ocorra a construção de sentidos. É importante considerar que nessa perspectiva, ao analisarmos as narrativas à luz do dialogismo bakhtiniano, mobilizamos signos e:

o fazemos sempre de modo refratado. E refratar significa, aqui, que com nossos signos nós não somente descrevemos o mundo, mas construímos - na dinâmica da história e por decorrência do caráter sempre múltiplo e heterogêneo das experiências concretas dos grupos humanos - diversas interpretações (refrações) desse mundo (FARACO, 2009, p. 50-51).

Sendo assim, as experiências cotidianas dos grupos sociais, seus modos de conceber o mundo, sempre permeados por ideologias, pressões, posturas contra-hegemônicas não podem significar sem refratar as contradições também. Os sentidos são negociados, construídos e reconstruídos historicamente. Por

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isso, ao tratarmos do dialogismo, consideramos três dimensões do processo dialógico, a saber: a) todo dizer não pode deixar de se orientar para o “já dito”; enunciado é réplica, não se constitui do nada; b) todo dizer é orientado para a resposta espera-se a réplica e c) todo dizer é internamente dialogizado: articulação de múltiplas vozes sociais (FARACO, 2009).

É nesse campo cultural, em especial, que muitas lutas se dão: identidades são negociadas, refutadas, conseguem adesão reiterando ou ressignificando valores individuais e coletivos sócio historicamente construídos. Portanto, elas são discursivamente construídas nas relações com o outro.

As relações dos estudos da cultura com a área da linguagem concernem no fato de que Williams (1969, p.19) apresenta aqui uma alternativa histórica e materialista ao famoso giro linguístico das humanidades considerando que

[...] o movimento que tomava a linguagem em sentido absoluto, como sistema que nos fala e condiciona. O seu propósito é articular outro conceito de linguagem que possibilite levar em conta as contradições entre agência e determinação, ou seja, que apresente os limites e as pressões a que está submetida a ação humana e aos mesmo tempo preserve um espaço para a mudança.

Com isso, ele mostra que muitos termos não eram tomados no seu significado enquanto “arena onde se registram os conflitos sociais”. (WILLIAMS, 1969, p.19). Mas, a partir dessa perspectiva, os estudos das palavras que envolvem as práticas e as instituições que representam cultura e sociedade assumem outros valores. Não bastaria observar cultura, por exemplo, apenas num dado espaço, tempo e sujeitos, mas na dinâmica das relações estabelecidas, nos sentidos negociados, nas identidades assumidas. Assim, ser aposentado pode estar associado à exclusão ou a uma posição de destaque, se compararmos as professoras as quais seguiram investindo nas práticas socioculturais e com os aposentados que não tiveram o mesmo

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direcionamento.

Os Saberes da experiência e a formação docente

Os estudos desenvolvidos por Jorge Larrosa (2002) a respeito do saber da experiência são importantes para ampliarmos a discussão que envolve a identidade, principalmente, no concernente à formação do professor uma vez que apresenta, dentre outros aspectos, a Educação como teoria e prática (política e crítica). Além disso, o autor estabelece uma importante distinção entre o “saber da experiência”, no sentido de “sabedoria” e a informação, no sentido de “estar informado”.

Segundo o estudioso, a informação está ao alcance de todos na sociedade moderna, mas pode não significar experiência, pois esta é algo que se passa conosco, algo que nos toca e nos afeta de algum modo. Assim, ela precisa mediar uma reflexão detida em como se engajar nas práticas educativas e não meramente repassar um conhecimento sistemático e historicamente acumulado. Por isso, para o autor, é necessário “pensar a educação a partir do par experiência /sentido” (LARROSA, 2002, p. 20), ou seja,

[...] pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras (LARROSA, 2002, p. 21).

Essa discussão se justifica pelo tipo de pesquisa que realizamos, porque as experiências das aposentadas ganham eco nas possibilidades de educação naqueles contextos. Elas não só se posicionam diante da vida, mas também projetam novos investimentos na docência, ao orientarem os professores da Educação Básica, ao trabalharem na Pastoral da Criança, ao ajudarem nos movimentos culturais implementados nas comunidades, dando sentido ao que lhes acontece nas ações realizadas na fase de aposentadoria.

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Esse saber presente nos diálogos com os docentes da Educação Básica, com os alunos e com os demais moradores dá sentido às vidas daquelas aposentadas e aos que com elas se relacionam. Consideramos que, em alguma medida, é isso que lhes garante legitimidade diante dos professores da Educação Básica, dos grupos folclóricos, dos representantes religiosos, enfim, da comunidade, como nos mostra a narrativa de Georgina, ao se posicionar a respeito do trabalho realizado pelas aposentadas:

[...] escola e hoje a gente vê que a maioria eles são, já tem uma universidade, mas eles não têm o interesse de ir aonde agente vinha naquela quando eu cheguei, quando eu vim pra cá eu cheguei a trabalhar com vários professores aposentados como a professora F, professora AM, professora D, tive duas professoras chamadas D, e eles corriam atrás daquilo NADA era difícil (ou coisa de mal) se a gente falava que a gente ia fazer um projeto, um planejamento de uma forma, eles rápido enquanto fazia com aquela coisa que eles já tinham, com aquele conhecimento acabava que eles iam desenrolavam o grupo deles mais rápido do que os que já são formados[...] (Suporte Pedagógico das vilas. Trabalhou com muitas das aposentadas. Participa da organização geral das atividades religiosas da vila do Carmo).

A temática contribui também para refletirmos a respeito da dinâmica da sociedade pautada numa educação do fazer, do produzir, da informação rápida e do consumo imediato. Assim, pouco se permite uma educação lastreada na experiência, no que se passa com o sujeito da educação.

Benjamin (2000) já nos lembrava de que informação e experiência se distinguem e que o mundo moderno está cada vez mais pobre de experiências, no sentido de que algo possa nos acontecer, impressão de atitudes, mudança, engajamento. Por isso, a metáfora da morte do narrador apresentada por ele. E

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isso é muito recorrente, ao observamos de que maneira a sociedade lida com a efemeridade e com o acúmulo de informações com poucas ações efetivas, em especial, no que tange ao processo educativo, deixando os profissionais cada vez mais condicionados a dar conta de aspectos quantitativos, em detrimento da criação de estratégias contra hegemônicas que possibilitem a emancipação dos sujeitos (professor e aluno).

Dessa maneira, os saberes legitimados negam outras possibilidades de diálogos com saberes detidos na experiência, seja ela individual, seja coletiva. O sujeito da informação é mais objetivo, imediatista, encontra-se a favor do tempo. Daí seu caráter efêmero. Não há espaço para se refletir, ver, sentir, atribuir sentidos aos eventos e aos sujeitos que lhe rodeiam.

Ao verificarmos as trajetórias das aposentadas, evidenciamos que as experiências compartilhadas com os docentes da Educação Básica são narradas a partir dos modos como determinados eventos ganharam sentido na vida daquelas mulheres. Os engajamentos nas diferentes formas de lidar com esferas públicas como a escola e a igreja paralelamente aos cuidados com a família encontram lugar nos modos de vida de alguns docentes que já possuem dinâmicas semelhantes as do grupo de aposentadas.

Ao nos pautarmos nessas relações que se estabeleceram, podemos considerar que, naqueles territórios de cultura, as aposentadas ocupam posição inversa ao que Benjamin (2000) trata como narrador aquele que traz a novidade, pois algumas delas sempre viveram nas vilas; outras se afastaram e retornaram em diferentes momentos por necessidades de formação, cuidados com a saúde e com a família.

As aposentadas, mesmo diante desse contexto, conseguem seguir como produtoras de saberes que dão sentido às vilas. Elas garantem a continuidade de uma tradição que, por mais contraditória que seja em alguns aspectos, encontra eco nas comunidades, porque favorece o espaço para o acontecer. Isso

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vai ao encontro do que Larrosa contesta, posto que, ao se priorizar informação e opinião, nega-se o espaço para o “acontecer”. Ou seja, num espaço onde prevalece a informação e não o acontecimento experiencial,

o sujeito individual não é outra coisa que o suporte informado da opinião individual, e o sujeito coletivo, esse que teria de fazer a história segundo os velhos marxistas, não é outra coisa que o suporte informado da opinião pública. Quer dizer, um sujeito fabricado e manipulado pelos aparatos da informação e da opinião, um sujeito incapaz de experiência. (LARROSA, 2002, p. 22).

Larrosa (2002) ressalta ainda que, diferentemente da lógica do experimento, o que “produz acordo, consenso ou homogeneidade, entre os sujeitos, a lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade” (LARROSA, 2002, p.28). Podemos observar essa questão nos modos como os docentes da Educação Básica, mesmo apoiando-se em muitas das orientações feitas pelo grupo de aposentadas, reconhecem o quanto há necessidade de se dialogar com saberes da formação inicial presentes em outros contextos (em nível superior, inclusive) para dar conta de competências que o perfil profissional lhes exige atualmente. Além disso, há uma divergência quanto aos detalhes das cerimônias e às preparações necessárias às diferentes atividades que fazem parte da vida da escola. Isso evidencia que as aprendizagens são múltiplas e não lineares, como é o caso da narrativa de Estela:

[...]É ...é uma situação assim de criticar...uma crítica né...que na época da fulana de tal eles citam o nome de algumas que já passaram por aqui muito antes...tinha um sete de setembro ma-ra-vi-lho-so e agora por quê que que não tem? aí com isso a gente vai né...claro a gente não quer que a tradição morra e acaba fazendo, acaba se esforçando mesmo se agente ache que não é pra fazer mais e acaba fazendo [...] (Estela, docente da Educação Básica, ex-

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aluna de algumas das aposentadas, vice-coordenadora e integrante da quadrilha Estrela Junina e do Apostulado de Oração do Coração de Jesus).

Essas diferenças, no entanto, não geram tensões que tomem proporções maiores, porque há uma aproximação, uma familiaridade, uma Estrutura de sentimento (WILLIAMS, 1969) muito forte pautando-nos aqui nos Estudos Culturais. Por isso, a concepção de experiência assumida nesta pesquisa é a mesma apresentada por Larrosa, uma vez que os professores da Educação Básica, alguns com maior evidência, procuram se engajar nas práticas iniciadas pelas aposentadas, quando aquelas ainda eram suas professoras.

Em outros casos, as convivências no trabalho, também desenvolvidas na igreja e nos grupos folclóricos serviram para que o saber da experiência criasse diferentes oportunidades, para que as aposentadas, mesmo inconscientemente, projetassem suas vidas nesse percurso. Esse tipo de postura diante da vida em comunidade conseguiu influenciar, inclusive, nas escolhas profissionais de alguns dos seus alunos que, assim como o grupo, já procuram conciliar vida escolar e vida social.

O grupo também estabeleceu com muitos de seus educandos interações para além do espaço escolar. As aulas de catequese, a coordenação da Pastoral da Juventude, dos grupos de orações, dos ensaios das quadrilhas, tiveram esses alunos como colaboradores, conforme as horas vagas que possuíam. Aqueles momentos serviram não apenas para que as docentes atendessem às demandas das ações previstas, mas também para afinar laços, construir uma estrutura de sentimento que na perspectiva cultural de Williams (1977) se mostra como uma possibilidade imbricada de rigidez instituída pelas representações homogêneas, rígidas de uma sociedade e de uma flexibilidade, de uma movência pautada nos sentimentos, nas experiências vividas em diferentes esferas públicas e em situações de interação (ensaios, eventos religiosos, eventos cívicos, dentre outras) apresentados em determinados

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aspectos na seguinte narrativa:

Esses professores aposentados daqui da nossa vila... eles/eles sempre des/eles/participam assim da::a igreja... eles participam também juntamente com a/os professores lá na escola... e::eles sempre eles se preocupam juntamente com os professores com a comunidade geral né em participar de vários eventos que tem na comunidade é::é... momentos cultura::ais, religiosos... eles sempre estão...juntamente com a comunidade escolar e::e também na vida religiosa de/da nossa vila também, sabemos que a nossa vila é pequena aqui né e eles se preocupam...com a gente (George, Docente da Educação Básica, ex-aluno de algumas aposentadas, líder comunitário na vila do Carmo do Tocantins).

Observamos também nos estudos de William (1977) que ele se apropria do conceito de cultura em sentido amplo, utilizando-o para embasamento de análises centradas nos estudos literários e nos da comunicação. Tentaremos, então, articular esse conceito à análise do discurso e à Educação para discutirmos as relações estabelecidas entre os sujeitos envolvidos no estudo. Por isso, por mais que exista a força da tradição procurando dar um tom homogêneo diante de novas propostas na realização de determinadas ações, os laços de sentimento das educadoras, negociam as tensões, mas há um hibridismo na parceria entre aposentadas e a nova geração de docentes.

Isso significa dizer que, por mais rígido que seja um sistema, na perspectiva cultural, ele estará sujeito a negociações, a diálogos os quais favoreçam o processo de constituição docente. Requerendo o saber da experiência, o trabalho ganha sentido e significado para além da mera relação mercadológica. Assim, não exclui, nem se confronta no sentido de anular o diferente. Segundo Gomes (2011, p. 32) “A articulação entre a mudança social e a mudança cultural é o desafio central que Williams quer enfrentar com a formulação da noção de estrutura de sentimento”.

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A velhice e suas marcas no contexto social

É no diálogo com a nova geração de docentes que se estabelece o consenso e que, no caso dos sujeitos pesquisados, há uma seleção dialógica, posto que no caso da nova geração, a formação inicial e a continuada diferem bastante das que receberam aquelas mulheres. As aposentadas, por sua vez, se apropriam do novo para projetar a vida em comunidade e seguir com o status que conquistaram, durante o exercício da docência. Por mais que as aposentadas não constituam um público em condições de trabalho, uma vez que a aposentadoria marca, em larga escala, a incapacidade para atender às demandas do mercado, em contextos mais urbanos, é essa interação construída nas comunidades que as torna detentoras de um saber, que as singulariza diante das representações de que o aposentado é um ônus para a sociedade.

Por esse motivo, consideramos relevante analisar as práticas socioculturais, desenvolvidas pelo grupo de aposentadas mostrando como essas mulheres se utilizam de diferentes alternativas para lidarem com esse processo de envelhecimento. Assim, elas procuram se manter socialmente ativas, exercendo autonomia e liderança na coordenação de boa parte dessas práticas, como também o desejo de permanência nelas. É nas práticas socioculturais que as aposentadas encontram espaço para subverterem a lógica do aposentado assumindo outros papeis sociais, outras identidades.

A importância desse tipo de discussão ancora-se no fato de que a sociedade brasileira será representada, em pouco tempo, como uma sociedade de velhos com uma expectativa de vida superior ao que se tem notícia. Isso nos força a repensar as maneiras de lidar com esse grupo em função de sua complexidade. Dessa maneira, torna-se pertinente considerar sujeitos que, apesar das adversidades e de poucas condições de programar a velhice, encontram nas atividades em prol das vilas Moiraba e Carmo do Tocantins formas de lidar não apenas com o processo de aposentadoria, mas com o processo do curso de vida, imposto por esta fase circunscrita nos eventos

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normativos graduados pela história.

Observamos, assim, que aprender a ser velho na sociedade industrial é tarefa difícil, uma vez que para Bosi (1994, p.77-78) esse tipo de sociedade

rejeita o velho, não oferece nenhuma sobrevivência à sua obra. Perdendo a força de trabalho, ele já não é produtor nem reprodutor. Se a posse, a propriedade constituem, segundo Sartre, uma defesa contra o outro, o velho de uma classe favorecida defende-se pela acumulação de bens. Suas propriedades o defendem da desvalorização de suas pessoas. O velho não participa da produção, não faz nada: deve ser tutelado como um menor.

Acrescente-se a isso o fato de que o velho é tratado como ônus para os governos, o que restringe as reivindicações a favor de uma velhice bem-sucedida, pautada em políticas públicas que definem a valorização do idoso. Suas experiências acumuladas, outrora valorizadas, por se considerar que o tempo só aperfeiçoava as mesmas é uma realidade distante, pois, conforme Bosi (1994, p 78), “Hoje o trabalho operário é uma repetição de gestos que não permite aperfeiçoamento, a não ser na rapidez. Enquanto o artesão realizava sua obra em casa, na oficina doméstica, o velho trabalhador tem que se deslocar”.

Por conta disso, a autora sugere que “Durante a velhice deveríamos estar ainda engajados com o que nos transcendem, que não envelhecem, e que dão significado a nossos gestos cotidianos” (BOSI, 1994, p. 80) como forma de amenizar, driblar as consequências do tempo. Os danos do tempo são direcionados às mazelas, causadas pelo silêncio destinado àquele que não se enquadra mais no perfil fabril. Desse modo, ele que vê na aposentadoria uma esmola, como ressalta Bosi. Cada um busca novos encaminhamentos à vida, seja procurando realizar sonhos mais pessoais, seja engajando-se em metas e necessidades mais coletivas, como é o caso da maioria do grupo de

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aposentadas que foi selecionado para esta investigação.

Essas buscas criam condições para que o indivíduo se perceba enquanto sujeito histórico e realize reflexões sobre seus modos de viver em encontro/confronto com novas formas de ser e se coloque no mundo atual. Em outras palavras, as práticas socioculturais vividas pelas aposentadas são instrumentos para analisarmos como as mediações atravessaram os sentidos atribuídos aos modos de se educar no presente.

Opções Metodológicas

Ao discutirmos os espaços das vilas Moiraba e Carmo do Tocantins, deve-mos considerá-las como comunidades rurais e ribeirinhas. Isso se justificaria pelo fato de que muitos dos sujeitos possuem uma vida bastante ligada à agricultura e aos rios, à pesca e a tudo que envolve os dois ambientes.

Os sujeitos selecionados para esta pesquisa revelam que paralelo aos estudos e ao trabalho nas escolas, no posto de saúde, nas igrejas e nos centros comunitários, desenvolviam atividades nos campos (agricultura) e na pesca. Estas atividades lhes foram repassadas pelos pais, avós e tios na maioria dos casos. Elas serviram como principais fontes de sustento por questões de tradição familiar, por necessidades financeiras e ainda movimentam uma boa parte do comércio local.

As relações que os sujeitos estabeleceram com o rio e com a terra são interessantes, porque indiciam um pouco as maneiras de se endereçarem aos seus contextos. Verifica-se, por exemplo, que assim como o rio representava a subsistência pelo fato de levar a construção de trapiches, pontes, proporcionava a construção de alguns tipos de embarcação. Por outro lado, simbolizava o medo por conta das viagens longas e perigosas que os moradores precisavam fazer para receber seus proventos no município de Cametá.

Desse modo, estes espaços são territorialidades as quais convergem para a constituição identitária dos sujeitos, em especial, das professoras aposentadas

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que ao longo do exercício da docência já conciliavam vida profissional e vida social engajada nas ações em prol das vilas. Estes espaços são para elas bem mais que lugar de residência: eles integram um conjunto de elementos que assumem, nas negociações diárias, formas de se inscrever no mundo levando em consideração os mais diversos objetivos.

Outro aspecto a ser considerado ao tratarmos das vilas Moiraba e Carmo do Tocantins diz respeito aos Eventos Culturais. Há uma forte presença do grupo de aposentadas e dos docentes da Educação Básica na organização deles há bastante tempo. É por meio deles que estes sujeitos se encontram, conversam, trocam experiências e estabelecem parcerias em prol da vida escolar e cultural daqueles contextos.

Os eventos mais frequentes são as festividades de São João, a Semana da Pátria, o Samba do Cacete e a Tiração de Reis. No entanto, dois se destacam em função das relações que possuem com as trajetórias dos sujeitos selecionados para esta pesquisa, a saber: a Semana da Pátria e as festividades de São João. Isso se deve ao fato de muitas das aposentadas terem suas trajetórias permeadas pelas práticas que envolviam tais eventos. As escolas competiam e as famílias se envolviam bastante na vida escolar e cultural o que atualmente em muito se perdeu, apesar do trabalho voluntário do grupo de aposentadas.

Segundo Benjamin (1994), “É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção” e sinaliza que isso ocorre porque “as ações da experiência estão em baixa” (p.198), sejam experiências narradas pelo viajante distante que sempre vem com o novo, seja com o narrador o qual morou no mesmo espaço durante toda sua trajetória, mas detentor de “suas histórias e tradições”. Neste caso, apesar da escassez da experiência da arte de narrar, conforme lembra Benjamin, é possível destacar nas experiências das aposentadas o intercâmbio de suas experiências com os professores da escola básica e alguns setores da comunidade. Ou seja, as narrativas destas professoras traduzem suas experiências consigo mesmas e com a comunidade social, compondo um jogo de vozes que dão os traços desta fase de formação.

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Por conta disso, a seleção mais viável foi pela metodologia da História Oral que fundamentou a pesquisa realizada, principalmente, nos meses de março e abril de 2012. Utilizamos os trabalhos desenvolvidos por Thomson (1997, p.57) considerando ao selecionarmos “memórias escolhemos para recordar e relatar (e, portanto, relembrar) e como damos sentido a elas são coisas que mudam com o passar do tempo”. Por isso, as maneiras de selecionar, para quem e com quais objetivos, mostram as diferentes posições que ocupamos no mundo ou que queremos marcar diante do outro.

Para Portelli (2010, p. 216), “O caráter oral, dialógico, imaginativo destas narrativas não é uma impureza da qual devemos nos livrar para irmos à busca dos fatos puros; é, em si, um fato histórico, simplesmente de outro tipo”. Ela não busca legitimar as fontes ocultando os pesquisadores, mas revelando esse caráter dialógico. Ou como o autor considera: hibridismo de tamanha multiplicidade e complexidade.

Em direção similar, apoiamo-nos na Análise do Discurso, em especial, nos estudos desenvolvidos por Bakhtin (1986, p. 127) por estes favorecerem a compreensão do entrecruzamento de sentidos estabelecidos entre narrativas de aposentadas, docentes da Educação Básica e de representantes de outros segmentos das comunidades, uma vez que, segundo esse autor, a língua “constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através de interação verbal social dos locutores”, enquanto efeito da enunciação. Portanto, a linguagem é uma atividade constitutiva do sujeito na relação inevitável com o outro.

A partir dessas considerações, procuramos fazer uso dos pressupostos da História oral (PORTELLI, 997) desenvolvendo a pesquisa em duas etapas, a saber: a) entrevistas e b) Oficinas de Memória152

150. No caso do grupo estudado, 152 Oficina de Memória: organização dos sujeitos de forma individual ou coletiva. As narrativas são coletadas a partir das imagens que eles já selecionaram previamente considerando as temáticas tratadas. Nesta pesquisa, as temáticas foram as lembranças da vida escolar, as lembranças da docência e as lembranças dos diferentes espaços que compõem as vilas Moiraba e Carmo do Tocantins. Os objetivos foram ampliar as entrevistas realizadas na primeira pesquisa de campo e compor a cartografia cultural dos contextos. A ideia surgiu

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concentramos nosso trabalho nas Oficinas de Memória, posto que além de favorecerem a narração mais espontânea das aposentadas, auxiliaram na composição da cartografia das vilas associando as imagens utilizadas aos fatos e espaços que constituem as comunidades.

A partir dessas considerações, optamos pelos estudos do dialogismo bakhtiniano (1986) e da cultura enquanto modos de vida (WILLIAMS, 1969) justificados pelo fato de tais perspectivas serem produtivas para nossa reflexão e análise das narrativas no sentido de apreender um sistema simbólico e cultural produzido a partir da relação de existência histórica deste grupo diante do que a sociedade neoliberal construiu em volta do aposentado.

O método da História Oral nos mostrou a necessidade de uma maior aproximação por parte do pesquisador desses contextos, uma vez que há discursos e gestos manifestos nas entrevistas que se relacionam a elementos e fatos não capturados apenas no momento da enunciação em que aconteceu a oficina.

Acionar a memória é uma categoria construída na interação com o social, por isso, a importância de se utilizar as imagens a partir de temáticas as quais fizessem parte da trajetória daquele grupo. Isso porque os fatos se relacionam a elementos que fazem parte da dinâmica sócio-histórica em que se inserem determinadas comunidades e esta dinâmica é relevante para fundamentar a análise dos dados coletados.

Em função do objetivo deste trabalho, selecionamos as narrativas de algumas aposentadas e de representantes das comunidades que participaram das duas etapas de coleta das narrativas, apesar de optarmos por dar ênfase às Oficinas de Memória realizada em março e abril de 2012.

a partir a partir do trabalho apresentado por Sarraf-Pacheco (2011) intitulado “Imagens narradas, memórias e patrimônios desvelados” no qual o autor mostra as possibilidades de trazer à tona as memórias dos sujeitos a respeito dos seus territórios e eventos ocorridos.

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Figura 01: Materiais coletados e organização para as Oficinas de Memória realizada com os docentes da Educação Básica, diretores, líderes comunitários, representantes da igreja,

agente de saúde, ex-alunos em abril de 2012. Arquivo de pesquisa.

As fotografias ajudaram as aposentadas no processo de retomadas memoriais da docência, dos envolvimentos nas práticas socioculturais, das escolhas que fizeram ao longo da vida e da aposentadoria. Assim, um dos horizontes possíveis para esta pesquisa se detém na abordagem discursiva, desde as etapas de coleta das narrativas até o percurso das análises, tendo em vista que, ao narrar suas práticas, os sujeitos fazem recorte de suas experiências e estes recortes apontaram para a pesquisadora um processo de construção de identidade ou gesto de significação. Os lapsos de memória, os supostos esquecimentos, as repetições de fatos ocorridos, as interrupções linguísticas serão assumidas como um trabalho do sujeito na construção de sentidos, como gesto de interpretação de suas práticas e de seu lugar no mundo e na relação com quem ele interage.

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As narrativas: saberes, modos de vida e identidades

A perspectiva dialógica (BAKHTIN, 1986) a qual encaminhou esta pesquisa precisa levar em conta as interações na escola, na igreja, nos movimentos culturais e demais esferas de comunicação, pois os sentidos foram construídos na interação dos sujeitos por meio de enunciados impregnados de valores culturais e de entonação expressiva (BAKHTIN, 1999) e de apreciações valorativas, portanto, ideológicas.

Por conta disso, a identidade se constrói no imbricamento de muitas vozes e vivências. É nessa perspectiva de análise dos discursos e das práticas dos professores da Educação Básica que aparecem indícios de experiências compartilhadas das professoras aposentadas. Isso se justifica pelo fato de os estudos bakhtinianos conceberem todo discurso no diálogo com outros discursos, em circulação na sociedade.

É por esta razão que as vozes de outros sujeitos (docentes da Escola Básica, ex-alunos, liderança comunitária etc.) são importantes para a compreensão dos sentidos que interagem, para entender como se forma a identidade dessas professoras aposentadas. Esse coro de vozes contracena, “desenhando” as identidades das aposentadas.

Elegemos como categorias de análise o dialogismo bakhtiniano e as práticas socioculturais associadas ao conceito de cultura enquanto modos de vida desenvolvido nos estudos de Williams (1969) sob a luz dos Estudos Culturais de vertente britânica, por considerar, assim como De Grande (2010, p.07), que “os discursos de professores, seus saberes, sua prática e sua formação são compósitos, heterogêneos, polifônicos e particulares”.

Dessa maneira, acreditamos que esse grupo de docentes se constituiu enquanto aposentadas dando continuidade ao investimento na vida por meio das práticas socioculturais desenvolvidas nas vilas, as quais são baseadas nas experiências tidas por elas na docência. A escolha por essas categorias

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se justifica perfeitamente, porque as mulheres ao narrarem suas experiências posicionam-se diante dos seus interlocutores (pesquisadora, docentes da Educação Básica, os pais, a escola, a comunidade). Os discursos destes sujeitos compõem um mosaico de sentidos.

Para isso, é importante levar em conta não apenas suas experiências, mas também os sentidos que elas atribuem às práticas que passam a assumir (ou a assumir com maior ênfase) a partir da aposentadoria. Os discursos instaurados na cena de enunciação estão impregnados de aspectos ligados a questões ideológicas que revelam expectativas e posicionamentos não apenas das aposentadas, mas de uma coletividade, além das relações de poder instauradas nos contextos de interação social, geradas no interior das práticas socioculturais desenvolvidas.

Retomamos Bakhtin, ao tratar do ato responsável, considerando-se que respondemos ao mundo por meio de atitudes pelas quais somos responsáveis e que isso deve acontecer de forma ética, responsável o que atribui sentido às nossas ações, fazendo com que nos engajemos nelas e deixemos à mostra a alteridade constituída.

É neste sentido que se torna pertinente trazermos para discussão a memória enquanto trabalho do discurso, uma vez que ao fazermos as entrevistas, tanto com as aposentadas quanto com os demais moradores, verificamos ser a maioria um trabalho de interpretação do vivido. Ela funciona como componente do discurso. Ou seja, as lembranças sofrem injunções da posição social que o sujeito ocupa. Narrar o passado se traduz como um trabalho de interpretação daquilo que nos toca, como diz Larrosa (2002).

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O Professor aposentado e suas influências na formação profissional de novos docentes

Apresentamos os modos como acontece a socialização de saberes e a parceria estabelecida com os docentes da Educação Básica em prol das práticas socioculturais planejadas e desenvolvidas naqueles contextos indiciando, inclusive, influências na formação pessoal e profissional daqueles docentes.

As aposentadas partem, mais ainda, da experiência acumulada na docência e, mesmo não atuando com maior ênfase no contexto escolar, orientam os professores, engajam-se nas atividades, principalmente, a pedido da nova geração de docentes. Ou seja, apesar de não se sentirem mais na obrigação da docência, não são indiferentes às atividades, pelo contrário, reiteram a necessidade de trabalhar determinados aspectos por considerarem que a juventude precisa de professores bem formados.

Essa geração procura tomar para si a valorização de uma trajetória de experiência que ainda não possui, mesmo diante dos encontros das ações de formação (oficinas, planejamentos e orientações) coordenados pelo Suporte Pedagógico que socializa as orientações e os cursos em Cametá, sob a coordenação da SEMED. Dessa maneira, procuramos organizar as narrativas de modo a discutir os sentidos instaurados nesse compartilhar de saberes da experiência com os docentes da Educação Básica, como apresentamos a partir de algumas narrativas tais como as de Nelson e de Fátima.

Na verdade a gente observa algumas atividades que realmente contribui aqui na Vila do Carmo, mas o que a mais chama a atenção dentro desses professores aposentados são as questões di... di liderança que apresentam diante dessa comunidade, na verdade, quando a gente observa quando estamos realizando alguma atividade, essa atividade nada mais é do que.... vou citar um exemplo aqui: a professora Edna, ela é aposentada há mais de dez anos de aposentada. Ela contribui comigo, pelo menos vou conversar com

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ela...ela me dá algumas dicas. Ela, ela da feita. Ela foi a minha primeira professora. Ela sempre me dava uma dica de como se trabalhar, de como se deve agir, pra mim, na questão pessoal, ela sempre contribui bastante. Ela ajuda mesmo. (Nelson, docente da educação básica e ex-aluno de algumas aposentadas).

Com certeza... com certeza... porque é as vezes a gente tem uma base não é verdade.... por exemplo eu... tem professor... eu fui aluna... hoje eu sou professora... trabalho na mesma área... tive como preferência essa professora... no caso a professora Antonieta.... professora de geografia e eu tive assim ela assim como uma base pra mim poder começar meu trabalho... pra mim atuar que não tinha prática também somos novatos... é questão da escola que muitos quando se aposentam pra eles a cada (....) só fica ali vivendo e outros não ... é questão de orientação como eu procurei com a professora Antonieta..... sobre conteúdo é... o primeiro ano quando ela se aposentou eu já estudava faculdade.... já estava no último ano .... eu já comecei a atuar já tive que pegar uma orientação... uma base... isso me ajudou bastante no meu trabalho. (Fátima, docente da Educação Básica, ex-aluna de algumas aposentadas, desenvolve um trabalho com times de futebol com as crianças em vila do Carmo).

As aposentadas são procuradas pelos docentes da Educação Básica de maneira informal em suas casas, nas atividades promovidas pela igreja ou pelos grupos culturais, em especial quando tais docentes estão no início da carreira, como apontam os professores Nelson e Fátima. Essas orientações não acontecem de forma institucionalizada, pois não há qualquer acordo de forma que legitime a socialização de saberes.

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Por outro lado, não lhes é causado qualquer empecilho de atuação junto aos professores da Educação Básica que procuram os aposentados para solicitar orientações, materiais que ampliem seus saberes e fazeres pedagógicos, gerando confrontação com o trabalho desenvolvido por Georgina, suporte pedagógico que, ao se referir às contribuições do grupo de aposentadas, afirma quanto ao trabalho da nova geração de docentes:

eles são rápido enquanto fazia com aquela coisa que eles já tinham, com aquele conhecimento acabava que eles iam desenrolavam o grupo deles mais rápido do que os que já são formados, que a gente diz que não têm aquela competência, eles ainda vem procurando isso daí como se fosse pai e mãe,( ) pra você ver como é a família, aí eles, sempre eles colocam a confiança nos pais e nas mães.

Ou seja, esta competência está associada ao que Larrosa (2002) chama de saber da experiência. É nesse tipo de saber constituído no cotidiano escolar e para além dele (igreja, grupos folclóricos, centros comunitários) que os docentes da Educação Básica procuram referências, para avançar no processo de construção da profissão.

Observa-se que esse apoio e assessoramento são de conhecimento da representante da Secretaria Municipal de Educação, Georgina, a qual ao atuar como Suporte Pedagógico reitera as narrativas dos sujeitos a respeito das orientações e parceria realizada com os docentes atuais como se pode observar em:

Eles fazem, sempre eles fazem porque isso é um ponto positivo que existe dentro da educação e quase certeza, a presença deles a gente sabe que é indispensável é/é por causa que dentro da educação eles têm essa contribuição deles, aonde essa contribuição deles é uma contribuição é... ela não é paralela é/é uma contribuição efetiva daquilo da onde eles não deixam é... a desejar, eles tem pra onde

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está o ponto deles não se negam a fazer. (Georgina, Suporte Pedagógico das vilas. Trabalhou com algumas das aposentadas. Participa da organização geral das atividades religiosas da vila do Carmo).

Ser professor naqueles contextos requer saberes de diferentes ordens e é nesse aspecto que as aposentadas se destacam também. Isso vai ao encontro de Tardif (2002, p.36) que classifica como “saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais”, sendo que os últimos representariam o ‘amálgama’ dos demais submetidos à prática e à experiência no contexto de atuação.

Entendemos que os docentes da Educação Básica solicitam, apoiam-se e se engajam em saberes da experiência, conforme os estudos de Larrosa (2002), nos quais a educação é tomada como ato de se engajar nas práticas educativas e não meramente repassar um conhecimento sistemático e historicamente acumulado. Por isso, mesmo sabendo das limitações de formação das professoras aposentadas diante do nível superior que eles cursaram, as experiências e saberes docentes delas servem de referências, engajam-se nos projetos com os novos professores de acordo com suas necessidades, permitindo-se valorizar um saber o qual associa conhecimento sistematizado à dinâmica da vida e que propicia a emancipação de outros sujeitos.

As imagens que o outro faz das professoras aposentadas produzem relações com diferentes esferas da sociedade em que os saberes das aposentadas circulam: a escola, a igreja, os grupos folclóricos etc., estabelecendo contato com diferentes memórias sociais e com diferentes discursos que circulam na sociedade sobre ensino, aprendizagem, formação docente. Esses discursos, por sua vez, traduzem as diferentes vozes das aposentadas.

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Estruturas de sentimento nas práticas das aposentadas

Observamos que, de modo geral, há nesses discursos também a presença de Estruturas de sentimento (Williams, 1969), possivelmente ligando os professores da Educação Básica às aposentadas, pois todos de alguma maneira ressaltam que elas foram suas referências no início da docência e que ainda se colocam à disposição para orientar e apoiar o trabalho deles.

Por essas atitudes são referendadas pelas comunidades, mesmo pertencendo a um grupo que é bastante discriminado na sociedade atual movida, predominantemente, pela lógica estatal de mercado. Ou seja, há uma regularidade discursiva sobre o aposentado como sujeito que não ensina ou aprende mais. Entretanto, nas vilas Moiraba e Carmo do Tocantinas, as professoras aposentadas continuam ressignificando a vida, a docência e a própria aposentadoria, orientando os docentes da Educação Básica, parceiros de atividades nos demais espaços públicos de circulação de saberes.

As intervenções na vida escolar dos educandos e as rememorações da docência acontecem na interação das aulas da catequese, nos encontros da Pastoral da Criança e nos ensaios das manifestações culturais: nas quadrilhas em especial, nos ensaios para os cânticos das missas. As aposentadas trazem à tona as memórias da docência, ressignificando-as diante das necessidades dos contextos pelos quais circulam.

Nessa perspectiva, deixa-se em evidência também a necessidade de que as lutas devem ser mais forjadas nas estratégias. Por isso, o caráter político das relações de poder, simbólicas e lingüísticas, exigindo engajamento, ato responsável e ético diante do conhecimento, dos contextos e sujeitos, como observamos abaixo:

Com certeza, eles são/eu acho que eles são a base é... nós professores a gente, por exemplo, eu... eu me baseio neles... de tudo o que eles fazem pela nossa comunidade da/da mesma

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forma eu vou querer quando eu me aposentar se Deus quiser eu não vou ficar... parada eu/eu quero agir assim dessa forma como eles, buscar me realizar não/não profissionalmente que eu já me sinto realizada, mas procurar de outras formas também tá engajada como eles em comunidades. Desde que eu trabalho como professora, esses professores todo tempo estão com a gente né, tanto/em qualquer tipo de atividade, não só agora que estão aposentados, mas antigamente como eu tô lhe falando o que a gente precisa deles, eles tão prontamente pra ajudar a gente não é só agora.” (Leila, diretora da escola Gracinda Peres- vila Moiraba, ex-aluna de muitas das aposentadas. Trabalha com o movimento jovem da igreja).

Na narrativa da professora Leila, diretora da escola da vila Moiraba, as aposentadas servem também como exemplo para futuros projetos de vida. Observamos que a professora já se sente realizada profissionalmente, mas percebe que assim como as aposentadas, precisará manter-se ativa e deseja isso. Assim, as práticas desenvolvidas por aquelas mulheres lhe acenam como uma alternativa interessante de ressignificar a vida diante da aposentadoria.

Remeto-me também a Bakhtin (2010) ao tratar do ato responsável considerando que respondemos ao mundo por meio de atitudes pelas quais somos responsáveis, isso devendo acontecer de forma ética, o que atribui sentido às nossas ações e faz com que nos engajemos nelas. Isso pode demonstrar um pouco a alteridade constituída nas interações as quais as aposentadas realizam, principalmente com os professores da Educação Básica, seus alunos durante um longo período de suas trajetórias.

Por isso, a relevância de se trazer para a discussão a cultura enquanto modos de vida tratados por Williams (1969), para compreendermos que a legitimidade desses saberes das professoras aposentadas por parte dos moradores encontra-se nas ações realizadas, nos diferentes contextos, nas interações, nos laços de amizade estabelecidos. Eles não são meramente

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repassados, mas conseguem adesão por parte de muitos dos docentes da Educação Básica também pelos laços de amizade e de confiança negociados nas interações (igreja, escola, centro comunitário, grupos folclóricos).

Essas práticas socioculturais realizadas em múltiplos espaços da esfera pública fortalecem o trabalho dos docentes engajados com elas. Nas narrativas da diretora Leila, observamos que as aposentadas apóiam e orientam as práticas de modo a fortalecer o imbricamento escola/igreja. Esses encaminhamentos permeiam suas vidas (profissional e social). Mesmo existindo bastante sintonia em determinados aspectos da relação docente da Educação Básica e docentes aposentadas, há tensões interessantes. Entretanto, há de se considerar que as estruturas de sentimento envolvem bastante as relações estabelecidas entre os sujeitos selecionados para esta pesquisa e essas tensões, assim como os discursos contraditórios são amenizados em função das estruturas de sentimento existentes.

Identidades nas diferentes esferas públicas

As identidades presentes nas narrativas que serão analisadas neste item mostrarão identidades não apenas do grupo enquanto aposentadas, mas ainda de docentes, coordenadoras da Pastoral (Criança e Juventude), dos Apostolados de orações, cidadãs, mulheres, formadoras, articuladoras políticas, dentre outras.

A maioria do grupo de aposentadas possui uma relação bastante sólida com os diferentes espaços públicos, principalmente, com a igreja, com os movimentos culturais e com a escola. Portanto, a circulação por aqueles espaços contribuiu muito com o processo de constituição das identidades daquelas mulheres. Segundo Hall (2003), a identidade não é algo dado, pronto. Assim, é nas interações com o outro e com as situações cotidianas que o sujeito vai assumindo tais identidades.

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É importante ressaltar que, dependendo da trajetória de cada aposentada e das experiências vividas e partilhadas com os moradores da vila, a população as considera mais ou menos engajadas em algo que é essencial no perfil do docente que atua naqueles contextos: a articulação entre comunidade escolar e vida social na comunidade (desenvolvimento das práticas socioculturais). Isso traz à tona os aspectos (adesão, ação e a autoconsciência) os quais fazem parte do processo identitário docente tratados por Nóvoa (1992), como poderemos observar em algumas das narrativas abaixo:

[...] eu gostei muito porque eu deixei muita saudade na escola em que era o meu lugar que até hoje e sou lembrada, em todo momento mu/muitos pais recorrem a mim, então eu escolhia isso.(Paula, aposentada, c oordenadora do Apostolado de Orações do Sagrado Coração de Jesus na igreja de São Benedito, auxilia nos ensaios da quadrilha Estrela Junina).

A compreensão que Dona Paula faz de si, a partir do reconhecimento dos moradores, encontra fundamento na trajetória de engajamento da aposentada nas ações da vila Moiraba colocadas mais em destaque, quando ela passou a ajudar seu pai, um dos gestores daquele distrito, assumindo a direção da única escola da vila. Todo o gerenciamento no âmbito educacional era de sua responsabilidade. Isso projetou a então docente dando-lhe uma relevância interessante nas assembleias e nas decisões concernentes ao desenvolvimento da vila.

Verificamos nesse encaminhamento um processo não apenas de adesão ao trabalho, proposto pela escola na qual ela também atuava como docente, mas de ação a partir da relação que estabelecia entre vida escolar e vida comunitária. E nesse ponto, a aposentada também tem autoconsciência do seu papel naqueles territórios da cultura. Ou seja, a construção desse processo identitário se deu de forma gradual, nas experiências vividas com os sujeitos (pais, alunos, colegas de trabalho, gestores) em diferentes situações e tempos

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procurando fazer promoção e divulgação do trabalho das quadrilhas das vilas, para que melhorassem as ações de formação nas vilas e conseguissem recursos para continuidade da construção do centro comunitário e da igreja de São Benedito.

Há narrativas que evidenciam ações que o grupo de aposentadas procura desenvolver, mas que precisariam de apoio do estado ou de instituições especializadas em função da complexidade dos problemas, como podemos observar na narrativa de Carmem, agricultora e ex-aluna de muitas integrantes do grupo:

ajuda...ajuda...eles contribuem...principalmente assim pelos/pelas brincadeiras que a gente faz do/da parte dos professores quer dizer eles chamam muitos rapazes...muitos jovens e, às vezes já tem até vício (devido a essa coisa e tudo o mais) já levam pra lá. Quer dizer já tentam tirar...colaboram muito (esse jovem, eles fazem aquelas brincadeiras...da comunidades) quer dizer já tiram esse jovem. (Carmen, agricultora).

A representação que dona Carmen tem das aposentadas é de uma referência tal que a faz acreditar na possibilidade de que um problema como esse pode ser resolvido. As atividades desenvolvidas pelas aposentadas são compreendidas como alternativas possíveis pensadas nas devidas proporções, considerando a credibilidade dada ao grupo pela trajetória de vida profissional e em sociedade de um modo geral.

A Estrutura de sentimento, a partir da perspectiva de Williams (1969) atravessa esta relação e delineia a identidade assumida pelo grupo, pois a experiência vivida atribuiu a ele algo que está na dimensão mais institucional, uma vez que precisa de um planejamento, mobilizando intervenções mais rigorosas. Entretanto, entender que as “brincadeiras”153

151 darão conta desse 153 Brincadeiras - compreendidas aqui ações lúdicas de caráter educativo cujo objetivo

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problema também indicia que há algo na relação que precisa ser ponderado e é daí que talvez Carmen atribua esta competência às aposentadas que, ao longo dos anos, foram assumindo funções sociais e culturais nas vilas de modo a representar a referência para aconselhar, partilhar e resolver problemas.

Há momentos em que os discursos dos sujeitos associam as docentes aposentadas à tradição escolar que procurava dar conta da formação religiosa, intelectual e de conduta social. O grupo se mantém como uma possibilidade de não perder isso por completo, considerando a realidade de violência em sala de aula, nos mais diferentes níveis de ensino, as condições financeiras dos educandos e contextos, como verificamos na narrativa de George, docente e líder comunitário.

[...] eu vejo assim que a atividade das pessoas que restam de aposentar na nossa comunidade eles prestam um serviço muito importante na educ/na educação tanto de nós professores líder comunitários mas também de...de/do resgate do direito...respeitar as pessoas porque essas pessoas que estão aposentadas hoje eles exerciam uma educação meio mais tradicional e hoje com o avanço da educação hoje e/esse método da educação tradicional ele era um pouco respeitado pelas maneiras como eram educados as/os alunos e essas e esses/esse respeito hoje não existe dentro da escola. (George, Docente da Educação Básica, ex-aluno de algumas aposentadas, líder comunitário na vila do Carmo do Tocantins).

Como todo discurso se constitui em uma relação heterogênea com outros discursos (BAKHTIN, 1988), o discurso de valorização das práticas culturais das aposentadas não se produz na sua pureza homogênea. Ele é atravessado de outros discursos, de outras vozes, seja de completa adesão ao trabalho das aposentadas seja de ressalva ao que imaginamos que ele (o

é inserir os jovens em processos de interação social que ofereçam-lhes outras formas e expectativas de vida.

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trabalho) contém de um discurso da tradição escolar.

Nesse caso, a identidade direcionada às aposentadas é de guardiãs de valores pouco cultivados ou que não fazem mais parte do perfil da nova geração docente. Isso se pauta no fato de que as identidades são discursivamente construídas, portanto, as aposentadas ao aderirem e agirem, na perspectiva do que Nóvoa (1992) apresenta como os aspectos que constroem a identidade docente, passam a ter autoconsciência das suas funções fazendo uso da linguagem de modo a persuadir seus interlocutores e assumindo as identidades advindas disso.

Eu me dediquei a esse trabalho... a esse trabalho com esse grupo... dei tudo de mim e até hoje eu faço isso. Nós tivemos assim várias experiências assim..... ajudando as pessoas eu..... eu me sinto muito bem quando posso ajudar alguém.... eu me sinto muito bem. (Vânia, coordenadora do Grupo folclórico Evolução Fênix da vila do Carmo do Tocantins. O grupo se transformou em Associação).

Dona Vânia é a aposentada que mais se distancia das práticas (catequese, pastoral da Criança e da Juventude, grupos de orações) as quais envolvem a maioria das aposentadas, porque atuava num grupo folclórico de vila do Carmo do Tocantins que apresentava diferentes ritmos. A partir de 2011, o grupo se transformou em associação como já apresentamos na seção 01. As demais integrantes do grupo circulam e se engajam em menor proporção (apoio nos ensaios, divulgação, na organização das viagens ao município de Cametá e localidades mais próximas em função dos concursos) em espaços que tratam mais do aspecto cultural.

As identidades dessas aposentadas se mostram bastante enraizadas nos aspectos religiosos e de liderança junto aos alunos e demais membros das comunidades, mesmo com limitações em certos momentos profissionais ou da vida pessoal. Ao considerarmos a perspectiva trabalhada por Hall (1997), observamos que as identidades assumidas pelas aposentadas variam entre

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ativas, engajadas, guardiãs da tradição, da cultura e, em especial, voluntárias.

Isso evidencia que os engajamentos das aposentadas estão associados às motivações de diversas ordens e que tais engajamentos são redimensionados à medida que novos projetos de vida são convocados, no processo de constituição dos sujeitos. Os modos de vida dessas mulheres dialogam com as necessidades das vilas, mas, com suas vivências, assumir determinadas funções nas vilas pode não ser mais o que move essas aposentadas e a continuidade do investimento pode não ser mais o que rememore a docência. Trata-se de um engajamento instável, negociado como a própria constituição identitária.

A ideia de não ficarem paradas e a realização das práticas socioculturais mostravam o posicionamento em não aceitar tal posição destinada ao aposentado diante de um tempo ocioso. O tempo precisaria ser bem aproveitado e as aposentadas optam pelas práticas, experimentam uma e outra até se encontrarem. Aquelas professoras aposentadas indiciam em suas narrativas atitudes junto às vilas ao longo de suas trajetórias profissional e pessoal que, talvez, de maneira inconsciente, desenvolvam estratégias a partir das condições reais que possuem para envelhecer de forma bem-sucedida.

Possibilidades e necessidades de novos diálogos

A pesquisa revelou que as aposentadas têm status na comunidade em função das práticas as quais desenvolvem, mesmo não estando circunscritas ao contexto escolar, mas que de alguma maneira estão refletidas naquele espaço também, por meio da parceria com os docentes da Educação Básica. As professoras aposentadas desejam continuar o processo de formação para integrar-se ao mundo da tecnologia.

Obviamente que são muitas as exclusões que as aposentadas enfrentam, dentre elas a à cultura da informação tecnológica, com algumas exceções. Paradoxalmente, os sujeitos que cumpriram papel tão importante na formação de tantos alunos, depois de aposentadas, experimentam a precariedade de sua

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formação, denunciando as políticas de formação docente neste país.

Um aspecto bastante reiterado é a preocupação do grupo de aposentadas com a questão cultural sempre aliando escola e igreja, principalmente, sem se esquecer dos eventos culturais. Elas instauram um modo de se fazer esse trabalho que possui uma demanda muito grande e é nestes espaços que elas socializam saberes e seguem com novos investimentos na vida e no outro, conciliando sonhos individuais com necessidades mais coletivas. Nesses discursos, a formação docente ainda é uma quimera, um sonho inatingível que resvala para os projetos individuais dos sujeitos que, mesmo depois de aposentadas, não perdem a dimensão do que significa ser professor desprovido de uma formação enquanto direito de um grupo social.

Desse modo, elas procuram (ou reiteram) papeis em espaços públicos nos quais há necessidade da experiência acumulada por elas e que possam, talvez de forma inconsciente, mostrar uma quebra de expectativa quanto à condição do aposentado tido como alguém que só causa ônus aos cofres públicos, sem possibilidades de contribuir com as gerações atuais (BOSI, 1994). Além disso, associar aposentadoria à velhice sem levar em conta a experiência desse público considerando-o como inválido em alguns aspectos pautados nas limitações físicas comuns à velhice é não compreender as dinâmicas de territórios de cultura como as vilas Moiraba e Carmo do Tocantins e dos sujeitos que assumem identidades diversas e criando outras formas de trabalho, apesar dos estereótipos que são destinados a públicos como os aposentados.

Por conta disso, torna-se relevante ampliarmos as discussões a respeito da formação docente observando as práticas socioculturais existentes nos contextos pesquisados, assim como as trajetórias dos sujeitos para além do espaço escolar. Valorizar as experiências de docentes que mesmo aposentados conseguem intervir de modo significativo no processo de formação inicial ou continuada de professores, posto que na Amazônia paraense há ainda muitas

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maneiras de se pensar e fazer educação, e as aposentadas da vilas Moiraba e Carmo do Tocantins são alguns dos exemplos de como as identidades podem ser forjadas, negociadas e desveladas em prol de novos projetos de vida (individual e coletivo) que implodem com estereótipos e ações que, aparentemente, são tão homogêneos. Estes precisam dar lugar a novos e possíveis diálogos entre as trajetórias (profissional e social) de professores aposentados e a nova geração de docentes com vistas a um processo educativo mais ético, humano, crítico e cultural.

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OS DOCUMENTOS OFICIAIS E A PRODUÇÃO SOCIAL DOS SENTIDOS:

A Legitimação de Outras Construções Identitárias*152

Welton Diego Carmim Lavareda (UEPA/UNAMA)

1. OS ESTUDOS CULTURAIS E A ANÁLISE DO DISCURSO

Entre as fronteiras do saber e os limites do método

A atitude de contextualizar e globalizar é uma qualidade fundamental do espírito humano que o ensino parcelado atrofia e que, ao contrário disso, deve ser sempre desenvolvida. O conhecimento torna-se pertinente quando é capaz de situar toda a informação em seu contexto e, se possível, no conjunto global no qual se insere [...] (MORIN, 2007, p.20)

Para começarmos a desvendar o cenário que será trabalhado neste ensaio, tomamos como ponto de partida as reflexões apontadas por Edgar Morin, em 2007, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ocasião marcada pelo debate em torno da complexidade que a instituição Universidade está inserida, tendo em vista seus três pilares básicos: ensino, pesquisa e extensão.

Afinal, mobilizar um conhecimento dentro de uma cultura tão diversificada não é tarefa fácil. Ainda mais quando modelos conservadores de pesquisa ainda são realidades em muitos contextos acadêmicos. Desta maneira, fazer emergir uma proposta interdisciplinar no seio de uma ‘rica’ tradição de pensamento requer, antes de tudo, posicionar categoricamente tal escolha, para que os desdobramentos das interpretações possam ser (re)

* Este capítulo apresenta panoramicamente alguns resultados da minha Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação da Universidade da Amazônia (UNAMA), em 2012, sob a orientação da Professora Doutora Maria do Perpétuo Socorro Cardoso da Silva. Trabalho, que na ocasião, foi publicado on-line na página da mesma instituição com o título A representação conceitual dos discursos oficiais – o dito e não dito dos processos culturais surdos.

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conhecidos como mais uma possibilidade de apreciação e análise de um dado objeto simbólico.

Interligar saberes, também, está inserido como uma máxima no conjunto global de uma Universidade, na busca de multiplicar os olhares do saber científico. Logo, reoperacionalizar o sentido de um problema transforma significativamente a natureza das questões propostas, as formas como são interpretadas e a maneira como podem ser adequadamente respondidas. Daí a necessidade e a vontade de fazer com que florescessem nesta pesquisa diálogos, sempre que possíveis, entre dois suportes teórico-metodológicos: os Estudos Culturais britânicos (EC) e a Análise do Discurso (AD).

Fato que possibilita a construção de um novo “fazer epistemológico” que, segundo Lopes e Bastos (2010, p.11), “[...] prestigia o fluxo e os encontros entre vários pólos. Oferecendo, inclusive, uma lente alternativa para compreender a vida social em trânsito”, em movimento, que os atores sociais hoje constroem suas práticas culturais, a fim de impulsioná-las rumo a um estágio mais democrático, lançando outras indagações para além da identidade e, ao mesmo tempo, dando visibilidade para relações aparentemente à margem da sociedade.

Desta maneira, conectando tal reflexão com a problemática central desta pesquisa, afirmarmos o valor estratégico dos discursos sobre a surdez diante do preconceito, com suas múltiplas raízes nos diversos níveis de formação social (político, econômico, cultural) é, também, focalizar o jogo da diferença. Fazendo com que a natureza hibridizada de toda identidade e sua influência na criação de terminologias/conceitos seja levada em consideração. Ou seja, na medida em que analisarmos como os discursos sobre surdos e surdez, manifestados por conceitos relativamente estabilizados, constituíram a atual representação conceitual sobre a Língua Brasileira de Sinais, a partir do surgimento dos construtos Clinicopatológico e Socioantropológico, tendo como procedimento técnico de pesquisa uma abordagem documental,

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observaremos o caráter constitutivo do surdo e de sua história e, ao mesmo tempo, decifraremos as visões do conjunto social que o cerca154

153.

Ponto chave para incluir este debate numa dinâmica de referências e diferenças em relação a objetos simbólicos historicamente construídos que, reoperacionalizados, ajudaram a construir os conceitos atuais referentes à surdez e ao indivíduo surdo, os quais oportunizam fronteiras enunciativas decorrentes de grandes deslocamentos sociais que, consolidados no campo da escrita, põem em questão várias representações, inclusive, a relação Eu versus o Outro.

Os critérios de classificação dos enunciados a serem analisados são característica fundamental para apresentarmos no item posterior, cuja fundamentação insere as práticas discursivas surdas dentro de uma postura epistemológica e não audiológica. Ratificamos, assim, o “lugar” de onde estamos falando, no qual cenários e mediações culturais mergulham a proposta desta pesquisa nos interesses manifestados pelos Estudos Culturais britânicos e pela Análise do Discurso.

1.1 CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO – CORPUS DA PESQUISA

Teias complexas de significações

A seleção dos enunciados a serem analisados neste estudo não foi fácil. A dificuldade inicial partiu de como classificar as unidades significativas que iríamos pesquisar. Várias possibilidades surgiram, dentre elas destacamos os conceitos cristalizados e os conceitos relativamente estabilizados.

154 Cabe lembrar, quando discutimos sobre cenários inclusivos, o destaque dado a dois modelos de debates dominantes: o discurso Clinicopatológico e o discurso Socioantropológico(LAVAREDA; SILVA, 2009, p. 62). O primeiro fundamenta-se no modelo médico da deficiência, ou seja, a surdez é uma doença que precisa ser tratada. Segundo este construto, o surdo é doente, e a ação pedagógica, que deve ser seguida na escola, tem que atender a uma pedagogia corretiva. Enquanto que o segundo construto trata a surdez como diferença, e para tanto, se precisa desenvolver políticas públicas socializadoras, entre ela e a escola. E nesta, um currículo bilíngue – Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) (como L1) e a Língua Portuguesa (como L2). Nesta linha de trabalho há interação entre culturas surdas e ouvintes. Postura, inclusive, norteadora das discussões travadas posteriormente nesta pesquisa.

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No entanto, as duas acepções apesar de estarem inseridas dentro de um mesmo campo semântico, possuem cargas de significados (ou agrupamentos discursivos) amplamente diferenciadas. Daí a opção em categorizar os agrupamentos desta análise com a nomenclatura de conceitos relativamente estabilizados. Pois se somos adeptos da dinamicidade dos processos semântico-discursivos, “cristalizá-los” seria ir de encontro a toda uma postura ideológica e, ao mesmo tempo, segundo as concepções do Círculo de Bakhtin (2004, p. 31), “todo signo é ideológico e se circunscreve em uma outra perspectiva semiótica. Assim, o sentido se realiza na interação com o outro. E o significado não está nas fronteiras frágeis e fixas das palavras”.

Portanto, “estabilizá-los relativamente” oportunizaria torná-los “moventes” outra vez. Fazendo com que a investigação, partindo do vocabulário e seus limites no interdiscurso, materializasse pistas discursivas de sentido investidas de significância para e por sujeitos, compreendendo este sujeito se constituindo na e pela linguagem.

É preciso destacar, para um melhor entendimento, que a concepção de interdiscurso adotada neste estudo, “[...] fundamenta-se no conjunto de formulações feitas e/ou já esquecidas que determinam o que dizemos” (ORLANDI, 2009, p.33). Assim, para minhas palavras terem sentido é preciso elas já produzirem sentido, pois é desta forma que mobilizamos (“movemos”) as relações de sentido.

Essa concepção, por sua vez, implica também refletir os estágios sociais, controvérsias e os conflitos das fronteiras enunciativas dos agrupamentos discursivos selecionados. “Fronteira” (com + fronte; em frente) partindo da premissa de encontro e não separação. Em que não é o ponto que algo termina, mas é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente.

Logo, para a produção do corpus desta pesquisa, os conceitos relativamente estabilizados, as leis, os decretos e os discursos que incorporam a

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criação destes (todos, objetos da pesquisa) foram sistematicamente escolhidos a partir da década de 90, tendo como marco histórico inicial a Declaração Mundial de Educação para todos (1990).

A escolha desta raiz-fronteira,do ponto de vista sobre os procedimentos técnicos da pesquisa, sustenta-se em uma abordagem de cunho documental. A qual se caracteriza, de acordo com Lankshear e Kobel (2008, p.40), “pela busca de informações em documentos que pouco ou nunca receberam tratamento analítico, tendo como instrumento para a produção dos dados fontes primárias de informações [...]” (leis, decretos, cartas oficiais, portarias). Neste caso, temos como objeto de estudo conceitos relativamente estabilizados (objetos simbólicos) relacionados à surdez, surdo e Língua Brasileira de Sinais de maior frequência em pelo menos três obras de referência, a partir dos construtos Clinicopatológico e Socioantropológico155

154.

Vale ressaltar, que a década de 90 foi escolhida propositalmente como recorte deste estudo, porque foi neste período que se intensificaram os debates sobre a surdez no campo da educação no Brasil e também o aprimoramento do discurso interacional relacionado à inclusão. Reflexo deste fenômeno é a grande flexibilização da Federação em começar, de fato, um movimento à presença da alteridade. Mesmo que a ideologia dominante ainda estivesse “presa” a modelos de segregação e exclusão156

155.

Neste árduo processo de seleção de documentos e eventos relevantes, elencamos sete fatos marcantes, no Brasil e fora dele, os quais contribuíram para a escolha dos conceitos relativamente estabilizados, conforme mostra a Tabela 01:

155 A passagem “três obras de referência” está ligada aos critérios de seleção da pesquisa, ou seja, selecionávamos livros tidos como ‘clássicos’ no campo dos Estudos Surdos e verificávamos quais os preceitos legais e representações conceituais que neles mais apareciam.156 A respeito disso, ler In: BAPTISTA, Claudio; JESUS, Denise (Orgs). Avanços em políticas de inclusão: o contexto da educação especial no Brasil e em outros países. Porto Alegre: Editora Mediação, 2009. p. 139-152.

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Tabela 01– FATOS MARCANTES RELATIVOS À SURDEZ

Nº OS PRECEITOS LEGAIS E SEUS SILÊNCIOS ARTICULA-DOS

ANO

01 A Declaração Mundial de Educação para todos (e seu reflexo no Brasil).

1990

02 A Declaração de Salamanca/Espanha. 1994

03

Brasil. Lei 9.394, de 20 de dezembro. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

1996

04

Brasil. Parâmetros Curriculares Nacionais Adaptações Curricula-res. MEC/SEF/SEESP.

1998

05

Toda política linguística e educacional começa a adotar um novo discurso “predominante” (educação inclusiva, construto socioan-tropológico, o surdo é um ator social independente). 1999

06

Lei 10.436, de 24 de abril (oficialização da LIBRAS como língua materna dos surdos).

Obs1: Aumento do índice de produção bibliográfica no campo da educação inclusiva e no campo dos Estudos Surdos.

2002

07 Convenção sobre os direitos das pessoas com Deficiência.

Obs2: Tratado Internacional sobre Educação Inclusiva/2006 (ar-tigo 24).

2007

Fonte: pesquisa documental – dez./2010 a mar./2011.

Após catalogarmos os elementos destacados na Tabela 01 e, ao mesmo tempo, observarmos o trajeto semântico-discursivo de alguns enunciados e suas fronteiras discursivas, conseguimos mapear as terminologias mais utilizadas no período em questão. Conforme mostra a Tabela 02:

Tabela 02– CRONOLOGIA DAS REPRESENTAÇÕES CONCEITUAIS

ANO/Década CONCEITOS RELATIVAMENTE ESTABILIZADOS1990 a 1999 Deficiente auditivo; Indivíduo com necessidades educacionais es-

peciais.2000 a 2006 Indivíduos Surdos; sujeitos surdos; surdos.2007 Deficiente (reoperacionalizado; ressignificado).

Fonte: pesquisa documental – dez./2010 a mar./2011.

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Tal catalogação só foi possível devido ao fato de que os documentos, segundo Lankshear e Knobel (2008, p.42), “[...] informam decisões que proporcionarão uma série de perspectivas sobre um evento, fenômeno ou questão.” Desta maneira, permite ao pesquisador (re)construir bases históricas as quais oportunizam examinar informações paralelas com o objetivo de contextualizar ainda mais um novo cenário para estudo157

156. Afinal, segundo Foucault (2005, p. 103), um “[...] enunciado se distingue de uma série qualquer de elementos linguísticos, porque mantém com um sujeito uma relação determinada que se deve isolar,” sobretudo, das relações com as quais poderia ser confundida, e cuja natureza é preciso especificar. Assim:

[...] não há signos sem alguém para proferi-los ou, de qualquer forma, sem alguma coisa como elemento emissor. Para que uma série de signos exista, é preciso – segundo um sistema de causalidades – um “autor” ou uma instância produtora. Em compensação, a função enunciativa – mostrando assim que não é pura e simples construção de prévios – não pode se exercer sobre uma frase ou proposição em estado livre. Não basta dizer uma frase [ou um conceito relativamenteestabilizado – grifo nosso] para que haja significação, para que se trate de uma cadeia de sentido é preciso relacioná-la [o] com todo um campo adjacente (FOUCAULT, 2005, p. 110).

E é partindo desta conjuntura de coexistência enunciativa, efeitos de série e de sucessão, que discutiremos o jogo de identidades e materialidades discursivas presentes nos discursos sobre surdos e surdez que, manifestados por conceitos relativamente estabilizados, ajudaram a construir a atual representação conceitual referente à Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS).

157 É importante frisar, para situar ainda mais o leitor, que representações conceituais, do tipo: pessoas com deficiência, excepcional, surdo-mudo, portador de deficiência e ‘especial’, termos muito recorrentes nas décadas de 70 e 80, não aparecem catalogados na Tabela 02 devido ao recorte metodológico da pesquisa direcionado na Tabela 01.

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2. OS OBJETOS SIMBÓLICOS E SUAS INTERFACES

A inclusão do silêncio nos enunciados

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o ‘novo’ que não seja parte do continuum de passado e presente. “[...] Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural” (BHABHA, 2010, p. 27). Assim, retomar o passado como causa social ou precedente estético nada mais é do que reconfigurar o “entre-lugar” de muitas negociações culturais.Neste sentido, moveremos o enquadramento da identidade do campo de visão para o espaço da escrita, ou melhor, das instâncias discursivas, fazendo com que a materialidade dos discursos sobre surdos e surdez, manifestados por conceitos relativamente estabilizados, ponham em questão a representação do eu e do outro.

Assim começa nossa incursão na temática central deste trabalho. Estabelecendo conexões possíveis entre trajetos conceituais que resultam em uma consciente posição ideológica diante da surdez. É notório destacar que a base dos debates aqui travados será, constantemente, corroborada pela densidade escrita manifestada nos fatos marcantes relativos à surdez já mostrados na Tabela 01.

E é a partir deste diálogo, que a representação da diferença não deve ser lida apressadamente como reflexo de traços culturais ou éticos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição:

[...] a articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. O “direito” de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das condições de contingência e

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contraditoriedade que presidem sobre a vida dos que estão “na minoria” (BHABHA, 2010, p.21).

E, neste âmbito, a determinação de um objeto simbólico, expressão, ou manifestação cultural como bem patrimonial dependerá do fato deste poder ser reconhecido e, consequentemente, manter uma relação de significação histórica com uma determinada nação, povo, comunidade ou segmento populacional. Por isso, estes elementos ou valores, na condição de um processo social, integram processos identitários e fazem parte da constituição imaginária do tempo histórico de uma nação ou de qualquer estrutura social.

Com a Declaração Mundial de Educação para todos (e seu reflexo no Brasil)e todas as ações partidárias que envolvem as condições de produção destas fronteiras enunciativas em nosso país há vestígios na materialidade discursiva do objeto em questão, confirmados se analisarmos a discursividade por trás dos conceitos relativamente estabilizados manifestados naquela década, que não carregam indícios tão fortemente preconceituosos com relação aos utilizados nos anos anteriores. Afinal, o ideário de igualdade, liberdade e fraternidade da Revolução Francesa, juntamente com o “espírito fraterno” do discurso da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), referências inspiradoras de nosso primeiro fato marcante relativo à surdez, viabilizam uma perspectiva mais humanista sobre os sujeitos que apresentam necessidades educacionais especiais e deficiência auditiva – conceitos relativamente estabilizados decorrentes deste período (Tabela 02)158

157.

Entretanto, o discurso médico da deficiência fundamentado em um panorama clínico influencia de forma categórica muitos dos discursos os quais irão subsidiar uma série de preceitos legais posteriores que nortearão o percurso histórico da educação brasileira no tangente à inclusão. Ou seja,

158 Segundo Oliveira (2010 apud PONTES e CRUZ, 2010, p. 95)“a visão de deficiência, nos séculos XVI e XVII, é fortemente marcada pela mitologia, espiritismo e bruxaria, ocorrendo, em consequência, perseguições e encarceramentos de pessoas deficientes e de pessoas que fossem associadas a manifestações de bruxarias ou de entes sobrenaturais”. Cabe destacar, como conceitos relativamente estabilizados vinculados a este período designações do tipo: idiota, demente, anormais, anormais educáveis, atraso mental, crianças diminuídas e etc.

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mesmo fomentando o debate sobre os direitos individuais e abrindo espaço para novas discussões, sem “distinção de sujeitos”, as vontades de verdade preestabelecidas da época ofuscaram e, muito, as enérgicas medidas em prol de uma educação para todos.

Neste sentido, destacamos o panorama clínico como instância produtora, como “silêncio fundador - princípio de toda significação” (ORLANDI, 2007, p. 68) dos conceitos relativamente estabilizados destacados naquele período. Afinal, um grande paradoxo, legado de então, ainda sobrevive e cria cadeias de sentidos se observarmos a relação entre a educação especial e a educação básica, a saber:

[...] a formação docente em uma perspectiva clínica como sustentação para o mercado de trabalho escolar com sujeitos com necessidades especiais, que deve ter como objetivo desenvolver processos de escolaridade, ainda é base em muitas estratégias curriculares. [...] Para desenvolver reflexões sobre este paradoxo, consideram-se as práticas de formação docente, inicial e continuada, advindas de uma política estatal, que ao propor a implementação de processos inclusivos na educação básica, apoiam-se na perspectiva médico-psicológica de base clínica. (MICHELS, 2009 apud BAPTISTA; JESUS, 2009, p. 140).

E se voltarmos a direcionar o olhar para os conceitos relativamente estabilizados que se materializam na densidade escrita desta década,ilustraremos também que o enunciado “deficiência” é definido com o objetivo de eliminar todas as formas de discriminação contra indivíduos com alguma restrição física, mental ou sensorial. Vale ressaltar, que durante o séc. XIX houve um período prolongado de educação especial para pessoas com “deficiência”, prática que reflete na manutenção (ou no movimento) deste conceito relativamente estabilizado durante o início do séc. XX. “Fato imbricado, igualmente, com o

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desenvolvimento de apoio a sistemas fundidos de educação regular e especial e o impacto disso nas escolas atuais” (STAINBACK, 1999, p.36).

Esta tendência disfarçada para a segregação, para o controle dos “indesejáveis”, atingiu seu ponto alto durante o século XX (debate que será aprofundado mais tarde). O que queremos chamar atenção é para o fato de que as “pessoas com deficiência” e com “necessidades educacionais especiais”foram tecnicamente segregadas e moldadas dentro de um sistema nada humanitário, pois segundo Stainback (1999, p.37), “[...] vários grupos de crianças surdas foram excluídos das escolas públicas regulares. Nos Estados Unidos, por exemplo, os afro-americanos surdos e os nativos americanos eram em grande parte educados em sistemas escolares separados”. Da mesma forma, os alunos com alguma deficiência visível continuaram, em sua maioria, sendo segregados:

[...] as instituições residenciais e as escolas especiais permaneceram sendo indicadas para educar alunos cegos ou surdos ou com deficiência física. Os alunos com déficits importantes de desenvolvimento em geral não tinham nenhum tipo de serviço educacional disponível e ficavam quase que sempre nas alas dos fundos das grandes instituições do Estado. Assim, as “classes especiais” não surgiram por razões humanitárias, mas porque os sujeitos lá confinados eram indesejáveis nas salas de aula regulares (STAINBACK, 1999, p.38).

É válido destacar que, em meados deste período, o uso de classes especiais nas escolas públicas, mesmo que tímidos, foi o sistema preferido de prestação de serviços educacionais para a maior parte dos alunos com deficiência. Apesar disso, foi durante este período que as atitudes do poder público com relação ao espaço físico das pessoas com déficits significativos nas escolas e na comunidade começaram a mudar159

158.159 O enunciado Necessidades Educativas Especiais (NEE), segundo Baptista e Jesus (2009), começou a ser mais utilizado no Brasil a partir, principalmente, da Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais Especiais: acesso e qualidade, realizada na cidade de Salamanca, na Espanha, no período

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Ponto chave para reoperacionalizar toda uma mudança ideológica a qual subsidiará em 1994 e 1995 fundamentalmente outras “vontades de verdade” (FOUCAULT, 2005, p.114). Destarte, é no campo dos discursos, naquilo que é falado e no que é calado, que se “[...] encontram as representações que cada sujeito faz do mundo e do mundo em si mesmo, a fim de conservar ou produzir discursos” (FOUCAULT, 2010, p.39).

Notamos, portanto, o quanto o efeito discursivo decorrente dos conceitos relativamente estabilizados - deficiente auditivo e indivíduo com necessidades educacionais especiais - produzem e, ao mesmo tempo, como eles estão investidos de significância para e por sujeitos dentro do imaginário enunciativo de uma época, fazendo com que singularidades sejam esquecidas, silenciadas e desestimuladas e quem fugir ao padrão de hegemonia seja excluído. Circunstância que pode ser ratificada, tomando como base os jogos de memória e os não-ditos nos quais os conceitos relativamente estabilizados foram produzidos:

[...] as relações de poder em uma sociedade como a nossa produzem sempre censura, de tal modo que há sempre silêncio acompanhando as palavras. Daí que, na análise, devemos observar o que não está sendo dito, o que não pode ser dito. [...] Essas reflexões podem levar à seguinte questão: se não dizer significa, então o analista pode tomar tudo o que não foi dito como relativo ao dito em análise? Não há limite para isso? Esta é uma questão de método: partimos do dizer, de suas condições e da relação com a memória, com o saber discursivo para delinearmos as margens do não-dito. Não é tudo que não foi dito, é só o não dito relevante para aquela situação significativa (ORLANDI, 2009, p.83).

Processo que incide categoricamente no interesse comunitário ou no valor cultural que serão negociados ao longo do tempo. Assim, formam-se de 07 a 10 de junho de 1994. Ano e cidade de destaque dentro de nosso plano investigativo, conforme apontará nossa segunda análise ainda nesta unidade.

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sujeitos e discursos nos “entre-lugares”, “nos excedentes da soma das ‘partes’ da diferença (geralmente expressas como raça/ classe/ gênero/ sexo e etc.) que ao reencenarem o passado, introduzem outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição” (BHABHA, 2010, p.20).

Portanto, este primeiro preceito legal analisado (Declaração Mundial de Educação para todos - seu reflexo no Brasil), por mais que enquadre a representação da diferença e oportunize novas práticas educativas em sua densidade escrita, não visualizou como efeito discursivo, “explorando a ideia de disciplinarização de Foucault” (GREGOLIN, 2006, p. 136), que as relações entre sujeito e o poder propõem analisar as formas de resistência e ver onde elas se inscrevem:

[...] para Foucault, as lutas, na sociedade, giram em torno da busca da identidade e o seu principal objetivo não é o de atacar esta ou aquela instituição de poder, ou grupo, ou classe ou elite, mas sim uma técnica particular, uma forma de poder que se exerce sobre a vida cotidiana imediata. São ações de afrontamentos de estratégias (GREGOLIN, 2006, p.137).

Sob a influência das ideias contidas na Conferência Mundial de Educação para todos, ocorreu o encontro realizado em Salamanca/Espanha de 07 a 10 de junho de 1994, com a presença de mais de trezentas e noventa e duas representações governamentais e mais de vinte e cinco organizações internacionais, o que redundou na Declaração de Salamanca – nosso segundo fato marcante referente à surdez (conferir Tabela 01). Essa Declaração ratifica a importância da inclusão dos chamados portadores de necessidades educacionais especiais nas escolas regulares e detalha propostas sobre a necessidade de uma preparação das escolas regulares no que concerne ao espaço físico, corpo docente, material didático, etc. Nesse documento, grande parte da materialidade discursiva estabelece o direito fundamental de todas as crianças à educação, reconhecendo que possuem características, interesses,

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capacidades e necessidades de aprendizagem que lhes são próprias, que “os sistemas educativos devem ser planejados e os programas aplicados de modo a levar em conta toda gama dessas diferentes características e necessidades” (BAPTISTA; JESUS, 2009, p. 155).

Logo, ao se trabalhar com base nos princípios inclusivos, busca-se:

[...] não deixar ninguém no exterior do ensino regular, desde o começo da vida escolar. As escolas inclusivas propõem um modo de organização do sistema educacional que considera as necessidades de todos os alunos e que é estruturado em função dessas necessidades (MANTOAN, 2006, p.19).

Em termos nacionais, as políticas públicas posicionaram-se favoráveis à inclusão, ativando esforços para possibilitar o ingresso de todos à escola regular e instituindo critérios para que isso acontecesse como orienta a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB (Lei 9.394/1996 – terceiro documento destacado na Tabela 01), em seu capítulo V, artigos 58 e 59, que em termos gerais presumem serviço de apoio e professores especializados (ou capacitados) para atender aos portadores de necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino.

Analisando a situação educacional vivenciada em nosso país e estes dois outros agrupamentos discursivos destacados acima, constatamos iniciativas no sentido de atender alguns critérios fundamentais destes preceitos legais. Sobre isso, é notório destacar que ‘garantir’ a presença do intérprete em sala de aula, classes especiais, educação especial para o trabalho e etc. são medidas legais importantes. Também na Declaração de Salamanca, em especial no Artigo 7º, da Estrutura de Ação da Educação Especial, encontramos passos altamente benéficos para os princípios inclusivos.

No tangente aos conceitos relativamente estabilizados presentes nestes preceitos legais, notamos que, mesmo com o passar dos anos, uma determinada

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cadeia de sentido se manteve com relação ao primeiro fato marcante. Porém novos movimentos discursivos passaram a atuar nestas outras materialidades discursivas. Em outras palavras, as condições de produção da Declaração de Salamanca e da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, resultam de relações nas quais as narrativas sustentam e, ao mesmo tempo, reoperacionalizam todo um contexto discursivo de formação social inscrito na história dos movimentos surdos:

[...] as formações discursivas, por sua vez, representam no discurso as formações ideológicas. Desse modo, os sentidos sempre são determinados ideologicamente. Não há sentido que não o seja. Tudo que dizemos tem, pois, um traço ideológico em relação a outros traços ideológicos. E isto não está na essência das palavras mas na discursividade, isto é, na maneira como, no discurso, a ideologia produz seus efeitos, materializando-se nele. Todo discurso se delineia na relação com os outros: dizeres presentes e dizeres que se alojam na memória (ORLANDI, 2009, p.43).

Desta maneira, expressa-se na densidade escrita dos fatos marcantes da década de 90 outras “vontades de verdade” (FOUCAULT, 2005, p.114) que noticiabilizam memórias coletivas como construções discursivas as quais se dão na interseção de diferentes forças que se consolidam, sobretudo, nas dinâmicas sociais. Diante disso, Pollak (1989, p. 08), “[...] salienta que não se trata mais de lidar com os fatos sociais como coisas, mas de analisar como os fatos sociais se tornam coisas que são dotadas de duração e estabilidade”.

Esta abordagem também se aplica aos nossos objetos de análise em questão, afinal, os debates organizacionais que atravessam os três primeiros fatos destacados da Tabela 01transformaram os discursos de uma dada época em fontes historiográficas. Neste caso, em especial, preceitos legais/discursos oficiais.

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Nessa perspectiva, é fundamental desenvolver o seguinte debate: como as identidades culturais surdas estão sendo afetadas ou deslocadas por este processo de enquadramento conceitual? Afinal, segundo Hall (2006, p. 48) “as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior das representações [...]”.

Logo, nós só sabemos o que significa ser deficiente auditivo, portador de necessidades educacionais especiais e estabelecemos padrões inclusivos devido ao modo como os discursos Clinicopatológico e Socioantropológico vieram representados ao longo da história – como um conjunto de significados, efeitos discursivos produtores de representações culturais.

Assim, apontamos para uma espécie de negociação a qual tenta conciliar memória coletiva e memórias individuais. Neste sentido, há, portanto, um discurso organizado em torno de acontecimentos, conceitos relativamente estabilizados e de personagens célebres que formam, ao longo do tempo, o enquadramento de uma memória conceitual/terminológica que se solidifica na densidade escrita dos fatos destacados em torno de dois eixos principais: o das políticas educacionais e o das discussões teóricas.

E é desta maneira que o início da década de noventa atua como uma fonte de significados culturais, afetando o foco de identificação conceitual e todo um sistema de representação.

Em meados de 1995 a 1999, passagem também de destaque em nosso plano de estudo, começam a se organizar no Brasil uma série de diagnósticos, publicações e formulações acadêmicas sobre como reforçar o compromisso, principalmente de professores e gestores escolares, com os princípios fundamentais presentes em muitos debates sobre inclusão e discriminação contra pessoas portadoras de deficiência 160

159.

160 Destacamos como eventos impulsionadores da nova representação conceitual que surgirá no Brasil, no campo da educação inclusiva, a publicação do livro Por uma gramática de línguas de sinais(BRITO, 1995), as reflexões empreendidas pelo educador Paulo Freire, no que tange a autonomia e saberes necessários à prática educativa, e a Declaração de Washington (1999), fundamentada em princípios éticos para regulamentar o direito das pessoas com necessidades educacionais especiais a uma vida independente.

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Tal fato redimensiona as representações conceituais da surdez em nosso país. Visto que, com a criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais Adaptações Curriculares (1998), como destaca a Tabela 01, e toda a política educacional já influenciada por um novo “discurso dominante”, resultado também de inovações tecnológicas, deslocamentos provocados pelo processo de Globalização, as novas representações conceituais aparecem atravessadas por inúmeros silêncios articulados que agenciam outras vontades de verdade. Que de acordo com Foucault (2010, p. 09) revelam a interdição discursiva no imaginário da época:

[...] em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo de quem fala. [...] Por mais que o discurso seja aparentemente pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nós queremos apoderar (FOUCAULT, 2010, p.10).

Portanto, os eventos externos tradutores das condições de produção dos fatos marcantes relativos à surdez, em especial os do final da década de 90, materializam em seu espaço discursivo outras ordens e memórias enunciativas. Até porque a ordem do discurso afeta a ordem de uma dada memória, fazendo com que a forma de circulação desses eventos enunciativos revele representações conceituais recheadas de novas formações discursivas e outros lugares de enunciação.

Cabe destacar, ainda em relação a este silêncio constitutivo – “que põe em funcionamento o conjunto do que é preciso não dizer [...]” (ORLANDI, 2007, p.74), outros reflexos importantes que circulam estes discursos oficiais,

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reencenando outros silenciamentos e o encadeamento de diversos conceitos relativamente estabilizados. Ou seja, apesar do ordenamento jurídico do Estado brasileiro, desde a promulgação da Constituição de 1988 passandopela criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais Adaptações Curriculares (1998), medidas reais ainda precisam acontecer para que se consagre o direito básico de acesso ao ensino fundamental, obrigatório e gratuito nas instituições de ensino do Brasil. Afinal, o quadro de acesso à educação básica ainda guarda a marca histórica da exclusão da maioria da população brasileira aos direitos básicos e que a efetividade do direito à educação em termos de garantia de acesso, permanência e qualidade de ensino ainda está por acontecer.

Portanto, seria um erro gravíssimo não associarmos também as altas taxas de evasão escolar com o tratamento inadequado conferido ao fenômeno da diversidade social, conceitual, cultural e linguística presente nas salas de aula do nosso país.Ponto chave para a continuação da análise da cronologia das representações conceituais referentes à surdez. Visto que, tal reflexão oferece lugar para outras produções de sentidos e outras instâncias produtoras, logo, outros conceitos relativamente estabilizados.

E é justamente neste cenário de (re) avaliação de práticas discursivas e educacionais que, em 24 de abril de 2002, a Língua Brasileira de Sinais é oficializada no Brasil pela Lei de Nº 10.436/2002 – A Lei da LIBRAS. Fato marcante relativo à surdez que eleva significativamente o índice de produção bibliográfica no campo da educação inclusiva e dos Estudos Surdos em nosso país, fazendo com que comecem a surgir no campo conceitual outras filiações histórico-discursivas as traduzirão novas redes de significações e relações de sentido:

[...] as condições de produção, que constituem os discursos, funcionam de acordo com certos fatores. Um deles é o que chamamos de relação de sentidos. Segundo essa noção, não há discurso que não se relacione com outros. Em outras palavras, os sentidos resultam de relações: um discurso

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aponta para outros que o sustentam, assim como para dizeres futuros. Todo discurso é visto como um estado de um processo discursivo mais amplo, contínuo (ORLANDI, 2009, p.39).

Logo, não podemos penetrar nos silêncios da Lei da LIBRAS (BRASIL, 2002) sem antes citar algumas relações que ajudaram a compor o espaço desta materialidade discursiva. Como por exemplo: se destacarmos a abordagem socioeducativa da inclusão e suas bases legais como silêncios fundadores dos discursos que caracterizam a Lei da LIBRAS, é válido destacar o quanto a Declaração do Milênio (2000), o Compromisso de Dakar (2000), o Encontro em Montevidéu (2001), a Declaração de Madri (2002) e a Declaração de Sapporo (2002) foram fundamentais para instituírem os regimes de verdade que atravessam nosso sexto fato marcante (conforme mostra a Tabela 01).

Afinal, podemos citar mesmo que panoramicamente, que esses documentos restabeleceram o princípio da educação para todos e o respeito às diferenças individuais e culturais de sujeitos historicamente excluídos do acesso a bens culturais e sociais, entre os quais, o acesso à escolarização básica e à educação inclusiva pública e de qualidade.

Relações de produção estão inseridas em nosso objeto de análise, por mais que nele não estejam explícitas em seu plano narrativo (falo, outra vez, de silêncios articulados). Como exemplo, podemos citar as resoluções do encontro internacional ocorrido em Montevidéu/Uruguai, no período de 13 a 17 de novembro de 2001, em que foram discutidas as regulamentações para a formação de intérpretes de língua de sinais na América Latina. Este evento, adaptando as reflexões de Quadros (2004, p. 51), direciona a consolidação discursiva das atuais representações conceituais referentes à surdez através de preceitos legais, enquanto parte da constituição identitária dos sujeitos surdos161

160.161 Observando o plano narrativo e as recomendações feitas por ocasião deste encontro no Uruguai, nota-se toda uma cadeia discursiva que emite a vontade de verdade deste período. Cabe lembrar, conforme a Tabela 02, a presença total de conceitos relativamente

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[...] consequentemente, podemos dizer que o sentido não existe em si, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas. Os discursos mudam de sentido segundo as posições daqueles que os empregam. A noção de formação discursiva, ainda que polêmica, permite compreender o processo de produção dos sentidos, a sua relação com a ideologia e também dá ao analista a possibilidade de estabelecer regularidades no funcionamento dos discursos (ORLANDI, 2009, p.42-43).

Assim, a partir do início do século XXI, começa a se fortalecer no Brasil a utilização dos conceitos relativamente estabilizados destacados em nosso perfil metodológico e, ao mesmo tempo, esta percepção espacial e temporal se transforma em um grande boom bibliográfico, conforme já foi citado, em que irão se proliferar cenários multiculturais. E é nesse sentido, que a representação cultural do surdo, presente na densidade discursiva da Lei da LIBRAS e, principalmente, nos conceitos relativamente estabilizados da época, atuará politicamente para assegurar os direitos linguísticos e de cidadania já reconhecidos pela Legislação vigente.

Logo, refazendo grande parte do percurso histórico das lutas das comunidades surdas brasileiras, que de certa forma integram a trajetória da educação especial e da educação inclusiva em nosso país, nota-se que o número de conquistas legais foi muito significativo, fato que se reflete na atual representação conceitual sobre a Língua Brasileira de Sinais.

Episódio que nos faz atentar para o sistema educacional brasileiro tentando se adaptar à inclusão dos surdos por meio de políticas e práticas educacionais inclusivas. Porém é preciso termos clareza de que todo o cenário inclusivo se constitui também em uma luta política de enfrentamento das estabilizados ligados ao construto Socioantropológico (indivíduos surdos; sujeitos surdos; surdos). In: QUADROS, Ronice. O tradutor e intérprete de língua brasileira de sinais e língua portuguesa. Secretaria de Educação Especial – Brasília: MEC/SEESP, 2004. p. 47-49.

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desigualdades sociais e educacionais e pelo reconhecimento e afirmação das minorias, acontecimento amplamente imbricado com nosso sétimo fato marcante relativo à surdez – a Convenção sobre os direitos das pessoas com Deficiência - 2007 (verificar Tabela 01)162

161.

Elaborada ao longo de quatro anos, a Convenção sobre os direitos das pessoas com Deficiência, segundo Ferreira e Oliveira (2007, p. 02), “contou com a participação de 192 países membros da ONU e de centenas de representantes da sociedade civil de todo mundo, com o objetivo de tornar efetivos os direitos de pessoas com deficiência, proteger e assegurar o desfrute pleno e equitativo de todos os direitos humanos.

Analisando o conceito relativamente estabilizado presente na densidade escrita do objeto em questão, notamos que o agrupamento discursivo (deficiente) surge outra vez no processo de significação e representação histórica. Entretanto, se atentarmos às fronteiras enunciativas, às condições de produção e às formações discursivas nas quais o agrupamento está inserido, observaremos que as representações conceituais presentes neste preceito legal legitimam a ressignificação de toda uma postura ideológica e cultural. De modo que a representatividade e as vontades de verdade da época traduzem outras memórias discursivas e outros silêncios fundadores.

Assim, no entendimento da Organização das Nações Unidas deficiência é agora:

[...] um conceito em evolução, resultado da interação entre a deficiência de uma pessoa e os obstáculos que impedem sua participação na sociedade. Quanto mais obstáculos, como barreiras físicas e condutas atitudinais impeditivas de sua interação, mais deficiente é uma pessoa. Não importa se a deficiência é física, mental, sensorial, múltipla ou

162 Com relação a este preceito legal, há uma série de catalogações temporais. Adotamos como marcador temporal o ano de 2007, porque mesmo sabendo que em 13 de dezembro de 2006, em sessão solene da ONU, foi aprovado o texto final deste tratado, somente em 30 de março de 2007, foi firmado pelo Brasil e por mais 85 nações. Daí o motivo da escolha em nosso perfil metodológico.

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resultante da vulnerabilidade etária. Mede-se a deficiência pelo grau de impossibilidade de interagir com o meio da forma mais autônoma possível (FERREIRA; OLIVEIRA, 2007, p.3).

Esses princípios são também norteadores do Tratado Internacional de Educação Inclusiva (2006), fundamentalmente em seu Artigo 24, elemento de destaque em nosso perfil metodológico. Pois é a partir dele que começa a desencadear toda uma política linguística, pedagógica e cultural fundamentada no diálogo de dois discursos dominantes: o da educação inclusiva (teorizado dentro de um padrão Socioantropológico) e o da independência (muito discutido na Declaração de Madri e na Declaração de Washington) 163

162.

Sob estes prismas, “[...] os princípios da inclusão aplicam-se não somente aos indivíduos com deficiência ou sob risco, mas a todos. O que na prática soma-se com a mudança, mesmo que tímida, do comportamento da sociedade civil” (STAINBACK, 1999, p. 69).

Segundo Martín-Barbero (2009, p.13) “[...] a emergência de uma razão comunicacional, cujos dispositivos - a fragmentação que desloca e descentra, o fluxo que globaliza e comprime, a conexão que hibridiza – agenciam as mudanças do mercado da sociedade.” Ou seja, é preciso compreender que essas relações e esses efeitos discursivos se conectam devido a contextos políticos, sociais, econômicos e educacionais.

Assim, incorporar o conceito relativamente estabilizado (deficiente) como um agrupamento discursivo chave da enunciação do último fato marcante relativo à surdez, por exemplo, significa acionar os preceitos de flexibilidade curricular e os da ‘política de inclusão’ (ou de integração, como alguns estudiosos preferem)164

163, o que reoperacionaliza toda uma memória

163 Cabe destacar, que o Brasil só assina o Tratado Internacional sobre educação inclusiva em meados de 2008. A respeito disso, ler: (SOARES, 2009).

164 Para mais informações, Ver Nocera (2007).

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coletiva em prol das diferenças165164.

Essas mudanças só são pertinentes e válidas porque estão associadas a um campo adjacente de sentido, ou seja, a função dos preceitos legais e o papel dos sujeitos surdos e dos ouvintes na construção desta nova teia de significação, para o conceito relativamente estabilizado em questão, são fundamentais para toda consequência teórico-metodológica proveniente deste período.

Portanto, estes acontecimentos discursivos conectados aos debates oficiais possibilitaram o estabelecimento e o relativo movimento de certos enunciados em nossa cultura. Neste sentido, abarcamos um campo imenso de possibilidades construído pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (falados ou escritos) dentro de nosso perfil analítico em sua disseminação e na instância própria de cada um:

[...] constitui-se, assim, o projeto de uma descrição dos acontecimentos discursivos, como um conjunto finito e efetivamente limitado das sequências que tenham sido formuladas historicamente, compreendendo o enunciado em sua singularidade de acontecimento, já que ele é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente. Por outro lado, sua emergência pressupõe articulações com outros enunciados e é necessário descrever esses jogos de relações. Foucault enxerga, portanto, no enunciado, uma articulação dialética entre a singularidade e repetição: de um lado, ele é um gesto; de outro, liga-se a uma memória, tem materialidade; e é único mas está aberto à repetição, ressignificação [grifo nosso] e se liga ao passado e ao futuro (GREGOLIN, 2006, p.88).

Em seu modo singular, cada conceito relativamente estabilizado destacado na Tabela 02, exerce uma função que cruza um domínio de 165 Caso queira aprofundar a discussão sobre esta nova roupagem dos cenários escolares inclusivos, o Centro de Recursos em Deficiência múltipla, Surdocegueira e Deficiência visual – ADEFAV, possui uma plataforma em parceria com o programa PerkinsInternational, de dicas, consultorias, material didático e cursos no site: <www.adefav.org.br>

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estruturas e unidades possíveis e que faz com que apareçam, ideologias e conteúdos concretos, no tempo e no espaço.E é justamente pensando cada conceito relativamente estabilizado como uma “função” que descrevemos o movimento de trânsito dos agrupamentos discursivos e dos fatos marcantes relativos à surdez para marcar diferenças enunciativas. Pois ao enxergá-los no interior de uma historicidade, analisamos ao mesmo tempo o exercício da função enunciativa e as condições segundo as quais ela faz aparecer significações diversas.

Destarte, segundo Foucault (2005, p.123), “[...] descrever um enunciado não significa isolar e caracterizar um segmento horizontal, mas definir as condições nas quais se realizou a função que desencadeou uma série de signos com existência específica”:

[...] esta se faz aparecer não como um simples traço, mas como relação com um domínio de objetos; não como resultado de uma ação ou de uma operação individual, mas como um jogo de posições possíveis para um sujeito; não como uma totalidade orgânica, autônoma, fechada em si e suscetível de – sozinha – formar sentido, mas como um elemento em um campo de coexistência; não como um acontecimento passageiro ou um objeto inerte, mas como uma materialidade passível de reencenações. A descrição dos enunciados [conceitos relativamente estabilizados – grifo nosso] se dirige, segundo uma dimensão de certa forma vertical, às condições de existência dos diferentes conjuntos significantes de uma dada época (id., ibid., p.123).

Em ressonância com todos estes processos de ressignificação historicamente construídos, desde a década de noventa, implica-se a partir dos conceitos relativamente estabilizados, “uma leitura de que os efeitos discursivos não são meros instrumentos passivos na construção dos sentidos que tomam os processos sociais, as estruturas econômicas ou os conflitos

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políticos” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 31). E que há silêncios articulados tão carregados de vários planos de leitura que somente uma análise vertical e, ao mesmo tempo interdisciplinar dos fatos, sustentaria o movimento o qual atravessa as representações conceituais destacadas em nosso perfil metodológico.

E neste âmbito, também ancoramos a possibilidade por reconhecer que o ‘real’ em muitos momentos é aquilo que não pode ser dito pela língua, mas é apreendido pela discursividade, isto é, pela ordem do simbólico. Esta é a representação do real da língua pela linguagem; o real se opõe ao simbólico, assim como o simbólico se opõe ao real.

Desta forma, os fatos marcantes relativos à surdez dos quais partimos deixam de ser apenas ritos de passagem para se converterem em problemas de ordens históricas e discursivas que manifestadas por conceitos relativamente estabilizados constituíram a atual representação conceitual das lutas políticas surdas no Brasil.

3 CÉLULAS DE RESISTÊNCIA

Em busca de novas mediações culturais

Os discursos sobre surdos e surdez, manifestados por conceitos relativamente estabilizados, reencenam conflitos enunciativos os quais adentram tanto o campo das tensões quanto das formas de sociabilidade construídas entre diversos grupos, especialmente, surdos e ouvintes. Nessa dinâmica, esses atores sociais redefinem constantemente os “entre-lugares” tentando encontrar meios de pôr em evidência seus projetos e desejos.

Desta maneira, criam-se as células de resistência como mais um suporte de formação discursiva que, por sua vez, materializam uma gama significativa de formações ideológicas166

165. Episódio que também impulsiona a ressignificação 166 O enunciado [células de resistência] foi criado neste estudo fundamentado nas perspectivas da ‘nova História’ (descontinuidade, ruptura, limiar, limite, série, transformação) e, ao mesmo tempo, mergulhado na base da proposta foucaultiana para a Análise do discurso – AD, no

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(e reinterpretação) das representações conceituais destacadas em nosso perfil metodológico e, ao mesmo tempo, a afirmação de uma postura militante surda contra os princípios de segregação e exclusão. Assim:

[...] a significação cultural mais ampla da condição pós-moderna reside na consciência de que os “limites” epistemológicos daquelas idéias etnocêntricas são também as fronteiras enunciativas de uma gama de outras vozes e histórias dissonantes, até dissidentes – mulheres, colonizados, grupos minoritários, os detentores de sexualidades policiadas. Isto porque a demografia do novo internacionalismo é a história da migração cultural, as narrativas da diáspora cultural e política, os grandes deslocamentos sociais de comunidades camponesas e aborígenes, as poéticas do exílio, a prosa austera dos refugiados políticos e econômicos. [...] Cada vez mais, as culturas nacionais estão sendo produzidas a partir das perspectivas de minorias aparentemente destituídas (BHABHA, 2010, p.24-25).

As conquistas de muitas células de resistência surda, nesta pesquisa, materializam-se “parcialmente” através de eventos discursivos legais observados desde a década de 90 até os dias atuais. É notório destacar que nem tudo que é ‘legal’ é ‘legítimo’, ou seja, nem tudo que perfaz um preceito legal da área da educação acontece na prática escolar, por exemplo. Entretanto, seria um erro gravíssimo não atentarmos para estas formas de enfrentamento, afinal estas conquistas constituem como um dever ético e um direito político a inclusão social de sujeitos os quais apresentam alguma deficiência (o conceito foi utilizado já ressignificado, conforme ilustramos)167

166. Isso, no entanto, não que tange tratar o discurso no jogo de sua instância produtora em um dado tempo histórico. Portanto, [células de resistência] pode ser entendido como universo de práticas discursivas que engendram narrativas de deslocamentos, diásporas, tento como foco principal o progressivo reconhecimento de uma determinada construção identitária nas mais diversas esferas sociais (sejam elas políticas, econômicas, linguísticas). Logo, é mais um dispositivo de mediação que, reencenado no campo das práticas sociais, além de incluir o espaço como elemento significante traduz a representação cultural de uma sociedade de massa. 167 É válido ressaltar, que quando nos referimos às células de resistência surda, não significa dizer que somente surdos estão inseridos neste universo. Por ser um signo plural e híbrido

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autoriza dizer que esta pesquisa conta a história das lutas surdas no Brasil.

Por outro lado, Gregolin (2006, p. 87) nos alerta que ao tratar a língua como espaço “[...] transformamos os documentos (objetos de pesquisa) em monumentos que caracterizam as regularidades dos acontecimentos discursivos, assinalando unidades muito além dos agrupamentos discursivos escritos”. De modo que, se as condições de produção não revelam quem estava com a verdade, podem mostrar como os enunciados “falam a mesma coisa”, colocando-se no mesmo nível, no mesmo “campo de batalha”.

Foucault (2005, p. 143) nos orienta que “[...] as condições de emergência dos enunciados, a lei de coexistência com outros, a forma específica de seu modo de ser caracterizam um jogo de relações de poder”. Para ele, o fato de haver uma “disciplinarização”, de ter sido necessário desenvolver mecanismos de controle e de vigilância contínuos demonstra que os sujeitos lutam, resistem. Por isso, pensando as relações entre o sujeito e o poder, Michel Foucault propõe analisar as formas de resistência por duas vias:

[...] por um lado, elas afirmam o direito à diferença e sublimam tudo o que pode tornar os indivíduos verdadeiramente individuais; por outro lado, elas combatem tudo o que pode isolar o indivíduo, desligá-los dos outros, cindir a vida comunitária. Elas opõem uma resistência aos efeitos de poder que estão ligados aos saberes, à competência e à qualificação. Esse poder – contra o qual os sujeitos [nesta pesquisa, surdos – grifo nosso] se digladiam em micro-lutas cotidianas – classifica os indivíduos em categorias, designa-os pela individualidade, liga-os a uma pretensa identidade, impõe-lhes uma lei de verdade que é necessário reconhecer e que os outros devem reconhecer neles. É uma forma de poder que transforma os indivíduos em sujeito (GREGOLIN, 2006, p.137).

da crítica pós-colonial, há também neste dispositivo de mediação ouvintes solidários que se unem aos objetivos gerais preestabelecidos na caminhada política do movimento, em prol da solidificação de construções identitárias surdas em que a justiça social se concretize na resistência a todas as formas de discriminação e exclusão social.

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Nesses domínios, como produtos históricos de efeitos de sentidos através de inúmeras células de resistência, os discursos sobre surdos e surdez, manifestados por conceitos relativamente estabilizados, constituíram um lugar de encontro entre a atualidade e a memória. Sendo a prática discursiva, ao mesmo tempo, produto de linguagem e processo histórico, em que para poder apreender o seu funcionamento fez-se necessário analisar as determinações que estão na base da função enunciativa.

Dessa perspectiva, analisamos as redes de memórias, os silêncios articulados, os interdiscursos e etc. que evidenciaram as articulações entre as práticas discursivas e a produção da atual representação conceitual sobre a LIBRAS. Ponto chave para permitir rastrear o funcionamento discursivo responsável pela legitimação de uma construção identitária surda e delinear as relações por ela estabelecidas interdiscursivamente com alguns preceitos legais os quais circulam na sociedade.

Assim sendo, as células de resistência surda são construídas no interior dos processos de representação da alteridade. O movimento surdo, segundo Perlin (2005, apud SKLIAR, 2005, p. 69), “[...] é responsável direto pelo novo impasse na vida do surdo contra a coesão ouvinte, pelo sentir-se surdo: em resumo, é o local de gestação política das identidades surdas”.Episódio que dialoga com a perspectiva de tradição e tradução identitária proposta por Hall (2006, p. 88), afinal, “[...] as culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia”.

Portanto, o potencial cultural dessas células de resistência precisa ser levado em consideração como mais um elemento definidor de toda a ressignificação discursiva, ideológica e conceitual apresentadas neste estudo. Pois estes universos discursivos proporcionaram outras instâncias produtoras que foram decisivas para a formação de outro regime de verdade ao longo da história.

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O que é notável ao observarmos as análises até aqui feitas são os movimentos das representações conceituais como estratégias discursivas para possíveis identificações culturais surdas nas ‘margens’ de uma sociedade predominantemente ouvinte. Assim, os silêncios constitutivos de muitos decretos que antes eram a morada de panoramas clínicos transformaram-se em cenários de interstícios, hibridismos e diálogos culturais reveladores de outra dimensão social que se fortalece no decorrer do tempo. Cenários estes, nos quais o silenciamento de muitas instâncias produtoras não revela o percurso semântico-discursivo de um determinado conceito relativamente estabilizado, acirrando ainda mais a tensão que assombra a formação simbólica da autoridade identitária surda e confirmando a hipótese inicial destacada no resumo deste estudo.

Visto que, a cronologia das representações conceituais e os discursos que a compõem, não se referem simplesmente a eventos históricos, ela é também uma complexa estratégia retórica de referência social. E neste âmbito, o processo de significação atua como fragmento histórico-discursivo produtor de uma massa que cotidianamente inscreve sua história nas entrelinhas dos fatos marcantes relativos à surdez destacados nesta pesquisa.Terreno fértil para compreender viveres, negociações, percepções, constituintes do movimento conceitual que se materializou nos documentos oficiais e nas relações de poder por trás desses debates.

Gostaríamos ainda de lembrar que, se todo discurso tem sua história, a dos surdos, inicialmente, esteve condicionada às condições médicas, mesmo que não lhes agradassem. Porém, à medida que foram se afastando desse vínculo, por muitas necessidades, eles iniciaram vários pontos de resistência reoperacionalizando toda a discursividadea qual atravessa a cronologia das representações conceituais, o que atribuiu uma nova dinamicidade para a solidificação da Língua Brasileira de Sinais como língua materna dos surdos.

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Portanto, acreditamos que o retorno desta pesquisa aos surdos e aos ouvintes, impulsiona a necessidade de uma ética diferenciada, em que a lógica semântico-discursiva também seja levada em consideração no ato da enunciação como mais uma forma de compreensão e inclusão social. Tarefa básica para estimularmos todo e qualquer processo de integração social, na busca de reforçar e oportunizar aspectos positivos que beneficiem uma melhor compreensão conceitual das temáticas presentes no contexto social brasileiro que, diga-se de passagem, não é surdo e nem ouvinte. É, por excelência, espaço socialmente produzido por contínuos (re) fazeres linguísticos, identitários e culturais.

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PELAS LENTES DOS ESTUDOS CULTURAIS:

O Golpe Civil-Militar no Pará

Jaime Cuéllar Velarde (SEDUC-PA)

Agenor Sarraf Pacheco (PPHIST/PPGA/UFPA)

Antes de tudo, as intenções de êxito deste texto são pela memória dos heróis paraenses Roberto Cortez e Ronaldo Barata, dentre outros que deixaram belíssimas lições de ousadia em prol da Democracia e Liberdades do povo brasileiro, em especial aos paraenses. Ambos, perseguidos e presos durante o regime autoritário instituído em 1964, deixaram o legado de lutas.

O texto a seguir é fruto de reflexões constantes na Introdução da minha dissertação de mestrado, intitulada “No Crepúsculo: Memórias Subversivas da Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense (1964-85)”. Aconteceu pelo Programa de Comunicação, Linguagens e Cultura, da Universidade da Amazônia (Unama), no biênio 2010/12. O texto dissertativo está completamente eivado dos Estudos Culturais (EC), embora no início do curso pouco ou quase nada soubesse sobre este vetor de compreensão da realidade. Na verdade, o Prof. Dr. Agenor Sarraf Pacheco, em conversas informais, já diluíra em minha formação um pouco do que eu viria a ser após a conclusão das pesquisas e escrita. Entretanto, preciso deixar claro que meu entendimento sobre teóricos e metodologias era, naquele momento, incipiente.

Somente ao assistir à disciplina “Imaginário, Memória e Identidade Amazônica”, ministrada pelo próprio professor Sarraf é que tive acesso mais contundente a discussões, teóricos, metodologias, que trilhavam pelos EC pós-coloniais. Minhas traduções a partir das novas informações iam atravessando fronteiras atlânticas e varando igarapés, matas, culturas, até chegar à política, economia, sociedade. Fiquei fascinado pela (in)disciplina deste campo de estudos. Afinal, minha proposta de dissertação, ainda que não estivesse

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completamente ajambrada, bebia em fontes do marxismo e nova história, sem olvidar a psicologia social e a cultura. Um novelo sem ponta à vista.

Os teóricos dos Estudos Culturais operam por dentro de agendas diversas, enviesando matizes, entrecortando áreas e espraiando-se em frestas, marginalizados. Tudo isso sem, contudo, perder de vista os rigores acadêmicos. Por si só este já seria um belo mote para adotar os EC enquanto “orientador”. Felizmente, somou-se ainda a postura clínica para apresentar os teóricos por parte do professor Sarraf, uma vez que o mesmo já conhecia os problemas das minhas investigações e angústias. As ideias caíam como luvas às minhas aspirações indisciplinadas de escrita.

Em março de 2013, meses depois de concluir a defesa e obter o título de Mestre em Comunicação, Linguagens e Cultura, fui sondado pela coordenação do Grupo de Estudos Culturais na Amazônia – GECA – sobre meu interesse em publicar textos que demonstrassem os diálogos dos EC com os rumos da pesquisa. Achei a ideia necessária para novos pesquisadores, pois é o diário de bordo da pesquisa que revela, aponta, sugere rumos de leituras e escritas acadêmicas. Aceitei de imediato o desafio.

***

Diário de Bordo

A pesquisa de mestrado inseriu-se ao rol de minhas necessidades de ações políticas a partir da sui generis experiência de ler “1964. Relatos subversivos: os estudantes e o golpe no Pará”. Era um lançamento inovador para compreender a história da ditadura no Pará sob a perspectiva das memórias de um grupo de estudantes à altura do Golpe Civil-Militar. O texto bem escrito de Pedro Galvão naquela edição foi, provavelmente, o que mais vincou meus juízos de valor.

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Após aquela leitura, minhas posturas políticas acerca da Ditadura Civil-Militar foram abruptamente modificadas. Passei a frequentar fóruns de discussões via internet, com a presença de inúmeros personagens que se afirmavam ali como protagonistas e antagonistas do Golpe Civil-Militar e de todo o processo ditatorial. Busquei obras especializadas em sebos e bibliotecas que pudessem nutrir minhas inquietações políticas e acadêmicas. Sem perceber, já havia sido fisgado pela temática e a saída, mesmo que não a desejasse, já me era impossível.

Naquela ocasião, outras produções lançadas ao mercado editorial no mesmo ano traziam à tona a temática da Ditadura Civil-Militar em esfera nacional. Dentre os principais, destaco os trabalhos de Kushnir (2004), Fico (2004), Reis (2004), Motta (2004) e Ridenti (2004). Por ser um ano emblemático para a temática ditatorial por conta dos 40 anos de Golpe Civil-Militar, estas produções semearam perspicácias para pesquisas enviesadas com o mesmo teor. Entretanto, entre todas aquelas obras faltavam produções que contemplassem a realidade amazônica. Assim me percebi convidado a pesquisar mais sobre a seara.

Elio Gaspari, com dupla edição intitulada “A ditadura escancarada” e “A ditadura envergonhada”, ambas em 2002, davam subsídio para compreender aquela época dentro de novas perspectivas para além do enquadramento meramente político ou econômico. Seu olhar se direcionava para análises envolvendo sentimentos, em especial o uso intransigente da violência e vergonha latente daqueles que perpetraram abusos de poder, respectivamente.

“O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004)”, lançado também em 2004, e organizado por Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta, trouxe talvez o maior fôlego para a pesquisa sub judice dos EC. As análises lançaram mão de fontes pouco usuais para a tradição historiográfica, tais como de charges, músicas, depoimentos, jornais. As várias possibilidades de encenar a memória (REIS, 2004) e as múltiplas

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temporalidades na escrita sobre o tema da Ditadura Civil-Militar (DELGADO, 2004), caíram como luvas para encarnar o propósito deste trabalho.

Marcelo Ridenti, um dos autores de “O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004)”, em 1993, havia lançado “O fantasma da revolução brasileira”, em alusão às derrotas acumuladas pelas esquerdas brasileiras. Desde as músicas de protesto capitaneadas por Chico Buarque e Caetano Veloso, até a Guerrilha do Araguaia, com as inúmeras mortes no interior do Brasil, o autor discorreu sobre acertos, avanços e retrocessos da luta engajada contra a Ditadura Civil-Militar. Entretanto, era o ano de lançamento daquele trabalho, era 1993. A ditadura havia capitulado recentemente (1985), com eleições diretas para presidente somente em 1989. Ou seja, sua pesquisa estava impregnada por ranços imediatistas que exigiam mais pressa nas mudanças sociais e políticas do país. Este trabalho deve ser situado no tempo-espaço para ser analisado.

Ao iniciar a pesquisa debrucei-me sobre a literatura especializada. Somente naquele momento percebi o quanto a temática da ditadura civil militar em nossa região ainda carece de maiores investimentos acadêmicos. Em honrosa exceção figura “Chão de Promessas”, de Pere Petit (2003). É a principal obra sobre as trajetórias em confronto com lutas pela terra, redemocratização e rumos políticos da Amazônia nos tempos de exceção. Sua análise recai sobre os principais eventos governamentais causadores de mudanças no quadro econômico, político e social da região desde os tempos do boom da borracha até a Nova República (1995).

A argumentação de mestrado de Tony Leão da Costa intitulada “Música do norte: intelectuais, artistas populares, tradição e modernidade na formação da “MPB” no Pará (anos 1960 e 1970)”, produzida no Programa de Mestrado em História Social da Amazônia, da Universidade Federal do Pará, em 2008. A pesquisa tangencia a temática ditatorial de modo bastante engenhoso. Sob o artifício de compreender os percursos da música produzida

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no período naquela década, Costa mergulha em censuras, decretos e artifícios institucionais autoritários. Tem também o mérito de recorrer à História Oral enquanto método interpretativo nas humanidades inovando na produção sobre a Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense ao apresentar vozes de “intelectuais” e “artistas musicais” antes marginalizados pela produção historiográfica.

Carlos Eduardo dos Santos e Santos, Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará, em 2011, com o trabalho intitulado “Do Ponto de Vista da Caserna: Memórias do Cotidiano e Experiências de Militares da Aeronáutica em Belém Durante o Regime Militar (1964-1985)”, também adentra no rol de produções sobre a temática ditatorial. O trabalho prestigia atores sociais que, ao longo do processo de arbitrariedades, foram os únicos a falar: os próprios militares. Por outro lado, tem o mérito de recorrer aos contemporâneos do período em tela.

Raquel Cunha, em Trabalho de Conclusão de Curso, enveredou por temática bastante parecida com este texto. Em artigo disponibilizado em site eletrônico, inspirado nas entrevistas com cinco informantes, produziu “Um olhar à cidade de Belém sob o Golpe de 1964: paisagens e memórias de estudantes e artistas”, de 2008. As entrevistas tiveram direcionamento antropológico, fato que propicia outras análises. Os rastros sugeridos por Cunha apontaram para novos caminhos e sugeriram novas possibilidades na minha escrita. Por exemplo, Paes Loureiro e o padre teatrólogo Cláudio Barradas, entrevistados daquele trabalho, também foram arguidos pela minha pesquisa. Cunha ainda carrega o mérito de ser o primeiro trabalho, o único, aliás, a prestigiar a narrativa feminina naqueles tempos.

De posse destas leituras, senti a necessidade de visibilizar experiências de outros sujeitos capazes de produzir maior entendimento acerca do cotidiano conflituoso vivenciado nos tempos de exceção na Amazônia Paraense. Tampouco abri mão do luxuoso auxílio de análises de jornais, revistas, livros,

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vídeos e entrevistas cujo cerne era os tempos de exceção provocados pelo golpe e consequente Ditadura Civil-Militar iniciada em 1964.

Apesar das produções acadêmicas acima, “1964. Relatos subversivos”, por ser uma produção gestada a partir das memórias de seus autores, foi a obra seminal para a pesquisa e, consequentemente, para a urdidura desta escrita. Justamente por tratar-se de um livro de narrativas experimentadas em tempos traumáticos, cujo cerne eram os jovens estudantes à época do Golpe Civil-Militar, notei ser este o mote para iniciar a pesquisa.

A partir de determinado momento no início da pesquisa, decidi que o rol de entrevistados para a feitura desta argumentação seria composta por aqueles memorialistas. Além de fazer parte do processo metodológico, seria também um ato de justiça com minha própria consciência, em especial por lembrar que inúmeras passagens daquelas memórias me levam às lágrimas sempre que folheava/folheio suas páginas. Infelizmente, precisei rever este plano de voo, pois pelo falecimento de Ronaldo Barata (um dos memorialistas) e pela impossibilidade de comunicação e distância de residências de outros (Isidoro Alves e Roberto Cortez), novos narradores foram incorporados.

No final das contas, oito narradores foram os escolhidos para compor as discussões que me acompanharam. São eles: Cláudio Barradas, José Seráfico de Carvalho, André Costa Nunes, Dulce Rosa, Pedro Galvão de Lima, Alfredo Oliveira, Paes Loureiro e Ruy Antonio Barata.

Após muitas sugestões pouco aproveitáveis, optei pelo título “No Crepúsculo: Memórias Subversivas da Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense (1964-85)”. O incipiente mergulho no conjunto de documentos orais e escritos permitiu-me acionar zonas de sensibilidades adormecidas e despertar o desejo de luta contra atitudes e posturas tidas como desprezíveis na condição humana. A temática, especialmente, na Amazônia Paraense, fez-me compreender o quão são caros os estudos de temas sobre as lutas em torno

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do poder, liberdade, direitos humanos. Aqui reside uma contribuição desta argumentação para compreender as teias do Golpe Civil-Militar na Amazônia Paraense.

No objetivo central surgiram três pontos específicos intimamente imbricados. Eles são nós górdios, cujos desates são imprescindíveis para os contornos finais deste trabalho. Chegaram a estar nas previsões do projeto inicial da pesquisa, mas alguns foram abandonados pela insuficiência de informações, outros se fortaleceram ao longo da trajetória de leituras e pesquisa de campo. Adiante os detalharei.

Primeiro, é extremamente necessário reconhecer a impossibilidade de analisar o cotidiano conflituoso da Amazônia Paraense sem antes selecionar pessoas representativas que denominei “sujeitos culturais” – adiante detalho esta categoria –, analisar as experiências narradas por estes e, como consequência, desnudar o seu cotidiano em relação ao regime à época do Golpe Civil-Militar. Junto a isso, mapeei o conjunto de linguagens por eles construídas para lidar com os mecanismos de censura/opressão.

Segundo, feita a seleção dos sujeitos culturais a terem suas memórias analisadas, pude interpretar o imaginário por eles produzido nas interfaces e tensões com o imaginário hegemônico no contexto da ditadura na Amazônia Paraense.168

167 Ou seja, é preciso considerar a heterogeneidade dos sujeitos selecionados para então perceber as tensões se construindo por motivações diferenciadas para cada um deles. Implica afirmar o lugar social e situações vividas com sensibilidades diferenciadas. Desta forma, é mister captar as estratégias e diferentes mecanismos de silenciamentos, opressão, censura implementados pelo poder militar na região amazônica para situar no tempo-espaço os sujeitos pesquisados.

168 Sobre estudos do imaginário social no campo histórico, há uma significativa bibliografia. Entre eles é válido citar: (PANTLAGEAN, 1993; BACZKO, 1985).

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A metodologia da História Oral foi privilegiada para explorar as narrativas produzidas no corpo-a-corpo da pesquisa. Assim constatei censuras, perseguições políticas e prisões como responsáveis por criar outras perspectivas para as inúmeras paisagens da capital paraense. Paisagens que hoje remetem a um passado doloroso para João de Jesus Paes Loureiro, Pedro Galvão de Lima e José Seráfico de Carvalho. Paralelamente, o poder público – corroborado por setores da academia responsável pela produção/discussão do conhecimento – das décadas posteriores ao Golpe Civil-Militar construiu significados turísticos ou com enfoque histórico sem ênfase para o período ditatorial que assolou o Brasil por 20 anos.

Exemplo visível desse processo está na ressignificação de alguns patrimônios que compõem o chamado Complexo Feliz Lusitânia. Especialmente o espaço hoje chamado “Casa das Onze Janelas” que abriga o “Boteco das Onze” e um espaço de Exposição Permanente de Arte Modernista Amazônica.169

168 Em 1964, aquele lugar foi a Quinta Companhia de Guardas com reuniões do CMA (Comando Militar da Amazônia), além de calabouço para aprisionar e deixar incomunicáveis os jovens estudantes acusados de “subversão”. O mesmo espaço foi cenário das angústias por ter sido a prisão e espaço de torturas mentais170

169 do então deputado estadual Benedito Monteiro, comunista convicto.

169 A Quinta Companhia de Guardas funcionava onde hoje abriga a Casa das 11 Janelas e compõe o Complexo Turístico Feliz Lusitânia. A Casa foi construída no século 18 como residência de Domingos da Costa Bacelar, proprietário de engenho de açúcar. Em 1768, a casa foi adquirida pelo governo do Grão-Pará para abrigar o Hospital Real. O projeto de adaptação é do arquiteto bolonhês José Antônio Landi. O hospital funcionou até 1870 e depois a casa passou a ter várias funções militares. Em 2001, o Governo do Estado do Pará assinou com o Exército Brasileiro um convênio, alienando os terrenos da Casa das Onze Janelas e do Forte do Presépio em favor do Estado. A Casa, como todo espaço inserido no processo histórico, serviu a diversas finalidade e funções no decorrer dos tempos. Assim, ao refletir as atitudes do Poder Público sobre tal Patrimônio há clareza da multiplicidade das dimensões que o mesmo assume na paisagem urbana e nas relações sociopolíticas nas quais se insere. Apesar disto, penso como dever do Estado criar mecanismos de informação para que a sociedade fique a par das historicidades e significados da paisagem e patrimônios que lhe pertencem. Inspirado em: http://migre.me/6ab8U, acessado em 10.09.11 – às 15h22.170 Ver Monteiro (1993). Na obra “Transtempo”, Monteiro argumenta sobre dúvidas, perguntas e incertezas gestadas a partir de um completo desconhecimento do que acontecia durante o tempo que estava incomunicável na prisão. Dedica inclusive um capítulo sobre esta temática pp. 64-70. Ali, classifica a tortura em “física” e “mental”.

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Ou seja, junto aos mecanismos de opressão e censura do período ditatorial estão o esquecimento e a negligência historiográfica causada pelo próprio poder público. No corpo desta argumentação tangenciarei os meandros desta relação, articulando Ditadura Civil-Militar e memórias. Com isso, contribuo para o fortalecimento de estratégias de divulgação dessas memórias de dor para que o passado não se repita. A esse respeito é necessário mencionar Beatriz Sarlo a qual, quando debruçada sobre as memórias do holocausto, assinala: “Nunca se pode saber tudo, nem nunca podemos nos resignar a um saber parcial e ao mesmo tempo inevitável (como o de toda prática) e inimigo da memória” (1997, p. 42).

Com a História Oral, apreendi memórias sobre a temática da Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense, daí os caminhos da pesquisa tornaram-se menos herméticos. Como vislumbrei acima, essa metodologia não é apenas uma técnica de entrevistas preocupada com informações produzidas pelos depoentes. É também o campo de significações de lembranças, silêncios ou esquecimentos gestados no momento da entrevista.

Tratei de pôr em prática ensinamentos da sabedoria dos que usam há largo tempo essa metodologia, assim como o bom senso do saber ouvir. Destaco Alessandro Portelli (1993; 1996; 1997a; 1997b; 2010), Paul Thompson (2002) e Alistair Thomson (1997, 2001) como intelectuais desta vertente teórico-metodológica, conforme assinala Khoury (2010), utilizados neste texto. E por instigação dessas leituras, fiz a seguinte opção metodológica: o esquema de perguntas produzido para cada entrevistado acabou não sendo executado conforme o planejamento inicial; foi a partir da fala dos entrevistados que surgiam as novas perguntas, sendo que em vários momentos limitei-me a sorrir, franzir a testa, balançar a cabeça... Sempre sugerindo para o entrevistado seguir a narrativa sem se sentir preso a uma camisa de forças de um roteiro pré-estabelecido.

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Quando foi possível uma segunda entrevista o depoente era rememorado dos pontos tocados na entrevista anterior. Alguns aspectos que me interessavam maior aprofundamento eram colocados no início da conversa para manter-me fiel ao ritmo do primeiro encontro. Pretendi com isso não quebrar o ritmo das narrativas. Com boa dose de sensibilidade aflorada no calor da pesquisa, acredito que a adoção desta postura foi produtiva.

Para desenhar reflexões e provocar os trechos pinçados das entrevistas, jornais, autores, a opção recaiu sobre a teoria interpretativa dos EC, em especial autores como Stuart Hall (2003, 2006), Dennys Cuche (2002), Edouard Glissant (2005), Homi Bhabha (2007), além das pesquisas produzidas por Sarraf-Pacheco (2009; 2009b; 2011) sobre a Amazônia Marajoara em conexões com esta teoria interpretativa. Somando-se a estes, Michael de Certeau (1997), contribuiu decisivamente na construção de significados das práticas dos sujeitos pesquisados.

Ainda por sugestão dos EC, a pesquisa caminhou, ora abstendo-se, ora aproximando-se dos tradicionais escritos de História Política do Pará. Tal opção teve vistas em narrar experiências de novos agentes históricos como forma de obter perspectivas inéditas acerca do cotidiano amazônico à época do Golpe Civil-Militar.

O uso da História Oral está nesta argumentação não só por questões metodológicas, mas por fazer emergir memórias há muito em “zonas de silêncio”171

170 impostas pela tradição acadêmica amazônica. Logo, a escolha da História Oral é uma opção política para justiça historiográfica ao propor

171 Expressão arquitetada por Sarraf-Pacheco (2010) a partir da audição de relatos de mulheres marcadas em suas infâncias por abusos sexuais que, por vergonha, autopreservação, luta por sustento, não denunciaram seus algozes. Por essa razão, as memórias dessas experiências dolorosas não eram compartilhadas. A impossibilidade de retransmissão desses saberes a outras gerações ou a outros grupos sociais dá-se pelo simples fato de que existem mecanismos de silenciamento e coerção por parte de grupos hegemônicos. Então, tais memórias são produtos de relações de poder entre sujeitos que mediram força em algum tempo e lugar. Não estão, necessariamente, no esquecimento. Esperam o momento oportuno para emergir, fazer-se ouvir e revelar-se ao palco de ações protagonistas de histórias interditas, mas vividas. Como? Simplesmente permitindo-se narrar o que viveram.

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sujeitos outrora sequer mencionados pela academia. Há, contudo, uma necessária observação acerca da relação entre sujeitos e zonas de silêncio. Os personagens contemplados nesta argumentação não se submeteram à penumbra da escrita histórica por decisão própria. Se a produção acadêmica não os vinculou à construção de astúcias de resistências durante o processo ditatorial, isso se deve tão somente ao tradicionalismo historiográfico de não perceber novos sujeitos nas tramas históricas.

No caso dos atores pesquisados são evidentes as estacas fincadas pelos próprios para delimitar seus raios de ação. Produziram seguidamente ao longo dos anos ditatoriais por meio de peças teatrais, músicas, poemas, artigos, cartas, panfletos, reuniões, artigos e ações de repúdio aos autoritarismos. As táticas de sublevação os marcavam ainda mais como subversivos e, portanto, construíram suas identidades sem que isso fosse necessariamente algo a ser escondido. Afinal, como chegaria até eles se não fosse pelos estardalhaços produzidos naqueles tempos?

Metodologicamente, esta escrita foi conivente aos anseios do Mestrado multidisciplinar em Comunicação, Linguagens e Cultura. Opções analíticas foram construídas sempre permitindo a circulação de conceitos e discussões cujos focos estavam em compasso da esteira dos EC. Alargar os horizontes desta urdidura sem posturas monolíticas foi à tônica do trabalho de pesquisa e escrita. Desta forma, é salutar mencionar que as categorias construídas a partir desta postura estão no corpo das reflexões sempre de modo relacional.

A categoria identidade, por exemplo, recebeu o debate a partir de Hall (2003, 2006) e Cuche (2002). Isso porque ambos discutem variadas possibilidades de compreensão do fazer-se e trajetórias de homens e mulheres na contemporaneidade. Ao longo da pesquisa constatei que sujeitos contíguos ao Golpe Civil-Militar fizeram questão de forjar elementos constitutivos de suas identidades, ao mesmo tempo, sujeitos externos atribuíram elementos outros para representar essas identidades. Isso ocorre porque esses agentes

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históricos operam suas identidades sociais de acordo com suas atuações artísticas ou profissionais, mas sem olvidar outros papéis construídos em igrejas, famílias, esquinas, cafés, círculos de amizade, etc..

Diante deste quadro, para Hall e Cuche o conceito de identidade é controverso, antagônico, movediço, efêmero, flexível, móvel... Adjetivos necessários para dar conta do multifacetado universo de significações que constituem o estar no mundo dos sujeitos culturais valorizados pela investigação. Cuche (2002), ao abordar as relações e diferenças entre identidade e cultura, diz que:

Não se pode pura e simplesmente confundir as noções de cultura e de identidade cultural ainda que as duas tenham uma grande ligação. Em última instância, a cultura pode existir sem consciência de identidade, ao passo que as estratégias de identidade podem manipular e até modificar uma cultura que não terá então quase nada em comum com o que ela era anteriormente. A cultura depende em grande parte de processos inconscientes. A identidade remete a uma norma de vinculação, necessariamente consciente, baseada em oposições simbólicas (CUCHE, 2002, p. 176).

Assim, para Cuche (2002) as categorias existem separadamente, mas estão vinculadas. Isso me instigou a pensar cultura e identidade amazônicas como fenômenos em constante dinamismo. As identidades amazônicas, em especial a dos sujeitos culturais aqui pesquisados, estão carregadas de “oposições simbólicas” que, por sua vez, causam “processos inconscientes” junto à cultura da região. Assim como há oposição, a categoria produz laços de pertencimento. Ao instigar esta reflexão, o texto de Cuche se fez também imprescindível para colaborar e corroborar aspectos da discussão aqui travada.

Ao entrevistar o teatrólogo Cláudio Barradas (que hoje exerce funções de sacerdócio – é padre da Paróquia Cristo Ressuscitado, no bairro da Marambaia, em Belém), por exemplo, constatei a materialização da preconização de Cuche.

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As atividades de teatrólogo e padre teatrólogo, pela dicotomia em si destes papeis, evocam identidades movediças neste sujeito. Forçando-o a assumir papeis nem sempre acionados automaticamente. Ao narrar sobre o fato de ser chamado de “contraditório” por um repórter da RBA (Rede Brasil Amazonia de Televisão), contou o seguinte episódio:

(...) O cabra veio me entrevistar e me pergunta: “Camisinha?” Aí eu falo assim: “Queres a resposta do padre ou do ser humano? Se for do ser humano eu digo: Usa. Se for do padre eu digo: Não”. Porque o padre é só soldado raso, soldado não pensa, só obedece. Aí o cara disse: “Tu és contraditório”. Eu disse: “É. Sou. Mas contraditória é a vida” (Cláudio Barradas, entrevista em 13 e 23 de maio de 2011).

A fala de Barradas retoma Hall (2006) a respeito das contradições envolvendo a categoria identidade, em especial o “jogo das identidades”. Significa dizer que Barradas, ao sugerir o uso de preservativos no momento da relação sexual, assume papel de cidadão consciente e preocupado com os riscos em contrair doenças ou evitar gravidez, caso não haja prevenção e cuidados com o corpo. E, ao migrar sua postura para o papel de Padre da Igreja Católica Apostólica Romana, tem ciência que esta instituição não autoriza práticas sexuais fora do matrimônio, cuja finalidade não seja a reprodução; sendo assim, não cabe a preocupação com prevenção de gravidez ou doenças, portanto o uso de preservativo é cabalmente proibido. Neste sentido, o “jogo das identidades” descrito pelas reflexões de Hall (2006) é encenado conscientemente por Barradas. O perfeito controle e aquiescência das suas identidades permitem imersões e emersões sempre que lhe é conveniente. Um sujeito em trânsitos identitários. A movimentação das identidades do padre-cidadão frente às vivências cotidianas é negociável e sempre relacional.

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Para Hall (2003), a identidade está pontilhada por uma íntima relação com a cultura popular. Como discuto e percebo os sujeitos culturais em permanente contato com a construção da “cultura popular” na Amazônia Paraense, notei dificuldades para iniciar essa discussão. Hall também já advertia sobre tal dificuldade ao afirmar: “tenho quase tanta dificuldade com “popular” quanto tenho com “cultura”. Quando colocamos os dois termos juntos, as dificuldades podem se tornar tremendas” (Hall, 2003, p. 231).

Ao assumir o poder em 1964, os militares provocaram no Pará – como em todo o Brasil – um palco de intervenções na cultura popular para controlar o imaginário da população. Essa atitude de controlar corações e mentes por parte de governos despóticos, aliás, é facilmente constatada em outros momentos da história recente do Brasil.172

171 No caso paraense, censores passaram a compor um cotidiano de fiscalização e controle de teatrólogos, músicos, poetas. Esses censores, sob o argumento da ordem, moral e bons costumes não permitiam a publicação ou veiculação de ideias subversivas ao regime. Hall, mesmo analisando relações entre cultura e poder na Europa, contribui para reflexões em terras amazônicas.

De um jeito ou de outro, o “povo” é frequentemente o objeto da “reforma”: geralmente para seu próprio bem, é lógico – “e na melhor das intenções”. Atualmente, compreendemos a luta e a resistência bem melhor do que a reforma e a transformação (Hall, 2003, p. 232).

O recorte acima permite inferir que o papel dos censores, respondendo a um projeto de poder dos governos militares, tinha a nítida intenção de “um longo processo de ‘moralização’ das classes trabalhadoras, de ‘desmoralização’ dos pobres e de ‘reeducação’ do povo” (Idem, p. 232). Ora, sob o discurso de

172 Ver a fundação e objetivos do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em 1939, no governo golpista de Getúlio Vargas. A Fundação Getúlio Vargas, em seu Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea, traz importantes dados acerca das metodologias utilizadas pelo governos varguista para atingir seus objetivos populistas juntos às massas. Disponível em http://migre.me/90WZG - acessado em 12 de abril de 2012, às 15h22min.

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“reeducação do povo” estavam os interesses governamentais, aristocráticos e de todos os segmentos sócio-político-econômicos interessados em silenciar sujeitos que operassem fora de tais agendas.

Isso, claro, jamais implicou numa passividade por parte de tais dissidentes, ou subversivos, como se costumava rotular, diante de tal projeto de poder. Afinal de contas, para Hall (Ibidem) a cultura “é o terreno sobre quais as transformações são operadas” (Ibidem, p. 232). O teatrólogo Cláudio Barradas, ao narrar um exemplo da forma como lidava com a censura, com risos e tom de sarcasmo, ainda narrou:

Aí, depois nós viemos, uma peça política, um texto muito bom: “A ameaça”. Passa-se no final na Cabanagem. Um sargento muito doido que anda pelo interior caçando cabano. Aí chega a uma barraca onde só tem uma velha e a filha dela. Ele insiste que elas esconderam cabano. Massacram a velha, massacram a menina. No final eles matam a moça. Aí fica só a velha, a moça... Eu faço a velha ficar cantando “liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”. Um espetáculo lindo. Tá, tá, tá... (Claudio Barradas, entrevista em maio de 2011).

O padre teatrólogo narra o episódio com enorme satisfação, euforia e, principalmente, sarcasmo para denunciar sua sagacidade, de um lado, e falta de percepção das ironias tramadas, da parte dos censores que o acompanhavam, por outro. Ao narrar especificamente este fato, Barradas dá ênfase à liberdade sendo mostrada como resultado do embate cultural e político entre o público massacrado e os sargentos muito doidos que massacravam jovens meninas. É uma metáfora, sem dúvidas, para denunciar a situação vivida naquele momento no Brasil. Sobre esta questão levantada pelo padre teatrólogo, Hall (2003) já advertia sobre esse palco de conflitos e sobre o fato de que classes sociais e poder dominante estão imbricados pela relação mútua nas lutas culturais. Fenômeno das lutas, aliás, que em momento algum deixou de movimentar-se

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no período pesquisado.

Não existe um estrato “autêntico”, autônomo e isolado de cultura da classe trabalhadora. A maioria das formas de recreação popular mais imediatas, por exemplo, estão saturadas de imperialismo popular. Poderíamos esperar outra coisa? (Hall, 2003, p. 234).

Ao articular Hall com a narrativa de Barradas, observo como o Pará foi palco de sujeitos que lançaram mão do teatro para lidar com os mecanismos da censura. Os duplos sentidos, os jogos com as palavras nas atividades cênicas, as ironias, são apenas um exemplo de táticas de resistência.

O padre Barradas também inseria palavras de baixo calão para escamotear algumas intenções políticas: denunciar o regime ao público. Quando o censor ouvia tais palavras se concentrava nelas e deixava passar as demais, relatou. Atitude proposital para ser censurado em alguns trechos e, obviamente, “liberado” naquilo que justamente interessava aos interesses políticos de Barradas.

Diante das táticas de resistência tão comuns em todos os sujeitos culturais desta pesquisa, Michel de Certeau (1997) foi imprescindível para dar conta dessa análise. Por meio de bilhetes, anotações em pés de páginas, palavrões em cenas teatrais, duplos sentidos em versos e trovas, os dissidentes ao regime ditatorial conseguiram imprimir críticas à postura ditatorial. Estes sujeitos, de certa forma sentindo-se agredidos pelo estado de censura e violência, resistiam e criaram táticas algumas vezes sutis, outras vezes atabalhoadas, conscientes ou inconscientes. Surtindo efeitos – ou não – junto a outros grupos, os sujeitos culturais conseguiram criar brechas dentro do regime de exceção. O fato é que diversas táticas foram urdidas e postas em prática.

Outras duas categorias de análise estão presentes neste texto para discutir as memórias em tempos de censura. Ambas foram cunhadas no decorrer

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das leituras e investigação de campo. Obviamente, ao final da argumentação poderão ser questionadas, pois foram gestadas sob o calor da empiria da pesquisa, mas certamente apresentam contribuição para o debate sobre a ditadura em solo amazônico. São elas sujeitos culturais e memórias de dor.

Sujeitos culturais é a categoria utilizada para denominar agentes contemporâneos ao Golpe Civil-Militar que de alguma forma criaram táticas de resistência ao regime. Inicialmente, esse termo não estava prescrito no projeto de pesquisa ou nas sugestões da orientação. Esses sujeitos, inicialmente, eram denominados como intelectuais que interferiram no processo político e cultural da ditadura, cumprindo o papel de dissidentes ao regime. No entanto, a cada momento em que as entrevistas iniciavam e a expressão era mencionada rapidamente era rechaçada pelos entrevistados.

Assim ocorreu com os entrevistados João de Jesus Paes Loureiro, André Costa Nunes, Pedro Galvão de Lima e Cláudio Barradas. Entendi essa recusa como um problema a tornar-se perigoso para o êxito do trabalho. Seria difícil sustentar uma categoria de análise em que os próprios entrevistados sinceramente não se reconheciam nela ou, por modéstia, alegavam não se reconhecer.

Assim, optei para esta tecedura denominar sujeitos culturais todos aqueles que, de alguma forma, utilizaram o teatro, a poesia, a trova, a música, a literatura, o discurso político, ou quaisquer outras linguagens possíveis de estarem a serviço da sociedade, numa atitude fundada não na subserviência, mas na doação e postura de igualdade entre os cidadãos. E por agirem às margens do poder ditatorial urdindo táticas diversas para burlar a ditadura, foram tachados de subversivos, perigosos, comunistas, perigosos, vermelhos.173

172 Obviamente, com o passar das últimas quatro décadas, sofreram

173 Preocupados com os sentidos que o esquecimento sobre os difíceis tempos de ditadura militar na Amazônia Paraense poderiam produzir na atualidade, alguns sujeitos culturais, registraram em livros de memórias publicados, percepções das experiências do passado pelos óculos do presente. Entre essas publicações, destacam-se Loureiro (2011); Netto (2003); Oliveira (2010); Seráfico (2007, 2010).

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transformações em suas identidades. Naquela altura, eram estudantes recém-formados ou formandos, cuja perspectiva de futuro estava atravessada pelas ações ditatoriais do novo regime. Cada um ruminou o passado conforme o repertório particular e hoje são atores sociais bem diferentes daquilo que foram um dia.

Ao retomar o diálogo com os sujeitos da pesquisa houve ainda a rechaça à categoria analítica denominada intelectual. Todos foram enfáticos em afirmar-se como “profissionais” nas áreas em que atuam no mercado de trabalho. A postura diante do termo sujeitos culturais foi de maior aceitabilidade quando eu comentava a maior abrangência desta nomenclatura. Assim, optei pelo uso desta expressão por ter sido testada e aprovada na fase das entrevistas.

As memórias de dor é outra categoria cunhada a partir do calor das entrevistas. Todos os entrevistados, sem exceção, mesmo com sorrisos ou queixos erguidos pelo orgulho como lidaram com os tempos de autoritarismos, em vários momentos elevaram o tom da voz, cruzaram os braços, franziram as testas, enrubesceram os rostos. Performances que denunciavam de alguma maneira as memórias dolorosas por terem vivenciado momentos de medo, tensão, raiva. Por enquanto, alguns exemplos: em 1964, durante os primeiros dias do Golpe Civil-Militar, Paes Loureiro foi preso, torturado física e psicologicamente, transferido para prisão no Rio de Janeiro sob risco de ser “suicidado” pelo DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), que, como diz o nome, teoricamente teria única função de estabelecer e manter a ordem, no entanto agia como instrumento de coerção e violência do Estado contra os opositores do regime.

Na narrativa de Loureiro, há um expresso de ressentimento para com o regime e toda a repercussão que isso causou à sua trajetória como poeta. O mesmo ocorre com as narrativas do então teatrólogo Cláudio Barradas e de Pedro Galvão, formado no curso de Direito no mesmo ano de 1964. Ambos trazem inscritas em suas trajetórias de vida as marcas nada indeléveis

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das perseguições da ditadura em terras amazônicas. O primeiro foi várias vezes censurado em suas peças, chegando a sofrer perseguição no ambiente de trabalho, passando dias sem que colega algum lhe dirigisse a palavra. O segundo foi preso sem nenhuma alegação. Simplesmente detido. Aflito pela falta de acusação formal foi libertado pelo fato de pertencer à reserva do Exército, segundo acredita e narrou.

Em 2004, passados 40 anos de sua prisão, Pedro Galvão foi responsável direto pela seleção de depoentes e organização de textos para um livro intitulado “1964: Relatos Subversivos – os estudantes e o Golpe Civil-Militar no Pará”. A ideia e materialização do livro em si já demonstram um passado ainda presente na vida deste sujeito, provavelmente com marcas de um ressentimento recalcado, como já dizia Nietsche (ANSART, 2004).

***

Os Filhos Errantes do Pará

Vai passar nessa avenida um samba popular / Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar / Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais / Que aqui sangraram pelos nossos pés / Que aqui sambaram nossos ancestrais / Num tempo página infeliz da nossa história, / passagem desbotada na memória / Das nossas novas gerações / Dormia a nossa pátria mãe tão distraída / sem perceber que era subtraída / Em tenebrosas transações / Seus filhos erravam cegos pelo continente, / levavam pedras feito penitentes / Erguendo estranhas catedrais (“Vai Passar”, de Chico Buarque e Francis Hime, 1984)

Os letristas Chico Buarque e Francis Hime bem tangenciaram o “tempo infeliz de nossa história” ao mencionar a pátria subtraída de filhos por vagar

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cegos e errantes pelo continente. Poeticamente, mas presos a um passado recente de censuras, exílios, autoexílios, prisões, torturas, mortes, Buarque e Hime têm vincadas as recordações da Ditadura Civil-Militar em suas trajetórias.

Na mesma esteira dos poetas, a expressão “longa noite” carrega a responsabilidade de dar conta das penumbras e sofrimentos das memórias do período ditatorial que assolaram o país desde 1964 até março de 1985. Neste momento da história brasileira, inúmeros dissidentes políticos “desapareceram” da cena política e deixaram de ser incômodos para os militares e civis apaniguados pelo regime. Segundo o Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos, há 376 mortos e “desaparecidos” no Brasil, desde 1964, sendo que cabe às famílias o ônus da prova para que o Estado se sinta obrigado a investigar e punir os responsáveis por tais mortes e desaparecimentos.174

173 A legislação no Brasil ainda não avançou nesta seara por puro descompromisso dos legisladores, mesmo com a existência de organizações não governamentais interessadas em fazer justiça ou, pelo menos, encontrar culpados.

Os depoentes desta argumentação, ao longo das décadas de Ditadura Civil-Militar, sabiam muito pouco a respeito dos excessos e autoritarismos de seu próprio tempo. Mesmo assim, os rumores e experiências vividas na Amazônia Paraense eram suficientes para semear medos e angústias quando se percebiam em situações de embate diante do poder instituído. Ao mesmo tempo, não permaneceram inertes ao sabor dos acontecimentos. Estiveram presentes em epicentros de atividades cujos cunhos direta ou indiretamente, tensionaram as relações de forças com o poder instituído pelos civis e militares adeptos ao golpe e à ditadura.

174 Dentre os vários organismos não governamentais responsáveis por divulgar e denunciar listas de desaparecidos políticos, destaca-se o Centro de Documentação Eremias Delizoicov e a Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos. O mesmo disponibiliza nomes em ordem alfabética, data dos desaparecimentos e acompanha os processos de investigação junto ao Ministério Público Federal. Disponível em http://migre.me/905L3 - acessado em 10 de março de 2012, às 21h.

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Diante disto, neste momento da argumentação trago à tona atores sociais que, na condição de contemporâneos aos tempos de Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense, imprimiram atitudes, táticas, ardilezas em confronto com o poder político.

O critério para pertencer ao rol de sujeitos culturais foi à produção de artimanhas de resistências não só naqueles fatídicos dias de abril de 1964, mas o conjunto de feitos ao longo dos vinte e um anos de ditadura civil-militar, bem como os vinte e nove anos posteriores ao final deste período. Ou seja, são agentes históricos, cujas produções artísticas e intelectuais foram vincadas para sempre pelas experiências vividas, durante o período.

Pela condição de professor de História, a temática já provocava em mim sensibilidades que exigiam mais conhecimentos. Seduzido e já em campo para iniciar a pesquisa desta argumentação, iniciei a lista de possíveis entrevistados. Optei pelo mesmo rol de narradores do livro “1964. Relatos subversivos”. Assim, André Costa Nunes, Pedro Galvão de Lima, José Seráfico de Carvalho, João de Jesus Paes Loureiro e Ruy Antônio Barata foram entrevistados para esta escrita. Mas, como em toda pesquisa de campo, tive dificuldades em arrebanhar os demais memorialistas de “1964. Relatos subversivos”. Por exemplo, Ronaldo Barata faleceu em 2008; já com Roberto Cortez175

174 e Isidoro Alves não pude fazer contato em tempo hábil, mesmo com os esforços em mapear possíveis amigos que pudessem estabelecer pontes para chegar até os mesmos.

Apesar destes contratempos, a pesquisa me oportunizou tomar conhecimento de outros personagens dos tempos de Ditadura Civil-Militar. Talvez pela oportuna ajuda de Clio, chegaram até mim, informações de uma mulher, um teatrólogo e um médico que talvez pudessem ajudar-me. Assim cheguei até Dulce Rosa de Bacelar Rocque, Cláudio Barradas e Alfredo Oliveira. Em poucos minutos de conversas informais com estes, inclui-os no

175 Roberto Maria Cortez também faleceu em 30.04.2013.

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rol de narradores.

Pedro Galvão, apesar da agenda sempre ocupada pelo ofício de publicitário foi, como os demais entrevistados, bastante receptivo e simpático com a causa desta argumentação. Recebeu-me em sua agência “Galvão Publicidade” com muita cortesia. Descobri que segue “cometendo poemas”176

175. Alguns engajados e bem escritos, outros, talvez segundo modéstia, “sem grande senso estético”. De todo modo, sua presença nesta argumentação é necessária pela importância construída desde os tempos em que foi Presidente da União Acadêmica Paraense (1964), militante da Ação Popular e, consequentemente, cumpria o perfil de “comunista frio e calculista”, como foi acusado em interrogatório na Quinta Companhia das Guardas, em abril de 1964.

Ruy Antonio Barata, médico residente na cidade de São Paulo, mesmo sendo um dos memorialistas de “1964. Relatos subversivos”, não constava inicialmente na lista pelo fato de morar em São Paulo, região distante da Amazônia Paraense. Seu depoimento insere-se nesta argumentação por uma feliz coincidência. Visitou sua mãe, Senhora Norma Barata, em Belém, no mês de agosto de 2011. Como dias antes eu havia localizado seu contato, tratei de informá-lo sobre a existência da pesquisa sobre os tempos de exceção. Respondeu-me amistosamente e com entusiasmo da possibilidade em ajudar-me na empreitada.

Pela identidade calçada da influência do pai (Ruy Paranatinga Barata177176)

e avô (o advogado Alarico Barata), este sujeito imprimiu sua participação ao movimento estudantil naqueles anos ditatoriais e, consequentemente,

176 Pelo contato que tive com o pensamento de Pedro Galvão de Lima, depreendi que usou várias vezes esta expressão para externar a ideia de poemas não como apenas joguetes de palavras, em arrumações de métricas e rimas. Mas como fatos com fortes implicações no espírito de quem os escreve e lê. Portanto, “cometer poemas” é influir diretamente nas atitudes e posturas de vida.177 Ruy Paranatinga Barata foi Deputado Estadual pelo Partido Social Progressista (1947-54), em dois momentos. Jornalista, atuou na Província do Pará. Também atuou na cátedra de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Artes. Foi preso e demitido do cartório de sua propriedade por ocasião do Golpe de 1964. Ver mais em http://www.culturapara.art.br/Literatura/ruybarata/.

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galgou degraus na maturidade política e engajamento maior no processo de resistências. Concedeu-me duas horas de relatos divididas em duas ensolaradas tardes na sala da residência de sua mãe, no bairro do Umarizal, em Belém (PA).

Quanto a João de Jesus Paes Loureiro, sua presença se justifica por ter sido o primeiro a sentir os tentáculos da repressão antes mesmo do dia 1º de abril, de 1964. Seu livro de poema “Tarefa”, a ser lançado nos dias posteriores ao golpe, teve a edição apreendida no dia 30 de março de 1964. Sua primeira obra de porte não teve a chance de nascer porque foi cruelmente abortada. As marcas desta violência estão sangrando ainda hoje. Este talvez seja o fato que o diferencie dos demais narradores. Foi o mais eloquente em demonstrar suas memórias de dor ao trazer à baila o local da prisão em abril de 1964.

Junto com as palavras ditas, Paes Loureiro foi o que mais se manifestou com a linguagem corporal. Franzia sua testa, balançava as pernas, cruzava e descruzava os braços. A inquietação foi a tônica da performance, deixando entrever rancores e ressentimentos ao tangenciar cenas ainda fortes em suas lembranças, tal qual o momento em que o instiguei a pensar na Quinta Companhia das Guardas como o espaço de recreação e lazer que ocupa hoje em dia ao compor o Complexo Turístico Feliz Lusitânia. Em depoimentos a uma emissora de TV, mencionou seu mal-estar por não haver ali menção ao fato de aquele espaço ter sido utilizado como masmorra para aprisionar estudantes à época do regime.

Meses após as entrevistas percebi dois elementos para compreender aquela postura. Primeiro, sua inexperiência política no momento do Golpe Civil-Militar. Com isso, as prisões foram bem mais duras do que, por exemplo, foram para os mais politizados José Seráfico de Carvalho e Ruy Antonio Barata (ambos do PCB). Segundo, atualmente tem como projeto político ser percebido na cena acadêmica como um militante que, apesar de tudo, é sobrevivente daquela conjuntura.

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Hoje, na condição de professor universitário e ex-secretário de Educação e Cultura do Estado do Pará, lançou em 2011, um romance – seu primeiro trabalho que não tem a poesia como epicentro criador – intitulado Café Central. O tempo submerso nos espelhos. Neste livro traz suas recordações sobre seu cotidiano e rota de fuga quando se deparou com a sensação de “medo de morrer” nas garras da ditadura.

O médico comunista Alfredo Oliveira, assim como Paes Loureiro, é de longe um dos mais preocupados em não deixar adormecer as trajetórias de sujeitos resistentes aos autoritarismos e histórias de lutas no estado do Pará. Foi elencado e entrevistado graças ao auxílio luxuoso de André Avelino da Costa Nunes Netto. Não fosse a ajuda de Nunes Netto ao ceder seu número de telefone fixo (não possui aparelho celular por ser avesso a algumas facilidades da modernidade), este valioso memorialista não figuraria nesta investigação. A importância de Alfredo Oliveira recai justamente pela imensa capacidade de iniciativa em compor e registrar as memórias de sua vida e demais camaradas.

No livro de memórias Cabanos & Camaradas, lançado em 2010, Oliveira faz uma cartografia das ações de todos os camaradas do Partido Comunista Brasileiro em terras amazônicas, suas trajetórias de vida pessoal, número de filhos, nomes das esposas, importâncias para as táticas de resistência frente à repressão, etc. O depoimento foi gravado em sua bela casa, na Avenida José Bonifácio, no bairro de São Braz, em Belém, no mês de setembro. Na ocasião, recebi valiosos informes sobre datas, nomes, fatos e análises particulares na perspectiva de um autodenominado ex-comunista ciente dos avanços e recuos do PCB na Amazônia Paraense. Sua importância como informante factual é incomensurável para esta escrita.

André Avelino da Costa Nunes Netto, o depoente que “não foi preso, não apanhou e não mudou de ideia”, como ele próprio alardeia, tem sua narrativa em “Relatos subversivos” como a mais distante de arremedos intelectuais. Nosso encontro para tratar desta argumentação aconteceu nos

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arredores de Marituba, na região metropolitana de Belém. Ao entrevistá-lo, compreendi o quanto é um sujeito movediço, vivo, repleto de hífens que o colocam e tiram de identidades construídas em seu fazer histórico. Em duas tardes entrecortadas por chuva forte e sol a pino, seus depoimentos foram descolados de cronômetros. O tempo empenhado naquela atividade de ceder relatos pareceu ser mais prazeroso a Nunes Netto do que aos demais depoentes.

Num jogo de recordações e eventuais esquecimentos, discorreu sobre seu pai, sua vida nos seringais de Altamira (PA), sobre a juventude tranquila e como passava o tempo pelas matas e igarapés de sua infância. Saindo dos seringais e Altamira, mostrou como era visto na condição de estudante interiorano na capital. Com esta narrativa, deu-me pistas para mostrar-se nos trânsitos identitários. Até que, subitamente, retomou à temática da ditadura militar. Foi então que compreendi sua astúcia na narrativa: desejava mostrar-se como sujeito múltiplo, com atuações em palcos e públicos diversos, mas sempre amalgamado pela dor de “não ter sido” o típico subversivo perigoso e perseguido pelos tentáculos da repressão.

José Seráfico de Carvalho é, sem sombra de dúvidas, o primeiro sujeito a ter sofrido violência física por parte do Golpe Civil-Militar na Amazônia Paraense. Estava presente na reunião da UAP, no dia 1º de abril de 1964, que discutia os rumos do movimento acadêmico quanto às decisões seguintes relacionadas ao golpe em curso. Ao ter a sede estudantil invadida pela Polícia Militar, José Seráfico foi esbofeteado pelo coronel José de Oliveira, ou “Peixe-Agulha”. A cena de violência explícita foi recordada em inúmeras passagens do livro “1964. Relatos subversivos” tornando aquele momento emblemático para o Golpe Civil-Militar.

Foi um dos estudantes a ser preso na Quinta Companhia de Guardas. Sofreu violência psicológica, ameaças e, por isso, foi citado no rol de subversivos e ameaças à segurança nacional. Com esta pecha negativa, os amigos se distanciaram, as oportunidades de trabalho minguaram e Belém se

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tornou um espaço hostil para sua estada. Diante disto, foi aconselhado pela amedrontada família a fugir para o estado do Amazonas. Assim o fez. Uma vez em Manaus, foi fisgado pela mais doce das prisões. Casou-se, teve filhos, fincou raízes. Chegou a ser professor universitário na Universidade Federal do Amazonas e, posteriormente, reitor. Hoje, uma das salas daquela instituição recebe seu nome como forma de render-lhe homenagem pelos préstimos à Educação daquele Estado.

Entretanto, mesmo tendo fincado estacas em Manaus (AM), sua família ainda vivia na cidade de Belém (PA). Tornou-se um homem em trânsitos constantes pelos rios Negro e Amazonas até chegar à capital paraense. As viagens eram sempre mediadas pelo medo da ditadura e pelo amor à família. As voltas à cidade natal eram repletas de saudades, mas a dor se fazia presente pelas experiências evocadas à memória em cada passeio por ruas, esquinas, praças da capital paraense. Assim, sua presença nesta argumentação se justifica pelas memórias vinculadas ao Golpe Civil-Militar.

Claudio Barradas, desde os anos de 1950 exercia as funções de autor, diretor e ator teatral. Somente nos anos 90 ordenou-se padre. Portanto, trato-o como padre teatrólogo Cláudio Barradas na ânsia de dar conta de suas identidades mais latentes. Realizei duas entrevistas com o mesmo, ambas no mês de maio de 2011. Após muito custo para vencer a barreira de suas desconfianças com entrevistadores, consegui sua anuência. Destilou bom humor e picardia ao narrar sobre os tempos de enfrentamentos sutis com os censores. Em uma conversa agradável, não houve preocupações quanto ao tempo.

Pela identidade de teatrólogo, ator e diretor, desde os anos de 1950 até os dias atuais, foram-lhe possíveis mediações com o regime militar a partir das agruras da censura, dos pequenismos dos censores, das inúmeras e infundadas incursões burocráticas contra a arte cênica. Mesmo não se alinhando com o pensamento de esquerda que grassava nos meios universitários nos idos dos

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anos de 1960, foi muitas vezes taxado de “subversivo mental” por conta da seleção criteriosa dos textos críticos abordados nos palcos.

Em 2002 foi ordenado padre. Sua identidade de teatrólogo, contudo, permaneceu alinhavada com este novo papel assumido por Barradas. Manteve o status de conceituado diretor e ator, a ponto de receber uma homenagem rara para sujeitos ainda vivos: o Teatro Universitário da Universidade Federal do Pará, em 19 de junho de 2009, recebeu o nome de “Claudio Barradas”. Acomoda ainda a Escola de Dança formando assim um denso complexo dedicado às artes cênicas na região. Está localizado no bairro do Umarizal, em Belém, em espaço privilegiado da cidade. Por tudo isto e pelo discurso autorizado da Universidade Federal do Pará, é possível inferir sobre a importância deste sujeito para o teatro amazônico desde o início da década de 1960, atravessando a Ditadura Civil-Militar até os dias de hoje.

Dulce Rosa de Bacelar Rocque foi a última narradora a compor esta argumentação. Sua presença tem dois vetores a serem considerados. Primeiro, pelo fato de ser mulher é bastante plausível uma vez que nas escritas acadêmicas sobre os tempos de exceção (1964-85), em especial a produção de Pere Petit (2003) e Tony Leão (2008), a narrativa feminina não é privilegiada como fonte. Segundo, após o Golpe Civil-Militar, Dulce Rosa agia por corredores oficiais, festas, instituições, prisões, etc. para arrecadar finanças para o PCB, levar recados, trocar informações. Sempre elegante pelas belas roupas e joias, cumpria o perfil de filha de classe média, agindo sem levantar suspeitas e, consequentemente, sem ser taxada de subversiva. Deste modo, foi responsável pela manutenção financeira e operacional do Partidão naqueles primeiros momentos de instalação militar no Pará.

Por conta da exitosa atuação, dos préstimos à causa comunista, Dulce Rosa foi convidada a complementar seus estudos na União Soviética. Aceitou prontamente e viajou em 1969. Após seus estudos, casou-se com um italiano comunista, constituiu família e fixou residência na Itália até 2004. Neste

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período, enviando cartas a embaixadas e jornais, não se eximiu na luta pela redemocratização do país de origem. Neste sentido, suas memórias são incomensuráveis para compreender o Golpe e Ditadura Civil-Militar a partir de uma perspectiva ainda não experimentada pela academia.

Em todos os depoentes percebi projetos pessoais para tornar públicas suas posturas políticas desde os tempos de ditadura. Assim, particularidades, que poderiam ser um amontoado de desconexos retalhos amiúde, forjaram uma manta com fartas e confiáveis costuras. Contiguamente, as memórias narradas e registradas em áudio e vídeo continham significados valiosos para compreender as experiências desses sujeitos culturais sobre ações e reações dos governantes paraenses ao longo do Golpe Civil-Militar. Esta consciência motivou igualmente todos a me subsidiarem na empreitada desta argumentação.

Nos fins da década de 1950, o PCB e demais agremiações de esquerda estavam discutindo os caminhos a percorrer para conduzir o país ao Socialismo. Defendiam o acirramento das lutas contra o imperialismo norte-americano e até contra a ordem feudal (sic) ainda existente. Os discursos reformistas, subsidiados por grupos camponeses organizados em Ligas, pretendiam a reforma agrária com urgência. Outros, alinhavados com Jango, desejavam o fim das remessas de lucros para fora do país, à nacionalização de grandes capitais exploradores. Estudantes pretendiam a reforma e democratização do ensino superior.

O Pará não estava imune a este ambiente, contraditório, mas sempre necessário. Por aqui também pulularam grupos cujos debates eram também acalorados. O movimento estudantil estava alinhavado com o partido político que melhor representava esta vanguarda: o PCB. Somava-se a este um forte grupo ligado à Igreja Católica, Juventude Universitária Católica (JUC) e outro, mais envolvido com o movimento estudantil nacional, a Ação Popular (AP). O movimento estudantil era pulsante no início dos anos de 1960.

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Organizados em grêmios ou Centros e Diretórios Acadêmicos, os estudantes produziam tabloides, como o T-UAP dirigido por José Seráfico de Carvalho. Denunciavam corruptos. Anunciavam novos tempos. Semeavam esperanças e se alimentavam de sonhos revolucionários.

Sem deixar de mencionar grupos e projetos com influência trotskista e outros independentes, havia, nos dizeres de Ruy Antonio Barata, um “projeto de autonomia” amazônica no Pará. Esta efervescência política agigantou-se com a posse de João Goulart na presidência do Brasil. No Pará, o governador Aurélio do Carmo, sempre aberto ao diálogo e expansivo na busca de apoio político, permitia-se dialogar no interior do Palácio de Governo com comunistas, inclusive. Paralelamente, uma grande campanha de demonização do socialismo movia-se por meio de empresas midiáticas, enquanto ações organizadas ou isoladas também agiam no sentido de brecar a todo custo as expansões esquerdistas. Basta lembrar o desbaratamento do SLARDES por parte dos “lenços brancos” na noite de 30 de março de 1964. Temiam pelas propriedades privadas, ameaça ao sistema capitalista e, principalmente, pela manutenção do status quo.

Nem as notícias das centenas de mortes por parte do governo da URSS arrefeceram os exaltados ânimos de uma mobilização socialista no Brasil. Jovens eram arrebanhados todos os dias para os quadros de esquerda. E na Amazônia Paraense, o ambiente global se reproduzia com tentáculos próprios.

Neste cenário aconteceu o Golpe Civil-Militar em 1º de abril de 1964. A UAP foi invadida, estudantes presos, incomunicabilidade na prisão da Gaspar Viana e 5ª Companhia de Guardas, além de torturas psicológicas. Atos Institucionais prevendo o bipartidarismo (AI-2) e o fim das liberdades individuais (AI-5) sepultaram as mobilizações democráticas. Aos dissidentes do regime, se queriam engajamento democrático em lutas contrárias ao projeto ditatorial, lhes restava a atuação pelas margens. Com manobras militares todo o rumo das vidas daqueles sujeitos havia sofrido drástica

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mudança. Compreender aquele momento era crucial para a sobrevivência na nova conjuntura.

Entre o ambiente de preocupação pelas prisões efetuadas na noite do dia 1º de abril de 1964 e os rompantes revolucionários de não fugir diante da ameaça, os narradores desta tecedura amanheceram o dia 2 de abril com a certeza de que o dia anterior seria inolvidável e ponto de partida para novos tempos.

Sinais dos novos tempos eram dados por um texto raivoso da Tribuna da Imprensa cujos discursos circulavam o país inteiro e no Pará teve ecos principalmente com a Folha do Norte. Expressava bem o projeto político dos grupos civis-militares reacionários no Brasil. Em seu âmago, toda a eiva e revolta que antagonizava com as bandeiras reformistas erguidas por Jango. Os “pusilânimes covardes”, como enfatiza a Tribuna, haviam sido devidamente “derrotados” e prestes a sofrer esquartejamento de suas imagens. E assim foi.

Nos dias e anos seguintes ao Golpe Civil-Militar, dezenas de outras matérias foram publicadas com teor tão ou mais rancoroso que o texto da Tribuna. Os narradores deste trabalho, com variantes bem próximas, tiveram que conviver com horrorosas acusações propagadas a respeito da índole e caráter. Vale reforçar que, e isso valia para todos os quadros esquerdistas, as ofensas proferidas atingiam qualquer sujeito portador de visões políticas progressistas naquele momento. Para os grupos reacionários que assumiam o poder, “comunistas” eram todos os críticos daquele modelo de desenvolvimento imposto pela ordem burguesa, patriarcal, coronelista. Assim, a imprensa midiática agia como porta voz de um projeto das elites aristocráticas do campo e cidade no Brasil dos anos 1960.

Todos, sem exceção, tiveram suas vidas radicalmente transformadas. As matérias jornalísticas, dedos em riste, comentários burlescos ao caminhar pelas ruas, passaram a fazer parte da cena cotidiana deles. Por conta disto,

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as marcas de remorsos, sofrimentos, ressentimentos, esperanças, orgulhos, altivez, estão nas narrativas, trejeitos e performances de todos.

Paes Loureiro, por exemplo, foi um dos que sofreram com a prisão apreensão do “Tarefa”, a prisão na 5ª Companhia de Guardas e, principalmente, o risco de morte pelo DOPS no Rio de Janeiro. Carrega traumas até hoje. Não era sujeito da lida e tradição política, como bem enfatizou nas entrevistas concedidas. Dulce Rosa sofreu mais com a própria ausência do país do que com as matérias pejorativas, mas mesmo fora do Brasil nunca deixou a luta pela redemocratização. André Costa Nunes, por meio de identidades alinhavadas com seringais e espaços urbanos, ziguezagueava entre um empreendimento e outro em busca de sobrevivência para camaradas do partidão. Sempre acusado de “chucro” e comunista ao mesmo tempo. Pari passu, Cláudio Barradas, nas cochias e palcos do SESI, ora gargalhava das confusões armadas junto aos censores, ora se preocupava com a possibilidade de ver-se enquadrado pela Lei de Segurança Nacional. Nas entrevistas, não deixou entrever rancores, mas fechou o sorriso ao lembrar da relação traumática com a censura. No caso do padre teatrólogo, suas fugas para não entrar em rota de colisão com o projeto de poder civil-militar estavam nos palcos e textos encenados/adaptados.

Pedro Galvão de Lima e José Seráfico de Carvalho tiveram que conviver com o espectro das prisões e violências psicológicas ao longo de 59 dias trancafiados na 5ª Companhia de Guardas. Lideravam a UAP e o T-UAP (tablóide estudantil voltado para temas do cotidiano, em especial questões políticas que pululavam naquela altura), respectivamente. Arcaram alto custo pelo engajamento estudantil, sem demonstrar arrependimentos. Assim aconteceu também com Ruy Antonio Barata, mas este estava mais habituado com os traquejos políticos apreendidos com o “velho Ruy”. As matérias veiculadas pela Tribuna da Imprensa lhe serviam de ferramentas para seguir lutando em prol do Socialismo.

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Por fim, Alfredo Oliveira, ao afastar-se estrategicamente do partido, mesmo sendo pouco assediado pelo autoritarismo paraense, sofreu nos bastidores dos hospitais públicos vendo o sofrimento e mazelas dos mais pobres impostas pelo estado. As acusações feitas por jornais lhes chegavam aos olhos e ouvidos, mas sua atuação estava para além das discussões partidárias. Era um homem dedicado ao ato mais sublime de um ser humano naqueles tempos de medos e prisões: mostrar o amor cotidianamente por meio de ações voluntariosas de solidariedade. Imposição do PCB e opção de vida.

Entretanto, apesar das dificuldades impostas pelo novo regime, em momento algum se ausentaram do embate. A maior parte das vezes, os dissidentes reagiram. Construíram artimanhas pequenas, mas engenhosas para demarcar posições. Produzindo peças teatrais com dúbios sentidos, enviando cartas a consulados e jornais, ou ainda cometendo poemas aparentemente inocentes, estes atores entraram no palco de lutas com ações sagazes o suficiente para fazer-se notar na cena. E sofrer as consequências destes atos quando flagrados pelos olhares atentos da repressão.

Se tais ações os colocaram às margens durante os tempos de censura, por outro lado, em tempos democráticos estão na ordem do dia em diversas entrevistas, rodas de conversas, palestras, com a temática da Ditadura Civil-Militar. Apesar da longa demora, com algumas dissertações de mestrado envolvendo memórias nos tempos ditatoriais, estes mesmos sujeitos saem de zonas de silêncio nas quais foram enfurnados por 20 anos.

O clima de tensão em decorrência das matérias jornalísticas, prisões, fugas, interrogatórios, censuras, ainda está latente nas seleções de cenas narradas pela memória. E assim encontram refúgio, passados quarenta e oito anos do 1º de abril de 1964, para seus sentimentos. Narrar foi, para todos, um grande prazer. Construí vínculos de amizade o suficiente para, ao reencontrá-los, ganhar afetuosos abraços e apertos de mão. Nas vezes que isto aconteceu, senti-me honrado.

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O que movia minha admiração e consequente prazer em receber atenção de tais distintos sujeitos estava claro para mim. Eu fui, e sempre serei, admirador da nobre arte de perseverar em ideais de transformação de nossa realidade para condições menos injustas de relação entre sapiens-sapiens. Todos eles se posicionaram e conseguiram mostrar identidades com nobres valores. A questão, entretanto, era outra: o que os movia a direcionar tamanha atenção a mim? Seriam as descomprometidas etiquetas da boa educação tão somente. Obviamente não descarto esta possibilidade. Mas é preciso adentrar em outra questão para entender melhor esta última inquietação desta dissertação.

Sarlo (1997) ajudar a desanuviar esta questão ao indagar sobre a existência dos resíduos do passado fazendo-se notar no tempo presente. Pois, sobre este jaez, afirmo categoricamente que por meio de derrotas seguidas de derrotas, todos os narradores chegaram a vitórias. Percebi, buscando detalhes de suas experiências de vida, o quanto sofreram por defender seus sonhos. Assim, com quedas e sofrimentos, deram visibilidades e transformaram em axiomas seus discursos e práticas externadas nos últimos 50 ou 60 anos de vida. Conseguiram, pelas trilhas democráticas, impor seus projetos de vida como verdades.

Para constatar a anuência obtida pelos narradores em tela basta ver as numerosas petições públicas de ONGs e mobilizações populares pedindo a abertura dos inquéritos militares, o julgamento e punição aos torturadores e assassinos do regime. Outro exemplo reside nos mandatos presidenciais dos últimos vinte anos. Todos, desde Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), Luis Inácio Lula da Silva (2002-2010), até Dilma Rousseff (2010-2014), foram vítimas de alguma maneira da Ditadura Civil-Militar. A última, inclusive, chegou a ser torturada fisicamente e seu algoz hoje enfrenta a Justiça para explicar-se. Os criminosos de 1964, como acusava a Tribuna, são os heróis de hoje.

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Assim, é provável que os narradores ao dedicar atenção a minha pessoa estejam ainda em plenas “batalhas da memória” (REIS, 2004). Concedendo entrevistas cuja temática envolve o passado vincado pela dor, estão operando com identidades sabiamente arquitetadas para dar vazão a seus projetos de emersão. Ou, nos dizeres de Sarlo (1997), valem-se da memória e narrativas históricas como ferramentas contra o esquecimento. Esta dissertação, portanto, é mais um ardiloso instrumento destes sujeitos que não pararam de semear perspicácias.

Por fim, além das narrativas, todos ainda operam com recordações tênues, fugazes, idas e, acima de tudo, com um bonito sonho de lutas, com grandes lições de amor e cidadania. Foram sentimentos, paixões, medos recalques, angústias, orgulhos... Mesclados em depoimentos agitados/calmos e nervosos/serenos. Em simbiose, ao mesmo tempo. Transmitir a experiência vivida por meio de sorrisos, pernas balançando, tensões faciais e toda sorte de performances do corpo e da voz são formas de compreender e explicar o golpe e a Ditadura Civil-Militar. No rufar de teóricos que se ombreiam nos EC, não me acanhei de tentar!

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“COSMONAUTAS DE OUTRO MUNDO”:

Memórias, Identidades & Encantarias na Amazônia Bragantina

Jerônimo da Silva e Silva (UNIFESSPA)

“A Viagem dos Encantados”

Olhe, eu sonhei e a noite toda saía pros cemitério no sonho e falava com pessoa em outro mundo...

Tem os incanti do vento, né? Hum... Nessa noite eu conversei com muita gente de outros tempos, sabe?

Dona Fátima

Rezadeira

Portanto, não é surpreendente que se tenha invocado viagens espirituais, feitas sem movimento relativo,

porém em intensidades, sem sair do lugar: elas fazem parte do nomadismo

Deleuze &Guattari

Mil Platôs

“Identidade cultural é um ‘tornar-se’ e não apenas um ‘ser’. Pertence tanto ao futuro

quanto ao passado. Não é algo que já exista e transcenda, tempo, história e cultura. Longe de se fixarem eternamente num qualquer passado

essencializado, estão sujeitas ao contínuo ‘jogo’ da história, da cultura e do poder. (...) As identidade

são os nomes que damos às diferentes formas como somos posicionados pelas narrativas do

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passado e como nos posicionamos dentro delas”.

Stuart Hall

Identidade Cultural e Diáspora

Parte das reflexões presentes nesse texto é resultado de um período de dois anos (2010-2011) de pesquisa realizado no nordeste paraense, em particular, na cidade de Capanema. Na época, discente do Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura na Universidade da Amazônia, percorri vilas e comunidades no intuito de conhecer histórias de vida, práticas de curas e rezas de mulheres rezadeiras178

177, na região denominada de “Amazônia Bragantina”². O objetivo inicial da pesquisa era registrar rezas e associá-las especificamente as modalidades de enfermidades recorrentes. Com o avanço da etnografia, entretanto, notei a forte presença de rezadeiras que, oriundas do nordeste brasileiro – Paraíba, Ceará e Maranhão – desenvolveram o ofício de rezas, curas e iniciação junto à ação dos encantados.

Desse modo outras questões emergiram a partir da voz das rezadeiras: como se deu a constituição de memórias e identidades de mulheres rezadeiras de origem nordestina na microrregião bragantina? Em que sentido a experiência da migração influenciou a tessitura da cosmologia179

178 dessas narradoras em práticas de rezas e curas? O que significou o fenômeno da “viagem dos encantados”?180

179 As narrativas dessas mulheres permitiram 178 A expressão “rezadeira” não é adotada como uma categoria fixa ou definida. Durante pesquisa de campo as mulheres rezadeiras e a comunidade mencionavam ainda “benzedeira”, “puxadeira”, “massagista” e por vezes, alternadamente “parteira”. Dessa forma os termos presentes no texto não induzem relações de hierarquia e especificidade. 179 Adoto o conceito de cosmologia ou astronomia plural no sentido utilizado por Neves (2009, p. 121), onde “as narrativas orais e as constelações dos índios Tembé [me] deixavam ver a diversidade cultural projetada nos céus da Amazônia. A partir daí, o céu não poderia mais ser explicado apenas pela astronomia oficial, conhecimento respaldado pelo saber ocidental. Passou a ser imperativo compreender como se organizavam estas racionalidades diferentes”. 180 Utilizo genericamente o conceito de encantado ou encantaria, tal como pensado por Prandi (2004, p. 7-9), isto é, “enunciado sob o vértice das práticas mágico-religiosas, tendo inúmeras particularidades e que estão sob constante transformação, formando a religião brasileira ou religião dos encantados”. As narradoras mencionaram entidades como “encantado”, “incanti” ou “encanterado” e em diversos momentos atribuíram a essas potências a capacidade de transitarem em múltiplas formas e dimensões.

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perceber que a constituição de uma identificação com a prática de rezas na localidade estavaassociada à força da experiência migratória.

As memórias evocadas não revelaram somente lembranças de movimentos forçados, sofrimentos, doenças e aspectos do cotidiano, mas também descreveram que apesar da capacidade de rezar ser uma dádiva de Deus, este saber era mediado pela ação e aprendizado junto às potências que habitam lugares chamados de encantarias. Diante da quantidade de referências aos encantados elencadas pelas benzedeiras passei a atentar para a forma como cada rezadeira descreveu o contato com os encantados e a relação mantida com essas entidades desde o aprendizado inicial na infância até o curso migratório para a Amazônia Bragantina, em particular, na cidade de Capanema.

A observação da cosmologia dessas mulheres resultou numa percepção dos encantados como seres capazes de transitar, entre mundos habitados por animais não-humanos, animais humanos, vegetais e minerais, bem como de deslocarem-separa outros lugaresdo território brasileiro.Respeitando a especificidade do recorte temático, notei na época a existência de encantados que possuíam cosmologias centradas no “espaço” do ar, da água e da terra, respectivamente; ou seja, tinham como centro de habitação e deslocamento essas três “dimensões”.

Esses elementos que apareciam como locais de habitação dos encantados não são pensados como estruturas rígidas e herméticas, pois em determinadas circunstâncias apareciam entrelaçados. O objetivo desse texto não seria então reproduzir as narrativas e interpretações já expostas de forma mais dilatada no texto que resultou em dissertação de mestrado (SILVA, 2011), mas, através de categorias de análise da Antropologia das Religiões, Estudos Culturais, Pensamento Pós-Colonial e aproximações metodológicas entre aportes da História Oral e etnografia, analisar como essas cosmologias apresentaram

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outras percepções de lugar, tempo e religiosidade. O nomadismo181180 desse

texto está ancorado, portanto, na adoção do caráter instável e transitório do contexto da pesquisa, de outras interpretações a partir do retorno junto a algumasrezadeiras quase dois anos após a defesa da dissertação e, obviamente, da transformação de minhas perspectivas pessoais.

O tema relacionado à “mobilidade” ou “deslocamento” de pessoas e a forma como viveram experiências religiosas através de potências ameríndias, voduns, orixás, santos e encantados na formação da sociedade brasileira tem longa historicidade nas pesquisas das ciências humanas (BASTIDE, 1971; CASCUDO 1983; NICOLAU PARES, 2007). Apesar de ciente dessas produções acadêmicas, motivado por questões metodológicas, optei por dialogar com alguns estudos sobre deslocamentos de homens e entidades em pesquisas efetuadas na Amazônia.

No contexto amazônico diversos pesquisadores apresentaram direta ou indiretamente sob outros aportes teórico-metodológicosa relação entre deslocamentos locais e trânsitos de entidades em sujeitos no interior da floresta. Wagley (1977, p. 221-229) descreveu a respeito da localidade de Itá, por exemplo, a existência de pajés extremamente poderosos denominados de “sacacas” que teriam o poder de revestirem-se de cobra grande e passar dias submersos ou em viagens longínquas através dos rios; o lugar do rio onde escolhiam para mergulhar era denominado de “porto”, sinalizando o aspecto movente dessas experiências. Em outras circunstâncias pajés utilizavam um tronco oco como túnel para acessar a morada dos encantados.

Na mesma localidade Eduardo Galvão (1976, p. 127-139) enfatizou sob a denominação de “religião de caboclo” a presença de crenças ameríndias e do catolicismo português, associadas em maior escala às características da “pajelança cabocla” registrada pelo autor. Ao reconhecer a presença reduzida de negros africanos e estrangeiros não portugueses na região e seguir 181 Refiro-me a nomadismo para enfatizar movência e desterritorialização (Deleuze &Guattari, 2012, p. 11-24) sofridas na pesquisa e escrita do texto.

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interpretações dos estudos afro-brasileiros a respeito da existência diminuta de negros na realidade amazônica, Galvão (1976, p. 116-119) observou que as transformações religiosas em Itá poderiam ter semelhanças tanto com a cultura dos índios tenetearasem território maranhense como a ocorrência de possíveis modificações no contato com o catolicismo.Reconheceu desse modo, ainda que timidamente, a força das práticas de origem afro-brasileira em São Luís a diminuição da “pajelança teneteara” na direção do rio Pindaré, área considerada de influência das religiões de “batuque” ou “tambor”.

Guardadas as especificidades de contexto histórico e campo de pesquisa, as memórias relativas ao poder e trânsito de pajés e xamãs182

181 também foram objeto de estudo em achados arqueológicos, em especial, na interpretação de cerâmicas relativas a rituais e usos do simbolismo religioso no Marajó. A análise desenvolvida por Schaan (1996, p. 123-136 & 2009 p. 69-86), além de apontar aspectos de rituais fúnebres, culto aos mortos, fertilidade e sinuosidades na organização social dessas populações, durante e anteriormente ao período da conquista europeia, apresentou contiguamente lagartos, urubus-rei, tamanduás-bandeira e principalmente cobras como símbolos associados a um sistema religioso voltado tanto para o manuseio dos recursos aquáticos enquanto signoda capacidade dos pajés de metamorfosearem-se em outros animais.

Intuir o trânsito das entidades de religiões ameríndias e africanas a partir de processos migratórios, memória e crenças na ancestralidade foi ainda objeto de reflexão em Spirit softheDeep de Seth & Ruth Leacock (1972, p. 125-169), no qual além de reconhecerem a complexa relação entre o “batuque” de 182 Apesar de reconhecer que o conceito de xamanismo tem sido repensado em outras obras para além de formulações generalistas associadas a êxtases, viagens espirituais e cura. Nesse caso, entretanto, busquei enfatizar apenas alguns aspectos indicados por Eliade (1960, p. 45), onde “el candidato se trueca em um hombre meditativo, busca la soledad, duermemucho, parece ausente, tiene sueños proféticos y, a veces, ataques. Todos estos sintomas no son más que el prelúdio de la nueva vida que espera, sin saberlo, al candidato [...] Pero se dan también “enfermedades”, ataques, sueños y alucinaciones que deciden em poço tiemplo. La Carrera de um chamán. No nos importa gran cosa saber si esto séxtasis patógenos se produjeron efectivamente, o si fueron imaginados o, por lo menos, enriquecidos ulteriormente com recuerdos folklóricos para terminar por ser integrados em la mitologia chamánica tradicional”.

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Belém e o transe, dança e ritual dos encantados em São Luís, analisaram ainda essas potências espirituais como capazes de manifestarem-se em diversas dimensões e localidades do mundo natural, daí associarem-se com pássaros, peixes, aparições incorpóreas, marujos e vaqueiros, dentre outros.

Na tentativa de esboçar o encontro das encantarias em Belém, Figueiredo (1982, p.109-111) apresentou a compreensão de que as encantarias das ditas religiões afro brasileiras poderiam ser analisadas de acordo com hierarquia, poder e influências extremamente semelhante às relações de parentesco vividas na sociedade local. Esse tipo de sistematização é visível a partir do momento em que:

Essas entidades contraem casamentos entre si – monogâmicos e poligâmicos – (poliândricos e poligínicos) ou simplesmente se ‘amigam’, dando origem a uma prole numerosa e estabelecendo um intrincado sistema de parentesco, com diversos ‘arranjos organizatórios’, onde é estabelecido um relacionamento formal ou informal entre as diversas entidades (Idem, 1982, p. 110).

Vergolino e Silva (1976, p. 54-71) em estudo sobre a Federação Espírita Umbandista e os cultos afro-brasileiros no Pará entre 1965 e 1975, analisou as relações de poder e as singularidades históricas dessas práticas religiosas no contexto da Ditadura Civil-Militar e percebeu a forte presença do Kardecismo, Catolicismo e Batuque em sintonia com as encantarias na cosmologia desses “cultos” a partir – e não exclusivamente – da “feitura” de pais de santo em Belém, Bahia, Rio de Janeiro e principalmente Maranhão, indicando, portanto, diversidade ritual no interior das casas vinculadas à Federação.

Nos idos de 1977, ao defender Dissertação de Mestrado em Antropologia Social pela Universidade de Brasília, Maués (1990) intensificou um ciclo de pesquisa e publicações fundamentais a respeito dos estudos de cura, pajelança, encantaria e xamanismo tendo como referência a microrregião do Salgado,

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nordeste paraense. Nessa etnografia as encantarias foram classificas como “gente”, isto é, os “seres humanos” são classificados como “gente comum”, “pajés”, “feiticeiros” e “encantados”. Os últimos podem ser classificados como encantados da mata (Curupira, Anhanga) ou do fundo (Caruana, Oiara Preta e Oiara Branca).

Em obra de fôlego, ainda a partir dos estudos de pajelança, cura e catolicismo devocional, Maués (1995) descreve o lugar dos encantados no espaço denominado de “superfície”/“terra” e “baixo”/”fundo”territórios abaixo da região “intermediária” – lugar de Satanás, espíritos penitentes e maus – da “zona” – região astral composta pelo Sol, Lua, estrelas, planetas, atmosfera “aparelhos” – e pelo “alto” – reino ou céu, morada de Deus, anjos, anjinhos, santos, espíritos de luz – com o objetivo de tanto observar a cosmovisão dessas comunidades como de perceber as diversas concepções de tempo e espaço expandidas no horizonte cosmológico local.

Em narrativas orais registradas na cidade de Bragança, Fares (1997) anotou as matintaspereras como entidades capazes de realizar perseguições prolongadas a caçadores, cavaleiros e pescadores. Na região bragantina registrou o ar como o espaço da presença contínua das matintas, seguido pela aparição na terra e/ou floresta, mesmo que em determinadas circunstâncias sejam invisíveis ou disformes. A pesquisa realizada por Villacorta (2000) indicou que o tema da matintaperera apareceu associado a interdições sociais e percepções locais do “fado”, “sina” ou “dom” como elementos vinculados à prática da pajelança exercida por mulheres em Colares e Itapuá.

Ao propor compreensões a respeito da pajelança e cura de mulheres a autora visualiza simetria entre o imaginário que a matintaperera exerce na localidade com aspectos tanto da cultura judaico-cristã como da cosmologia yorubá e ameríndia – estou aderindo aqui ao “nomadismo do texto” presente na argumentação de Fares e Villacorta (2011), respectivamente, quando as autoras enfatizam trânsitos das matintas a partir do lócus da pesquisa. Em

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seus estudos de doutoramento,Villacorta desenvolveu ainda na região de Colares, estudos sobre a pajé Roseana Gil e as implicações desuas experiências religiosas tendo como pressuposto o conceito de “pajelança ecológica” e “Xamanismo urbano” em Colares e na cidade de Belém (VILLACORTA, 2011). Ampliando a vivência dessas religiosidades ao perceber a conexão com o “discurso ecológico”, a antropóloga desmonta dicotomias (campo/cidade; tradição/moderno) que fraturam a realidade.

Em muitos estudos de religiosidade na Amazônia o imaginário aquático emergiu como um forte componente de comunicação entre potências de rios e florestas e o mundo humano. A concepção de que a água guarda segredos de encantados como o boto, por exemplo, desvelou a existência da “corrente dos encantados do fundo”e do olho d’água como uma porta de acesso entre os mundos conforme testificam as dificuldades apresentadas pelas parteiras descritas por Pinto (2004, p. 197-216) no Baixo Tocantins; o dom dessas benzedeiras e “experientes” em antecipar a chegada do boto na margem da localidade é tanto a garantia de proteção das jovens locais como a crença na mobilidade dos encantados em corpos de outros animais.

A busca pelo reconhecimento da comunidade, as relações de poder entre pajés, curadores, pais de santo, dentre outros foram definidas justamente pela capacidade de dominar as linhas e espaços onde as entidades se manifestavam. Trindade (2007) em etnografia percebeu que o poder de determinados pajés em São Caetano de Odivelas é associado, por exemplo, ao domínio da Linha do Ar ou do Pensamento, pois lá seria o lugar do segredo das práticas de cura. Na Vila de Condeixa, Ilha do Marajó, Cavalcante (2008) destacou as atribuições e hierarquia dos pajés – denominados de Mestre – na localidade através do conceito de xamanismo, isto é, também pela capacidade de mediar através de danças, transes e cantos a origem da vocação do religioso. Em Condeixa o Mestre de “nascença” é reconhecido tanto por trazer o dom no ventre materno, como, mesmo depois de morto, poder retornar após um ritual de “purificação” para finalizar a cura; é o caso, a título de exemplificação, do mestre Modesto,

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que através das incorporações nos rituais e memória popular tornou-se um símbolo dessa prática ao iniciar novos pajés na localidade mesmo depois de falecido.

A respeito das práticas do Candomblé em Belém, Campelo (2008, p. 29-40) apresentou – embora não trate diretamente do trânsito cósmico – aspectos da história, conflitos inter-religiosos e a importância da relação entre Belém e Salvador como fundamental para a legitimação institucional dessas práticas. Apontou ainda distanciamentos e aproximações na origem e forma como voduns, encantados e nobres do Tambor de Mina em Belém foram associados com a história do Candomblé, e, por conseguinte, da cosmologia dos orixás.

A relação entre deuses, entidades e encantados em perene transformação faz das religiões afro-brasileiras em Belém não apenas o local do encontro dos encantados, mas um ponto de fluxo constante de religiosos para o interior do Estado e outras regiões do país. Nessa perspectiva, Decleoma Pereira (PEREIRA, 2008) percebeu através de imagens de vídeo, narrativas orais e documentação escrita a chegada do Candomblé em Macapá nos anos de 1980. Tendo como pressuposto a presença anterior do Tambor de Mina, Umbanda e Cura a autora dialogou com o tema da migração para pensar narrativas e memórias que explicavam a origem do Candomblé nesta cidade através do deslocamento de pais de santo de Belém e Salvador, dentre outros. Posteriormente desenvolveu reflexões sobre o que denominou de “hibridismo cultural” no panteão dos terreiros de Macapá sem olvidar as singularidades elaboradas por esses sujeitos e as implicações que essas mudanças promoveramna sociedade local.

O trânsito de mestres, pajés e encantados em geral não são caracterizados somente pela presença de constelações cósmicas africanas e ameríndias. Durante pesquisa realizada em terreiros de Tambor de Mina, Lucca (2010) analisou a “encantaria mineira” em Belém, com destaque para os “senhores da toalha”, isto é, nobres, reis, princesas de origem portuguesa ou não que através de um circuito – assistemático – envolveu trocas e ressignificações entre as

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narrativas oraiscomo referências culturais que esboçavam parte da história do(s) cristianismo(s) na Amazônia e mediações entre o Tambor de Mina praticado no Maranhão e Belém. O estudo do elemento europeu “branco” apontou, na perspectiva da autora, para as performances corporais, roupas, danças e rituais que caracterizam o status do europeu na sociedade brasileira em relação aos “negros, índios e mestiços”,sem ignorar, entretanto, contatos e mesclas culturais junto às demais categorias de encantados existentes nessas religiosidades.

Se por um lado o status do elemento branco analisado por Lucca no contexto da “encantaria mineira” é resultado de um processo associado, dentre outros,à longa história de dominação religiosa e econômica vivenciada no norte da colônia, estando visível na escrita decronistas, viajantes, naturalistas e religiosos; por outro, a presença negra foi silenciada ou enfraquecida pela forma como pesquisadores paraenses e de outros estadosdialogaramcom obras de estudiosos como José Veríssimo e Oneida Alvarenga, conforme testificou Figueiredo (2008).

Não pretendo repetir o certeiro empreendimento deste autor ao situar o campo de estudos de pajelanças e religiões afro-brasileiras na Amazônia a partir do recorte histórico da metade doséculo XIX, bem como para desmistificara hegemonia do ideário de modernidade e civilização em Belém no início do século XX tendo como aporte da pesquisa jornais, documentos institucionais da época, textos literários e obras de pesquisadores sobre práticas da pajelança e religiosidades afro-brasileiras.Interpreto o esforço historiográfico e antropológico de Figueiredo como uma crítica ao sedentarismo, ao pensamento enraizado e à escrita que exclui o aspecto polissêmico das memórias e práticas de pajés e pais de santosno contexto de pesquisas (FIGUEIREDO, 2008, p. 126-135), isto é, enrijecendo-as na forma da letra.

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Em recentespesquisas realizadas na “Amazônia Marajoara”, Sarraf-Pacheco (2009; 2012, p. 197-226) visibilizou a presença de populações negras e ameríndias a partir do século XVII não apenas através de documentos escritos “oficiais”, notícias de viajantes ou textos de jornais. Embebido pela compreensão de que movimentos de populações denominadas de afroindígenas183

182

foram compostas a partir de deslocamentos diaspóricosextrapolando aspectos físicos, ou seja, deslocamentos de danças, saberes, formas de vestir, compartilhamento de memórias, suportes imagéticos e diversos outros agenciamentos em trânsitos e lutas engendraram a necessidade do pesquisador captar a experiência histórica desses sujeitos amalgamando o seu horizonte interpretativo a essas cosmologias para perceber o fluxo e dinâmica das “estruturas de sentimento”184

183 em territórios amazônicos.

A apresentação dos autores em tela não tem, obviamente, o objetivo de sintetizar as produções acadêmicas evocadas nem tão pouco de situar uma sequência ordenada dessas pesquisas, pois tenho consciência da ausência de autores indispensáveis num pretenso “estado da arte do tema”, como é o caso de Vicente Salles (2004), Sérgio Ferretti (1995) e Mundicarmo Ferreti (2001), dentre inúmeros outros.

A escolha desse recorte tem a ver com um tema que apareceu relativamente entre esses intelectuais, que é justamente a existência da cosmologia dos encantados tendo como vértice a experiência migratória, as memórias do deslocamento – entre“lá” e “aqui” – a intensidade do

183 Em incursões reflexivas sobre a Amazônia Marajoara, Pacheco (2010, p. 88-92) cunha o termo “Afroindígena” para visibilizar diálogos com práticas, crenças e linguagens da influência indígena e africana na Amazônia. Nesse sentido navegamos em um universo múltiplo e diverso conjugado sob os trânsitos culturais das camadas identitárias das populações amazônicas, mesclados e reinterpretados em estratégias materiais e espirituais em conexão com imagens e percepções da vida na floresta, adensando recursos locais e trocas culturais com os filhos da terra no agenciamento das lutas contra a dominação colonialista.184 A interpretação das práticas culturais amazônicas na escrita de Pacheco tem como vetor teórico contribuições dos Estudos Culturais Britânicos. O termo “estrutura de sentimento” é pensado como uma forma de articular leituras de encontros/confrontos culturais sem recair em leituras racionais/enrijecidas. Para tal a relação entre sentimento e pensamento não deve ser oposta, “mas de pensamento tal como sentido e de sentimento tal como pensado”, conforme assinala Williams (1971, p. 134).

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vooxamânico e o estado-onírico no elo de contato junto às encantarias. Dessa forma pretendo problematizar,por meio de corpos, memórias e narrativas orais das mulheres rezadeiras na “Amazônia Bragantina”,a maneira como noções de espaço e tempo são interpretadas ante a capacidade dos encantados de acompanhar, viajar e promover transformações em uma região onde ainda predominam poucas pesquisas.

Embora algumas narradoras apresentassem o termo “viagem” para designar a companhia, diálogo e curso dos encantados nas histórias de vida e desempenho do ofício de cura nesses deslocamentos, relacionei a “viagem” das rezadeiras com experiências de migração para enfatizar em distintos momentos do texto a forma como as narradoras expressavam a dinâmica do percurso tanto entre o local de origem e destino como o trânsito em si evocado nos transes ou incorporações.

O conceito de migração foi adotadocomo um processo de deslocamento de sujeitos sociais a partir não apenas de uma concepção de espaço territorial ou político administrativo, comum em estatísticas e outras formas de registro do poder público, e sim tendo em vista representações de lugar e distância concebidas em memórias elaboradas em experiências pessoais e relações de poder junto à comunidade. Tanto Albuquerque Júnior (2011) ao estudar elementos documentais, literários e impressos em geral acerca de representações construídas sobre “a invenção do nordeste brasileiro” enquanto “região”, como Lacerda (2010) ao mapear experiências de migrantes cearenses para o Pará no início do século XX - embora em perspectivas distintas - desnaturalizam o conceito de região no intento de deixar ver motivações, dramas e facetas sociais silenciadas por documentações “oficiais”.

“No Ar, na Água e na Terra”

Você acha que o mundo é só isso? Não é não [...] Hum! Se o professor visse mesmo como o céu tá cheio de alma, de bruxagem, a gente nem abria os olho [...] eles vem de toda

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parte do mundo, pra bem ou pra mal.

Dona Fátima

Rezadeira

Os cultos dos encantados não estão isolados, havendo trocas e influências recíprocas entre eles. Espalham-se por diferentes regiões do país, levados por ondas migratórias, pela mídia e pela moda, ganham novos adeptos, fundem-se em outros cultos. Também as entidades migram, são incorporadas a diferentes denominações afro-brasileiras

Reginaldo Prandi

Encantaria Brasileira

Durante os meses de maio e junho de 2010, acompanhei dona Fátima para ouvir a respeito de experiências que evidenciaram o seu papel de rezadeira. Nesses inícios de pesquisa a rezadeira alternava as narrativas entre os tempos de infância e juventude, sinalizando a forma como “recebia na cabeça as rezas”. Recordou ter nascido em Capanema, mas seus pais eram nordestinos – paraibanos –e falou sobre a infância, na Rua Sebastião de Freitas para enfatizar a presença de rios e áreas alagadas.

Tá... Olhe, minha família morava pras banda da Sebastião de Freitas (Rua localizada no centro da cidade) naquela época era só mato, mato mesmo. As casas eram tudo longe uma da outra. Mas tinha uma vizinha que tinha muita dor de cabeça, era filha do Manoelzinho, ela chorava, gritava (fala apreensiva, com muitos gestos) aí um dia – eu tinha sete anos – peguei umas plantas, uns matos que ficavam perto de casa, assim bem colado nas paredes (risos) eu não entendia de nada de cura não. Era na INTUIÇÃO (risos), mas deu certo. Passou-se, depois seu Manelzinhoia em casa pegar quase todo dia, aí minha mãe perguntava: “que

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doidice é essa menina?”o senhor sabe, né? Nessa época o tabefe comia logo, vixe... Apanhei muito por causa disso. Minha mãe era paraibana braba e não entendia de nada. Mas com tempo foi aceitando, aceitando, aceitando até chegar um tempo que aparecia umas amigas dela praeu rezar, passar remédio e tudo, foram acostumando. Eu num impressionava não, vinha na cabeça e eu haja pegar mato pisado (risos) dava certo, né?! Ai eu continuava185

184.

A narradora demonstrou grande ansiedade para falar sobre essas recordações, recompondo paisagens, personagem e situações vividas quando despertava para o poder da reza. Sobre o despertar desse “dom” assinalou que “veio um impulso, uma força ‘vindo de dentro’, e então rezei e deu certo”. Notei que dona Fátima se esforçava para expressar o que sentia, mas não encontrava palavras, percebi uma preocupação em transmitir e compartilhar comigo as experiências e a felicidade sentida. A ênfase que “não entendia de nada de cura não! Era na INTUIÇÃO (risos), mas deu certo”, reforçava a ênfase na naturalidade da reza186

185.

O ar de espontaneidade com que descreveu a experiência das rezas e cura não podia ser estendido a toda narrativa, pois o processo que a tornaria realmente uma rezadeira, ainda teria vários desdobramentos.

Mas o brabo mermo na minha vida começou lá pelos vinte dois, vinte três anos. Era casada nova – meu marido era um homem muito bom, Deus me deu presente, paciente aguentou muita coisa, muita doidice minha – tinha dois filho (Barulho das bombas da borracharia) aí eu vi o inferno! De um diapro outro comecei a ter pesadelo, desmaiava todo dia, parecia o Cão! De dia só dava tempo de dar de comer pros meus filhos, depois cai mesmo, minha mãe me acudiu muito. Tinha moleza no corpo, preguiça

185 Dona Fátima, 67 anos, depoimento colhido em Maio de 2010.186 Portelli (1997, p. 9) enfatiza a relação entre o narrar e o compartilhar as vivências como um elo de comunicação e inter-atuação durante a “entre-vista”.

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braba, fartio, estava seca em vida, estava morrendo viva... Os filhos perambulando pela casa tudo sujo, mal tratado e eu ficava no fundo do quintal de coca olhando para o tempo. Marido chegava (...). Hum! Não tinha nada feito pra ele, comida, roupa, nada! Nem sossego para o pobre187

186.

A preocupação com a família era constante. Em suas narrativas o contato com as encantarias diluíam-se no desdobramento do papel de “mãe” e “esposa”. Os papéis sociais foram desequilibrados produzindo incertezas sobre o futuro do casamento e o cuidado das crianças. Enquanto lembrava a experiência das primeiras rezas e contatos com os encantados, parou um instante, olhou-me seriamente, e com voz trêmula e gaguejante respondeu que era tudo muito confuso, mas era sonho com os mortos, bichos da floresta, espírito “perseguidor do vento”. Dona Fátima é uma rezadeiraa qual tinha experiências com visões, presságios, conversações com espíritos de noite, andanças nos cemitérios e idas a outros mundos.188

187

O fundo do quintal era o único lugar que buscava. O estar olhando para a mata, a observar o movimento dos ventos nas folhas, de costas para a família sem conseguir pensar corretamente fez com que em minhas ruminações da pesquisa interpretasse que as viagens a outros mundos afastavam dona Fátima do“seu” mundo, deixando-a imersa no diálogo com os espíritos e almas189

188.

Em alguns momentos conseguia recompor encontros com os encantados:

De noite, bem na boca da noite (madrugada) hum... O senhor não vai acreditar; um cavalo grande passava a noite

187 Dona Fátima, depoimento citado.188 Nicolau Pares (1999, p. 12) afirma que “além dessas convergências referentes à crença na feitiçaria e na possibilidade de uma pessoa poder ser perturbada pelos espíritos do mundo invisível, o índio Tupi, o caboclo e o africano Bantu apresentavam convergência numa pluralidade de outras crenças, como por exemplo, a crença na reencarnação, no olho grande, na possibilidade do espírito humano poder incorporar-se em animais ou viajar fora do corpo durante o sonho, ou na atribuição de um valor sagrado a certos espaços naturais considerados moradia de espíritos”. Tradicionalmente essas experiências alvo das pesquisas de Eliade (1960; 1991; 2010).189 A interlocutora não diferencia essas categorias religiosas, atribui especificidade e funções alternadas.

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toda se esfergando na parede roçando ao redor da casa a noite toda, comendo capim, sabe?! Depois o rezador que me ajudou a domar esses bichos falou que era o cavalo do cavaleiro, né? Diz que era pra me levar pro povo dele, né? Dava pra ouvir o barulho dele puxando capim com a boca (imita o som com a boca). E se eu lhe disser que não tinha e nunca teve um só pé de capim no meu quintal! Quase fico doida. Se não fosse um homem bom tinha me deixado, vixe! Eu via coisas, vulto... Os vento falavam comigo (...) eram vento mesmo, estavam lá, e depois “zip” iam embora. Até que um dia me levaram, e era longe, era pra banda da quinta... Sexta travessa...190

189 Andei quase onze quilômetros, parava, corria, desistia. Tava toda suja, de correr, rolar no chão [...] não sabia se era eu ou eles que tava no (meu) corpo correndo. Era uma doidice só (risos). Quando cheguei lá era uma casinha simples, bem no matagal, era chamado Zé de Deus, vivia com a irmã, dentro da casa tinha vários cestos, assim, de vidro de ervas, remédio de perder de conta. 191

190

A lembrança de um imponente cavalo branco rodeando e coiceando sua residência a digerir capim no “pé de parede” da casa é interpretada como uma mensagem do “cavaleiro”, isto é, de um encantado que cavalga em áreas descampadas em busca de desavisados caçadores e agricultores. Em Capanema outras narrativas descrevem a existência de “cavalos sem cabeça” a cavalgar em áreas de antigos cemitérios, cavalos que apareciam urrando e estrebuchando de madrugada – chamado por alguns de “diabão” – a desafiar homens armados de peixeira no terno das festas ou ainda como animais capazes de prever morte ou acidente na família do seu dono.

Essas visões abandonaram dona Fátima quando foi orientada a buscar auxílio com um antigo “rezador-pajé”. Nesse período uma amiga de sua mãe 190 Na época um Ramal de terra batida, cercada de mata fechada localizada na estrada Capanema-Salinas.191 Dona Fátima, depoimento citado.

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recomendou o “tratamento” com rezador negro conhecido como Zé de Deus. Os dias que antecederam as visitas ao famoso rezador caracterizaram-se pela intensificação dos “ataques”, entendidos pela entrevistada como resultado da raiva das entidades, “parece que eles sabiam professor”, falava olhando para as telhas da casa. Quando era marcado para que fosse à casa de Zé de Deus, dona Fátima vivia um tormento, pois ou adoeciaouacontecia alguma coisa com os filhos (baque, queda, doença), dando a impressão de que havia uma força agindo para impedir o encontro com o rezador192

191.

A narrativa de dona Fátima foi tomada por um clima de intensa agitação. Sentada no sofá, erguia e baixava os braços como se estivesse realizando exercícios físicos, olhava para todos os lados, no intervalo das frases. O humor oscilava entre risadas e lamentações altamente melancólicas. O desempenho performático da narradora ao reviver essas experiências foi reforçado, no final, pela imagem de uma senhora suada com respiração ofegante e fisionomia angustiada. A imagem de uma mulher jovem, correndo, rolando no chão, se escondendo no meio das árvores, com vestido sujo, unhas dos pés e mão fincadas de terra e casca de árvore, cabelos desgrenhados e acompanhada por familiares foi justificada em narrativas que atribuem ao percurso em que seu corpo estava “possuído” pelas entidades.

A imagem de seu Zé como um grande rezador, se contrapõe com o fato de que não viu nada de “mágico” ou “maravilhoso” nos seus feitos. Os dias em que ia à casa de Zé de Deus estão fortes na sua memória pelas conversas e trabalhos realizados. A memória construída sobre o velho rezador é a de um homem do cotidiano, o qual aprendeu suas sabedorias na relação com o mundo natural.193

192Apesar de considerar o tratamento simples, reconheceu que 192 Sobre as possessões, ou causa de doenças não naturais é importante lembrar que dependem da fraqueza ou fortalecimento da vítima, se esta tiver com o espírito fortalecido, o espírito estranho não conseguirá possuí-la. Temos ainda a crença de que o horário de meio dia e do fim de tarde é a hora de descanso dos encantados, que se incomodados podem provocar a malineza, bem como a exposição ao sol e à lua podem ser a causa do mau-olhado de lua e mau-olhado de sol. Detalhes importantes a esse respeito deve-se conferir em Maués (1990:, p. 100-120). 193 Essas experiências, adaptações e leituras que a cultura é capaz, têm estreita relação de proximidade, continuidade e transformação na forma que os homens percebem o mundo natural, como é o caso das mulheres estudadas no ritual do Sabá (GINZBURG, 1991).

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a orientação do rezador havia dado certo. As visões, os sonhos e as sensações estranhas continuaram, mas o sofrimento, os desmaios e o fartio foram cessando:

Às vezes eu ficava assim, pensando, né? “mas eu numtô fazendo nada, só aqui trabalhando”, mas eu me sentia bem. Cada dia que passava aquele sufocamento nos peito ia me deixando, sabe? Parecia que tava protegida [...] bem de início inda sentia arrepio nos braço quando pegava a estrada pra lá (casa de Zé de Deus), mas, parando de ouvir voz [...] os sopro foram acabando. Tinha dia que passava o dia todo fazendo farinha, mas tinha uma coisa, ele me botava no terreiro, pegava uns cipózinho de pé de maracujá e botava tudo ao meu redor, parecia uma cerca de cipó e falava: “não sai daí pra nada, se quiser saí me chama que eu desfaço o cercado [...] se tu pular vai morrer em três dias”. Num tinha um dia que não trabalhasse. Mesmo depois que aprendi a rezar, ainda depois de um tempão ainda ia com ele pra explicar os meus sonhos, sabe? Às vezes eu não dizia nada, mas era só chegar na porta da casa que ele já abria sorriso com canto da boca (risos), porque da outra era o cachimbo, né?194

193

Há uma tendência em pensar o tratamento de dona Fátima como uma forma de exploração ou pagamento pelos “serviços” de Zé de Deus. Mas o relato da depoente não denotou esse sentimento, compreendendo esse período como uma “época de aprendizado” e no diálogo ela diz ter aprendido lições para a vida toda... Então, o pisar tabaco, o fazer farinha, fizeram com que não se sentisse fora deste mundo, afugentando o sentimento de isolamento. Outro exemplo foia leitura posterior de D. Fátima sobre a armação de cipó em formato circular posta por Zé de Deus. No início interpretei a cena como uma forma de proteção contra o assédio dos encantados, pelo menos enquanto não fosse capaz de controlar as entidades. Em conversa realizada no início de

194 Dona Fátima, depoimento citado.

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novembro de 2012, minha sugestão interpretativa foi questionada:

Ah! A história do cipó, né? Eu era teimosa demais! Ele dizia que era porque eu não sabia o meu lugar, e como perambulava muito pelo terreiro marcou um lugar pra mim (...) era engraçado ver que o velho fazia isso com um cachorro que ele tinha, sabia? E não é que o pequeno obedecia?! O senhor já viu passarinho nascido em gaiola, né? Depois de um tempo aquilo ali é a casa dele, mesmo se sair não voa mais. Esse cachorro levava era muita cipuada. Ele tirava os cipós dava uma peia no bicho e depois colocava esse mesmo cipó de volta, que é pra justamente não esquecer. Um dia eu quase levo umas também (risos), nesse dia me disse assim: “se tu não sabe o teu lugar como é que o teu povo (os encantados) vão saber os dele”. No inicio era um cercadinho (...) depois foi aumentando, aumentando até que não colocou mais.

(D. Fátima, entrevista realizada em Novembro de 2012)

A narradora descreveu a cerca de cipó como uma estratégia didática de Zé de Deus. Nesse sentido, não se tratava de proteçãoe sim de compreender a dinâmica e movência das entidades mediante os ensinamentos do seu iniciador. O controle de si pressupunha o domínio sobre as entidades. O gradual alargamento da cerca e seu total desaparecimento ao término do tratamento não significavam uma libertação absoluta, mas o reconhecimento de fronteiras e territorialidades de encantariasque a rezadora deveria apreender para o resto da vida. Conforme recomendação de Zé de Deus a “mediunidade” deveria ser usada para rezar em outras pessoas, estabelecendo o compromisso que justificara o seu papel de rezadeira no correr dodepoimento oral.

Após a iniciação dona Fátima descreveu a quantidade de pessoas que lotavam a sua residência diariamente e enfatizou casos de doenças e a relação com os encantados do vento para manter contato com mortos e vivos.

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Sinalizando em seguida práticas de cura através do contato com pajés, pais de santo e rezadores de outras localidades mediadas pelos encantados do vento.

Faz muitos anos o prefeito de Mãe do Rio... (pensativa, esforço para lembrar) ou era do Piriá, não sei?! Hum... Sim, sim eu tinha poucos anos que estava rezando. Pois bem (...). Esse prefeito estava com mal de epilepsia, se debatendo todo e vomitando sangue demais. Foi pra Belém corrido, hum! – doze doutor na cabeceira da cama! Nada desse homem ficar bom, veja bem! A irmã dele era minha vizinha, dona Lindalva foi em casa e disse: “quero lhe pedir um favor, faça uma reza pro meu irmão. Tá mal em Belém, morre num morre, parece que não tem dois dia de vida não.” Aí eu disse: “nunca rezei pra ninguém assim não! A minha reza era muito fraca ainda” (...) pois bem, aí de noitinha comecei a rezar e falava com Deus e o santos. Olhe, eu sonhei e a noite toda saia pros cemitério no sonho falava com pessoa em outro mundo... – tem os incanti do vento, né? – Hum... Sonhei com uma mulher toda de branco que me dizia pra falar com Zé Neguinho no Maranhão. Nessa noite eu conversei com muita gente de outros tempos, sabe? Pense num rezador conhecido e poderoso-rezador popular que vivia na fronteira do Gurupi e que desfazia qualquer mal dizer! Porque o problema do prefeito era bruxaria braba. Noutro dia falei pra Lindalva o sonho e cedinho os parentestiraram ele de Belém e levaram pro Maranhão (pausa ar pensativo). Depois de uns dia a irmã dele veio em casa e disse que o home ficou bonzinho. Falou que foi só Zé neguinho bater o olho pra fala: “O senhor pode ter vinte médico... Isso é bruxaria e se o senhorquiser viver vai passar cinco dias na cidade comigo, tire essas roupa porque vou lhe limpa” disque ele tirou a roupa e o pretinho fez oração de desencanto e entregou pros bicho do mar.194

195 Dona Fátima, depoimento citado.

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A entrevistada desvelou mais um aspecto visível nas narrativas de pessoas que curavam e rezavam: a relação tida de uns com os outros – apesar de não se identificarem como grupo, comunidade ou associados – através de uma rede de “habilidade” ou “especialidade” que possuíam com um determinado tipo de enfermidade em relação a rezadores mais “fortes”. A mensagem recebida, a conversa com Zé Neguinho no “contato espiritual”para enviar o prefeito ao curador ocorreu graças à experiência noturno-onírica.

Ela não sabia se estava rezando com Deus e os santos ou se era uma revelação através de sonhos, seguido de viagens em cemitérios e aparições diversas. Lembremos que no decorrer da narrativa, mencionou os “incantes do vento” para posteriormente interromper a lógica do raciocínio e inserir fatos desconhecidos por mim. Somente após a transcrição da entrevista, dias depois, comecei a interrogar o significado, não do termo em si, mas o porquê dele estar inserido nessa situação especifica?196

195 Tendo feito o questionamento para a entrevistada, esta sorriu e disse em tom de despedida: “tem os encante meu do vento, seu menino! Sai voando, né?”.

Após reler várias vezes a entrevista e as anotações, percebi que uma das interpretações possíveis, seria no contexto da narrativauma forma de justificar a sua viagem a outros mundos, ida ao cemitérioe conversas com os espíritos de mortos, pajés e rezadores de outras localidades. O dom adquirido com os encantados do vento possibilitava para a rezadeira voar de um lugar para outro, sem restrição espacial alguma. Apesar de ter nascido no Pará, dona Fátima recordava que sua mãe sabia que desde a gestação era “acompanhada” pelas entidades. Desse modo a rezadeira passou a recriar associações entre as memórias maternas da experiência migratória e a iniciação do dom de rezar:

Quando vim do Ceará minha mãe sabia que tinha uma coisa comigo que me acompanhava desde aquele tempo. Essas coisas do vento vêm junto (...) não é que seja vento,

196 Depois de quase vinte dias, após a data da primeira entrevista, retornei com dona Fátima e pedi que me falasse sobre os encantados do vento.

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é que pra andar por aí eles viro bicho do ar (...) coruja, carniça, essas coisa. Hum! Se fosse só nos lugar que nós vive era só se mudar, né? (risos) Se nós viaja eles também viajo197

196.

Gostaria de enfatizar que o processo migratório vivido pela rezadeira foi composto a partir de elementos de ancestralidade na memória materna. Notadamente a interlocutora descreveu a migração da Paraíba ao Pará antes de ter nascido como se estivesse lá, as paredes da sala onde conversávamos transformaram-se em cenários áridos, capim, animais magros e doenças descritos com detalhe e muita emoção. A companhia do encantado representou de certa forma a construção de um sentido para o deslocamento, a noção de que apesar da transformação provocada pela migração existiu algo que constituiu o território da movência, isto é, a presença do encantado.

Essa presença construiu o “sentido” ou “destino” da interlocutora no fluir de memorias familiares e de êxtases noturnos fazendo com que o deslocamento descrito se aproxime do conceito de diáspora, tal como foi arquitetado por Stuart Hall. As questões de identidade cultural desenvolvidas por Hall (2009, pp. 25-48) nas diásporas do Caribe foram caracterizadas pelo sentimento de um “sentido” ou “destino” que revestiram o movimento não apenas pela tragédia do “desenraizamento”, mas principalmente da promessa de um retorno à terra “natal”.

A experiência da diáspora vivida e descrita por Hall (2009) fez perceber a elaboração, fortalecimento e ressignificação de identificações no ato de deslocar-se, no sentimento de estranheza que habita o estrangeiro. Assim a capacidade de estar em outros mundos e falar com pajés rezadores e pessoas de outras regiões ampliaram a possibilidade de pensar a rezadeira, no contexto cósmico do ofício mágico-terapêutico, enquanto identidade diaspórica.

197 Dona Fátima, depoimento citado.

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As memórias de dona Fátima tiveram ressonância nas narrativas de outra rezadeira bastante conhecida na região. Maria das Dores198

197 é uma rezadeiraa qual passou a rezar quando aos sete anos foi ao cemitério no dia de Finados vestida com cores fortes (verde ou vermelho), tendo visto a partir daí pessoas falecidas até a juventude. Somente após ter sido iniciada por um pajé da cidade de Bragança conseguiu compreender a ação do encantado. Nesse caso,o encantado manifestava-se através de uma jiboia que repousava nas tábuas de lavar roupa no Rio Garrafão. Havia ainda um “acompanha”, espécie de “visagem” que a instigava a não abandonar as rezas. A ação desses encantados foi acompanhada na seguinte descrição

Desses tem de todo tipo, né? Não dá pra saber ao certo qual é o incante(...) o meu é da Água, mas o “acompanha” não é de lá não. Ele é uma alma, mora no céu então não é com Deus. É como o povo invisível que anda por aí. Ele só cumpre ordem do encante do mar. De mais forte acho que o primeiro lugar é o céu, não tem que ser sabido demais! O céu não veio primeiro nas palavras de Deus?! Olhe foi assim: veio o céu, a terra e as água. Se for assim o céu é que tem a maioria.É que aqui tem muita água perto, aí tem mais d’água, né? Mas eles estão em todo lugar por que são invisível, né? Naquele (rio) Garrafão é que era. Toda vez que ia lavar roupa aparecia um ‘jiboião’ em cima da tábua de bater roupa, sabe? Saía correndo feito doida pra casa e depois quando marido ia ver não tinha era nada. Era a do encante. Tinha época que quando eu terminava de rezar ficava só catinga de cobra, ô pitiú brabo! Olha parece que eu sabia quando tinha cobra no terreno, eu sentia! Era bater o olho e encontrar quando ficava atuada minha mãe dizia que eu saía lisinha feito cobra nas maliça (risos) era uma doidice só! Tinha dia que eu tava ‘aluadinha’, era eu de um jeito hoje e depois era outra pessoa, sabe? Nós somo que nem bicho professor, a gente vive se amudando

198 Maria das Dores, rezadeira de 89 anos. Entrevista realizada em maio de 2010.

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(mudando). É isso aí, a cobra não muda de couro de tempo em tempo? Assim era eu.199

198

O poder da invisibilidade é uma forma de existência que se manifesta na maioria dos encantados, sendo também atribuído a espíritos e almas errantes. Se dona Fátima compreendia os encantados pela sua capacidade de movimentação espacial – trânsito indefinido – Maria das Dores caracterizava esses seres como relevantes por habitarem no céu e serem invisíveis: “como você sabe que eles (os encantes) sabem tudo da gente? Se você faz serviço ruim pra alguém eles sabem, se esconde coisa dos outros, a mesminha coisa. Quem vê fica doido”.

Entretanto para minha surpresa a ênfase no “acompanha” foi reduzida em sua narrativa após a chegada de mãe que solicitou,durante a entrevista, uma massagem na filha. Maria das Dores massageava e criança e didaticamente tentava sintetizar “a situação”de suas “massagens”.Utilizando a interação corpo/voz: “ó eu faço assim, tá vendo os braços? Parece movimento de cobra, né? (...) É justamente a do incante”, pôs a criança no colo e simulou massagens. O menino riu, depois se sentiu incomodado, mas a rezadeira ignorava as queixas e prosseguiu durante quase cinco minutos intercalando sincronicamente gestos e fala. Ao término da narrativa concluiu: “quando chegarem casa passe andiroba e durma de bruço, volte aqui daqui a dois dias!” foi no massagear, no fazer prático da concretude da vida, isto é, de uma “poética da Relação”200

199 que a entrevistada (re)encontra a definição de si.

Desnudar a textura, oleosidade, enrijecimento e odores do corpo do outro através das massagens permitiu a rezadeira criar formas de narração polivalentes: “quando vêm não precisa dizer nada não. Basta olhar o jeito das costelas, espinhaço, peito e quengo (cabeça) que já dá pra saber de tudo, né?” 199 Maria das Dores, rezadeira de 89 anos. Entrevista realizada em maio de 2010.200 O termo é de Glissant (2005) e preconiza um imaginário ou mentalidade onde a identidade se move na relação e na abertura ao Outro, sem, entretanto diluir-se na indiferenciação. Na esteira analítica do Pós-Colonial, Gilroy (2001, p. 33-64) questiona o monopólio da tradução da África no modelo universitário estadunidense ao propor a escrita de uma cartografia descentrada ou mesmo excêntrica em oposição a uma história cultural sedentária.

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Maria das Dores mantém viva na memória a relação entre as massagens e o “abraço da Sucuri”201

200, no qual foi envolvida às margens do Garrafão durante incorporações do encantado de cobra. Envolver, abraçar e digerir permitiram comparações entre representações do corpo da cobra em mescla com o corpo da narradora, indicandoo aspecto transformacional presente na cosmologia da rezadeira.

Por outro lado, o trânsito e a “inconstância” dessas entidades nas dimensões do ar (céu), da água e da terra, apesar de terem referências iniciais em concepções do catolicismo ortodoxo foram ressignificadas à luz de sabedorias de matrizes orais, burlando sistematizações teológicas. Inspirado em obras literárias gestadas entre intelectuais indianos comprometidos com lutas em tempos de descolonização, Bhabha nos adverte sobre a ambivalência e imprevisibilidade que sujeitos históricos atingidos por práticas colonialistas produziram ao utilizarem o discurso eurocêntrico não apenas para ultrapassar a mera reprodução desses poderes, mas, sobretudo,para construírem outros espaços férteis ao florescimento de novas cosmologias202

201.

Em diversos momentos da pesquisa a “visão de mundo” das narradoras confundiu-se com transformações na história do povoamento de Capanema.Marcada pela memória sobre a importância dos rios para as atividades da caça e pesca, esses espaços inspiraram medos e sensações no imaginário local. Segundo relatos, durante o inverno as ruas alagavam e atrapalhavam o movimento comercial. Popularesindicaram que nessas “cheias” as cobras se multiplicavam, aumentando consideravelmente o número de pessoas vítimas

201 Vemos que mesmo em contextos culturais e paisagens naturais dissonantes, a sucuri alimenta imaginários religiosos múltiplos. Nesse sentido, seguimos os caminhos trilhados por Silva (2001, p. 418) quando constata que “é interessante que as sucuris, mesmo que não pensadas como seres sobrenaturais, também são fontes de muitas histórias. As conversas sobre sucuris, em geral, são as que servem de preâmbulo para os temas relativos ao sobrenatural. É quase como se a sucuri fosse um animal intermediário entre os da terra e as ‘almas do outro mundo’”. 202 O conceito de ambivalência aqui inspirado em Bhabha (1998, p.130-131) remete as fragilidades do discurso colonial e de cosmologias colonizadoras em perceber a “lógica” e “indeterminação” de povos colonizados a partir dos encontros no contexto da modernidade europeia, assim “o discurso da mímica é construído em torno de uma ambivalência; para ser eficaz, a mímica deve produzir continuamente seu deslizamento, seu excesso, sua diferença. A autoridade daquele modo de discurso colonial que denominei de mímica é, portanto, marcada pela indeterminação”.

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de picada. Os “desavisados”, por exemplo, eram levados pela correnteza, ficando presos em cipós ou machucando-se nas pedras submersas. São várias as narrativas sobre pessoas as quais morreram afogadas nesses locais.

Se dona Maria das Dores tornou-se uma rezadeira mediante contato com almas que peregrinam nos ares e em seres metamorfoseados em cobras, dona Ângela assumiu o dom de rezar percebendo tanto o trânsito dos encantados no fluxo dos rios como na experiência de ter vivido com as entidades no fundo por dezoito dias. Dentre as rezadeiras pesquisadas na cidade de Capanema, dona Ângela alimentou um forte imaginário por parte da população a respeito de suas rezas, curas e “feitos surpreendentes”. Atualmente é uma senhora que diz rezar apenas em crianças e que se expressava com bastante dificuldade. Por ter sido iniciada através do sequestro pela encantada das águas, em Luzilândia ainda criança, dona Ângela estabeleceu estreita relação com o Rio Garrafão em Capanema.

Eu?! Tenho setenta e três anos de idade, eu fui sequestrada seis horas da tarde. Olha! Tinha dois anos quando fui sequestrada, foi em Luzilândia no Estado do Piauí. Quando assassinaram meu pai, a minha mãe ficou maluca e a mulher que tomava tomando conta de mim não ligou, quando foi seis horas que a mamãe chegou não tinha me encontrado e passei dezoito dias na mata vendo tudo quanto é coisa, aí eu pisei numa lagoa assim e doeu meu pé e abaixei assim e era uma pedra e nessa pedra eu via tudo.202

Após o período noqual esteve com os encantados na floresta, ainda na adolescência a narradora passou a ter desmaios, visões e a falar uma linguagem desconhecida por padres, pais de santo e outros curadores locais. Durante a entrevista a benzedeira denominou esse período como “época das línguas da mata”. O fim das “possessões” e a maneira como aprendeu a “controlar” os encantados se deu a partir do encontro com um conhecido padre rezador na 203 Dona Angêla, conhecida como “Maria espírita”, “Maria pajé” tem 73 anos. Entrevista realizada em 15 de fevereiro de 2010.

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região de Parnaíba, segundo dona Ângela, famoso por também ter o auxílio do “povo do fundo”.

Ao problematizar as relações entre atividades missionárias e populações indígenas com o objetivo de ressaltar novas demandas e alterações que envolveram contatos interculturais no passado e presente, Montero(2006, p. 09-66) permitiu visibilizar no conceito de mediação cultural contatos produzidos pela ação do Outro-eu do encontro, isto é, de sujeitos os quais através de “tradução inversa” se apropriavam de sentidos a partir do modo particular que enxergavam o mundo. Mesmo em contexto distinto das reflexões de Montero, ao visibilizar no padre de Parnaíba um homem dotado de saberes e poderes acerca das entidades, de realizar rezas e curas acionando outros saberes distintos do catolicismo ortodoxo e letrado, as narrativas de dona Ângela apresentaram desdobramentos de encontros e confrontos do cristianismo com outras cosmologias. As narrativas da benzedeira passaram a ser mais detalhadas quando relativas à viagem realizada do nordeste na década de 1960 para a Amazônia:

A viagem tinha muita gente, quando nós chegamos aqui era num navio super cheio de gente. Veio foi muito conhecido nosso, conheço muita gente daquelas banda do Ceará, padre Cícero, São João Batista, Juazeiro e tudo conheço. Naquela época era bom lá, só vim por causa do marido. Sim, senhor! No Piauí tinha muito trabalho, muita fartura, tinha água doce, água do mar (...) e eu tenho duas irmã e um irmão lá. Só que eu não procuro porque eu não gosto de gente que esse pessoal só quer ser!Entãoeu caio fora. Tinha até um rio aqui que se parecia com os de lá, é sim. O rio Garrafão daqui era rio fundo, lá morreu uma mulher afogada, parece que foi a cobra que mordeu, foi sucurijú. Nunca achavam, mas procuram pra lá, (reino do incante)da Mãe d’água (...) eu quando ia no rio, na beira do rio, jogava as roupa, as coisa tudo pra ela, ela era a Mãe d’água.

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Ela ficava lá, ela é a dona do rio e do mar. Tem o peixe (inaudível), tem o tubarão, tem o pacú, se você olha pra ele parece uma cobra, tem os olhão deste tamanho e o rabão, aí se for peçonha (venenoso) cê morre. A gente pensa que não? Os encante vem pra nós, se tem rio, eles te seguem.204

203

As memórias evocadas para justificar o deslocamento para a Capanema diziam respeito ao papel determinante do marido, pois havia conseguido encontrar emprego. A abundância da terra e chuvas no Piauí contrastavam com os conflitos familiares, apresentando, desse modo, outros aspectos e motivações associados ao processo migratório de nordestinos para a região, desvelando outras facetas já assinaladas por Lacerda.205

204 Do ponto de vista da relação estabelecida com os encantados, os rios de Luzilândia e Capanema foram plasmados como um fio condutor interligando o fluxo cósmico presente em memórias de tempos e espaços distintos (LE GOFF, 2003). A proximidade com as encantarias no Rio Garrafão e a prática de ofertar roupas à mãe d’água consistiu não apenas em um processo de ressignificação do espaço, mas um continuum permanente entre as entidades que “sequestraram” a narradora ainda na infância em Luzilândia aos três anos de idade e o mesmo ambiente de fluxo aquático com que “revigorava” suas rezas.

Os meus incante são os forte, né? Sempre os da água ajuda mais. Tem os da mata também, mas esses não são bom não, sei lá! Tudo que vem d’água é bom, pode ver os peixes. Já no chão tem as coisapodi (podre) das carniça, mas a sina do incante quem dá é Deus, não pode achar ruim não. Agora quando tava meio fraca e as reza não “pegava” (não tinha efeito) ia pros mato longe, na capoeira, na cabana de uns conhecidos. Passava o dia rezando e haja tomar banho nos rio afastado Quando voltava era reza tinindo. No Piauí

204 Dona Ângela, 73 anos, depoimento citado. 205 Para Lacerda (2010, p. 73-74): “Não se pode pensar o processo de migração de nordestinos para a Amazônia de forma homogênea, mas dentro de sua pluralidade, percebendo-se, por exemplo, que tipo de atividade foi desenvolvida por esse migrante, em função dos espaços que ele ia ocupando, seja nos seringais, na capital paraense, os núcleos coloniais.

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era ruim de chuva, aqui é terra d’água (riso) e haja reza!206205

Os locais de encantaria são descritos pelos “médiuns” como lugares de muita energia, de muito poder, de uma força inexplicável ou como lugares de muito mistério e segredo. Esses ambientes de correntes espirituais são associados a encontros de águas (do mar com água doce), de rios e matas, e em muitos deles existem pedreiras. Os lugares mais isolados, intocados, virgens concentram um local onde as pessoas estreitam a relação com potências de águas e florestas.207

206 No decorrer da pesquisa de campo, paulatinamente, a ênfase na força dos rios locais passa a sobrepor cenários hídricos da terra de origem.

O imaginário produzido sobre o Rio Garrafão faz com que a força das rezas seja vinculada ao período de cheias e secas, construindo uma representação de pessoa marcada pelo ciclo das águas e pela revitalização do poder de rezar irrigado pela intensidade do encontro entre os “seres do fundo” e a benzedeira.Tanto a oferenda de roupas para a mãe d’água como a busca por águas capazes de fortalecer suas rezas foram indícios de relações de troca voltadas para a consolidação de sua autoridade na comunidade.208

207

Deus acabava o mundo com água! Hoje não precisa, não.O homem faz isso de todo jeito. Pravê, né? A água tem muito de bom e muito de ruim, mas vai de quem usa né? A minha vida é vida de peixe (risos). Mas olhe bem: parto e pesca é tirar vida d’água, tem que ter ordem do encanti.

206 Dona Ângela, depoimento citado.207 Sobre a relação entre águas e encantarias em paisagens maranhenses, sinalizamos a consulta de Ferreti (2008). Destacamos em pesquisa de doutoramento realizada recentemente na cidade de Bragança, quantidade considerável de pajés e mães de santo que durante as férias viajam para o nordeste brasileiro a fim de consultar outros religiosos, tidos como mestres, pajés e pais de santo com “mediunidades” mais “desenvolvidas”. Caderno de Campo – 2013.208 Nesses caminhos é fundamental lembrar que relação entre dom e religião a partir da crítica descolonizadora de Martins (2013, p. 275-286) apresenta trocas culturais e oferendas religiosas entre povos e deuses como marcas de permutas e reciprocidades que transcendem o valor econômico e utilitário da lógica europeia, desde tempos de colonização e que a ela seguiram-se traições e violências no novo mundo. Entretanto a persistência de trocas culturais que destoam do cânone mercadológico aponta a potência de outras cosmologias. A esse respeito é válido a consulta de Mauss (2000).

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Dona Deuza

A cosmologia apresentada acima permite compreensões a respeito de concepção sobre o mundo, sua destruição, bem como da vida e da morte através das águas e da presença dos encantados como seres que transitam o fundo. Dona Deuza, uma rezadeira de 77 anos, maranhense e filha de pescadores quena juventude exerceu o ofício de parteira, descreveu seu dom como originário das águas, porém transmitido pelo vínculo materno – a mãe era parteira – tornando-a capaz de se comunicar com os encantados. Com reza considerada forte em crianças, acreditava ter a missão de expulsar as mães d’água que viviam nos rios e escondiam-se nas matas evitando que as crianças fossem sequestradas ou maltratadas209

208.

De acordo com suas narrativas as reza não se aplicavam a todas as doenças. O cobreiro210

209 e a flecha da mãe d’água preta, por exemplo, são manifestações das encantarias que as benzeduras não tinham efeito terapêutico.

Mas as reza de menino que mais dão trabalho são as de mãe d´água, hum bicha desgraçada, empezinhoas pobre das criança, são uma desgraça. Preste atenção nisso (se ajeita na cadeira, eleva o tom de voz) eu juro pelos meus neto que tão no quintal! Quando cheguei aqui nessa cidade, na época que lá era matagal era cheio delas, são bicho do mato, encante do mato, um dia fui no quintal a noite e passou uma perto de mim, primeiro é o assoviu

209 Iara, Uiara, Oiara, Eiara, Igpuiara, Hipipiara. seria vista também como uma deidade fluvial que se fundiu com as sereias europeias e deuses africanos (PEREIRA, 2001, p. 36). As cartas e crônicas dos viajantes europeus indicam as formas das divindades fluviais com aspecto pavoroso: escamas, garras de gaviões, cabeça de cachorro. Em outros relatos, porém, são identificadas como fêmeas ruivas e violentas (DEL PRIORE, 2000, p. 91-96). O termo “Oiara” poucas vezes é dito pelas rezadeiras, preferindo a denominação Mãe d’água. Percebi que não faziam distinção entre uma e outra, e que preferiam citar Mãe d’água, esta com poder para atrair e punir os incautos, aqueles que não respeitam os rios e florestas com o objetivo de preservar o seu reino. As pessoas atingidas por essas divindades poderiam ser levadas para o “fundo”, atingidos pelas “flechadas – de – bicho”, ou “mau – olhado” (MAUÉS, 1997, p. 35). 210 “O cobreiro vem sendo desde tempo remoto descrito, segundo opinião popular, como sendo uma doença que se contrai através do contato direto com roupas por onde tenham passado certos insetos ou animais peçonhentos. Caracteriza-se por erupção cutânea, acrescida de vesículas, geralmente acompanhadas de dor que, devido à sua configuração é conhecida no meio popular por cobreiro” (CAMARGO 1982, p. 1-3).

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bem fininho fiiiiu!211210 Depois elas passo. Dei de frente com

uma disse: “tu pensa que vô correr de ti é disgraça?!” ai se correu pro mato, mas era muito. E haja flechá criança, era um monte aqui em casa todo santo dia, tudo flechada.Desde esse dia coloquei um propósito no meu quengo (cabeça), “vou expulsar esses bicho dessa rua”, peguei uma garrafa de cachaça, coloquei no pé de São Benedito por duas lua cheia, coloque doze cabeça de alho preta dentro da cachaça e passei seis horas da tarde em todo quintal joguei toda cachaça lá, era quintal grande com dezesseis pé de açaí. Se eu lhe disser que com oito dia começou a cair os açaizeiro um por um, sozinho. Depois que caiu o último fomos limpar né? Hum!... Só o senhor vendo, os açaí não tinham raiz não, era tudo limpo, o chão parecia o piso dessa casa, bem lisinho, sem raiz, parecia que eles estavam colado no chão! (silêncio). Pois não era a casa delas! Elas vive nesses esconderijos de planta.212

211

Dona Deuza descreveu as mães d’água as quais se escondiam em raízes e troncos de árvores como seres capazes dehabitarem, simultaneamente, árvores, cipós, pássaros e pedras destoando da forma como a cultura ocidental preconiza a existência da estrutura e forma da matéria orgânica e inorgânica. A ausência de uma percepção de origem ou fixidez nas encantarias remetia à imagem da rezadeira atônita a passear pelo quintal em busca das raízes e com a leve sensação de que naquele local nunca houvera árvores desse porte, permitindo aproximações com o conceito de rizoma, localizado no interior dos platôs esboçados na escrita de Deleuze &Guattari213

212. Em oposição à percepção da realidade entendida como raiz, genealogia e linearidade esses autores veemo rizoma na multiplicidade, fragmentação e movência. Numa 211 Há vários relatos e produções literárias que atribuem o assobio ou apito a matintaperera, consultar, nesse sentido Fares (2008, p. 311-326.)212 Dona Deuza, depoimento citado.213 Segundo Deleuze &Guattari (2011, p.21-22) um rizoma pode ser pensado “como haste subterrânea distingue-se absolutamente das raízes e radículas. Os bulbos, os tubérculos, são rizomas. Plantas com raiz ou radícula podem ser rizomórficas num outro sentido inteiramente diferente”. Em ótica similar, Glissant (2005, p. 46-57) propõe o “pensamento arquipélago” ou o “caos-mundo”, para enfatizar imprevisibilidades de processos contínuos de crioulização.

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definição:

Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentadas explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma214

213.

Se por um lado os encantados eram compreendidos, em termos de movência e deslocamento, como entidades rizomáticas, por outro eles dependiam do cenário das chuvas e cheias para “infiltrarem-se” em corpos de plantas, insetos, animais e minerais. Entretanto interpretei o regime das águas (SARRAF-PACHECO, 2010) não como um local ou um território, mas sim como um estado, um fluxo, um cenário de transitoriedade, por isso as mães d’água não sumiram por completo ante a queda dos açaizeiros – conforme testemunho da rezadeira– mas apenas aguardaram outras cheias, fenômeno responsável pela diluição das fronteiras entre homens e encantados.

As oposições chuva/seca e Pará/Maranhão emergiram em narrativas sobre o processo de vinda do Maranhão para o nordeste paraense. Imagens do deslocamento migratório foram transfiguradas em memórias de infância para construir sentidos que explicavam o passado e o presente:

Ai, ai meu Deus! A gente saiu andando só com uns sacos de estopa na cabeça. Era minha mãe, meu pai e meus irmão tudo mais Deus no meio do mundo. Sabe que tinha horas que eu pensava que ia morrer de tanto andar, as coisas iam ficando neblinada (nublada) na minha mente, sabe? Eu via os bicho de todo tipo e os bezerrinho tudo seco comido pelos urubu, cobra de peçonha, formiga preta, calango (...) parecia que tudo ia se esmorecendo ao redor. O senhor já

214 Deleuze &Guattari (2011, p. 25-26).

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viu uma seca, professor? É o fim do mundo! – nisso eu com nove anos – os chinelo iam soltando tudo e os calos não eram nem sentido mais por nós sabe? Perdi dois irmãos que morreram de doença no meio dos chão rachado (lágrimas nos olhos); e o pior é que quando é época de São João eu me lembro de tudo! Parece que todo santo ano faço o mesmo caminho (...) é, é isso aí! Agora quando nós conseguimos pegar a buléa (carroceria) do caminhão e quando fomo chegando na Amazônia parecia uma coisa! A terra e os pezinhos de capim iam se esverdeando bem devagarzinho e quando os primeiro chuvisco iam caindo a gente se olhava no caminhão e começava a rir sozinho, sabe? Rindo do nada uns pros outros (...) mas é assim, até hoje quando passa os filme de gente viajando nas guerra, no meio do chão sem fim eu não aguento não, saio devagarzinho pro quarto e choro tanto! CHORO TANTO! Que fico com o rosto todo inchado... O que faz valia é ajudar os necessitado.215

214

Mergulhar nas memórias de dona Deuza foi uma das viagens mais emocionantes do curso da pesquisa. O tom sereno e melancólico como qual narrava, sentada em um banco de madeira, apoiada no cabo de vassoura junto à porta da sala com os netos a brincar e diante de uma televisão com programação ignorada por todos, fez-me ficar por diversos momentos em estado de letargia, como que suspenso. Na verdade, transportado pela força da narração testemunhei tanto a hegemonia do abandono, da doença, e da morte em andanças pelo interior do Maranhão até a transformação da natureza em espaço de vida e abundância refletida no esverdear da mata e na estampa no riso dos sobreviventesem terras amazônicas.

Danças, fogueiras, festas, fogos e todo cenário característico das festas juninas evocados pela narradora contrapuseram-se às

215 Dona Deuza, 77 anos, maranhense, filha de pescadores; entrevista realizada em Dezembro de 2012.

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reminiscências involuntárias de traumas pessoais,da perda de entes queridoseprincipalmentepor descortinaremmediações com trânsitos culturais e tradições de matrizes orais, tempos dememóriasque produziram formas de pensar o atual local de habitação sempre com recortes e representações do Maranhão e Pará. A movência cosmológica dos encantados e as experiências pessoais de dona Deuza convergiram para sentidos de uma existência nômade.

Seguindo orientações de Deleuze & Guattari (2012, p. 53-76) em sintonia com percepções da rezadeira percebi que o deslocamento emergiu como um movimento que ligavaum ponto a outro – mesmo quando imprevisto ou incerto – enquanto marcação básica tanto na diáspora como na migração, pois tem em vista “a saída de” ou “o retorno à”. Em sentido diverso, o nomadismo preconizava para esses autores a desterritorialização em devir; o ato de desterritorializar é vivido em qualquer lugar, assim mesmo a existência de locais marcadores ou pontos de percurso, estes são abandonados inevitavelmente, pois o nômade é um hiato. Dessa forma, o nômade vive em um espaço aberto e fluido a criar intensidades rizomáticas no lugar ou ponto (referencial) que cria para si. A memória é a potência que lança dona Deuza no abismo do nomadismo.

“Viagens Contínuas”

Eu fui pro Ceará tá com uns anos [...] mas num me acostumo mais não. É que nem passarinho preso quando se acostuma na gaiola. Um tempo desse eu fui sem enxergar, eu tive muito desgosto que eu não enxerguei a terra aonde nós morava e minha família. [...] Vixe! Tava muito mudado lá, já não era do jeito quando vi-me pra cá.

Dona Esther

Rezadeira

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Há pessoas obrigadas a viajar: os exilados, os imigrantes. Mas estas são viagens das quais não se deve rir, pois são viagens sagradas, são forçadas. Mas os nômades viajam pouco. Ao pé da letra, os nômades ficam imóveis. Todos os especialistas concordam: eles não querem sair, eles se apegam a terra. Mas a terra deles vira deserto e eles se apegam a ele, só podem “nomadizar” em suas terras.

Gilles Deleuze

Abecedário de Gilles Deleuze – “V” de viagem

As viagens são sagradas porque envolvem dramas, dúvidas, anseios, esperanças e dores, mexem com o que deixamos e com o que podemos conhecer; viagens são moedas de troca... Troca de olhares no solo das identidades. Dotadas dessa compreensão, as mulheres rezadeiras irromperam no leito dos rios, no verde da mata e na poeira das estradas como produtoras de trocas e sentidos. Suas vozes embrenharam-se nas florestas, dialogando nas margens e faces da Amazônia, para lembrarmos cenas de paisagens culturais inscritas por Sarraf-Pacheco (2006 pp. 38-39) em “cidades-floresta” nos “Marajós”.

Compartilhar as andanças e aventuras vividas em viagens, descrever cenários, pessoas, impressões são formas de manter vínculos e criar pertencimentos. Nesse sentido, o ato de narrar foi uma atualização do tempo presente capaz de incorporar/sobrepor quantidades infindáveis de experiências. A respeito da necessidade de registrar e pensar a relevância dos registros orais, segui as orientações de Bédarida (2005 p. 229) acerca da urgência e inacabamento de uma história do tempo presente.

Quando lembramos o estilo das narrativas de dona Deuza, por exemplo, vemos como as palavras são limitadas na tarefa de descrever sensibilidades de matrizes culturais baseadas em cadências corporais. No intuito de testemunhar como as encantarias sustentavam os açaizeiros no quintal, a rezadeira

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levantou-se da cadeira e seguiu em direção ao terreiro com os braços abertos, tocou nas árvores: “ó esse aqui tem raiz, né? Mas os açaizeiros eram que nem esse descampado aqui, bem lisinho”.

A entrevistada passou os pés no chão, afastou as folhas com galho de goiabeira; por alguns segundos as palavras foram emudecidas pela linguagem corporal. Percebi o clima de intimidade como terreiro, parecendo que os fatos narrados durante o tempo em que esteve sentada eram incompletos em detrimento da expansividade no cenário da mata.Durante a escrita dessas “considerações finais”, evoquei comicamente a cena do pesquisador com a câmera na mão a seguir dona Deuza no quintal. Por diversas vezes em total desconforto, tentei inutilmente não perder cenários, expressões, movimentos ínfimos.

A esse respeito, Mignolo não deixa esquecer que encontros/confrontos marcados por diferenças coloniais tecidas desde tempos anteriores permitem o surgimento de outras epistemologias emergentes caracterizados pelo conceito (perspectiva) de Pensamento Liminar.216

215 Metodologias e teorias absorvidas no seio acadêmico são postas de ponta-cabeça quando confrontadas com cosmologias desobedientes. Marieta Ferreira (1998, p. 9-11) também despertou nosso olhar para o “drama” metodológico enfrentado pelo pesquisador da história oral, que, ao conviver com as testemunhas vivas é confrontado com readaptações, contestação e redimensionamentos das experiências desses sujeitos históricos. Esse exercício denunciou o esforçodo pesquisador em refazer-se continuamente, ruminar percepção e escrita.

Estamos em concordância com Deleuze quando enuncia que os nômades “só podem ‘nomadizar’ em suas terras”, isto é, apegam-se não a um

216 Mignolo (2003, p. 9-130) compreende que a modernidade colonial se expande do século 15 até o momento inicial da globalização, construindo uma concepção de conhecimento baseado na distinção entre epistemologia e hermenêutica, subalternizando outras formas de conhecimento. Esse processo, entretanto, testemunha a emergência de outras formas de enunciação, denominado de “gnose liminar”, isto é, a razão subalterna com força, sensibilidade e criatividade específica no bojo de suas histórias locais.

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lugar específico, mas a uma representação de lugar, um ambiente nativo217216

que leva consigo, no resíduo memorial, e só passa a ser construído na medida em que o sujeito se afasta do espaço originário. Ao recolher traços, imagens, sentidos, a benzedeira costurou a sua terra natal nos quadros da memória, criou ambientes de proteção a partir de suas expectativas. Como mulheres em diáspora, as rezadeiras na Amazônia Bragantina acentuaram as relações de identificação/pertencimento através das distâncias.

A convivência com as mulheres benzedeiras propiciaram um longo processo de aprendizado voltado para reconhecer a aceitar saberes oriundos do universo familiar firmado na dinâmica do falar e ouvir, longos caminhos até a (re)educação de sentidos e sensibilidades. Percebi o estranhamento em ambientes considerados “conhecidos” que exigiram um estado de vigilância constante sobre fatos e imagens “batidos”. Esquecer os vícios do olhar “familiar” fora tão doloroso quanto aprender a maravilhar-se com paisagens emergentes218

217.

Alcançadas pela ressonância das narrativas orais, as rezadeiras configuravam suas vozes como demarcações territoriais. Com isso, elaboravam redes de contato, representações, deslocamentos e tensões no sentido de criar circuitos culturais capazes de manter relaçõesde equilíbrio com antigos “mundos naturais” (THOMAS 2010). Chamamos de viagem dos encantados também trajetórias e dinâmicas das teias orais na capacidade de interpretar a morada dos encantarias no cenário natural Amazônico. Aliás, Auxiliomar Ugarte lembra a relevância da história Amazônica como uma terra de encontros, “nascida” na troca de olhares entre estrangeiros e nativos com 217 Alertamos para uso negativo da palavra adotada na história de algumas sociedades, em especial, aqueles associados a formas de dominação, colonialismo e relação superioridade/inferioridade. Nesse aspecto, é fundamental a consulta aos trabalhos de Williams (2007, p. 288). Para ver o diálogo de sujeitos históricos na América Latina a partir da desconstrução dessas dicotomias sugiro leitura de Garcia Canclini (2008).218 “A rememoração também significa uma atenção preciosa ao presente, particularmente a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não esquecer o passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente” Interpretação conduzida por Gagnebin(2004, p. 91).

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nomes e lugares ressignificados à luz das sensibilidades/projetos de sujeitos oriundos de outra identidade histórica continental219

218.

Guiados pelas benzedeiras, viajamos pelas intrincadas redes locais e camadas da cosmologia religiosa. Nessas vozes o universo das encantarias apareciamoracomo um mundo organizado, territorializado, dividido em “Ar, Água e Terra”, semelhante a um bolo fatiado milimetricamente, para, em outras circunstâncias, emergirem como seres múltiplos carregados de hibridismo, nomadismo e com identidades costuradas por tecidos de várias roupagens religiosas220

219.

Se Ugarte registrou o encontro colonial a partir de deslocamentos de viajantes e experiências de europeus em naus ibéricas e percebeu transfigurações de imaginários de outros contatos em África(s) e Ásia(s), hoje, cosmologias forjadas através de memórias ancestrais ameríndias e entidades do panteão afro-brasileiro mescladas no corpo e na voz de mulheres rezadeiras apresentam contato com deidades, que, para dizer em comunhão com Antonacci (2013, p. 154) – ao confrontar-se com eurocentrismos na diáspora africana –superam discursos de “questões em termo de sobrevivências de traços e resquícios isolados e perdidos como naus errantes, vagando sem rumo” para deixar ver (des)centradas cartografias em cosmologias na Amazônia bragantina.

REFERÊNCIAS

ANTONACCI, Maria Antonieta. Memórias ancoradas em corpos negros. São Paulo: Educ, 2013.219 A respeito da forma como o imaginário europeu (estrangeiro) se debruça sobre “o mundo Amazônico” e suas conexões, o desdobramento histórico dessas perspectivas observamos que “aos poucos, a região Amazônica começava a ser mais conhecida pelo europeu. Porém, conforme estamos mostrando, esse conhecimento empírico era acompanhado de expectativas, cujo conteúdo se encontrava permeado de mitos, de elementos fantásticos. Por isso nas imagens cartográficas apareciam tanto as informações objetivas quanto esses elementos do maravilhoso sobre a região” (UGARTE, 2003, p. 16-17). 220 A interpretação sobre a transformação de deuses, divindades, seres incorpóreos, sobrenaturais, monstros, assombrações, aparições noturnas, suas mesclas, adaptações, resistências e hibridismos seguimos o fio condutor da escrita de Silva (2001, p. 409-419).

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PARAENSISMO AMEAÇADO:

Essencialismo em Confronto com as Diversidades Culturais na Amazônia Paraense

Mário Médice Barbosa (PPGDRGEA/IFPA)

Dialogando com os Estudos Culturais, este artigo propõe refletir sobre a tentativa de construção essencialista da identidade paraense numa busca incessante para homogeneizar a formação cultural no Pará, sobretudo a partir de Belém, frente ao processo de dissolução e crise das identificações na pós-modernidade. Numa interlocução, músicos, intelectuais e jornalistas analisam os mais diferentes aspectos da cultura paraense, devidamente inseridos no processo global de fragmentação das identidades, ampliando as disputas e tensões sinalizadoras da emergência de culturas híbridas destoando do pretenso paraensismo.

Constantemente em crise, o Pará passou por flagrante processo de enfraquecimento político e econômico, sobretudo no decorrer do projeto de modernização a partir da década de 1960, gerando sérios efeitos sociais. Defender o Pará, nessa perspectiva, passou a integrar as estratégias de visibilidades de lideranças políticas e empresariais, tornando-se uma narrativa constitutiva desse projeto, mas apesar de derrotados, continuavam em defesa dos interesses do Pará.221

220 Se essas articulações não demonstraram eficácia, só esse artefato de defesa inviabilizava qualquer perspectiva promissora. A trincheira, para ser mais resistente, tinha que contar com a engrenagem das práticas culturais.

Se a amazonidade buscou cumprir o seu papel entre a intelectualidade regional, objetivando valorizar a cultura amazônica através de suas especificidades em relação à brasilidade, um projeto cultural mais singular começou a ser desenhado entre os intelectuais de Belém, que estavam 221 Parte dessa discussão foi desenvolvida no IV capítulo da tese de doutorado em História, ver: (BARBOSA, 2010, p. 161-238).

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temerosos com os prenúncios de mudanças geradas pela modernização econômica (CASTRO, 2010). Agora, a luta tinha que empunhar uma bandeira mais específica. O Pará precisava ganhar mais visibilidade, realinhar as trincheiras e mobilizar seus defensores. Num cenário de crises e com parcas possibilidades de alterações do quadro social e econômico, o campo cultural trilhou o seu caminho, articulando e reelaborando novos artefatos para enfrentar a realidade vigente.

Jornalistas, compositores e artistas de múltiplas vertentes culturais cerraram fileiras em defesa de uma essencialista identidade paraense. Não economizaram esforços para contestar as ameaças advindas de diversos campos da cultura, nem titubearam quando a missão se revelava além das forças locais. Inconsciente ou não dessas forças, a missão era espinhosa, pois as histórias locais encontram-se articuladas com projetos globais (MIGNOLO, 2003) e as identidades estavam em crises, fragmentadas e descentradas no contexto da pós-modernidade (HALL, 2003a; 2003b).

Para elevar as angústias, as culturas estavam cada vez mais em processo de composição, híbridas, desmentindo a possibilidade de identidades homogeneizadas, autênticas, essencializadas (GARCÍA CANCLINI, 2003). Se as narrativas da nação estão atravessadas por disseminações, sobretudo pelo intenso processo imigratório global, a exemplo do Pará como fronteira imigratória incentivada pelo grande capital, as identidades originais e homogêneas perderam sua eficácia, compondo os entre-lugares da cultura (BHABHA, 1998). O paraensismo estava no olho do furacão da cultura globalizada e pós-moderna.

A dissolução do paraensismo

Intimamente imiscuída aos projetos políticos malsucedidos, gerando frustrações socioeconômicas, a cultura paraense refletiu as angústias e dissabores das identificações regionalistas, sem perder sua fundamentação.

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A rica produção musical, sobretudo o emergente rock regional do final da década de 1980 e início de 1990, acompanhou os projetos dos grupos sociais belenenses, tentando traduzir um sentimento constituído como tradição identitária. A letra Belém, Pará, Brasil, da banda Mosaico de Ravena, é um ícone dessa geração de descontentes com o processo de ameaça cultural:

Vão destruir o Ver-o-Peso

Pra construir um Shopping Center

Vão derrubar o Palacete Pinho

Pra fazer um condomínio

Coitada da Cidade Velha,

Que foi vendida para Hollywood,

pra ser usada como albergue

no novo filme do Spielberg

Quem quiser, venha ver

Mas só um de cada vez BIS

Não queremos nossos jacarés tropeçando em vocês

A culpa é da mentalidade

Criada sobre a região

Por que que tanta gente teme?

Norte não é com M

Nossos índios não comem ninguém

Agora é só hambúrguer

Por que ninguém nos leva a sério?

Só o nosso minério

Aqui a gente toma guaraná

Quando não tem Coca-Cola

Chega das coisas da terra

Que o que é bom, vem lá de fora.

Deformados até a alma

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Sem cultura e opinião

O nortista só queria

Fazer parte da nação

Ah! chega de malfeituras

Ah! chega de tristes rimas

Devolvam a nossa cultura!

Queremos o norte lá em cima!

Por quê, onde já viu?

Isso é Belém!

Isso é Pará!

Isso é Brasil!222221.

Sintonizada com as principais questões políticas e econômicas que a Amazônia paraense enfrentava, a linguagem musical traduziu suas insatisfações. Numa visão de síntese, representava boa parte dos ressentimentos acumulados contra a série de demandas frustradas ao longo do processo histórico. Embalando o modo de ser paraense no início da década de 1990, a música Belém, Pará, Brasil significava um contundente repúdio aos estereótipos dirigidos aos moradores locais e à “deformação” cultural imposta pela modernização, ameaçadora das tradições regionais.

Logo na abertura da canção, sem compor a letra oficial, externou uma singular denúncia: “Região Norte, ferida aberta pelo progresso, sugada pelos sulistas e amputada pela consciência nacional”. Numa só levada, criticou a recorrente exploração dos capitalistas do centro-sul e a homogeneizadora identidade brasileira. No embate entre tradição e modernização, a destruição do patrimônio histórico e cultural de Belém em nome do progresso, sinalizou o paradoxo vivido na Amazônia contemporânea.

O refrão ironizou a crença de que os “nossos jacarés” claudicariam nos visitantes sulistas, provavelmente, sinalizando para as versões depreciativas de 222 BELÉM, PARÁ, BRASIL, letra de Edmar Rocha e interpretada pela banda de rock paraense, Mosaico de Ravena, grupo musical que obteve grande notoriedade no Pará no final da década de 1980 e início de 1990. CD Olá Belém. Cantos do Portal da Amazônia. Faixa 06.

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que cobras e macacos seriam encontrados pelas ruas das cidades amazônicas. São estereótipos de uma mentalidade atribuída sobre a Amazônia, representativa de sua inferioridade frente à modernidade do Sul e Sudeste. Apesar da convivência com valores civilizacionais, conforme o paradigma europeu urbanocêntrico, a presença de jacarés nos espaços urbanos destoaria daquele modelo, representando a influência da natureza nesta parte do território nacional. Diferentemente das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro que há tempos já se sentiam civilizadas223

222.

As percepções desses estereótipos vinham de longa data. Movido e condicionado pelas narrativas anteriores de viajantes europeus, Alfredo Wallace ao descrever Belém nos idos de maio de 1848 ficou impressionado com a realidade encontrada. Surpreso, chegou a afirmar que “embora eu estivesse constantemente excursionando pelas florestas existentes nas cercanias da cidade, não consegui enxergar sequer um único beija-flor, papagaio ou macaco”, mesmo que depois soubesse de sua abundância. “Há que dizer, contudo, que o Pará possui pontos positivos suficientes para redimir esta cidade das acusações que acaso lhe tenhamos feito” (WALLACE, 1979, p. 19). Acreditar no que ouvia, antes de ver, ainda tinha influência entre esses viajantes do século XIX, tradição recorrente no imaginário dos primeiros navegadores dos séculos XV e XVI (SOUZA, 1986). As considerações de Wallace não foram suficientes para alterar o conjunto das imagens negativas que já se manifestava entre os estrangeiros, além de reproduzidos pelos demais brasileiros, causando a indignação dos moradores locais, externadas pelos letrados224

223.

Refutar essas imagens depreciativas, denunciar a sangria e a exploração de seus minérios e afirmar sua identidade cultural, mesmo com a pretensão de integrar a nação, mas com altivez e personalidade, conferem as possibilidades

223 Em uma situação invertida, um episódio do desenho animado norte-americano Os Simpsons retratou de modo preconceituoso o Brasil, que seria habitado por macacos, fato que gerou a repulsa dos principais órgãos de imprensa do eixo Rio-São Paulo, inclusive do presidente Fernando Henrique Cardoso.224 Sobre a presença de estereótipos na relação colonial, ver: (BHABHA, 1998, p. 105-128).

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interpretativas que a música desperta. O regionalismo é latente e incondicional. Do mesmo modo, ressaltou as particularidades culturais dos nortistas através do consumo de guaraná, porém somente na ausência da preferida e imperialista coca-cola. Tal condicionamento sinalizava a valorização dos produtos de fora, uma marca intrínseca da globalização.

Embora com o teor de denúncias e o regionalismo despertado, a Belém, o Pará e o Norte seriam (é) Brasil. Reiterar o sentido de que é Brasil, faz lembrar a tradicional enunciação de Aldebaro Klautau nos idos da década de 1960 (KLAUTAU, 1979), que objetivava sensibilizar o poder público nacional acerca da necessidade de maiores investimentos na Amazônia. Sentimento que parecia revivido pela nova geração.

Apesar do permanente ressentimento, afirmava-se a identidade regional integrada ao todo nacional, uma amazonidade ainda submissa à brasilidade. A canção é encerrada no ritmo de carimbó do grupo folclórico Tambatajá, típica estilização musical paraense hibridizado com o rock do Mosaico de Ravena, dentro da lógica do pluralismo de ritmos absorvidos da indústria cultural225

224.

Inter-relacionada aos múltiplos valores em jogo, a música passou a ser constitutiva da consciência, resistência e indignação nortista para com o descaso da federação. A importância da letra é tão referenciada, que desde 2003 passou a compor a decoração das paredes das escadarias do Centro Cultural Tancredo Neves (CENTUR), o maior espaço de pesquisa de Belém, onde diariamente circulam diversos estudantes e pesquisadores das mais variadas instituições e localidades e de estados circunvizinhos. Tornou-se um “hino” entoado pelos estudantes paraenses durante seus encontros pelo Brasil.

Constituintes da formação cultural, costumes, tradições e linguagens tornaram-se valores fundamentais na identificação paraense. As elaborações culturais, nesse sentido, refletem a realidade vivida pelos sujeitos em defesa de seus projetos, revelando as teias emaranhadas do social e significados que 225 Sobre o hibridismo cultural na música paraense, ver: (MARTINS, 2009).

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objetivam construir. Defender a cultura local integra tal vertente, a exemplo da produção do jornalista Raimundo Mário Sobral, que ao utilizar uma linguagem cômica para retratar o cotidiano local, produziu o Dicionário Papachibé, “o Livro da Língua Paraense”, como ele mesmo define226

225.

Na sua tradicional coluna, com mais de trinta anos, denominada de “Jornaleco”, autodenominada anárquico-construtiva do cotidiano paraense, que já integrou A Província do Pará, Amazônia, atualmente, encontrando-se no jornal Diário do Pará, Mário Sobral vem se projetando em ardoroso defensor da cultura parauara, palavra utilizada em detrimento de paraoara, a qual ele próprio esclarece: “Parauara é gentílico do nascido em nosso Estado. Vem do tupi para’wara, que significa o que nasceu do mar (o rio-mar). A grafia correta é parauara, em vez da espúria ‘paraoara’”.227

226 Definir a forma apropriada para denominar o modo paraense de falar já sinalizava o teor de sua exigente tarefa cultural.

A ardorosa defesa da identidade paraense ocorreu em várias frentes, demonstrada pelo grau de preocupação e enfrentamento de questões do cotidiano e costumes parauaras, aparentemente sem tantos motivos de alarde. Contudo, ganharam ingredientes polêmicos e cômicos através de sua narrativa. Um dos casos polemizados aconteceu com a questão do açaí, fruto originário de uma palmeira, com o nome científico de Euterpe oleracea, bastante consumido entre os segmentos populares, atualmente, também com grande aceitação nos segmentos sociais mais aquinhoados.

No argumento de Sobral, como “todo papachibé”, ficou “muito apreensivo” com a descoberta do produto pelos “caras da banda de lá, do chamado ‘sul maravilha’, e deu no que deu”. A consequência mais danosa foi que “as remessas para fora do Estado dispararam”. O resultado não poderia

226 A produção de Sobral já está no seu terceiro volume, ver: (SOBRAL, 1998).227 SOBRAL, Mário. Jornaleco. “Escolinha do prof. Raimundo”. Amazônia, 09.06.2005. Sobral retomou a explicação posteriormente: “gente, pelamor de Deus, anotem. Quem nasce neste sofrido pedaço do País é pauauara. Falar ou escrever ‘paraoara’ é passar atestado de burridade”. Jornaleco, “Lições”. Amazônia, 01.11.2006.

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ser outro: “o preço - cuíca - também disparou”. Em sua crítica humorada, em decorrência de seu alto consumo, ridicularizou o uso do açaí para combater todos os males, como colesterol, placa bacteriana, inclusive, na substituição do viagra. Desse modo, o produto “vai ser vendido a peso de ouro”.228

227 Nessa ironia, também alvejava o privilégio do mercado, a exemplo dos consumidores do sul maravilha, em detrimento do tradicional público papachibé.

Elevado ao pedestal de símbolo identitário do Pará, o posicionamento seria uma forma de defender o alimento típico dos paraenses contra qualquer apropriação por parte de outros estados e de estrangeiros. O exemplo sucedido com a borracha e mais recentemente com o cupuaçu, quando a marca foi patenteada por uma empresa japonesa, ainda era residual na memória dos guardiões parauaras.

Salienta-se que Cândido Marinho da Rocha, anos antes, elegeu a palmeira do açaizeiro em símbolo do paraensismo (ROCHA, 1961). Atualmente, encontra-se muito mais valorizado, visto o alto consumo com os mais diversos ingredientes: “põe tapioca, põe farinha d’água, põe açúcar, não põe nada, tu me bebes feito fruto...”, de acordo com a canção de Nilson Chaves. O açaí, anteriormente, alimento popular dos paraenses, também ganhou a mesa das famílias de maior poder aquisitivo, o que impulsionou ainda mais a sua valorização, não só cultural, mas monetária.

Do mesmo modo que em relação aos produtos típicos da terra, polemizar e lutar em defesa da língua papachibé, ameaçada de extinção, conforme seu alerta tornou-se sua bandeira de luta. Episódio que rendeu várias edições diz respeito à preservação do nome “papagaio” para o brinquedo voador de papel de seda em detrimento de “pipa”, comumente utilizada no “sul maravilha”. Elogiou, inclusive, o governador do Estado, por ter usado o termo “papagaio” em seu pronunciamento, pois não se deixou levar pelos “modismos”, não se acanhou de “ser assumidamente papachibé. Valeu, governador”.229

228 Nessa inserção de Simão Jatene, além de ser um dos principais promotores do 228 SOBRAL, Mário. Jornaleco, Amazônia: “O salto ornamental no preço do açaí”, 26.05.2004.229 SOBRAL, Mário. “O governador e o papagaio”, 15.06.2004.

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paraensismo, portanto, seria inconveniente utilizar outra denominação, integrou uma geração que usualmente denominava papagaio ao polemizado brinquedo.

Nos dias que se seguiram, a questão foi bastante explorada, inclusive com um sentido condicionante: “Amigão, se você é um papachibé de verdade, jamais empine uma pipa no lugar de um papagaio. Cada vez que faz isso você está fazendo chinar a língua paraense”.230

229 O autêntico papachibé, conforme sua orientação, não podia incorrer nessa atitude condenável, caso contrário, a cultura estadual entraria em perigo.

Com o título Língua paraense está rabiando, tratou o episódio com a dimensão de “utilidade pública” e alertou a todos que, inadvertidamente, venham a “soltar pipa” junto à rede elétrica correm dois graves riscos. “Um: levar choque. Dois: fazer chinar a língua paraense que pipa é lá pra tuas negas, moleque. O nome do troço aqui é pa-pa-ga-io”.231

230 Depois dessa insistência, redigiu uma pequena narrativa, convocando o leitor a apontar os “erros”. Em seguida, divulgou a resposta:

O erro, meus e minhas, é que os coleguinhas insistem em escrever “pipa”. “Pipa” é o cacete. Aqui, o nome do brinquedo é papagaio. Mas vai ver escrever papagaio pega mal. Os caras acham que escrever papagaio é caboquice e escrever “pipa” é muito mais “muderno”, coisa de carioca. E, pra eles, sabe como é, o carioquês é o máximo. Axi porcaria...232

231

Nesse desancar da linguagem muderna, identificada no modo carioca de falar, tão nocivo aos padrões parauaras, devido à provável influência da mídia televisiva como homogeneização cultural, buscou uma alternativa. A construção dessa linguagem não fugia ao padrão regional. Chinar e rabiar são palavras utilizadas no ato de empinar o papagaio. A primeira tem o significado

230 Idem, “O papagaio e a pipa”, 18.06.04.231 Ibidem, 30.06.04.232 Ibidem, “Leia e depois descubra onde está o erro”, 09.07.04.

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de cair, descer, perder altitude; a segunda, o papagaio fica sem direção com a perda do “rabo”, ou seja, fica rabiando, com a tendência a perder altitude, por fim, declinar. Pelo fluir das mudernas palavras, a língua paraense estava chinando e rabiando. Ademais, o papagaio é uma ave de grande abundância na fauna amazônica, portanto, nada mais condizente com a realidade vivida pelos jovens brincantes.

A temporada de férias era o momento ideal de diversão da “molecoreba”, mas representava também o tempo de novos fantasmas no céu e na terra dos paraenses. No ano seguinte voltou à carga contra as ameaçadoras pipas. O título da nota já sinaliza a intenção: É cruel: toda vez que sobe uma pipa morre um papagaio. Desse modo estaria decretada a “sentença de morte” da língua paraense. Não dispensava a mídia da crítica por não denominar os pássaros de seda de papagaio, só para demonstrar que é “muderno”, “avançado”, “carioca”, o interesse é chamar pipa. Ao abrir uma cruzada contra os setores da imprensa adeptos dessa prática, demarcava o seu campo de atuação através da trincheira do Jornaleco. Nesse pequeno espaço, a língua parauara estaria guarnecida.

A preferência pelo muderno modo de falar seria emblemática, porque revelava que a mídia, os paraenses de forma geral e o belenense em particular, “já arquivaram a língua mãe papachibé há muito, por vergonha de sua própria identidade cultural. Axi porcaria”. Se quando sobe uma pipa morre um papagaio, a queda desse brinquedo comprovava outra faceta cruel: “o que se perde também irremediavelmente são as nossas raízes. O que morre é a língua paraense”.233

232 Tal denominação não significava uma questão de menor importância.

O temor de ver chinar as raízes culturais representadas pela língua, absorveu boa parte de suas inquietações, consciente da alta relevância que possui na formação da identidade, representativa das relações humanas entendidas nas práticas culturais, mas não conseguia compreender a

233 Ibidem, 02.07.2005.

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forte influência da diversidade na era da globalização. A linguagem é uma atividade prática, constitutiva do desenvolvimento humano como cultura. Nesse processo ativo das relações humanas, “a linguagem deve ser vista então como um tipo persistente de criação e recriação: uma presença dinâmica e um processo regenerativo constante” (WILLIAMS, 1979, p. 37). A língua papachibé não estava imune e isolada dos hibridismos e diversidades culturais.

Dias depois, publicava a campanha da Infraero contra o uso da pipa nas imediações do aeroporto de Val-de-Cães. Sobral não perdeu a oportunidade e recomendou que estendesse a campanha para toda Belém: “não conta conversa e recolhe tudo quanto é ‘pipa’ que puderes”. Incentivou que fosse a “fundo” na campanha e não esquecesse, inclusive e principalmente, a mídia. Nesse intuito, redigiu uma recomendação à fala da Infraero: “- Ei, mídia, que é que há? Tua cara não treme, mana?”. Após a chamada de atenção, recomendou: “Pára com essa tua mania besta de querer parecer ‘muderna’; pára com essa história de macaquear os outros; acaba, mídia, com esse troço colonizado de querer imitar o tal de ‘sul maravilha’ e passa logo pra cá essa tua ‘pipa’, mana”. Na cruzada contra a mídia colonizada, representando todos os valores consumidos do Centro-Sul, tal atitude não poderia persistir. A identidade cultural do Pará agradecia.

Mas solicitava para relevar caso alguém empinasse um papagaio no lugar de pipa. Nesse caso, não devia se incomodar. Argumentava que papagaio só derrubava avião quando é daqueles “empinados pelo Marcos Valério ou pelo talzinho de Delúbio Soares”. Totalmente diferente, “os nossos papagaios só fazem empinar bem alto a velha e boa língua paraense”.234

233 Antenado com os fatos cotidianos de Belém e da política nacional, Mário Sobral elaborou de modo jocoso a defesa cultural paraense representada pela língua papachibé, convicto da enorme relevância de sua ação guardiã parauara.

234 SOBRAL, Mário “‘Pipas’ ameaçam o aeroporto e a língua paraense”, 26.07.2005.

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Do mesmo modo em relação à crítica ao carioquês, outra polêmica que se envolveu foi o combate ao nordestinês que as rádios estavam implantando em Belém. “O cabuloso da parada é a perda de nossa identidade cultural”. A despeito da luta e no interstício da defesa, também sobressaíam valores depreciativos e preconceituosos. Na ocasião, argumentava que não tinha inventado “nadica de nada”. Para comprovar, Sobral recomendou ao leitor ligar o rádio e ficar aguardando, que “logo começará o festival de nordestinês arretado”. Porém advertia que não ficasse “por muito tempo nessa situação”. O efeito não era aconselhável: o “troço primeiro enjoa, dá náuseas”, resultando numa “incontrolável vontade de vomitar”.235

234 Não bastava defender a cultura parauara, necessitava divulgar o estereótipo, o preconceito contra os valores nordestinos, tão disseminados nos estados do Centro-Sul, especialmente em São Paulo (ALBUQUERQUE JR., 2001; 2007), a fim de inferiorizar uma cultura que ousava ser praticada em Belém.

Não obstante atitudes dessa natureza, sua prática recebia apoio de leitores, como o de Danilo Virgílio de Mendonça, fato que o deixou “reconfortado”. Ressaltou, desse modo, “que se orgulha e se ufana e mais do que isso, tem a maior pavulagem de ser papachibé, há muito peleja pela preservação do falar paraense”.236

235 Tradição defendida, apesar de inventar uma denominação nada papachibé: Manga City, termo inglês para a “cidade das mangueiras”. Independente dessa terminologia, promover a língua paraense era a sua marca registrada. Dias depois destacou a permanência do ataque à linguagem parauara: “E o nordestinês arretado continua a grassar no rádio paraense. Pobreza de espírito, isso não tem cura”.237

236 Continuidade a ser combatida através da retomada do ataque preconceituoso.

Nessa reação ao processo ativo de hibridismo cultural que se constituía no Pará, do qual colocou em xeque suas tradições, a prática de Sobral sinalizou para questões significativas da cultura como campo de tensão social. Defender 235 Ibidem, “O nosso rádio e o nordestinês arretado”, 16.07.2004.236 SOBRAL, Mário. “Chocante: pipa deixa papachibé rabiando”, 17.07.04.237 Ibidem, 25.08.04.

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aspectos seletivos daquela linguagem tornava-se estratégico, a fim de afirmar a identidade parauara, que parecia estar cada vez mais ameaçada por forças fragmentárias atuantes entre os paraenses.

As identidades, vistas antes pela ótica da homogeneidade, estão sendo repensadas com o processo de hibridismos socioculturais, sobretudo na América Latina, a partir dos projetos nacionais de modernidade e pós-modernidade, embora com a ressalva de sua parca influência entre alguns segmentos. A convivência entre modernidade e tradição gerou conflitos em decorrência dessa prática intercultural, sobressaindo a existência de culturas heterogêneas. Canclini definiu o hibridismo como “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (GARCÍA CANCLINI, 2003, p. XIX). Situação nada recomendável para o jornalista Mário Sobral.

Combater a combinação, a nova estruturação e as práticas da língua paraense era o seu esforço, apesar de reconhecer a continuidade da ameaça cultural ao afirmar que isso não tem cura! Se não pode remediar, considerava tal atitude uma doença gerada pela pobreza de espírito dos praticantes, no caso, também dos conterrâneos. A defesa, desse modo, teria que ser redobrada a fim de impedir a disseminação do “malefício” cultural.

Aspectos desse regionalismo proposto por Sobral nos remetem ao Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre. Diferentemente do jornalista paraense, Freyre propôs preservar os valores e a tradição nordestina: região que sofria progressiva decadência econômica em relação ao sudeste e ao sul do Brasil. Além de denunciar a influência estrangeira na cultura nacional, Freyre objetivava romper com o paradigma dos modernistas paulistas. A nação, segundo o autor, teria que ser reconhecida e formada a partir da região (FREYRE, 1967).

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A temática da linguagem, além de forte conotação política238237, tem uma

representativa significação cultural. Foi o que constatou a pesquisa de Amarílis Tupiassu, professora aposentada de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Pará (UFPA). Segundo Amarílis, seria “principalmente nas brincadeiras infantis que se percebe como a linguagem regional sofre alterações no seu uso, influenciadas pela globalização e indústria cultural”, a exemplo do programa infantil da Xuxa.

As pequenas transformações ocorreram com maior velocidade nos últimos 50 anos através do nascimento e expansão da televisão, a qual invadiu a maioria dos lares brasileiros. Na televisão, os maiores vilões da fala seriam os diálogos das telenovelas, “que na maioria das vezes adotam o modo de falar de paulistas e cariocas como linguagem padrão”. Assim, tal padrão tem gerado um “grande prejuízo, porque em geral, essas novelas seguem a tendência do processo de globalização, que é a homogeneização daquilo que é visto e falado”. Por conseguinte,

Alterou nomes de objetos da forma como eram conhecidos no Pará e ainda popularizou erros de fala que antes o paraense não cometia, como a troca do verbo que deveria ser utilizado na segunda pessoa pelo verbo da terceira pessoa. “Antes, quando quase todo o Brasil usava o você para associar ao verbo na terceira pessoa, o paraense utilizava bem as expressões: ‘tu falaste’; ‘tu foste’; ‘tu comeste’. Hoje, isso foi substituído por ‘tu falou’; ‘tu foi’; ‘tu comeu’, que é a forma como se fala no Rio de Janeiro, São Paulo e na maioria das telenovelas brasileiras, cujas produções são centralizadas na região sudeste”.

Apesar de reconhecer que a linguagem “não é um processo estático e que sofre mudanças”, reiterou que essas transformações estão num processo bastante acelerado, afetando “muito mais as nossas manifestações

238 Segundo a reflexão de (STEINBERG, 1997), a língua é um complexo problema relacionado ao poder político, (Idem, p. 135-248).

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e peculiaridades regionais”.239238 Em suma, determinadas tradições paraenses

viram-se questionadas por forças que fragmentavam seus valores hegemônicos ou supostamente homogêneos.

Uma delas é o “caboclês”, popularizado pela atriz Natal Silva, que interpreta a personagem Maria Cametá, defendendo a necessidade de utilizar a linguagem do caboclo nas instituições de ensino. “A gente não aprende o português e o inglês? Então por que não preservar o regionalismo, para que ele não corra o risco de desaparecer? Eu vou ainda mais longe. Acho que o caboclês deveria ser ensinado inclusive nas universidades do Pará”.240

239

De uma especialista em linguagem a uma atriz praticante de um falar característico do caboclo amazônico, reside a preocupação com a preservação da linguagem como prática cultural em meio ao processo de diversidade cultural. A opinião foi também subscrita pela ex-senadora Ana Júlia Carepa (PT-PA) ao avaliar o projeto da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) que defende um maior espaço para a produção regional na televisão aberta brasileira. “O sotaque do paraense é diferente do sotaque do carioca, do sulista. A cultura e a produção cultural é diferente em cada lugar e é necessário valorizar isso”.

Após a afirmação da então senadora, acrescentou alguns fatos preocupantes: “Paraense fala ‘tu vais’, ‘tu foste’. Só paraense fala assim, mas já vemos crianças no nosso estado falando ‘tu vai’, ‘tu foi’, ‘tu viu’. Isso por que ele aprendeu na TV, por que ele não vê a sua própria cultura”.241

240 Em meio à dissolução das identidades locais no contexto de crise do Estado-Nação, preservar traços da cultura regional conformou um dos paradoxos da globalização. O global, o nacional e o regional entrelaçam-se, num jogo de forças, no qual projetos globais são efetivados no local, mas este último, tentando garantir e fortalecer suas identificações. As ações da professora e da

239 O Liberal. “Cadê meu caboclês? Caderno Cartaz, 21.08.2004, p. 02.240 Idem.241 TV Aberta. Ato defende projeto de cotas para produção local e independente, 20.04.2006.

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parlamentar convergem na defesa desse projeto cultural.

O tom alarmante de Amarilis Tupiassu e Ana Júlia, reforçado pela defesa do caboclês da atriz Natal Silva, no entanto, é amenizado pela professora Rosa Assis, pesquisadora da obra do romancista Dalcídio Jurandir. A influência da televisão numa possível “uniformização” da língua e da cultura brasileira aconteceu, “mas apenas num primeiro momento”. Acrescentou que “hoje todos querem voltar ao regional, ao único, ao exclusivo. Com isso, há uma natural revalorização do ser exclusivamente paraense”.242

241 Se a ameaça ocorreu no início da emergência televisiva, Rosa Assis reconhecia, por sua vez, a série de práticas de preservação dos valores locais durante a maior veiculação do paraensismo, no período de produção de sua análise, que parecia barrar aquela dissolução cultural.

Valorizar e preservar as especificidades do ser paraense, portanto, eram caminhos a serem adotados. Mais uma vez Mário Sobral tinha a solução. Para impedir que a interjeição “égua”, palavra “genuinamente paraense” fosse apropriada por “nossos irmãos de outros estados”, propôs “que se crie sem mais perda de tempo o Dia da Égua, um dia inteirinho para se festejar a nossa palavrinha mais querida e mais utilizada”. E para os que discordam de sua idéia, retrucou ao seu modo: “nem parece que és paraense, égua de ti!!!”.243

242

Atento e antecipando-se às possíveis ameaças adventícias, fruto de antecedentes perigosos, legislava em defesa do patrimônio cultural parauara, consciente da importância em afirmar uma palavra genuinamente falada no Pará. Numa escala de importância a palavra égua tem a mesma dimensão do meu e nossa paulista e uai mineiro, portanto, merecia um data comemorativa.

Em sua quixotesca campanha pela língua parauara, contudo, lamentou que ela “está na UTI”. A constatação ocorreu ao informar que alunos de uma escola do Tapanã, bairro periférico de Belém, receberão aulas de inglês e

242 O Liberal. Caderno Magazine, “Dalcídio, um gapuiador da linguagem”, 24.07.05.243 SOBRAL, Mário. “É hora de criar o Dia da Égua”. Amazônia, 30.03.05.

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francês, além da promoção de intercâmbio com alunos da Guiana Francesa. Sobral elogiava a iniciativa pela importância dessas línguas para a formação educacional da juventude, especialmente numa sociedade globalizada. A experiência vivenciada com estudantes durante a realização de uma palestra sobre a Língua Paraense, contudo, lhe causou grande apreensão.

Ao finalizar a atividade com uma sabatina, munido de exemplares de seu Dicionário Papachibé, ficou perplexo com o resultado: “Gente, foi de dar dó. Dava impressão que eu estava apresentando pra eles um idioma estrangeiro ou um dialeto de algum lugar remoto que eles jamais tivessem ouvido falar”. As palavras utilizadas eram do que de “mais puro e autêntico” da fala paraense. “Saí do encontro na maior deprê constatando aquilo que eu mais temia: a Língua Paraense está na UTI, mais pra lá do que pra cá”. Nesse estágio da UTI, portanto, a morte da língua estava mais próxima. Ressaltava que falar francês, inglês, espanhol é “pai-d’égua”, mas seria “mais pai-d’égua se os nossos jovens estudantes também tivessem pelo menos algumas noções da língua de sua terra”, antes que ocorra sua extinção244

243.

O ser paraense, nesse modo proposto, estimularia e exigiria o sentimento de lealdade de seus pares. Apontaria para um projeto unitário e seletivo, com a desqualificação de qualquer atitude diferenciadora no entretecer do processo cultural. Se a diversidade e a hibridização da linguagem não eram recomendáveis, muito menos aceitável seria o princípio da uniformização, de acordo com aquelas produções denunciadas. A alternativa consistia em estimular a singularidade do falar papachibé, uma forma de mantê-la viva como prática cultural.

Mas o jornalista não estava só. A iniciativa era subscrita pelo colunista social Jair Bernardino ao reconhecer que foi “muito boa” a palestra de Sobral, quando “defendeu o modo de falar da nossa gente ameaçado pelo processo de alienação cultural”. Bernardino concordava com o confrade e se incluía

244 Idem, “A língua paraense está na UTI”, 20.04.2005.

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entre os que “defendem a preservação do nosso linguajar”. Pregava o fim da “invasão cultural” e a necessidade de “ter a nossa identidade” no intuito de “manter sempre vivo o sentimento paraensista”.245

244 A linguagem como prática cultural não podia ser menosprezada enquanto meio de manutenção da identidade paraense. Tanto Sobral quanto Bernardino viviam o contexto do afloramento do paraensismo, sendo mais um motivador dessas narrativas eivadas de pertencimento.

Embora sua bandeira de luta em prol das tradições paraenses esteja alicerçada em aspectos culturais, a denúncia econômica e política também fora reiterada, conforme a ocorrida com a “pá de cal” no desejo de ressurgimento da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, pelo ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes. Dessa feita, registrou-se “mais uma que a ‘madrasta’ União arrocha pra cima de nosso Estado. Valha-nos, quem?”.246

245 Ainda residual na memória estadual, a escrita remontava ao velho ressentimento regionalista, já que atuou em nome de nosso Estado, mais uma vez prejudicado pelo malvado poder central. E o pior, não havia a quem recorrer.

Se o escritor Orlando Moraes afirmou na década de 1960 que a Amazônia era uma filha enjeitada do Brasil (MORAES, 1960), para Sobral a União era uma madrasta em relação aos interesses do Pará. Nos dois casos, a rejeição e a maldade (símbolo da madrasta perversa, má), parecem representar essa relação paternal do Brasil para com os amazônidas ou maternal da União para com os submissos paraenses. O enjeitamento, nesse caso, tinha princípios de continuidade e permanência, numa configuração da narrativa regionalista, indissociável da identidade amazônida, paraense, em particular.

Estas últimas reflexões remetem-nos para o polêmico pronunciamento da narrativa do jornalista Orlando de Moraes e do deputado federal Nicias Ribeiro (PSDB). Anteriormente, a Amazônia fora representada como uma filha 245 BERNARDINO, Jair. “O nosso linguajar”. O Liberal, 13.04.2005.246 SOBRAL, Mário. “Baixo astral”. Amazônia, 14.05.04.

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enjeitada, depois o Pará passou a ser membro do Brasil por sua opção.247246 Por

último, o Pará tornou-se filho da madrasta União. Relações divergentes, mas com significados convergentes de uma tensa relação paternal, a qual convertia a Pátria em “padrasta”. No último caso, a decisão da adoção do Pará não teria partido do Brasil, haja vista que a intenção de integrar a família brasileira partiu dos paraenses. Mais um destaque para afirmar a singularidade, o paraensismo das elites belenenses.

A identidade a ser defendida, no caso, a proposta de Sobral, guarda determinadas especificidades, pois não se restringiu a combater cariocas, paulistas ou a União, mas também, propôs-se a contestar a influência da cultura nordestina entre os parauaras. As ameaças vinham de várias direções.

Nesse processo desestabilizador, a estrutura do que se reconhecia como cultura paraense era alvejada por forças heterogêneas e fragmentárias. Acrescente-se que ao defender o retorno da SUDAM, não foram registradas as atitudes indevidas na utilização do patrimônio público promovido por segmentos empresariais e políticos da região. Fator preponderante e estopim para que a União decretasse a sua extinção, em 2001.248

247

Mário Sobral, fiel ao seu papel de guardião, informado pelo cotidiano de Belém, começou uma nova campanha em defesa do tacacá249

248, a partir do momento em que percebeu a presença de baianas em alguns pontos turísticos da cidade, em especial, no arraial de Nazaré, vendendo acarajé. Mas não existiam tacacazeiras. Numa esquina, perto de “nossa padroeira” e por onde passavam os turistas, “uma baiana com sua farta e bem sortida banca de

247 O discurso de Nicias Ribeiro na Câmara Federal questionou a decisão da Adesão ao Império do Brasil, em 1823, foi publicado com algumas alterações em O Liberal, com o título: “Brasil por opção”, Artigo do Dia, 22.08.2005, p. 02.248 Esta não foi a primeira denúncia que levou a extinção do órgão federal, pois foi um dos argumentos para o aniquilamento da SPVEA e a transformação na SUDAM, em 1966.249 O tacacá é produzido com a goma de tapioca, tucupi (um subproduto da mandioca), acrescentado de jambu, camarão seco e pimenta de cheiro. A iguaria é servida em cuias, um utensílio típico do artesanato paraense. O tacacá, tradicionalmente, é tomado na rua, geralmente no final de tarde, nas barracas espalhadas pelas principais ruas da cidade, sobretudo, no centro.

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petiscos”, devidamente “caracterizada de baiana” vendia suas guloseimas.250249

A terrinha boa não era a Bahia, segundo a ironia de Sobral, “é a nossa”, porque uma baiana “bota a banca numa boa” num dos “points mais nobres” da cidade sem preocupação com as autoridades. As vendedoras podiam até negociar em “paz”, mas ocorreria a mesma tranqüilidade se uma tacacazeira botasse banca de tacacá no Pelourinho?251

250 No ano seguinte, ainda no clima dos festejos do Círio, informou sua observação: “No arraial de Nazaré baiana paramentada de baiana, pode né? Tacacazeira que é bom, nem pensar...”.252

251

Parecendo sensibilizar a sociedade, o Conselho da Mulher Empresária elaborou o projeto “Mulheres Empresárias da Região Metropolitana de Belém”, em parceria com o Sebrae, que pretendia incrementar os negócios das tacacazeiras, com cursos de qualificação, seminários de associativismo e corporativismo, além da intenção de padronizar os pontos de venda e criar uniformes. Para coroar, havia o projeto do tacacá ser tombado como patrimônio nacional.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), através do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, realiza desde 2003 um inventário sobre os principais aspectos da iguaria, como origem, modo e importância cultural, que são exigidos no processo de tombamento de bens imateriais. O objetivo visava proteger o significado cultural da iguaria “típica da culinária paraense”, ressaltou Maria Dorotéia de Lima, a superintendente do IPHAN no Pará.253

252

A dinâmica do regionalismo, sem restrições aparentes, alastrava-se em múltiplos campos sociais, demonstrando a emergência desse modo de pertencimento, inclusive, durante o processo de globalização. No alargamento cultural, entre outros valores, se o futebol é um elemento indissociável na 250 SOBRAL, Mário. “O acarajé já substitui o tacacá, meu rei”. Jornaleco. Amazônia, 21.09.2004.251 Idem.252 SOBRAL, Mário. “Arraial”. Jornaleco. Amazônia, 21.10.05.253 O Liberal. “Marketing se une à tradição do tacacá”, 09.03.2006; ver também sobre o projeto de patrimônio imaterial: Amazônia. “Tacacá ganha status de patrimônio”, 19.03.2006.

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formação da identidade nacional, no caso do Pará, também sinaliza a dimensão de outras experiências incorporadas como identificações, balizadoras das tensões que teimavam em aflorar, seja no presente, seja na ligação com outras temporalidades ainda residuais na memória.

Ao recorrer à tradição que “desde a Independência do Brasil”, o povo paraense tem sido relegado à segunda categoria, sempre preterido em relação aos interesses e vontades das elites do Sul e Sudeste, a carta do leitor de O Liberal, Joel Carlos de Lima destacou a discriminação sofrida pelo futebol paraense. Os “titãs” Paysandu e Remo são considerados “‘Times de Várzea’ para os membros do ‘Clube dos Treze’ e para a própria imprensa nacional que, ao narrar um jogo, torce sistematicamente por times sulistas”. Do grupo de clubes hegemônicos do futebol brasileiro às transmissões televisivas realizadas pelas grandes redes de comunicação centradas no Rio de Janeiro e São Paulo, esse jogo não poderia continuar. Em vista dessa situação, reagir era a solução mais conveniente:

Os interesses do Pará estão em jogo, literalmente. Os interesses do futebol paraense estão em jogo. Que o guerreiro sangue cabano possa correr no corpo dos ‘soldados alvi-celestes e azulinos’ dentro de campo, para que no próximo ano o Pará tenha os seus dois titãs na elite do futebol brasileiro, merecidamente.

A carta foi motivada em decorrência de uma punição sofrida pelo Paysandu Sport Club imposta pelo STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva) com a perda de 08 (oito pontos) no Campeonato Brasileiro da 1a Divisão de 2003 por suposta utilização de jogadores irregulares. A partir dessa pena, além de beneficiar alguns clubes tradicionais e influentes no cenário nacional, como Corinthians e Fluminense, membros do Clube dos Treze, o Papão passou a correr sério risco de rebaixamento para a segunda divisão. No caso do Remo, estava disputando as semifinais da segundona, por isso também teria “que se cuidar” para não ser “garfado” na tentativa de ascender

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para a divisão de elite254253.

O jogo mais importante, agora, era lutar em defesa do Pará, que estava ameaçado pelos interesses do futebol nacional, definitivamente distanciado dos projetos defendidos pelos clubes paraenses. Nessa modalidade de confronto, valia até se inspirar no espírito guerreiro cabano, tanto dentro como fora de campo.

Em clima do maior festejo religioso regional, o leitor-torcedor do Paysandu, Raimundo Nazareno, afirmou que o Papão se tornou o “pato” do Círio, quando o STJD “cozinhou” antecipadamente o julgamento.255

254

Incomodado e em busca de culpados, apontou a imprensa paraense que “não consegue ser bairrista em tema de futebol”, além dos dirigentes da Federação Paraense de Futebol. Depois dos culpados internos, fulminou as motivações do distante Centro-Sul: “Talvez seja por causa da imprensa do Sul que, com suas idéias de colonialismo interno, julga-se no direito de tratar o Paysandu como time estrangeiro”. Nessa cruzada contra a mídia colonizadora, ainda desferiu sua artilharia contra o STJD por indicar dois auditores de São Paulo, quando o maior interessado com o resultado negativo para o clube paraense era o Corinthians.256

255 A decisão, nesse sentido, perdia a credibilidade.

A denúncia, contudo, também perde a credibilidade quando se invertem as posições hegemônicas. Ao refletir acerca das disputas internas do futebol paraense, o jornalista Carlos Ferreira destacou uma prática inversa da sucedida no cenário nacional. Nessa relação de forças, “quem tem mais pode mais”, no Campeonato Paraense, Remo e Paysandu “usam a submissão da FPF para pintar e bordar com os demais clubes”. Numa escala diferente, no caso, no Campeonato Brasileiro, os clubes “se dizem vítimas da CBF, pela

254 O Liberal, Voz do Leitor, “Futebol discriminado”, 01.09.2003, p. 06.255 A utilização do pato, assim como a maniçoba, é uma das tradições do festejo religioso durante o ritual de almoço do Círio, especialmente acompanhado com tucupi, daí o termo “cozinhar o pato no tucupi”.256 SILVA, Raimundo Nazareno Falcão de Almeida. “Papão, o ‘pato’ do Círio”. O Liberal, Voz do Leitor, 28.09.2003, 06.

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inferioridade na relação de forças”. A estratégia tem uma finalidade: “Quando usam e abusam da força política no campeonato estadual, Leão e Papão compensam seus erros. No nacional, fazem discurso de vítimas para transferir responsabilidade”.257

256 No desnudamento dessas práticas, o regionalismo, afinal, possuía múltiplas facetas, dependendo do tabuleiro armado contido nos interesses em jogo, que ultrapassava as quatro linhas de campo.

Se os discursos políticos e econômicos foram tradicionalmente utilizados como estratégias no jogo de forças contra os “adversários” do Pará, a grande novidade consistia no espraiar de sua essência para outras esferas do social. Amparado no vasto campo cultural do futebol, o regionalismo dilatava seus tentáculos e abocanhava uma fatia significativa do sentimento parauara, representado pelas “duas maiores paixões” dos paraenses: Paysandu e Clube do Remo. Qualquer ameaça aos seus interesses poderia abrir um foco de tensão contra os poderosos adversários localizados no centro hegemônico brasileiro.

Nesse embate com os clubes do Centro-Sul, o cronista esportivo Gerson Nogueira, não economizou em sua análise: “Não há mais dúvida: a Série A é território naturalmente hostil para clubes situados na parte de cima do mapa”. Definida a cartografia do futebol nacional, a peremptória declaração vinha acompanhada de alguns argumentos, pois a “camarilha que controla a elite do futebol brasileiro (incluindo CBF e Globo) nunca foi muito simpática a times nortistas e nordestinos”. A questão estava longe de ser meramente esportiva: era financeira, devido à localização dos grandes anunciantes ser no Sul-Sudeste. “Então, antes de abrir o berreiro reclamando de puro preconceito”, lembrava-se da ação do poder político e dos amigos influentes, o que não era o caso dos principais clubes paraenses.258

257 Portanto, o poderio econômico e a influência política determinavam o posicionamento dos clubes de futebol.

257 FERREIRA, Carlos. “Uma relação de forças”. O Liberal, 10.02.07.258 NOGUEIRA, Gerson. “Questão de prioridade”. Diário do Pará, 01.07.2007. Caderno Bola, p. 23.

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A situação do futebol equiparava-se às tradicionais denúncias das lideranças regionalistas contra as desigualdades políticas e econômicas existentes na Federação. Nesse alargamento cultural do regionalismo, todas as armas poderiam ser desembainhadas. Não importava o adversário, o importante era arrebanhar novos seguidores, a fim de terçarem armas pelas causas parauaras. O futebol, mais do que um esporte e lazer, possuía o ingrediente da paixão e fanatismo dos torcedores. Interagindo com o sentimento de identificação, redimensionava o caldeirão das disputas.

Nessa formação cultural em relação ao futebol, destaque para uma expressiva declaração regionalista redigida pelo professor e advogado Antônio José Mattos, decorrente da apresentação da Seleção brasileira em Belém, em outubro de 2005. Com o título de “Torcida galática”, o artigo enalteceu a participação da torcida paraense, a verdadeira “galática” em detrimento dos famosos jogadores que estavam no gramado. Com a sua delirante manifestação, criou um “verdadeiro manual internacional de torcida”. A festa foi “mérito exclusivo do torcedor paraense”, mas a ocasião também era oportuna a fim de cavoucar residuais ressentimentos:

A nossa torcida é, antes de mais nada, paraoara. Quer dizer, antes de brasileira é paraense. Por que? Porque de nós só quem se lembra somos nós mesmos. Por nós só quem faz alguma coisa somos nós próprios. Ou será que algum paraense tem notícia de algum sacrossanto ser humano que tenha sentado na cadeira presidencial do Palácio do Planalto tenha lembrado das plagas paraenses perdidos neste verde-vago mundo amazônico?

Exaltar a paixão pelo futebol da torcida local em comparação aos famosos astros da seleção canarinho, tornou-se mais um mote para externar sua contrariedade desferida contra a União, materializada como aquele poder que sempre não lembra do Pará. Antes de brasileira é paraense, mais do que uma retórica, representava uma afirmação conformativa da identificação

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estadual, numa perspectiva de ombrear ou ultrapassar a nacional. O antes, nessa sinalização, tinha o sentido de antecipar-se, ser a primeira e a mais altaneira. Tal definição identitária representaria uma marca inconteste da regionalidade nas plagas do Pará, inflamada pelo sentimento futebolístico.

Na afirmação da especificidade do paraensismo frente à brasilidade, Mattos aproveitou para enaltecer a luta de um parlamentar, pois “se não fosse o esforço do amigo Luiz Otávio”, senador da República, ter defendido “herculamente” a vinda da seleção, não ocorreria a festa dos torcedores vivenciada na “brasileiramente esquecida Belém do Pará”.259

258 Para um fato político, o fragmento foi devidamente incorporado ao site do senador Luiz Otávio (PMDB).260

259 Era mais um feito em defesa do Pará, devidamente reconhecido por um amigo, publicado em um grande órgão de imprensa a fim de dar visibilidade ao esforço do parlamentar. Afinal, o futebol também é um campo de uso político261

260.

Ausência de lembrança? Renovava-se e aprimorava-se o enjeitamento e o preconceito historicamente denunciados. A produção cultural, como campo político, reiterou a denúncia de desconhecimento da Amazônia paraense pelo Brasil. E esse sentido é o que tenta apontar a música Olhando Belém, letra de Celso Viáfora e interpretada pelo cantor paraense Nilson Chaves: “Eu olho o futuro/ E pergunto pra insônia/ Será que o Brasil/ Nunca viu a Amazônia/ Eu vou dormir com isso/ Será que é tão difícil...”.262

261 O olhar panorâmico da capital paraense, num entrelaçamento de futuro, passado e presente, sinalizava a denúncia da alteridade e as motivações das lutas a serem empreendidas.

A canção, um dos ícones do regionalismo musical, traduz um novo ressentimento, que não foge às tradições conformativas e afirmativas do pertencimento regional. Se nunca viu, o Brasil continuará com uma visão deturpada, gerada pelo desconhecimento de sua realidade, numa relação 259 O Liberal, Artigo do Dia, 21.10.05, p. 02.260 Cf: www.luizotavio.senado.gov.br261 Sobre a importância do futebol na sociedade, ver: (GUTERMAN, 2009). 262 CD Nilson Chaves em Dez Anos. Outros Brasis Discos, faixa 06.

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de alteridade, onde o outro permanecerá estigmatizado e inferiorizado. A situação gerava o difícil entendimento da peculiaridade amazônica pelo todo brasileiro. A lamentação, por sua vez, apontava a não resignação com o modo desse saber sobre a Amazônia.

Embora comportasse esse múltiplo campo cultural, o esquecimento denunciado integrou mais um componente residual para subsidiar a continuidade inventiva da Amazônia. E essa invenção redimensionou a imagem inferiorizada de filha enjeitada do Brasil e a vitimização do esquecido Pará. Nessas persistentes práticas regionalistas, ancoradas em ressentimentos e vitimizações, alimentaram as identificações, do mesmo modo, contribuindo para construir outros parâmetros na relação da Amazônia paraense com o modelo de Federação forjado pelo Estado-Nação.

Se havia o desconhecimento, a visualização cinematográfica poderia trazer suas contribuições. O cinema paraense através do curta-metragem Açaí com Jabá, de Alan Rodrigues, Marcos Daibes e Walério Duarte, também emprestou sua arte para o regionalismo “sem ser regionalista” ao utilizar a paródia e o deboche. Baseado em “fatos reais”, o curta retratou a relação entre um torcedor do Paysandu, inveterado bebedor de açaí, como personagem principal, e um turista do Sul, que tenta descaracterizar o modo tradicional de tomar o fruto degustado com jabá, reforçado pela indispensável farinha d’água. Nesse confronto entre o modo de vida do caboclo amazônico e a modernidade, o turista acabou ridicularizado por desrespeitar o “ritual sagrado” dos paraenses.

A ironia foi o recurso para desancar o desempenho do estrangeiro. Numa visão etnocêntrica, o turista solicitou à cozinheira açaí com granola, mas não foi bem-sucedido no pedido. Ao lado, estava o torcedor tomando açaí com bastante farinha e jabá. O turista, sem opção e buscando imitá-lo, requereu a mesma refeição, porém, foi recomendado a ser comedido, como se tivesse que se comportar com respeito perante um “ritual sagrado”. A atendente,

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conforme o sentido indicado, “encarna o papel do olhar regionalista”. Já o turista, retrucou, anunciando ter viajado o “Brasil todo” e por onde passou, degustou acarajé, sarapatel, caruru, vatapá, buchada, churrasco dos pampas. “Por que eu não ia aguentar esse açaí?”. A arrogância contida na resposta, conferida a partir de outras experiências culinárias, credenciava-lhe a também imitar o torcedor papachibé (LINS, 2007, p. 10-11).

O recurso da ironia é direcionada aos dois personagens: o turista deslumbrado e arrogante e o torcedor desconfiado e ressentido. Quando o turista tentou conversar sobre o clima amazônico263

262, o papachibé respondeu de forma grosseira, paralisando o diálogo. A cena representou que o nativo “está cansado de perguntas como aquela”, realizadas por turistas, geralmente com um “sarcasmo embutido” (LINS, 2007, p. 12). O confronto contido nesse estranhamento de culturas consegue desnudar os oponentes, revelando as entranhas de seus problemas mais recorrentes.

A performance do torcedor alvi-azul registrou um “ressentimento histórico de vários setores da sociedade paraense com relação aos habitantes do sudeste brasileiro”, a qual traduz um “sentimento de frustração pela forma com que o centro do poder político-econômico brasileiro trata a região, ignorando o valor de sua gente, sempre retratada de forma estereotipada”. Do mesmo modo, a atitude ácida do torcedor também é uma “forma de assumir sua fraqueza” (OLIVEIRA, 2005). Nesse regionalismo “sem ser regionalista”, tanto criticava o preconceito sulista quanto desnudava as identificações construídas entre os parauaras.

O resultado do duelo gastronômico é a imagem caricata e exagerada do turista indo parar no hospital. Em meio a outros pacientes com o mesmo sintoma estomacal, o curta encerrou sob o fundo musical de carimbó:

263 Na dissertação de mestrado em Comunicação e Cultura, Paulo Oliveira retrata a formação de alguns mitos sobre a Amazônia que prejudicam sua imagem, como pulmão do mundo, calor insuportável e terra de índios. No caso do “calor insuportável”, o mito causa distorções na imagem da Amazônia fora da região, sobretudo, entre os turistas do centro-sul. Ver: (OLIVEIRA, 2005).

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“Quem vai ao Pará, parou, tomou açaí, ficou”, contida na música Vai ao Pará parou, de Aurino Gonçalves, o Pinduca. O curta sugeriu não “levar o regionalismo a movimentos extremos, na busca da identidade autêntica”, que possa desencadear tarefa perigosa e absurda. Embora os autores não sejam regionalistas, a “ironia tem alvo maior o turista, representante da cultura hegemônica”. A opção do enredo não é aleatória, haja vista que através desses símbolos relativizou a ordem social, os poderes vigentes e as posições hierárquicas, no intuito de renovar os valores da sociedade (OLIVEIRA, 2005).

Na resposta às afrontas do colonizador, conforme o diálogo com Homi Bhabha, emergiam das fímbrias do subterrâneo cultural um histórico de estereótipos. O conjunto de ressentimentos, a síndrome de inferioridade e a luta para refutar tais preconceitos, historicamente integraram as práticas dos intelectuais amazônicos. A encenação de um personagem popular, investido de padrões culturais representativos do modo de ser paraense, conferia a oportunidade para veicular sua versão. A história, dessa feita, poderia ser escrita pelo subalterno, único modo de manter-se sujeito (BHABHA, 1998).

A narrativa dessa nova história, por sua vez, também poderia seguir uma versão híbrida. A descrição de um gaúcho, filho de pais paraenses, que passou a residir em Belém, em 1983, com seis anos de idade, com base em sua vivência nos dois extremos do território nacional, sinalizou com a possibilidade de traçar alguns pontos do ser paraense. Numa comparação entre gaúchos e parauaras, o Conde Loppeux de La Villanueva, como é identificado em seu Fotolog, destacou algumas diferenças e semelhanças, tentando dar conta de suas principais características.

O sulista tem a presunção “de se achar o mais especial dos brasileiros, uma figura sui generis da terra brasilis”, já o nortista possui um “temperamento mais diferenciado, mais ameno, mais diplomático”. Nessa comparação diferenciadora, o que “não conseguia entender em grande parte dos paraenses

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é a vergonha de sua terra”. Em sua observação, a maioria dos paraenses tem uma “tendência muito auto-destrutiva, quase que masoquista, pois acreditam que alguém de fora sempre seja melhor do que eles”. A depreciação mais divulgada contra os nascidos no Pará, “é que são mal-educados”, porém, “deviam conhecer os gaúchos primeiro, para perceberem que povo ranheta é esse do sul”. Por conhecer os extremos da questão, o paraúcho, como se auto-intitulava, construiu suas adjetivações dos modos de ser dos dois povos.

O conde, particularmente, não concordava com “tantos complexos” dos paraenses, pois “vivem numa terra maravilhosa, possuem uma cultura riquíssima e uma originalidade que outras terras do Brasil não têm”. Em tal aspecto, os gaúchos compreendem “melhor o seu valor do que os paraenses”. Os gaúchos reconhecem a “própria auto-estima”. Falta aos nortistas “apenas explorar suas potencialidades e se aceitarem como são”. A percepção foi adquirida quando criança, inclusive. Nas viagens e encontros estudantis do curso de Direito, “os meus colegas paraenses sempre tinham um estigma de complexo de inferioridade, em relação aos de fora”. Encerrou a descrição, afirmando que, tanto paraenses quanto gaúchos,“possuem uma forte identidade cultural”.264

263 Nesse caso, a música Belém, Pará, Brasil de Mosaico de Ravena, traduzido em hino regionalista dos estudantes paraenses nos encontros em outros estados, parecia casar com essa observação do narrador paraúcho.

Municiado por sua identidade híbrida de gaúcho e paraense, o conde tentou construir uma síntese desses povos. Da valorosa auto-estima gaúcha ao complexo de inferioridade paraense, conferem a extremidade, não apenas física, mas cultural. Entre valores positivos e negativos, sobressaíam, no caso nortista, a baixa valorização, na contramão do tradicional orgulho de sua singularidade histórica. Vivenciando a cidade de Belém nas duas últimas décadas do século XX, quando a crise socioeconômica intensificou sua 264 Fotolog do Conde. “As primeiras impressões de Belém as duas almas extrema”, 20.05.2005. Disponível em < salvadorconde.flogbrasil.terra.com.br/foto17912279.html>. Acesso em: 03 abr.2007.

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derrocada, era natural a observação do paraúcho. No contexto em que redigiu sua análise, diferentemente, a valorização do orgulho de ser paraense ganhava destaque, inclusive como estratégia política de coesão social. Investidos de originalidade, forte e rica identidade cultural, como também reconheceu, os paraenses, em especial os belenenses, encenavam sua identidade, conforme a reflexão de Fábio Castro.

A década de 1980, contexto de adaptação do Conde na capital do Pará, conferida por dramática situação na esfera econômica e social, porém com fértil produção cultural, a arte poética construiu ao seu modo o ressentimento dirigido ao centro hegemônico brasileiro. No I Concurso Literário organizado pela Funtelpa/Rádio Cultura, em 1986, a poetisa Irecê Tavares Pereira investiu em tradicional repulsa existente entre os paraenses contra os preconceitos sulistas:

Se você nos vem do Sul

Contar vantagens de lá,

Falando mal do açaí

E também do tacacá,

É melhor ficar calado.

Amo muito minha terra,

Amo Belém do Pará!

Em defesa bairrista dos costumes paraenses, assentado em seus produtos típicos, que “Você nem sequer entende,/ Nem jamais compreenderá”, retomou a linha do não entendimento e compreensão dos sulistas sobre a Amazônia, originárias das imagens estereotipadas. Numa resposta aos detratores, Irecê reiterou a originalidade do torrão natal e sua preferência identitária diante do permanente desprezo dos demais brasileiros pelas coisas de Belém:

Vocês desdenham da terra

E dos filhos do lugar;

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Mas para ser brasileiro,

Prefiro ser do Pará.

E para as bandas do Sul,

Só quero ir, ver e contar... (PEREIRA, 1987, p. 519).

A estrofe de encerramento guardou uma tradição enraizada na memória parauara. Se havia o desprezo pela terra e pelos seus moradores, a contrapartida da autora, sem tanta cerimônia, retrucou de modo altaneiro com a preferência em ser do Pará do que ser brasileiro. A escolha apontava resíduos da histórica tensão com o Estado nacional, a qual emergia nas mais inusitadas situações, tanto na política e na economia, quanto no âmbito cultural. A postura renovou o gesto de Ruy Barata, no final dos anos 30 do século XX. Num sentido inverso, quando fosse ao Sul, contaria, provavelmente, as vantagens de Belém do Pará, no intuito de afirmar a identidade paraense.

A valorização da cultura paraense estava acompanhada de sua inerente defesa. A luta abria-se em várias frentes de batalha. Sensibilizada com essa demanda, a coluna Repórter Diário, do jornal Diário do Pará, desferiu severa crítica ao comercial da Credcard veiculado apenas no eixo Rio-São Paulo, o qual “magoou” os paraenses por considerem o episódio “preconceituoso”. A imagem mostrou um “aventureiro caindo na selva, onde aparece o letreiro ‘Em algum lugar em Belém’”. A cena seguinte destacou um caboclo saindo de dentro de uma “cabana” com a maquininha do cartão, “mostrando que qualquer lugar distante aceita o cartão anunciado”.265

264 Envolvidas em valores culturais, a publicidade e a propaganda acompanhavam as representações sobre a Amazônia, interessadas em instituir sua verdade no intuito de conquistar a aceitação do público consumidor (DUTRA, 2005).

A interpretação sinalizava que até na longínqua capital dos paraenses era possível ter acesso àquela facilidade tecnológica à disposição do mercado de consumo. A referência distante ou perto do centro hegemônico brasileiro condicionava o saber instituído como verdade nessa veiculação voltada para 265 Diário do Pará, 19.05.07, p. 03.

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determinados consumidores. Esses, certamente, não eram da distanciada cidade no meio da selva amazônica, apesar de também estar contemplada pela modernidade capitalista.

Incomodados com esses estigmas, advindos de um tempo mais recuado, que também inquietaram inúmeros intelectuais amazônicos ao longo das gerações, chegava o momento de reacender a chama identitária. Valorizar o ser paraense guardava um sentido estratégico, com a certeza que os valores legados tinham uma importância vital no fortalecimento dos laços sociais no Pará. Mas outras ameaças além das fronteiras paraoaras reacendiam as preocupações: as dissidências internas. O paraensismo encontrava-se em avançado estado de dissolução.

Pará além do paraensismo

Exemplo maior do nível da diversidade e tensão social que constitui o Pará no tempo presente, o plebiscito sobre a criação dos estados de Carajás e Tapajós, em 2011, reacendeu as disputas e dissensões que marcam o território paraense, aflorando a heterogeneidade das identidades formadoras do Pará. Além das questões político-administrativas, centralismo, abandono, isolamento e discriminação na distribuição de recursos, comparado com a região metropolitana de Belém, os defensores das teses separatistas justificavam a pouca presença de paraenses, sobretudo no Sul e Sudeste do estado, no caso, Carajás, região de fronteira de expansão do capital, formada por maranhenses, cearenses, piauienses, baianos, mineiros, goianos etc. Portanto, o projeto do paraensismo teria parca influência na tentativa de unificar costumes, tradições e identificações híbridas e plurais dos moradores dessas regiões dissidentes do Pará.

Pensada e planejada a partir das elites de Belém, visando uma forçada unificação cultural, o paraensismo recebeu um duro golpe dos grupos empresariais, lideranças políticas e moradores que se rebelaram contra a tentativa de homogeneização dos valores culturais parauaras. Disputa

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tipicamente entre as elites que dividem as várias regiões do Pará, todas as armas foram desembainhadas, as bandeiras desfraldadas demarcaram suas posições e as identidades aparentemente constituídas, forjaram novos artefatos em confronto com as identificações emergentes. O combalido Pará nunca mais foi o mesmo.

Enquanto as propagandas dos defensores do SIM (Carajás e Tapajós) divulgavam os argumentos e projetos demarcando as diferenças que os separavam da capital Belém, as veiculações do NÃO (permanência do Pará unido) reiteravam a possível perda com a separação, o que enfraqueceria ainda mais o debilitado estado amazônico. De Parazão à Parazinho, um fantasma real trazendo novas ameaças para quem pretendia retomar a hegemonia na Amazônia. Num confronto crucial para o futuro do estado, uma das armas mais eficazes foi a articulação das identidades fundadas em sentimentos, tradições e costumes representativas do Pará. Dividir o modo de consumir o tacacá e o açaí e a devoção do Círio de Nazaré eram ameaças utilizadas como estratégia para brecar a dissidência.

O NÃO venceu o plebiscito, mas o Pará saiu mais fragmentado e chamuscado do confronto. A unidade territorial do Pará foi mantida, porém, as rusgas e fissuras ficaram mais evidenciadas, sobretudo entre os perdedores do pleito que demonstraram força e contínua aspiração separatista.266

265 Estratégia de mobilização dos defensores da integridade territorial paraense, contudo, o paraensismo revelou-se pouco eficaz como instrumento unificador e, em algumas situações, tornando-se alvo de rejeição e indiferença por representar os projetos dos grupos ainda hegemônicos da capital vencedora.

A diversidade constitui o Pará e o paraensismo está longe de representá-lo. Vinculado aos interesses essencialistas dos grupos de Belém, o paraensismo pode desencadear preconceitos que destoam das experiências híbridas, globais, múltiplas e diversificadas que formam a sociedade na pós-modernidade, 266 Sobre os embates e consequências do plebiscito no Pará, ver as reflexões de Lúcio Flávio Pinto nas edições do Jornal Pessoal, posteriormente organizadas na obra: (PINTO, 2012, p. 140-151).

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representativas e constitutivas dos vários recantos do enorme “país que se chama Pará”. No Pará dos paraenses, além do paraensismo, encontram-se identidades em formações contribuindo para democratizar o acesso às políticas culturais e sujeitos lutando por plena cidadania, sejam parauaras ou demais cidadãos do Brasil e do mundo.

Simplificar ou homogeneizar a cultura impede a manifestação de múltiplas experiências, contribui para obstruir forças emergentes, dissidentes que possibilitariam forjar novas práticas no interior de identidades já consolidadas e hegemônicas. O azeitamento das engrenagens culturais alinhavadas pelos múltiplos sujeitos imbuídos de outros projetos alargam o campo de construção das identificações, hibridizando as culturas. É o que se experimenta no fragmentado Pará: retroagir ao paraensismo é tentar tapar o sol da diversidade.

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WALLACE, Alfredo Russel. Viagens pelos rios Amazonas e Negro; Tradução: Eugênio Amado. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar. 1979.

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QUEM SÃO OS AUTORES?

Agenor Sarraf Pacheco: Doutor em História Social (PUC-SP, 2009); Mestre em História Social (PUC-SP, 2004); Especialista em Métodos e Técnica em Elaboração de Projetos Sociais (PUC-MG, 2002) e Licenciado Pleno e Bacharel em História (UFPA, 1999). Discute teoricamente Estudos Culturais Britânicos, Latino-Americanos, Pensamento Pós-Colonial e Decolonial nas interfaces com os campos da História, Antropologia, Museologia, Literatura, Arte, Educação e Comunicação. Tem experiência na área de História Social da Cultura, História Sociocultural da Amazônia Marajoara, História e Cultura Africana, Afro-Brasileira e Afroindígena. Coordena o Grupo de Pesquisa Estudos Culturais na Amazônia (GECA/CNPq/UFPA). Professor Adjunto II da Universidade Federal do Pará (UFPA), lotado no Instituto de Ciências da Arte (ICA), vinculado à Faculdade de Artes (FAV), ao Curso de Museologia e aos Programas de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (PPHIST) e Antropologia (PPGA). Diretor do Arquivo Público do Estado do Pará (APEP). Atua especialmente nos temas: Patrimônio, Cosmologia, Religiosidade, Cartografia, Oralidade, Memória, Identidade, Visualidade, Interculturalidade, Saber Local, Cidade-Floresta e Zonas de Contato Afroindígena.

Eduardo Wagner Nunes Chagas:Doutorando em Antropologia (PPGSA/UFPA-2013). Mestre em Artes (PPGArtes-2012). Especialista em Patrimônio Cultural e Educação Patrimonial (FIBRA/2010). É professor da disciplina Artes Visuais na Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará. Possui experiência nas áreas de Educação, Arte e Cultura, Projetos Visuais (Cenografia e Indumentária), com ênfase em Cultura Popular e Educação, atuando como diretor de artes em espetáculos (teatro, dança, música) e como carnavalesco em escolas de samba. Desenvolve trabalhos em instituições culturais ligadas à cultura popular e em instituições de ensino no campo do Ensino das Artes. Localiza suas pesquisas acadêmicas no campo da educação e ensino das artes, cultura popular e identidade cultural brasileiras, principalmente nas relações etnicorraciais amazônicas. Integra o Grupo de Estudos Culturais na Amazônia

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(GECA/CNPq/UFPA).

Ernani Pinheiro Chaves:É graduado em Administração pela Universidade Federal do Pará (1978), Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986) e Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1993). É Professor Associado IV da Faculdade de Filosofia e foi Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Pará de 2011 a 2014. É também Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Colaborador no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, ambos na UFPA. Neste último, é Coordenador Associado do PROCAD-Novas Fronteiras, realizado em conjunto com a UFS e a UFRJ. Durante o Doutorado realizou estudos e pesquisas na Faculdade de Teologia Evangélica (1989-1991) e na Universidade Técnica (1992), ambas em Berlim, Alemanha. Realizou estágio de Pós-Doutorado em 1998, também na Universidade Técnica de Berlim e em 2003 na Bauhaus-Universität, de Weimar, na Alemanha. Em janeiro e fevereiro de 2013 foi Pesquisador Visitante na Universidade Técnica de Berlim. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia Alemã, em especial Nietzsche e a Escola de Frankfurt. Além disso, também realiza estudos sobre o pensamento de Michel Foucault e no âmbito da Filosofia da Psicanálise. É Membro da Nietzsche-Gesellschaft (Naumburg/Alemanha) desde 1990, do GT Nietzsche da ANPOF e é um dos Editores da revista Estudos Nietzsche. Foi Membro do Comitê Assessor de Filosofia/Teologia do CNPQ entre julho de 2011 e junho de 2014, tendo sido o Coordenador do referido Comitê no período de novembro de 2013 a junho de 2014. De março a junho de 2015, realizou Estágio Sênior de Pesquisa, com Bolsa do CNPQ, na ÉcoleNormaleSuperieure de Paris (França), sob a supervisão do Dr. Paolo D›Iorio.

Isabel Cristina França dos Santos Rodrigues:Doutora em Educação (linha Educação, Cultura e Sociedade (PPGED- UFPA), Mestre em Linguística pela UFPA (2006) e Especialista em Língua Portuguesa: uma abordagem textual pela UFPA (2004). Possui experiência na Educação Infantil, Ensino Fundamental e

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Médio, Graduação, Formação de professores e Coordenação de Pós-Graduação em Letras (Lato Sensu). Coordenou o curso de Letras Português, foi diretora da Faculdade de Estudos da Linguagem (FAEL) e Diretora-adjunta do Instituto de Linguística, Letras e Artes (ILLA) da Universidade do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). É docente do Mestrado Profissional- PROFLETRAS (UFPA-Belém) e colaboradora na Revista Ponto de Partida (UNIFESSPA). Atualmente, é Professora-Adjunto I da Universidade Federal do Pará (Belém), lotada no Instituto de Educação Matemática e Científica (IEMCI). Atua nas disciplinas de Estágios, Práticas, Letramento e Alfabetização, Análise do Discurso, Análise da Conversação, Semântica e Prágmática, Morfossintaxe, Produção textual, Pressupostos Filosóficos da Prática Educacional, Arte-Educação, Política Educacional, Avaliação da Aprendizagem, Tecnologias no Ensino de Língua Portuguesa e FTM do Português. Integra o Grupo de Estudos Culturais na Amazônia (GECA/CNPq/UFPA).

Jaime CuéllarVelarde: Mestre em Comunicação, Linguagens e Cultura pela Universidade da Amazônia (UNAMA - 2010); Especialista em História do Brasil pela Universidade Vale do Acaraú (UVA - 2004-2005); Licenciado Pleno e Bacharel em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA-1995-1999). Professor Efetivo da Rede Estadual de Educação do Pará (SEDUC - a partir de 2007). Atuou como Coordenador de Implantação e professor da Faculdade de Educação Tecnológica (FACETE-PA) e como professor nos cursos de graduação da Universidade Vale do Acaraú (UVA/Belém). Atua como Professor do Programa Parfor na Universidade Federal do Pará (UFPA) e Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Bolsista da Fundação Instituto para o Desenvolvimento da Amazônia, no projeto: Entre Crônicas, Reportagens e Romances, sob a coordenação do Prof. Dr. Agenor Sarraf Pacheco. Pesquisa na área de Memórias e Linguagens de Sujeitos Culturais durante a Ditadura Militar na Amazônia Paraense. Membro da Comissão Nacional da Verdade - Anpuh/PA, do GT Ditadura e Gênero. Atuou como membro da Equipe Técnica da Comissão Estadual da Verdade - Pará.

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Coordenou a Linha Temática Memória: Gênero e Ditadura.

Jerônimo da Silva e Silva:Licenciado Pleno e Bacharel em História (UFPA, 2001), Especialista em História Social da Amazônia (UFPA, 2007), Mestre em Comunicação, Linguagens e Cultura (PPGCLC/UNAMA, 2011), Doutor em Antropologia (PPGA/UFPA, 2014). Atua especialmente nos temas: Encantaria Amazônica (Experiências de Rezadeiras, Parteiras, Pajés, Mães e Pais de Santo, Exorcistas), Diásporas de Encantados, Patrimônios, Narrativas Orais, Memórias, Cristianismos, Cosmologias Africanas e Indígenas - Afroindígenas. Articula esses temas de pesquisa com categorias de análise dos Estudos Culturais, Pensamento Pós-Colonial, Pensamento Latino americano, Antropologia das Religiões, História Social da Amazônia. Exerce vice-liderança no Grupo de Pesquisa em Estudos Culturais na Amazônia (GECA/CNPq/UFPA) e Grupo de Estudos Interculturais das Amazônias (GEIA/CNPq/UNIFESSPA). Atualmente é Professor Adjunto I da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), lotado no Instituto de Ciências Humanas (ICH) - Disciplina de Epistemologia Geral. Acadêmico do Curso de Direito (ICJ/UFPA)

John Fletcher Couston Júnior:Aluno de Doutorado em Antropologia pelo PPGA/UFPA e Mestre em Artes pelo PPGArtes/UFPA. Durante o Doutorado, realizou estudos e pesquisas na UniversidaddelCauca, em Popayán, Colômbia (primeiro semestre de 2015). Possui experiência como curador independente e propositor visual, além de pesquisa a qual envolve Teoria Antropológica, Pós-Colonialismo, Decolonialismo, Etnografia Urbana e Arte Contemporânea Paraense. É integrante do coletivo Novas Medias e do Grupo de Estudos Culturais da Amazônia (GECA/CNPq/UFPA).

Marcos Valério Lima Reis:Possui graduação em Licenciatura em Letras pela Faculdade Integrada Brasil Amazônia (2006) e mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura pela Universidade da Amazônia (2012). Atualmente é diretor de produção da Fundacão Nazaré de Comunicação e professor da

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Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA). Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Rádio e Televisão, atuando principalmente nos seguintes temas: Bruno de Menezes saberes e trajetórias, Literatura de expressão amazônica, negritude, Literatura, Bruno de Menezes e Bruno de Menezes História e Literatura.

Mário Médice Barbosa:Possui graduação em História pela Universidade Federal do Pará (1998), Especialização em História Social da Amazônia (2001), Mestrado e Doutorado em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004) e (2010), respectivamente. Professor efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará - campus Castanhal, atuando no Curso de Mestrado Profissional em Desenvolvimento Rural e Gestão de Empreendimentos Agroalimentares. Atualmente é Diretor Geral do IFPA Campus de Breves. Tem experiência na área de História, com ênfase em História da Amazônia, do Brasil, Contemporânea, Educação do Campo e Educação Etnicorracial, atuando principalmente nas linhas de Cultura e Poder, Cultura e Natureza, identidades, Regionalismos e Educação Profissional.Integra o Grupo de Estudos Culturais na Amazônia (GECA/CNPq/UFPA).

Ninon Rose Jardim:É graduada em Arquitetura pela Universidade Federal do Pará (1994). Pós-graduou-se Lato Censo em Design de móveis pela Universidade do Estado do Pará (2000) e em Semiótica e artes visuais pelo Instituto de Ciência da Arte da Universidade Federal do Pará (2006). Mestre em Artes pelo Instituto de Ciências da Arte - Universidade Federal do Pará (2013). Com dissertação intitulada: «Mulheres entre Enfeites e Caminhos: Cartografia de memórias em saberes e estéticas do cotidiano no Marajó das Florestas (S. S. da Boa Vista-Pará)». É designer proprietária do Studio Kurawá Design e atua junto ao Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. É professora assistente I do Departamento de Design da Universidade do Estado do Pará. Tem experiência na área de design de produto, com ênfase em design social, design para sustentabilidade, design de móveis e artefatos e design

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no artesanato.Integra o Grupo de Estudos Culturais na Amazônia (GECA/CNPq/UFPA).

Renato Vieira de Souza: Possui graduação em Educação Artística pela Universidade do Estado do Pará (2001). Pós-graduação (lato senso) em Teologia pela Faculdade Teológica Batista Equatorial (2006), Informação Ambiental pelo Núcleo de Meio Ambiente da UFPA (2010) e mestrado em Artes pela UFPA (2012). Sua área de interesse está para a influência da música no contexto urbano, a informação Ambiental na escola pública e suas interfaces com as demais áreas do conhecimento. É professor do nível básico da rede municipal de ensino em Belém-PA, músico e compositor sacro.

Rodrigo de Souza Wanzeler: Doutorando em Antropologia Social no PPGA-UFPA, possui mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará (2009), possui graduação em Letras Língua Portuguesa (2006) e Língua Inglesa (2010) pela mesma Instituição. Tem experiência na área de Letras com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: Bruno de Menezes; Antropologia Social; literatura brasileira; literatura de expressão amazônica; literatura e história; literatura e estudos culturais; literatura e estudos pós-coloniais; literatura e migração; literatura latino-americana. Atualmente é docente licenciado da rede pública estadual de ensino do Pará – SEDUC; é integrante do Grupo de Estudos Culturais na Amazônia - GECA/UFPA/CNPq e do Grupo Literatura, arte, cultura e sociedade na Amazônia UFPA/CNPq.

Valéria Frota de Andrade: Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal do Pará (1997) e mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Artes - ICA/ UFPA. Tem experiência na área de Artes Cênicas. Atua como atriz de teatro, já tendo tido experiências em cinema e televisão. Foi coordenadora de linguagem cênica da Fundação Curro Velho de 1996 a 2005. Ministrou diversas oficinas, destacando-se o período de dois anos como professora substituta da Escola de Teatro e Dança da UFPA. Desde

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2004, dedica-se também à pesquisa em teatro, sendo o espetáculo “Parésqui”; o último resultado de uma bolsa de pesquisa. Atualmente é professora de história do teatro e dramaturgia da Escola de Teatro e Dança da UFPA.Integra o Grupo de Estudos Culturais na Amazônia (GECA/CNPq/UFPA).

Vanessa Cristina Ferreira Simões: Mestre em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA. Graduada em Comunicação Social (Publicidade) pela Universidade Federal do Pará e em Design Industrial pela Universidade do Estado do Pará. Atualmente, é professora do Centro de Ensino Superior do Pará e integra o Grupo de Pesquisa Estudos Culturais na Amazônia (GECA/CNPq/UFPA). Pesquisa comunicação e cultura material nos contextos amazônicos, a partir dos fundamentos teóricos dos Estudos Culturais e Pensamento Pós-Colonial articulados aos campos da Comunicação e do Design.

Walter Chile R. Lima: Doutorando do Programa de Estudos Culturais das Universidades do Minho - UMINHO e Aveiro - UA - Portugal; Mestre em Artes pela Universidade Federal do Pará; Especialista em Gerenciamento Ambiental pelo Núcleo de Meio Ambiente da UFPA; Graduado em Artes Visuais pela Faculdade de Artes Visuais da UFPA; Estagio em Pintura Artística Cenográfica pelo Centro Técnico de Artes Cênicas do IBAC / FUNARTE - Rio de Janeiro; Professor do Curso de Cenografia da Escola de Teatro e Dança da UFPA - ETDUFPA; Membro da diretoria da Sociedade de Preservação aos Recursos Naturais e Culturais da Amazônia - SOPREN, onde desenvolve atividades técnicas e pedagógicas voltadas para a temática ambiental; Integra o Grupo de Estudos Culturais na Amazônia (GECA/CNPq/UFPA). Membro da Comunidade São José do Furo Maracapucu, Abaetetuba - Pará - Brasil. Tem experiência na área de Ensino de Artes, Cenografia, Gerenciamento Ambiental e ações de natureza sócio-ambiental e cultural junto a comunidades Amazônidas.

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Welton Diego Carmim Lavareda: Mestre em Comunicação, Linguagens e Cultura, pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação da Universidade da Amazônia (UNAMA/2012); Graduado em Letras (UNAMA/2009). Professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA), onde atua na Graduação e colabora com o curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Estudos Linguísticos e Análise Literária. Professor Adjunto da Universidade da Amazônia (UNAMA), onde atua na Graduação e colabora com o curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Educação Especial. Desde 2011 ministra cursos, disciplinas e realiza projetos de pesquisa em diferentes municípios do estado do Pará como professor-pesquisador do Plano Nacional de Formação dos Professores da Educação Básica - PARFOR/CAPES. Integra os seguintes grupos de pesquisa - Estudos surdos e políticas de inclusão, vinculado à Universidade da Amazônia e o Grupo de Estudos Culturais na Amazônia (GECA/CNPq/UFPA).Temas de interesse: Estudos Culturais, estudos Pós-coloniais, surdez, educação Inclusiva, LIBRAS, Sociolinguística, Dialetologia, ensino de português brasileiro, letramento(s),leitura e produção de texto, patrimônio, Educomunicação, Semiótica Discursiva, Linguística Textual e Análise do Discurso.

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Agenor Sarraf PachecoJerônimo da Silva e Silva

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NEAB/IFPA

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