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Livro coleção os pensadores sobre florestan fernandesme4699

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  • 1. FLORESTAN FERNANDESFLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 1 21/10/2010, 08:07
  • 2. Ministrio da Educao | Fundao Joaquim Nabuco Coordenao executiva Carlos Alberto Ribeiro de Xavier e Isabela Cribari Comisso tcnica Carlos Alberto Ribeiro de Xavier (presidente) Antonio Carlos Caruso Ronca, Atade Alves, Carmen Lcia Bueno Valle, Clio da Cunha, Jane Cristina da Silva, Jos Carlos Wanderley Dias de Freitas, Justina Iva de Arajo Silva, Lcia Lodi, Maria de Lourdes de Albuquerque Fvero Reviso de contedo Carlos Alberto Ribeiro de Xavier, Clio da Cunha, Jder de Medeiros Britto, Jos Eustachio Romo, Larissa Vieira dos Santos, Suely Melo e Walter Garcia Secretaria executiva Ana Elizabete Negreiros Barroso Conceio Silva Alceu Amoroso Lima | Almeida Jnior | Ansio Teixeira Aparecida Joly Gouveia | Armanda lvaro Alberto | Azeredo Coutinho Bertha Lutz | Ceclia Meireles | Celso Suckow da Fonseca | Darcy Ribeiro Durmeval Trigueiro Mendes | Fernando de Azevedo | Florestan Fernandes Frota Pessoa | Gilberto Freyre | Gustavo Capanema | Heitor Villa-Lobos Helena Antipoff | Humberto Mauro | Jos Mrio Pires Azanha Julio de Mesquita Filho | Loureno Filho | Manoel Bomfim Manuel da Nbrega | Nsia Floresta | Paschoal Lemme | Paulo Freire Roquette-Pinto | Rui Barbosa | Sampaio Dria | Valnir Chagas Alfred Binet | Andrs Bello Anton Makarenko | Antonio Gramsci Bogdan Suchodolski | Carl Rogers | Clestin Freinet Domingo Sarmiento | douard Claparde | mile Durkheim Frederic Skinner | Friedrich Frbel | Friedrich Hegel Georg Kerschensteiner | Henri Wallon | Ivan Illich Jan Amos Comnio | Jean Piaget | Jean-Jacques Rousseau Jean-Ovide Decroly | Johann Herbart Johann Pestalozzi | John Dewey | Jos Mart | Lev Vygotsky Maria Montessori | Ortega y Gasset Pedro Varela | Roger Cousinet | Sigmund FreudFLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 2 21/10/2010, 08:07
  • 3. FLORESTAN FERNANDES Marcos Marques de OliveiraFLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 3 21/10/2010, 08:07
  • 4. ISBN 978-85-7019-501-2 2010 Coleo Educadores MEC | Fundao Joaquim Nabuco/Editora Massangana Esta publicao tem a cooperao da UNESCO no mbito do Acordo de Cooperao Tcnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a contribuio para a formulao e implementao de polticas integradas de melhoria da equidade e qualidade da educao em todos os nveis de ensino formal e no formal. Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo desta publicao no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites. A reproduo deste volume, em qualquer meio, sem autorizao prvia, estar sujeita s penalidades da Lei n 9.610 de 19/02/98. Editora Massangana Avenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540 www.fundaj.gov.br Coleo Educadores Edio-geral Sidney Rocha Coordenao editorial Selma Corra Assessoria editorial Antonio Laurentino Patrcia Lima Reviso Sygma Comunicao Ilustraes Miguel Falco Foi feito depsito legal Impresso no Brasil Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Fundao Joaquim Nabuco. Biblioteca) Oliveira, Marcos Marques de. Florestan Fernandes / Marcos Marques de Oliveira. Recife: Fundao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. 164 p.: il. (Coleo Educadores) Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7019-525-8 1. Fernandes, Florestan, 1920-1995. 2. Educao Brasil Histria. I. Ttulo. CDU 37(81)FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 4 21/10/2010, 08:07
  • 5. SUMRIO Apresentao, por Fernando Haddad, 7 Ensaio, por Marcos Marques de Oliveira De Vicente a Florestan, 11 Infncia e juventude na So Paulo dos anos 1920 e 1930, 11 A faculdade de cincias sociais, 15 Ps-graduao e os primeiros escritos, 22 Militncia poltica e marxismo, 26 Por uma sociologia de interveno, 30 Educao: objeto sociolgico e dilema social, 35 Campanha em defesa da escola pblica, 38 Democracia restrita: o dilema social brasileiro, 45 Uma concepo igualitria da educao, 50 Quem educa o educador?, 55 O educador Florestan, 59 A poltica como prxis pedaggica A questo da universidade, 64 A luta contra a ditadura e a pedagogia socialista, 70 O engajamento partidrio e a Constituinte, 78 A tarefa poltico-pedaggica, 90 O educador como intelectual orgnico, 97 Educao e neoliberalismo, 102 Florestan atual, 113FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 5 21/10/2010, 08:07
  • 6. Textos selecionados, 119 O desafio educacional A formao poltica e o trabalho do professor?, 119 Verba pblica para a escola pblica, 141 [Adaptao de texto publicado no Dirio da Assembleia Nacional Constituinte] Trs teses sobre a universidade, 142 [Adaptao de texto publicado no Dirio do Congresso Nacional] Cronologia, 151 Bibliografia, 154 Obras de Florestan Fernandes, 155 Obras sobre Florestan Fernandes, 158 Outras referncias bibliogrficas, 158 6FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 6 21/10/2010, 08:07
  • 7. APRESENTAO O propsito de organizar uma coleo de livros sobre educa- dores e pensadores da educao surgiu da necessidade de se colo- car disposio dos professores e dirigentes da educao de todo o pas obras de qualidade para mostrar o que pensaram e fizeram alguns dos principais expoentes da histria educacional, nos pla- nos nacional e internacional. A disseminao de conhecimentos nessa rea, seguida de debates pblicos, constitui passo importante para o amadurecimento de ideias e de alternativas com vistas ao objetivo republicano de melhorar a qualidade das escolas e da prtica pedaggica em nosso pas. Para concretizar esse propsito, o Ministrio da Educao insti- tuiu Comisso Tcnica em 2006, composta por representantes do MEC, de instituies educacionais, de universidades e da Unesco que, aps longas reunies, chegou a uma lista de trinta brasileiros e trinta estrangeiros, cuja escolha teve por critrios o reconhecimento histrico e o alcance de suas reflexes e contribuies para o avano da educao. No plano internacional, optou-se por aproveitar a co- leo Penseurs de lducation, organizada pelo International Bureau of Education (IBE) da Unesco em Genebra, que rene alguns dos mai- ores pensadores da educao de todos os tempos e culturas. Para garantir o xito e a qualidade deste ambicioso projeto editorial, o MEC recorreu aos pesquisadores do Instituto Paulo Freire e de diversas universidades, em condies de cumprir os objetivos previstos pelo projeto. 7FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 7 21/10/2010, 08:07
  • 8. Ao se iniciar a publicao da Coleo Educadores*, o MEC, em parceria com a Unesco e a Fundao Joaquim Nabuco, favo- rece o aprofundamento das polticas educacionais no Brasil, como tambm contribui para a unio indissocivel entre a teoria e a pr- tica, que o de que mais necessitamos nestes tempos de transio para cenrios mais promissores. importante sublinhar que o lanamento desta Coleo coinci- de com o 80 aniversrio de criao do Ministrio da Educao e sugere reflexes oportunas. Ao tempo em que ele foi criado, em novembro de 1930, a educao brasileira vivia um clima de espe- ranas e expectativas alentadoras em decorrncia das mudanas que se operavam nos campos poltico, econmico e cultural. A divulga- o do Manifesto dos pioneiros em 1932, a fundao, em 1934, da Uni- versidade de So Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em 1935, so alguns dos exemplos anunciadores de novos tempos to bem sintetizados por Fernando de Azevedo no Manifesto dos pioneiros. Todavia, a imposio ao pas da Constituio de 1937 e do Estado Novo, haveria de interromper por vrios anos a luta auspiciosa do movimento educacional dos anos 1920 e 1930 do sculo passa- do, que s seria retomada com a redemocratizao do pas, em 1945. Os anos que se seguiram, em clima de maior liberdade, possi- bilitaram alguns avanos definitivos como as vrias campanhas edu- cacionais nos anos 1950, a criao da Capes e do CNPq e a aprova- o, aps muitos embates, da primeira Lei de Diretrizes e Bases no comeo da dcada de 1960. No entanto, as grandes esperanas e aspiraes retrabalhadas e reavivadas nessa fase e to bem sintetiza- das pelo Manifesto dos Educadores de 1959, tambm redigido por Fernando de Azevedo, haveriam de ser novamente interrompidas em 1964 por uma nova ditadura de quase dois decnios. * A relao completa dos educadores que integram a coleo encontra-se no incio deste volume. 8FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 8 21/10/2010, 08:07
  • 9. Assim, pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estgio da educao brasileira representa uma retomada dos ideais dos mani- festos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com o tempo presente. Estou certo de que o lanamento, em 2007, do Plano de Desenvolvimento da Educao (PDE), como mecanis- mo de estado para a implementao do Plano Nacional da Edu- cao comeou a resgatar muitos dos objetivos da poltica educa- cional presentes em ambos os manifestos. Acredito que no ser demais afirmar que o grande argumento do Manifesto de 1932, cuja reedio consta da presente Coleo, juntamente com o Manifesto de 1959, de impressionante atualidade: Na hierarquia dos pro- blemas de uma nao, nenhum sobreleva em importncia, ao da educao. Esse lema inspira e d foras ao movimento de ideias e de aes a que hoje assistimos em todo o pas para fazer da educao uma prioridade de estado. Fernando Haddad Ministro de Estado da Educao 9FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 9 21/10/2010, 08:07
  • 10. 10FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 10 21/10/2010, 08:07
  • 11. FLORESTAN FERNANDES (1920-1995) Marcos Marques de Oliveira De Vicente a Florestan Em 10 de agosto de 1995, a cincia social brasileira perdia um dos seus mais importantes nomes, a poltica nacional dava adeus a um de seus mais honrados integrantes e a educao pblica do pas deixava de contar com um de seus mais ardorosos defensores. Boa parte do pblico que leu, no dia seguinte, a notcia sobre o faleci- mento do intelectual Florestan Fernandes, aos 75 anos1, certamente no tinha o conhecimento de sua origem familiar e social, de sua rdua luta para superar as adversidades destinadas aos meninos po- bres que habitavam a capital paulista na terceira dcada do sculo XX. Infncia e juventude na So Paulo dos anos 1920 e 1930 Consta que Vicente (como o apelidara sua madrinha Hermnia Bresser de Lima, com quem viveu parte da infncia, que no admitia que algum de origem to humilde filho de sua empregada domstica tivesse um nome to pomposo quanto Florestan2) estudou at a terceira srie primria no Grupo Esco- lar Maria Jos, no bairro de Bela Vista, quando dividia o tempo escolar com trabalhos de rua para ajudar no sustento da famlia, que se resumia, quela poca, a ele e sua me uma moa analfa- 1 Florestan nasceu em 22 de julho de 1920. O estudo sobre um malsucedido transplante de fgado pode ser conferido em Vtimas de hemodilises: casos diversos e o caso Florestan, em Bulhes (2001). 2 Homenagem de sua me a um motorista alemo que trabalhava na mesma casa em que ela era empregada domstica. 11FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 11 21/10/2010, 08:07
  • 12. beta filha de imigrantes portugueses da regio do Minho, que aps a morte do pai, abandonou o campo, no interior de So Paulo, pelo trabalho duro na metrpole. Aos nove anos, porm, foi obrigado a dedicar todo o seu tempo s tarefas de sustento da casa. Mas, segundo Florestan, numa viso retrospectiva, os professores tinham cumprido com ele o seu ofcio, ensinando-lhe muitos hbitos higinicos e relevantes ideais de vida. Em especial, o amor pela leitura, que resultou na vontade de ligar a natural curiosidade de criana aos livros que lhe fossem caindo s mos. O que me foi importante, porque no desespero de romper a castra- o cultural invisvel foi por a que eu prprio abri o meu caminho, formando uma curiosa cultura letrada, que ia do Tico-Tico literatu- ra de cordel, aos livros de piada, e a uma variadssima literatura eru- dita, na qual prevaleciam os livros didticos e de histria, vendidos nos sebos, e os romances. Se a cidade continha alguma civilizao, eu me tornei seu adepto e seu afilhado pelo autodidatismo (Fernandes, 1977, p. 146). Florestan deu continuidade sua socializao circulando pelo submundo das profisses de baixo valor social (engraxates, apren- dizes de barbeiro, alfaiate, balconistas de padaria, copeiros, gar- ons etc.), um crculo em que as lutas operrias estavam fora de pauta e as fontes de informao eram as pessoas a que serviam ou os jornais sensacionalistas. Uma criana ou um adolescente, dentro desse submundo, j faz muito quando enfrenta a presso negativa contra a curiosidade intelectual (Fernandes,1977, pp. 146 e 147). No foi fcil, por exemplo, enfrentar a resistncia de sua me, que no gostou da ideia de seu filho em entrar para um curso de madureza3, com medo de que, estudado, o filho pas- sasse a ter vergonha dela. Com os colegas de rua, a reao tam- bm no foi positiva, com o gosto pelo estudo e pela leitura 3 O que at bem pouco tempo era denominado de supletivo, hoje englobado na chamada EJA (Educao de Jovens e Adultos). 12FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 12 21/10/2010, 08:07
  • 13. transformando-se em motivo de chacotas: vai ficar com miolo mole, diziam. O apoio acabava vindo de pessoas de fora de seu crculo so- cial ou de amizade, j que nos bares e restaurantes em que traba- lhou, por exemplo, nunca recebeu apoio ou conselho construtivo de qualquer colega. J entre os fregueses encontrou quem lhe em- prestasse livros e, inclusive, apoio prtico para ir mais longe. Mas se no teve estmulos para mudar de ofcio ou de vida, com os homens de suas antigas ocupaes aprendeu uma outra lio: que, entre eles, encontrei pessoas de valor, que enfrentavam as agruras da vida com serenidade e tinham o seu padro de humanida- de: sabiam ser homens e, nesse plano, eram mestres insuperveis, com toda a sua rusticidade, depreciao da cultura letrada e incompreenso diante dos prprios interesses e necessidades. Foi deles que recebi a segunda capa de socializao, que superps ante- rior, pela qual descobri que a medida do homem no dada pela ocupao, pela riqueza e pelo saber, mas pelo seu carter, uma palavra que significava, para eles, pura e simplesmente, sofrer as humilhaes da vida sem degradar-se (Fernandes 1977, p. 147). O passo seguinte dessa preparao singular deu-se com sua entrada no Ginsio Riachuelo, vizinho ao Bar Bidu, na Rua Lbero Badar, onde trabalhava como garom. Atento aos fregueses com os quais podia aprender alguma coisa, chamavam sua ateno os professores que iam lanchar aps as aulas. Por sua visvel dedica- o aos livros e habitual inteligncia aferida nas conversas cotidia- nas, alguns desses seus clientes abordavam o jovem Florestan per- guntando sobre seus estudos. Sob esse estmulo, acabou cultivan- do relaes que lhe abriram novas portas, concedendo ao jovem garom a oportunidade de voltar escola e, posteriormente, uma nova oportunidade de emprego como entregador de amostras de um laboratrio farmacutico. O crculo de ferro fora rompido e, com o novo emprego, poderia manter minha me e pagar os estudos (Fernandes 1977, p. 148). 13FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 13 21/10/2010, 08:07
  • 14. A condio de estudante e o emprego de gravata represen- taram mais do que a ruptura com a cultura folk e com a condi- o social anterior. Abriam-se novos horizontes de socializao e a criana deslumbrada da cidade transpunha os muros da fortaleza da degradao, iniciando um ciclo de esperanas que lhe parecia mais que uma iluso irremedivel. Uma sociedade de classes em formao no to aberta quanto mui- tos pensam e, tampouco, aberta em todas as direes. O cho da superfcie exigia uma viagem muito difcil e poucos chegavam at ele, naquela poca. Era normal, portanto, que eu sentisse uma grande alegria de viver e uma esperana sem limites, como se o mundo me pertencesse e, a partir da, tudo dependesse de mim. O orgulho selva- gem, de agresso autodefensiva, transformava-se numa fora psicolgi- ca estuante, que me punha em interao com o mundo dos homens a sociedade e no fora dele (Fernandes, 1977, pp. 150 e 151). Na Novaterpica, empresa do ramo de remdios, esse orgu- lho selvagem teve que se confrontar com as relaes travadas no eixo da vida pequeno-burguesa que estava a conhecer e do qual fazia parte a maioria de seus novos amigos. Um novo mundo de famlias organizadas, boa parte imigrantes, que destinavam suas es- truturas institucionais a seus membros, proporcionando educao, felicidade, segurana, prazeres e condies para o xito individual. Um dos efeitos foi a ampliao de sua leitura, que chegou, inclusive, ao debate sobre o socialismo e a sociedade brasileira, por meio do contato com Mrio Pianna, cunhado de um de seus amigos. Recm-chegado da Itlia, ele via com olhos muito crticos certos cos- tumes brasileiros inclusive a condio inferior da mulher, o fato de at homens feitos passarem a mo pela bunda de meninos ou a apatia dos operrios e me forava a saltar de uma leitura confusa de certos livros elementares de propaganda socialista para o significado do movimento socialista como fora social e poltica (Fernandes, 1977, p. 151). No Riachuelo, o curso de madureza prosseguia. Com a for- mao de uma pequena comunidade de estudos, descobriu uma 14FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 14 21/10/2010, 08:07
  • 15. nova forma de companheirismo que lhe propiciou enfrentar com vigor as dificuldades de conciliao entre a escola e o trabalho. Num grupo coeso, descobriu o prazer pela comunicao e o de- bate intelectual, um passo para a consolidao da ideia de se tornar professor. Completado este ciclo, Florestan Fernandes se prepara para uma nova empreitada: o ensino superior. Mas, o que cursar? A sua opo inicial, engenharia qumica, de horrio integral, estava descartada. Apesar de estar numa nova firma, com renda maior e mais tempo para os estudos, os cursos de meio perodo deveriam ser as alternativas. A escolha acabou acontecendo por interesses intelectuais e polticos, ficando em segundo plano a questo profissional. Na hora, pesou uma observao registrada por Cerqueira (2004a, p. 28) feita pelo professor do curso de madu- reza Benedito de Oliveira, de quem Florestan muito gostava: Ele tem jeito de reformador social. Queria ser professor e poderia atingir esse objetivo por meio de vrios cursos. O meu vago socialismo levou-me a pensar que pode- ria conciliar as duas coisas, a necessidade de ter uma profisso e o anseio reformista de modificar a sociedade, cuja natureza eu no conhecia bem, mas me impulsionava na escolha das alternativas (Fernandes, 1977, p. 154). A faculdade de cincias sociais Assim, aps estudar os caminhos possveis, Florestan ingressa, em 1941, aos 21 anos, no curso de cincias sociais da Faculdade Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo (FFCL- USP), obtendo sucesso num difcil processo seletivo. A banca exa- minadora era composta pelos professores franceses Roger Bastide e Paul Bastide. Sorteado os pontos, os candidatos tinham de co- mentar os assuntos e responder s perguntas da banca. Para Flo- restan, foi sorteado o trecho de um livro de mile Durkheim, o pai da sociologia. Como o ponto e as perguntas eram em fran- cs, Florestan, que mal lia nesta lngua, pediu aos professores para 15FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 15 21/10/2010, 08:07
  • 16. fazer a prova em portugus. Ainda que surpresos diante do insli- to pedido, Roger e Paul decidem aceitar. Como Florestan conhe- cia bem o texto sorteado, comentou as ideias de Durkheim com tamanha desenvoltura que deixou os professores impressionados. Eram 29 candidatos, dos quais apenas seis foram aprovados, entre eles Florestan (Cerqueira, 2004a, p. 29). A vitria teve para o j no to menino Vicente um duplo significado: a) a anulao do atraso escolar; b) a prova de que tinha capacidade comparvel dos colegas que haviam seguido o per- curso normal (Fernandes, 1977, p. 155). No entanto, rapidamente ele percebeu que as dificuldades estavam apenas comeando. Os mestres estrangeiros, que formavam a maioria do quadro de pro- fessores, alm de dar suas aulas na prpria lngua, no levavam em conta as deficincias dos alunos e procediam como se eles dispu- sessem de uma base intelectual equivalente que se poderia obter no ensino mdio francs, alemo ou italiano. Alm disso, optavam por cursos monogrficos, que exigiam conhecimentos prvios que no estavam disposio dos alunos. O que impunha uma sada paradoxal: um autodidatismo intensivo, nem sempre super- visionado e orientado. O salto no escuro era a regra; o jogo, no entanto, era limpo, embora o desafio fosse tremendo (Fernandes, 1977, p. 156). No primeiro trabalho universitrio, sobre a crise causal na explicao sociolgica, Florestan teve a dimenso das barreiras que ia enfrentar para suprir as deficincias de sua formao escolar elementar, determinada pela origem social to adversa4. Sem familiarizao com a literatura acadmica, parte para a biblioteca e 4 Na dcada de 1940, a maior parcela da populao pobre no tinha acesso nem mesmo ao ensino fundamental (Gadotti, 2003, p. 122), o que demonstra a singularidade do fato de Florestan chegar ao ensino superior dominado pelos filhos das elites. Segundo Miceli (1987), no caso das cincias sociais paulistas, o alunado era composto por descendentes de famlias imigrantes abastadas, de setores tradicionais do interior do estado e de grupos familiares ligados ao magistrio secundrio, burocracia estatal e ao desempe- nho de cargos intelectuais e culturais. 16FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 16 21/10/2010, 08:07
  • 17. faz uma compilao sobre o assunto. Tirei nota quatro e meio, com um comentrio piedoso do professor Bastide: o que ele es- perava era uma dissertao, no uma reportagem (FERNANDES, 1977, p. 156). Seu estudo sistemtico, bem fundamentado teorica- mente, referendado por pesquisas empricas, comea, portanto, com a distino entre ser jornalista e ser socilogo. Ficaram assim indicados alguns dos principais aspectos da mentalidade for- mada no ambiente universitrio paulista daquela poca, os quais, segundo Garcia (2002), exerceram considervel influncia sobre o modo como Florestan foi construindo sua concepo de trabalho sociolgico. Esses aspectos apontam para um complexo quadro cultural e social que d sentido ao comentrio de Bastide que ope a dissertao reportagem ou a perspectiva do trabalho acadmico ao enfoque jornalstico. Ele diz que uma coisa ser jornalista e outra ser socilogo; o que distingue os dois o modo de trabalhar: a diferena entre reporta- gem e a dissertao est no procedimento de trabalho que o tipo de texto resultante expressa. Ao escolher esforar-se ao mximo para atingir o nvel de trabalho exigido pela Faculdade, Florestan aderiu, pela primeira vez, perspectiva cientfica de acordo com a concepo acadmica representada, no episdio, por Roger Bastide (Garcia, 2002, pp. 79-80). Na passagem do jornalista insciente ao cientista disciplinado, os primeiros frutos sero colhidos logo aps aderir ao padro monstico exigido pelo pensador francs, como no trabalho apresentado professora Lavnia Costa Villela, no segundo se- mestre de 1941, sobre o folclore paulistano, tema prximo de sua histria de vida5. Um pouco mais maduro, o futuro cientista social soma ao seu autodidatismo a orientao sociolgica de mile 5 Se tinha pouco tempo para aproveitar a infncia, nem por isso deixava de sofrer o impacto humano da vida nas trocinhas e de ter rsteas de luz que vinham pela amizade que se forma por meio do companheirismo (nos grupos de folguedos, de amigos de vizinhana, dos colegas que se dedicavam ao mesmo mister, como meninos de rua, engraxates, entregadores de carne, biscateiros, aprendizes de alfaiate e por a a fora) (Fernandes, 1977, p. 143). 17FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 17 21/10/2010, 08:07
  • 18. Durkheim e Marcel Mauss. O resultado foi uma pesquisa de cam- po, com foco na formao e na funo de dinamismos autno- mos de socializao da criana (FERNANDES, 1995c, p. 5), que apresentava manifestaes similares entre o folclore brasileiro e o ibrico, com breves indicaes sobre a dinmica da vida social paulista. A nota nove foi motivo de comemorao, mas a justifica- tiva (o enfoque sociolgico do folclore teria sido levado longe demais) deixou o jovem Florestan inconformado. Buscando uma soluo para o incmodo, o aluno consulta Roger Bastide, que aprova a forma como desenvolveu o trabalho, lhe sugerindo no abandonar a perspectiva adotada. Era o sinal de que o esforo para a conformao de uma nova estatura psicolgica estava dando certo. Concentrado na aprendizagem do ofcio, Florestan buscava libertar-se de velhos complexos e se preparava para vencer novos obstculos. Como ttica, concentrou-se nas exigncias diretas provindas das aulas, das provas e dos trabalhos, e lanou mo dos condenados manu- ais6. Assim, alcanando maior autonomia intelectual, passou a enfrentar em melhores condies um grande inimigo: a intimi- dao causada pela cultura dos mestres estrangeiros. Eu estava na poca da semeadura: qualquer que fosse a grandeza rela- tiva dos meus mestres, eu tinha o que aprender com eles e o que eles me ensinavam ou transcendia aos meus limites ou me ajudava a cons- truir o meu ponto de partida. Cabia-me aproveitar a oportunidade. A leitura de Mannheim, em particular, que iniciara com intensidade j no comeo de 1942, convencera-me de que a conscincia crtica, para ser criadora, no precisa ser dissolvente (Fernandes, 1977, p. 158). 6 Florestan tambm vai utilizar, como professor, os manuais como recurso pedaggico para se aproximar de seus alunos. Nos anos 70, o cientista social participar de um projeto editorial preocupado em dotar professores e estudantes de um conjunto completo de instrumentos de trabalho didtico, que lembrar a sua preocupao em enriquecer os cursos de formao sociolgica (Fernandes, 1973; 1975c). 18FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 18 21/10/2010, 08:07
  • 19. O Vicente, finalmente, comeava a dar lugar ao Florestan. Nesse processo, o que antes era motivo de medo a sua relao com os professores estrangeiros tornou-se um fator importante de estmulo e superao. A relao com Roger Bastide, por exem- plo, culminou em progressivo apoio de carter mais estrutural, com o professor francs passando a se preocupar com as condi- es de vida do aluno pobre. Ser por intermdio de Bastide, por exemplo, que Florestan passa a colaborar regularmente, a partir de 1943, no jornal O Estado de S. Paulo7. Ironicamente, o mesmo pro- fessor que havia criticado sua reportagem leva o aluno aos palcos da imprensa e o deixa sob os olhos da opinio pblica o que o torna mais consciente da necessidade de uma postura metodolgica exigente, desenvolvendo melhor a percepo sobre o que diferen- cia o amador do profissional, o aprendiz do mestre. Estava se definindo, na ainda jovem carreira, uma tendncia de alinhamento com uma abordagem sociolgica rigorosa, capaz de conjugar a descrio detalhada dos fenmenos com o entendimento de seu significado no mbito de uma totalidade social. O ajustamento de Florestan vida acadmica se consolida com sua deciso em se tornar, alm de professor, um intelectual, com vistas a suprir as deficincias de sua formao pelo mergulho pro- fundo no oceano das cincias sociais. Um passo importante para a realizao desse propsito foi o contato inesperado de Fernando de Azevedo, ento diretor da FFCL, que lhe ofereceu ajuda (bibli- oteca, orientao e dinheiro) para melhorar suas condies de es- tudo. A assistncia, motivada pela informao que o educador recebera sobre a existncia de um aluno com talento de pesquisa- dor em dificuldades, rejeitada por Florestan que, no entanto, deixou-se mostrar comovido. O contato permaneceu por meio de visitas ao escritrio do famoso educador e encontros nos cor- 7 Em 1, 15 e 22 de julho de 1943, Florestan publicou neste jornal um conjunto de trs artigos sob o ttulo O negro na tradio oral, reproduzidos em Fernandes (1972). 19FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 19 21/10/2010, 08:07
  • 20. redores da faculdade. Numa dessas oportunidades, Azevedo ins- tiga Florestan a tornar-se professor da respectiva instituio, num dilogo, pode-se dizer, proftico: Ele se impunha com aquele ar nobre, como se fosse um prncipe da corte de Lus XV guiando seu squito. Ento, ele me atraiu como um protegido e disse: O que voc acha da Faculdade de Filosofia? Eu acho a Faculdade de Filosofia a escola mais importante que temos hoje no Brasil. Voc gostaria de pertencer Faculdade de Filoso- fia? Bom, respondi, gostaria, mas esse um objetivo muito difcil. Como aquele personagem tratado por Thomas Mann na trilogia Jos e seus irmos, eu procurava aformosear meu destino naquele momento. E continuei: muito complicado abrir as por- tas da Faculdade de Filosofia para uma pessoa como eu. E ele, com aquele ar decidido: Isso ns veremos. [...] aquele convite me sur- preendeu um homem como ele, acenando-me com a possibilida- de de voltar-me para a Faculdade de Filosofia e s fez aguar as minhas ambies. (Fernandes, 1995b, pp. 187 e 188). Para dar conta de seu anseio, Florestan lana mo de uma tti- ca comum de aformoseamento pelos que, na poca, buscavam encontrar um lugar ao sol no meio intelectual daquela que j estava se transformando na principal cidade brasileira: investe na publica- o de artigos em jornais da cidade de So Paulo. Nos anos 1930 e 1940, a participao nos dirios era cobiada por dois motivos centrais: era o veculo por excelncia para a divulgao das ideias; assim como uma possibilidade de renda adicional (Miceli, 1987). As alternativas viro com a criao e a consolidao das revis- tas polticas, culturais e acadmicas, que garantiriam uma maior autonomia produo intelectual, possibilitando uma maior aten- o e dedicao s caractersticas especficas do trabalho cientfico. Em So Paulo, por exemplo, aparecem Clima (1941), Anhembi (1950) e Brasiliense (1955), que embora no fossem financiadas diretamen- te pelas instituies universitrias, atestavam o vigor intelectual de muitos de seus membros, que se destacavam pela sintonia com diversos gneros em ascendncia, tais como as artes visuais, o ci- 20FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 20 21/10/2010, 08:07
  • 21. nema e, inclusive, as cincias sociais. Quanto s estritamente acad- micas, destacam-se Sociologia (1939) e a Revista de Antropologia (1954). Florestan, atento aos mecanismos de funcionamento do merca- do acadmico, vai aproveitar muitas oportunidades de insero, tan- to em termos de busca de reconhecimento, quanto por preocupa- es de ordem material. Como registra o depoimento de Florestan Fernandes Jr. (apud Oliveira, 2006a, p. 34), foi por meio do jornalis- mo que meu pai conseguiu sobreviver no incio de sua carreira, escrevendo, ao mesmo tempo, para dois grandes jornais da capital paulista: O Estado de S. Paulo e Folha da Manh 8 o que demonstra, segundo Fernandes Jr., sua precoce capacidade de articulao: es- crevendo sobre literatura no primeiro jornal, como crtico literrio; e, no segundo, fazendo mais anlises sociolgicas, antropolgicas e polticas. Um pequeno indcio de seu reconhecimento ascendente, detalhado por Antnio Candido (2001), vir num encontro com o modernista Mrio de Andrade, no final de janeiro de 1945, durante o I Congresso Brasileiro de Escritores, que visava arregimentar inte- lectuais contra o Estado Novo. Florestan, mais uma vez no papel de reprter, encarregado de fazer a cobertura do evento para a Folha da Manh, tem a oportunidade de ser apresentado a um dos mais ex- pressivos intelectuais modernistas brasileiros, que manifestou alegria ao conhecer pessoalmente o articulista do qual tinha lido bons tra- balhos publicados na imprensa. Ao mesmo tempo em que Florestan despontava na crnica paulista, Antonio Cndido, aluno mais antigo do curso de cincias sociais, primeiro-assistente de Fernando de Azevedo na cadeira de sociologia II, j se destacava como articulista, especialmente na Folha da Manh, alm da sua participao na j citada revista Clima. 8 A Folha da Manh, inaugurada em 1925, funde-se em 1960 com os jornais Folha da Noite e Folha da Tarde para formar a atual Folha de S.Paulo. 21FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21 21/10/2010, 08:07
  • 22. Depois de alguns encontros durante a graduao, a amizade se consolidou no episdio que levou Florestan a se tornar o segun- do-assistente de Fernando de Azevedo9 quando Candido fez uma interveno crucial, levando o renitente aluno a aceitar a mais nova oferta do diretor da Faculdade de Filosofia10, possibilitando-lhe passar da aprendizagem em extenso para a aprendizagem em profundidade (Fernandes, 1977, p. 168). Ps-graduao e os primeiros escritos Inspirado pela experincia de assistente de uma importante personalidade da rea educacional, Florestan submete-se aos exa- mes de ingresso ps-graduao em sociologia e antropologia da Escola Livre de Sociologia e Poltica (ELSP) de So Paulo. Objetivava, com isso, sanar suas deficincias intelectuais e experi- mentar uma formao mais prxima do ideal de cincia social norte-americana o que no havia obtido na Faculdade de Filo- sofia da USP. Embora frutos de uma mesma conjuntura social e poltica11, as respectivas instituies, alm de terem sido fundadas com objetivos diferenciados, desenvolveram estratgias distintas de reconhecimento pblico; com a primeira mostrando-se volta- 9 Florestan concluiu o curso de cincias sociais da USP em 1943, ainda se licenciando em didtica no ano de 1944. A partir de 1 de maro de 1945, ele assume o cargo de segundo- assistente da cadeira de sociologia II, permanecendo na funo at 27 de novembro de 1952, quando se torna o primeiro-assistente da cadeira de sociologia I (Cerqueira, 2004a, 180). 10 Florestan, ainda que embevecido, achava-se despreparado para o cargo: Dr. Fernando, o senhor tem toda a responsabilidade por este convite. O senhor est convidando um aluno... eu no sou professor. O senhor deveria chamar um professor, essa a sua responsabilidade. Se eu falhar, a o senhor no pode transferir a culpa para mim. Azevedo, sentindo-se convencido pelo aluno, respondeu: Acho que voc tem razo, melhor procurar outro assistente. Foi quando Antonio Cndido interveio e salvou o amigo: Olha, Dr. Fernando, ns todos sabemos muito bem que o Florestan burro, que no sabe nada, que incompetente no pode ser assistente. Aps risos, o convite ficou acertado (Fernandes, 1995b, p. 189). 11 Em So Paulo, segundo Miceli (1987), as cincias sociais floresceram em resposta aos diagnsticos formulados pelos setores da classe dirigente local com vistas a retomar a hegemonia poltica perdida em 1930 e ratificada em 1932. 22FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 22 21/10/2010, 08:07
  • 23. da mais para o campo da pesquisa emprica, sob a influncia da Escola de Chicago, e a segunda (produto de uma aliana entre intelectuais e empresrios culturais, tal como a famlia Mesquita, proprietria do jornal O Estado de S. Paulo) embasada na experin- cia universitria europeia, de maior enfoque terico-metodolgico12. Apesar de j possuir certa notoriedade, a primeira tentativa de Florestan ingressar na ELSP falha. Localizado o motivo do insucesso, Florestan dedica-se ao estudo do ingls e consegue aprovao, ainda em 1945. L, Florestan, mesmo insatisfeito com o nvel da nfase empiricista que encontrou na instituio, tem uma passagem marcante, que culmina em seu ttulo de Mestre em Antropologia, obtido em 1947, com a pesquisa A organizao social dos Tupinambs (Fernandes, 1963). Segundo o socilogo, a Escola Livre constitui um segundo patamar em sua vida, no tendo a mesma influncia que a instituio (a FFCL) em que se graduou, a qual considera o seu ventre mater- no. Mas, a julgar pela constatao que segue, assim como pelos efeitos em sua formao e nos desdobramentos de sua obra, no se deve considerar que essa tenha sido uma experincia perdida: Quando percebi que alimentava esperanas erradas, imprimi novo curso s minhas relaes com a Escola Livre, os seus professores e os seus estudantes (entre os quais formei muitos amigos). Passei a comportar-me como um professor, que eu era, que por assim dizer reciclava suas baterias, convertendo aquela escola em uma das arenas em que lutava por minha autoafirmao e autorrealizao (havia ou- tras, como a Faculdade de Filosofia, os movimentos polticos, as revistas e os jornais etc.) (Fernandes, 1977, p. 169). Em concomitncia, fora do ambiente acadmico, na luta pela sua autoafirmao e autorrealizao, o jovem cientista social prosse- gue com suas publicaes na arena da grande imprensa, tal como fez nos seus primeiros artigos em O Estado de S. Paulo, criticando o 12 De acordo com Peirano (1992, p. 80), enquanto a fundao da ELSP deveria contribuir para o desenvolvimento econmico e para a formao das elites do pas, a USP tinha sido imaginada para ser o crebro da nacionalidade, tendo como foco a pesquisa cientfica e a alta cultura, com o objetivo de fortalecer a democracia brasileira. 23FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 23 21/10/2010, 08:07
  • 24. racismo cruel da cultura ibrico-brasileira, em escritos sobre o negro na tradio oral. Ao longo de 1944 e 1945, seus artigos definiram uma linha de combate na cena intelectual paulista, pela orientao metdica da investigao e a rejeio crtica da perspectiva dos estu- dos de folclore e sua pretenso categoria de disciplina cientfica (Garcia, 2002, p. 113). Em contraposio ao enfoque folclorista en- to em voga, Florestan iniciava seu primeiro embate disciplinar, pro- movendo um trabalho de demarcao de fronteiras, abrindo cami- nho para uma nova concepo de cincias sociais no Brasil similar, guardada as especificidades, ao desenvolvido por Durkheim na Frana no incio do sculo passado (Oliveira, 1999). No caso de Florestan, o que se faz uma defesa da anlise sociolgica, buscando as origens sociais e polticas do objeto, para afirmar que boa parte do estudo do folclore feito at ento legiti- mava uma concepo e um projeto de sociedade que se definem pela diferena essencial entre a cultura letrada das elites e a das mas- sas populares. Respondendo a um artigo publicado na Revista Brasiliense, em 1959, no qual era acusado de ter uma apreciao negativa sobre o folclore, ele afirma que seu trabalho tratava apenas do desenvol- vimento dos estudos folclricos em So Paulo e jamais poderia ser encarado como sucedneo ou equivalente de um tratado de folclo- re (Fernandes, 2003, p. 3). Em sua resposta, publicada numa edi- o posterior da revista, propunha uma colaborao eficiente en- tre os dois campos, no deixando, entretanto, de estabelecer os re- quisitos que considerava necessrios para essa articulao: Os escritores brasileiros que pretendem o qualificativo altamente hon- roso de folclorista precisam fazer jus a ele, mediante a realizao de trabalhos que explorem, com seriedade, os recursos especficos da pes- quisa folclrica propriamente dita. Doutro lado, nada h a objetar contra os escritores que pretendem estudar o folclore como realidade psquica, social ou cultural. Somente, para que as inspiraes se concre- tizassem, seria desejvel que fizessem isso, de fato, por meio dos pro- cedimentos de investigao da psicologia, da etnologia ou da socio- logia. O que no pode perdurar so as confuses que vm transfor- 24FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 24 21/10/2010, 08:07
  • 25. mando o folclore em disciplina hbrida, aberta s aventuras mais sin- gulares dos que se sentem incapazes de qualquer atividade intelectual produtiva (Fernandes, 2003, p. 4). A citao anterior significativa da postura de Florestan em relao ao debate acadmico no Brasil. Em sua trajetria, o soci- logo em questo vai enfrentar com destemor as vises contrrias, estabelecendo sem meias palavras as diferenas em relao aos interlocutores, no deixando, porm, de reconhecer seus valores e contribuies. O mais importante, a seu ver, era o avanar do co- nhecimento cientfico e, consequentemente, a elevao do nvel de conscincia do senso comum. Sobre este ltimo aspecto, numa nota explicativa primeira edio de O folclore em questo, escrita em maio de 1975, faz uma constatao que considera melanclica: Os cientistas sociais perderam muito terreno na comunicao com o chamado grande pblico e na colaborao frequente em jornais di- rios ou revistas de alta cultura. A comunicao de massa destruiu os nichos que ainda davam cobertura a uma maior participao intelectual dos cientistas sociais na discusso de temas de interesse geral; e a socie- dade de consumo fez o resto, absorvendo o seu tempo de lazer em atividades que so caractersticas dos setores mdios afluentes (Fernandes, 2003, p. XX). Para Florestan, no entanto, o pessimismo da anlise deveria dar lugar ao. Os estudos do folclore deveriam voltar a ser uma oportunidade fecunda de interao entre a universidade e o meio ambiente, uma motivao de valor cientfico pertinente, com capa- cidade de criar uma identificao profunda e uma certa comunho da intelligentzia brasileira com o saber popular e com os estratos ao mesmo tempo mais humildes e mais conspcuos do Povo (Fernandes, 2003, p. XXI) o que demandaria uma preocupao obtusa com a forma e o contedo da comunicao acadmica13. 13 Escrevendo sobre Os destinos das universidades, ainda nO Estado de S. Paulo, no incio de 1959, Florestan afirmar sua convico de que a primeira batalha por verdadei- ras universidades dever ser ganha, em nosso Pas, fora dos chamados crculos acad- micos. Enquanto o homem mdio brasileiro for incapaz de compreender e de estimar seus centros universitrios, estes no tero destino certo (FERNANDES, 1966, p. 207). 25FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 25 21/10/2010, 08:07
  • 26. Era dessa maneira que ele gostaria que seu trabalho sobre as trocinhas, provrbios, jogos de salo, cantigas de piquenique, supersties, di- tos e frases feitas, rodas, parlendas e pegas infantis dos desenraizados de So Paulo fosse entendido: em termos da projeo endoptica que sempre cimentou o meu interesse pessoal pelo estudo do fol- clore (Fernandes, 2003, p. XXI). Como assinala Arruda (2004, p. XV): Os temas que escolheu estudar so reveladores do substrato ntimo de suas convices mais profundas, entranhadas na busca perseve- rante da compreenso do papel dos excludos da sociedade moder- na, espcie de declarao de amor aos alijados da herana que se im- ps, razo pela qual este livro [Folclore e mudana social na cidade de So Paulo] encanta e faz pensar. Para alm das muitas questes suscitadas por esse tema me- nor da obra florestaniana14, o embate disciplinar em seu entorno manifesta uma dimenso poltica que faz Florestan se identificar como membro de uma gerao crtica e radical de cientistas so- ciais, alinhados a uma perspectiva totalizante de cincia em con- traposio ao particularismo do pensamento conservador ento dominante (Garcia, 2002, p. 113). Militncia poltica e marxismo Essa adeso apaixonada razo cientfica (ou melhor, s poten- cialidades de se utilizar o conhecimento cientfico para a galvaniza- o dos elementos dinmicos de transformao social), no perodo de sua formao intelectual, tem como pano de fundo uma luta clandestina contra o Estado Novo, quando passa a tomar contato mais profundo com o marxismo. Nesse momento, o interesse de Florestan pelo socialismo o faz entrar numa fase de militncia no Partido Socialista Revolucionrio (PSR), liderado por Hermnio Sac- chetta, ex-editor do jornal do Partido Comunista do Brasil (PCB) na 14 Uma anlise sobre a questo do folclore na obra de Florestan e sua relao com a educao e a socializao da criana, por exemplo, pode ser conferida em Borba (2005). 26FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 26 21/10/2010, 08:07
  • 27. dcada de 1930, e de onde foi expulso, em 1937, sob acusao de ser um renegado trotskista (Gorender, 1992). O encontro de Flo- restan com Sacchetta ocorreu por volta de 1942, quando o jornalista ocupava o posto de secretrio-geral da Folha da Manh. Sacchetta sentia grande simpatia pelos alunos da Faculdade de Filosofia e se mostrou muito solcito ao saber que o jovem que acabara de conhe- cer era estudante de cincias sociais. Depois de algumas conversas rpidas, a relao se fortaleceu com os cafezinhos fora do jornal, discusses mais alongadas e uma amizade que durou at o fim da vida. At ento agindo ao sabor das oportunidades contra a ditadu- ra de Getlio Vargas, especialmente em encontros e manifestaes com estudantes da Faculdade de Direito, Florestan no resistiu atrao magntica de Sacchetta, que lhe abriu uma outra via de combate, mais secreta e com propsitos revolucionrios (Fernan- des, 1992, p. 76). Ganhando confiana, incorporou-se ao PSR, pas- sando a pertencer aos quadros da IV Internacional15, com novas responsabilidades e, sobretudo, esperanas sendo a principal delas a revoluo proletria como objetivo essencial. Se nem o Estado Novo e a ordem existente balanaram por causa dessa sua opo, o meu pensamento, as minhas orientaes polticas e a minha per- sonalidade sofreram uma mutao sbita (Fernandes, 1992, p. 76). Porm, to importante quanto o contedo desse contato com um movimento esquerda da doutrina stanilista16, o aproveita- 15 As chamadas Internacionais foram associaes que visavam reunir, em nvel mundi- al, as organizaes da classe trabalhadora. A primeira delas funcionou de 1864 a 1876, formada majoritariamente por integrantes de Londres e Paris, com expressiva participa- o de Marx e Engels. A segunda, fundada no Congresso Internacional de Trabalhadores, em Paris, no ano de 1889, teve a hegemonia dos trabalhadores ligados Social- Democracia alem. J a III, formada aps a Revoluo Russa, nasceu em Moscou, no ano de 1919, quando foi travado o embate entre as correntes stalinistas (a poltica de socialismo num s pas) e trotskistas (a ideia de revoluo permanente). Por fim, aps sua expulso da URSS, Trotski cria, em 1938, a IV Internacional, que teve significativo papel ao estimular o debate mundial sobre o desenvolvimento desvirtuado do socialismo oficial (Johnstone, 1993). 16 Um estudo sobre a forma como a URSS afetou o imaginrio poltico dos comunistas no Brasil encontra-se em Ferreira (1998). 27FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 27 21/10/2010, 08:07
  • 28. mento do que havia de melhor na atividade trotskista: o intenso convvio intelectual e poltico, o compromisso tico com a utopia da emancipao humana (Fernandes, 1992, p. 76). Como adverte Lwy (1998, p. 22), a recepo de uma doutrina , ela mesma, um fato social que deve ser compreendido em sua relao com a realida- de histrica concreta. E dessa forma que Florestan d continuidade a sua aprendizagem marxista, com seu socialismo vago, reformista e utpico cedendo lugar a uma militncia poltica disciplinada. Envol- ve-se, por exemplo, na elaborao e distribuio de um jornal mimeografado, rodado em sua casa, e colabora na traduo da Con- tribuio crtica da economia poltica, para a qual escreve a introduo Marx e o pensamento sociolgico moderno17 o que o impeliu a descobrir por sua prpria conta o jovem Marx e a desvendar a seduo do seu pensamento cientfico (Fernandes, 1992, p. 77). Mas a militncia poltica, que funcionava como um microcosmo ideal, envolvendo poltica, jornalismo e vida acadmica, trazia difi- culdades para a perpetuao de seus estudos. Tornando-me assistente da Faculdade e aluno de ps-graduao da Escola Livre de Sociologia e Poltica, eu enfrentava encargos intelec- tuais, discentes e docentes dispersos e pesados. No podia ser um militante devotado a todos os papis e obrigaes e, ao mesmo tem- po, logo entraram em cena as teses (de mestrado e de doutorado), que iriam ser uma fonte de atrito constante com os companheiros (Fernandes, 1992, p. 76). Entre as trs vocaes desenvolvidas na universidade trotskista, a acadmica leva vantagem, com o devido apoio de Sacchetta, que se fez de seu advogado diante das cobranas dos outros integrantes partidrios. O lder do PSR considerou que Florestan poderia ser mais til ao movimento na universidade, ser- vindo mesma causa por meios diversos. Tal deciso, segundo Garcia (2002, p. 123), tornava-se aceitvel no mbito daquele grupo poltico-doutrinrio revolucionrio graas radicalizao 17 Republicada duas vezes: Fernandes (1995a; 1971). 28FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 28 21/10/2010, 08:07
  • 29. que Florestan Fernandes poderia imprimir cincia social paulistana, se tomarmos como norte convico do marxismo cientfico sobre o papel e o poder do saber cientfico para o controle ra- cional do mundo. Porm, uma outra varivel deve ser levada em conta para o completo entendimento dessa opo entre a militncia poltica e a acadmica: Trata-se do fato de que entre o movimento socialista clandestino e a universidade, essa ltima era a nica que oferecia possibilidades pro- fissionais concretas e perspectivas efetivas de acesso a recursos econ- micos e simblicos. Florestan continuava sustentando a me e, casa- do recentemente, havia ampliado suas responsabilidades familiares como chefe provedor. Desse ponto de vista, a carreira acadmica, na qual inclusive Florestan j estava inserido, mostrava-se como a nica perspectiva promissora disponvel (Garcia, 2002, p. 117). Segundo o prprio Florestan, no existiam, para os trotskistas, um nicho autoprotetivo e as defesas das solidariedades de um forte movimento coletivo. A pessoa ficava largada a si prpria, ao seu potencial ou propenso de identidade abstrata com uma uto- pia revolucionria (Fernandes, 1992, p. 79). O distanciamento da militncia poltica, no entanto, no significou o abandono da pos- tura crtica e radical que marca toda a sua trajetria, dando nova forma e sentido chama interior do socialismo que nunca dei- xou de sentir chama essa que se sustm pelo consumo de dois elementos: um utpico, os ideais de uma vida igualitria e livre; outro tico, os pressupostos de racionalizao das relaes sociais injustas em vigncia. Afinal, afirmar o socilogo, preciso consi- derar que no era o movimento proletrio revolucionrio que sus- tinha aquele pequeno movimento trotskista, mas o socialismo como chama interior, como convico de que muitos precisam tombar e normal que tombem para que a revoluo triunfe (Fernandes, 1992, p. 79). Nesse momento, portanto, o elemento tico da chama se apre- sentou mais forte. Ser com essa despedida temporria da militn- 29FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 29 21/10/2010, 08:07
  • 30. cia poltico-partidria que Florestan dar os passos significativos para a sua profissionalizao acadmica, plantando as sementes de sua sociologia crtica e militante (Candido, 2001). Florestan pas- sa, a partir de ento, a indicar para si o terreno da misso poltica do professor, que encarava a universidade como um partido, cujo programa est numa produo cientfica que explique as estruturas constitutivas das sociedades germe do que mais adiante vamos identificar como a sua pedagogia socialista, que se manifestar de forma madura no articulista do final do sculo. Sua presuno era de que, a partir de hipteses expositoras dos problemas polti- cos, podem emergir polticas institucionalizadas de interesse sist- mico e no o tratamento fragmentrio dos problemas sociais muito comum nesses dias ps-modernos. Por uma sociologia de interveno A gradual sada de Florestan do movimento trotskista coinci- de, portanto, com sua dedicao s teses acadmicas de mestrado e doutorado18. Concomitantemente, em companhia de Antonio Cndido, passa a trabalhar em tempo integral na Faculdade de Filosofia. Dando continuidade sua carreira acadmica, inicia um programa de pesquisa sobre a teoria das cincias sociais como forma de evidenciar suas qualidades cientficas e consolidar seu prestgio no meio acadmico. Tal pesquisa vai culminar, em 1951, com o ttulo de doutor recebido com a tese A funo social da guerra na sociedade tupinamb (Fernandes, 1970) trunfo com o qual torna- se primeiro-assistente de sociologia I19, preparando o caminho para substituir ningum menos que Roger Bastide. A partir dessa obra, Florestan Fernandes revela-se o maior herdeiro dos mestres es- 18 De acordo com alguns depoimentos do socilogo, sua sada definitiva do PSR ocorreu em 1952 mantendo, portanto, contato com a organizao durante todo o perodo de doutoramento, ainda que com diminuta atividade militante (Coggiola, 1995, p. 14). 19 Nessa condio, Florestan vai trabalhar de 27 de novembro de 1952 a 31 de dezembro de 1954. 30FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 30 21/10/2010, 08:07
  • 31. trangeiros, o produto puro e mais bem acabado do novo sis- tema de produo intelectual e acadmico implantado na capital paulista (Garcia, 2002, pp. 125-126). Uma das caractersticas centrais da sociologia de Florestan, se- gundo Martins (1998), a busca das mediaes que definem a riqueza dos processos sociais e do processo histrico, sempre com base numa concepo da realidade social como totalidade. Seu ob- jetivo descobrir os nexos visveis e invisveis que tecem a realida- de, resultando numa sociologia da dinmica social que tenta iden- tificar os bloqueios que impedem ou retardam o desenvolvimento da sociedade. Florestan pode, com isso, ser considerado um so- cilogo do reencontro por ter como meta diminuir ou, se poss- vel, eliminar a defasagem existente entre o homem concreto e suas possibilidades histricas. Seus estudos vo apontar para o fato de que a verdade sociolgica s pode ser a daqueles que pagam o preo pelo desencontro entre as foras de modernizao e con- servao. Para Martins (1998, p. 31) a biografia (e a obra) do professor Florestan Fernandes a histria dos sem-histria. a histria da emergncia dos pobres na histria, como sujeitos de seu destino, com seu prprio nome. Essas constataes esto em sintonia com a avaliao de An- tonio Cndido de que a formao marxista de Florestan, ainda que lenta e compsita, responsvel pela sua fuso harmoniosa entre o rigor da sociologia e uma perspectiva poltica-revolucionria. O rio subterrneo do marxismo, funcionando como uma tendncia re- cessiva, liberou-o do dogmatismo do movimento socialista oficial e possibilitou uma formao terica diversificada, capaz de lidar competentemente com uma ampla gama de orientaes metodol- gicas, que o amadureceu tanto como cientista social quanto militan- te, produzindo uma sociologia crtica que o leva no apenas a estudar a realidade de forma sistemtica, mas a preparar os instru- mentos tericos adequados sua profunda mutao. Creio que ele 31FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 31 21/10/2010, 08:07
  • 32. foi o primeiro e at hoje o maior praticante no Brasil desse tipo de cincia sociolgica, que ao mesmo tempo arsenal da prxis, fazen- do o conhecimento deslizar para a crtica da sociedade e a teoria da sua transformao (Cndido, 2001, p. 60). Aps concretizar a profecia de Fernando de Azevedo, tornan- do-se professor efetivo da Faculdade de Filosofia20, Florestan apro- veitar sua nova posio social para intervir no debate sobre os problemas polticos nacionais, sempre a partir de uma postura crti- ca e racional, atuando, neste momento, como um intelectual moder- no, no sentido apropriado por Garcia (2002, p. 14) da definio criada por Pierre Bourdieu: o intelectual como um ser bidimensional que atua como produtor cultural e lder moral-poltico, dependendo de uma dupla condio: a de pertencer a um campo autnomo, com leis prprias; e a atuao poltica externa com base na autori- dade adquirida nesse mesmo campo especfico. a partir da que comeam a surgir suas reflexes sobre a sociologia como cincia social aplicada e as condies para a con- solidao de sua liderana diante de uma equipe de jovens socilo- gos da USP, posteriormente denominada como a Escola Paulista de Sociologia, promotora de um elenco de indagaes tericas fundamentais para a cincia social brasileira. Uma escola que vai se definindo, na perspectiva de Martins (1998, p. 18), pela construo de uma sociologia enraizada nas singularidades histricas, sociais e culturais brasileiras, que busca o entendimento das condies es- pecficas de uma sociedade marcada por ritmos desiguais de de- senvolvimento, assim como a compreenso de seus agentes sociais voltando-se, como afirma Miceli (1987), para o estudo dos gru- pos sociais (operrios, empresrios, imigrantes etc.) estratgicos nos processos de industrializao e urbanizao. 20 Com Ensaio sobre o mtodo de interpretao funcionalista na sociologia, sua tese de livre-docncia, reproduzida em Fernandes (1980b), Florestan assume a cadeira de soci- ologia I, a qual vai ocupar de 1 de janeiro de 1954 a 23 de fevereiro de 1965. 32FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 32 21/10/2010, 08:07
  • 33. De fato, sua importncia nessa instituio foi enorme, no s em termos dos cursos de formao como tambm da pesquisa sistem- tica, instituindo a prtica da elaborao de projetos coletivos de in- vestigao sociolgica de grande relevncia e constituindo equipes de pesquisadores selecionados entre os melhores. Florestan chegou a implantar um centro de pesquisa o Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (Cesit)21 , junto cadeira de sociologia I, espao institucional cuja direo ele detinha (Cardoso, M., 2005, pp. 7-8). Ser, por exemplo, com uma pesquisa sobre relaes sociais no Brasil, iniciada quando ainda desenvolvia a tese de doutora- mento, sob o patrocnio da Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura (Unesco), que ele vai ensaiar os pas- sos dessa sociologia de interveno (Romo, 2003, p. 23), dan- do provas de sua maturidade autoral e independncia de pensa- mento. O ponto alto desta pesquisa estar em A integrao do negro na sociedade de classes (Fernandes, 1965), obra com a qual Florestan se torna catedrtico da USP22, promovendo a descons- truo do mito da democracia racial brasileira e combatendo as explicaes culturalistas sobre a formao do carter nacional, demonstrando que a dita no-integrao do negro na sociedade de classes devia-se a pauperizao decorrente de sua excluso do mercado de trabalho. Alimentavam-se, nos termos de Garcia (2002), os passos para a superao de uma sociologia no Brasil por uma sociologia do Brasil. Uma cincia social que ao requisitar uma cidadania brasilei- ra, sem deixar de levar a marca feito-no-Brasil (Peirano, 1992, 21 O Cesit [oficialmente criado em 28 de fevereiro de 1962] marca uma transio na linha de pesquisa do grupo de socilogos uspianos reunidos na sociologia I. Depois de se deter por vrios anos sobre a questo das relaes raciais no Brasil, o grupo passa a preocu- par-se especificamente com questes relacionadas ao desenvolvimento brasileiro (ROMO, 2003, p. 4). 22 A tese foi defendida em 1964. Florestan assume a ctedra em 23 de fevereiro de 1965, funo que ocupa at 24 de abril de 1969, quando foi afastado por aplicao do Ato Institucional n 5 durante a ditadura militar. 33FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 33 21/10/2010, 08:07
  • 34. p. 84), se destaca pelo envolvimento com os destinos da nao sem questionar o carter universal dos procedimentos tericos e metodolgicos o que inclui a luta por boas condies de ensino, pesquisa e aplicao da atividade cientfica, garantias para que ela possa ser desenvolvida de modo contnuo e orientada pelos me- lhores motivos possveis. A partir da, agua o sentido de sua so- ciologia da interveno abarcando temas que se destinam a ava- liar as potencialidades de resoluo dos dilemas sociais brasilei- ros, acabando por desembocar na ideia de uma revoluo de- mocrtica ideia esta que se imps como uma hiptese neces- sria e se desenvolveu mais amplamente quando Florestan Fernan- des abordou os temas sociedade de classes e subdesenvolvimen- to (Peirano, 1992, p. 84), buscando desvendar a realidade subja- cente ao nosso capitalismo dependente. Entre os aspectos a serem abordados, h na sociologia de Flo- restan, em seu projeto para o Brasil, uma preocupao evidente com a questo educacional, um dos vetores de modernizao das relaes sociais, considerado por ele como o maior instrumento de difuso de uma conscincia cientfica da sociedade e um im- portante instrumento de mudana social, que tem como base a relao entre educadores e educandos (Martins, 1998, p. 35). A seguir, identificando as reflexes sobre o dilema educacional brasileiro na obra madura do ex-menino Vicente, ser possvel analisar as lutas travadas por ele no campo do ensino para ocupar os vazios deixados pela nossa inconclusa Revoluo Burguesa. Podere- mos, assim, encontrar insumos para combater o universo mental que hoje parece estar satisfeito com os limites de uma cidadania restrita e de uma democracia como estilo, padro cultural que, caso permanea hegemnico, ir perpetuar as desigualdades sociais, as condies indignas de vida e a ignorncia pblica efeitos diretos da falta de oportunidades educacionais e do incremento da apro- priao privada do conhecimento produzido socialmente. 34FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 34 21/10/2010, 08:07
  • 35. EDUCAO: OBJETO SOCIOLGICO E DILEMA SOCIAL Poucos pases, no mundo moderno, possuem problemas educacionais to graves quanto o Brasil. Como herana do antigo sistema escravocrata e senhorial, recebemos uma situao dependente inaltervel na economia mundial, instituies polticas fundadas na dominao patrimonialista e concepes de liderana que convertiam a educao sistemtica em smbolo social dos privilgios e do poder dos membros e das camadas dominantes. O fardo era pesado demais para ser conduzido com responsabilidade e esprito pblico construtivo, num sistema republicano que se transformou, rapidamente, numa transao com o velho regime, do qual se tornou mero sucedneo poltico. Florestan Fernandes Com as palavras dessa epgrafe, Florestan anunciava, no final dos anos 1950, sua apreciao sobre o dilema educacional brasilei- ro, pela qual observava o desajuste qualitativo e quantitativo de nosso sistema de ensino perante as necessidades da nao e de suas regies. A estabilidade e a evoluo do regime democrtico estari- am exigindo a extenso das influncias socializadoras da escola s camadas populares, assim como a transformao rpida do estilo inoperante do trabalho didtico tradicional, que no era propcio formao de personalidades democrticas. Na medida em que o sistema educacional restringia a procura dos candidatos escolarizao e se tornava inerte em relao s mudanas solicitadas, inclua-se entre os fatores adversos ao desenvolvimento social. Por conseguinte, em vez de acelerar a difuso e o fortalecimento dos ideais de vida, consagradas legalmente, ele interfere no processo como fator de demora cultural (Fernandes, 1971, p. 197). O tal dilema funciona como um perfeito crculo vicioso no qual as condies de subdesenvolvimento geram problemas cuja gravidade aumenta em funo das dificuldades materiais ou 35FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 35 21/10/2010, 08:07
  • 36. humanas em resolv-los. A interveno conjuntural deliberada, ainda que topicamente bem-sucedida, acaba por contribuir mui- to pouco para alterar a situao estrutural. O esforo, por isso, precisa ser repetido diversas vezes para que no se perca a pe- quena vantagem conquistada. Pensamos que este esboo remata a caracterizao do que chamamos de dilema educacional brasileiro. A relao entre meios e fins, no que concerne s perspectivas de controle dos problemas educacionais mais prementes, no prenuncia nenhuma espcie de xito seguro e rpido. Tal circunstncia indica, de ngulo inteiramente positivo, que a transformao do sistema educacional de um povo em fator de desenvolvimento depende, de modo direto, da intensidade, do vo- lume e da direo das esperanas coletivas, depositadas na educao sistemtica (Fernandes, 1971, p. 198). A esperana coletiva na universalizao da educao escolar sistemtica, portanto, deveria persistir. Isso porque, segundo Florestan, no h dvida de que a educao modela o homem. Mas este que determina, socialmente, a extenso das funes construtivas da educao em sua vida (Fernandes, 1966, p. 71). Mantendo f nas possibilidades das mudanas sociais planejadas, Florestan advoga a associao entre educadores e cientistas sociais para a elaborao de projetos que contribuam para a descoberta de meios adequados, econmicos e rpidos para uma interveno racional na estrutura e no funcionamento do ensino brasileiro. Ain- da que envolva nus financeiros severos para um pas pobre e destitudo inclusive de uma rede escolar para atender s emergn- cias, a respectiva associao abre perspectivas encorajadoras, por permitir articular a soluo dos problemas educacionais ao conhe- cimento e ao controle efetivo dos fatores responsveis pelo esta- do de pauperismo, de subdesenvolvimento e de desequilbrio institucional da sociedade brasileira (Fernandes, 1971, p. 193). No entanto, trs aspectos precisam ser considerados. O pri- meiro o cuidado em combater a noo de que o cientista social 36FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 36 21/10/2010, 08:07
  • 37. tem condies de resolver, per si, os problemas educacionais. Para Florestan, semelhante perspectiva no tem fundamento j que a possibilidade de resoluo dos problemas educacionais brasilei- ros depender da forma como o cientista social for includo no processo e, especialmente, das potencialidades de mudana do meio ambiente social. O segundo, em decorrncia do anterior, que para o sucesso da associao entre cientistas e educadores, a co- municao social numa sociedade de massa aparece como um terceiro vrtice do tringulo: A imprensa, a divulgao da leitura e outros meios modernizados de comunicao tm tornado o conhecimento de senso comum mais acessvel contribuio dos educadores e, mesmo, dos cientistas so- ciais. Vice-versa, estes vm demonstrando maior interesse pelas ma- nifestaes dos leigos, chegando a estimular movimentos que os convertem em grupos de presso na rea de reconstruo educacional (Fernandes, 1966, p. 104). Isso porque, afirma o socilogo, qualquer conhecimento po- sitivo (ou seja, cientfico) produzido sobre a situao educacional brasileira ser impotente, por si mesmo, para alterar a qualidade e a eficcia da reao societria aos problemas educacionais. Essa circunstncia s se alterar, presumivelmente, na medida em que se puder combinar, produtivamente, esse conhecimento com a ativi- dade regular dos educadores militantes e com o conhecimento do senso comum escolarizado (FERNANDES, 1966, p. 110). Ao fim, mas no de menor importncia, alm dos conhecimentos sobre a situao e os alvos a serem alcanados, os especialistas devem dispor de boas condies de trabalho para que possam regular, institucionalmente, sua participao na elaborao, na aplicao e no controle dos planos de interveno esboados. Da, afirmar Florestan, a importncia da existncia de organizaes como o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), que regiam os Centros Regionais de Pesquisas Educacionais (CRPE) em alguns estados da federao. 37FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 37 21/10/2010, 08:07
  • 38. Ele [o CBPE] introduz o planejamento, como processo social, na esfera da educao sistemtica no Brasil e confere ao socilogo, den- tro dele, papis sociais que lhe permitem colaborar, regularmente, nas fases de elaborao e de aplicao de planos de controle educacio- nal em que se imponha a utilizao de conhecimentos sociolgicos (Fernandes, 1971, p. 194). Campanha em defesa da escola pblica Vale lembrar que essas reflexes so feitas num momento marcante na histria educacional do pas, quando se abre oportu- nidade de organizar o sistema de ensino nos debates para a confi- gurao da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB). Segundo Florestan, o lado construtivo deste clima prop- cio mudana cultural provocada23 foi o fato de ele ter sido imaginado, pelos educadores brasileiros, como um expediente para modificar a orientao de manuteno e extenso das oportunida- des educacionais como mecanismo de privilgio s camadas mais bem-sucedidas na competio econmica, social e poltica. A po- lmica sobre a LDB foi, dessa maneira, a primeira grande chance que tivemos de submeter uma vasta rea de nossa vida escolar a uma disciplina nova, mais coerente com as necessidades educacio- nais fomentadas pela formao e desenvolvimento da sociedade de classes, do regime democrtico e da civilizao tecnolgica- industrial no Brasil (Fernandes, 1966, p. 130). A seu ver, jamais se vira semelhante movimento de opinio em torno dos problemas educacionais brasileiros (Fernandes, 1966, p. 355) desde o Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova, de 1932, que tinha como objetivo nortear a criao de um sistema de educao 23 A diferena entre a mudana cultural espontnea e a provocada [ou organizada], quanto ao papel do elemento racional, encarado nos limites da civilizao tecnolgica e industrial, antes de grau que de natureza. Uma e outra so processos da mesma ordem, que preenchem funes anlogas. Distinguem-se uma da outra somente com referncia aos recursos tcnicos e intelectuais, postos disposio do homem no campo do comporta- mento inteligente e do controle deliberado de foras conhecidas no meio ambiente (Fernandes, 1971, p. 190). 38FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 38 21/10/2010, 08:07
  • 39. de carter orgnico e integrado, capaz de submeter as tendncias de diferenciao e descentralizao a um conjunto comum de fins e princpios diretores bsicos. A principal contribuio do Manifesto, segundo Florestan, foi ter influenciado a Constituio de 1934, que estabelecia como competncia da Unio traar as diretrizes educaci- onais e a fixao de um plano nacional que compreendesse todos os nveis de ensino, com a responsabilidade de coordenar e fiscalizar sua execuo. Aps o vcuo ditatorial do Estado Novo, a Constitui- o de 1946 manteve essa determinao, dispondo que competia Unio legislar sobre ela. No ano seguinte, a pedido de Clemente Mariani, ento ministro da Educao, uma comisso foi instituda para preparar um esboo do projeto de lei, que foi encaminhado ao Congresso Nacional em outubro de 1948. O respectivo projeto de lei, segundo Xavier (1990, p. 120), con- jugava os arroubos tpicos da retrica progressista nacional, alm de um diagnstico surpreendentemente correto do resultado das reformas anteriores, com a denncia do tradicional du